A Guerra Perdida

 

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]enrique Manuel Bento Fialho é poeta e crítico de poesia. Tem uma dezena de livros publicados, desde 2000, e este, A Grua (volta d’mar, 2017), é o seu mais recente trabalho. Trata-se de um livro com vinte poemas, com os títulos de 1 a 20. A grua, que dá título ao livro, aparece em todos os poemas, como metonímia do humano. Do humano na sua solidão, no seu isolamento. Veja a última estrofe, do primeiro poema (p. 4):

(…)

não se mexendo

é apenas uma grua parada

a olhar trabalhos ao abandono

nada que agite os corações receosos

nada que provoque exaltações de espírito

pois tudo o que é melancólico

pode ser esquecido

pois tudo o que é triste

deve distrair-nos

e ficar para sempre parado onde ninguém ligue

onde ninguém dê por isso

bem no meio de nós

 

Através da grua vê-se melhor o humano. “há muito parada / a grua observa a obra” (p. 3) Há uma profunda desolação nas páginas deste livro. Mesmo quando aparece um faísca de esperança, ela surge apenas para que ilumine melhor a desesperança que habita um coração humano, a desesperança que habita este mundo de homens, como escreve o poeta no poema 12, à página 22: “(…) acredito nos homens / e na força das utopias / acredito nos horizontes que impelem à caminhada / para logo ao primeiro passo / tropeçarem no abismo / e das crenças e das utopias restar apenas / e tão-somente uma ideia vaga (…)” Pressente-se, ao longo destas páginas, a soar no fundo como se de um baixo contínuo se tratasse, que a vida humana existe para provar que tudo é desesperança. Aliás, poucos livros de poesia atingem este grau de desesperança que “A Grua” atinge, se é que algum se lhe pode comparar quanto à invocação desta erva daninha do humano. E aqui identifica-se dois tipos de desespero: 1) de todos aqueles à margem de uma vida boa ou dentro de parâmetros razoáveis, como se vivessem numa infra-humanidade; 2) a do poeta, aquele que, apesar de não partilhar essa infra-humanidade directamente, partilha através de uma consciência aguda, como se o poeta tivesse sido condenado a cantar a solidão e perfídia humana.

A grua também se torna num lugar de referência – poder-se-ia dizer de peregrinação – para os marginais deste mundo, pelo menos da parte do mundo próximo da grua, como o poema 4 é exemplo maior. Desde o sem-abrigo, logo no início do poema – “entre tapumes de chapa o sem-abrigo / fez a cama com caixão de cartão / e tapou-se com folhas de jornal” – passando pela máfia russa – “entre tapumes a máfia russa enterrou vivos / uma puta e um chulo da concorrência” – passando também pela puta – “e fechou os olhos enquanto a puta / o mamava a troco de vinte euros”– até à primeira vez do amor – “entre tapumes um casal de namorados / fez amor pela primeira vez”. E ainda esse isolamento maior que é ser-se só num mundo completamente diferente do nosso: “entre tapumes um chinês recolheu-se / a chorar com saudades de casa”. A grua onde habita tudo o que é o humano nas margens de si mesmo e dos seus temores, como no poema 3, à página 8:

ninhos de ratazanas

abrigos de drogados e prostitutas

 

indiferente a hábitos rastejantes

a cegonha não se queixa

prossegue o seu destino à margem das intempéries

sociais

que ateiam focos de discussão e raiva

 

No fundo, como nos versos do poema 6 (p. 12): “a grua era um farol a servir de referência / aos náufragos de uma cidade turbulenta.” A grua tem assim múltiplos sentidos, mas todos como metonímia do humano, em múltiplos modos de apresentação. E, por conseguinte, a miséria humana não se poderia dizer apenas nas margens, ainda que seja aqui que ela se faça sentir com mais eloquência ao longo do livro. A miséria humana é também a de todos aqueles que diariamente se dirigem ao trabalho, que repetem as suas acções quase mecanicamente ou, pelo menos, sem se perguntarem porque fazem isso, à imagem dos militares, que, segundo consta, não questionam as ordens dadas, como se lê no último poema do livro: “ainda nos comovem as sirenes / as mães com os filhos pela mão à entrada das / escolas / os homens fardados para o trabalho / com cara de quem vai para uma guerra perdida” (p.39), ou ainda “a caminho dos empregos como pregos” (p. 36). E a guerra já perdida para onde se caminha é a própria vida. Defender a vida, dia a dia, é essa guerra perdida. Perdida, não só porque não podemos ganhar, e sabemo-lo de antemão, mas também porque enquanto dura, a vida, estamos impedidos de fazer um gesto de paz, porque viver é estar continuamente em guerra. Percorre-se o livro com a sombra de que o mundo está podre, de que o humano é a grande doença do mundo, como fica bem claro no início do poema 14 (p. 26):

 

não quero saber

não me contem do mundo nem das suas mortes

desliguei-me de tudo

incluindo do cansaço com que me desligo

 

Perante esta evidência, a do mundo a cair, a do mundo ser um lugar de expiação, vive-se de modo a não nos cruzarmos com essa consciência. Este é o mundo onde se rouba sem ter fome – “ó ladrões sem fome” (p. 35) – principalmente porque não se tem fome, e como se de um mandamento tratasse. O mundo não é um lugar lícito. Viver é – sempre o foi, mas é-o agora cada vez mais – empanturrar-se de entretenimento, de diversão. E a grua, na sua inutilidade – “uma grua inutilizada no centro da paisagem / como tudo quanto respira / como tudo quanto existe” (p. 27) – aparece-nos como profeta, como o filho de deus, que recebe todos os enjeitados da vida, pois são eles que melhor a dizem, e ilumina o estado em que está o mundo. A grua é o filho de deus que nos falta, que não encontramos nas igrejas, nos templos, nos gestos das pessoas. A grua recebe todos, principalmente os que não têm nada e os que expõem os seus defeitos. E porque a poesia não é deste mundo, é ela que dá testemunho desta descida da grua ao mundo. No fundo, a poesia morreu e não sabe disso. A poesia não levanta sequer o rabo da cadeira, não tem força para nada, no mundo de hoje (e talvez tenha sido sempre assim). Leia-se estas duas estrofes do poema 20 (p. 38):

 

os poetas do meu tempo

sobretudo as raparigas

reivindicam grandes incêndios

falam com a boca cheia de labaredas

mas eu olho para eles e para elas

e mais não vejo do que fósforos inofensivos

a atear queimadas de entulho

raivas amenas pautam explosões de entusiasmo

e a paixão com que falamos uns dos outros

cai por terra como estrume

a fertilizar exíguos canteiros de alegria

 

Chegados aqui resta-nos terminar. Pois neste livro até o bem parece conversa e gestos de bêbado. Mas há alguma coisa boa neste livro? De outro modo, há alguma coisa boa que este livro nos mostre, para além da consciência cortante do estado miserável do mundo e dos homens? Há! Mostrar-nos que precisamos de ver. Não é urgente o amor. É urgente ver. É urgente a consciência da existência do fora de nós. Impossibilitados que estamos de nos olhar a nós mesmos, neste mundo que nos pisa, neste mundo em que o emprego nos suga as horas e a alegria e a possibilidade de pensar, e nos empanturra de entretenimento, é urgente olhar as coisas como se nos olhássemos a nós. Uma grua, um sapato, uma árvore que resiste nos baldios, podem despertar-nos para a nossa vida. Ver lá fora é preciso, diz-nos este livro. Talvez o diabo tenha criado o ecrán de televisão, o ecrán de computador, o ecrán, para nos impedir de ver o mundo, de ver as coisas, de ver os outros. Porque o mundo que nos aparece nos ecráns não é o mundo, mas um filtro do mesmo. No ecrán o que nos aparece é a distancia, uma distância em relação ao mundo. O mundo é o que nos é próximo. Embriagados de distância, afastamo-nos de nós e do mundo. Antes de terminar, com um poema de Henrique Manuel Bento Fialho, acrescento que a capa do livro foi concebida pela Inês Ramos.

 

14.

não quero saber

não me contem do mundo e das suas mortes

desliguei-me de tudo

incluindo do cansaço com que me desligo

 

acordo a olhar para ti e espanto-me

basta-me tal espanto

apontas para oeste

na direcção de um mar infindo

de aventuras perdidas

 

como o ponteiro de uma bússola

indicas-me os caminhos

do ocidente

e eu penso que nestas terras nunca o sol nasceu

 

não quero ocorrências

enterro-me nos lençóis com tudo desligado

nem música consigo ouvir

registo num pequeno caderno as últimas vontades

(ser transformado em cinza

e largado no lixo como se nunca tivesse existido)

e ensaio um possível epitáfio para os meus dias

(acidente

que não sonha

apenas delira

não dorme

apenas arfa)

 

não quero saber

se prescrevem poemas a quem como eu

olha os caminhos que indicas e vê

uma obra embargada

em edifício emparedado

uma grua inutilizada no centro da paisagem

como tudo quanto respira

como tudo quanto existe

 

simplesmente não quero saber

está vento

tenho frio

o céu nublado pesa-me nos olhos que fecho

enquanto enterro mais um pouco o corpo

por debaixo dos lençóis

18 Abr 2017

Do ombro à ventania

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] livro Lisbon Blues foi publicado pela primeira vez em 2009, no Brasil, e reeditado em 2015, em Portugal, pela Abysmo, com mais três poemas e ilustrações de Pierre Pratt. O livro está dividido em três partes: “Mapas”, “Derivas” e “Último Cabo”, com um primeiro poema a servir de homenagem “À Memória de Hélder Gonçalves”.

Contrariamente ao último livro que lemos aqui, Manucure, de Rosalina Marshall – em que o título do livro remete para um poema de Mário de Sá-Carneiro e os títulos dos poemas são todos eles versos ou partes de versos desse poema, impondo que a leitura não se afaste desse farol – neste livro de José Luís Tavares a palavra “blues” no título do seu livro não concede de imediato uma evidência ao caminho da nossa leitura. De qualquer modo, e porque o título vem em inglês, “Lisbon Blues”, podemos arriscar que o poeta quer invocar essa música negra norte-americana, tão diferente, nas suas origens, da musica tradicional de Lisboa, o fado. E parece-me estar aqui, nesta diferença entre blues e fado, a chave para a leitura deste livro do poeta de Cabo Verde, radicado em Lisboa. 

Sem dúvida, trata-se também de um livro sobre Lisboa, não apenas pelo título dos poemas – “Rua do Sol ao Rato”, “Madrugada do Chiado”, “Balada do Cais do Sodré”, “Postal do Intendente”, etc. – mas os próprios poemas remetem para um encontro entre alguém que vem de fora, não só de Lisboa, mas também do país, da cultura deste país, e a cidade retratada. A chave do blues, ao invés do fado ou de uma qualquer expressão musical de Cabo Verde (a coladeira ou a morna, por exemplo), torna-se assim ainda mais pertinente, até porque não há em Lisboa qualquer tradição de blues, qualquer tradição no culto dessa expressão popular norte-americana e negra. E a palavra “negra” é aqui a chave. O blues não é apenas uma expressão musical com raízes negras, mas com raízes negras de origem escrava. Independentemente de a música de Cabo Verde vir ou não de escravos, a verdade é que para um europeu ela não é de imediato ligada a esse facto, do mesmo modo que o blues. Além de que, do ponto de vista musical, há muito mais influência europeia na morna ou na coladeira, por exemplo, do que há no blues. José Luís Tavares usa o blues como metonímia de preto, de africano, de alguém que é diferente ou olhado de um modo diferente, pela sua cor, pela sua raça. Escreve ele, logo no primeiro poema do livro (após o poema inicial, à parte, de homenagem), “Pela Mão De Cesário”: “pobre Cesário negro (…)”. Estabelecendo assim, e logo desde o início, uma ligação àquele que cantou a cidade de Lisboa como ninguém – como já Dante o tinha feito em relação ao poeta Vergílio – e também a si mesmo, negro, e por isso mais afastado dos outros que o poeta do “Sentimento dum Ocidental”. Porque a marginalidade mais dura não é aquela que se escolhe, quer seja pelo ópio, quer seja pela aguardente, quer seja pela pedofilia, mas aquela que nos é imposta. A história do blues é a história de marginalidades impostas, pelo menos até finais dos anos 60 do século passado (provavelmente até muito mais tarde). E no início deste novo século, escreve assim Tavares, na última estrofe de “Santa Catarina Outra Vez”:

“Detesto negros e turistas”,

disse o homem debruçado

no varandim da tarde.

Eu vou afundar-me no transumante

abismo dos póstumos abraços.

Por outro lado, a própria poesia de José Luís Tavares traz algo de marginal, não apenas na temática, mas principalmente na retórica, que nos parece a cada esquina uma poética de outros tempos. O verso é cuidado, limado, mesmo quando calca o dedo na nossa ferida, ao terminar o poema “Litania Para Um Domingo De Lisboa”: “o domingo é um tropo esvanecendo-se / num débil rufar de cinzas.” Ou mesmo quando esbofeteia, como é o caso do poema 16, da segunda parte do livro “Deriva”:

Quando é o rosto que recua,

como pode o delírio (tremens) curar-se

com a ginjinha, baixa ciência

que o hábito ergueu em lei?

Ninguém para contar do longo inverno

corrido sobre a alma, afeiçoado o corpo

ao umbral dos instantes em que um sol

baldio escurece a pele.

De vez em quando o fungar de um bairro

acordava-me para a forca da existência,

mas, perdoai-me, altas musas, eu soçobrei

a destinos mais prosaicos – algum álcool,

rasteiros versos onde tinha por (mau) costume

misturar deus vómito ressaca.

Agora cresceu-me esta pedra sobre o rim,

bebo muita água e pouco gin (é fácil ser-se virtuoso

quando a morte vela a dois haustos de distância);

demasiado tarde, dizem as cartas, nem futuro

ou redenção, tolo rapaz que acreditaste na arte

e agora vês o paraíso escurecer

sobre os teus pobres trinta anos.

Brilha ao longo de todos os poemas de José Luís Tavares um metal de outros tempos, palavras que nos aparecem como se de amigos há muito desaparecidos se tratassem. É, sim, também um livro revivalista. Um livro que usa a palavra como resistência. Mais: que teima em deixar a palavra cair; a palavra que ele pretende precisa, porque, escreve “(…) Não havia / outra palavra para esse naufrágio (…)” (“Castelo de São Jorge”, p. 34).

Há ao longo destes poemas uma nostalgia de um outro tempo, de um tempo ao mesmo tempo nosso e que nunca o foi, o tempo em que a poesia era acima de nós, quando tínhamos que subir as escadas para procurar palavras, para lhes abrir o sentido. O tempo em que o mistério chegava até nós pelo incompreensível de um verso, devido a uma ou mais palavras que nos obstruía o caminho. Este livro de José Luís Tavares, que além de percorrer a cidade de Lisboa, as suas paisagens e os seus personagens, à laia de Cesário – e de se encontrar com outros poetas, Pessoa e os seus heterónimos, Armando da Silva Carvalho, Alberto Pimenta –, encontra-se também com esta encruzilhada de tempos, em que se sente perder tudo aquilo em que mais se acredita “(…) como doeu a crua /  evidência de que a poesia tinha morrido.” (p. 83) E a nostalgia que sente no livro, e que é simultaneamente em relação ao tempo da nossa vida, ao tempo do mundo e ao tempo da poesia, surte efeito precisamente pelo uso quase arcaico da linguagem. É um livro que, em toda a sua extensão, vai, como ele mesmo escreve “do ombro à ventania” (p. 63). Pela palavra, pela métrica, pela nostalgia. Terminemos com a voz do poeta, no poema 19, da segunda parte do livro, “Deriva”:

Dispostos à morte, essa faca que o dia

escurece, embora de canções falássemos

na tarde de mormaço a que ainda hoje

associo o vinil das primeiras lágrimas.

Homem minado de dúvidas (assim perdi deus

amigos sinecuras) como doeu a crua evidência

de que a poesia tinha morrido.

(Disse-me o alberto pimenta que fora nero

o assassino.)

Agora rasuro os mínimos sinais que atestem

que na verdade andei por tardes ofegantes

a encher cadernos com essa obscura mistura

de acaso e cálculo.

E se a vida também não for nada disto

– a creche, os filhos, os juros algozes,

a forca do amor, domingos de manhã

em que bate a ressaca, a sabedoria

que só chega depois do erro?

Eu podia ter perguntado às ciganas do parque;

saber recusar, porém, todo o consolo,

eis o que poderia salvar destes vicariantes dias

em que seitas flibusteiras nos intimam

à felicidade. Mas há demasiadas canções

que nos fazem desastrados aprendizes da ternura.

11 Abr 2017

Jerónimo Pizarro: “Pessoa convida pessoas”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s hoje reconhecido como uma das autoridades mundiais sobre Fernando Pessoa. Se tivermos em conta as últimas edições e organizações da obra de Pessoa, tens organizado a obra do poeta de modo diferente, principalmente em relação a O Livro do Desassossego. Como aconteceu isso e em que difere a tua organização, das outras organizações? Tens também apresentado novas edições. A arca de Pessoa não tem fundo?

Na Tinta-da-china, no geral, as edições são todas diferentes. Caeiro está revisto como nunca, e completo; Reis está com uma organização mais inteligível, e completo; Campos é um volume enorme, e está completo. O Livro é diferente, porque só podia ser diferente (há tantos e haverá tantos!…). Mas o que mais destaco da edição da INCM que migrou para a Tinta-da-china é que permite ler o Livro pela ordem conjectural da sua escrita e que permite descobrir que Pessoa, tardiamente, descobriu Lisboa. Lisboa é uma descoberta poética, tal como a Rua dos Douradores, e isso não aconteceu na fase da «Floresta do Alheamento», mas depois. Num artigo recente digo que o «Narciso cego» da primeira fase – e este paradoxo de um Narciso que não se vê como uma realidade exterior foi belamente analisado por Eduardo Lourenço – foi iluminado, por volta de 1929, pela luz de Lisboa. Lisboa não estava no mundo dos sonhos iniciais, mas sim no Pessoa que queria voltar a escrever, já no fim da vida, como o Padre António Vieira, mas sem esquecer Verlaine…  Se a arca (ou arcas) não tem (ou têm) fundo? Eu acho que só o terão quando exista uma autêntica consciência patrimonial em Portugal. E isso, como se diz, não está previsto para breve. Desapareceu o projecto nacional de editar Pessoa e o Estado não está a tentar reunir os dispersos. Cada vez sinto mais que a auto-profecia de Pessoa estava certa: ele disse que só seria descoberto em 2198. Talvez nessa altura existam as suas Obras completas e uma maior consciência da sua grandeza.

Fernando Pessoa é sem dúvida o autor português com maior visibilidade no estrangeiro, apesar de ser poeta?

É, mas o seu cartão de visita é o Livro do Desassossego. Também alguns poemas, mas era o mínimo. Poemas como «Tabacaria» não se escrevem todos os dias e mesmo os não leitores de poesia ficam abalados… «Tabacaria» é quase um hino negro, encantatório da nossa modernidade. E Pessoa escreveu sobre os temas todos e interessou-se pelas áreas todas do conhecimento. Até foi inventor, astrólogo, charadista, autor de dicionários, publicista… Em princípio, qualquer pessoa encontra em Pessoa um aspecto que lhe é afim. Pessoa convida pessoas. 

És também o responsável por uma editora na Universidade dos Andes, na Colômbia. Gostava que falasses desse projecto, que tem traduzido e publicado autores portugueses e brasileiros.

Sou o coordenador de várias colecções em que se publicam, traduzidos para o espanhol, autores que escrevem em português. Eu fui aluno de Gonzalo Aguilar, que é um dos três responsáveis da colecção Vereda Brasil, e queria criar novas veredas. Surgiram então Lusitánia (Tragaluz Editores), Outras Letras (Taller de Edición Rocca) e Labirinto (Ediciones Uniandes). A última é a da minha Universidade. O importante é ter um leque significativo de autores de língua portuguesa para que os Estudos Portugueses possam crescer na América Latina. Eu não podia, por exemplo, dar a conhecer bem José de Almada Negreiros, sem o traduzir, nem convidar para um festival literário José Tolentino Mendonça, sem o editar. Hoje há mais ferramentas para ensinar língua e cultura portuguesas, e isso contribui para que o número de alunos interessados pelo português cresça. Eu apenas gostava de ter o tempo todo para ainda ver publicados muitas mais dezenas de autores, quer dos que convém resgatar, como Camões e Vieira, quer dos que convém descobrir, e a lista é enorme. Em Portugal existem esses milagres que são os apoios da DGLAB e do Instituto Camões, e eu tento não deixar passar um ano sem propor uma série de obras à direcção e ao instituto. E gosto de traduzir. Este Verão espero traduzir o Ricardo Araújo Pereira, mas se eu tivesse sete vidas traduzia sete autores. Como as não tenho, desdobro-me, e estou sempre à procura de bons tradutores. Ana Lucía de Bastos foi a última, e fez uma belíssima tradução da revista Orpheu toda para o espanhol, e não só.

7 Abr 2017

Rita Taborda Duarte | A poesia é um acto de resistência

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ens vários livros de poesia editados – em Novembro passado escrevi aqui no jornal acerca do teu Roturas e Ligamentos – e outros tantos de literatura para jovens. Além de tudo isto és também professora de literatura na universidade. Presumo que sejam registos diferentes de pensares a palavra e o mundo. Gostava que me falasses desses diferentes registos.
Os registos da poesia e da escrita para a infância são muito similares: partem até de uma mesma atitude sobre o mundo e o modo como o relacionamos com a nossa própria linguagem. As crianças têm, perante a língua, uma atitude de espanto, desconfiança, mesmo incompreensão; nada do que lhes és dito lhes surge como estático, consabido, pré-definido; apreendem cada palavra à imagem da fluidez do seu mundo; constantemente, usam vocabulário novo e são inventivas, quando se apercebem de que a língua é pobre e fica aquém de toda a complexidade do seus universos. Os adultos, que por cá já andam há mais tempo, olham a língua de longe e do alto; usam a linguagem como uma moeda de troca gasta, cansada, repetitiva, como se não percebessem que a língua não tem a função de representar o mundo, mas de o ser, de o construir. Assim, a poesia está próxima do olhar inaugural da criança e do seu espanto; é uma arte que se move por uma rebelião contra as palavras, num perpétuo braço de ferro contra elas. Aliás, as palavras, amiúde, não seduzem o poeta coisa nenhuma: agridem-no, ludibriam-no. E ao escritor cabe esta incomodidade, esta raiva, por ter de escrever com as palavras, tão gastas, usadas, não para dizer o mundo (para isso, basta-nos, simplesmente, uma mão cheia de enredos de dicionário), mas para o reconstruir à sua imagem. A verdade é que todos nós passamos boa parte da vida a aprender a ajustar-nos à nossa língua materna; a diferença do poeta é que este procura passar todo o resto da sua vida a tentar desaprendê-la, a desfamiliarizar-se dela, buscando recuperar o olhar inaugural das crianças, quando se confrontam com a linguagem pela primeira vez e a descobrem cheia de enigmas. Na faculdade, eu não ensino literatura (dou aulas na Escola Superior de Comunicação Social), o que, na verdade, me dá uma enorme liberdade para falar de literatura, exactamente do modo que me apetecer. Ou seja, sem rodriguinhos, nem punhos de renda e sem ir cheia de pruridos e cerimónias «ao encontro do texto literário»; pelo contrário, posso ir «de encontro ao texto»; que é exactamente a forma como se deve ler: provocando-lhes umas justas amolgadelas e claro, saindo de dentro dele, do texto, também com algumas mazelas.

Recentemente, há um mês, lançaste um novo livro para crianças, Animais e Animenos e outros bichos mais pequenos, em parceria com o artista plástico Pedro Proença. A ideia partiu de quem?
No caso particular de Animais e Animenos e outros bichos mais pequenos (Caminho, 2017) o texto surgiu primeiro. E apareceu, efectivamente e uma vez mais, como espécie de necessidade infantil (para se escrever para crianças, assim como para se ser poeta, deve-se ser um bocadinho infantil) de perceber que por dentro das palavras vivem outras palavras e ainda outras palavras, ainda, que podemos sempre desconstruir, transformando-as, ainda, noutras diferentes, que por sua vez edificam outras coisas novas no mundo. Dos Animais (que são «mais») passei, assim, para os animenos (que são, claro está, «menos»). O desafio ao Pedro surgiu como uma evidência, diria mesmo uma necessidade óbvia: quem melhor do que ele para dar corpo e forma a animenos inventados? Ele que é o especialista em fazer nascer de um traço criaturas que já lá viviam, sem nós nos termos apercebido? Eu criei os animenos com palavras, é certo, mas o Pedro é que acaba por ser o verdadeiro criador, ao dar-lhes sopro da vida. No princípio aqui foi o verbo, mas foi o Pedro Proença que do verbo lhes deu vida.

Qual a importância da artes visuais na tua vida, tendo em conta que ela atravessa tanto os teus livros?
A relação mais óbvia e imediata que me ocorre, digo-te por antinomia, terá a ver com o facto de eu não ser não ser capaz sequer de desenhar uma linha direita; uma iletrada por completo a desenhar seja o que for, por isso também a minha admiração por quem cria mundos palpáveis, com formas, texturas e cores, assim, só com um mover rápido de mão. Tenho uma admiração enorme por isso, já que nem as letras (a minha suposta matéria prima) consigo desenhar… Mas, agora que falas nisso, vejo que tens razão em algo de que nem me tinha bem apercebido. Além dos livros infantis, os meus livros de poesia têm, de facto, uma componente visual forte; um livro de 2004, «Sentidos das coisas» é todo feito a partir da percepção (não só, mas também visual), e grande parte desses poemas de então partiam de objectos pictóricos (quadros, pinturas, esculturas), que, não estando reproduzidos no livro, são pictoricamente reinterpretados através de imagens (ilustração e fotografia) do Luís Henriques. Também Roturas e Ligamentos, o meu último livro de poesia, é um livro duplo: o meu texto interliga-se com a relação poético-pictórica (incrível e belíssima) do André da Loba, que forma a outra face do livro. Na verdade, a questão da percepção (a minha tese de mestrado é sobre isso mesmo, mas a propósito da percepção crítica sobre a poesia) e o modo como incorporamos em nós o que vemos é muito interessante, porque podemos ler tanta ambiguidade na percepção visual como na linguagem; a pintura, por exemplo, é bem o exemplo disso mesmo. A pintura fará ao mundo o mesmo que a poesia: rasura-o e escreve por cima. Na verdade, não acredito nada naquela máxima velhinha de São Tomé… Não: «crer para ver», assim é que deve ser; como fazem as crianças, os poetas, os pintores e melhor ainda farão os poetas-pintores.

Voltando à poesia, aquando da leitura do teu Rotura e Ligamentos, não pude deixar de ver o quanto para ti a ética se liga à palavra. Para além da estética, a palavra é um instrumento ético. Não apenas no sentido da “palavra dada”, isto é, não apenas no sentido de nós com os outros, mas principalmente no sentido da responsabilidade por nós mesmos. Nós somos as palavras que usamos, as palavras que lemos, as palavras que pensamos e até as palavras que calamos. Gostava que nos falasses disto.
A poesia, por si só, é, quanto a mim, um acto de resistência; de resistência contra a própria língua que está aquém ‒ se não a torcermos, se não a torturarmos ‒ de todo o mundo que há por dizer e por construir. Enquanto não percebermos que a poesia não é algo sequer essencial, sendo simplesmente a essência, vamos continuar a tornar o mundo mais pobre e mais unidimensional. É isto que nos diz um dos verso de Carlos de Oliveira ( um neo-realista que percebeu que a poesia por si mesma é uma arma de resistência, exactamente pela própria carência da linguagem: Rosa martelo fala disto mesmo no seu ensaio sobre Carlos de Oliveira) que me habita a memória desde há muito tempo: «elevar a torre do meu canto/ é construir o mundo /pedra a pedra.» A literatura, a poesia, não é, mau grado o platonismo, uma forma mais ou menos incipiente de imitação, sequer de representação, da realidade; é, sim, uma construção do real… sem ela, teremos menos mundo no mundo à nossa volta. Só por isto a poesia será uma questão ética e também uma forma de resistência política. Uma linguagem pobre, rasteira, reflecte um mundo igualmente indigente e em vez de o edificar torna-o mais rarefeito. Mesmo que não trate de temas políticos, a literatura é sempre um proposta ética, que não se limita a aceitar simplesmente o mundo como ele supostamente é; torna-se parte activa na sua reconstrução e funda um modo de o recriar, mais do que o re(a)presentar. É o que tu dizes, na tua própria questão: o mundo é a linguagem, e nós somos as palavras que usamos e também as que calamos. Em tempos numa entrevista [para o jornal Abril Abril] a uma pergunta similar lembrei-me da formulação de Jorge Luís Borges que dizia que todos os livros eram auto-biográficos. Penso que, parafraseando o escritor argentino, podemos também dizer que toda a literatura é política: alguns textos poderão até iniciar-se desta forma «Aconteceu certo dia em Alepo», outros poderão iniciar-se assim : «Num certo lugar da Mancha, cujo nome amanhã o direi», na tradução de Aquilino, que sempre recordo. Na verdade, tudo o que sabemos do mundo muda-nos; tudo o que escrevemos acrescenta mais mundo ao mundo; e as palavras são parte intrínseca deste mundo que habitamos: não são o revestimento, são o miolo.

Entendes que a poesia hoje em Portugal atravessa um bom momento?
Penso que terá acontecido uma coisa muito interessante com a poesia, nos nossos dias; por ser o parente mais pobre da literatura, aquele mais miserável e esfarrapado, a que os grandes grupos editoriais fecham a porta com um misto de náusea e condescendência (as pessoas são condescendentes com os poetas, e isto acontecerá talvez, como já disse, por eles serem tendencialmente infantis), foram sendo criadas editoras mais pequenas, que publicam, militantemente, livros de poesia, com um desmedido desprezo pelos mercados, e com verdadeiro gosto e entusiasmo pelo trabalho poético, pela palavra dita e escrita; editoras independentes, que acabam por juntar os poetas, promover leituras, tertúlias, e que permitem que a poesia ocupe, de facto, contra todas as expectativas, a cidade, o espaço público. A poesia, efectivamente, excede, graças a essas editoras, o circuito interno comercial do livro fechado, que tantas vezes se resume ao vendável ou não vendável ou a um lugar provisório na estante da livraria: isso é muitíssimo interessante. A abysmo, a que pertenço (e eu sinto a ideia de pertença relativamente à abysmo de uma forma muito forte, como casa que de facto acolhe a minha poesia e a de poetas que muito admiro) é um exemplo disso mesmo. Mas muitas outras editoras, pequenas, têm tido um papel relevante para impedir que se expulse definitivamente os poetas da República; pequenas casas editoriais que fazem um notável trabalho de resistência, com catálogos muitos diversos, mesmo perspectivas diferentes, mas espaços que acolhem resistentemente e com critério a poesia. Citando algumas, e vou pecar por esquecer injustamente outras, reconheço as chancelas do «homem do saco», onde também já editei, na «douda correria», em «do lado esquerdo», «averno», «língua morta», «tea for two», «licorne», «mariposa azual», como alguns exemplos que têm tido uma defesa activa da poesia, contra todas as circunstâncias, divulgando e revelando, contra a maré, novas vozes poéticas.

Que projectos tens para este ano?
Estou a escrever um novo livro de poesia, que penso que estará terminado depois do Verão. Já tem título, de há uns dias para cá: por agora chama-se «A Cabeça do Louva- a- Deus». Curiosamente, é um livro que não é para crianças (soa mal dizer que é um livro para adultos: rasteiras da nossa linguagem), mas que parte de imagens, desenhos a tinta da china, do Pedro Proença. Desta vez, aconteceu o processo inverso: ele desenhou (são cerca de quarenta desenhos, belíssimos e terríveis, com um louco imaginário fundado em mitologia) e eu, a partir dessas imagens extremamente fortes, estou a fazer o que a poesia faz naturalmente ao mundo; ao mesmo tempo a resistir-lhe, a provocá-los, e a apr(e)endê-los, também; tornando-os meus e, consequentemente, naturalmente, rasurando-os… com palavras.

31 Mar 2017

Uma vida inteira dentro de um só poema

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue o título do primeiro livro de Rosalina Marshall – Manucure, Companhia das Ilhas, 2013 – seja o mesmo de um poema de Mário de Sá-Carneiro, não é um mero acaso. Para além dos títulos, livro (de Rosalina) e poema (de Sá-Carneiro), os títulos dos poemas do livro da Marshall são todos versos ou partes de verso desse poema maior de Sá-Carneiro. Por exemplo, “Os meus godets de verniz” é um meio verso do poema, e “Na sensação de estar polindo as minhas unhas” é precisamente o primeiro verso do poema de Sá-Carneiro. E o mesmo iremos encontrar nos poemas: “Os polidores da minha sensação”, “Inflexões de precipício”, “Triângulos sólidos”, “Rebordo frisado a ouro”, “Desgraciosidade boçal”, “Veloz faúlha atmosférica”, “Deponho as minhas limas”, etc., etc., etc. Pois aqui não se trata de uma interpretação minha, como irá acontecer com o resto do texto, é algo concreto, preciso, algo que deve ser assinalado como aquilo que a poeta quis que fosse visto, a ligação quase umbilical entre o seu livro e o poema de Mário de Sá-Carneiro, embora seja também – e aqui começa a minha interpretação – como se a Rosalina Marshall nos dissesse que a sua vida cabe toda dentro de um poema, do poema “Manucure”, desse poeta maior da Orpheu. Mais: é como se nos dissesse que uma vida, qualquer que ela seja, cabe toda num só poema. E se em relação ao poema “Manucure” talvez não haja tantos que ponham ali toda a sua vida, já no poema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, não teremos dificuldade em encontrar por lá vidas e vidas inteiras. Há, por conseguinte, ao longo dos poemas deste seu primeiro livro de poesia, enunciações de modos de participar na vida com semelhante inaptidão à que é cantada no poema de Sá-Carneiro.

Estamos diante de um livro de poesia assente numa hermenêutica, apesar do verso que diz “a hermenêutica fechou a porta” (p. 18). Nesta sua hermenêutica, Rosalina identifica no poema de Sá-Carneiro, não só a sua vida, mas o seu próprio modo de olhar a realidade. E, assim, Manucure é um pequeno livro de enunciação de falhas, de enunciação de falhas da realidade. A realidade está sempre errada. Havia em Portugal uma expressão antiga, de quando ainda a moeda era o escudo e não o euro, que dizia: estás-me a falhar como as notas de mil, querendo com isso dizer que alguém nos decepcionava. Ora, neste livro de Rosalina Marshall, a realidade falha-nos como as notas de mil. A realidade é uma máquina de criar decepções. Os poemas enunciam contínuas decepções, vindas da impossibilidade da realidade encaixar nas nossas vidas. E entenda-se realidade por aquilo que acontece. Para citarmos Wittgenstein, no início do seu Tractatus Lógico-Philosophicus: “O mundo é tudo o que acontece.” Entenda-se, aqui, mundo como realidade. Assim, os meus desejos chocam com a realidade. Aquilo que quero, que eventualmente me faz falta, choca com a realidade, como no poema “Os meus godets de verniz”, à página 16:

Eu queria chocolates

e davam-me peixe cozido

travessas e travessas

pratos atrás de pratos de peixe cozido

em vez disso agora como

o vidro do

o vidro do

o vidro do piano

Esta falha da realidade não se fica pelo conflito de interesses entre o que eu quero e o que acontece. Não. É apenas daqui que se parte. Aonde se chega, e é onde faz sentido falar acerca da decepção da realidade, é à memória. A memória é onde a realidade se esfuma. Tudo o que acontece não passa de nevoeiro, quando deixa de ser acontece para passar a ser aconteceu ou acontecido. E é nesta transmutação do tempo, na transmutação da realidade, que o livro ganha uma enorme dimensão metafísica, que já José Mário Silva havia assinalado, na sua resenha no Expresso, a 27 de Abril de 2013: “A escrita de Rosalina tanto se aproxima de Adília Lopes (“sinto um desconforto qualquer/ por usar soutien/ mas se não usasse/ era muito ordinária/ e os homens não gostariam de mim/ por ser demasiado fácil verem-me as mamas”) como da vertigem metafísica de Fiama Hasse Pais Brandão (“por trás dos manípulos das coisas/ escorrem fontes/ escorrem cisnes/ tudo em arco/ tudo em bandeira/ para o fluxo incontornável/ do rossio do universo/ onde permaneço desde a infância/ à espera de um táxi”).” É, aliás, a dimensão metafísica que sustenta os poemas deste livro, como sobressai no início do poema “Inflexões do precipício” (p. 34): “por trás dos manípulos das coisas / saem imperiais, cervejas, pints / por trás dos manípulos das coisas / escorrem fontes (…)”. Por trás das coisas há coisas. Por trás do que acontece há outro acontece. E a memória reivindica a sua própria realidade. O acontecido, que nos acompanha aqui e agora no a acontecer, que inclusivamente sustenta este a acontecer, pois o que me faz identificar-me numa foto quando era criança é a memória, o que nos confere identidade é a memória, e esta faz da realidade sua refém. O que aconteceu chega-nos em parte como quando era no seu acontecer, mas também nos chega em parte como um nunca ter acontecido. E é esta distorção da realidade, operada pela memória, que abre um precedente hermenêutico de indagação da realidade enquanto acontece. Escreve a poeta em “Os polidores da minha sensação” (p. 12):

quando abro a mala

o forro frio que já foi outro

surpreende-me sempre

inesperado odor

de cama de São José

onde me apalparam a perna

e disseram que não merecia levar gesso.

A distorção temporal levada a cabo pela memória opera também uma mudança axiológica. É através da memória que passamos a valorizar o que antes não tinha valor. Não é a passagem do tempo que opera essa transformação valorativa, é a memória. E por isso mesmo, nós voltamos sempre atrás, como ironicamente escreve a poeta, em “Obsessão débil” (p. 18): “a hermenêutica fechou a porta / depois de velha / gostava de lá voltar / e verificar as fechaduras”. E é o que na realidade estamos sempre a fazer, a voltar lá atrás e a verificar as fechaduras. Muitas das vezes não verificamos apenas, também trocamos as fechaduras do lá atrás.

O próprio poema é um ser híbrido, que acontece através do acontecido. Que nasce do real e da memória, que é, nunca é de mais repeti-lo, uma ficção, aquilo que faz aparecer continuidades em completos descontínuos. Por conseguinte, este Manucure, faz do poema de Mário de Sá-Carneiro, como se fosse possível habituar um poema, a morada de uma vida, isto é, faz da memória colectiva, que é a história, seja ela da literatura ou mundial, o lugar onde tudo acontece. A memória justifica-se pela história e um poema de outro é mais descritivo da nossa vida do que uma fotografia nossa antiga. Sem os outros somos nada ou, pelo menos, sem os outros não me reconhecia. Assim, o livro de Rosalina Marshall parte do poema “Manucure” de Mário de Sá-Carneiro, para enunciar a dificuldade de entender a realidade, a dificuldade de mastigar e engolir essa coisa chamada realidade. A realidade está para cada um de nós como o sabor a que sabe a cada um de nós a sua própria boca está para os outros. Escreve a poeta em “Loiras oscilações” (p. 31)

Oh! linda lisboa

no azul pela manhã

oh linda lisboa

tudo negro pela noite

ninguém sabe

a que me sabe

a minha boca

A realidade adjudica-se a si mesma pela história. Na impossibilidade de acedermos ao que seja a realidade, e devido ao facto de a memória reivindicar para si uma realidade própria, a realidade passa a ter um uso comum, passa a ser um território colectivo, que encontra na história a sua fundação. Em Manucure, a historia é o chão não só das palavras, dos poemas, mas da própria possibilidade de entendimento da própria vida. Num poema escrito há 100 anos (neste caso) pode estar a chave da minha vida. Antes de mais, este livro é uma enorme homenagem à poesia de Mário de Sá-Carneiro, no corpo do poema “Manucure”. Mas é também uma homenagem a todo e qualquer poema onde possa caber uma vida inteira. Antes de terminar com a voz da poeta, acrescento que este livro teve uma tiragem de 100 exemplares. Desconheço se houve ou não reedição. A não ter havido, deveria haver.

Na sensação de estar polindo as minhas unhas

sei que morrerei no dia do aniversário da minha morte

ainda há coisas certas na vida

o dia do aniversário da minha morte apresenta tamanha discrição

que nem dou por ele

portanto não mudarei de roupa

talvez passe o dia deitada

no displicente descanso

de não atender telefones

nem me levantarei para ir ver o correio

e se alguém se lembrar de me acender

as inconsequentes velinhas

deixarei que derretam e estraguem o bolo

no dia do aniversário da minha morte

nem me penteio

28 Mar 2017

Maria João Falcão: À descoberta do método

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á vinte anos que vens trabalhando em teatro, cinema e televisão. Imagino que exijam esforços e técnicas diferentes. Podes explicar-nos quais as maiores diferenças que encontras nesses diferentes modos de se ser actriz? E tens alguma preferência por um deles? E a tua preferência foi mudando ao longo dos anos, ou sempre se manteve a mesma?

A minha preferência sempre foi o teatro…também foi o que eu estudei. Cinema fiz muito pouco, por isso estou mais à vontade para falar de televisão e teatro. São processos muito diferentes, a começar pela construção das personagens: um texto de teatro tem um princípio, meio e fim, tu sabes à partida o que acontece e como se desenvolve a tua personagem e é sobre isso que trabalhas. Num guião de televisão só sabes o início e alguns antecedentes da tua personagem, vais construindo conforme os guiões que vais recebendo. Depois em teatro ensaias durante um mês e meio e, se tiveres sorte, ficas três semanas em cena (hoje em dia é muito raro), em televisão podes ir desenvolvendo a tua personagem durante muito mais tempo, entre nove meses a um ano – este é um dos lados mais interessantes de trabalhar em televisão. Depois há outra diferença fundamental que é o que o público vê: em teatro a estreia só acontece depois de um trabalho de ensaios, de preparação dos actores e de tudo estar afinado. Em televisão tu ensaias duas ou três vezes a cena com o director de actores e realizador e depois gravas, e é o que o público vai ver! Tem de haver um trabalho de casa enorme porque chegas ao estúdio preparada para gravar várias cenas. É um treino enorme para o actor. Outra diferença fundamental é que no teatro tudo está à vista do espectador e é ele que escolhe o que vê. Em televisão há uma edição feita pelo realizador. O público só vê o que o realizador quer. Mas a grande diferença será sempre que o teatro é em directo…. se te enganares no teatro ou te esqueceres do texto, ninguém diz “corta!”

Há sempre alguns personagens que marcam mais as actrizes, quais foram os personagens que mais te marcaram até hoje? E por quê?

Das personagens que mais me marcaram destaco a Mona do Dias de Vinho e Rosas com encenação do Jorge Silva Melo, pelo desafio enorme que foi. Mas acho que, mais que os personagens, são os processos e os projectos que me marcam. Consigo destacar ultimamente O Feio com encenação de Toni Cafiero e A Casa de Bernarda Alba com encenação de Maria João Luís. O Feio porque é raro encontrar encenadores com um universo tão próprio como o Toni e que gostem tanto de actores e estejam constantemente a desafiá-los. A Casa de Bernarda Alba foi um projecto da Maria João Luís, o início da companhia Teatro da Terra. Este projecto foi muito importante porque entravam na peça um coro de mulheres de Ponte de Sor. Eram actrizes amadoras, tinham outras profissões, mas cada vez que iam para cena estavam tão felizes… e eu sempre que ia para cena estava tensa, não me divertia. Foi importante o projecto por descobrir que me faltava este lado lúdico e de prazer que esta profissão tem que ter…. e nesta busca acabei por ir para Paris estudar com o Philippe Gaulier. Era para ir três meses e acabei por ficar dois anos a estudar com ele. Mudou-me a vida.

Além de Paris, estudaste artes de representação em Nova Iorque, e agora estás a acabar um mestrado em artes cénicas, na FSCH. Estudar é algo fundamental na tua vida? Para além da prática da representação, o estudo é-te fundamental?

É fundamental. Primeiro trata-se da descoberta de um método.  Ou seja, o que importa é o que se estuda. Mais do que ter ido estudar para Nova Iorque, eu fui estudar Suzuki e ViewPoints com a SITI Company. Mais do que ter ido estudar para Paris, fui estudar com o Philippe Gaulier, perceber a diferença entre a escola dele e a do Lecoq, perceber o que é o clown para Gaulier e o que é o bouffon. Mesmo recentemente fui para o Odin Teatret na Dinamarca perceber o que é o método de Eugenio Barba. Faz parte de uma pesquisa pessoal de perceber o que são estes métodos que, por muito que se leiam os livros, não há nada como conhecer e estudar com as pessoas que os criaram e desenvolveram. São cursos intensivos e prolongados,  não são workshops de uma semana, o que permite um aprofundamento do trabalho que só se consegue com algum tempo de treino. Finalmente há a vantagem de se viajar e viver noutros países e estar em contacto com actores do mundo inteiro. Isso eu nunca consegui como actriz, só como estudante de teatro.

Não tens televisão em casa, e és muitas vezes reconhecida na rua por causa dos teus papéis na televisão. Como entendes ou como vives esse fenómeno de te confundirem com aquilo que representas, nas telenovelas? Tens algum episódio mais caricato que nos possas contar?

Normalmente as pessoas são muito simpáticas, nunca foram desagradáveis ou demasiado intrusivas. Também, confesso que quase ninguém me reconhece. Houve uma vez um senhor que me reconheceu e que me disse A menina ao ar livre é mais bonita. Adorei a expressão ao ar livre!

Qual achas que está mais pujante hoje, em Portugal, o teatro ou o cinema?

Sinceramente não sei nem acho que se possa comparar. Se pujante significa ser internacional, o cinema  português já há uns anos que se tem destacado bastante. Mas há imensas companhias que fazem residências e são programadas no estrangeiro mas que cá não é notícia. Tem-se produzido bastante teatro em Portugal e há bastante público mas ficam, salvo raras excepções, três a cinco dias em cena, o que para um espectáculo não é nada. Os cortes nos subsídios são enormes o que obriga as companhias a esforços hercúleos para cumprir a programação e até mesmo a terminar. Por isso não sei se pujante é um adjectivo que se possa utilizar.

Que projectos para este ano?

Estou agora a ensaiar a peça Migrantes de Matéi Visniec com encenação do Rodrigo Francisco para o Teatro de Almada, onde tenho estado ultimamente a trabalhar. Acabar o mestrado e continuar a desenvolver um projecto pessoal sobre o treino do actor. Também gostava de viajar….mas logo se vê.

24 Mar 2017

Assim pudesse acender-me

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho até aqui, tirando os textos sobre os autores da Antiga Grécia, escrito sobre poetas de gerações mais novas do que a minha. Hoje, e antes de terminar este formato, abro uma excepção para um livro de finais do século passado, de um autor de uma geração bem anterior à minha, que trata de um tema algo arredado da temática poética contemporânea: o amor. Opus Affettuoso trata-se de um livro de poesia com 55 poemas curtos, intitulados de I a LV, e ainda um poema final, mais extenso, de três páginas, intitulado “Última Núpcia”. O tema do livro é o amor, sim. E este amor não tem qualquer conotação pejorativa, negativa ou indigente. O amor que aqui aparece, ao longo destes poemas, é o topos humano, o lugar do humano. O amor não é somente um lugar, também faz de nós um lugar. O amor é o lugar desconhecido que habitamos, que habita-nos e para o qual e com o qual caminhamos. Sabemos que há, mas não sabemos o quê, não sabemos quando, nem a natureza do seu aparecimento: “EU NÃO SEI SE / conheci a luz ou a sombra / quando bebi na tua pele. (…).” [XIV] Não podemos saber se subimos ou se descemos, se vamos para bem ou se vamos para mal quando amamos. Não é possível ao humano aceder a esse conhecimento. “(…) de quem não sabe / se é folha ou chão boca saliva / porque tudo em nós é luz líquida / que não conhecemos saboreamos / apenas.” [VIII] Aquilo que sabemos, aquilo que apenas podemos saber é que à beira do corpo há luz. Há uma luz que se acende dentro de nós na beirada de outro corpo, nos campos da amada. Isso, sim, isso sabemos. Uma luz líquida, uma luz que sai de nós e do outro e que ilumina a ambos, uma luz que nasce de um corpo contra outro, de boca contra boca, de sexo contra sexo.

                        XV

ENTRO PÉ ANTE PÉ

          no pátio da minha amada –

         arco iluminado.

           Saio limpo e vazio

          do barro de minha amada –

         de novo abandonado.

Estamos, portanto, num universo de luz e sombras. A luz do corpo e a sombra da alma. Sombra do pensamento que nos estrangula de ausência. Não é o outro que nos dá o ser, quer o outro seja Deus, quer seja a amada; o que nos dá o ser é a sensualidade do outro, o toque do outro e no outro: “(…) do ser que sou agora luz reunida / pela mão no joelho que se abre (…)”. Ser é ser um momento de sensualidade, ser um momento onde nos acabamos, onde nos esquecemos, onde nos abandonamos. Ser é descansar de nós, e só se descansa sensualmente. O amor é o contrário de nós, sabemo-lo logo nos primeiro três versos do livro: “AMO-TE PORQUE NÃO ME AMO / inteiramente. O que me falta / é infinito / (…).” [I] O infinito, aqui, não é a luz, mas a sombra. A sombra do corpo que dá luz em contacto connosco. Queremos o que não sabemos, queremos mais do que podemos, queremos a sombra estendida do mundo. Mais: nós somos a sombra estendida do mundo; somos o que pensa, o que se entrega às sombras, ao desejo de infinito. E só no corpo, só no corpo do outro, da amada, descansamos das sombra que somos, do infinito que nos atormenta. Estar connosco, remetido à nossa própria sombra, ao pensamento, ao infinito desejado é ser perdido, ser em luta connosco, com a necessidade de infinito e a sua impossibilidade. O amor nasce desta consciência: a luta, em nós, entre a necessidade e a impossibilidade de infinito. Amo o outro porque não sou infinito, porque o que o meu pensamento deseja não tem reciprocidade. O amor é o que nos resta. Na impossibilidade de sermos infinitos, de nos amarmos a nós mesmos inteiramente, resta-nos o amor, que nos dá descanso, que nos recolhe dos demónios do dia.

        XXVII

NÃO ACENDAS

a luz não abras

        a janela. O teu sexo

        lâmpada viva

        ilumina-me a noite

        escura. Não abras o dia,

       ilusão impura.

O momento da sensualidade, aquele momento de descanso de nós mesmos, de ser, descanso de pensar, de ser sem ontologia é, contudo, frágil. Demasiado frágil. “A LUZ QUE ME DÁS, ESQUIVA E DURA, / serve-me de abrigo onde desfeito / é já meu cansaço. (…)” [XXXVIII] A luz já é esquiva e dura, abriga e descansa, mas não é fácil de acontecer. A luz não acontece quando se quer, nem quando queremos. A luz do corpo, essa luz líquida, nascente de um com o outro, é bem menos forte, bem menos presente do que o dia, do que a luz demoníaca do dia, que é a luz que revela a nossa sombra, o nosso eu; não o nosso ser, mas o nosso eu. Eu é precisamente o que não quero. O que quero é eu e tu. Pensar é o que não quero, o que quero é meu corpo no teu. Quero luz, a preciosa, rara e líquida luz; não quero a sombra que me habita, que sou eu, que é Eu, e que o dia vai revelar-me. No amor escapamos da humanidade como se falta a uma aula. O amor é a possibilidade de descanso de nós, desse Eu assombrado que nos impede de ser. “(…) Deixa-me levar o sabor / da pequena lâmpada / para que eu possa suportar a travessia / dos pátios que me separam / da próxima noite.” [XXXIV] Ficar entregue a mim (Eu) é caminhar pelas sombras do mundo, pelas sombras do dia, espalhando em mim e fora de mim a minha própria sombra; a minha sombra de ser. Chegar a um corpo, haver um corpo que nos receba, é o que melhor nos pode acontecer. O que melhor nos pode acontecer para não cairmos na sombra do Eu, na angústia da falta de infinito. Depois do corpo da amada, “eu” é uma pedra contra mim mesmo. Pois quando amo, quando estou apaixonado, e é deste amor que o livro fala, eu sem o outro sou uma sombra de mim mesmo, um escuro enorme. Leia-se um poema, onde claramente se vê a luz nascer à beira do corpo do outro. Luz que apaga as palavras, o pensamento, que apaga a sombra que somos. Luz redentora, porque ofusca o Eu, ofusca o que nos afasta de ser, da experiência ancestral do Ser.

A TUA PELE NÃO É A LUZ

                 mas estou perto

                ofuscado

               e sem palavras

               não preciso delas

     ouço o tumulto a

             coroação

   da minha verdade a que vem

  de ti olhar para ti

  silenciosa

e em silêncio desaprender

a musica dos outros a grata

imperfeição do mundo

        e enlouquecer

       onde fui sábio

      outrora

Mas que corpo é esse que o poeta fala? É um corpo qualquer? É o corpo do dia-a- -dia, que desejamos a caminho do trabalho ou de casa, na esperança de voltarmos a ser, de nos esquecermos de nós? Não. O corpo onde vamos acontecer, de onde recebemos nosso ser e ao outro o concedemos, não é esse corpo. O corpo não é do mundo. Há, no mundo, corpos; mas não são estes de que o poeta fala. O corpo que Casimiro de Brito canta é o corpo afectivo, o corpo para além do acontecimento, que nos dá o ser e devolve ao outro o seu ser. É o amor. O amor feito carne, nos muros da pele, nas águas que escorrem pelas calhas, pelas ranhuras do humano, pelos seus orifícios. Leia-se estes versos de “Última Núpcia”: “(…) a linguagem dos animais horizontais / que bebem na lua o olhar que nela / outros amantes deixaram esquecido (…)” O que outros esqueceram é a matéria que nos concederá o ser. A maioria das vezes o que há é esquecimento, esquecimento de um corpo no outro, de um corpo face a outro. Este corpo não é do mundo. Amor e mundo não se entendem. O amor é a experiência do lugar por excelência: o topos dos topos. O amor repele para longe a doença do desconhecido, do infinito, da angústia. O amor qua lugar. O amor enquanto topos. O amor não tem lugar, ele é um lugar. Mais: é o Lugar do humano. Nestes poemas, a casa do humano não é a linguagem, mas o amor, o outro humano com quem fabricamos a luz líquida a que os versos várias vezes se referem ao longo deste livro. “(…) A tua mão / sem palavras sem pensamentos / acaricia-me os joelho / sob a luz que do céu / fatigada / cai.” [XLIII]

Fora do amor, fora do corpo da amada, no mundo, ficamos expostos a nós mesmos, a todas as intempéries da palavra e do pensamento. “(…) Armas tão frágeis / as que temos: o mel a saliva o / sêmen. (…)”. [VI] E, para além de sermos desprovidos de armas eficazes, que combatam o mundo e nossa sombra, há ainda a fragilidade da amada, os “(…) ramos frágeis / da minha amada. (…)” [XI] Aquilo que nos dá o ser, nosso encontro corpo a corpo com a amada, é muito frágil, quase impossível de sobreviver, de prosseguir pelo tempo fora. Não é só o mundo, com seus dias derramando nossas sombras, que nos enfraquece o amor, que nos enfraquece o encontro, a possibilidade da luz líquida, também nossos próprios corpos são frágeis, vulneráveis. Veja-se o que protege a amada:

          XXX

APENAS 

                 um cinto passageiro

                a envolve. Um veio

               mais leve

              do que a brisa

              da manhã. O fio

             de água

            dos meus braços.

Tudo nos conduz à consciência da fragilidade. Mas essa consciência não se dá no amor, não se dá nesse lugar do ser, no lugar onde recebemos e damos ser. A consciência da fragilidade do amor, da fragilidade da amada, no corpo desabrigado da minha amada [XLVIII] e de nós para a amada, de mim para a amada, essa fragilidade dá-se no mundo, nos dias, na sombra, como reconhece o poeta, vagueando pelas ruas, companheiro dos cães “(…) e deito-me / de novo. Desamparado. / Apenas um jogo / de lençóis bastava.” [XVI] Sem amor, não temos onde ficar, não temos lugar onde ficar. Sem amor somos nós vagueando como cães, passeando nossa sombra pelo mundo.

21 Mar 2017

Cláudia R. Sampaio: “A poesia requer sempre um silêncio”

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ens três livros de poesia publicados: Os Dias Da Corja (Do Lado Esquerdo, 2014), A Primeira Urina Da Manhã (Douda Correria, 2015) e Ver No Escuro (Tinta da China, 2016), sentes que são livros estanques, com estéticas e propósitos literários distintos ou há uma continuidade entre eles, tanto ao nível temático quanto estético?
A nível temático acho que há uma continuidade. Os meus livros falam muito de perda, solidão e de uma barreira que está sempre quase a ser ultrapassada além-limite. Quanto à forma, sinto que mudei um pouco, há uma evolução, fui-me descobrindo.

Escreveste, não sei se ainda escreves, roteiros de telenovelas. Achas que isso te marca negativamente perante a crítica ou perante a maioria dos leitores de poesia. Ou hoje em dia os leitores de poesia separam com mais facilidade a poesia do que se tem de fazer para ganhar a vida?
A crítica não me preocupa e nem sequer penso se isso marca negativamente a opinião que podem ter acerca da minha poesia. São coisas tão distintas que acho que não se pode confundir um trabalho que não dependia de mim com aquilo que realmente sou e que atravessa o que escrevo. Acho que as pessoas que me rodeiam pensam o mesmo.

Participas num grupo de leitura de poesia e música, Belos, Recatados e do Bar, juntamente com o músico Pedro Moura, o poeta José Anjos, o escritor Valério Romão e o filósofo António de Castro Caeiro. Gostas de ler poesia em público, ou para ti só faz sentido num projecto como esse que vocês têm? E como nasceu essa ideia?
Os Belos, Recatados e do Bar já existiam antes de eu e o Pedro Moura fazermos parte do grupo. Um dia convidei-os para lerem no meu café literário Folhas d’Erva (que entretanto já encerrou) e eles insistiram para que eu também me juntasse à leitura e para que o Pedro tocasse. Correu tão bem que a partir daí já não nos separámos. Gosto de ler poesia em público porque é uma coisa esporádica e que nesses momentos me dá bastante prazer. Há outros momentos em que só me faz sentido ler aqueles mesmos poemas quando estou sozinha. A poesia requer sempre um silêncio. Mas ao ler em público há uma partilha com o outro, acabamos por despertar a atenção para certos poemas e muitas vezes é uma maneira de os darmos a conhecer.

Em pouco tempo de publicação, desde 2014, parece-me que tens tido um reconhecimento bastante bom por parte da critica e do público? Concordas?
Não sei. Houve sim uma maior visibilidade com o Ver no Escuro (Tinta-da-China) e, por consequência, acabei por ter mais retorno quanto à opinião de leitores que gostaram muito e que me enviam mensagens via Facebook a agradecer por tê-lo escrito, o que me deixa sempre num misto de surpresa e de contentamento.

Entendes que a poesia hoje em Portugal atravessa um bom momento?
Sim, sem dúvida. O que sinto é que as pessoas se interessaram novamente por poesia, mesmo as gerações mais jovens, e estão a deixar de lado o estigma de que a poesia é uma coisa lamechas para gente triste. Basta ver a sala cheia de caras novas num evento de poesia para perceber isso. Também há cada vez mais gente a escrever e mais editoras interessadas em publicar novos poetas, o que é sempre bom. Desde que isto tudo não faça da poesia um espectáculo oco de variedades, acho belíssimo.

Que projectos tens para este ano, ou intenções?
Tenho um livro pronto, já com editora e que sairá em breve. A única coisa que está a atrasar o processo é a falta de título, o meu eterno calcanhar de Aquiles. Entretanto já comecei a escrever outro livro, que é uma espécie de história-poema-longo e que terá uma banda sonora do Mário Fonseca, em piano. A ideia é, para além de publicar o livro acompanhado de cd, fazermos espectáculos ao vivo. Também gostava de conseguir arranjar um trabalho.

17 Mar 2017

A vertigem de nunca estar a ser 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Ver no Escuro, terceiro livro de poesia de Cláudia R. Sampaio, editado em 2016 pela Tinta da China, o título dá-nos de imediato uma pista. Ver no escuro pode querer dizer várias coisas, entre elas a situação literal de alguém que, em casa ou na rua, se esforça por ver o que está diante de si, envolto no escuro. Por outro lado, ver no escuro, e como título de um livro de poesia, pode muito bem querer dizer-nos, indicar-nos que estamos prestes a entrar num espaço, o do livro, onde alguém escreve como se o mundo estivesse fechado num breu e a linguagem o iluminasse.

Por outro lado, e de um modo mais literal, ver no escuro também é o modo como a autora termina o livro: “fazendo-me ver no escuro” Mas eis a última estrofe do livro: “Agora mato-me escrevendo / e aqui ressuscito em rua beijando pés / Eu sou esta verdade / Sou a desorientada concentração / das noites desertas / E ascendo-me, grata, / com a poesia dançando entre a / vida e a morte, magnífica / tapando-me a boca toda, / fazendo-me ver no escuro” (p. 78) Parece claro, este ver no escuro, para a poeta, é o próprio acto da poesia, o acto de escrever poesia. E, contrariamente à poesia de Catarina Santiago Costa e ao seu Tártaro – lido aqui semanas atrás –, Cláudia R. Sampaio não se vira do avesso, nem convoca uma linguagem à revelia da linguagem dos dias, à revelia da linguagem que levamos à rua. Em Ver no Escuro deparamo-nos com a mesma linguagem que levamos à rua a passear, a mesma linguagem com que agradecemos a quem nos acende o cigarro, mas com uma eficácia poética conseguida através de um desequilíbrio sintáctico. Aqui, é o verso que repõe a dimensão metafísica da linguagem e não a palavra. “Tragam-me um homem que me levante com / os olhos / que em mim deposite o fim da tragédia / com a graça de um balão acabado de encher / tragam-me um homem que venha em baldes / solto e líquido para se misturar em mim / (…)” (p. 39) São inúmeros os versos ao longo do livro, onde a distorção da linguagem ilumina partes escuras da existência. Deixemos aqui apenas mais um exemplo, que se prende com o próprio sentido de ver no escuro, que a poeta quer que se veja, independentemente de nos deixar a liberdade de vermos outros, que nos parecem até mais pertinentes: “Passei todo aquele poema a viver.” (p. 63)

Mas Ver no Escuro é também, ou principalmente, um livro sobre o medo do esquecimento. Quando alguém morre, o seu esquecimento dói muito a quem o amou um dia, e continua a amar. Os primeiros tempos de luto, vive-se no paradoxo de lembrar e da dor da lembrança, que nos faz querer esquecer, e este querer esquecer quantas vezes não faz nascer uma culpa inconfessável? Como se não fôssemos dignos, não estivéssemos à altura do amor que nos foi dado. Ou, na tese mais forte e, paradoxalmente, mais calmante para a existência, como se nada pudesse ser feito contra o esquecimento de quem um dia nos amou tanto. “E no fim são todos cinza” (p. 7), canta a poeta no final do primeiro poema. Mas o esquecimento do outro, para nós e para aqueles que compõe o mundo, não é o único esquecimento que dói, a única ausência que faz vibrar a existência, contorcendo-a de uma dor que parece não existir de facto, uma dor que não é uma pedra sobre um rim, uma pedra sobre um braço, uma pedra sobre a fronte. O esquecimento é uma pedra sobre a existência. Uma pedra a dizer para onde vamos, para onde todos caminhamos. Todos os dias se morre: “Os  dias começam com a despedida / de qualquer coisa / nem a água dura para sempre / nem a cova impiedosa deste colchão” (p.40) Todos os dias o mundo caminha para o seu desaparecimento. Tudo está a desaparecer diante dos nossos olhos. Escreve a poeta, este poema à página36:

Morro todos os dias

especialmente depois do lanche

quando pego no regador fininho

onde despejo o dilúvio dos olhos

e vou regando as plantas

à espera de descendência.

A dor que mais parece macerar a existência, neste livro, é o esquecimento de si mesmo. Tudo caminha, não apenas para deixar de ser, mas para o esquecimento de ter sido, que é não o não-ser, mas o buraco negro do ser. Quem consegue deixar um pai morto transformar-se num buraco negro de ser? Uma mãe, uma avó, um irmã ou uma irmã? Quem, como Orfeu, em podendo, em tendo forças, não vai ao mais fundo dos infernos resgatar o esquecimento desses que o amaram? Resgatar do esquecimento quem o amou é resgatar o próprio amor. Aqui, neste livro, a tentativa de resgate é a do próprio. Orfeu desce ao Hades, não para resgatar a sua amada, mas a si mesmo. Somos nós, cada um de nós, que está morto para si mesmo. Cada um de nós, vivos, ou assim o julgamos, arrasta-se pelo Hades em busca de si mesmo – já tínhamos visto aqui, semanas atrás, algo semelhante no Tártaro, de Catarina Santiago Costa. Escreve Cláudia R. Sampaio: “Estou viva. / E penso que para além de mim / não há quem o saiba.” (p. 62) Estes versos, que ecoam Álvaro de Campos, sublinham a dor de esquecimento que nos assalta e que pode ter estas formulações: se ninguém me sabe viva, estarei eu viva? Se ninguém me lembra, lembrar-me-ei eu de mim mesma? “Existo até à memoria / como um peixe às voltas” (p. 65)

Ver no Escuro é também, ou principalmente, um livro sobre o medo do esquecimento

A memória é tudo. Aqui, Deus é a memória de todos. Só Deus se lembra de tudo e de todos. Só Deus transporta em Si o que alguém foi; não apenas o que é, mas o que foi. E é aqui, neste lugar místico, que o sentido da poesia em Cláudia R. Sampaio aparece. O poema é uma imitação falhada de Deus. Imitação, porque toca os interstícios da existência e faz dela memória; falhada, porque nenhum poema nos leva a nós, a um eu que preste, é sempre uma ficção de eu, uma possibilidade de eu. “E dentro desta anáfora descobri que um  / momento nunca é igual a outro. Como um poema. / Como eu, que nunca sou igual / a mim própria. Às vezes sou eu sem ser.” (p. 63)  Ou ainda, como ela mesma canta acerca do amor: “E agora sou uma esponja e encolho / porque ainda estamos a reduzir-nos / em violentíssimo eco / Adeus, eus, eus” (p. 33) E o que diz acerca do amor pode ser dito acerca de cada um de nós e da poesia, como ela mesma escreve neste verso, à página 58: “não adianta escrever se não somos”. Esta redução do humano à impossibilidade de permanência, ver o humano pelo que não pode, atravessa todo o livro. “E dentro desta anáfora descobri que um  / momento nunca é igual a outro. Como um poema. / Como eu, que nunca sou igual / a mim própria. Às vezes sou eu sem ser.” (p. 63) O humano é o que não é, a não ser em relâmpagos. Pior: o humano é o que já foi, e não há memória que nos salve. “Sou instante.” Mas não se segura o instante. Ninguém é o que é. O humano é aquele que vai sendo. A poeta, nos seus poemas, vive esta vertigem de nunca estar a ser, de sempre ter sido, e de estar arrastar a morte pelos dias até ao desaparecimento completo, até ao buraco negro do esquecimento. “E tudo é outro nome que não este.” (44), termina assim um dos poemas mais longos deste livro. O esquecimento é, podemo-lo dizer agora, apenas o outro lado de não se estar a ser, mas de sempre termos sido. É a parte angustiante do ter sido, o futuro do ter sido. Mas um futuro que não trará uma memória, não trará um passado. O nosso fim, o fim daquele que é ter sido, é um infinito buraco negro. Esta é a vertigem que percorre este livro de Cláudia R. Sampaio, propositadamente ad nauseam. Terminemos com um poema da autora (pp. 70-1):

Sou instante.

É assim que escrevo, com a alma enfiada nos dedos

ou os dedos enfiados nos olhos

miraculosamente sentada, respirando,

sendo a faca cortada ao meio

sendo a coluna um pouco torta perto de

uma janela quase sempre aberta

como se daí viesse tudo.

Talvez a cabeça enfiada neste corpo seja

um grito que vem de outra boca,

ou de asfaltos, ou de peixes voadores.

Talvez este desencontro inscrito em mapas venha

de pássaros desajustados bicando planetas.

Eu devia ser a água vertida em bebedouros imundos,

tornando-os úteis

devia ser a noite de sexo incendiada, em que o fôlego

fosse altar

devia ser do espaço onde me coubesse eu-só

devia ser trocada por três côdeas

ou por um livro do Cesariny

ou por um pranto

Qualquer coisa que me levasse daqui.

Porque eu descalço-me antes de caminhar sobre mares.

Com estes dois pezinhos aprendizes, assim me

vou até ao fundo

e no meio das convulsões e dos impulsos que

me calçam, deverei existir

Que a minha verdade me seja entregue por quem

me entrar no infinito:

ninguém

Não duvido de que ficarei sozinha

e há tanta beleza nisto que tremo toda

enfiando um dedo na eternidade

Podemos ser abandonados por todos

mas seremos imortais por conta própria.

14 Mar 2017

Carla Maciel: “Adoro o que faço. Sou uma privilegiada”

Carla Maciel

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á vinte anos que vens trabalhando em teatro, cinema e televisão. Imagino que exijam esforços e técnicas diferentes. Podes explicar-nos quais as maiores diferenças que encontras nesses diferentes modos de se ser actriz? E tens alguma preferência por um deles? E a tua preferência foi mudando ao longo dos anos, ou sempre se manteve a mesma?
O meu pai era um apaixonado pela música e em criança comecei juntamente com ele a aprender a cantar e tocar guitarra. Durante a infância e a juventude a música e a dança ocupavam a maior parte do meu tempo. Até que aos 17 anos entrei numa escola de teatro no Porto. Tive o privilégio de ter um enorme background do que poderia ser este universo tão fascinante e ao mesmo tempo tão assustador. O teatro apareceu de uma forma espontânea. Não tenho preferências. Adoro o que faço. Sou uma privilegiada . Gosto de fazer de tudo um pouco. Depende muito das fases e do trabalho que aparecer. Até agora tem sido muito equilibrado mas confesso que o cinema tem sido a linguagem que menos tenho trabalhado.

Há sempre alguns personagens que marcam mais as actrizes, quais foram os personagens que mais te marcaram até hoje? E por quê?
Fiz muitos personagens ao longo da minha carreira. Passei por várias companhias desde o Porto até chegar a Lisboa e tive a sorte de interpretar grandes personagens. Houve uma personagem que dada a exigência de transformação me deu muito gozo fazer, uma velha alentejana (inspirada na minha avó) no Teatro Meridional. O espectáculo chama-se Amanhã, de José Luis Peixoto. Nos últimos anos a Madame Bovary, de Gustave Flaubert, tão inteligentemente encenada pelo Tiago Rodrigues; e Albertine, a partir de Marcel Proust, e tão brilhantemente escrita e encenada pelo Gonçalo Waddington. Em televisão também tive a sorte de fazer bons papéis.

De há uns anos a esta parte tens trabalhado com o teu marido, o Gonçalo Waddington, há algumas desvantagens em levarem o trabalho juntos para casa, ou são só vantagens?
A minha parceria com o Gonçalo nasceu instintivamente. Conhecemo-nos e ambos tínhamos um percurso artístico e objectivos semelhantes. À medida que fomos crescendo e amadurecendo, fomos conciliando os nossos sonhos sempre com a nossa vida pessoal. Claro que traz desvantagens e riscos, adoramos debater, somos os dois muito activos mas sempre com espírito de equipa, de colectivo, pelo respeito mútuo na discussão das ideias. Juntar o útil ao agradável e porque não? Dois casamentos numa única lógica. Respeito, cumplicidade, e muito amor pelo que fazemos.

Uma outra actividade à qual tens emprestado o teu tempo é o da leitura de textos literários. Embora hoje não seja uma actividade exclusiva de actores – há, aliás, cada vez mais não actores a fazerem leituras –, os actores fazem-nos melhor?
Comecei a ler muito tarde. Sou uma auto didacta. À medida que ia trabalhando com encenadores e colegas, fui escutando e absorvendo informação. Nomeadamente livros que eram bases importantes para o entendimento do próprio espectáculo. Com os anos comecei a sentir falhas estruturais, senti que precisava de ler os clássicos por exemplo, os filósofos, a poesia e por aí adiante. Qualquer pessoa que lê muito, sabe ler um texto. Claro que os actores têm mais facilidade, talvez pela colocação da voz, alguma interpretação e talvez um maior à vontade. Mas depende dos textos.

Qual achas que está mais pujante hoje, em Portugal, o teatro ou o cinema?
Penso que ambos estão pujantes. O cinema tem dado provas que cada vez mais há novos realizadores e de qualidade. Neste momento encontram-se um grande número de curtas e longas metragens fora do país, em festivais, a mostrar que o nosso cinema português apesar das dificuldades existentes ainda tem cinema de excelência. Estreou recentemente o filme do Marco Martins, São Jorge, que é a prova disso. Em relação ao teatro existe cada vez mais criadores, estão a nascer novas companhias, e os teatros, que têm vindo a criar diferentes dinâmicas para que o público consiga ter opção de escolha do teatro que pretende ver, apresentam-nos cada um a sua linguagem, trabalhando cada um deles para públicos diferentes. Considero que estamos no bom caminho. Apesar das dificuldades sentidas temos de ser perseverantes e exigentes continuando a mostrar o quanto a cultura é essencial. Nunca desistir.

Que projectos para este ano?
Este ano entro como actriz na segunda parte de uma tetralogia escrita e encenada pelo Gonçalo Waddington, O Nosso Desporto Preferido – futuro distante, com estreia em Abril no Teatro Municipal São Luiz. E em Novembro junto-me á actriz Teresa Sobral para criarmos um espectáculo com um texto do Gonçalo M. Tavares que tem estreia prevista para Janeiro de 2018. O ano ainda se preenche com um mestrado de teatro, ser mãe intensivamente, leituras e o que imprevisivelmente aparecer.

10 Mar 2017

Os dias em que não fui eu

[dropcap style≠’circle’]E[[/dropcap]star doente quando se é jovem, salvo raras excepções, não é o mesmo que estar doente na meia idade ou numa idade ainda mais avançada. Chegados aqui, aonde a redução a nada se torna visível e não um fruto podre da imaginação, a doença opera como um despertador à segunda-feira, não para o início do dia, da semana, para a interrupção abrupta do descanso do fim de semana, mas para o conhecimento de que a nossa hora de acabar está a chegar. A morte começa a pesar, a esmagar-nos o peito, de tanta angústia, de não vermos outra possibilidade que não a de irmos morrer. E não se trata de um irmos morrer um dia, mas de irmos morrer em breve, muito em breve, ou pelo menos essa possibilidade assume uma concretude que nunca antes tinha assumido.

Ao longe, a morte não assusta. Em alguns casos, o sofrimento assusta muito mais do que a morte. Mas a condição de se ser um sofrimento agudo é igual a estar vivo dentro da morte e, por isso mesmo, a imagem do inferno. E aqui pretende-se ler apenas acerca da morte que surge como horizonte próximo, que nos surge como a única possibilidade dos próximos dias, e que é angústia no seu máximo esplendor. Por outro lado, uma doença grave pode transladar um jovem para uma situação à beira da morte, invertendo a idade e a chamada ordem natural das coisas. Uma doença grave, que nos põe realmente diante da morte, isola-nos do mundo e de nós mesmos, tal como até aí o conhecemos e nos conhecemos.

Tudo isto vem a propósito de um pequeno livro, enquanto objecto (20 poemas, e nenhum excede uma página), mas grande quanto ao resto, XX Dias, de Rui Miguel Ribeiro (Averno, 2009). No final do livro, tem uma pequena nota, que diz: “Estes poemas foram escritos durante o meu internamento no Instituto Português de Oncologia de Lisboa, Francisco Gentil, na UTM [Unidade de Transplante Medular], entre Março e Abril de 2009”. Pressupõe-se, então, que os vinte poemas do livro correspondem aos vinte dias de internamento. E a indicação final mostra que o autor quis que tivéssemos esta informação adicional aos seus poemas, que soubéssemos das condições que levaram à escrita dos mesmos. Quem precisa de transplante de medula tem de ficar isolado num quarto, e os médicos têm de baixar o seu sistema imunitário ao mínimo possível, de modo a que a medula nova não seja rejeitada pelo corpo. E mesmo que se trate de um auto-transplante, o risco é enorme, devido à interrupção do sistema imunitário. E o primeiro poema diz-nos isso mesmo, de um modo melhor, à página 7:

I – PRIMEIRO

Primeiro tiram-me tudo.

Depois começou a destruição.

Corre o estore sobre a marca 

cíclica do relógio.

Entre o passado, pesadas horas

e restos que teimam em arrastar

as suas correntes; e o futuro, esse

silêncio escuro que nada me comunica

e insiste na sua própria tangencia.

Lenta passagem, fundo de um poço

Sem fundo que aqui invade a matéria,

o primeiro nome do sofrimento.

Deste lado da morte, nada mais sou

do que a melancolia que a nada conduz.

A espera de um outro nome para depois.

“Deste lado da morte” é uma expressão pujante, que aqui não assume o lugar de outro, isto é, aqui não assume o lugar de uma figura de estilo, mas a literalidade da situação daquele que escreve. Este lado da morte é, por enquanto, a espera. E a espera não assume aqui nenhuma virtude, contrariamente aos ditos populares, mas antes nos transforma, numa situação destas, em instrumento. Numa situação destas, não passamos temporariamente de um instrumento para uma operação. Não são apenas os procedimentos cirúrgicos, médicos, que são um instrumento para nos reporem a saúde, nos reporem no caminho que usualmente trilhávamos, nós mesmos somos instrumento de nós mesmos nesse procedimento. Deitado no escuro de uma cama, no escuro da vida, servindo a procedimentos que desconhecemos, rapidamente nos damos conta de que não nos pertencemos, que somos “uma coisa” dos outros, momentaneamente (espera-se) uma coisa dos outros, pois “tiram-nos tudo”. E tiram também os sonhos, “que chegam cada dia mais pobres” (p. 20). Mas leia-se o terceiro poema, à página 9:

III – O SILÊNCIO

A morte dos sonhos e a solidão

são medidas e pesadas como todas

as minhas excreções, de 8 em 8 horas.

Neste breve parêntesis de químicos

entre a febre e as carências

que amparam o pensamento

cai sobre o dia uma luz sem ruído,

sem outro objectivo que o silêncio,

esse mapa do futuro isento da morte,

que me faz contemplar – Hoje começou a primavera.

Este “breve parêntesis de químicos”, é também o breve parêntesis instrumental, o breve parêntesis em que a consciência assume ou tenta assumir uma relação fenomenológica com aquilo que se está a passar consigo. Por isso, quando aqui se escreve “carência” – as carências / que amparam o pensamento –, escreve-se aquilo que se fez, que se viveu de uma felicidade que, à luz do escuro da cama, parece ter sido perfeito, e agora tem aquele sabor azedo de nunca mais. Todas as noites em que o riso, em que as palavras, em que as mãos acertaram na perfeição com o outro, chegam agora aqui com a profunda dor dessa amálgama de “ter sido” e de “nunca mais”. É assim que sente aquele que está dia após dia, noite após noite enterrado numa cama de hospital à espera de um milagre. E o que é um milagre? É, adivinha-se aqui neste livro, que o mundo volte até nós de maneira certa. O poeta escreve assim, à página 15, na última estrofe do poema IX, A LUZ: “É breve a sua presença [da luz]. / Uma fronteira entre distancias / onde a morte é duração, / a espera do mundo de maneira / incerta. A noite dentro do corpo.”

Se tínhamos já visto em livros anteriores, o de Miguel Manso (Supremo 16/70) e o de Vasco Gato (Fera Oculta), fazer-se um livro através de um outro apenas, o do avó que se entregou à morte, no caso do primeiro livro e o do filho que está para nascer, no caso do segundo livro, aqui Rui Miguel Ribeiro faz de si mesmo um outro, acerca do qual escreve também ele um livro (e que na realidade é anterior aos outros dois referidos anteriormente). O livro, no fundo, relata “vinte dias em que não fui eu”, pois esta é provavelmente a única experiência possível de não sermos nós mesmos, em vida. E é isso mesmo que o poeta se dá conta, e regista, daquele modo particular, que é o da grande poesia. Leia-se, neste caso, o poema “XI – AS NOITES” (p. 17):

             Noite após noite

apenas posso confiar na sua descida.

Este jogo de amanhãs

em peso das horas

em que procuro uma harmonia.

Sob esta luz contínua

não tenho um reflexo

há dias que não vejo o meu rosto.

             A cama marca o calendário

fora de mim, débil raiz

que se alimenta da contagem,

as semanas, a roleta que jogo

com o futuro e as suas representações.

Há dias que não vejo o meu rosto.

Hoje dizem-me que atingi a aplasia.

Terei viciado o jogo? A vida?

Este parece-me um poema de excelência acerca desta experiência singular, de algum modo impossível, de sermos fora de nós. Ou melhor: de não sermos nós e continuarmos a viver; e não no sentido do binómio autenticidade-inautenticidade, mas na sua literalidade. Cada notícia dada ao fim do dia e no seu início assume as proporções de terramoto. A voz do médico, do especialista, é a voz do oráculo. E bebe-se aquelas palavras como se bebe a própria vida. E o oráculo é-nos transmitido de um modo profissional, de um modo esterilizado, como tudo naquele quarto, como se nós não fôssemos uma existência, mas um peça de um qualquer jogo desconhecido. As palavras que o “especialista” pronuncia “você está com aplasia” (ou outro modo igualmente esterilizado de dizer) são ditas como se dissesse “se jogar esse peão, como-lhe o cavalo e dou-lhe xeque mate em dois lances”, mas aquele que ouve as palavras, ouve-as como se o infinito lhe esmagasse o peito e estivesse a ver-se a si mesmo a morrer. São dois os humanos, um de pé a falar e outro enterrado na cama a ouvir, mas são dois mundos completamente distintos. O médico-especialista afastar-se-á da cama, do quarto, regressando à sua vida normal, eventualmente levando a outro quarto as mesmas palavras “você tem uma aplasia”, tomando um duche em seguida e indo jantar, com a mulher, com amigos, ou simplesmente sozinho, entretido com o seu telemóvel ou com uma televisão. O poeta, enterrado na cama, ficará com o não sentido da existência, com o infinito a esmagar-lhe o peito, segundo a segundo. O mundo torna-se, ainda mais do que já era, um escuro infinito e inabitável. Terminemos esta viagem com o poema “V – OS LIVROS”, de Rui Miguel Ribeiro:

Vêm castigados e doridos.

Também eu penso desde a cama

em como lhe corresponder.

Ao chegar das horas vejo

no seu silêncio de esterilização

a resistência que mantém a sua forma;

todos os lugares a que daqui posso chegar,

já que o tempo é a única companhia.

Vêm paliativos e não esperam mudanças;

concedem os seus mundos e sonhos

de futuro. A morte a favor do passar dos dias.

7 Mar 2017

Catarina Santiago Costa: “Tenho sempre um especial interesse pela poesia feminina”

[dropcap]T[/dropcap]ens dois livros de poesia editados, ambos pela Douda Correria e ambos em 2016, Estufa e Tártaro (acerca do qual se escreveu recentemente aqui no Hoje Macau). Consideras que são livros diferentes, isto é, com estéticas diferentes, ou antes pelo contrário, há uma continuidade do primeiro livro no segundo?
Estufa foi editado em Dezembro de 2015; Tártaro, em Junho de 2016. O que se passou foi que, aquando do lançamento da Estufa, já o Tártaro estava na gaveta da Douda Correria. O segundo não prolonga nem completa o primeiro. Estufa foi escrito sem saber que era livro, teve de ser cortado à catanada e depois muito cinzelado; o Tártaro nasceu, como o próprio nome indica, caoticamente. Talvez de tão impetuoso, parecia impossível de ser mexido e de uma deformidade fatal. Teve de dormir para ser cirurgicamente cortado e colado.

A parceria com a Douda Correria é para continuar?
Não sei o que o futuro trará mas sei que a Douda Correria dança um pas de deux com os seus autores. Editora livre que é, não dita sentenças nem espera (muito menos exige) exclusividade. Quase todos os autores da Douda relacionam-se com outras editoras. Mas confesso que gosto de ser convidada e foi isso que o Nuno Moura fez, convidou-me a enviar-lhe a Estufa. Quando chegou a vez do Tártaro, já me sentia confortável para o enviar por iniciativa própria.

Há neste momento, em Portugal, muitas jovens mulheres a publicar poesia, e com qualidade. Sugeres alguma explicação para isso?
Na minha opinião, o aumento consistente da educação e da emancipação das mulheres, que, como sabemos, são processos lentos e demoram décadas a produzir resultados palpáveis. O importante é que, mais ou menos jovens, não faltam poetas vivas para encher as estantes dos leitores: Regina Guimarães, Ana Luísa Amaral, Rosa Maria Martelo, Adília Lopes, Cláudia R. Sampaio, Raquel Nobre Guerra, Rosalina Marshall, Maria Sousa, Inês Dias, Rita Taborda Duarte, Ana Tecedeiro, Matilde Campilho e tantas, tantas mais.

Quais as tuas afinidades electivas, na poesia?
Tenho sempre um especial interesse pela poesia feminina, especialmente a de americanas do século XX – Sylvia Plath, Anne Sexton, Sharon Olds… E, apesar de ser do século XIX, também tenho uma fixação pela Emily Dickinson, que tem poemas de uma mística sensual que me cativam – há ali um contraste que gera um equilíbrio estranho.

A Emily Dickison é uma poeta extraordinária. E, para além da mística sensual, com a que te identificas, há também uma solidão imensa naquelas páginas.
Sim, era uma monja confinada ao domicílio, que chegou a frequentar um seminário, e que convoca uma sensualidade e um erotismo místicos que verte na sua poesia. O resultado é uma contenção explosiva. Atesta-o, por exemplo, este poema (aqui, na tradução do Jorge de Sena): “Morri pela Beleza – mas mal eu / Na tumba me acomodara, / Um que pela Verdade então morrera / A meu lado se deitava. // De manso perguntou por quem tombara… / – Pela Beleza – disse eu. /– A mim foi a Verdade. É a mesma Coisa. / Somos Irmãos – respondeu. // E quais na Noite os que se encontram falam – / De Quarto a Quarto a gente conversou – / Até que o Musgo veio aos nossos lábios – / E os nossos nomes – tapou.”

Estás a escrever um novo livro?
Penso que sim. Mas ainda não tenho a certeza.

O que te leva a não ter a certeza?
Tenho escrito em torno de um tema que me tomou – não o determinei mas constato que estou cativa daquele lugar. Mas só digo que escrevi um livro quando não há ponto de retorno, quando já ali está, mesmo que venha a ser sujeito a alterações. Ainda estou naquele estágio em que posso implodir tudo.

Para além da poesia, escreves prosa, ficção ou ensaio?
Por minha iniciativa, escrevo sempre poesia. Mas já escrevi notícias, fiz entrevistas, press releases, sempre em trabalho. Fui convidada a escrever um texto dramático infanto-juvenil em conjunto com a Teresa Coutinho (actriz) e o Pedro Moura (guitarrista) para a Trupe do Bichos. Estou a gostar imenso da experiência. Mas não tenho nenhum projecto em prosa no horizonte.

5 Mar 2017

Deus é o nada a olhar-se ao espelho

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]itornelos, Abysmo, 2014, é o primeiro e único livro publicado pela poeta Joana Emídio Marques, até à data. O livro é composto de três partes: “Ritornelos”, com 52 poemas; “Cânticos da Floresta”, com 14 poemas; e “Litanias”, com 8 poemas. E entre cada poema da primeira parte do livro encontramos as belas ilustrações de Bárbara Fonte (nas duas partes finais do livro, as ilustrações aparecem no início e não entre poemas).

Uma vez mais, o título do livro dá-nos alguma indicação fenomenológica acerca daquilo que nos mostra. Ritornelos é um termo musical (dois pontos seguido de uma barra vertical), que indica a repetição de uma parte da partitura, isto é, a repetição da sua execução musical. Pode também tratar-se da indicação de um refrão. Aqui, e partindo da sua função musical, a palavra remete para uma ideia próxima da do devir e não da repetição, como se se tratasse da vida como uma repetição infinita, mas sempre diferente. Em suma, um voltar atrás, não da mesma maneira – isso seria um eterno retorno – mas sempre de modo diferente. Múltiplos modos diferentes e nenhum melhor do que o anterior, pois trata-se de um devir sombrio, como se o infinito ou a repetição do infinito não passasse do eco de uma gargalhada de Deus: “(…) tudo isto / que se repete repetindo-se / eco da gargalhada de Deus.” (p. 51) O devir aparece-nos logo nos primeiros versos: “Acordando infinitamente / para o que há-de vir / (…)” Embora seja ao ritornelo 25, da primeira parte, página 57, que o devir se assume em toda a sua pujança:

O que se torna tempo
não poderás somá-lo
é abissal e infinito
esperar que nasça o princípio
no interior do que só vês de fora.
Não, não podes somá-lo
entre os dedos idênticos
nem à verdade nem à carne,
o que se torna tempo
é este exacto instante
que se cumpriu
se perdeu.

O termo devir aparecia já à página 47: “como se soubesses o devir do tempo / (…)”. Não há, contudo, ou parece não haver um sentido positivo neste devir, em Joana Emídio Marques. O devir é negro, sombrio, onde a morte mesma não é abrigo. Escreve à página 29: “O Ser não devolve o não Ser / o símbolo não devolve o sentido.” Ou ainda nos versos finas do poema à página 63: “Um homem cai / num buraco aberto pelo tempo / mergulha / na láctea corrente de lírios e desaparece. / Depois outro e outro ainda / até não haver qualquer rumor / que  não seja o da Babilónia / bebendo sofregamente / na corrente fluvial os lírios de leite.” Esta presente consciência da perda, contínua consciência de uma falta de sentido, ou pelo menos de uma qualquer possibilidade de alcançá-lo, vê-lo-emos melhor no final deste texto. Por ora, mostremos como no humano, a única possibilidade de fuga, que seria a invenção do outro, a transformação do outro numa amplificação do eu, acaba sempre por se virar contra nós, porque é sempre nas palavras e na necessidade que elas têm de sentido que o outro vive, como escreve a poeta no belo ritornelo 39:

Eras
agora voltas ao fogo
à tarde de experimentar estar entre os reflexos.
Eras
agora a voz vem desmembrar o passado em presente.
Eras
sem acidente que evocasse o princípio.
Eras,
quando eu era eu
te designava
te existia.

Este poderoso poema, imerso numa ontologia do devir, em que tornar-se é o único lugar disponível, repete a palavra “eras”, como expressão fundamental do humano. “Eras”, segunda pessoa do pretérito imperfeito do verbo ser, sugere a ideia de nevoeiro, a ideia de estarmos imersos num ambiente em que não vemos o que está a acontecer, ambiente próprio da memória e da literatura – era uma vez –, que pressupõe um nunca ter sido. Este ver, em cada um de nós, simultaneamente uma memória de outro e um nunca ter sido, revela-nos antes de mais como um ser de palavra, um ser de continua transformação através da palavra, que é o modo como a consciência tem acesso ao que não é a própria consciência, um reflexo de si mesma, que é já um outro. Dito de outro modo: “Eras / agora voltas ao fogo / à tarde de experimentar estar entre os reflexos”; cada um de nós é para nós mesmos um reflexo derivado de se experimentar, isto é, um reflexo derivado dos outros. “Eras” é uma expressão reflexa de nós mesmos, aqui e agora e no tempo, que também ele só existe numa permanente mudança, “o que se torna tempo / é este exacto instante / que se cumpriu / se perdeu.” (25, p. 57) Por isso, Beirute – no ritornelo 27 – somos todos nós e todos os tempos do mundo. Beirute será ainda amanhã, quando amanhã talvez nem exista; Beirute será ainda no início dos tempos, quando este talvez não tenha sequer existido. “Beirute / e já não há carne que possa chamar um nome / (…) // E já não há carne / a que se possa chamar um nome. / Só Deus atravessando uma palavra, / carregando-a nos braços / devolvendo-a ao sono, anuncia: / Beirute.” A capital da Síria, para além do que hoje é, para além do que foi ao longo dos tempos, assume também aqui o símbolo de não sentido do mundo, de não sentido do humano. Estamos continuamente entre, a caminho de nos tornarmos nós mesmos – em sentido nietzschiano – e de nos tornarmos nada; um nada que já fomos e que tornaremos a ser. Mas também encontramos a identidade entre devir e existência na segunda parte do livro, em “Cânticos da Floresta”. À página 131, cântico 3, Joana Emídio Marques escreve: “Já não sou a minha carne / e o carrossel gira, / gira, gira, gira, / passa por ti e não pára. / Já não sou a tua carne / és Outra, és Tu.” No fundo, a vida não pode ser vivida a não ser que seja uma criação. Melhor seria dizer, como se adivinha que a poeta diga, a vida só pode ser vivida se imaginada, como quem agora lança uma linha ao mar e imagina um peixe no futuro.

Mas, para além desta sombra de Nietzsche, evidentemente um Nietzsche apropriado pela poeta, ou até mesmo um Nietzsche à revelia da poeta, estende-se também uma solidão enorme, onde o início do cântico 4, à página 133, o enuncia de modo belo e aterrador: “Aqui / na casa das cadeiras vazias / (…)”. Este aqui somos nós na beira da página, e sempre na beira da vida. Mas esta solidão, que é reflexo da impossibilidade de reconciliação com o espelho, com os outros, connosco – e qual nós, aquele que estamos para ser, aquele que fomos ou aquele que vamos sendo? – já se encontrava desde o início do livro, em todo o primeiro poema, que começa “Acordando infinitamente / para o que há-de vir / as horas caminham no sentido contrario ao dos pássaros” (e poucos livros terão um início tão próximo da perfeição), e o poema termina “E agora onde me vão eles enterrar?” Esta impossibilidade de reconciliação, seja com o que for ou com quem for, ancora num imenso solipsismo, fazendo deste livro, já longe de Nietzsche, um devir negro, um devir sombrio. Este solipsismo, encontra-se enunciado de modo mais metafísico ao poema 3 da primeira parte do livro: “Entre os possíveis e as coisas / não ser nada, / nem sequer inclassificável.” Por isso, podemo-lo dizer agora, a presença contínua de Deus ao longo do livro nos aparece mais como nada do que como Todo. Deus é a solidão perfeita, redonda, sem mácula, sem passado, sem futuro, sem lembrança ao rés da pele, sem desejo. Quando se escreve Deus, neste livro, escreve-se nada e solidão. Deus surge no livro apenas ao poema 16, com os seguintes versos: “No fim da penumbra / Deus chamou-te a olhar / três noivas-cilindro / erguendo sobre o mundo seus corpos brancos / seus corpos-silo / prostrado na solidão dos milénios.” Aparece depois várias vezes ao longo do livro e, quando não aparece literalmente, aparece em metonímias, sinédoques, antonomásias. Mas sempre significando o misterioso absoluto e infinito nada. Deus é o nada que se olha no espelho. O silêncio a parte musical do nada. Porque a solidão, que é o nada fazendo-se humano, tem também o seu lado musical, o silêncio, e que percorre as páginas deste livro, como não poderia deixar de ser, sendo ele tão musical, desde o título ao último verso.

Recuperemos agora aquilo que mostrámos atrás acerca da consciência de uma falta de sentido, ou pelo menos de uma qualquer possibilidade de alcançá-lo. Este livro de Joana Emídio Marques, uma espécie de itinerário de Deus a Deus (que é o nada a olhar-se ao espelho), começa com os versos já citados, “Acordando infinitamente / para o que há-de vir”, e termina com este “Se acordar agora adormecerei?”, perfazendo formalmente um percurso no sonho. Toda a existência é sonho, ou parece ser um sonho, algo que não é nem ser, nem não-ser. Ritornelos mostra-nos que nunca chegaremos a saber se existimos ou se sonhamos, se estamos vivos a caminho da morte ou mortos a caminho da vida. O devir, o nada, a solidão… o que é este mundo? O que é eu? Por quê a vida? “ – Eu Sou, / gritei depois de morta.” (p. 107) Terminamos com um poema de Joana Emídio Marques, o cântico 8, à página 139:

Não sou eu que vivo, mas a flor
que dando-se às eternidades pretéritas
respira no que desconhece
a beleza inaugural do dia.
Já não sou eu que vivo
mas o tempo estranhado pelo sem-tempo
em madrugadas tão plenas que tecem caminhos.
Um dia, quando voltar da morte e me detiver em frente à janela
que me puxa par adentro do segredo e do mistério
ter-te-ei despido.
Já não sou eu que vivo
e se gritar afogo-me no meu próprio eco
neste campo de escombros
átomos explodindo nas carnes das casas.
Já não sou eu que vivo
mas o grito
o milagre nos corredores da noite
nas mãos dadas a ninguém.
Entranhas de Deus espalhadas sobre a tua ausência.

28 Fev 2017

Maria João Cantinho: “Não quero ser nada”

[dropcap]T[/dropcap]ens uma obra dividida pelo ensaio e pela poesia, e ambas reconhecidas. Gostava que falasses acerca do modo como entendes cada uma delas, no teu modo de escrita, e também em relação aos outros, ou seja como vês essas escritas para além da tua.
Creio que sou mais reconhecida no ensaio do que na poesia, pois tenho publicado poesia em editoras discretas. Hoje, a ideia de fronteira, relativamente aos géneros, está mais esbatida e temos uma tradição fortíssima de poetas que são ensaístas ou vice-versa, o que mostra que a escrita não pode ser tomada de uma forma monolítica. A concentração da poesia (e a sua exigência de rigor e de contenção) é compatível com a respiração do ensaio. Eu diria que são passagens que se abrem (ou se fecham) e que a poesia bebe nas margens do não-dito, do não-explicável, do que não é racionalizável, do imediato, da pulsão, ao passo que o ensaio procura a claridade e a explicação ou, pelo menos, a sua tentativa. Temos uma tradição forte, na poesia contemporânea portuguesa, de autores que são também ensaístas, estou a pensar no Luís Quintais, mais pertencente à nossa geração, mas também em poetas como António Cabrita, Luís Miguel Nava (cuja precoce morte não nos deixou senão um conjunto breve de ensaios) Manuel Gusmão, Helder Macedo, o jovem poeta Ricardo Gil Soeiro (a meu ver o caso mais consistente desse paralelismo nos escritores mais jovens) e Gólgona Anghel, já sem falar do genial Jorge de Sena, Joaquim Manuel Magalhães, entre outros. Mas parece haver ainda um certo preconceito, de ambos os lados, em relação a tal. O que une o ensaio e a poesia, neste caso concreto, é essa capacidade de leitura e de interpretação das potencialidades da linguagem, o conhecimento profundo da própria tradição e dos autores. De uma forma geral, os ensaístas são grandes leitores e isso faz muita diferença (a meu ver) na poesia. Não entram nela de forma ingénua e desavisada. Devo dizer-te, no entanto, que a poesia portuguesa, um pouco contrariamente ao que se diz, está muito viçosa. Não quer dizer que seja tudo igualmente bom e o tempo há-de acabar por separar as águas, mas entre tanta coisa que se publica, neste universo de pequenas editoras, como a Douda Correria, a Língua Morta, a Averno, a Mariposa Azual e muitas outras editoras pelo país, cuja distribuição nos dificulta o acesso (estou a pensar nas editoras do Porto e de Coimbra), há muita coisa de qualidade. Em movência, proveniente de vários filões. Muitos poetas jovens que estão a fazer um excelente trabalho e é preciso esperar a evolução deles para avaliar a qualidade. As tertúlias, o trabalho militante de lugares que já são hoje de «culto», como o Irreal, o Povo, terças-feiras clandestinas, etc., são notáveis pela esperança que vieram criar para a jovem poesia portuguesa e fomentam o diálogo e o espaço propício à criação. Respeito muito quem trabalha assim, de forma militante, à margem das «facilidades» das grandes editoras, que sempre tiveram um trabalho mais facilitado. A poesia é hoje, mais do que nunca, um espaço de resistência, de contra-poder. E isso é profundamente político.

Outra das tuas actividades é a de coordenadora ou directora de um novo projecto cultural online chamado Caliban. Como surgiu essa ideia e como está a correr?
Não gosto muito de escarafunchar em histórias tristes, tanto mais que a Caliban é a história muito feliz do que se faz com finais tristes. Não gosto do termo directora, é demasiado formal para o meu gosto, prefiro o de coordenadora, é mais feliz e mais justo. O nome partiu desse engenhoso poeta que ambos conhecemos, o António Cabrita, mas houve muita gente amiga que se associou imediatamente ao projecto, com muito entusiasmo, também do lado brasileiro, amigos como Marcia Tiburi, Rubens Casara, Bartira Fortes, Renato Rezende. Os outros foram chegando, para utilizar uma expressão brasileira. Energia positiva gera mais energia positiva. A Caliban é lida em Portugal e no Brasil. Creio haver ainda alguma suspeita num certo meio intelectual português, que torce o nariz ao online, mas que nos lê «às escondidas», o que me diverte. É bom sinal. Todos os dias se somam novos seguidores e num universo tão pequeno como é o da literatura (não é um jornal genérico), com conteúdos ligados à arte e à literatura, à poesia, crónica, etc., não é de esperar que haja uma adesão maciça. Mas somos lidos nas comunidades portuguesas e recebo respostas muito positivas de quem mora longe e não tem acesso ao que se vai fazendo por cá. Creio que teremos de abolir este preconceito contra a revista electrónica (que o Brasil já não tem, por exemplo, ainda que ame o suporte de papel) para vencermos a resistência do leitor bem-pensante. As redes sociais, por seu lado, ao facilitarem a divulgação do projecto, têm sido óptimas para a sua divulgação, pois até agora, ao fim de seis meses, só uma rádio se interessou por nós. Mas estamos de saúde, é um projecto democrático e que pretende, antes de mais, dar voz e dar a conhecer quem não passa no crivo dos jornais e das revistas literárias, mas que, nem por isso, tem menos qualidade. Temos colaboradores (que têm tanta autonomia como eu ou o Cabrita) portugueses e brasileiros (e deste lado é preciso dizer que contamos com ensaístas e poetas extraordinários, como Alberto Pucheu, Renato Rezende, Luciana Brandão, Ney Ferraz Paiva, Vicente Franz Cecim, Marcia Tiburi, Rubens Casara, Marcio Seligmann-Silva, Danielle Magalhães, Yasmin Nigri, Bia Dias, etc.) que tão generosamente se dispõem a colaborar. É o tipo de projecto que fundas e deixas crescer livremente, espero que em breve possamos conseguir, de alguma forma, financiar, se houver interesse.

Tens um doutoramento em filosofia. Como entendes essa relação, em ti, entre a filosofia e a poesia?
É uma relação de profunda inquietação. Não que acorde angustiada a pensar em problemas existenciais todos os dias (os meus são mais prosaicos como pagar as contas, etc.), mas a filosofia esconde-se nos interstícios de tudo o que fazemos, uma espécie de animal intruso e invisível, que reclama o alimento, mas que também nos indica algo a partir dela, dessa necessidade de compreender, dessa paixão autofágica, como sabemos. Faço parte de uma linhagem poética que consideraria metafísica, não tenho nada a ver com o que se faz (e que eu respeito) hoje, a poesia do quotidiano, sou sempre movida pelos meus autores, muito atraída pela uma tradição mística, mas sem me deixar vencer por ela, nesse sentido de querer ser uma mística. Eu não quero ser nada, deixo que as palavras me guiem, o meu prazer é o da descoberta, esse trabalho da contenção da linguagem e da sua força, um trabalho de homenagem permanente, de dívida para com os meus autores, os meus temas. Não sei se o doutoramento tem aqui algum peso, pois eu nunca penso nisso nem quero que a erudição transpareça em exercícios fúteis de estilo, isso não me interessa para nada. Eu diria que a poesia me mantém à tona dessa inquietação filosófica. Sem a escrita acho que não vivia bem, não sei sequer se sobreviveria, nunca me aconteceu estar longe dela, desde que me lembro.

Que projectos para este ano?
Para já, uma tradução, que penso acabar este mês. Mas tenho um romance, que sairá em Maio, pela editora Deriva. Depois, vou atirar-me a um livro de ensaio, que conto publicar na Documenta/Sistema Solar. Só estou à espera de ter tempo para me consagrar a ele. E o resto vai acontecendo, é o trabalho académico, os textos ensaísticos que vou publicando em revistas, as conferências planeadas, um congresso internacional que estou a co-organizar, sobre memória e arquivo, com os meus ilustres colegas da Nova (Comunicação e História de Arte) e da Clássica (Centro de Filosofia). E a Caliban.

24 Fev 2017

Singularidade e nada 

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando chegamos ao Tártaro, aquilo que primeiro nos damos conta é da linguagem. Damo-nos conta de que ela existe como textura, como material, como algo que está diante de nós e é necessário apreciar, ou não, pois a linguagem neste livro está nos antípodas da linguagem do quotidiano, da linguagem que usamos no dia a dia, ainda que seja para expressar sentimentos profundos. O primeiro verso do livro mostra-nos logo isso mesmo: “É-se um pano impoluto / (…)”. Não estamos a falar do uso de palavras difíceis ou eruditas ou que a linguagem chegue mesmo a um hermetismo. Não. A linguagem é tão somente aquotidiana. A pergunta que agora faz sentido ser feita é: e esse aquotidiano da linguagem é somente um jogo retórico ou tem um sentido mais profundo? Parece que começamos a encontrar uma boa resposta com este verso: “Alma à escâncara, /(…)”. A alma, assim, à escâncara faz-nos parar. Não pela dificuldade da palavra, mas por ser incomum. Repare-se que não estamos diante de uma metáfora, estamos diante de um mostrar melhor a alma, de lhe encontrar um modo dela fazer sentido num poema. Se pensarmos bem, uma alma fica melhor à janela do que entre quatro paredes. Mas à janela não é o mesmo que à escâncara, porque nenhuma palavra substitui outra, como nenhuma pessoa substitui outra. Dizer as pessoas são todas iguais é como dizer que uma palavra substitui outra. Nesta poesia, de Catarina Santiago Costa, as palavras são insubstituíveis; nenhuma ocupa em nosso coração, no verso, o lugar de outra. As palavras aparecem estranhas para que reparemos nelas, para que reparemos melhor no que está a ser escrito. A estranheza tem esse poder de curto-circuitar o modo habitual de andarmos desligados do que nos acontece e do que lemos.  Apesar da técnica, isto é, do modo peculiar da poeta tratar os seus poemas, o uso de palavras longe do seu uso quotidiano, ou mesmo do uso em poemas que não os dela, não se prende com musicalidade, com prosódia, com ritmo, mas com o sentido, apesar do verso “– ouço o que cantas, não o que dizes.”.

O sentido é tudo, nesta poesia, embora à primeira vista, a um olhar mais precipitado, possa parecer tratar-se de retórica. Sem dúvida, a linguagem confere singularidade a este livro, mas a singularidade desta linguagem não é um jogo de linguagem, mas uma existência de linguagem, um existir na língua ao avesso do existir no mundo. E deriva daqui, deste avesso, esta técnica particular da linguagem. Não se inventam palavras ou artifícios linguísticos por desporto, por ser diferente, mas por se ver na linguagem do mundo, na linguagem dos dias a cara do mundo, a cara dos dias, que aterram, adivinha-se, a poeta. Por isso, a questão fundamental neste livro pode ser enunciada de modo interrogativo, nestas duas perguntas: como dizer a estranheza do mundo com as palavras do mundo? Como dizer o nada enunciando as coisas? Escreve no último poema: As coisas inexistem porque estamos não-aqui, (…) ao final de um dia qwertico.” Só assim, de um modo de quem se vira do avesso, Catarina dá conta do mundo, dá conta de si, dá conta da realidade que tem de carregar aos ombros de um corpo que lhe deram, ao ombros da consciência de ter um corpo que lhe deram e que tem de carregar pelos dia afora. Todos nós temos esse fardo, com maior ou menor consciência. E quem escreve para apagar-se a si e ao mundo, escreve assim:

Esquecer não é mudar de pele,

semear epiteliais no tapete,

pelos lençóis,

pelas almofadas,

na água que me lava,

não é passar um obsessivo pano

onde os teus dedos pousaram,

naquilo que pressionaram e vergastaram.

Esquecer é cirandar com erupções tapadas,

assustar memórias,

despejá-las como a uma família cigana em propriedade

alheia.

É negar dias,

negar filhas,

recusar víveres,

lacrar a vagina,

engolir idioma e língua,

fazer dos olhos salinas

– ver nada,

ver-me agora nada.

O poema não começa nem termina na citação acima, mas dá para ver bem que o título do livro lhe assenta como uma luva, Tártaro, a parte do mundo onde se vive o pior, para onde os deuses enviam aqueles que odiavam. Negar tudo, a si e ao mundo, ver-se nada, é uma forma de viver o lugar que os deuses reservam àqueles que, como escreve a poeta, dormem com um cadáver (na página do livro aparece “Dormirás com um cadáver”). No fundo, e aqui é mesmo no fundo e do fundo que se fala, a vida é simples: “cada qual no seu reino de nadas.”

Apesar de tudo, apesar do nada e suas manifestações em vários versos que percorrem o livro – “Daqui por diante, nada”, “– a desistência será o meu tributo.”, “cada qual no seu reino de nadas”, “Não há mais nada”, “Ignoro a morada do equívoco / mas ele é”, No entanto, tu e eu não arrulhamos nada” –, não estamos diante de um livro pessimista, muito menos de um livro de tom queixoso, umbilical, de alguém que carrega uma dor de corno da vida, ou da imagem que tinha de si na vida. Estamos diante de um livro que assume a vida como o lugar aonde se tem de ir, por onde se tem de passar apesar de tudo. Há que ir à vida, não há nada a fazer. Ir à vida é como ir trabalhar. Levantamo-nos, sem querer, e lá vamos ao trabalho, à vida, expostos intempérie dos sorrisos desastrados e das palavras porcas, de tanto se usarem sem serem lavadas, sem serem renovadas, sem serem pensadas. A vida para a maioria de todos nós é assim como ela a canta, um tártaro, porque a poeta não fala da vida dela, fala da nossa vida, daqueles que não têm  privilégios, quer seja  material quer seja ideal, de não se dar conta das dores de existir, por exemplo. E num dos poemas mais rente aos muros do quotidiano da linguagem, escreve:

Ataviada com a touca branca,

avental branco sobre a alva bata,

a cozinheira frita as iscas

ante os nossos fígados e vesículas atordoados

com os copos, os salgados e a manteiga de alho

de um recente passado

(…)

A manteiga de alho de um recente passado, ainda assim é muito melhor do que o destino da senhora “acantonada na fritadeira / nunca lhe vemos a cara / que imagino sob o signo da adstringência.” Mas a nossa tenacidade em arrancar sorrisos às pétalas, em não imaginar nada, distrairmo-nos de tudo, que é uma forma de imaginar poder haver um futuro melhor, faz-nos caminhar pelo tártaro como se não fosse o tártaro. “O dia é uma espargata, / uma ampla abertura de pernas por onde o sol desova, uma promessa de décadas (…)”.

Antes de terminar com um poema de Catarina Santiago Costa, resta-me dizer que o livro não tem número de página e os poemas não têm título. A composição do livro é de Joana Pires, como usualmente nos livros da Douda Correria, e a capa é de António Poppe.

És um merlo azul-ígneo,

Os meus tímpanos vibram com os teus gorjeios

– ouço o que cantas, não o que dizes.

Pergunto-me se preferia ser magnólia

pesada de folhas e flores gordas

que terias por morada

ou um parasita mínimo,

alfaiate de bainhas de mielina,

que se aconchegasse no teu cérebro,

assomasse à escotilha do olho

a ver-te o voo.

Sairia depois pelo teu bico em sinfonia

perguntando “queres que regresse?”

e “sim” ou “não” seriam respostas boas

desde que me mantivesses por perto.

Mas é hora de chegar a termos com a dieta aérea

E acolher o vazio infinito de Deus

até ele forjar mar e terra.

21 Fev 2017

Luís Carmelo: “A escrita é um laboratório que me ajuda a traduzir o mundo”

Ao longo de mais de 35 anos, publicaste 45 livros, entre poesia, romance, contos, ensaios, teatro, argumento de cinema, e manuais académicos. Para não falar do teu monumental projecto das cidades, que vens desenhando há outros tantos anos, desde os tempos de Amesterdão. Esta compulsão é uma necessidade académica, pois és professor, ou deriva de uma outra necessidade?

Ser professor, para mim, sempre foi uma forma de ganhar a vida como qualquer outra, embora, com o tempo, me tenha afeiçoado à prática. Gosto realmente de dar aulas, quer presenciais (em tantos anos de universidade já devo ter leccionado, depois de me ter doutorado em 2005, umas duas dezenas de matérias diferentes entre a literatura, as artes, a semiótica e as teorias da cultura), quer online (criei há oito anos uma escola vocacionada para as escritas, a EC.ON – https://escritacriativaonline.net/ -, que é, hoje em dia, o meu ganha-pão essencial). Ser escritor é realmente algo de outra natureza, pois tem sido, desde os vinte e poucos anos de idade, um dos móbeis da minha realização profunda, poderia até dizer da minha possível redenção. De facto, estou sempre a escrever em três direcções. Por um lado, tenho sempre um romance a meio e um outro a iniciar-se (após a Trilogia do Sísifo, que concluí em Fevereiro de 2016, escrevi um novo romance que está agora em pousio, tendo já iniciado, em 2017, um outro). Por outro lado, tenho sempre (ou quase sempre) um ensaio em construção (este ano vai ser sobre a Tetralogia Lusitana do Almeida Faria, reatando um estudo que levei a cabo há três décadas). Por fim, desenvolvo ininterruptamente uma oficina poética (coisa muito mais recôndita e íntima). As cidades que desenho desde o início dos anos oitenta fazem parte de uma poética, essencialmente por se tratar de uma actividade (bastante reservada, sublinhe-se) que alia um lado lúdico a um outro inefável, sem tradução verbal ou figurada, e que, por isso mesmo, corresponde a uma pura ‘poiesis’ (uma linguagem que se inventou e que se gera a si mesma sem constrangimentos e sem uma auto-análise plausível). Resumindo: além do prazer (escrever, no momento em que estou a escrever, a criar e a descobrir, é, para mim, um prazer muito grande), a escrita, no meu caso, consiste num laboratório que me ajuda a traduzir o mundo e, portanto, a atravessar o enigma com uma venda a menos. Este exercício incessante, que é uma espécie salto à vara sobre a fogueira (ou sobre o abismo), não é apenas uma necessidade (como respirar o é), mas sobretudo um modo de tentar emendar ou consertar a finitude. O horizonte que a escrita literária me concede, seja como escritor, seja como leitor, é, ao mesmo tempo, centrípeto (em direcção ao mistério) e centrífugo (em direcção ao mundo que se vive). Um vaivém e também uma colisão em que busco todos os dias uma qualquer forma de superação, seja lá o que isso queira dizer.

Curiosamente, ou talvez não, os teus únicos livros de poesia foram também os primeiros, em 1981, Fio de Prumo (Terramar, Torres Vedras), 1982, Vão Interior do Rio (Atelier 18, Amesterdão) e em 1983, Ângulo Raso, Atelier 18, Amesterdão. Desinteressaste-te pela poesia ou ela desinteressou-se de ti? 

Nunca me desinteressei pela poesia, sempre vivi com ela e sempre a escrevi e li apaixonadamente ao longo dos anos. No entanto, tenho uma certeza: no campo daquilo que passámos a codificar por literatura, há alguns séculos a esta parte, a poesia é a linha da frente (do mesmo modo que, numa religião, a clausura e o misticismo são linhas da frente). Eu sou um agnóstico de fundo teísta, ou seja, um tipo que não crê em receitas, nem em dogmas, mas que não enjeita (pelo menos radicalmente) uma feição imaterial no universo. Daí que, para mim, seja particularmente evidente que a poesia não é nunca apenas a poesia. A dimensão críptico-mágica que emprestamos ao sopro verbal vem de longe e soube-se metaforizar em todas as culturas humanas (é por isso que muitas mitologias, e não só, veja-se o início do Génesis, o celebrem como sobrenatural; por exemplo, no Sofista, Platão, dando voz ao Estrangeiro no diálogo com Teeteto, diz que o discurso é “a corrente que sai da alma pela boca sob a forma de som”). Razão por que sempre celebrei a poesia com prudência e na intimidade. É verdade que, em jovem, publiquei alguma poesia (três livros), mas isso deveu-se a um tipo de urgência que não partilho hoje em dia. No entanto, tal como aconteceu já com as cidades (que expus em Lisboa, na Galeria Abysmo, em Abril de 2015), estou agora prestes a publicar alguns poemas meus. Neste ano de 2017 vou ter poesia publicada, o que não acontecia desde 1982. Estou numa fase da vida em que certas camuflagens estão a perder o sentido. E eu limito-me a respeitar esse ímpeto interior.

Quais as maiores diferenças que encontras no mercado, nos autores e nos leitores, desde que começaste a publicar, até hoje? 

Comecei a publicar na Vega nos anos oitenta. A Vega foi um ponto de encontro de onde saíram grandes escritores (Lobo Antunes e João de Melo, por exemplo) e existia num tempo em que a edição ainda publicava, de modo dominante, a pensar mais na descoberta literária do que no negócio. Nos anos noventa e no início da primeira década do século XXI, publiquei romances na Editorial Notícias e ensaios (e outras obras de feição escolar e/ou universitária) na Europa-América. Nesse período, viveu-se o início de uma certa concentração empresarial que coincidiu com o início do boom da livros da chamada – o termo é do Miguel Real – “literatura de mercado” (ou seja: o light que já existia fora de Portugal acompanhou, neste período, as lógicas de monopolização e do aparecimento dos grandes grupos, enquanto contribuiu para pressionar indirectamente, mas como uma tenaz – era preciso facturar acima de tudo! -, a tradição especificamente literária, razão por que muitos escritores se viram, de algum modo, apeados da ideia tradicional da ‘sua’ editora). Entre meados da primeira década do século XXI e o ano de 2011/2012, tornei-me em nómada (editando a espaços na Guerra e Paz, na Quidnovi, na Mareantes, na Hugin, na Quetzal, na Magna, etc, etc.), aliás em consonância com um período instável em que o mundo editorial se ia reestruturando, modelando-se de modo bipartido; de um lado os grupos económicos, do outro lado as pequenas e algumas pequenas-médias editoras que decidiram persistir, fazendo interagir os fundamentos do apego estético com a sobrevivência. A partir do princípio da segunda década do nosso século, tornei-me escritor da Abysmo em conformidade com esta lógica de relativa bipartição. Finalmente respirei fundo e passei a sentir que tenho um editor a sério e uma resposta adequada para os meus projectos. Finalmente respirei fundo e passei a ter ao meu lado um conjunto de outros escritores fraternos, cúmplices e extremamente estimulantes. Deixando a questão editorial e focando-me agora nos autores e nos leitores, concluiria que vivemos num mundo em que o escritor já não é um senador espiritual como o era Aquilino no seu tempo, por exemplo. Na nossa época, os heróis estão na imagem móvel, nas efígies digitais e no tempo real, não passando de figurações frágeis e efémeras (a própria inflação de festivais e de festas literárias ilustra este lado redundante da espectacularização). Por outro lado, como o objecto livro passou a ser anfitrião de muitos outros registos para além do literário (daí que o número de livros que se publica por ano seja descomunal), os escritores que fazem literatura e que trabalham plástica e inventivamente a língua portuguesa – uma extrema minoria – tornaram-se em matéria de nicho. Distantes dos palcos, dos holofotes e da procura de massa, os escritores regressam hoje à tranquilidade das pequenas arenas em que o encontro com os seus leitores se pode, por vezes, tornar mais autêntico, mais familiar e até mais próximo.

Divides a tua vida entre a universidade em Lisboa, onde és professor, e a tua escola de escrita em Lisboa, a EC.ON (Escrita Criativa Online), onde além de cursos que ministras, desenvolves um programa semanal, aos Sábados, de encontro entre escritores e leitores. Quais as grandes diferenças entre o que ensinas na universidade e o que ensinas na EC.ON? 

As matérias que lecciono na EC.ON são directamente ligadas à escrita. A designação “escrita criativa” é de origem anglo-saxónica (remonta aos fins do século XIX, nos EUA, tendo tido um incremento muito grande depois da década de 50 do século XX) e corresponde a uma actividade que é genericamente vista com alguma ‘desconfiança’ no sul da Europa. Trata-se de um preconceito, na medida em que, ao falarmos de escrita, falamos, inevitavelmente, de um processo que promove um saber associado ao domínio da plasticidade da linguagem. Passo a explicar porquê. Todos os processos de escrita implicam quarto ordens: a ordem interpelativa (meramente transitiva e instrumental), a ordem estética (aberta ao poder metafórico, combinatório e rítmico), a ordem semiótica (ligada à capacidade metatextual) e a ordem do jogo (no sentido da expressão enquanto desejo/inscrição). Num laboratório de escrita, tal como acontece nos universos da química, é possível isolar cada uma destas três ordens e testar-lhes os limites. Uma tal prática oficinal pode e deve ser cooperativa (ou colaborativa), visando três objectivos claros: desenvolver potencialidades, incentivar a inventividade e alimentar a expressão própria. Ao percorrer estas três vias objectivas, a escrita criativa promove realmente um saber associado ao domínio da plasticidade da linguagem, enquanto expressão (pragmática) que desafia o sentido. Deste modo, o papel essencial da escrita criativa passará por entender a linguagem como uma plasticina moldável e, portanto, capaz de optimizar as ferramentas e as técnicas que processam a expressão. Não se trata, pois, ‘de ensinar a criar’ e/ou ‘de ensinar’ a ser escritor! Postular estas possibilidades seria algo, no mínimo, infantil. Na EC.ON, que é um projecto livre e aberto, oferecem-se hoje quase noventa cursos online (desde a escrita literária à escrita comunicacional, desde as escrita para crianças à escrita para a rede, etc.), sendo a maioria dos docentes escritores. As sessões presenciais que desenvolvemos nos sábados à tarde desde Janeiro de 2014, conhecidas como “Cursos Ícone”, convidam escritores a reflectirem sobre as suas oficinas literárias, sobre os seus processos criativos e sobre o seu universo de referências literárias. Quanto à universidade, devo dizer que abandonei a vida académica plena e activa há uns anos. Não me refiro a dar aulas, pois continuo a dá-las, mas sim aos pressupostos que implicam investigação organizada, arguições, orientações, reuniões e outras actividades que considero cada vez mais burocráticas, desmobilizadoras e redutoras (Bolonha criou virtudes de transversabilidade e de proximidade, mas contribuiu para baixar imensamente as fasquias nos dois primeiros ciclos de estudos universitários). Não tenho saudades da universidade.

17 Fev 2017

A cara do que não dura    

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é porque Deus não existe, que o humano deixa de pensar. E entenda-se pensar em sentido kantiano, em sentido de um para além do conhecimento, um para além do que nos é possível conhecer. Assim, o verso “que vida tem afinal a morte” (p. 29), é um verso fincado num assombro para além do conhecimento, fincado nas inóspitas terras da metafísica. Esta breve introdução serve de pretexto para falarmos de um livro do poeta Miguel Manso, Supremo 16/70, Artefacto/Sr. Teste, 2013.

À imagem de um livro acerca do qual já aqui foi lido, Fera Oculta, de Vasco Gato, também este é um livro escrito (embora este seja anterior ao de Vasco Gato) sob a égide de uma pessoa. No caso do poeta de Fera Oculta era o filho do poeta, que estava para nascer; neste caso de Supremo 16/70 é o avô do poeta, que acabara de morrer, “agora que ardeste / e nos choveu o cinzento do que foste” (p. 12). Parafraseando José Régio, só a morte nos guia e mais ninguém. E este é um livro que nasce desta consciência, e do confronto entre a acção e a memória, entre a alegria do amparo e a tristeza da perda. Acerca da alegria, em forma de memória, leia-se:

XIII

julgava ser isso a alegria:

ver-te debaixo da parreira varrendo a farinha dos sapatos

deixavas o ouro do teu ofício sobre a mesa

abeirávamo-nos do almoço

E leia-se um poema onde a perda se faz sentir, como uma lâmina:

X

herdei de ti a máquina de barbear

(eu que não faço a barba)

para enfrentar o terror de limpar os teus

pelinhos póstumos

escanhoei o rosto e durante semanas

aleijei-o com o teu cheiro

Toda a escrita, na sua essência, são cartas escritas a nenhures para nós mesmos, e este livro fá-lo exemplarmente. Mas fá-lo, não centrado (ou somente centrado) em si, na dor da perda, mas também na dor daquele que estava à beira de ser perda; centrado também na dor do avô. Muitos são os versos que captam ou tentam captar a dor do fim, a dor de estar a acabar-se tudo. Há uma dupla dor neste livro: a do narrador e a do narrado. O primeiro sente a vida através da perda, e mostra isso em inúmeros versos, o segundo sente (deixa-se sentir na pena do neto) a vida “tremendo de velhice” (p. 20) Neste livro precioso, Miguel Manso traça a vida do avô desde o seu abandono à velhice, “contemplas pretéritos a essa luz” (p. 20), passando pelo corpo sem vida, a aguardar o que se faça dele, “estás tão despido como no começo” (p. 33), ao momento em que se torna cinza “e nos choveu o cinzento que foste” (p. 12), até que finalmente se torna verso, “e o que nesse canto me ofereceste devolvo / pior no recanto tardio de uns versos” (p. 16).

Tal como o poeta escreve no poema XII, “(…) como habitar este corpo / suspenso entre limites” (p. 26), trata-se também de um livro, como já havíamos visto na introdução desta leitura, que coloca as perguntas metafísicas da existência, para além de todos os detalhes e mentiras ou factos biográficos. Miguel Manso faz do avô, assim como mais tarde Vasco Gato irá fazer com o filho por nascer, um ser para sempre. Quando se lê um verso, que está entre aspas, sugerindo uma fala daquele que está a ser narrado ‘“já cá não estou a fazer nada’” (p. 13), sentimo-lo como sendo uma fala universal. Na verdade, é uma fala universal e impessoal, de todos e de ninguém, embora no poema seja a única fala pessoal, e que em algum momento feriu mais do que agora ao ler nos fere.

Num poema os versos não são apenas palavras. O poema usa as palavras como a acupunctura usa as agulhas, como instrumentos para atacar os nervos. Entre os nervos e a intenção há uma agulha, um verso. O verso entrepõe-se entre o conhecimento e o pensar, entre aquilo que se pode saber, através da experiência, e aquilo que não se pode evitar pensar, ou porque nos angustia ou simplesmente porque nos rouba o ponto de vista usual do dia a dia. É o caso da morte de alguém próximo, é o caso de uma descoberta para nada, como entender que se quer dizer e não haver palavras com que dizer. Escreve o poeta, no seu último poema, o único poema vestido de prosa: “(…) Não entender, estender-se, no vazio. Ainda / tratamos por aqui de coisas imaginadas, imagináveis. / Dentro delas ou fora, dentro-fora, há inimaginações / insuportáveis, alargando em complexidade e alheias / (como assim?) à linguagem. (…)” (p. 39) O escândalo entre haver o que sente e não haver como dizê-lo, o escândalo de um verso iluminar este imaginado inimaginável, o escândalo da proximidade entre a morte (essa desconhecida) e a linguagem (essa estranha). E “Como assim?”, pergunta que revela o escândalo de não se saber o que se está a passar, fica ainda mais acesa entre parêntesis, como que indicando que o que é importante em nossas vidas é sempre entre parêntesis. É entre parêntesis que a vida se passa. É no parêntesis do quotidiano que as perguntas fundamentais são feitas. Leia-se o poema III, à página 15:

paraste numa rua decaída

como o Sol

o abatimento da bengala tornando

devagar a caminho de casa

única cedência da alegria

o perfume das laranjas o complô

acriançado dos pássaros o branco fabuloso

desses muros – se afastasses da ideia

o aperto que arquitectam –

alguém te chamou, olhaste

saudou-te com um entusiasmo forçado e no fim

trocou o teu nome pelo nome do teu pai

(eu só te conheci a mãe)

não corrigiste esse nem nenhum

outro desacerto

(o mais premente e perturbador de todos

visto assim não tem cura)

e seguiste à sombra do teu morto

ainda mais calado

O poema III mostra-nos aquilo que dissemos anteriormente, mas de um modo magistral, de um modo que só a grande poesia consegue, nesse seu modo particular de viver entre o dizer e o saber que é impossível fazê-lo, nesse modo que não é apenas o de um avô, mas o de todo aquele que está condenado a viver o seu melhor entre parêntesis, o modo de seguir à sombra do nosso morto, ainda mais calado. De que adianta corrigir o que quer que seja, se é a vida ela mesma que fará todas as correcções necessárias, principalmente as que não têm cura? Um dos versos que o poeta escreveu, logo no primeiro poema do livro – “e tem a cara do que não dura” (p. 12) – responde a esta e a todas as questões do humano, porque a finitude dói mais do que a ausência de Deus. Terminemos esta leitura com esta cara, a cara do que não dura, que não é só um humano na sua vida, mas também um humano na sua vida a ver e a sofre com outro, com um outro poema de Miguel Manso, à página 32, onde o poeta faz da dor do outro a nossa dor, mostrando claramente que esta não é menos que universal.

XVIII

o instante em que desligas a tv

é tarde e todo o desgosto mal contigo

tomba turvado nos teus braços

e secaram-te as lágrimas.

14 Fev 2017

Ler mal poesia é como expulsar um homem da vida

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ouco se tem escrito acerca da poesia de Nuno Moura. E não devemos atribuir isso à falta de qualidade da sua poesia, mas antes, como muito bem escreveu o poeta e crítico Henrique Manuel Bento Fialho in “Antologia do Esquecimento” (13 de Dezembro de 2014): “A desfortuna crítica a que tem sido sujeita a poesia de Nuno Moura (n. 1970) concorda com a suspeição de uma cobardia latente nos recenseadores nobiliárquicos. Seria possível fundamentar uma censura da linguagem praticada pelo autor de Nova Asmática Portuguesa (Mariposa Azual, 1998; 2ª edição, 2013) ou simplesmente cair na ladainha laudatória e afectiva do costume, mas ignorá-la denota um incómodo que a singularidade de uma voz desde sempre diferente das restantes pode provocar mas não justifica. Não justifica, sobretudo, tão confrangedor silêncio.” Mais recentemente, a 17 de Dezembro passado, o também poeta e crítico Manuel de Freitas escreveu no Jornal Expresso acerca de um dos mais recentes livros de Nuno Moura, Clube dos Haxixins, Douda Correria, 2016. Escreve o crítico, logo no início da sua resenha: “O modo como Nuno Moura não leva a sério a poesia sempre me pareceu importantíssimo, coerente e apelativo. Reconheçamos, porém, que situar a sua dicção anarco-tardo-surrealista-lisboeta-até-ao-osso é tarefa tão inglória como decidir em que género musical se deve arrumar John Zorn.” A atribuição de uma singularidade de voz a Nuno Moura é comum a ambos os críticos.

O que é a poesia para Nuno Moura só ele poderá responder, mas ao nos interrogarmos perante os seus livros, as suas várias editoras e a multiplicidade de eventos de poesia em que vem participando e promovendo ao longo de quase duas décadas, somos levados a crer que a poesia é a sua vida, ou que a poesia é o que há de mais sério na sua vida. A poesia é um modo de habitar o mundo, assim como o é a mecânica quântica ou a música. E o mundo de Nuno Moura é o mundo da poesia, ainda que a sua poesia possa ser muito diferente da poesia da moda, se é que a há, da poesia anti-moda ou até da poesia sem moda nenhuma; uma diferença que não tem medida, porque suspeito que não haja medida para a diferença.

A Minha Casa é um livro que saiu pela primeira vez em A Voz de Deus, das Edições Mortas, em 2004, e foi agora re-editado, em 2016, pela editora Tea For One. E o terceiro verso do pequeno livro-poema de 12 páginas (o livro tem 15) é: “Desenho vestidos para a minha mãe fazer.” E este verso poderia muito bem ser o que melhor define a poesia de Nuno Moura: apontar caminhos para aqueles que ama; sonhar, não com quem se ama, mas com o que se deseja para aqueles que se ama. Um poema em Nuno Moura não é apenas um lugar de chegada, um bar onde nos sentamos, tiramos os casacos e bebemos um chá ou um whisky, com um ou dois dedos de conversa ou de leitura. Um poema em Nuno Moura é também um modo de se manter de pé, de copo na mão, falando com todos e com ninguém, como quando saímos de casa para ir à rua. Dito de um outro modo: apesar de um poema tentar inventar um mundo para aqueles que ama, ele habita o enorme mundo dos outros que não se ama e nem se odeia, o enorme mundo do desinteresse humano. É como se os poemas de Nuno Moura tivessem um pé no amor e outro no caralho “ta” foda. E escreve Nuno Moura à página 9:

Pequeno Moura – Tenho os pés frios.

Mãe Moura – É mentira tudo o que se fala do tempo,

filho.

O desconcerto dos versos de resposta, está tanto na palavra “mentira” quanto na palavra “tempo” ou na palavra “filho”. “Mentira” atinge porque desacredita a dor do filho, “tempo” atinge porque não podemos deixar de ver o tempo que passa ao invés do tempo meteorológico e “filho” porque esta palavra nos aparece no final destes versos falha de afectividade, ou pelo menos assim parece. Não podemos dizer que na poesia de Moura o que parece é. Nos poemas do poeta o que aparece é e o que não é passa a ser, como no exemplo do tempo, dos versos acima citados. Estamos sempre naquela encruzilhada entre uma afectividade gigante e um desinteresse maior, assim na vida como no poema. Aquilo que tu sentes não interessa para nada, e aquilo que eu sinto é o sol do universo. E de uma pequeníssima semente de atenção pode brotar uma árvore gigante, um casamento. Sérgio Godinho canta na sua canção “Caramba”, “já que o futuro vem / em peças separadas p’ra montar”, e na poesia de Nuno Moura sentimos que os próprios passado e presente também vêm em peças separadas p’ra montar; a vida vem em peças separadas p’ra montar, e a poesia de Nuno Moura é o reflexo maior disso mesmo.

Tenho por vezes a sensação, se aparecer alguém

e me empurrar contra a parede eu fico com os braços

levantados e caio para a frente.

Se eu cair no chão e disser “vou desmaiar” eu desmaio,

se eu disser “eu vou para outro mundo” eu morro.

Se alguém me amparar eu caso.

Por outro lado, e também tal como na vida, não há elementos que não sirvam para um poema. Não há hierarquia na página de papel onde o poema se desenha. Números (528), datas (Natal de 1977), partidos políticos (pp, partido comunista), lojas de roupa (La Redoute), detergente de loiça (superpop), estações do metro (Sete-Rios), bifes, pneus, pilas, deus e, ainda, o diabo a sete; tudo serve para um poema. De um modo ou de outro, tudo faz parte da vida e o poema não deixa nada, do que é da vida, de fora. Tudo o que vem à rede pode ser poema. Porque é na fragmentação que se encontra o sentido. Dito de outro modo: a realidade aparece-nos estilhaçada a cada instante e o sentido, no poema, faz-se na projecção desses mesmos estilhaços, isto é, na invenção de estilhaços de modo a mostrar a multiplicidade de outros que habitamos. Não estamos diante de uma poesia fenomenológica, mas na sua antítese. E antítese, não enquanto tematização, mas enquanto sentimento do real, enquanto circunscrição ôntica e não ontológica.

Pequeno Moura – I have no problems with Joyce.

Mãe Moura – Melhor para ti, meu filho.

Versos que iluminam bem o que dissemos no parágrafo anterior. Este “I have no problems with Joyce.”, em inglês para reforçar a ideia de que nenhuma dificuldade literária vale um pentelho de vida, é, antes de mais, uma posição poética da vida, que entende a poesia a léguas da literatura e do circo da mesma, com os seus elefantes amestrados, hebdomadários (como eu mesmo aqui), professores universitários e ensaístas. “I have no problems with Joyce.” O meu problema é, como ele escreve quase já no fim do livro, “(…) Finjo que te amo quando caminhamos / por uma zona onde podemos ser assaltados. / Eu finjo a coragem e o acolhimento.” É com a vida que o poeta tem problemas, adivinha-se. É com o amor, que se tem e não se tem – mas ainda assim temos de ter de alguma forma, porque mesmo sem amor amamos os outros – que o poeta tem problemas. É com “esta zona perigosa”, que pode ser um qualquer momento da vida, que o poeta tem problemas. Com Joyce? None! Nem unzinho pra amostra. E Nuno Moura estabelece uma tautologia sui generis, que identifica o mal, só possível para quem a vida é a poesia e a poesia é a vida: quando um homem diz a outro “vai-te embora” é um extremo de mal idêntico a escolher um livro de poesia para ler aos amigos e lê-lo mal. Ler mal poesia é como expulsar um homem de casa ou um homem da vida. Antes de terminar com os versos do poeta, lamento que esta edição tenha apenas 100 exemplares, mas fico muito contente por uma ser minha.

Mãe Moura – Andam a bater bifes

no prédio vazio ao lado.

Grande Moura – O que é que se passa?

Mãe Moura – Só se conhece um homem

no seu extremo quando ele diz vai-te embora

ou quando ele vai escolher um livro de poesia

para ler aos amigos e o extremo é ele ler mal,

mal, mal.

7 Fev 2017

Luís Brito: “Escrevo tanto o que vivo como o que penso”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pesar de ainda só teres 30 anos, tens três livros publicados: Alcatrão (Abysmo, 2013), que é um livro de viagens, Arigato, eu (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016), que relata a tua experiência no Japão, e Jejum (Tea For One), que é um livro de poesia. Julgo que os teus livros deveriam ir para Macau, pois além de serem bons (escrevi uma pequena resenha sobre Alcatrão, para uma revista brasileira), inscrevem-se num universo muito caro às pessoas que ali vivem. Viajaste desde o Chile à Índia, passando por África e, mais tarde, passas uma longa temporada no Japão. Acerca de Alcatrão escrevi: “O viajante tem, em suma, de transformar-se em um sem-abrigo. Só nesta condição todo e qualquer metro quadrado do planeta se transforma em sua morada e esta em sua possibilidade de ver o mundo. A dúvida acerca da proximidade e distância entre viajante e sem-abrigo, é, aliás, exposta em algumas passagens do livro.” O que te leva a viajar é o mesmo que te leva a escrever? São da mesma ordem, esses movimentos, para fora e para dentro?
A verdade é que gosto de viajar como um zarolho. Um olho aberto e outro fechado, sabendo que o primeiro vê o que vai lá fora, e o segundo espreita para dentro. A meu ver, as viagens devem ser simbioticamente exteriores e interiores, pois é nos espelhos do mundo, e na autoconsciência do que eles reflectem em nós, que está o verdadeiro crescimento. E isso aparece-me na escrita. Escrevo tanto o que vivo como o que penso, sabendo que pensar é viver. E viver sem pensar é-me impossível. O que me leva a viajar talvez seja o mesmo que me leva aos livros: a curiosidade, virada para o mundo e virada para mim, e ainda o encontro com o homem nas situações mais exíguas, sem quaisquer luxos ou distracções, onde a sua natureza mais crua se revela.

Recentemente numa entrevista disseste, e passo a citar-te: “O lançamento do livro é um desporto com cada vez mais popularidade. Em Lisboa, em Portugal, no Mundo, e eu também aderi à modalidade.” Achas que deixámos de ler, para ir aos lançamentos dos livros? A literatura e a poesia passaram a ser fait divers?
É difícil que os livros tenham a importância que merecem, quando há cada vez mais informação, eventos, actividades e ideias. Eu próprio sou um mau leitor, por isso essa frase, em tom de brincadeira, é antes de mais uma auto-crítica, mas sempre é melhor as pessoas irem aos lançamentos do que não irem de todo, assim lá se aumenta a probabilidade de lerem, e pelo menos o autor tem o prazer de ver caras queridas. Se os lançamentos e as obras modernos são fait divers? Talvez seja verdade, mas pelo menos não são dos piores. Sempre se aprende qualquer coisa e, salvo as árvores que se decapitam para dar lugar às folhas de papel, na arte normalmente ninguém sai prejudicado.

Além de viajares por países em modo pouco turista, vives também de um modo pouco turista, apesar de dependeres deles. Trabalhavas numa agência de publicidade e despediste-te para passares a tocar hang drum (ou cataplana, como eu lhe chamo) para os turistas. Esse teu modo de viver continuamente sem rede é fascinante. Não consegues mesmo viver como os outros?
Tanto no que toca às viagens, como a esta nova carreira de músico de rua, as pessoas costumam dizer-me que sou um tipo de coragem. Eu respondo-lhes que corajoso seria se me mantivesse muito tempo no mesmo sítio, por exemplo, fechado num escritório. Há, sem dúvida um contra senso: sou anti-turista e agora vivo do turismo. Pode-se dizer que faço haiki-dô, usando a meu favor a força do inimigo. No entanto, este trabalho permite-me viajar sem sair do sítio, pois contacto com gente de muitos lugares, acabando até por conhecer também alguns viajantes pouco turistas. E da fissura entre essa ideologia e a prática concreta, pode nascer um caso de estudo, aliás, ando a escrever sobre essa experiência. Se não consigo viver como os outros? Cada um é a vida como ele a vê. E a verdade é que estas opções que tomo não são assim tão radicais, se as compararmos a um nível global e aos verdadeiros loucos, os que fazem coisas verdadeiramente audazes, arriscando a vida e até a vida dos que lhes são próximos, ou viver uma vida longe deles.

Concordas com esta frase: “viajar é um exercício de tentar perder-se de si, um dos caminho mais rápidos em direcção a nós mesmos”?
Não só concordo como subscrevo, e atrevo-me a corrigir. É o mais rápido e o melhor, pelo menos tal como eu concebo a vida. Para nos tornarmos em quem somos, precisamos de nos soltar do mais possível do que nos ensinaram, do que aprendemos, do que vivemos dia a dia sem perguntar, a famosa zona de conforto, a acumulação de ideias que temos sobre nós mesmos. No vazio, no anonimato e na errância encontramos mais e mais camadas de força e inteligência, além da tão necessária capacidade de fazer contacto humano. Quanto mais diferente de nós for o outro, mais intensa pode ser a catarse. É um lugar comum, mas a verdade é que só nos perdendo nos podemos encontrar.

3 Fev 2017

Estelle Valente: “Gosto de fotografar aquilo que não existe”

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]asceste em França, onde cresceste e estudaste economia, mas acabaste por vir para Portugal, terra dos teus pais, e tornaste-te fotógrafa. Hoje és mais conhecida por ser a fotógrafa oficial da cantora de fado Gisela João. Que te levou a vir para Portugal e deixar a economia para te tornares fotógrafa?

Porque é que larguei tudo em França para vir viver para Lisboa? Essa deve ser a pergunta que mais me fizeram até hoje e, como muita coisa na minha vida, não tem uma resposta racional. É algo que sentia em mim há muitos anos. Sabia que o meu destino, o meu « fado», era aqui. É difícil explicar. Precisei de quase dez anos para tomar essa decisão. Temos várias vidas na nossa vida e eu já tive muitas. Não tenho medo da mudança, de mudar de área. Gosto sempre de experimentar coisas novas. A fotografia nasceu um pouco dessa mudança. Quando cheguei a Lisboa não conhecia quase ninguém e tinha uma sede de descoberta. Comecei a sair sozinha, a eventos culturais, à noite, e a máquina fotográfica foi naquela altura a minha companhia. Deu-me uma segurança e foi fundamental para o meu crescimento, eu que sou uma pessoa bastante tímida. E dessa companhia nasceu uma paixão. Comecei a fotografar muito. Depois aconteceu um daqueles encontros que mudam a vida de uma pessoa: e o meu encontro com a Gisela João foi um deles. Ela não era conhecida na altura e comecei a fotografá-la. Depois saiu o primeiro álbum dela e foi o impacto que foi. Desde então crescemos juntas. No panorama actual da música existem poucos casos assim e, por isso, tudo isto me parece único. Ela é a minha Musa, ela é a minha principal fonte de inspiração. Eu vejo nela todas as musas de Gainsbourg.

Fotografas sempre a preto e branco, e especialmente pessoas. Isso deve-se apenas a compromissos profissionais ou é esse o modo como entendes a fotografia?

A arte, e aqui a fotografia, é um pouco o reflexo daquilo que somos e muito das nossas imperfeições. E por isso as minhas fotos são frequentemente melancólicas, sombrias, misteriosas, poéticas, paradas no tempo. Isso deve ser um pouco aquilo que sou.  E só o preto e branco me permite isso. Também poderá ter a ver com a noite que eu associo muito aos tons pretos e brancos. O que me fascina na noite é que tudo parece possível, como se não existissem limites. E também vejo isso no meu preto e branco. Com o preto e branco consigo transmitir exactamente aquilo que quero, a história que quero contar. É algo mais forte, com mais contraste e impacto. Gosto de brincar com as sombras, ao fim ao cabo com a minha própria sombra, com o meu lado escuro. O facto de fotografar pessoas deve-se ao meu percurso profissional, foi assim que as coisas foram acontecendo ao trabalhar muito com a Gisela e no Teatro São Luiz, onde tenho feito imensos retratos. Mas confesso que o que me interessa mais na fotografia é a ausência, é justamente poder contar a história de alguém sem ele estar presente fisicamente. Gosto de fotografar aquilo que não existe, eu sei que pode parecer estranho. A minha liberdade de imaginação é muito maior nesse caso.

O que é que mais te fascina na fotografia? No fundo, e isso poderia ser aplicado a outros fotógrafos, muitas das tuas fotografias são como poemas.

A liberdade de poder contar uma história de uma forma directa e imediata. Essa possibilidade de construir um poema visual. Agrada-me o facto de ter vários olhares sobre uma foto. Digo sempre que numa fotografia há três histórias: a história real do momento que estou a fotografar, a história « inventada » que eu quero contar e que muitas vezes as pessoas não percebem e, por fim,  a terceira história, a da pessoa que está a olhar para a foto e cuja imaginação pode ser estimulada por esse olhar. O mais bonito é que acabam por ser sempre três histórias diferentes. E é essa magia que me fascina na fotografia. Por isso é que criei há alguns anos um blog onde convido « amantes da escrita » a escrever um texto (um poema ou um conto) inspirado numa foto minha. O resultado tem sido fascinante e muito inspirador ao ver o que as pessoas imaginaram perante uma foto minha sem eu nunca ter pensado nisso nem ter tido a mesma leitura.

E o que te fascina tanto em Lisboa?

A luz, sem dúvida. Por vezes as pessoas que vivem aqui não têm essa noção mas Lisboa tem uma luz diferente, uma luz que penetra e que transforma a tua alma. E essa luz mudou-me de uma forma que dificilmente consigo explicar.

Quais os teus projectos para este ano e quais os sonhos?

A minha vida é feita de sonhos! Projectos concretos tenho alguns, que não posso revelar ainda, mas posso dizer que em breve haverá uma (ou duas) exposições em Lisboa, e provavelmente a edição de um livro. E um projecto com uma passagem por Paris, como não podia deixar de ser. Acima de tudo, quero fugir do óbvio e daquilo que toda gente espera. Quero seguir o meu instinto, foi sempre ele que me guiou até hoje.

1 Fev 2017

Tâmaras

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]âmaras (Douda Correria, 2016) é um livro que, logo pelo título, nos remete para outras geografias, para outras latitudes, outras paisagens, outras referências culturais a que não estamos habituados: Tel Aviv, Jerusalém, desertos, Talmud… O próprio fruto, Tâmaras, quer dizer em árabe “dedo de luz”. E embora o poema que dá título ao livro pareça estender-nos um tapete de leitura muito mais prosaico do que o significado da palavra em árabe, que também é língua oficial em Israel, país de onde vêm as tâmaras que o poeta come no seu poema, a verdade é que este dedo de luz está intrinsecamente ligado à poesia de João Paulo Esteves da Silva ou, pelo menos, a este seu livro. Escreve o poeta no final do terceiro poema do livro: “seguramos nestas ferramentas / que quase não existem / e fazemos coisas do outro mundo.” As coisas de outro mundo sugere uma separação, um corte entre um mundo e outro mundo, ou entre o humano e a natureza ou entre a arte e a vida. Esta separação existe para o poeta, como se pode ler em “Profecia mínima”, a separação entre um prelúdio em si bemol menor e a vida de um pardal:

Quando menos se espera, começa
a chover sobre a erva seca.
O pardal pousa na soleira,
sacode as penas,
fica uns segundos a ouvir:
– o prelúdio em si bemol menor
do segundo caderno.
Aparentemente, aquilo
Não lhe prende a alma.
Voa por entre as gotas
grossas
de Maio.

Ainda que esta separação exista, ainda que ela aconteça, o advérbio “aparentemente”, no início da penúltima estrofe, ilumina a possibilidade de haver uma misteriosa e desconhecida ligação entre a alma do pardal e o prelúdio que se escuta. Tâmaras é um livro misteriosamente metafísico e anti-metafísico. Metafísico, porque mergulhado profundamente no mistério e na aceitação de que viver é um contínuo não se saber o que está a acontecer; anti-metafísico porque entende o “para além” como inexistente e absurdo. Leia-se o poema “O filósofo”: “Hoje, / mudei as fraldas / ao meu mestre de filosofia. / Pairava no quarto um cheiro / levemente azedo / que não me incomodou. / Continuou a dar-me lições. / O eterno retorno existe; / é esta a opção; / se não quiseres, há outras, / por exemplo: / Confia no que não existe. Tenta não olhar para trás.” Aquele “confia no que não existe” atinge-nos como uma autêntica pedra. Podemos ler essa frase literalmente, metafisicamente, ou ironicamente, anti-metafisicamente. Por outro lado, confiar no que não existe não é somente confiar em Deus ou em teorias improváveis ou inexplicáveis. Confiar no que não existe é também confiar na vida que temos, isto é, no tempo que somos. Nós vemo-nos no futuro, ainda que o futuro seja um dia depois ou as próximas férias ou o próximo ano, embora esse dia não exista, embora esse cada um de nós lá, nesse dia, não exista, tal como o próprio poeta escreve, num poema quase no fim do livro, “Ainda outro fim”: “Sabes, acredito no futuro, / confio muito no que não existe”. O que faz deste livro uma enorme clareira de paradoxo. De um modo talvez melhor: este livro ilumina o paradoxo que somos, de um modo muito particular, não só pelas referências e um olhar quase estrangeiro, mas também pela aceitação em guerra, que se tem com a nossa situação, a deriva constante entre metafísica e anti-metafísica. Se se lê “confia no que não existe”, como ironia ou até sarcasmo, também se pode ler literalmente, como por exemplo no “Prólogo”, primeiro poema do livro, “Dentro dos sons / ouve-se sempre um chapinhar” ou ainda o verso já aqui lido, “fazemos coisas do outro mundo.” Que são mesmo de outro mundo, literalmente, pois a arte, a palavra, no fundo, a expressão humana é outro mundo em relação à natureza. Mais: a arte é outro mundo em relação a nós mesmos.

O livro vive também da irreconciliação entre os tempos que somos. E nestes tempos que somos, ainda a soma dos lugares aonde vamos sendo, muitas vezes nem sequer por ordem cronológica, ou sentidos sem cronologia, como no belíssimo “Tel Aviv”:

Não se explica o amor
nem se é amor o amor
Aqui sinto-me bem
no sentido mais estúpido do termo
talvez eu seja daqui
ou então tenha sido feito para chegar aqui
a estes pátios floridos
e ao barulho do mar junto à janela
Mas, se calhar, nem uma coisa nem outra
e o sítio sem argumentos
é o meu lugar fora do tempo
lugar de todos os tempos
Talvez o pó de estrelas mortas
de que sou feito seja o mesmo pó do deserto
que me irrita a garganta
agora
no oásis
com amor

Contas feitas há só uma coisa que sabemos, ainda que não se saiba bem, como tudo ou quase tudo do humano: o amor é um oásis. E uma vez mais o paradoxo ilumina-nos, pois o amor não se explica, nem sequer se é amor, mas ele é um oásis, e isso é identificável; isso sabe-se, na garganta que não fica irritada com o deserto e com o deserto da vida. Não se explica o amor e nem se reduz o mesmo ao que quer que seja. O amor aparece como aquilo que faz sentido, o que confere sentido à existência, foi o que nos fez chegar aqui e o que nos mantém aqui. O tempo é um estado de consciência, ilumina-nos o poema “Estados Alterados de Consciência”: “A furgoneta deitada sobre o lado esquerdo, / rodopios, som de metal raspando o asfalto, / chispas, e o tempo pára. / Os segundos do acidente duram anos / (…)”. Já o sabíamos antes, com outros poemas lidos anteriormente, mas aqui a iluminação fica mais intensa, e o tempo vê-se melhor, como se ele fosse agora espaço, como se fosse, por exemplo, o gesto em que morre a infância: “Já o amigo a trair-me em plena batalha, / naquela última guerra de fisgas / com abrunhos, / aí sim, doeu que se fartou. / E a infância morreu.” (Início da última estrofe do poema anterior)

No poema “Na colina” vemos a silhueta definida de como o poeta vê a vida, algo que podia ter sido ali, (…) mas não era ali. Aquilo que mais interessa ao poeta, tal como escreve num poema quase no início do livro, “Rua Barros Queirós”, “também eu, prefiro a vida”, parece a cada poema, a cada página ser um lugar fora do mundo à vista. A estrofe final do poema “Ainda outro fim” parece resumir as linhas de força deste livro, que temos tentado fazer ver: “Isto não vai durar muito / os dias acabam repetidamente / e quando nascem vêem cheios de noite. / Sempre gostei das tuas luzes escuras.” Podíamos usar para a vida o mesmo verso que o poeta brasileiro usou para o amor: a vida, isto, não dura muito, mas enquanto dura é infinita; para o bem e para o mal. Perpassa ao longo do livro uma ambiência ligeiramente estranha, como a própria vida de cada um para si mesmo. Deixo-vos agora com um último poema de João Paulo Esteves da Silva:

Ano novo
Voltamos ao princípio,
com uvas, escolas, diospiros.
O ano parte daqui, e recomeça.
Deita-se mais o sol, o dia do perdão ressoa
e paira sobre os outros dias.
Algumas árvores vão ficar sem folhas.
Não leves muito a sério as nossas falhas;
inscreve-nos na vida.

24 Jan 2017

Vasco Gato: “Se há território que não me apetece pisar é o da qualidade poética”

[dropcaps tyle≠’circle’]T[/dropcap]ens 12 livros de poesia publicados, em outras tantas editoras, tão diferentes como o podem ser a institucional Assírio & Alvim (que faz parte do grupo Porto Editora) e a provavelmente mais “underground” de todas as editoras de poesia, a Tea for One. E acabas agora de editar o teu Contra Mim Falo (o conjunto dos teus 12 livros anteriores) noutra editora onde nunca editaras antes, a Plural. Essa contínua mudança de editoras é algo que procuraste, ou que foi acontecendo desse modo? Quais os lados positivos e os lados negativos desse teu percurso único, do ponto de vista editorial?

Essa vadiagem editorial tem a sua génese na recusa de um segundo livro por parte da Assírio & Alvim, onde julgava ter encontrado à primeira a minha casa. Era, na verdade, um conjunto precipitado de poemas. Ainda bem que me fecharam a porta. Tive de seguir caminho e procurar outros lugares. Ganhei-lhe o gosto, a essa sensação de não ter morada, de ter de construir a própria possibilidade do livro a partir do zero. Desde então, publiquei com editoras e pessoas que procurei e que me procuraram. Nunca houve um programa, até porque pende sempre a ameaça de não mais escrever, de não mais publicar. Não vejo lados negativos neste percurso. Não me interessa se a editora é grande ou pequena, se tem canais de distribuição bem oleados. Interessa-me a árvore genealógica do seu catálogo, a cumplicidade que se gera, o empenho a várias mãos para que o objecto cumpra tanto quanto possível o seu fim: ser testemunho de uma recusa do artifício.

Há umas semanas atrás escrevi aqui no jornal acerca do teu precioso livro Fera Oculta, Douda Correria, 2014. Além de muito bom, é um livro muito particular. Gostava que falasses sobre ele, como o escreveste e como depois o levaste a editar.

Esse livro foi escrito da forma mais despojada de intenção. Isto é, os poemas foram escritos como uma espécie de correspondência a um destinatário que se anunciava. São uma sondagem da minha situação no momento, da concomitância de uma angústia material com uma promessa que abrange tudo, que guinda tudo a uma exigência de humanidade — e que humanidade? com que terminações nervosas? Essa iminência da paternidade trouxe, não um elogio ou exaltação do próprio facto do nascimento, mas o pressentimento de uma relação que nos interpela na nossa mais funda solidão. De que materiais nos munimos ao longo dos anos para receber alguém que, não se cingindo à concha das nossas mãos, surgirá como invenção nossa? O livro, parece-me, faz ecoar esse tactear no próprio sangue, essa dificuldade em admitir que traremos o cúmulo do nosso amor para um lugar que, sabemo-lo já, tem um enorme talento para nos confundir e esmorecer. A publicação só foi equacionada posterior e inesperadamente. Aliou-se dentro de mim um convite-desafio que o Nuno Moura me fizera ao desaforo de quebrar o sigilo e dar circulação a essas palavras que, tendo destinatário, não eram mais do que a fractura do esterno para ver o que ainda por lá palpitava.

Para quem, como tu, já publica há quase duas décadas (sim, o tempo passa), encontras alguns pontos de ruptura na tua poesia? Ou vês antes os teus livros como uma continuidade?

Essa é uma questão que me transcende. Ainda agora, na preparação da colectânea, dei por mim a fazer algumas reformulações, sobretudo nos poemas mais antigos. Não queria de todo realizar uma purga, mas também não pude evitar a exigência de confrontar cada poema com o seu centro de gravidade. Isto para dizer que a escrita e a reescrita se focam numa experiência de desassossego, de inabilidade com as palavras, sem um horizonte programático ou uma aspiração de coerência. Quando digo que a questão me transcende não quero dizer que me passem ao lado temas recorrentes, obsessões, certas tendências discursivas. Quero dizer que nada disso é uma preocupação, que nada disso tem importância no momento em que se parte para o poema. É possível não querer repetir-se e ainda assim repetir-se clamorosamente. Se a pergunta for: tentas escrever diferente? Sim, tento. Sem garantias dessa diferença. Mas essa é a derrota que tem de se aceitar como um pequeno veneno. Está perdido, ponto. Agora começa.

E quais as diferenças que encontras entre o tempo em que começaste a publicar e hoje, em relação à poesia em Portugal?

Julgo que a principal diferença é a fragmentação. Quando comecei a publicar havia grandes ilhas editoriais que chegavam a ser uma espécie de calafetagem a ventos nascentes. De seguida, houve entre os mais recentes publicados uma arregimentação quase bipolar, com um aparato crítico posto ao serviço dessa urina territorial. Felizmente, tudo se estilhaçou: as editoras são hoje várias e os nomes circulam em caminhos de cabras sem uma tangente ao desfiladeiro. Se há território que não me apetece pisar é o da qualidade poética. Será maior hoje? Serão tempos de mediocridade? Assumo nesse âmbito uma posição cautelar: não estou em condições de o aferir, não é esse o propósito e será a lâmina da história a cortar as goelas que tiver de cortar. Com toda a injustiça, com toda a falência.

És também tradutor, não só de poesia, mas principalmente de poesia. É uma actividade que favorece a tua própria poesia?

Sou um tradutor de poemas por obstinação e sobrevivência. Fascina-me esse exercício de endireita, de tentar compor músculos e ossos para que, nessa sua nova somatização, o poema possa andar. Claro que há a possibilidade de contaminação com o que escrevo, mas não é nada que me intimide. A escrita sempre foi uma caixa de ressonâncias, sempre teve variadíssimos pretextos, mais ou menos conscientes. Prevalece a maravilha de ir encontrando os poemas alheios nas línguas que conheço e de poder contrabandeá-los.

20 Jan 2017

Desmontar o brinquedo da vida 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o seu melhor, a poesia faz-nos ver. Traz até à nossa consciência uma mundividência, visões às quais o acesso nos é difícil ou completamente vedado. Em Respirar Debaixo De Água (Averno, 2013), Tiago Araújo leva-nos pelas páginas a sentir o que é ter uma vida de empréstimo. A vida surge diante de nós como se não fosse uma vida real, uma vida de verdade, mas antes uma vida que nos foi emprestada. A vida surge-nos como se fosse uma temporada numa casa ou num país emprestado. E, no fundo, é isso que todas as nossas vidas são, embora não as sintamos como sendo assim. Aqui, passamos a respirar isso com claridade, passamos a respirar debaixo de água como se fosse esse o nosso elemento natural. Lê-se logo, na primeira estrofe do livro:

no meu círculo familiar sabe-se

que na infância estive quase a afogar-me

num rio calmo. a gravidade da situação pode ter sido

exagerada, mas essa tarde quente tornou-se numa das ficções que

ajudam a definir a personalidade.

alguns anos depois passei a ver-me como

o afogado, o rapaz que respira debaixo de água

onde os sons são distorcidos à passagem da boca. (…)

Aquele que esteve à beira da morte, ainda antes mesmo de saber o que é temer a morte, antes de saber que a morte é o caroço da vida, como é o caso da criança, passa a assumir esse evento da sua vida como constitutivo do seu ser. E, como é bem de ver, o que menos importa aqui, como em todas as visões, é se há alguma correspondência entre a poesia e os factos. Aqui, no livro, é assim. Aqui no livro, um homem caminha com a vida que podia não ter sido, com a consciência aguda de ser uma vida que só foi até ao momento de poder não ter sido. E, a partir desse momento, ela faz-se sentir como empréstimo; como se tivesse espatifado o carro e alguém lhe emprestasse um outro até que resolva a situação. E a situação não se resolve, porque a situação é a vida. E, por isso mesmo, a continuação do poema que lemos atrás, diz:

como é habitual nas pessoas a quem é dada uma

segunda oportunidade, tenho-a desperdiçado

sem sentimentos de culpa (…)

A vida, a única que se tem, passou a ser sentida como uma segunda oportunidade, que é desperdiçada, e que é também uma metáfora poderosa acerca da condição humana. Por exemplo, quem já não deu conta de si a pensar: “como vim parar aqui a esta vida?”; “que me aconteceu no tempo que passou?”; “que fiz eu da minha vida?”. São tudo formulações, e outras há, de espanto por se estar na vida, numa vida que não parece ser a nossa, mas que também não há outra. Esta distorção existencial, esta dobra no tempo, esta duplicidade de nos vermos a nós mesmos como se não fôssemos nós, aparece de modo particularmente feliz nestes versos de Tiago Araújo, ainda no primeiro poema do seu livro:

sinto a adolescência como um membro amputado que

continua a doer depois de desaparecido, uma

dor fantasma num corpo fantasma, trazido de uma era

em que a música começava a definir a personalidade e a hiena

do desejo

inaugural e não saciado

devorava as entranhas durante todo o dia, durante

toda a noite.

(…)

depois, como sabes,

entrámos todos na vida adulta como

quem no mar sai para fora de pé

(…)

a realidade, como a água, devolve sempre os corpos que engole.

(…)

Esta consciência de que a vida nos falta, que há qualquer coisa que nos falta, não se fica apenas por aquilo que já foi, como a adolescência amputada pela realidade da vida adulta, a vida falta-nos a cada instante, porque nós estamos no mundo como sonâmbulos, não só em relação ao mundo, mas principalmente em relação a nós próprios: “na infância ensinaram-me como é perigoso / acordar um sonâmbulo, lição que tenho / aplicado de forma exemplar em relação a mim próprio.” (p. 8) Embora no poema, o poeta se refira apenas a si mesmo, podemos alargar a acusação a todo o humano, com mais ou menos variáveis nessa prática de caminhar a dormir.

Mas neste livro sui generis acerca do humano, nesta consciência da vida não nos chegar, de ela mesma ser simultaneamente o que temos e o que nos falta, encontra o seu paroxismo nos versos iniciais do terceiro poema, “matar o tempo (mente corpo)”: “nasci gémeo. o meu irmão falso / morreu quase à nascença. formei a personalidade como a memoria da metade que me falta.” (p. 10)

E se a vida, enquanto está a ser, já é o que é, quando deixa de ser mostra então a sua pouca valia em todo o seu esplendor. A cada momento que a vida passa valemos menos, a vida vale menos, e na morte não só desaparecemos, mas rapidamente desapareceremos também da memória dos outros. Um dia havemos de não ser como se nunca tivéssemos sido. Havemos de não ser como se nunca tivéssemos vindo à existência, como se nunca aqui tivéssemos posto os pés. O nada que somos será literal, “colecciono fotografias de família, vendidas em alfarrabistas / por pouco dinheiro, como prova de que estamos / a uma ou duas gerações do esquecimento.” (p. 12) Passamos uma vida à procura de quê? Passamos uma vida a fazer o quê, na realidade, para além “das tarefas diárias com que nos ocupamos a / matar o tempo” (p. 15)? Este livro é, no fundo, uma enorme interrogação, de um modo muito particular, acerca do que estamos nós aqui a fazer, na vida, no mundo, na memória. Que fizemos nós para merecer isto, a vida, assim tão grande que temos de inventar tarefas, e tão pequena que ninguém se lembrará de nós? “(…) esta é a hora em que / não chegas, pontualmente, todas as tardes.” (p. 19) E isto que o poeta escreve acerca de alguém, também escreve acerca da vida: ela, pontualmente, a horas, sempre a horas, nunca chega até nós. Temo-lo visto ao longo destas páginas. E quando Tiago Araújo termina o poema “yorick (2)” com “pedacinhos de nada”, estes pedacinhos de nada não são apenas o que eventualmente possa ou não ter nos bolsos, mas cada um de nós, no vórtice do universo, no vórtice de não se saber nada de nada de nada.

Não sabermos quem somos é não sabermos o que é a vida, o que andamos a aqui a fazer, e é este o mundo em que estamos a viver, isto é, é assim que é estar vivo, é assim estar a viver. A vida aparece-nos como praxis inevitável, um contínuo ter de fazer coisas até ao fim. Não é mau, nem bom, é assim, como nos dizem estes versos certeiros, do poema Lázaro: “a canção pode ter chegado ao fim lázaro, mas não o teu trabalho: / a arte da ressurreição inserida na rotina diária”. (p. 27) A vida como ela é, ou respirar debaixo de água, ou viver sem saber o que isso é, ou estar a fazer caminho para nada são sinónimos que aprendemos neste livro, que não é um livro pessimista, nem abjecto, pois sabe que a vida diz-se de muitas maneiras e encarregar-se-á ela própria de se adjectivar a cada momento. Mais do que um livro contra a vida, e as nas suas múltiplas apresentações, quer sejam social, biológica ou metafísica, é um livro que desmonta o brinquedo que é a vida, deixando página a página as múltiplas peças que a compõem, que não são mais do que peças, nem boas nem más. Fique-se, por fim, com este poema de Tiago Araújo:

os números

este é o livro da minha descendência:

adelino gerou armindo que gerou adão que gerou

tiago que gerou três. dois deles correm agora na sala em

perseguições alternadas. o terceiro cresce sem que o

vejamos ainda. somos cada vez mais, embora insuficientes

para substituir os mortos que coleccionamos em álbuns de

família, e por motivos práticos vivemos quase isolados na nossa

felicidade domestica, um sentimento mal recebido pela crítica.

durante a infância ninguém morreu. os corpos

eram retirados do olhar das crianças de forma subtil e

eficaz. chegou por fim o momento de consultar

a conta-corrente, de avaliar os ganhos e as perdas.

um nome por cada nome, numa família em que o

que passou é quase tão desconhecido como o futuro.

fomos trazidos até aqui por uma paixão

quase constante entre os sexos, ao longo dos séculos.

e agora, na idade adulta, é a cada dia

que nos vamos aproximando do passado.

por ter sido muito diferente em outras épocas, mas

hoje é Saturno que é devorado pelos filhos enquanto vê

televisão, numa tarde de sábado.

17 Jan 2017

Raquel Serejo Martins: “Os meus poemas são frutos para comer crus”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s poeta (acerca do teu livro de poesia, primeiro e até agora único, Aves de Incêndio, escrevi neste jornal esta semana), e escritora. Aliás, tens mais obra de prosa editada do que de poesia, dois romances na Editorial Estampa, A Solidão dos Inconstantes (2009) e Pretérito Perfeito (2013). Assinas ainda uma crónica semanal na revista “Sábado”, onde na realidade escreves pequenos contos. Qual de todas estas actividades é para ti a principal, se é que há uma principal, e não me refiro ao teu trabalho diário, que nada tem a ver com as letras?
Nunca pensei nisso e não consigo dizer qual a principal, aviso já que sou óptima a não conseguir explicar as coisas, todavia consigo dizer que o romance me exige mais fôlego, sufoca-me, tenho medo que me falte o ar, o pé, de não me encontrar, é um burilar longo e penoso, processualmente duro. No romance sou escafandrista, enquanto na crónica ou no conto respiro. Muitas vezes chego ao papel já com uma história, com princípio, meio e fim, três linhas de história não mais, depois, aranha competente, vou tecendo a teia, acrescentando pontos ao conto e não são raros os momentos em que consigo divertir-me a escrever, a escolher as palavras, a limar as arestas, a polir e a puxar o lustro aos parágrafos. Já a poesia é um mistério, é um caso sério, é garimpo à procura de minério, de palavras pepitas, palavras que brilham e que juntas fazem luz, mesmo se dolorosas e escuras, a poesia acontece, é um relâmpago e, em consequência, os meus poemas são frutos para comer crus e muitas vezes com casca. E apesar de serem três registos diferentes, parece-me, dizem-me, que a poesia contamina tudo o que escrevo.

E como entendes a poesia. De outro modo, imagino que leias e gostes de poesia diferente daquela que escreves, que procuras nos poemas que lês e o que procuras nos que escreves?
Uma vez escrevi sob o petulante título Brevíssimo Manual

Desconfia do poema se:
Não te corta a respiração
Não te sufoca
Não te acelera o bater do coração
Não te faz sorrir.

E, de facto, é mais ou menos isto que eu procuro e quero da poesia, que me encante, que me deixe boquiaberta, que me roube à rotina dos dias. Sendo que, provavelmente, quase de certeza, escrevo por esse mesmo motivo, para roubar-me à rotina dos meus dias, porque são demasiados os dias em que nada disto tem sentido.

E como vês a poesia actualmente em Portugal? Achas que se atravessa um período pujante ou antes pelo contrário?
Eu tenho um amigo poeta, João Bosco da Silva, que diz que só os poetas compram livros de poesia e é quase verdade. Por outro lado, com base no volume de poesia que vejo circular pelas redes sociais, também me parece que nunca se fez e leu tanta poesia como hoje, assim como, em Lisboa e pelo que sei também no Porto, voltou a ler-se poesia em cafés e bares, e são várias as editoras especialmente vocacionadas para a poesia, o que indicia que a poesia está na moda. E, em estando na moda, há muita gente a escrever má poesia, há um excesso de péssima poesia que fere e prejudica o género, mas também há gente boa a encantar. É que dizer que Portugal é um país de poetas, não quer dizer que todos somos poetas, mas que temos excelentes poetas. Sendo que, obviamente, também me coloco a questão, será que posso chamar poesia ao que escrevo.

Sentes que pertences a alguma geração de poetas? Que há essa geração?
Sinto que andamos todos muito sozinhos, ou eu ando muito sozinha, é tão fácil fazer generalizações sem fundamento, pelo que não me reconheço nesse sentimento de pertença, mas dito isto, ultimamente tenho tido a boa ventura de conhecer uns quantos poetas e são pessoas que gosto de abraçar, pelo que melhor adiar a resposta a esta pergunta por uns tempos.

E para quando o teu segundo livro de poesia?
O meu próximo livro de poesia está na gaveta, tem dentro 100 poemas de amor, e um dia, não sei dizer quando, vai sair da gaveta. Neste momento não tenho pressa em editar, assim como me parece que o Aves de Incêndio ainda precisa de espaço para voar.

13 Jan 2017