O tempo dentro do tempo 

Em “Aves de Incêndio” (poética edições, 2016), de Raquel Serejo Martins, há dois tons a percorrer os poemas, que se interligam: a dor que se carrega no dia a dia, tentando ligar as horas umas às outras; e a memória que nos assalta, à nossa revelia, e contra a qual não podemos nada, acabando quase sempre por trazer mais dor. Veja-se apenas como exemplos estes versos: “(…) / tudo é uma dor pungente, / tudo é nada, / e o nada / finge-se em gente” (62) ou o poema 64 “Só quero dizer que sofro tanto / que até a dor me alivia”; e como exemplos do segundo tom, leiam-se “Um amor velho e seco / como uma giesta, / folha de ervário, / corolário de todos os que o seguiram, / porque o amor quando acaba, / no âmago do coração quieto, / fica sempre amargo.” (5. Primeiro Amor)

Neste livro fica-se a saber que o tempo foi. Aqui, o tempo nunca é, o tempo nunca será, o tempo sempre foi; nunca é e nem será, foi. É o mundo da memória que nos fustiga continuamente os dias, a memória dos dias bons, dos dias maduros, que caem da árvore e nos sabem bem ao comer. “E a cada Verão o amor acontecia, / sem palavras de preâmbulo, / nem palavras de adeus. / O amor acontecia (…)” (11.) Este pretérito imperfeito, “acontecia”, não acusa apenas o amor, acusa também a poeta que o escreve, o humano que se dá conta de que tudo acontecia, “eu acontecia” ou “o amor acontecia” partilham a mesma desinência imperfeita, a mesma desinência de um acontecido que já não volta, a não ser em forma de memória, para nos magoar, para nos mostrar que afinal não é só “eu” e “amor” que partilhamos a imperfeição pretérita, mas também a vida. A vida humana é um inteiro pretérito imperfeito. A vida humana, toda ela, a vida de cada um de nós, acontecia. A vida humana é “um coração que o tempo quase apagou. / Enquanto ao longe, / na melancolia do passado, / um violino gemia (…).” E como viver, se a vida está lá atrás? E como viver, se a vida ficou lá atrás, como se entrássemos no comboio e tivéssemos deixado na estação o amor da nossa vida e tivéssemos disso consciência? Como viver, se deixámos a vida de onde partimos? O amor, hoje, e adivinha-se que também assim seja a vida, é como o final do poema 17: “(…) um cardume de peixes dourados / a boiar sem vida no aquário / dos meus pensamentos, / todos teus / e nem percebes que existo.” Se eu vivo soterrado pelo passado, pela infância, pelos anos de fruta madura e farta da juventude, tenho de sentir a vida como se ela nem percebe que eu existo. Este escândalo de se existir e a vida nem saber disso é do que este livro trata. Ao passearmo-nos pelas páginas damo-nos conta de ser mortos-vivos, estamos numa vida que já não é, nem nossa nem de ninguém, onde só o passado poderia ser uma possibilidade de futuro, como o diz tão bem este verso do poema 99 “O futuro é a Primavera”, ou ainda os versos do poema 20: “Tu, um vendaval / que perdeu o ânimo / que envelheceu sem festejar. / Sabes, às vezes parece-me que sabes / que ainda podias ser feliz, / que há sempre tempo dentro do tempo, / mas há tanto tempo que não andas de bicicleta (…)”. Há sempre tempo dentro do tempo, mas esse tempo dentro do tempo é sempre um tempo dorido, um tempo de memória, um tempo que mede a distância entre o nada em que vamos ficando e o tudo que já fomos. A distância entre “tenho milhões de anos / de solidão dentro de mim” (58) e “todos os sonhos em embrião / a vida no princípio e cheia de tesão” (55). Por vezes sentimos o sopro de Pessanha, em alguns dos poemas, naquela sua exigência de delapidação do verso em torno do som e da dor, como no poema 21:

Corpo corroído pela saudade,

uma saudade que transpira lágrimas,

que se desfaz em dor,

que se acumula em pó,

que fermenta dia após dia,

que se multiplica ao segundo,

que quase abarca o mundo,

que nasce e morre no quarto do fundo.

A vida é triste, “ tal como uma lágrima / sentindo saudade” ( versos finais do poema 22, que parece querer continuar o 21, e que encontra eco no último verso do 35: “pois não há mal que não me venha.” Mas, e como já ficou claro, a vida não é triste pelo que é, pelo que acontece, a vida é triste porque ela revelou-se-nos como sendo um pretérito imperfeito, esse tempo dentro do tempo: acontecia, era, vinha. “O amor era o avô / a descascar uma romã / para a avó.” Esta consciência acaba por trazer sabedoria, ou pelo menos alguma, em forma de pragmatismo e versos belos, como no caso do poema 24: “Difícil é ser feliz, / quando tudo se perde por um triz. (…) e come todo o amor antes que o amor acabe.” Ou ainda a consciência de que mesmo quando a vida parece estar a ser, e não ter sido, ainda assim ela é só aparência, como viver num hotel: “Pensei, que metade do amor é isso, pensar / e que é fácil ser feliz num quarto de hotel, / a cama sempre feita, as garrafinhas no minibar / um pequeno arco-íris particular / no fim do qual quase uma esperança, / um quadradinho de chocolate em cada almofada / de penas de pato depois do foie gras, / um sossego, allegro, andante, fugaz / como se a vida pudesse ser menos voraz.”

A dor que percorre este livro, que na nossa cartografia poética nos remete a António Nobre, advém de se entender a vida não apenas, como já se disse atrás, uma espécie de sermos mortos-vivos, pois a vida ficou lá atrás, mas também de a memória estar continuamente a lembrar-nos disso. O livro faz-nos ver a vida segundo o ponto de vista daquilo a que usualmente chamamos de “saudosista” – e realmente a palavra saudade aparece inúmeras vezes ao longo do livro –, com uma diferença, que parece ser substancial: a da consciência. De modo geral o saudosista sente saudades do “tempo em que tudo era bom”; aqui, neste livro, pelo contrário, há a consciência de que não era o tempo que era bom, mas a poeta é que era boa. Todos os tempos são bons, porque em todos os tempos há quem esteja a estender as asas, esteja a abrir sonhos pela primeira vez, esteja de pés bem firmes na alegria dos beijos frescos como as primeiras manhãs de Natal. Raquel Serejo Martins, pelo contrário, não sente saudades do tempo, sente saudades de si mesma, como fica bem vincado no poema 67:

Às vezes ando à minha procura

como uma mãe à procura de um filho desaparecido.

Esta consciência, e que muda tudo, de que não era antes que tudo era bom, éramos nós que antes éramos bons, éramos nós lá, onde nada ainda se tinha partido de importante, nem a confiança, nem a esperança, nem corações, só braços, cabeças e uma ou outra perna, faz deste livro um espécie de escarro na cara da vida. Vida essa, que também é mostrada nos seus momentos escatológicos e quotidianos, e sempre ligados à solidão da vida, à irrecuperabilidade da verdadeira vida, a que antes acontecia, como nos versos finais do poema 70: “A série da BBC. / A leitura de uma revista na latrina. / A higiene íntima da vagina. / A solidão / ou Napoleão no exílio sem Josefina.” Antes de deixarmos um poema da poeta, resta dizer que o livro, alem dos poemas de Raquel Serejo Martins, traz ainda desenhos de Ana Cristina Dias.

9. Aves de incêndio

Era Verão

e as tardes infinitas,

duas garrafas de Sumol,

um pacote de batatas fritas,

e os dois na esplanada

na sombra-aquário do guarda-sol.

Eu um peixe,

a tua boca isco no anzol.

Lábios que não sabiam beijar,

que aprendiam a beijar

que beijavam por tudo e por nada,

sofregamente, por tudo e por nada.

O corpo a arder,

os pés descalços,

o chão em chamas,

vá lá, diz que me amas.

Era Verão,

a estação dos incêndios,

das flores na pele a queimar,

dos corpos em brasa,

do grão na asa,

do na minha ou na tua casa.

Era verão,

as noites tão vivas como os dias.

Nos céus luas, estrelas,

foguetes a explodir em flores coloridas,

sobre o som da banda a tocar no coreto.

No chão o bulício de cigarras em cantatas de Bach

e tu a dançar.

A dançar comigo,

até ao romper da aurora.

Dizias sempre bela aurora,

como a canção

e não gostavas de dançar, mentias,

fingias que eu te pisava e rias.

E a dançar

chegou a tarde do nosso adeus,

uma tarde igual a todas as tardes

sem nuvens no céu ou ameaças de chuva,

apenas levemente mais fria,

porque já Outono

e nós aves de uma só estação,

aves de incêndio.

10 Jan 2017

José Anjos: “Escrever é o acto de resistir”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s poeta (acerca do teu livro de poesia, primeiro e até agora único, Manual De Instruções Para Desaparecer, acerca do qual escrevi aqui neste jornal), músico (baterista na banda Não Simão) e fazes muitas leituras de poesia, um pouco por toda a cidade de Lisboa, mas tens dois lugares mais recorrentes, que são dois bares, O Povo e o Irreal. Fazes ainda parte de um grupo de performance de poesia, onde se reúne a música e a palavra, No Precipício Era O Verbo (acerca do qual já se falou aqui, aquando da entrevista ao António de Castro Caeiro). Qual de todas estas actividades é para ti a principal, se é que há uma principal?

Não posso dizer que algumas delas seja, em absoluto, a principal, embora tenha noção da prioridade que cada uma ocupa na minha vida e a cada momento. Há uma hierarquia móvel na definição dessa prioridade, até porque me vou dedicando a várias áreas ao mesmo tempo, entre as quais o direito, e tenho cada vez mais projectos na área da música e da poesia (alguns dos quais me dão já imenso trabalho mesmo ainda sem terem saído da cabeça). Este ano foi, sem qualquer dúvida e para meu imenso gáudio, mais dedicado à poesia, à música e ao palco: escrevi um novo livro de poemas, que sairá pela chancela da abysmo no início deste ano, gravei um álbum, cujo EP sairá no início deste ano também, com a banda Não-Simão, liderada pelo Simão Palmeirim e onde sou baterista, gravei um trabalho do projecto No Precipício era o Verbo, com o Carlos Barretto, o André Gago, o António de Castro Caeiro e eu, projecto este que nos levou ao CCB em Dezembro passado pela mão do João Paulo Cotrim (abysmo) e do Fernando Luís Sampaio (CCB) e cujo cd está já à venda, com art-work do André da Loba. Será também lançado, previsivelmente em Abril deste ano, a segunda fase deste projecto – que consiste na edição de um livro/cd (também pela abysmo) com todos os poemas e textos incluídos no cd, interpretados por ilustrações do André da Loba. Aparte estes projectos, tento fazer e organizar o máximo número de leituras possível.

E como vês a relação entre a escrita de poesia e o ler poesia nos bares?

Ler em público é uma actividade à qual me dediquei muito nos últimos anos, especialmente desde a criação – pelo Alex Cortez, pelo Nuno Miguel Guedes e por mim – das noites dos Poetas do Povo, projecto do qual já não faço parte mas visito com pertinente frequência, seja como espectador ou convidado. Presentemente organizo, com o João Paulo Cotrim, as quartas de poesia do poço, no bar Irreal. Quanto à relação da escrita de poesia com a sua leitura nos bares, considero, em primeiro lugar, que existe quase acidentalmente e que, mercê do facto de juntar no mesmo espaço vários poetas e leitores, alargamos necessariamente o campo de autores e obras que compõem a nossa biblioteca íntima. Nem todos leitores escrevem poesia, mas não se pode escrever poesia sem ler poesia. E no meu caso quanto mais leio, mais escrevo – e mais deito fora. Talvez possa dizer que o ler e ouvir poesia nos bares me permitiu conhecer quase todos os autores – vivos e mortos –  que hoje são para mim referências literárias e afectivas inelutáveis (tu és um deles), e me ajudaram não só a compreender e a tornar mais claro o que eu próprio escrevo (ou melhor, aquilo que afinal tenho para – ou tento – dizer) mas também a rejeitar falsos textos e a saber dizer não a mim próprio. Em segundo lugar, o poema contém infinitas possibilidades em suspensão – como um campo quântico – que se concretizam e apresentam quando o mesmo é lido, seja em silêncio ou em voz alta. O mero acto de ler é já de si uma observação interpretativa e uma interferência necessária que cria uma realidade tão íntima que não sabemos se estava lá antes do colapso da leitura. Exemplo disso é o facto de o texto estar sujeito a diferentes leituras e interpretações consoante as pessoas, o que só demonstra, como dizia o Helder Macedo há umas semanas numa conferência a propósito de Shakespeare, que o texto é “um organismo vivo”. Ora, vejo o processo de escrita como uma proposta de investigação e leitura das coisas que se organizam – e a forma como elas se organizam – perante a nossa percepção. Escrever é para mim o resultado (conseguido ou não) de um acto passivo de contemplação. Ler o poema, por sua vez, implica um gesto idêntico ao de abrir uma porta num dado momento da realidade, por trás da qual o poema passa a ser um lugar onde cabe apenas uma única pessoa. Ler um poema em voz alta, maxime perante uma plateia que o desconheça, é multiplicar a invenção de lugares ou, em última instância, de lugar nenhum. A privacidade absoluta num lugar sem privacidade. Por outro lado, o gesto de ler em voz alta, venha ele a revelar-se mais ou menos gratificante na sua intenção, é um prazer inegável e quase inexplicável, embora não desprovido de riscos: é sempre possível fazer explodir um poema por excesso ou defeito na sua interpretação e intenção formais. Nem o poeta nem aquele que lê o poema sente mais ou sabe sentir melhor do que quem o ouve, por muito que assim queira parecer. Neste aspecto concordo em absoluto com o que o Leonard Cohen escreveu: “O poema não é senão informação. É a Constituição do país interior(…). Tu estás no meio das pessoas. Portanto, sê modesto. Respeita a privacidade do texto. Foi escrito em silêncio. A coragem da actuação é dizê-las. A disciplina da actuação é não as violar.”

E como entendes a poesia. De outro modo, imagino que leias e gostes de poesia diferente daquela que escreves, que procuras nos poemas que lês e o que procuras nos que escreves?

Creio que a dada altura a poesia tem de ser entendida necessariamente como um acto – ou gesto – de resistência, independentemente dos aspectos concretos e emocionalmente relevantes que daí advêm para cada pessoa e a cada momento, estes sempre mudando, como a memória. Escrever é, para mim, resistir contra e resistir a: (i) resistir à frustração, sem dela abdicar mas sem sucumbir ao seu jugo (o acto criativo forja-se na sustentabilidade da frustração enquanto forma de resistência, desde logo ao próprio eu e às suas artimanhas de imediatez hedonista), e (ii) resistir contra a angústia da nossa existência e da dos outros, que se torna quase insuportável, escrevendo-a, descrevendo a sua beleza terrível. Há uma responsabilidade do artista, do autor, perante o sofrimento e a violência. Há poemas que dizem tudo e que não teriam sido escritos sem essa a intenção de resistir contra a impassividade, a resignação e a cegueira selectiva (começando pela nossa) que, de certo modo, nos permitem sobreviver, mas sem nada fazer para mudar. A humanidade é uma escolha irreversível e lancinante, diria mesmo bruta. Escrever é o acto de resistir contra essa condição, dando-lhe o significado íntimo possível. Ler é aprender esse ofício da resistência. Necessariamente procuro (ou melhor, descubro) novos poetas e estilos de poesia que me afastam de uma noção unívoca de poesia, que, por mais confortável possa parecer, não acredito existir. Por outro lado, e desde já me contrario, encontro em poemas de estilo absolutamente diversos a mesma fonte, talvez até vis-a-vis os meus. Mas é preciso a autodestruição dos processos de escrita, de certa forma aprender a escrever com a “mão esquerda”, como o Miró (simbolicamente é claro); mudar de intenção e nome, queimar o nome, deixar de escrever para – talvez – saber escrever. Neste aspecto, o acto de ler e voz alta e em público têm-me permitido fazer essa mudança de lugar sem cair no meio.

Acreditas que estes eventos de leitura de poesia acabem por levar mais pessoas à poesia?

Não acredito, tenho a certeza! Vejo isso desde que os Poetas do Povo se abriram à cidade, como noutros casos (e.g. as quintas de poesia do Miguel Martins e as sessões do Nuno Moura). Obviamente que se me disseres que a educação, a aquisição e prática de bons hábitos de leitura levam mais pessoas à poesia do que todos estes eventos juntos, estarei de acordo. Mas creio que dificilmente se pode levar poesia a pessoas que fora deste contexto não estariam disponíveis. No fim, estes eventos acabam por confrontar as pessoas com autores, poemas e versos impossíveis de sacudir e levá-las a ler motu proprio. Cumprem talvez uma tradição no verdadeiro sentido da palavra traditio, que é o da partilha.

6 Jan 2017

Desvão

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão há livros absolutos, muito menos em poesia. A poesia impõe-se mais pelo que deixa ler do que pelo que escreve. Não digo que a palavra escrita não seja importante, por que é, mas que o que a palavra deixa ler é mais. Aquilo que se consegue ver, ou que o poema deixa ver, que sugere, é mais importante do que o que escreve. E é nesta esteira que encontramos os poemas de Miguel Martins. Num dos seus livros mais recentes, Desvão – “num”, porque Miguel Martins é um poeta prolixo, que edita vários livros por ano, contando já quase com 30 livros de poesia editados –, debatemo-nos com esta tradição de entendimento e vivência da poesia.

Desde logo o título é fenomenologicamente rico. Para além da evidente semântica da palavra, que diz um espaço entre o telhado e o tecto do último andar de um prédio ou de uma casa, usualmente chamado de águas-furtadas, e que por si só já nos remete para um espaço de mistério, um espaço “entre”, entre o útil e o inútil, entre o necessário e o acessório, sugere também a leitura da divisão da palavra em des-vão, remetendo-nos para um neologismo, que faz todo o sentido neste livro. Tal como já Camilo Pessanha usara “desviver” – uma vontade de desviver – para melhor nos mostrar o seu sentimento perante não só a vida, mas o modo como sentia o seu lugar no mundo, Miguel Martins usa “desvão” e faz-nos ver, não ele no mundo, mas nós todos no mundo. O substantivo é transformado em verbo, um desverbo. Nós estamos não a ir, não a não querer ir, a não ir, mas a des-ir. A vida é um contínuos des-ir, não só através da memória, como nos mostra logo no início do livro – Num refúgio de sombra, / abrigado de tudo menos deste desvão da memória / assídua como um roncar de uma besta turva (…) –, mas também através da insónia, esse modo especial de estar alerta, como nos indicam os versos “a minha maneira de bocejar sem sono” (p. 19), “a eternidade dá-me sono” (p. 9) ou “sem insónias nem gritos” (p. 18). Eles, que des-vão na vida, entre a insónia e os gritos, e que somos nós todos, até o próprio poeta quando não é poeta, é o assunto deste livro. Mas entender o nosso modo de estar no mundo como um contínuo des-vão faz toda a diferença. Fazer ver, o que quer que seja, faz sempre toda a diferença. “Agora, és outra pessoa, / cheia de banalidades e pequenas alegrias. / O tempo e a distância encarregaram-se disso.”, diz-nos o início do poema, à página 18. Porque nós não podemos nada, de nós, das nossas coisas e dos nossos actos, deles encarregam-se o tempo e a distância. E não somos sempre outra pessoa, para os outros e para nós próprios, quando o tempo e a distância se encarregam disso? Não é esta mesma a condição inexorável daquele que está a des-ir? “Foi há muito tempo. Somos ridículos, hoje, quando evocamos / escaramuças ou risos, lábios fendidos ou beijados / como se quinhentas vezes o nevoeiro não tivesse feito gritar / entretanto a sirene do nosso cabelo em recessão, como se” (p. 11) E esta trágica condição, de tudo o que somos ser posto a ridículo pelo tempo e pelo espaço, a cada esquina, não invalida, não risca a necessidade de se viver “como se”. A memória não serve para nada, se não para nos dizer que tudo foi há muito tempo. A memória, adivinha-se neste livro, é uma máquina de cobrar a existência, uma espécie de pica-bilhetes, que quando menos se espera nos exige a comprovação de que estamos a des-ir no sentido certo, que realmente tivemos um lugar antes e estamos a des-ir na direcção de um depois. Não serve de nada, mas é como se servisse. Não serve de nada naquilo que é mais próximo ao coração, daquilo que é mais próximo à alma, daquilo que é mais próximo de algo como metafísica. A memória só serve para não nos esquecermos de fazer contas, é o mundo da tabuada. Pois só os números não mudam. Só os números podem ser recordados como eles mesmos são, pois na realidade só eles são, só eles nunca mudam. Nunca ninguém disse a um número “agora, és outro número” ou “já não és o número que conheci”. A memória não muda os números, mas muda as pessoas e as acções praticadas. A memória é o reino do “como se”, só existe na matemática. E isto é visível até quase à náusea, neste livro de Miguel Martins. A memória é uma espécie de insónia. Mais: insónia e memória estão tão ligadas que inventaram a noite, a noite “de todas as praias a que não voltaremos.”, como o poeta termina um dos seus poemas, onde a memória macera a carne, ou aquilo “a que se chama vida quando se tem ainda a vida intacta.” Eu sei que não basta morrer para acabar com a memória. Sei que não basta morrer para dar razão à sua pouca eficiência. Mas sem memória seriamos melhores? Sem memória não morreríamos?

(…) Resta-nos

a compostura de uma gravata nova, do cabelo aparado

até ao pavilhão auricular, e a talha dourada de uma partitura de Bach

para enganar a flacidez da carne, como se a carne precisasse de nós

(…)” (p.11)

Esta consciência aguda de nós não sermos carne ou, talvez melhor, que nós somos para além da carne, “como se” a consciência da mesma, mas ao mesmo tempo também não somos memória, faz desta nossa existência um des-ir contínuo para nada. E nada se sabe enquanto se desvai. Desvaímo-nos a medo, é o que nos resta, medo e tristeza, como escreve Miguel Martins  página 12:

“(…)

São esses os instantes em que se torna óbvio sermos apenas

gente, gente condenada a uma tristeza perene, pano

de fundo de breves alegrias, ao sabor dos jogos de cartas

e da meteorologia. (…)”

Este retrato da existência não é, contudo, um retrato pessimista, um retrato do humano como alguém perdido, esquecido no desvão, entre a memória e a carne flácida. Pois precisamente o que parece ser um mal, o não se saber o que andamos aqui a fazer, acaba por se tornar um estranho aliado, ou pelo menos um estranho companheiro de estrada, como se pode ver pelos últimos sete versos do poema à página 22:

“(…)

Tem idade para ser sua filha, provavelmente namora

um tipo que de Monteverdi não ouviu nem o nome.

É ruiva como um pêssego maduro, pequena como um pónei

de feira. E ele, impotente vai para dois anos, observa-a

como se fosse um quadro num museu de província, cheio

de condescendência e abandono. Pensa na arma que herdou

do tio, pensa que é chegada a hora de tomar uma decisão.

Mas, sem dúvida, aguardará a chegada e a partida

do 39, que vai, sem pressa, para não se sabe onde.”

E eis este nosso des-ir a fazer-se sentir em todo o nosso ser como uma forte trovoada. Um livro feito de espanto e de fazer ver, como se estivéssemos acabado de chegar à vida e nos debruçássemos na janela a ver as estruturas da existência a passar. Ainda antes de darmos as últimas palavras ao poeta, resta dizer que esta edição da editora “não [edições]” teve uma tiragem de apenas 200 exemplares, com composição e desenhos de João Concha.

Queimar tudo. Alugar uma casa num lugar sem história

na história da minha vida, um lugar de postais antigos,

desbotados, e do passado guardar apenas uma urna

de cinzas, no compartimento por baixo do lava-louças.

Ver filmes sem mérito, ler livros sem arte, ouvir óperas

cómicas e inêxitos impopulares e anacrónicos. Tentar,

sem sucesso, pescar, e ir ao mercado comprar peixe

miúdo e roupas com defeito às ciganas. Ser anónimo

por fora e por dentro, criança que não se conhece

nem quer conhecer e que procura apenas o início e o fim

de um carreiro de formigas, revelação suficiente

par aquém ainda não desperdiçou a vida a perscrutar

os gloriosos fundos de um oceano de merda. Beber

pouco. Foder com a moderação que a improbabilidade

do diálogo impõe. Emular os pioneiros americanos,

pecadores em busca de recomeço e horizonte, longe

das catedrais e de si próprios, longe dos quiromantes

e das sílabas e, sobretudo, da inexorável morte do amor.”

3 Jan 2017

Inês Fonseca Santos: “O meu tempo é da espera”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s poeta, escritora de livros para crianças, onde tens sido distinguida com prémios, e apresentas neste momento um programa na televisão “Os Livros”, acerca de livros. Qual a principal diferença entre escrever para crianças e escrever poesia?

Para além de “Os Livros”, também edito e apresento o “Todas as Palavras”, sendo que neste caso o programa é partilhado com o Luís Caetano e a Ana Daniela Soares. Não há grande diferença, na verdade. Se houver, é meramente formal. A poesia e a literatura infanto-juvenil são irmãs gémeas, gémeas siamesas, para ser rigorosa, porque nascem do mesmo “zigoto”, do mesmo ovo. Que normalmente é a imaginação e o espanto, sobretudo no que diz respeito ao modo de nos relacionarmos com o mundo e com a linguagem. Em suma, poesia e literatura para a infância e a juventude partilham da mesma natureza e em ambas é possível aproximarmo-nos das essências, questionando a regra, libertando-nos dela.

De qualquer modo, o teu livro de poesia A Habitação de Jonas, acerca do qual escrevi aqui no jornal e pelo qual tenho grande apreço, tem um tom de “realidade” que não é próprio para crianças.

Claro. Mas não é para crianças. Os outros, ditos “para crianças”, é que são para todos. Seja como for, o que disse na resposta anterior, tem a ver com a criação, com as “ferramentas” e os “truques” e os “recursos” que tem ao dispor quem escreve poesia e quem escreve literatura “para crianças”.

Recentemente lançaste um novo livro para crianças, que é também uma biografia, de José Saramago, com ilustrações de João Maio Pinto, na editora Pato-Lógico. Que te levou a este projecto, o autor, o género biografia ou a literatura para crianças?

O livro é co-editado pela Pato Lógico e pela INCM. A editora Pato Lógico, em parceria com a INCM, tem uma colecção de biografias para os mais novos que se chama “Grandes Vidas Portuguesas”. É nessa colecção que está integrado o livro “José Saramago — Homem-Rio”. Escrevi-o porque o André Letria, editor da Pato Lógico, me convidou a fazê-lo. Aceitei de imediato precisamente por me permitir somar todas essas parcelas que referes: a literatura para os mais novos, a biografia, a obra de um grande escritor e ainda a criação de um álbum ilustrado, que é sempre um desafio acrescido, uma vez que temos que escrever deixando espaço para que alguém acrescente significados com imagens. Esta combinação de parcelas permite que o livro não fique confinado a um só território, pois, em rigor, não estamos perante uma biografia convencional; tentei escapar a isso precisamente por ser um álbum ilustrado para a infância e a juventude. Tive que escolher o que contar e, mais importante, como contar.

Tens dois livros de poesia – escrevi neste jornal acerca do teu segundo e último livro – As Coisas (Abysmo, 2012) e A Habitação de Jonas (Abysmo, 2013). Para quando um novo livro de poesia?

Para breve, espero. Tenho um livro por acabar há uns anos. Chama-se “Suite Sem Vista”. E um outro que reúne poemas dispersos, publicados em antologias e revistas, e alguns inéditos. Este aguarda que lhe ponha ordem, se é que tal é possível; o outro aguarda algumas palavras. Costumo ser uma pessoa organizada, excepto quando escrevo. Escrever é, na essência, uma actividade livre. Por isso, só escrevo quando preciso mesmo de escrever, quando não há maneira de escapar àquela qualquer coisa em mim que se quer transformar em palavras, para lembrar Paul Claudel. O meu tempo é o da espera.

Tens alguma ideia de programa, que gostasses de fazer na TV, acerca de livros ou de livros e crianças?

Tantas, que terias que pedir mais páginas de jornal para as podermos partilhar todas. Resta saber se essas ideias cabem numa televisão…

Sei que estiveste uma vez em Macau, tinhas acabado de ser mãe há pouco tempo. Como sentiste essa tua experiência?

Fui a Macau para um encontro de poetas lusófonos e chineses, a convite do Centro Nacional de Cultura. Foram muito intensos esses dias em Macau por vários motivos. Partilho os bons: ter ficado muito amiga do Luís Quintais, um dos poetas com quem fiz essa viagem e que eu já lia há muitos anos, mas não conhecia pessoalmente; ter conhecido um lugar onde o meu Pai viveu uns tempos e sobre o qual escreveu e me contou histórias; ter partilhado poemas e experiências com pessoas que desconhecem em absoluto as línguas que eu sei falar; ter sentido o medo e a adrenalina de ser estrangeira; e ter sentido que, em qualquer sítio do mundo, estamos sempre com os nossos, estamos sempre a regressar a eles, a casa.

30 Dez 2016

A vida fechada a tijolos

[dropcap]I[/dropcap]maginai uma casa ou um edifício sem portas, sem janelas, apenas com espaço interior fecha- do em si mesmo, como se alguém tivesse posto tijolos a fechar as janelas e as portas, para que ninguém mais possa entrar! Como aqueles edifícios que encontramos nas partes antigas da cidade, que já foram espaços com alegria e hoje são vazios, como unhas ocas. Uma casa totalmente fechada no seu interior, como um humano sem portas e sem janelas para outro. E agora imaginai que isso é um livro de poesia: A Habitação de Jonas, de Inês Fonseca Santos; que o edifício é uma baleia e que no espaço, lá dentro, há um homem. Jonas habita a baleia, a solidão, o isolamento eterno a que está votado; foi condenado a ser só como todos nós. “Jonas caminhava por procurar outro. / Talvez ele existisse: / o homem dos sinos. / Talvez ele fosse um homem infinito.” (p.13) Neste início de poema, o VI da parte “Primeiro Dia Primeira Noite” dá-nos a confirmação de que habitação se fala aqui neste livro. Uma habitação fechada para a rua e onde se caminha por procurar outro. Procurar outro não é um m. Jonas não caminha “para” outro ou para procurar outro, Jonas caminha “por” procurar outro, Jonas caminha como quem vai ser só para sempre. Jonas é um infinito de só, uma casa completamente fechada, sem portas, sem janelas, uma casa para nada.

No poema II (p. 9) lê-se: “Apenas uma sílaba com som: dor. // Jonas soube: não existia / na cidade outro homem.” Esta condição de Jonas, esta imagem do humano enquanto Jonas, que está só, completamente só na cidade, caminhando por procurar outro é uma imagética profunda do que é o ser humano, uma parábola à dimensão do paradoxo da existência. Devemos repeti-la, porque a cada esquina nos é repetida. Devemos repetir, porque a cada página nos é repetida, a cada verso. E não há parábola sem a febre da imagem e um horizonte de sentido, ainda que longínquo, ou que possa parecer longínquo. Leia-se o segundo poema do livro (p. 8):

“Jonas chegou a casa:
no lugar da porta, a boca do peixe.
Empurrou um dente, entrou. Sentou-se

na enorme afta daquela língua
desconhecida que habitava.
Olhou em volta: um lugar em ruínas, não
uma casa em ruínas; uma boca
tentando ser uma cidade inabitada.

Na primeira cidade com hálito, os sinos
soavam de quarto em quarto
de hora.”

E é aqui que estamos, no livro como na vida: num lugar em ruínas, não numa casa, mas num lugar.

“Jonas levantou-se. / Queria arrumar o coração no lugar / certo, descer por ele até mais do que uma sílaba: / até uma palavra.” (p. 10) Em todas as páginas, em todos os versos ao longo deste precioso livro escutamos as nossas próprias vidas, mais próximas do que se fosse dela mesma, a nossa, que a poeta escrevesse, tão mais próximo como só a imaginação que transfigura o sentimento o pode fazer. A demanda de Jonas é a nossa demanda. E o outro é o próprio, que busca outro como a si mesmo. Uma palavra basta, uma palavra. Mas onde escutar essa palavra? Onde há essa palavra, que se houver nos basta? O que seguir, que caminho seguir para encontrá-la? Não será essa palavra uma boca, um beijo, um coração puro a palpitar nas mãos de todos os nossos sonhos, eternamente sonhos? Os dias, aquilo que deram a Ruy Belo, ao invés da vida – Eu vinha para a vida e dão-me dias (Ruy Belo in Homem de Palavra[s]) – é o que nos dão a todos, o que dão a Jonas, nesta boca, nesta cidade, neste livro. Quem ao andar na rua não sente agora as paredes altas do céu da boca da baleia, o tecto opaco da vida, o badalo do sino antes da descida vertiginosa para o estômago do animal? A cada esquina que viramos ouvimos os sinos, a anunciação de nenhuma palavra, a lembrança do silêncio que nos veste como uma farda. “Era uma voz / de abismo, de fundo de copo, / E repetiu: dor.” (p. 11) Lisboa, a baleia por onde ando, por onde a poeta escreve, a cidade onde não há outro homem. Em nenhuma cidade há outro homem, mas esta é a minha baleia. Esta é a minha baleia, grita por um livro inteiro a poeta Inês Fonseca Santos. Lisboa, a minha baleia; eu, Jonas, a caminhar por procurar outro. “As paredes, ao se afastarem os móveis, / erguem-se, despidas, coradas até à raiz dos rodapés, / como paredes sem móveis: demasiado brancas (…)” (p. 5) A loucura não é a vertigem do álcool, o voo das drogas, a euforia dos corpos, um armazém chinês com tudo o que não nos faz falta. A loucura é a casa vazia, sem janelas, sem porta, as paredes brancas de nada, os móveis velhos e gastos, afastados dos rodapés, mostrando os anos que passaram, os anos que passaram para nada, pois nada se viu, nada vimos, nada aprendemos, nada cresceu dentro de nós, como cresce no interior de uma grávida. Só engravidando não somos sós. Só engravidando não somos um vazio puro, uma ruína. E depois? E depois da gravidez? De novo um ruína de nós mesmos, uma ruína da infância. Uma ruína do que poderia ter sido, sem que na realidade alguma vez pudesse ter sido, pudesse ser.

“VIII
Jonas só compreendeu a palavra
‘ferida’ ao alcançar o topo da língua.
Assistiu, do monte, à invasão da cidade:
coágulos de sangue cobrindo a grande boca.
Jonas sufocou. Pôs sobre os olhos
as mãos. E desejou nos ouvidos o toque
dos sinos.”
(p. 15)

Desejamos. Desejar é uma pele, uma segunda farda, a farda dos dias de festa, a farda com que vamos aos dias de gala, para além da farda do silêncio do dia a dia. Esta é a nossa vida, grita Jonas, pôr as mãos sobre os olhos e desejar o toque dos sinos. Que sabemos de nós? Como caminhar por procurar outro e não sabermos quem somos? Como não desejar a música dos sinos, as palavras silenciosas da música, que nos tocam, literalmente nos tocam, que nos fazem vibrar como o tempo vibra numa ruína. “Paredes, estais hoje mais velhas do que nós”, escreve num verso, a poeta. Nós estamos mais velhos do que nós, escrevo eu. As ruínas, as paredes, o tempo a descascar a vida, a descascar a vida e a deixar marcas nos dedos sujos, desta nossa consciência a assistir a tudo. “A nossa vida, disse ela, / aqui de cima.” (p. 22) A nossa vida, diz a consciência, aqui de cima. E o que a consciência se dá mal com os dias! E o que a consciência se dá mal com as ruínas! E o que a consciência se dá mal com a sua própria ruína! Jonas, sou eu agora que te peço, eu o teu leitor, eu aquele que te traz aqui à beira de seres outro, à beira da estrada de seres outro, não me mostres mais o que é a vida, não me escrevas mais estes versos: “eram pedaços de intestino, / onde também dói / quando tudo o que resta / é uma porta fechada // sobre a memória, / sobre ela / sobre mim.” (p. 28) A vida fechada como uma casa onde puseram tijolos no lugar de portas, onde puseram tijolos no lugar de janelas, onde puseram tempo no lugar de braços, onde puseram dor no lugar de um horizonte.

Este é um livro de descida ao mais íntimo dos me- dos, à mais íntima das solidões, como só quem escreve sentimentos sobre a lâmina da imaginação o sabe. Se esta minha leitura vos parece um enorme “só”, é porque este livro é isso mesmo. Imaginai Jonas no interior da baleia! Imaginai-vos, cada um de vós, no interior da existência!

O livro, que é um objecto de arte, traz ainda um conjunto de ilustrações de Ana Ventura, cuja beleza não mitiga o terror da escrita. Termino com um poema da poeta Inês Fonseca Santos, último da segunda parte do livro “Segundo Dia Segunda Noite”:

“XI
As minhas dúvidas,
como poderei saber se são as mesmas,
se são as minhas? Perguntou-lhe
ele, erguendo-se
uma última vez.

Sentada diante dele, ela
agarrou a certeza como ele
agarrou as pedras:
na boca e nos ouvidos, o toque
dos sinos e só então a voz.

Eu sei, como tu sabes, quem é esse que habita as paredes da casa.

Eu sei, como tu sabes, que única mão é essa que folheia os livros, que apanha as pedras.

E eu sei, como tu sabes, que ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos assim tão pequenas.

Mas eu olho, como tu olhas, essa mão minúscula
cosendo um corredor de almofadas, aguardando
que sobre elas durma.

E eu sei, como tu sabes, que essa mão translúcida comanda os versos, abusando de pensamentos e palavras, actos e omissões.

Sabes?

Antes de mim,
antes de ti,
já existia este jardim.”
(p. 30)

20 Dez 2016

Pedro Gonzaga: “Meu temor é perdermos a capacidade de dizer”

[dropcap]É[/dropcap]s poeta, cronista do Zero Hora, jornal de Porto Alegre, e professor de literatura. Como vês o estado da língua portuguesa no Brasil? E da literatura? E quais achas que são hoje os piores inimigos da língua e da literatura?
A literatura, me parece, sofre o mal da simplificação e do maniqueísmo que tomaram as ideias e a expressão das ideias (a linguagem) em nossos tempos. A internet de potente forma de divulgação, converteu-se em leitura rápida e leviana, práticas inimigas da poesia. O português aqui em terras brasileiras ganhara, na mãos dos grandes poetas de 1930, uma encantadora fluidez e um impactante poder de expressão para os dramas sociais e individuais da nação. Meu temor é perdermos a capacidade de dizer. Mas acho que esse é o temor de todos os poetas.

O Brasil é um continente e tu vives na capital de um dos estados fronteiriços, Rio Grande do Sul. Há em Porto Alegre conhecimento da poesia que se faz na totalidade do Brasil, ou fica-se pelo chamado eixo Rio – São Paulo? E neste eixo, a poesia do Rio Grande do Sul chega lá?
O Rio Grande do Sul é uma ilha, em certo sentido autônoma, mas, sem dúvida, bastante isolada. Nosso norte máximo é São Paulo, Rio de Janeiro se pensamos no Brasil tropical. A poesia encontra grandes dificuldades de divulgação num país continental como este, e com tantas diferenças regionais. Para muitos, entre os quais me incluo, o nosso eixo cultural está muito mais voltado para a Bacia do Plata, ou seja, Montevideu e Buenos Aires. Também capitais isoladas em países ainda bastante rurais.

As relações culturais entre Porto Alegre e Buenos Aires são mesmo reais, ou isso não passa de um mito, ou talvez de um desejo?
Há um desejo muito grande da cultura dita gaúcha de estabelecer um vínculo com o mundo platino, Uruguai e Argentina. Me parece que há uma ideia difusa, mas talvez verdadeira, de uma sensação das coisas ao sul do mundo.

E por falar ao sul do mundo e em Uruguai e relações fronteiriças, não podia deixar de te perguntar por esse grande romance, que é Don Frutos, de Aldyr Garcia Schlee, passado na Jaguarão de finais do século XIX, e os últimos seis meses de vida de Frutuoso Rivera, o primeiro presidente do Uruguai. Que dizes desse romance? Sei que o Brasil ainda não o descobriu, mas ele já se torna incontornável no Rio Grande do Sul?
Aqui no Brasil, mas creio que no mundo todo, há certas injustiças literárias inexplicáveis. É o caso desse livro magistral chamado Don Frutos, que tem aquele aspecto de narrativa infinita que só os grandes romances podem ter. Seu conteúdo e sua linguagem local me parecem superáveis como acontece com Grande Sertão: Veredas, por exemplo, de Guimarães Rosa. Para a cultura sulista, como tu bem disseste, é incontornável. O que só torna mais grave o silêncio que aqui se faz. Era livro para estar em todas as escolas do Rio Grande do Sul.

Neste momento, no Rio Grande do Sul, parece-te mais pujante a poesia ou a prosa? E no resto do Brasil, és capaz de responder, apesar do continente gigantesco, que é o teu país?
É um momento bastante complicado para a produção artística no Brasil. Com as grandes conturbações sociais, os escritores parecem estar perplexos, incapazes de sínteses e mesmo de depoimentos pessoais consistentes que ultrapassem a mera ideologia partidária. O romance, com seu poder totalizante, e também mercadológico, ainda não viu surgir um panorama da Era FHC, ou da Era Lula. A poesia, num país continental como este, não consegue espaço para divulgação e acaba fenecendo. No entanto, é geralmente nessas horas que se erguem novas vozes criativas. Quem sabe o conto pudesse voltar a explodir, como nos anos 60. Mas nesta arte, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan ainda são para mim as vozes mais interessantes dos últimos cinquenta anos. Quanto ao romance, há um belo romance de Paulo Scott, chamado O Habitante Irreal, que trata da questão indígena no Brasil, com uma visão social contundente e uma forma bem arrojada.

Quanto à poesia no Brasil, ela carece de um ressurgimento. Desde o esgotamento da geração dos poetas marginais, da morte de Ana Cristina César, depois do Leminski, cuja obra me parece supervalorizada, o que há é uma espécie de poesia preguiçosa que lhes é herdeira, feita de trocadilhos e linguagem midiática, ou então um outro caminho também frouxo, de temática social, nada inovativa, seja em forma ou conteúdo. Há um tipo também de poesia desencantada, de cotidiano, que me desagrada bastante, marcada por um prosaísmo que não tem luz ou revelação. Claro que há belas exceções, os consagrados Antônio Cícero, Eucanaã Ferraz e Paulo Henriques Britto, e pelo menos dois nomes da nova geração: a anteriormente mencionada Mariana Ianelli e também um conterrâneo aqui do sul, um poeta chamado Diego Grando.

Esta semana escrevi aqui para o jornal sobre um livro que me impressionou muito, em dez anos de Brasil, Página Órfã (2007), de Regis Bonvicino.
Uma bela lembrança. Bonvicino tem a força, a contundência que me parece tantas vezes faltar em nossos tempos. A verdade é que há muita gente boa espalhada nesse país com tamanho de continente. Impossível não cometer injustiças e esquecimentos.

Tens dois livros de poesia publicados, Última Temporada (2011) – que foi abordado aqui no Hoje Macau – e Falso Começo (2013). Para quando o teu terceiro livro?
Deve sair aqui no Brasil no início de Maio do ano que vem e haverá de se chamar Em Outros Tantos Quartos da Terra. Terá apresentação da Mariana Ianelli.

16 Dez 2016

O luxo e o lixo

Leitura de Página Órfã, de Régis Bonvicino

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] livro de poesia acerca do qual vou aqui escrever é um luxo. Não é um Ferrari, é o silêncio que o Ferrari produz à sua volta, assim como a aridez dos solos ao redor dos eucaliptos. Por conseguinte, o luxo de aqui se trata é o lixo. O lixo é o silêncio do luxo, a aridez provocada pelo luxo. O sexto poema do livro, à página 21, chama-se precisamente “O lixo”. Ao lixo havemos de voltar, mas por ora comecemos pelo uso da língua, pelo modo como o instrumento é tocado. Aquilo que faz com que alguém seja maior do que é é a sintaxe. Há momentos, neste livro, em que a sintaxe nos faz ver a língua, nos faz ver o pensar, o ato de pensar, momentos em que a sintaxe nos faz ver que não estávamos a ver antes. A sintaxe é a língua pensando-se a si mesma e mostrando-se, nesse ato, à nossa consciência.

Cai a tarde / e não há quem o retarde / o cair da tarde / Cai a tarde” O artigo defino masculino do segundo verso é tudo (obviamente exagero, mas é tudo). Quero dizer que aquele “o” nos faz ver o verbo, nos faz ver o verdadeiro sentido de uma frase, aquele “o” nos revela a língua. “Cai” não é cai, cai é cair, e cair, aqui, não é qualquer cair, é “o” cair. Que este poema “Resgate” é excelente, não está em causa. Mas a excelência da poesia não é apenas o sentido do que diz, mas o manuseio da língua a fazer-nos ver a língua, a fazer-nos ver o que é a língua. Não basta dizer o que não pode ser dito para ser poesia, é preciso dizer o que não pode ser dito de um modo absolutamente sintáctico. Dizer de um modo onde a língua se pense a si mesma e nos faça pensar nesse seu gesto interior.

Por exemplo, sem o terceiro verso pensaríamos tudo completamente diferente. Para além da musicalidade, do parentesco entre tarde e retarde, isto é, para além do belo há a verdade, há o pensar, há o cair na própria língua, na sintaxe e no sentido dela. Por outro lado, “o cair” da tarde já não é mais verbo. “O cair da tarde” é complemento directo de um sujeito: “vejo o cair da tarde”; “sinto o cair da tarde”. Ou, no seu sentido mais dilatado: “impossível impedir o cair da tarde”. Mas este sentido dilatado recupera o primeiro verso “cai a tarde”. Cai a vida. Impossível retardar este cair. Este pensar, este cair em todo este sentido não é outra coisa senão a exposição da sintaxe e do seu mistério. Estamos, no fundo, diante de um livro que, desde o seu primeiro poema e a um mesmo tempo, não recusa a narrativa nem deixa de privilegiar o verso. Nada para um homem sujo / só a água numa cuba / sequer um olhar // (…) [p. 13] A narratividade expressa na primeira estrofe não anula a pertinência do primeiro verso isolado: Nada para um homem sujo (…).

E é deste homem sujo do primeiro verso que todo o livro irá tratar, isto é, de nós aqui dependurados numa cidade de costas viradas para a sua língua, para a sua história, para a sua humanidade. Que cidade é esta? São Paulo? Não. São Paulo é apenas a metonímia deste nosso tempo. A cidade é este nosso tempo exíguo, de onde dependurados vivemos com medo de cair. A primeira estrofe deste poema inaugural mostra, acusa, predica o isolamento a que alguém – um homem sujo – está votado.

Mas essa solidão ao invés de ser amenizada por um outro, pela presença de outro, é, pelo contrario, intensificada, amplificada. 1 + 1 dá quatro. Quatro solidões, ou mais, emergem quando um e outro se juntam. A cidade é uma máquina de multiplicar solidão. Na segunda estrofe do poema, o poeta escreve: mãos sujas / aroma de / amantes talvez. // (…) [idem] A possibilidade de trazer agarrado à sua pele o cheiro de amantes está directamente ligado com suas mãos sujas.

O corpo de uma mulher é um coisa, e esta relação entre um homem e uma coisa – com os dez dedos e ter / ao cabo – o corpo dessa mulher [idem] –, mais do que tudo, suja o mundo. O que mais suja o mundo é esta relação entre os humanos, isto é, entre um humano e uma coisa, pois ninguém vê o humano como humano, todo o humano é para um outro uma coisa. Esta coisa nas mãos ou na boca de um humano suja o mundo. Começa assim este livro de Régis Bonvicino. Mas não se fica por aqui. Assim, no dealbar das páginas do livro, poderia parecer que cada um em si mesmo é o luxo ou a procura do luxo e outro para cada um de si mesmo é sempre um lixo. Embora esta equação exerça sobre nós uma forte atracção, contudo, não é certa. Nem todas as coisas são lixo e nem todo o si mesmo é luxo, como veremos ao longo do livro.

Lixo e luxo, veremos em seguida, determinam-se pela utilidade ou não utilidade da relação de um humano com uma coisa. Não se entenda aqui utilidade de modo ordinário, como por exemplo um garfo diante de uma massa ou uma colher diante de um prato de sopa. Utilidade, aqui, é aquilo que nos serve e nos faz esquecer de nós e dos outros. A utilidade é, por exemplo, e no seu esplendor, a publicidade. Vejamos o poema, que se chama “Anúncio” [pp. 25-6], onde o poeta nos mostra como hoje o humano troca todos os dias a realidade pela publicidade, o existente pelo inexistente, como se de um ganho se tratasse. Mais: como se fosse o sentido da vida. O poema tem, uma vez mais, narrativa. Nessa narrativa há um acontecimento que obriga as pessoas a conduzirem seus carros mais devagar, a atravessar um viaduto muito lentamente, como tantas vezes na cidade. O poeta vai junto com os demais, mas não está com os demais. O poeta enuncia a realidade que vê: urina e fezes na calçada, latas velhas de anchova em conserva; em suma, mendigos cultivando detritos. O poeta faz-nos ver assim os novos pobres camponeses da grande metrópole e suas actividades “agrícolas”. Cultivar detritos é a grande agricultura dos miseráveis das grandes cidades.

Por outro lado, o resto das pessoas, a maioria, olha o outdoor com o rosto de uma modelo anunciando não se sabe o quê – pois nunca se sabe o quê. Ninguém vê um homem entre o arame farpado, ninguém vê esse preso no campo de concentração da vida, no campo de concentração dos dias sem nada, mas todos vêem o rosto da modelo que pode muito bem nem existir, que não existe, mesmo. Todos os dias trocamos a realidade pela ficção, trocamos o existente pelo inexistente, trocamos a poesia pela publicidade. Julgo que o titulo do livro, o sentido do titulo do livro explode páginas antes com o poema “Azulejo” [p. 18]: Meu pai e minha mãe / mortos / ninguém / algum // (…). Evidentemente não podemos esquecer o poema da página 84, “Página”. Leia-se a estrofe final: a flor da azálea / o lixo real, / e o verdadeiro / desta página

Poderíamos pensar, biograficamente, isto é, sem interesse nenhum para a poesia, que foi necessário a morte dos pais para o poeta ver a verdade e no-la mostrar. Mas toda a verdade advém sempre de uma morte ou de várias mortes no coração de alguém. Retornemos ao “Azulejo”, ao seu final: cacos ásperos / que, agora, / num ato de acúmulo / rejunto. Aquele que sobrevive à morte de um amor, fica entregue ao a-cúmulo de rejuntar os cacos ásperos da realidade, os cacos que a publicidade de todos os dias teima em fazer esquecer. O poema que dá titulo ao livro, “Página órfã”, os dois últimos versos terminam assim o livro: (…) beco sem saída, página órfã, / nunca, imitação da vida [p. 110] Imitação da vida tanto é o lixo quanto é o luxo.

Para além da sujidade do mundo, também muitos são os versos que nos mostram o seu luxo, não só através da enumeração de várias grifes, mas de hábitos ligados a um mundo de grife. O poema “It’s not looking great!”, referência explícita à top model Kate Moss, mostra que o luxo facilmente se deteriora em lixo, no mundo grife. O que não é mais útil, grifemente útil, torna-se lixo. Mais: deve tornar-se lixo e ser apontado como exemplo. Assim, as referencias contínuas, quase nauseantes de tanto a-cúmulo, a grifes e às modelos que servem de médiuns a esses mortos, tem uma razão de ser: mostrar o outro lado da realidade, mostrar o que não é a poesia, mas a publicidade, o inexistente. O luxo facilmente se vê, no poema, como lixo. À flor da página, a borboleta voa sobre o lixo e o luxo transmutando um no outro, em verdade. É assim que o poeta quer ver a sua palavra e que ela seja vista, testemunhada.

O poeta não é concreto, é duro, violento. O poeta não é lírico, é sintacticamente belo. Não há meio termo neste livro, não há classe média, não há nada médio. Sentimos a vertigem de passar dos muito ricos para os muito pobres, dos miseráveis para os hiper-supérfluos. Atravessamos ainda a rua, o verso, da ignorância medíocre para a cultura erudita. E o poema que melhor diz a poesia em geral e, em particular, a deste livro, chama-se “Prosa”, que começa assim: “Um poema não se vende como música, não se vende como quadro, como canção, ninguém dá um centavo, uma fava, um poema não vive além de suas palavras (…)” [p. 98] Nem mais. Quem investe em poesia? Quem usa a poesia do seu tempo como modo de impressionar, numa reunião social? Quem trauteia um poema enquanto faz a barba? Quem imaginaria um monstro tamanho chamado top ten poético?

E um poeta, como Régis Bonvicino neste seu livro, não canta a sua dor, não resmunga a sua verdade, nem inventa superficialidades ísmicas. Pois ele sabe que a poesia não vale nada, senão uma palavra esperando outra. Por fim, resta-me assinalar a acertada inscrição no pórtico do livro, verso de Frederico García Lorca: “y los que limpian con la lengua”. O lixo e o luxo.

BONVICINO. Régis. Página órfã, Martins, Martins Fontes, São Paulo, 2007

13 Dez 2016

Gonçalo Waddington: “O cinema e o teatro estão com uma pujança incrível”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s actor, encenador, realizador, trabalhas no teatro, no cinema e na TV, e és também escritor. Editaste recentemente uma peça de teatro, O Nosso Desporto Preferido Presente, que faz parte de uma tetralogia, e no ano passado editaste Albertine (livro pelo qual viajamos na terça-feira passada, na Máquina Lírica). Quando estudavas teatro já escrevias, pretendias fazê-lo, ou foi algo que aconteceu mais recentemente?
Foi algo que aconteceu mais recentemente. Na verdade, eu e a actriz Carla Maciel, com quem eu sou casado, pedimos a um escritor para adaptar um volume – ou uma “parte”, quanto muito -, da obra Em Busca do Tempo Perdido do Marcel Proust para teatro. O escritor disse-me que não lhe interessava a proposta e que, o melhor, seria eu, Gonçalo, escrever a peça. Foi assim que me apareceu a obra Albertine, O Continente Celeste.

Para além do teatro, quais as tuas leituras mais frequentes, para além obviamente do Proust?
Sebald, Holderlin, Hofmannsthal, Lucrécio, Pynchon, Rui Nunes, Trakl, Ingeborg Bachmann, Michaux, João Miguel Fernandes Jorge, António José Forte, Herberto… entre muitos outros e outras.

Como vês este nosso tempo em relação ao cinema e ao teatro em Portugal?
O cinema e o teatro estão com uma pujança incrível. Há filmes (curtas e longas) a estrear em todos os grandes festivais mundiais, veja-se o exemplo da curta-metragem PEDRO, da dupla André Santos e Marco Leão, que irá estrear no mítico festival Sundance Film Festival. É́ a primeira curta- metragem portuguesa neste festival. No teatro temos o caso do Tiago Rodrigues, a Praga, a Mala Voadora, o Miguelinho Loureiro, a Companhia Maior, os Possessos, os SillySeason, o Tonan Quito… tantos e tantas que têm projectos incríveis.

Quais os próximos projectos em que estás a trabalhar, de momento?
Agora estou a escrever uma nova versão do guião da minha primeira longa-metragem PATRICK, que será rodada no primeiro semestre de 2018. Depois irei para a segunda parte da tetralogia d’O Nosso Desporto Preferido – Futuro Distante.

Explica-nos melhor esse teu projecto da tetralogia, por favor.
O Nosso Desporto Preferido é uma tetralogia em que proponho uma reflexão sobre a nossa evolução como espécie universal. A primeira parte da obra, com o sub-título Presente, é composta por cinco personagens, encabeçada por um cientista misantropo que sonha com a criação de uma espécie humana livre das necessidades básicas como a alimentação, digestão e, talvez a característica mais importante para a peça, a reprodução — tornando-se assim uma espécie exclusivamente dedicada ao hedonismo e à abstracção, seguindo, de acordo com a sua visão, o caminho da evolução natural da nossa civilização tipo 0 para tipo 1, em que seremos finalmente uma sociedade global, multicultural, multiétnica e científica. A segunda parte: Futuro Longínquo, é uma pequena amostra do que serão, daqui a cem mil anos, os Homo Sapiens Sapiens Sapiens Sapiens Sapiens Sapiens – ou, recorrendo a um neologismo Houllebecquiano, os Neo-Humanos – de uma Civilização Tipo 3, de acordo com a escala Kardashev, o astrofísico russo que se propôs medir a evolução tecnológica de uma civilização, particularmente no que concerne à produção e consumo de energia. Este grupo será composto por quatro a cinco actores de diferentes nacionalidades. Estes supra-seres dedicam-se apenas a esperar pela morte: consumidos pelo tédio, uma vez que os seus corpos têm uma durabilidade cem vezes maior da que a dos seus antepassados – nós –, tentando compreender a razão de tal desvio evolutivo que levou à espécie humana a que agora pertencem. O seu único desejo é comunicar o seu desagrado pela sua presente condição, tentando, em vão, emitir uma qualquer mensagem que atravesse o Espaço-Tempo e alerte o grupo de cientistas da primeira parte – Agora –, seus criadores, para a tragédia que eles, sem o saberem, irão – no passado – 3 desencadear com as suas experiências. Enquanto não desaparecem, dedicam-se à compreensão da Filosofia, da Arte, da Religião e das Ciências humanas, sociais e políticas, uma vez que eles, seres racionais e científicos, são incapazes de tais abstracções. Conversam e jogam Badminton.

9 Dez 2016

Albertine, o Continente Celeste, de Gonçalo Waddington

61216p12t1[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]onçalo Waddington acaba de editar uma nova peça de teatro, O Nosso Desporto Preferido Presente, na Abysmo, mas no início de 2015 saía na mesma editora Albertine, O Continente Celeste, livro que iremos ver aqui hoje. Esta peça de Gonçalo Waddington, composta em três actos, cruza a mecânica quântica e a teoria da relatividade com a obra de Marcel Proust, Em Busca Do Tempo Perdido, ou, como escreve o escritor Valério Romão no posfácio que acompanha esta edição da Abysmo: “(…) uma fatia do tempo perdido, [e não o todo da obra] através da qual se faz a arqueologia da narrativa de Proust (…)”.

Mas para além das relações cruzadas entre o tempo de Proust e o tempo das ciências do micro e do macro cosmos, aquilo que primeiro salta à vista é a ligação deste texto com os da tragédia grega. Em que sentido? No sentido da tradição, no sentido da mitologia, isto é, no sentido em  que Gonçalo Wadddington toma a obra de Marcel Proust do modo que os tragediógrafos tomavam a tradição mitológica. Através da obra de Proust, Waddigton cria uma peça de teatro; através da mitologia da Hélada, os tragediógrafos criavam as suas tragédias. A fala de Marcel a Albertine, no segundo acto, abre a possibilidade de a “tradição” de Proust ser revisitada, de se escreverem outras peças, outras tragédias acerca deste corpo de mitos que é, agora, o a obra de Proust: “Mas não é para isso que serve esta soirée, minha querida. Se quiseres podemos combinar uma outra noite com essa temática.” (p. 53)

Não é, contudo, somente esta relação transversal com a tragédia grega que encontramos como diálogo estabelecido com a tradição teatral. Há também, e aqui sem dúvida incontestavelmente consciente por parte do autor, uma apropriação, em alguns momentos da peça, dos artifícios técnicos usados por Pirandello em algumas das suas mais conhecidas peças, como sejam o caso de Esta Noite Improvisa-se e Seis Personagens Em Busca De Um Autor. Principalmente na primeira das obras citadas, que começa com o encenador no palco falando aos espectadores, antes do início da peça (aqui, em Waddington, o efeito aparece através do Anfitrião, que se dirige a nós leitores antes de entrarmos na peça propriamente dita); e, depois da fala do Anfitrião, a espera dos autores no palco pela entrada do público. Mas ao longo da peça, encontramos nos diálogos entre Marcel e Albertine um desacordo em relação ao que cada um deveria dizer, em relação ao que estaria ou não escrito pelo autor, mas que os actores deturpam ou improvisam, deixando isso inteiramente a claro. Veja-se à página 40, a fala de Marcel para Albertine: “Mas não é isso que está escrito.”, Ao que responde Albertine com: “É sim.” Ou à página 48, também em uma fala de Marcel: “Eu não escrevi nada disso.” Ao que Albertine replica, na página seguinte, com: “Pois não. Não assim. Mas as memóórias enganam.” O que nos leva a ver que, se por um lado o artifício técnico é o do grande escritor siciliano, por outro serve aqui propósitos diferentes. Não se trata propriamente do autor da peça, a que as personagens se referem, como em Pirandello, mas ao inventado autor personagem Marcel (Proust). E se em Pirandello o jogo de sombras e luz, através da verdade e da mentira, são o grande leitmotiv da pergunta pela realidade, aqui nesta peça de Gonçalo Waddington é a memória e a sua natureza de criação e recriação da realidade passada, do acontecido, que está em causa, que arde na noite.

Por outro lado, a mecânica quântica ou a teoria da relatividade, a teoria das cordas, os buracos negros, os buracos de minhoca, a anti-matéria acabam por aparecer para nós um universo tão paralelo como o universo de Proust, na sua obra, fazendo com que a memória, aquilo que constrói e desconstrói o acontecido, seja um instrumento quântico de alcance de nós e dos nossos actos; um instrumento quântico que, à imagem do princípio de incerteza de Heisenberg, não nos permite certeza nenhuma acerca do acontecido, daquilo que acontece. Não há certeza acerca de nada do que se fez ou fizemos, colocando a obra de Proust numa dimensão ainda mais problemática do que a que ela já tinha antes do início desta peça. A posição de Waddigton face à obra de Proust, ao invés de lhe dar uma mão de coerência, de linearidade, aumenta-lhe a entropia, termo fundamental para a leitura desta peça. “(…) a entropia é a tendência para a desorganização” (p. 27); “A tendência, com o passar do tempo, é para a desorganização” (Ibidem) Assim, também toda e qualquer interpretação da obra de Proust, naturalmente exposta à entropia, ao passar do tempo, aumenta-lhe a desorganização, abre brechas nas paredes das páginas, socalcos nos parágrafos; aumentam também os resíduos, o lixo, que cada vez mais nos impede de ver o quarto limpo que Proust escreveu. A chave com que se abre esta peça, que nos permite entrar no mundo de Gonçalo Waddigton, encontra-se nesta surpreendente e bela passagem, à página 29, na cena 5 do primeiro acto, em um monólogo de Marcel: “(…) warmholes (…) um túnel, ou atalho, que junta dois pontos distantes no espaço-tempo. O equivalente às madalenas embebidas em chá, no meu universo.” A existirem, os buracos de minhoca, permitir-nos-ia viajar no tempo e encurtar espaços, por conseguinte, viajar a paragens do universo às quais jamais poderíamos ir, sem esse artifício. Também é assim a memória. Ela faz-nos não só viajar no tempo, como também nos faz viajar no espaço, no sentido em que nos projectamos aos lugares que de algum modo carregamos na memória. Mas aquilo que parece interessar mais, a Gonçalo Waddigton, acerca da memória é o efeito de criação que ela mesma tem. A memória não é apenas um artifício de recolha de informação, de nos lembrarmos do que aconteceu ou do que aprendemos, ela em si mesma, nesse seu modus operandi de retorno, recria a realidade do acontecido. Como textualmente se pode ler na fala de Albertine, à página 49: “(…) Mas as memórias enganam. Fundem-se como buracos negros e tornam-se uma só. Não respeitam as regras espácio-temporais. Cada memória que fabricamos, mais uma memória que engavetamos, mais uma peça para o puzzle-eu, maior a entropia da nossa singularidade [e não esquecer a passagem já aqui citada, acima, “(…) a entropia é a tendência para a desorganização” (p. 27); “A tendência, com o passar do tempo, é para a desorganização” (Ibidem)]. O destaque anterior é de minha responsabilidade. É nesta capacidade de fabricarmos memória, que reside a nossa identidade. A identidade de cada um de nós vai sendo fabricada à medida que também fabricamos as memórias. Nem todas as memórias são fabricadas, evidentemente, mas só essas importam à identidade, só essas importam àquilo que vamos fazendo de nós mesmos. Assim, contrariamente à canção antiga, que dizia que recordar é viver, em Albertine, O Continente Celeste, criar é viver. Vive-se criando o nosso presente, no passado que fomos. Por outro lado, e nas relações estabelecidas na obra entre memória e mecânica quântica, tudo o que se cria, pelo passado que fomos, passa também a existir. Aquilo que alteramos no presente, e em relação ao passado, passa realmente a existir, mesmo que antes não tivesse existido. Veja-se a passagem, já no acto final, à página 61: “Em todos os mundos, ao invés de acontecer um colapso, como na interpretação de Copenhagen, no momento em que levanto a mão direita, há um split, uma divisão. E dois mundos-universos passam a coexistir, como linhas paralelas que nunca se tocam.” O acontecido e o fabricado em relação ao acontecido coexistem em todos os tempos, como aparece no poema final do livro, à página 63:

“Em todos os mundos
Albertine continua a tocar
As minhas sonatas preferidas
Na pianola do meu quarto.

E a acariciar-me,
Como eu quero,
Às horas que eu quero.
Albertine fica trancada no seu quarto,
Quando eu quero, sempre que eu quero.
Albertine, Albertine,
De split, em split, em split”

Mas há também nesta peça, e como não poderia deixar de ser, já que dentro do universo de Proust, o problema das relações humanas, em particular a da relação entre Marcel e Albertine (no segundo acto, apenas), mas que pode ser extensa às relações entre qualquer um de nós, em uma relação amorosa ou, melhor dito, nesse lugar peculiar que é o “depois do fim de uma relação amorosa”, como à página 52: “Porque é que nunca te casaste comigo? Porque é que não respondeste aos meus telegramas?” Ou à página 58: “Porque é que não me salvaste?” Ou ainda o tão conhecido “Achas que nós poderíamos ter ficado juntos?” (Ibidem) Albertine, O Continente Celeste mostra-nos um autor com um mundo próprio, reflexivo e que estabelece um diálogo com várias tradições, sem deixar de expor a fragilidade humana, que levanta voo com o desejo e a criação do amor.

6 Dez 2016

António de Castro Caeiro: “A poesia arcaica, a epopeia, a lírica e a tragédia sempre me interessaram”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s professor de filosofia na Universidade Nova de Lisboa, tradutor de Aristóteles e de Píndaro, e recentemente editaste um livro entre a filosofia e a poesia, chamado Um Dia Não São Dias, que tive a honra de apresentar. Como entendes tu esse livro?
O livro é uma tentativa de escrever fenomenologia do tempo fora de um estilo e âmbito estritamente académicos. Usei como embrião um texto escrito na USF (University of South Florida) de 2004 sobre os dias da semana. Cada dia tem o seu tom, a sua vibração específicas. A temporalização que organiza e estrutura o dia tem também diferenças. Assim também a semana, as semanas de um mês, os meses de um ano, os anos. A possibilidade teórica está dada desde a antiguidade. Em Homero e Píndaro, mas também em Tácito, os dias ou o ano são o “sujeito” que serve de plano de fundo estrutural ao ser de tudo o que acontece, ao desenrolar do tempo, ao começar e ao expirar dos prazos. Quis redigir todos os dias um pequeno texto e foi o que fiz, quando tive um Blog no Expresso online. Escrevi todos os dias durante nove meses aproximadamente. Foi esse conjunto de apontamentos que serviu de base para aquilo que depois tu (PJM) editaste.

Quais os próximos projectos de tradução, tanto os que já tenhas terminado quanto os que ainda irás começar?
Estão para sair as constituições perdidas de Aristóteles num conjunto de fragmentos dos livros perdidos de Aristóteles: os Historika. Estão a ser preparados para sair também na Abysmo dois outros volumes de traduções de fragmentos: um volume sobre o que contemporaneamente se pode chamar Estética e um outro dedicado a textos de teor científico. Sairá também pela Abysmo uma tradução das odes Olímpicas de Píndaro. Ainda por fazer está uma tradução dos fragmentos éticos dos velhos estóicos em colaboração com um colega meu, desta feita para o IFIL Nova, unidade de investigação a que pertenço.

A tua relação com a poesia vem de longe, e foi concretizada em livro numa primeira vez na tradução das Píticas, de Píndaro, em 2005, pela Prime Books e depois, mais tarde, reeditado pela Quetzal, em 2010. Recentemente aceitaste participar num projecto de leitura de poesia ao vivo com música (o contrabaixo de Carlos Barretto), chamado No Precipício Era O Verbo, juntamente com o poeta José Anjos e o actor André Gago. Já fizeram vários espectáculos pelo país e gravaram um disco. O que te levou a este projecto?

Sim, a edição das Odes de Píndaro pela Quetzal com ensaios em 2010 é já uma reformulação da tradução das Odes Píticas, editadas em 2005 pela Prime Books. A poesia arcaica, a epopeia, a lírica e a tragédia sempre me interessaram, porque aprendi que para se ler Platão não basta saber o grego em que ele escreveu, mas os princípios genéticos do Ático. A sabedoria popular ou o folclore são formas de manifestação das inquietações do espírito dos tempos e não podem ser ignoradas. No Precipício Era o Verbo não existiria sem vários factores humanos na base do seu nascimento. O João Paulo Cotrim da Abysmo apresentou-me ao José Anjos, este ao Carlos Barretto, e eles ao André Gago. Numa sessão de apresentação de Um Dia Não São Dias, na Barraca, organizada pelo poeta Miguel Martins, o Carlos Barretto propôs que tentássemos fazer leituras com Contrabaixo. O João Paulo Cotrim associou-se ao projecto e, assim, aos poucos, demos corpo a um reportório com poesia ou textos poéticos do José dos Anjos, André Gago e meus, com versões de poesia estrangeira (dórico e alemão) lida no original. A experiência do palco ressuscita a minha juventude quando actuei como baixista nos Mata-Ratos. Tem sido gratificante a partilha e fazer parte de um projecto em que acredito pela sua consistência e originalidade. Aproveito para dizer que o nosso percurso será coroado pela primeira vez com a actuação no CCB, no dia 20 de Dezembro.

Pensas em escrever acerca de poesia, de modo a produzir um livro?
Por defeito, tudo o que leio tem vista poder falar sobre o assunto nas aulas, assim também tudo o que escrevo visa a possibilidade de uma publicação, no sentido lato do termo. Tenho feito várias apresentações de livros de poesia de autores contemporâneos portugueses. Sempre produzi texto para o efeito, porque nunca consigo falar “de cor” nestas circunstâncias. Gostaria, contudo, de fazer despistagens de maior fôlego sobre o modo como a poesia exprime e se posiciona relativamente a problemas mais intimamente ligados à metafísica: a vivência da temporalidade humana, crónica e finita, definição de orientações e direcções em encruzilhadas, indecisões, destino, contra tempos, atrasos de vida, perda de sentido, crises afectivas, impactos emocionais, disposições, etc., etc.. A economia da formulação poética sempre me impressionou muito mais do que o encadeamento argumentativo. Talvez sejam duas formas indispensáveis para “dizer o humano”, complementares, indissociáveis.

E para quando um novo livro teu de filosofia?
Tenho estado a estudar a melancolia como manifestação do espírito desde os Hipocráticos, passando por Platão e, claro, Aristóteles que tem, este último, uma referência explícita ao fenómeno, nos Problemata. Depois, tenho estudado o fenómeno do ponto de vista da psicopatologia e da fenomenologia. O conjunto de estudos que sairá de um semestre que farei sobre melancolia, depressão, mania e euforia, constituirá um conjunto de anotações e de textos. O que sair desse curso permitirá a redacção de um texto. Não sei ainda qual o seu formato, mas pretendia que pudesse ser lido sem os tiques do ensaio académico e que se aproximasse mais do modelo encontrado para Um Dia Não São Dias.

2 Dez 2016

Fera Oculta, de Vasco Gato

[vc_row][vc_column][vc_column_text]feraoculta1[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]era Oculta, de Vasco Gato, editado pela Douda Correria em 2014, é um livro peculiar por várias razões, mas duas delas saltam de imediato à vista: livro pequeníssimo, de 13 páginas escritas, divididas em cinco poemas, e dedicado ao filho que estava para nascer. O nascimento de um filho, embora não salve o mundo, nem produza nenhuma ruptura ontológica, desata nos pais uma vontade de que as coisas sejam diferentes do que têm sido. Não uma diferença na vida pessoal, embora aqui e ali também a vida pessoal pudesse estar mais afinada – “(…) Gostaria no entanto de te receber / num outro lugar / não neste boi tombado / que dá pelo nome de vinte e um / peso morto arrastado pelos cornos / apenas para que não o devassem / as moscas / (…)” –, mas uma diferença universal, ou, para não sermos tão absolutistas, uma diferença nacional – “Perdoa a falta de graça / o tom melancólico a guerra / mas é que vivo numa época / que como muitas antes dela / repetiu os subsídios ao nojo / bateu o sangue em castelo / (…)” – isto é, a consciência do mal do mundo não aumenta, mas agudiza-se. Agudiza-se através daquele ser prestes a nascer, como se fosse uma parte do poeta (e da sua mulher) onde o mundo se faz sentir mais, onde o mundo mais dói ou passa a doer mais. É sabido, um filho é o calcanhar de Aquiles dos pais em relação ao mundo.

E, do centro desta vulnerabilidade, desta dor, Vasco Gato escreve meia dúzia de poemas onde mais do que a vontade de mudar o mundo, ou de que o mundo seja diferente, como por exemplo no poema de Jorge de Sena “Carta A Meus Filhos Sobre Os Fuzilamentos De Goya”, se desenha o absurdo do mundo, a geografia do absurdo do mundo. Logo no primeiro poema:

“(…)
Sei que haverás de te deslocar
timidamente
por estas ruas e prédios que bocejam
dos nomes que lhes deram
e que contigo terão uma razão mais forte
para conspirarem na longa malha
inanimada
em que se decidem os bichos
a que chamamos homens
e que tão pobremente os têm
habitado – garanto-te –
à excepção de uma ou outra carne
mais obstinada em escapar
à bala comum
Para tudo isto terás tempo
ainda que rapidamente te dês conta
de que tudo é já tão tarde
eu próprio lamento o tempo que esperei
(…)”

Apesar do cenário não ser brilhante, apesar de trazer o filho a estas ruas não muito famosas de amor, de todos os amores que as palavras inventaram e aos quais também escondem, apesar de saber que inventa um filho para “o fruto magro que hás-de roer noite dentro / nalgum bairro de pormenor / quando o escasso amor que te deram / for o alimento oportuno / de um amor mais desenvolto”, ainda assim o poeta reconhece que não perdeu tempo em dar ao mundo esta sua invenção, uma invenção conjunta com a mãe do filho, tal como singularmente está inscrito no início do livro: “Com a Inês / para o Rodrigo”.

Há assim neste pequeno livro duas defesas: a da paternidade e a da linguagem. A defesa da paternidade não implica necessariamente a obrigação da paternidade, mas a de alguém que reconhece, pessoalmente e não universalmente, à laia de teoria, ser melhor ser pai do que não ser, como podemos ler no verso citado anteriormente “(…) eu próprio lamento o tempo que esperei (…)” ou “(…) a mulher que transpôs comigo / o limiar do cinismo (…)”. Assim, a paternidade não produz uma ruptura ontológica, mas pode produzir uma ruptura ética, como a que se descreve neste livro: a transposição do limiar do cinismo. E é nesta corda ética, esticada entre o que agora se passa e o que o poeta espera para o filho, embora não espere nada que não exista agora, apenas que não piore a um ponto irrespirável – “Os momentos em que a claridade / é um capricho dos eléctricos / e os corpos se demoram nas praças / como se de facto houvesse alma / e devêssemos salvá-la / da crueldade e do tédio / são esses os momentos que te desejo / nalguma cidade futura / nalguma encruzilhada de gente (…)” –, é aqui que os poemas se estendem do princípio ao fim.

A linguagem, e apesar dos versos do poema V – “(…) / como se fosse possível / ir de verbo / ao segredo de uma boca // Não guardes por isso destes poemas / o que certamente está aquém / das águas que / te trazem / (…)” –, tem uma luz própria: a misteriosa luz que leva o poeta a registar esta passagem em livro. Apesar de um poema como este – “(…) não receies por isso deus nenhum / nem eternidade nenhuma / a tua carne é o único tesouro / (…)” –, onde parece exaltar a transitoriedade, a carne, o poeta não esquece que tudo é mistério, que tudo é inexplicável, que tudo é estar à deriva.

“(…)
Ninguém sabe ao certo
com que esmero será capaz de arrombar
a frágil película das horas
a pilhar esse instantes de fraternidade
com o espanto de existir
(…)”

Este livro, talvez mais do que qualquer outro livro, faz vir à consciência o problema da escrita em geral e da poesia em particular. A realidade é uma página por escrever num mundo sem escrita. Uma vontade que vem não se sabe de onde. E mesmo que alguém soubesse o que é um poema, ainda assim não deixaria de escrevê-lo, se fosse pela sua mão. E mesmo que alguém soubesse o que é um homem, ainda assim não deixaria de recebê-lo, se fosse seu filho. Esta estranha ligação que alguns de nós, humanos, temos com o desconhecido, quer seja o poema quer seja o nascimento de um homem, fica bem expresso na metáfora certeira que Vasco Gato usa para dizê-lo: nadar. “(…) Ouço-te nadar sempre nestes meus dias / de náufrago (…)”. Nadar não é existir, nada-se, enquanto se espera por vir à existência. Nada-se enquanto não se alcança esta terra perdida, indecifrável, que é o mundo, a vida, a existência, o estarmos aqui de mãos fechadas uns para os outros, desconfiados que a comida não chegue, desconfiados que o amor não chegue, desconfiados que a vida não chegue. Por isso, este pequeno livro torna-se o tesouro mais bem guardado que alguém pode deixar a quem chega à vida. De desconhecido para desconhecido, de poema para uma existência a vir, de agora para o futuro. Nunca um livro foi uma tão perfeita imagem de um vir à existência, como este de Vasco Gato. Eis o último poema do livro, VI, onde tudo é dito de modo perfeito:

Que não te enganem
os que compram as horas por atacado
para do teu suor extraírem
a bandeira de um país que nunca será o da atenção
que nunca será o da morada
mas sempre e sempre
o território homeopático da extinção
em que os troféus são
joelhos vergados à condição de cera
para os soalhos do progresso
cujo verdadeiro nome é
despovoamento
Vender-te-ão o conforto
a perseverança o brio
como se tivéssemos por fito
a acumulação de tempo
sem o fruirmos boca a boca
desesperadamente
garantir o futuro dir-te-ão
sem repararem na estupidez do repto
pois que poder temos nós
sobre as válvulas biológicas
do nosso prazo
para nos arrogarmos a garantir
o que quer que seja
quanto mais o sumo fruto da inexistência
esse futuro-cano-enfiado-na-boca
para ser disparado sem falta
de manhã e ao deitar
Em volta sucedem-se clarões
e abismos inóspitos
os elementos torcem-se na pesca à linha
dos lugares fundamentais
há uma convulsão de panoramas
para o brevíssimo turismo
dos olhos
mas o importante é a matemática mesquinha
do sangue que furtamos uns aos outros
a medalha de carne pútrida
com que esperamos aparecer
nas fotografias da época
Que se foda a época
digo-te já
que se foda a sépia dos futuros
eu quero aparecer no dia
do teu nascimento
desarmado como uma árvore
sem outra missão que não
amparar-me o susto
e dizer-te baixinho
bem-vindo ao continente dos frágeis
podes parar de nadar

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

29 Nov 2016

O poema não fala – Matilde Campilho

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[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m livro de poesia com mais de cento e vinte páginas e primeiro livro de um autor, torna-se difícil de abordar, se formos honestos connosco mesmos. Assim, e como tenho feito, percorrerei apenas as linhas fenomenológicas dos poemas. Matilde Campilho publicou o seu primeiro livro, Jóquei, em 2014, pela Tinta da China. Viveu algum tempo no Rio de Janeiro, e algum outro tempo dividida entre Lisboa e a chamada cidade maravilhosa. Esta vivência além mar é visível no português híbrido com que os poemas foram escritos. Matilde Campilho é também a primeira poeta, das poetas e poetas acerca de quem tenho escrito aqui no Hoje Macau, a ter estado presente no importante Festival Literário de Macau – The Script Road –, e na sua última edição, em 2016.

Em “O Príncipe no Roseiral”, segundo poema do livro, páginas 9-10, somos levados pela nossa imaginação kantiana à Grécia Antiga, a Parménides e à sua inversão de identidade entre pensar e ser. O poema começa assim: “Escute lá / isto é um poema / não fala de amor / não fala de cachecóis / azuis sobre os ombros (…)”. Por um lado “isto é um poema”, e por outro “não fala de”. Todo o poema enuncia aquilo de que não fala – do rolex, da bandeirola da federação uruguaia de esgrima, do lago drenado da floresta americana, de comoções na missa das sete, de tractores quebrados na floresta americana, da ideia de norte na cidade dos revolucionários, de choro, de virgens confusas, de publicitários de cotovelos gastos, de manadas de cervos, de amor, de santos, de Deus – mostrando assim duas coisas: o poema é para além do que diz e o poema  não tem de saber nada de nada; por isso, pensar e ser faz curto-circuito entre ser e pensar, ao afirmar poder-se pensar o que não é, isto é, o poema pode trazer à flor da página e ao nossa consciência aquilo que ele mesmo não é, aquilo de que ele mesmo não fala, mas enunciando-o.

Este curto-circuito da poesia, tal como é enunciado no poema de Campilho, fora já enunciado por Platão, no livro X de A República, isto é, o ponto de vista da falência do conhecimento que grassa a poesia. Escreve o ateniense: “Assentemos, portanto, que, a principiar em Homero, todos os poetas são imitadores da imagem da virtude e dos restantes assuntos sobre os quais compõem, mas não atingem a verdade; (…) o poeta, por meio de palavras e frases, sabe colorir devidamente [tudo aquilo a que se refere] cada uma das artes, sem entender delas mais do que saber imitá-las (…)” (600e-601a).

Matilde Campilho com este seu poema resolve de uma penada o problema da poesia em relação a Platão e a uma grande parte da filosofia tradicional. O poema não tem de saber nada, ele é um poema. E se o poema não tem de saber nada, assim também aquele que o faz, o poeta, não tem obrigação de mostrar conhecimento no seu poema. O poema não imita, nem bem nem mal, aquilo que não sabe; o poema é um poema, não fala de. Pôr um poema a falar de, seria o mesmo que fazer de alguém uma cidade. Escreve Campilho no início do poema “Mão Dupla”, às páginas 37-9: “Meu filho / tente não fazer de ninguém / uma cidade”. Poderíamos imitar Campilho e dizer: meu filho, tente não fazer do poema uma cidade. Evidentemente a resposta dada pela poeta, na sua forma negativa, como se a positiva fosse comum, é muito mais interessante do que o que aqui possamos escrever. Devemos sempre tentar fazer com que um poema não seja uma cidade, com que um poema não seja uma pessoa, com que o poema não seja uma aula de geometria, de gramática ou de arte. E também é evidente que o poema “Mão Dupla” não está a responder ao poema “O Príncipe no Roseiral”. E também parece ser evidente que Matilde Campilho não pensou ou sequer imaginou tal relação entre os seus dois poemas ou entre os seus poemas e Parménides ou Platão (embora aqui possa ser mais fácil de imaginar que o tenha feito). Mas é isso que a poeta nos diz, antes de mais, quando escreve o seu poema, enunciando o que ele não tem de falar. O poema não fala, ele é. E neste ser do poema, que curto-circuita ser e pensar em Parménides, e de lavada o problema da imitação da arte em Platão, abre todas as possibilidades. Talvez nunca tenha sido dito tão claramente como neste poema de Matilde Campilho, que a poesia não tem complemento directo, nem determinativo, nem circunstancial, nem temporal. O poema é. Vemos agora que não se trata de uma inversão do ser em Parménides, talvez somente de um passar por cima,  ou ao largo, porque o poema é o que pensa e o que não pensa. O poema, vimo-lo anteriormente, enuncia aquilo que não é, não enunciando nunca aquilo que é. O ser não pode não ser, diria o eleata, e o não-ser não pode ser.

Já perto do fim do livro, em “Pedra Explodida Na Mão Do Monge”, Campilho começa assim o poema: “Penso em astronautas / não penso em árvores chinesas / penso na contagem dos cabelos, / não penso em punhais (…)” Que quer dizer pensar aqui? Pode-se pensar em algo sem pensar. E é este o domínio do poema, o do pensar sem pensar, o do ser não sendo. Como se diz no Brasil, Campilho mata a cobra e o mostra o pau. Mas voltemos ao poema que começamos a ler inicialmente: “Escute lá / isto é um poema / não fala de amor”. Este poema torna-se assim o motor de toda a poesia de Campilho, que nos surge verso a verso, página a página como se não lhe interessasse a reflexão, como se não lhe interessasse a tradição metafísica de olhar o poema. A reflexão na poesia de Matilde Campilho não chega chegando, feito carioca, aqui a reflexão é feito mineiro, come pelas beiradas, isto é, faz sem que ninguém perceba, faz pela calada, dir-se-ia em Portugal. Escreve Campilho, em “Conversa de Fim de Tarde Depois de Três Anos no Exílio” (pp. 51-2): “(…) é terrível a existência de duas retas / paralelas porque elas se cruzam no infinito / a verdade é que nunca nos interessou / a questão do infinito mas o resto (…)” A poesia de Campilho diz, se desdizendo, como aquilo que a poeta ou quem nas suas páginas faz de poeta relata, ainda no mesmo poema: “(…) eu na verdade prefiro mais de mil vezes / sua chávena de chá ficando fria sobre a mesa / enquanto você fala sobre raízes quadradas / enquanto você fala sobre ladrões de figos / enquanto você fala sobre o tropeço da baleia / enquanto você fala (…)” Mais importante que a fala, mais importante que a reflexão é a beleza do mundo, a beleza das coisas, a descoberta das coisas, que passam longe da reflexão, elas são, acontecem. Viver a vida é estar disponível para as migalhas do pão sobre a mesa, disponível para a chávena de chá a arrefecer sobre a mesa, disponível para o silêncio das pessoas e a fala das coisas. E, por isso mesmo, ainda quando um poema parece terminar reflectindo, parece terminar como se nos quisesse fazer pensar alguma coisa, como no final do poema que temos vindo a citar – “porque você e eu a gente é feito de matéria / escorregadia, i.e., manteiga, azeite, geleia / e espanto.” – ele só quer dizer o quanto é absurdo mostrar o que se pensa num poema, como alguém aos cinquenta anos aparecer vestido com a roupa de quando tinha vinte. Não deixa de poder ser verdade, o que estes últimos versos dizem, mas aquele “i.e.”, escrito assim à laia de artigo para professor de universidade ver, não deixa dúvidas quanto à ironia da poeta neste final de poema, e eu imagino-a até a escrevê-lo sorrindo e com um copo de caipirinha na mão, no Lucas, junto ao posto 6 de Copacabana, ainda que ela provavelmente o tenha escrito de manhã, bebendo uma xícara de café e de mau humor.

Por tudo isto, quando à pagina 70 e seguintes, nos aparece o poema “Principado Extinto”, num claro contraponto ao segundo poema do livro, “Príncipe no Roseiral”, dizendo “Isto é um poema / fala de amor (… ) Isto é que é poema / fala dos cheiros das flores / e da injustiça da existência / das flores na cidade (…)” este poema não tem a mesma força que até aqui foi propalada e ninguém o pode levar a sério, nem a poeta. É um poema como para ver se estávamos com atenção. Um poema que tem a sua resposta dada por Campilho, umas 13 páginas antes, na última estrofe do poema “Rua do Alecrim”: “Assisto a toda esta cena e penso que esta visão / real ou inventada, / é muito pior do que a verdade a bofetadas.” Porque o poema, ficámo-lo a saber por Matilde Campilho, não fala de; um poema que fala de é pior do que a verdade a bofetadas. O poema à página 70 é uma pegadinha. Pois se atentarmos bem, se lermos com a atenção que os dois poemas merecem, entendemos que, falar de ou não falar de, dá no mesmo. O poema enuncia, abre clareiras, faz ver, não necessariamente através da reflexão, que vem pela beirada, mas pela atenção, por iluminar uma frase, como por exemplo “fala da permanência inútil”, ou iluminar um acontecimento no mundo “fala da aparição do inverno / fala da fuga dos albatrozes”. O poema, adivinha-se, é uma máquina de inverter as coisas, como escreve Campilho à página 100, no início do poema “Rugove”: “Levantei-me para o contrário disto (…)” ou ainda à página 73: “acho que, quando a gente telefona / fora de época, é porque está dando / uma ligadinha para o passado. não / para a pessoa realmente.” Nesta inversão das coisas, que a poesia é, pelo menos para Matilde Campilho, o que fica sempre a claro é aquilo que não se sabe. O poema acrescenta não saber ao que já não se sabe. Depois da leitura de um poema, dizemos: “olha, mais uma coisa que eu não sei!” Ou, com versos da poeta: “(…) e – como disse Adams – bom mesmo é chegar / ao fim da estação sem nenhuma resposta.”

TWO-LANE BLACKTOP
Aprenderei a amar as casas
quando entender que as casas são feitas de gente
que foi feita por gente
e que contem em si a possibilidade
de fazer gente.
(p. 106)

Antes de terminar, digo que gostaria mais que este livro fosse dois, um mais vertical e outro mais horizontal. Mas aprender a ler, essa tarefa diária do leitor, é também aprender que as coisas não são como queremos. Feche-se hoje o bar com um poema de Matilde Campilho.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

22 Nov 2016

Nuno Moura, poeta e editor: “Estamos na Dinastia Flang”

[dropcap]A[/dropcap]lém do teu trabalho como poeta, desenvolveste recentemente um trabalho editorial, com a tua douda correria, onde tens publicado poetas tão diferentes como sejam o caso de Carla Diacov (brasileira) ou António Poppe, e de Raquel Nobre Guerra e Vasco Gato. Talvez os primeiros se enquadrem mais naquilo que tem sido a tua própria poesia, o que mostra uma elasticidade de gosto tão magnífica quanto rara, no nosso pequeno rectângulo encostado ao Atlântico. Por tudo isso, os meus parabéns! Quais os teus critérios para a edição de um livro?
Obrigado. Primeiro ter dinheiro para pagar à gráfica e à nossa compositora Joana Pires. Depois o critério vem com o próprio texto.

Aplicas os mesmos critérios aos teus livros, imagino. Estás a preparar um livro novo?
Vou corromper a Adília “é preciso desentropiar o critério todos os dias”, e ando com o Cavalo Alucinado, mas nem sempre estou para longas caminhadas na mata.

Hoje aceitarias editar em outra editora que não fosse tua, ou isso não faz sentido para ti?
Mais do que aceitar, eu desejo. Gostava muito de ser editado na Medula do Manuel A. Domingos.

Como chegaste a esta nova poesia brasileira? A Carla Diacov e o Diego Moraes li-os antes em revistas literárias de Curitiba, mas nunca pensei que pudessem ser editados tão depressa aqui.
Nos anos 80, 90 do século passado eu esperava dois ou três meses por um livro. Ia sempre nervoso aos Pedidos Internacionais da Livraria Portugal. Com aqueles funcionários adeptos da descontra, entre máquinas de escrever e Madeira, em número suficiente para se criar logo ali um sindicato. Agora alguém te diz ‘tens que ver isto, este autor’ e tu olhas e lês. E falas.

Começaste também muito recentemente uma colaboração entre a Douda Correria e a Demónio Negro, de São Paulo, com a edição de Senhor Roubado, de Raquel Nobre Guerra, no Brasil. Editar-se-ão de seguida Catar Catataus, de Paola D’Agostino, Fruta Feia, de Miguel Cardoso e o teu Canto Nono. Queres explicar melhor como funciona esta colaboração?
Troca de autores e textos. Ele tomou a dianteira e enviou-me alguns exemplares. São belos. Para quê estar a fazer aqui, à maneira da Douda, se podemos ter os, digamos, originais-na-prensa? O Vanderley faz 50 exemplares a mais e envia-me.

Recentemente afirmaste que consideras o António Cabrita o melhor poeta português vivo, e que isso causa muito espanto entre as pessoas. A mim, não me causa espanto, mas porque achas que as pessoas se espantam com isso?
Porque se calhar pensam que é algum ministro ou dirigente desportivo, sem desprimor algum. O presente nunca chega a tempo da escola.

Na China antiga, na época da dinastia Tang, o mundo mais poético que existiu na face da Terra, para se ser mandarim, isto é, empregado público, o teste final (entre outros) era escrever o seu próprio poema, embora os poetas pudessem não ser mandarins, como nos excelsos casos de Li Bai e Du Fu. Quão longe estamos hoje deste mundo? E achas que só pode melhorar, ou ainda vai piorar?
Estamos na Dinastia Flang, ainda usamos parafusos. Eu não seria um mandarim e, como diz a minha mãe ‘filho, eu não trocava isto por nada’. Normalmente diz isto de uma série qualquer de televisão.

18 Nov 2016

O preço das casas

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]orria o ano de 2002, e a editora Gótica lançava um livro de poesia chamado O Preço das Casas, de Joaquim Cardoso Dias. Livro com 62 páginas e 40 poemas, divididos em duas partes: “Entrada de Emergência” e “De Uma Porta à Outra”. O título, somado à inscrição de Ruy Belo, antes do início do livro – Só as casas explicam que exista / uma palavra como intimidade – sugere-nos logo uma leitura junto da fenomenologia. Embora o preço das casas, a que o título se refere, também seja o preço de mercado, o preço que pagamos pelo imóvel, o preço que pagamos com o suor do corpo, o preço das casa aqui é antes de mais o preço da intimidade que nasce entre quatro paredes, o preço da intimidade que nasce entre um coração e outro ou, melhor seria dizer com Cardoso Dias, o preço da intimidade que nasce entre um animal que cheira outro animal – escreve o poeta à página 28, no poema “Another Shade Ten Minutes”: “(…) onde um animal olha outro animal olhando-lhe (…). No fundo, o preço das casas é o preço de amar. Mas o que é amar, neste livro, e que se adivinha que também seja na vida? Esta pergunta – o que é amar – lembra-me sempre um verso de Pedro Tamen: “Amor, é amar”. Aquela vírgula ficou para sempre no meu coração. E aqui neste livro de Joaquim Cardoso Dias a pergunta não é menos pertinente. Começa assim o livro, com o poema “Sem Mentir”:

ainda não sei se o amor esteve aqui de luz acesa

e se caminhou nu toda a noite

pelo tecto do quarto mas

eu tirei a roupa toda bebi água

e não te telefonei

qualquer coisa assim atirou-me de bruços

para o coração e lembrei-me

de te esquecer desde o começo

muito longe e alto nas escadas de incêndio

foda-se como acreditar que te amo

sem mentir

Poucos são os livros com começos tão felizes como este. De uma felicidade amarga, como toda a felicidade revisitada – “(…) Nessun maggior dolore / che ricordarsi del tempo felice / ne la miséria (…) / Não há maior dor / que recordar o tempo feliz / já na miséria” (Dante, Divina Comedia, Canto V, vv. 121-23). E o que é um bom poema, se não uma felicidade revisitada? Mas este poema dá-nos o tom do livro, em quatro penadas: uma casa vazia, a noite onde não se dorme, o amor que só tem carne e por isso estraga-se, e a necessidade imperativa de mentir, não só para que o amor exista, mas também para que a vida exista. Escrever poemas aparece logo no início do livro, como a arte superior de mentir. Porquê superior? Porque admite para si mesma a sua essência longe da verdade. Leia-se este poema de uma cintilação rara, “Enquanto A Noite”:

não tenhas medo é tudo o que sei fazer

duas das minhas mãos pelo teu cabelo enquanto a noite

essa idade onde descreveras o calor à volta de mim

e um pouco mais

sei por isso quem morre neste poema

Escrever é mentir, viver é mentir-se. E, entre as mentiras da escrita e da vida, há apenas a beleza; a beleza dos versos, como o início deste poema, e a beleza dos corpos, capazes de descreverem o calor à nossa volta. Ponto de vista este que é reforçado no poema “Mitologia”: “finjo que acredito em ti: amo-te /e sem o saber todos os sonhos / caíram no fim das tuas palavras antes da única verdade / se ter ferido encostada tanto / ao meu peito”. A única verdade: o corpo, a beleza. Há um verso de Ruy Cinatti, que ecoa aqui com uma força ainda maior: “Quem não me deu Amor, não me deu nada” – este livro de Cinatti, O Livro do Nómada meu Amigo, é aliás um livro que brilha na escuridão destes poemas. Mas aqui em Cardoso Dias, poderíamos traduzir para: Quem não me deu Beleza, não me deu nada. Pois o amor é apenas parte inexistente, ou desconhecida, da beleza.

Assim, o preço das casas é o preço dos corpos, o preço da beleza, o preço daquilo que faz a vida ser vivida, que faz a vida valer a pena, que faz, no fundo, a vida ter preço. Escreve o poeta em “Salsugem@hotmail.com”: “um segredo é a alquimia mais sincera / uma contradição comum com interesse individual // neste sentido amo-te tanto e amo-te muito // e publicar esta ausência contrária / é um erro trágico que irei pagar com o teu corpo.” Esta contradição comum com interesse individual, com que o poeta nomeia o segredo, essa sinceridade única, que é o silêncio que une dois corpos, e condenada a acabar assim que se enuncia, é também a vida. A vida é um segredo.

Do ponto de vista da técnica, aquilo que mais salta aos nossos olhos, é a duplicidade do verso, como no poema “Mitologias”: “e sem o saber todos os sonhos / caíram no fim das tuas palavras (…)” No primeiro verso somos levados a pôr uma vírgula entre “saber” e “todos”, acabando por ler: e sem o saber, todos os sonhos… Mas o poeta não quis a vírgula porque não quer que se leia apenas assim, quer também que se leia: e sem o saber todos os sonhos… Mesmo sem saber todos os sonhos, ou sem saber “todo” o que seja, que é a condição humana, tudo nos cai ao chão, tudo cai ao chão, como no poema de Dylan Thomas. Terminemos com este poema de Joaquim Cardoso Dias:

O PREÇO DAS CASAS

não foi ao mesmo tempo

uma viagem o mesmo ar entre o teu sorriso

ou esta navegação politica da idade

mas eu acreditei em tudo

desde a primeira vez em que estivemos juntos

eu dava meia volta e a lua

lá estava durante o sono

no meu espelho de atravessar os mares

iludindo a vontade de chorar

até a temperatura se tornar insuportável

na interpretação quase televisiva do mundo

de repente pouco sabíamos um do outro

e a sensibilidade ficou assombrosamente maior

por denunciar a minha barba cada vez mais insistente

agora só o teu corpo consegue despir-me

agora posso sonhar até deixar de ter

e teremos perdido tudo por engano amor

e durmo contigo sem ninguém ver

esta rosa do fundo da minha cabeça

dormirei contigo esta noite aqui devagar

onde atiro pedras a todos os sentidos

apago a luz e espero o sono

as pálpebras limpam este desejo no movimento da respiração

já não tenho comprimidos para te esquecer

Joaquim Cardoso Dias publicou recentemente um novo livro de poesia com o título Pornografia Doméstica, pela editora Gulliver. E, tal como O Preço das Casas, também já está esgotado.

15 Nov 2016

Valério Romão: “Não me interessam os temas da moda”

[dropcap]E[/dropcap]nquanto outros seguem guiões pré-definidos, como por exemplo ter de escrever uma cena de sexo (ou mais de uma) e uma piada (ou mais do que uma), ou seguir um imaginário completamente retórico, quase até ao limite da publicidade, os teus livros começam a partir daí, como a Marina Tsvetaeva para a poesia russa, nas palavras do poeta Joseph Brodsky em “Less Than One”: “Marina começa os seus poemas onde os outros acabam”. Tens a consciência de que escreves ao arrepio do que se escreve hoje em Portugal?
Não sei se é exactamente ao arrepio daquilo que se escreve em Portugal, embora eu tenha uma consciência, ainda que pouco nítida, de que faço um caminho que tem um formato e trajecto com algumas particularidades que o distingue dos restantes. Talvez isso corresponda, grosso modo, à noção de estilo – seja lá o que isso for neste tempo em que parece que a única ocupação moral e eticamente permitida é o estilhaçar de categorias (e não para criar algo de novo, mas para terraplanar diferenças, um ideário paradoxal no qual se propõe que a criação não tem de criar nada e que o seu propósito é normalizar tudo, seja pela ironia, seja pelo pastiche, até nada se distinguir de nada). Não me interessa esse manifesto de terra queimada, não me interessam os temas da moda, não me interessa ser “actual”. Interessa-me sobretudo trabalhar com coisas que me são próximas e, simultaneamente, desconfortáveis. O que me interessa – pedindo desculpa pelo pretensiosismo inerente ao que vou dizer em seguida – é fazer qualquer coisa que, tendo um pé no agora, possa transcendê-lo: qualquer coisa de humano.

A única forma literária que nunca escrevi foi o conto. Nem sei se sei fazer ou não. Tu tens uma predilecção pelos contos, ou entre o conto e o romance venha o diabo e escolha? Qual a diferença dessas duas formas de escrita em ti?
Grande parte da minha formação enquanto leitor tem que ver com a leitura de contos, sobretudo os da escola do absurdo: Gogol, Kafka, Buzzati, Cortázar. Um conto é, passe a obviedade, muito diferente de um romance; um romance é uma corrida de fundo, uma ultra-maratona na qual parágrafos ou páginas inteiros podem estar ligeiramente ao lado ou mesmo desalinhados. Há um grau de tolerância relativamente ao romance que diminui exponencialmente quando passamos para formas mais breves de literatura: é muito menor no conto (talvez um, dois parágrafos) e ainda menor na poesia (às vezes, nem a um verso se permite o coxear). O conto para mim é a forma mais adequada para preparar desfechos inusitados e para testar ambientes e contextos incomuns, duas coisas que eu próprio procuro enquanto leitor. Tem ainda o bónus de ser possível começar e acabar um conto no mesmo dia, coisa que naturalmente não acontece com um romance.

E como entendes a arte da crítica literária, que rareia nesta urbe?
A função essencial da crítica literária é a recondução de um autor e/ou de uma obra ao lugar que pertencem na história da literatura, lato sensu. A crítica dispõe (ou devia dispor) das ferramentas necessárias para aquilatar o grau de novidade, sofisticação e relevância de uma obra. Só ela, dado a sua memória histórica, assente no trabalho de leitura e de crítica, pode encontrar o lugar do autor. O autor não faz isso sozinho. Não faz isso através do público. É o crítico o geógrafo capaz de encontrar o lugar do autor e a sua afiliação. O que normalmente lemos são recensões. E um e outro trabalho podem coexistir. Ambos são necessários. Descuidar a crítica, porém, é prestar, em primeiro lugar, um mau trabalho ao autor e ao público.

Viveste muitos anos em França, qual a razão pela qual não te tornaste um escritor de língua francesa?
Não me senti nunca em casa, em França. E não me sentido em casa, o francês, embora fosse a minha primeira língua, nunca se tornou um médium literário. Há que igualmente notar que saí de França com 11 anos, uma idade insuficiente para que a língua francesa tivesse obtido competência literária. Tornei-me leitor de francês mas não falante, e essa falta de prática aliada ao facto de nunca ter sentido França como “a minha casa”, fez com que acabasse por ser perfeitamente natural escrever em português.

Tens uma licenciatura em filosofia. Achas que o curso que fizeste foi determinativo para seres o escritor que és? Vias-te a fazer outro curso, que não te conduzisse tanto a ti como o de filosofia? Eu não me imagino sem filosofia.
Absolutamente. E atrevo-me a dizer que sou ainda mais específico: é o curso de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. Não teria as mesmas competências de análise fenomenológica se não tivesse tido aulas com o Nuno Ferro, com o Mário Jorge de Carvalho, com o António de Castro Caeiro. Do mesmo modo, a minha perspectiva relativamente à estética não seria a mesma se não tivesse sido aluno da Filomena Molder. Não raras vezes socorro-me do que retive da minha passagem pelo curso de filosofia e do que vou lendo, entretanto, para escorar um capítulo, uma personagem, um livro inteiro. A filosofia está sempre presente, é mais que um conteúdo, é uma forma de pensar. Está presente de forma inconspícua, são as costuras das coisas, o espaço entre os retalhos, a geometria oculta que transforma um arrazoado de acontecimentos numa estrutura narrativa. Pode fazer-se tudo isto sem filosofia? Claro. Mas para mim seria mais difícil.

11 Nov 2016

Palavra contra palavra (continuação)

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] palavra escrita tem a primazia, não porque seja mais educada ou mais limpa, mas porque tem uma relação especial com “aquilo que não é”, como no poema à página 38, “Poema com muito vago erotismo ao fundo”:

“Não é a mesma  a língua com que te   falo

a  língua

com que te beijo   ou esta língua   outra

em que te escrevo,

a   tinta espessa,      vagamente  húmida.

É preferível escrever-te que beijar-te:

a folha rasa   limpa   é  corpo     liso

acolhendo  quente  o contorno da letra   

e  com  essa língua   sinceramente   falo

e  digo   quase  sinto

o beijo que te escrevo  e  não te  dou.”

A narradora do poema diz ser preferível escrever a beijar o amante, e quase sente o beijo que escreve e não lhe dá. Não é a escrita que está aqui em causa, evidentemente, mas aquilo que não é, aquilo que poderia ser ou não, mas que não é e passa a ser daquele modo poderoso sobre nós “como seria” ou “poderia ter sido tão bom”… A palavra escrita tem o poder do invisível, o poder da liberdade infernal. Se é verdade que a poeta assenta os seus poemas num forte chão parmenidiano, ela mesma escreve “(…) Nada / existe sem palavra que o diga (…)” (p. 40), numa identificação entre ser e pensar (e pensa-se com palavras), também não é menos verdade que há um outro lado mais obscuro de entender a relação entre a palavra e o ser. Rita Taborda Duarte começa o seu poema “Quando muito é um cachimbo” – do qual também fazem parte os últimos versos citados – com este verso: “A palavra nunca é uma palavra, quando muito é um cachimbo (…)” (Ibidem) No mesmo poema em que inscreve a sua herança de Parménides, começa por dizer que a palavra está além ou aquém de si mesma. Sem dúvida, é uma tese metafísica, mas de carga contrária à do filósofo eleata. É então talvez chegado o momento de abordarmos o poema “Lá fiz o poema”, onde a poeta escreve aquilo que poderá ser o modo como ela se relaciona com o fazer do poema. Pode ser ou não, verdade é que, neste poema, é assim que o narrador se mostra na sua relação como o fazer do poema, dos poemas. Podemos estar certos de uma coisa: não é nada fácil encontrar um verbo que defina o “fazer do poema” que a poeta aqui nos traz. Leia-se primeiro o poema, para depois podermos entender melhor as dificuldades que a poeta nos arranjou, e algumas alegrias também, evidentemente:

“Lá fiz o poema  hoje

sequer o escutei, primeiro, pois que nem estava dito     ainda;

os meus poemas não andam sumidos em silenciosinhos cúmplices,

à espera de que eu chegue e venha resgatá-los.

Nada me sussurra voz nenhuma de deus nenhum.

E o meu silêncio sequer é um silêncio-metafórico a murmurar flores escondidas.

É um silêncio silencioso   silêncio oco: sem nada a declarar

por dentro.

E esse silêncio, é curioso, nunca me dita poemas.

Mantém-se calado, tal lhe convém.

Pura e simplesmente, o meu poema não estava em parte alguma,

nem agasalhado em sossegos    nem em qualquer sítio que se percebesse.

Ou se lá estava tanto pior;

que se havia um poema omnipresente embrulhado em silêncios

em todo lado e em qualquer parte,

outro o escutou   o mostrou   o fingiu    o disse,

outro, não eu, que a haver poema passou-me

distraidamente ao lado.

Portanto, resumindo,

este poema que eu fiz nem sequer se encontrava inscrito no mundo por aí

para que eu fosse lá e ao menos partisse as unhas escavando

as pedras.

Em lado nenhum.

O poema que eu fiz não estava em parte nenhuma em nenhum lugar

E tive de ser eu, com certeza, a massacrá-lo letra branca em tecla preta,

a confiscá-lo ao teclado,

sem a musa do outro arrastada pelo cachaço,

e, em mangas de camisa, diria, não fora eu mulher

e não usasse nunca   nem a camisa   nem as mangas   nem o casaco.

Sequer um cigarro onde pudesse ir fumando rimas

por dentro das palavras.

O meu poema

tive de ser eu a escrevê-lo sozinha.

E eu

não escrevo como se tocasse piano, que o portátil não traz uma partitura,

nem ninguém havia, lá, presente ausente para mo trautear.

As teclas fazem barulho, sujam os dedos

e nada tem mais micróbios do que um teclado, dizem.

Foi, portanto, um mau poema:

fiquei cansada

e nem uma folha, ao menos, para amarfanhar.”

(pp. 14-5)

Para além da estrofe final do poema – do mau e do bom poema, de hoje nem  podermos esmagar com as nossas mãos o mal que fizemos -, que seria um outro texto, interessa seguir a pista do que aqui temos seguido. O poema não foi escutado; o poema não veio do silêncio, nem de uma musa; o poema não foi escavado; não foi construído (se fosse, a poeta tê-lo-ia escrito); e também não foi inventado (se fosse, a poeta tê-lo-ia escrito); o poema não chega como uma composição e também não é a execução de uma partitura. O que sabemos do poema é: não estava em parte alguma antes, e teve de ser a poeta a escrevê-lo sozinha, num teclado, que tem mais micróbios do que qualquer coisa do mundo. Com este poema a poeta parece querer destruir a metafísica, que tanto acarinha ao longo dos seus poemas. Pois tudo em Rita Taborda Duarte excede a própria coisa: os corpos, as partes dos corpos (“qualquer coisa dos corpos fica ainda / ainda quando os corpos se levantam”), as palavras (“O desperdício sobrevindo da palavra”), as próprias coisas  (“Só as rugas desta cama enxovalhada / nos perseguem as manhãs, pelo rosto dentro / como a teima de um poema por escrever.”). Tudo, não. Nem tudo excede o si mesmo que é. O fazer do poema é, ou parece ser, a parte não metafísica do mundo. Talvez se entenda melhor se pensarmos que para Rita Taborda Duarte tudo é metafísica, tudo é sempre mais do que é, tudo é o que é e o seu excesso, e a palavra é o lugar onde nós e o excesso nos encontramos. Pois mesmo em silêncio, a palavra arde. Ou dito muito melhor, com versos da poeta: “(…) E no quarto / entranhado na fibra dos lençóis, o cheiro forte e acre, / de uma palavra ardida.” E o fazer do poema é a única coisa concreta que há no mundo (não sabemos se pode ou não ser estendido a outras artes). Fazer um poema é tentar limpar a sujidade da palavra, mantendo nela a centelha ancestral e a vontade do que se quer dizer. Fazer um poema, aqui, neste livro sui generis, é como tudo o que o humano faz, isto é, aquilo que é mais concreto neste planeta: as acções. Só a acção não é metafísica, pois são todas elas éticas, de resto o planeta (adivinha-se o universo) é todo ele, na sua unidade e na multiplicidade dos seus elementos, um excesso de sentido, que a palavra mostra de um modo privilegiado. “(…) Nada / existe sem palavra que o diga (…)” Mesmo aquilo que vive apenas e só nos interstícios da palavra.

É também um livro cheio de ironia, como se deve ter entendido pelos versos citados e, principalmente, pelos títulos dos poemas. Resta-me dizer uma ou duas coisas, antes de terminarmos com a voz da Rita Taborda Duarte: sublinhar que se trata de um livro precioso, onde a palavra é simultaneamente sujeito e objecto (por conseguinte para guardar onde se guardam os vinhos mais preciosos), e deixar um conselho ao leitor: se está a tentar deixar de fumar, não leia este livro. Excerto de “Alfabeto”:

“Faço, então, a cama,

aliso os vincos,  bato a almofada

entalo um gemido breve de palavra, o sinal da pulga,

a pata da borboleta (ou era o veio esgarçado de uma asa ?),

entalo o lençol  puído  no colchão

e sacudo para o chão uma sílaba do teu corpo.

Tua, sim. Não será minha:

As minhas palavras são mais louras e compridas…

Nunca saio à rua, sem esticar os lençóis à cama

com a precisão de quem faz as manhãs todos os dias,

de quem dá um jeito  à vida, antes de se pôr a trabalhar.

Uma cama  bem feita vale bem um verso  terminado,

sem o desperdício das palavras que não rimam.

Há que resgatar o gesto repetido, dia a dia,

como quem cumpre a métrica precisa do poema;

            uma cama desfeita e ao desalinho é um sítio perigoso

para deitar o corpo a descansar, lugar de roturas, ligamentos

            um passo em falso, tropeçado sem cuidado,

e podemos  dar um mau jeito       

ao coração.”

1 Nov 2016

Palavra contra palavra

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]oturas e Ligamentos é um livro conjunto de Rita Taborda Duarte (poemas) e André da Loba (desenhos), publicado em 2015 pela Abysmo. Os desenhos não pretendem ilustrar os poemas e nem estes os desenhos. São dois livros independentes, que alugaram um mesmo apartamento e o partilham. A primeira metade do livro são os poemas da Rita, a segunda metade os desenhos do André, a caneta azul sobre fundo branco.

Nos desenhos de André da Loba, que formam a segunda metade do livro, aquilo que mais chama a atenção de um leigo como eu, para além da unidade estética dos desenhos, é o carácter ético dos mesmos: nós somos os outros, tudo se dilui em tudo. É o caracol que se torna matéria orgânica no interior da terra, originando a semente de uma pequena planta, que alimentará outro caracol; são os pulmões, ramificando cá dentro das árvores lá fora; é a madeira que carregamos às costas e, na inclinação do transporte, caem as árvore e os homens, caem da inclinação do excesso do abate das árvores, do excesso de destruição da natureza, de descaso pelo planeta. Em André da Loba, nós somos um. Tudo é um. Até o não termos mãos para o coração. Mas a beleza ímpar destes desenhos não se esgotam nesta meia dúzia de palavras de um leigo como eu, evidentemente. Serve este pequeno apontamento apenas como modo de ilustrar a segunda parte do livro.

Na primeira parte de Roturas E Ligamentos, os poemas de Rita Taborda Duarte formam também uma unidade preciosa, dividida em três partes: “Roturas”, “Ligamentos” e “Fractura Exposta”. Se na segunda parte do livro encontramos uma unidade indissolúvel entre humano e natureza, entre humano e planeta, na primeira parte do livro encontramos uma unidade indissociável entre humano e linguagem; entre o humano e a sua língua. Num mundo em que a língua é cada vez mais vista como uma espécie de utilitário, de “o que é preciso é fazer-se entender”, este livro torna-se um livro de resistência, um livro de defesa do humano. Resistência amplificada pelos desenhos de André da Loba. Primeiro a língua, depois o planeta, pois não pode haver consciência ética sem consciência da língua, sem conhecimento da língua. Não confundir conhecimento da língua com erudição, é a própria poeta que nos escreve: “dicionário: só cotão e pó / as palavras largam sempre tanto lixo…” (p. 36) Assim, aquilo que de imediato se nos apresenta como se de uma ars poetica se tratasse, uma reflexão acerca da palavra em geral e da poética em particular, acaba por ser antes uma reflexão ética e também ontológica, como escreve a poeta no início do poema “Concluindo” (poema antes das três partes do livro, como se de um sumário se tratasse), e que nos diz logo ao que vem:

“O mundo não é feito de pessoas    nem de casas  nem de coisas

menos ainda  de  afectos e sentidos.

O mundo é feito de palavras perfiladas

como pedras

sobre pedra

em cima de outra pedra ainda.”

Por outro lado, e logo no início da primeira parte do livro, no poema primeiro, “Fala é sopro que não voz”, que traz antes do poema uma inscrição de Herder, do seu Ensaio sobre a origem da linguagem – “Para os orientais, fala é toda ela espírito, sopro continuo, alma da boca (…) brisa flutuante que se vinha a apoderar do ouvido.”, Taborda Duarte parece querer dar o dito pelo não ou dito ou, muito simplesmente mostrar-nos a dificuldade do problema, ao terminar o poema com esta estrofe: “O amor se é amor  é amor não dito    amor-palavra-tacto / sem voz  e  sem vogais: / sussurro só de brisa / sopro leve / secando rente aos lábios.” (p. 13) A palavra tem este papel ingrato: só com palavras nos expressamos e as palavras já foram usadas por outros antes e até por nós mesmo em outras situações em que agora queremos dizer algo de novo, porque estamos a sentir algo de novo, pelo menos é algo de novo para o próprio. E entendemos finalmente que o que aqui está em causa neste livro, desde as primeiras páginas, é tentar pensar a palavra. A palavra que é o instrumento com o qual pensamos, o instrumento que nos permite pensar. A palavra leva-nos até nós e vem de longe, vem do passado, vem da comunidade, vem dos outros. Porque, como escreve no poema “Dicionário ao lado” (p. 16), “e têm peso  as palavras   têm chão”. Quando Rimbaud escrevia “Je est un autre”, estava a entender o carácter de alteridade da palavra, o carácter de alteridade que nos enforma, tanto a pensar quanto a escrever. E, aqui, em Rita Taborda Duarte o “pequeno” verso de Rimbaud é todo um livro. Talvez o momento em que tudo isto se faça mais claro, seja o poema da página 19, “Chamam-lhe amor”:

Há que dar às coisas nomes curtos e simples,

para que a palavra nos venha aos lábios

obedientemente canina,

mas o certo

é que lhe poderíamos dar um outro nome

− qualquer  um−

Boby, Tejo ou Lassie, fora o amor uma cadela

parida com as tetas maceradas a roçar o chão.

Qualquer nome lhe daríamos, ao amor

e o resultado seria sempre o mesmo:

Um ganido tímido

a morder-nos de cio o coração da noite.

” (p. 19)

A palavra é contra a palavra. Ela quer dizer, mas o que diz já foi dito. Queremos inaugurar o mundo, o nosso mundo, o mundo dos nossos afectos, dos nossos filhos, dos nossos amantes, mas a palavra é antiga. Por outro lado, a palavra é suja. Não por ter andado já na boca de outros, embora também, mas porque “Cada palavra, vamos dizê-lo, é uma porcaria imensa: / Uma mistura de cuspo e de restos de comida.” (p. 18) Nada parte ser possível com palavras. Todos as palavras estão sujas. E não é possível o amor com palavras sujas “Antes de te dizer que te amo, por exemplo, / e este é só um exemplo, nota bem, que te quero dar / foram umas quantas de vezes que mastiguei / a palavra amor com os fiapos da carne do jantar.” (Ibidem) A sujidade das palavras impede-as também de servir a poesia: “Não é possível fazer poesia com restos de palavras mastigadas / que azedam num instante, ainda mais se está calor.” (Ibidem) Neste poema, que temos vindo a citar, “Os frutos frios por fora”, as palavras começam por ser comparados aos frutos, “São muito como os frutos, as palavras: frias por fora. / E é natural que assim o sejam, empasteladas na língua / antes de serem ditas.” (Ibidem) Sem dúvida, a palavra aqui é a palavra falada, a palavra que atiramos uns aos outros, com maior ou menor afecto, maior ou menor intensidade. A palavra falada, aquela onde vivemos a maior parte do tempo, é uma mistura de sujidade e vontade de ser; vontade de ser ouvida, vontade de ser sentida, vontade de ser sentido, no fundo.

(continua)

25 Out 2016

Ésquilo, Sófocles, Eurípedes (Parte 3)

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]vancemos para a nossa derradeira paixão, apaixonemo-nos agora por Eurípides. Na introdução à sua excelente tradução de Medeia, de Eurípides, à página 11, Mário da Gama Kury escreve: “As gerações subsequentes manifestaram preferência por Eurípides em comparação com Ésquilo e com Sófocles. Tanto assim foi que das 74 peças que escreveu 19 sobreviveram, enquanto das 94 de Ésquilo somente 7 se conservaram e das 123 (ou mais) de Sófocles somente 7 chegaram até nós.” E, ainda no mesmo livro, agora às páginas 15-6, a acabar a sua introdução à peça, Kury escreve: “Para dar uma fama da Medeia na Antiguidade, citamos a seguir, em tradução, um epigrama do poeta Arquimedes (época desconhecida), conservando na Antologia Palatina, livro VI, 50, contendo conselho aos poetas seus contemporâneos: ‘Não te atrevas a percorrer, poeta novo, a estrada frequentada por Eurípides;
nem mesmo tentes, pois seria dificílimo seguir o seu trajecto; a impressão
é que ela é fácil, mas se alguém tenta pisá-la
vê que é árdua como se fosse pavimentada de estacas pontiagudas. Experimenta apenas retocar a trilha de Medeia, a filha de Aietes!
Sentir-te-ás anónimo e rasteiro. Afasta as tuas mãos da coroa de Eurípides!
’”

Estamos então perante, não só um novo poeta, mas também uma nova situação. A nova situação é a da influência exercida nas gerações subsequentes, por parte da obra de um autor em detrimento dos outros. Na época de ouro da tragédia grega, isto não acontecia. Havia momentos em que um deles era preferido em relação aos outros, mas pela própria apresentação da peça em competição e não por um juízo teórico ou a priori da própria tragédia e do seu conceito. Talvez não seja alheio a célebre frase que encontramos na Poética de Aristóteles (1453 a 30), acerca de Eurípides: “o mais trágico dos trágicos”. Curiosamente, ou talvez não, Aristóteles nessa mesma obra, tece duras criticas à peça Medeia, de Eurípides. Em 1454 b 1 e 1461 b 20, Aristóteles “censura Eurípides pela implausibilidade do episódio em que Medeia e Egeu se encontram (versos 758 e seguintes) e pelo recurso ao sobrenatural (a fuga de Medeia no carro do Sol) para finalizar a peça. As críticas de Aristóteles, todavia, só conseguem acentuar o primitivismo de sentimentos que Eurípides imprimiu à peça e a importância dos poderes mágicos de Medeia, factores essenciais para o desenvolvimento da tragédia. O episódio de Egeu, por exemplo, por meio da ânsia do rei de Atenas de conseguir que sua mulher lhe desse um filho, acentua a necessidade instintiva dos pais de se verem perpetuados nos filhos e, portanto, torna mais compreensível a ideia de Medeia de vingar-se de Jasão nos filhos dele. E, naturalmente, o episódio é parte do encadeamento da peça, por assegurar a Medeia um refúgio fora de Corinto quando tivesse de fugir após a prática dos crimes (vejam-se os versos 1578-1580). Quanto ao final da peça, a saída de Medeia no carro do Sol é apenas um elemento sobrenatural a mais entre tantos que se integram na trama, cuja heroína se vangloria de seus poderes mágicos e os comprova, e se orgulha de descender do próprio Sol.” (Mário da Gama Kury)

Mas qual a razão de tanto apreço em relação a Eurípides, nas gerações subsequentes, e pouca em relação a Sófocles e Ésquilo? Umas das razões que podemos apontar é, sem dúvida, o facto da trama da tragédia não se dever senão aos erros humanos, aos seus próprios actos e não ao destino e às paixões dos deuses. Há, por conseguinte, em Eurípides uma ruptura enorme em relação à própria concepção da tragédia. Eurípides ultrapassa, se assim o podemos dizer, a tradição para criar ele próprio a sua tragédia, o seu entendimento da tragédia. Não podemos deixar de imaginar o espanto que estas peças devem ter causado no espírito de Sófocles, pois não poderia haver poeta mais radicalmente oposto a ele do que Eurípides. E para além de imprimir uma ruptura com o conceito de tragédia, acaba também por produzir uma ruptura com a própria construção da mesma, como veremos adiante. Eurípides introduz a originalidade individual na tragédia, isto é, a trama da tragédia já não se rege mais pela tradição, pela origem dos mitos, mas antes pela originalidade individual, pela criação do próprio autor.

O poeta não cria apenas os versos, mas cria também a trama. Sem dúvida, trata-se de algo extremamente ousado, se tivermos em atenção que ele é apenas dez anos mais novo do que Sófocles, e este era considerado o expoente máximo desta arte ática. Estar a procurar novos caminhos, era estar a procurar também um divórcio entre o autor e o público. Pois não seria de estranhar que, um público habituado a, e apreciador de Sófocles (naturalmente também de Ésquilo, mas a comparação com Sófocles torna-se aqui bem mais pertinente), não tenha repudiado as peças de Eurípides. Pelo menos, terá tido bastante dificuldade em compreendê-las e apreciá-las. Não é por acaso que, Eurípides é, de entre os três génios, o menos compreendido no seu tempo.

Convém fazer aqui um pequeno parêntesis para falarmos da grande causa desta diferença nas peças de Eurípides. Na segunda metade do século V a.C. começa a surgir um novo movimento intelectual fora de Atenas e que iria influenciar determinantemente Eurípides: as obras sofistas, de Protágoras, Górgias, Pródico e Leontinos. O que vai marcar esta época com mais profundidade, traçando uma enorme ruptura como passado é Protágoras, com a sua célebre frase: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, das que não são enquanto não são.” Trata-se de uma ruptura, com a tradição e com o modo como o humano entendia o mundo e a si próprio, muito maior do que nós possamos imaginar. Um mundo que era ainda marcado pela reverência aos deuses, por um pensamento profundamente religioso deveria sentir-se completamente abalado por estes novos intelectuais, este novo modo de pensar e de entender o cosmos. Protágoras escreve: “Acerca das divindades não posso saber se existem ou não existem, ou como são figuradas, pois muitos obstáculos impedem verificá-lo: sua invisibilidade e a vida tão curta do homem.” Esta afirmação é ainda mais agressiva ao pensamento vigente do que a anterior, se é que é possível; mas a verdade é que elas estão entrelaçadas. Pela primeira vez, afirmar a existência dos deuses era considerado inacessível aos humanos. E por que razão? Pela impossibilidade de verificação. Verificar é precisamente o oposto de acreditar. Podemos acreditar que Deus existe, mas não podemos acreditar que o sol existe. A existência do sol é verificável, por conseguinte arredada do foro da crença. Só o inverificável pode ser acreditado. Eu posso acreditar que escrever um texto acerca de Eurípides tem algum valor, porque, hoje, aqui e agora, é inverificável, mas não posso acreditar que estou escrevendo estas palavras, pois elas são verificáveis. Posso acreditar que uma mulher me ama, mas não posso acreditar que ela tem sexo comigo, caso isso aconteça. O que é verificável é oposto da crença. Colocar como necessidade humana a verificação para atestar da existência dos deuses é, efectivamente, fazer uma inversão epistemológica no acesso ao mundo e suas manifestações. Com Protágoras, passa a existir, a ter carácter ontológico aquilo que pode ser verificado (embora não se trata de uma verificação com as exigências e protocolos do pensamento do século XX, tal como foi escrito na filosofia das ciências por Karl Popper). Existe o que homem pode ver ou pensar. Existe o que o homem pode. O que o homem não pode, não existe.

Em verdade, não há a negação da existência do que não pode ser verificado, apenas não se pode afirmar a existência dessas entidades. Esta distinção é de extrema importância, pois ela permite a possibilidade da existência de algo muito caro aos sofistas em geral e a Protágoras em particular: a antilogia ou contradição, tal como é expressa na obra de Protágoras, com o título de Antilogias (Antilogai). Era a aceitação de que para cada coisa há duas maneiras de conceber, que se contradizem. A contradição tornava-se assim, para estes novos intelectuais, a própria natureza do humano. O humano é por natureza contraditório, por conseguinte os juízos pronunciados acerca das coisas são eles mesmos também contraditórios. Contradição, antilogia, não é apenas a possibilidade de se afirmar correctamente juízos opostos acerca de uma mesma realidade, por exemplo, afirmar que o homem é mortal e o seu contraditório o homem não é mortal (defendo aqui a imortalidade das suas obras); ou ainda dizer-se que a desgraça de Édipo foi causada por um deus, por exemplo, e que a desgraça de Édipo não foi causada por um deus. Contradição é também a afirmação da impossibilidade de verificação, quer seja pelo pensamento, quer seja pelos sentidos.

Nos casos anteriores, contradição é a aceitação da impossibilidade de dar uma resposta única àquelas questões, de saber se o homem é ou não mortal (independentemente do argumento do seu prolongamento na história) ou de se saber se foi ou não por causa de um deus que Édipo caiu em desgraça, pois para isso seria necessário sabermos se a alma é ou não imortal, para a primeira antilogia, ou o que é um deus, para a segunda antilogia, e isso está fora do alcance humano.

(continua)

18 Out 2016

ÉSQUILO, SÓFOCLES, EURÍPIDES (PARTE 2)

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]trilogia da qual Édipo Rei fazia parte não recebeu o primeiro prémio no concurso das Grandes Dionísias. Este foi recebido pelo sobrinho de Ésquilo, Filoclés, cuja obra não chegou até nós. Escrito em 406, no momento da morte de Sócrates, as Rãs, de Aristófanes, mostram que desde essa data Ésquilo, Sófocles e Eurípides gozam de uma primazia que ninguém contesta, embora a ordem na qual convém classificá-los seja ainda matéria de debate. No século IV a.C., na Atenas de Licurgo, contemporâneo de Aristóteles, as efígies dos três grandes trágicos são vazadas em bronze e o povo financia as reprises de suas peças. Para muitos, as peças de Sófocles são a excelência da tragédia, especialmente Édipo Rei. Mas em que consiste esta excelência, em que se baseiam tais juízos para fazer de Sófocles, e de Édipo Rei, a expressão máxima desta arte ática? Veja-se o que diz Albin Lesky: “Em Ésquilo aprendemos a entender o sentido desse destino ordenado por Zeus [a origem humana pelo qual os deuses nos castigam], que exige a expiação da culpa e leva o homem através da dor do discernimento, mas que também conhece a graça (kháris). Sófocles, em contrapartida, não procura por trás do acontecer mesmo o seu sentido último. Tudo o que acontece é divino; Zeus está neste mundo com todos os outros deuses, mas o sentido de seu actuar não se revela ao homem. Não lhe cabe esquadrinhar os mistérios do governo dos deuses, nem se rebelar contra a terrível severidade com que, por vezes, ele se faz sentir sobre o homem. Aos deuses agrada (…) o homem (…) que sabe resignar-se.” Como é bem visível, o ponto de vista de Sófocles é bastante diferente do de Ésquilo. Aqui, não adianta traçar uma hermenêutica do humano, tentar identificar aquilo que cabe a cada um de nós, de modo a podermos conduzir-nos da melhor maneira e evitar as represálias dos deuses. Não adianta porque precisamente o que não cabe ao humano é a resignação da sua ignorância em relação ao seu destino, em relação à sua vida e ao caminho que percorre. E, neste sentido, Sófocles é bem mais radical do que Ésquilo, pois nenhum esforço humano pode salvar o humano. Por melhor que conduzamos nossas vidas, por mais que consigamos calar um coração rancoroso e secar a sede de vingança, no fim de tudo nada disso importará, pois é e sempre será dada aos deuses a última palavra; tudo em nós é a vontade deles. 111016p20t1
Por conseguinte, para os apaixonados de Sófocles, a sua grandeza encontra-se precisamente aqui neste contraste violento entre a omnipotência divina e um nada de potência humana; cai-se na miséria maior a despeito de ser-se virtuoso, pois ainda que se aja melhor do que todos os humanos, basta um deus para nos fazer perder, basta o poder desse deus e de sua paixão, para que o humano passe de um ser virtuoso a nada. Da virtude ao nada, é onde se encontra precisamente o Édipo Rei de Sófocles. Édipo foi o mais virtuoso dos homens do seu tempo. Deixou a cidade, que julgava ser a dele e de seus pais, por ter ficado a saber, através de um oráculo, que iria matar seu próprio pai e desposar sua própria mãe. Assim, ainda jovem, deixa Corinto, sua cidade, e sua favorável situação de herdeiro do trono da mesma, para evitar que o oráculo se cumprisse; por amor aos pais e aos deuses, deixa tudo o que tinha. Mais tarde é ainda ele o responsável pela libertação da cidade de Tebas, tornando-se aí um herói e acabando por desposar a rainha, Jocasta, que tinha ficado viúva, pelo assassinato misterioso do seu rei, Laio. Foi ainda, durante anos, um exemplar governador de Tebas, mas nada disto, nada da sua excelência humana aplacou a tragédia que o habitava desde sempre. Esta é a tese forte de Sófocles, contrária, à de Ésquilo: nada nos salva, nem a excelência. Se, por um lado, esta posição é radical, por outro lado é muito mais conservadora do que a de Ésquilo, pois a deste trazia já em si o embrião que mais tarde iria conduzir à filosofia. O ponto de vista de Sófocles, carregado de pessimismo ou, se preferirmos, de um “nada adianta fazer”, desfraldava ainda a bandeira dos deuses e dos mitos.
Há por outro lado, do ponto de vista estético, um poder extraordinário em Édipo Rei, através do conhecimento do seu final ser imediatamente revelado no início da peça. Leia-se o juízo de Lesky, acerca da peça: “Na estrutura desta peça, a mais magistral da literatura universal, do ponto de vista dramático, o traço genial consiste em que, desde o início, toda a verdade é de pronto revelada.” Há mestria invulgar, sem dúvida, mas indissociável do ponto de vista que vimos anteriormente, de nada valer a pena fazer, se com isso julgamos que podemos agradar por inteiro a todos os deuses. Assim, começar uma peça revelando o seu final, é como se se dissesse: como vêem, o fim é sempre o mesmo, o que aqui importa, aquilo que importa à arte é como se vai até ao fim. Não importa aqui a revelação, mas a construção, isto é, a essência de Édipo Rei é estética, pois o que mais importa, desde o início, é mostrar que a arte é saber fazer e não saber. Por conseguinte, estamos também depostos numa tese original, que retira ao humano a possibilidade de traçar uma hermenêutica da sua natureza, mas apresenta aquilo que, mais do que tudo, cabe ao humano: a arte. Para Sófocles, arte e humano são uma e a mesma coisa. A arte é ainda a imitação dos deuses. Podemos imitar os deuses, mas não podemos compreender o humano. Sófocles quer, antes de mais, instituir como grandeza humana maior o saber fazer, isto é, a arte; e Rei Édipo é, sem dúvida, a expressão máxima deste sentido.
Ainda segundo o sentido estético, escutando Aristóteles, Édipo Rei alcançava também a perfeição ao coincidir em um só momento o reconhecimento (anamnésis) e a peripécia (peripéteia), a reviravolta da acção e o reconhecimento do que está a acontecer. E o reconhecimento que Édipo faz não leva a outra pessoa, à acção passada de outra pessoa, mas a si mesmo, Édipo, e às acções que cometeu. E este identificação final do herói feita por ele mesmo constitui uma reviravolta completa da acção, nos dois sentidos que podem ser dados à formula de Aristóteles (que também não é isenta de ambiguidade): a situação de Édipo, por causa do reconhecimento, revela-se como contrária à anterior, a acção de Édipo atinge um resultado inverso àquele que visara. Na abertura da tragédia, o estrangeiro de Corinto, decifrador de enigmas, salvador de Tebas, instalado no governo da cidade e que o povo venera como um deus, por seu saber e sua devoção à causa pública, deve tentar decifrar um novo enigma, o da morte do antigo rei: quem matou Laio? No fim da pesquisa, o juiz é o assassino. Aquele que procura justiça, descobre-se o perpetrador. Édipo reconhece-se como aquele que não é. Como se até ao momento do reconhecimento, ele estive a viver uma vida de empréstimo, uma vida que lhe tinham emprestado e que ele teria, mais cedo ou mais tarde, de devolver. Podemos também dizer que ele vivia uma vida de mentira, embora julgando tratar-se da sua vida real. Édipo, aquele que se para todos é o primeiro dos homens, o melhor dos mortais, homem de poder, de honras, de riqueza, reconhece-se como sendo o último, o mai infeliz dos homens, um criminoso, um horror para os seus semelhantes e odiado pelos deuses. Este momento, em que alguém se descobre como sendo outro que não ele mesmo, é o momento por excelência de toda a tragédia, para Aristóteles. Poderíamos, num sentido menos literal, embora não deixando de ser ontológico, que é esse também o momento por excelência da vida de cada um de nós, quando nos reconhecemos a nós mesmo como não sendo quem julgávamos ser.
Por outro lado, e para além da questão estética ou ontológica, como nos diz Werner Jaeger, a indelével impressão causada por Sófocles sobre o homem actual, a base da sua imortal posição na literatura universal são os seus caracteres; repletos das paixões mais violentas e dos sentimentos mais ternos, de grandeza heróica e altiva e de autêntica humanidade, tão semelhantes a nós e ao mesmo tempo dotados de tão alta nobreza. Nada é nelas artificial ou exorbitante. As épocas subsequentes em vão buscaram a monumentalidade, por meio do violento, do colossal ou do que produz efeito. Em Sófocles tudo se desenvolve sem violência, nas sua proporções naturais. A verdadeira monumentalidade é sempre simples e natural. Os homens de Sófocles não têm aquela rigidez pétrea, saída do solo, própria das figuras de Ésquilo, que a seu lado parecem imóveis e até rígidas. Outra da razões pelas quais Sófocles parece ser mais apreciado do que Ésquilo, pelo homem contemporâneo, tem a ver com o uso do coro, que em Ésquilo, sem o canto e sem a dança, perde a graça natural que surtia efeito no público de Atenas. O coro de Ésquilo é, para usarmos termos originais, mais dionisíaco, em contraste com o coro apolíneo de Sófocles.
Continuamos, e terminamos esta viagem pela tragédia, na próxima semana.

11 Out 2016

Ésquilo, Sófocles, Eurípides – Parte 1 (de 3)

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Oresteia, tragédia maior de Ésquilo que chegou até nós, e a sua última, é representada pela primeira vez em 458 a.C., dois anos antes da sua morte. Nesta altura, Sófocles tinha 37 anos e já arrebatara vários primeiros prémios nas competições, e Eurípides era um jovem adulto com 27 anos de idade. A estreia de Eurípides nas competições é em 455 a.C., com 30 anos de idade e, por conseguinte, por muito, muito pouco não chegaram a concorrer os três a um mesmo prémio.
Mas, seja como for, certo é que Eurípides viu muitas vezes Ésquilo em competição com as suas tragédias. Havia uma diferença de trinta anos entre Ésquilo e Sófocles e uma diferença de apenas 10 anos entre este e Eurípides, perfazendo uma diferença de 40 anos entre Ésquilo e Eurípides. A importância de ter bem presente a contemporaneidade deles deve-se a dois factores: 1) usualmente julga-se que eles fizeram parte de momentos históricos bem distintos, o que não poderia ser mais longe da verdade; 2) termos também bem presente esse esmagador período da história grega clássica, em particular, e da humanidade em geral. Werner Jager dirá mesmo que só a epopeia de Homero se pode comparar à tragédia, na capacidade de abarcar o todo humano. É como se o renascimento do génio poético da Grécia se tivesse mudado da Jónia para Atenas. A epopeia e a tragédia são como duas grandes formações montanhosas ligadas por uma série ininterrupta de serras mais pequenas.
Na sua primeira competição, em 468 a.C., com apenas 27 anos de idade, Sófocles derrota Ésquilo; e, sem dúvida, Eurípides assistiu a essa competição, com os seus 17 anos de idade. A primeira tragédia que chegou até nós, destes três génios, foi uma tragédia de Ésquilo, ainda da chamada primeira fase do autor, e a única dessa fase, levada a competição (e sagrando-se vencedora) em 472 a.C.: Os Persas. Sófocles com 23 anos de idade e Eurípides com 13. Mais: a primeira vitória de Ésquilo, nas competições, em 484 a.C., foi certamente assistida por Sófocles, se é que ele não fez mesmo parte do coro de crianças. Atribui-se a Ésquilo a criação da tragédia (ao introduzir o segundo actor), a Eurípides a criação da criação temática, da criação dos seus próprios temas para além da tradição, e a Sófocles, para além de se lhe atribuir a criação do terceiro personagem, atribui-se também “as tragédias mais tragicamente perfeitas”.
Apesar desta proximidade temporal, desta contemporaneidade dos autores, há factores históricos, acontecimentos que fazem com que eles cresçam em ambientes e expectativas muito distintas. Ésquilo foi combatente em Maratona, na guerra contra os Persas na defesa da liberdade do estado de Atenas, contra aquele que era o maior império nessa altura. Pouco tempo mais tarde, o seu irmão irá perecer na célebre e mítica batalha de Salamina, que Ésquilo irá cantar na sua tragédia Os Persas. Para Ésquilo, os heróis não era uma história que se contava, mas um facto ao qual assistira e mesmo vivera. O exército ático em inferioridade numérica de 1 para 10, destrói o exército persa, que até então era considerado indestrutível.
Para além da vontade, coragem e engenho dos gregos, aliaram-se também os deuses na defesa dos áticos, isto é, o destino esteve com eles nessa dura prova em defesa da liberdade. Em caso de derrota, provavelmente não haveria tragédia. Em caso de derrota em Salamina, a humanidade nos séculos imediatamente subsequentes, poderia ter sido outra, bem diferente. Pelo menos a arte e o pensamento seriam e isto marcaria seguramente a história da humanidade mais do que a história do povo ático.
Ésquilo vive um período histórico eufórico, um período em que os gregos eles mesmos, e ele fazendo parte deles, conquistaram com seus braços o direito à liberdade e a necessidade de agradecer aos deuses. Sófocles irá crescer neste ambiente, num ambiente em que o povo ático se sente um povo especial, um povo que merece o que tem, que merece os seus deuses e que a eles deve respeitar e aceitar as suas decisões, mas tendo a consciência de que ele, os homens gregos, foram e são grandes. Os gregos são heróis. Sófocles é, aqui, bastante diferente de Ésquilo. Sófocles respeita mais os deuses do que os homens, isto é, atribui mais importância aos primeiros no destino dos segundos do que a estes mesmos. Isto nunca aparece nas tragédias de Ésquilo que chegaram até nós. Parece curioso que Sófocles, mais jovem do que Ésquilo, seja mais conservador do que este. Mas não é sempre assim? A geração imediatamente a seguir a uma geração revolucionária e vitoriosa nas suas conquistas, não educa seus filhos de um modo mais abastado e em segurança, fazendo com que estes acabem por se tornar mais conservadores? Assim aconteceu com a geração de Sófocles e, mutatis mutantis, com ele mesmo. Se analisarmos as tragédias de Sófocles, vamos encontrar o destino, a vontade dos deuses como factor primordial do mal que atinge os humanos. É assim em Édipo Rei, é assim em Antígona, é também assim em Electra. Por outro lado, o grande heroísmo dos seus personagens não é outro senão a coragem e a determinação com que aceitam, caminhando mesmo para ele, o seu destino traçado pelos deuses e ao qual eles nada podem alterar. Para Sófocles, alterar, se assim podemos dizer, é aceitar. Aceitar não é uma resignação, mas um acto de coragem, um acto de heroísmo. As personagens de Sófocles atiram-se na direcção do seu próprio fim, pois o fim é não contradizer tudo aquilo por que viveram até ali. Aceitar é, para este autor, a expressão da coragem máxima, da andreia, como se dizia em grego, e que tinha o significado de capacidade de permanecer onde se está; capacidade de permanecer no ponto de vista que é o seu. É assim com Édipo, é assim com Antígona, é assim também com Electra. A cada instante vêem mais nitidamente o fim deles mesmos, mas continuam a precipitar-se para ele, pois a coragem de permanecer leal ao que deve ser feito é mais forte do que salvar as suas próprias vida. Este não é, de todo em todo, o heroísmo dos personagens de Ésquilo. Em Ésquilo, quem mais mal faz ao humano é o próprio humano. Os deuses são, ainda assim, menos responsáveis no desespero em que os humanos colocam e conduzem as suas próprias vidas. O que parece estar em causa em Ésquilo é a necessidade de dar ao humano o que é do humano. O modo como conduzimos as nossas vidas é o que mais importa em tudo o que nos acontece. Os deuses julgam-nos, afectando-nos má ou afortunadamente, consoante o nosso comportamento. Devemos querer o que é do humano e não o que não lhes diz respeito. Há aquilo que convém a um deus e aquilo que convém a um humano. Há, de facto, uma posição muito clara em relação a uma necessidade de traçar uma ontologia do humano, em Ésquilo, que não encontramos efectivamente em Sófocles. Pois esta posição mostra a necessidade de uma hermenêutica segura acerca do que é o humano; sem isso, incorremos no risco de nos desviarmos do que nos convém e cair em impiedade, afectando todo o nosso destino e os que de nós advêm.
Não é que os deuses não tenham poder sobre nós e de nossas vidas decidam, não é isso que está em causa em Ésquilo, o que verdadeiramente está em causa é que as acções dos deuses em relação à vida de cada um dependerá das acções de cada um enquanto humano, isto é, dependerá de uma boa ou má adequação à vida humana. Ou seja, as acções dos deuses sobre nós derivam menos das suas paixões do que das nossas. Saibamos nós controlar as nossas paixões e eles saberão recompensar devidamente a nossa conduta. Há aqui, obviamente, também uma posição ética marcante. É verdade que podemos ver, como o faz Werner Jaeger, que mais do que o humano, a grande guerra de Ésquilo é o destino, a moira, e que o humano é apenas o seu portador. Mas o destino que nos atinge, como um tsunami, não é apenas devido ao livre arbítrio ou às paixões dos deuses. A nossa conduta afecta, não só as nossas vidas, mas a vida da cidade, a vida de todos; os filhos herdam os males que os pais fizeram. A expressão portuguesa, pintada de fado, “cá se fazem, cá se pagam”, assume em Ésquilo uma força holística: se não nós, os nossos hão-de pagar as nossas faltas, mesmo que sejam inocentes, amplificando assim a dor do universo, e o horror a quem assiste. É o caso da trilogia Oresteia, por exemplo. Podemos ver aqui a força “tsunamíca” do destino ou o resultado de uma acção inadequada. Destino e acção estão intrinsecamente ligadas em Ésquilo. Por isso, e antes de mais, é preciso deixar claro, que há uma hermenêutica do humano que é necessária compreender, que é necessário auto-consciencializar. Pois sem isso, sem sabermos o que é conveniente a um humano e o que não é, não poderemos agir bem ou mal em relação às nossas próprias vidas. Sem se traçar primeiro uma ontologia – não necessariamente teórica, obviamente –, não há possibilidade de se erigir uma ética. E esta é a grande guerra de Esquilo. A acção humana, o desconhecimento da mesma, é a mão que segura a flecha no arco esticado. Evidentemente, e ainda hoje isso é válido, não se sabe onde começa e onde termina a relação entre acção e destino. (Continua na próxima semana)

5 Out 2016

Tragédia grega II

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]or sua recorrência, algumas cenas se destacam nas tragédias gregas e são tão típicas do género quanto é, por exemplo, uma cena de perseguição num filme de acção.
1. Catástrofes: catástrofes são cenas de violência que, em geral, são ocultadas aos olhos da plateia e narradas posteriormente por um actor – como em Os Persas, que narra a destruição da expedição contra os gregos. Representa a reviravolta para pior no destino de um personagem. No drama Agamémnon, o seu assassinato por Clitemnestra. Em Édipo, a cena final onde o protagonista aparece em cena com os olhos perfurados e sangrando (nós não temos acesso à acção de Édipo a furar seus olhos, mas a acção é-nos contada).
2. Cenas patéticas: cenas de explicitação de sofrimento, de dor, em cena. Por exemplo, as cenas em que Electra dá vazão à sua dor pela morte do pai e pela situação humilhante a que sua própria mãe a obriga.
3. Agón ou cenas de confrontação: tratam-se de cenas onde, através de acções ou de diálogos entre personagens, se explicita o conflito trágico no palco. Exemplos maiores seriam o diálogo entre Clitemnestra e Orestes antes da cena de catástrofe, onde Clitemnestra é morta pelo próprio filho em As Coéforas, ou em Édipo Rei, na cena que Édipo discute violentamente com o adivinho Tirésias, ou ainda nas cenas de reconhecimento, isto é, naquelas em que se dá a passagem da ignorância para o conhecimento, quando um personagem se descobre parente, amigo ou inimigo de outro. Pode também tratar-se da descoberta de algo que se fez ou não. O exemplo clássico de uma cena de reconhecimento é a descoberta de Édipo como assassino do pai e esposo da mãe em Édipo Rei. As técnicas usadas para este reconhecimento em si poderia se dar de modos muito diferentes. Uma das técnicas mais usadas era através de sinais exteriores, como quando Electra reconhece seu irmão Orestes por causa de uma peça de roupa que este usa. É importante deixar claro que não se trata de uma cena em que o público toma conhecimento de algo. É o personagem que toma consciência desse facto significativo para o seu destino.

Depois de um breve olhar para a forma da Tragédia, regressemos ao seu sentido, à sua natureza. Vimos anteriormente que, contrariamente à epopeia ou à lírica, a tragédia é a representação de uma acção. A tragédia está a acontecer. A epopeia trata do que já aconteceu, a lírica de uma subjectividade intemporal, mas a tragédia está a acontecer. A tragédia está ali em frente dos nossos olhos, em frente de nós, é o presente a acontecer. A tragédia, literalmente, faz-se diante de nós. O presente, o a acontecer é o fundo onde a acção se move.
Que acção é esta que se move neste tempo, que acontece aqui e agora diante de nós, espectadores? A acção é um acontecer aqui e agora através daquilo a que Aristóteles chamou de “alma da tragédia”: o mytho, o enredo. Na Poética, em 52b 9, Aristóteles escreve que as duas partes do enredo são a peripécia e o reconhecimento; apontando ainda uma terceira a que chama de patético, isto é, pathê, ser afectado. A peripécia está estritamente ligada à metabolê, à mudança. Não se trata de uma simples mudança, mas de mudança que traz em si a negação do seu oposto, isto é, a acção converte-se no seu contrário. Por conseguinte, esta mudança é na realidade uma reviravolta – e neste sentido a tragédia é a arte mais próxima da vida humana. Como exemplo máximo de reviravolta, ou de peripécia, Aristóteles refere o Édipo Rei, de Sófocles, no episódio em que um arauto chega a Tebas, vindo de Corinto, com a mensagem da morte de seu pai e, vendo que Édipo ainda sentia preocupação em relação à possibilidade do oráculo de Delfos estar correcto e ele poder desposar sua mãe, revela-lhe que sua mãe não é realmente sua mãe, pois ele foi-lhe entregue em criança pelas mãos de um pastor que pertencia à casa real de Tebas. Ora, aquela que deveria ser uma revelação auspiciosa, acaba por tornar-se precisamente no seu contrario, afundando mais Édipo em preocupação, que agora é já quase uma certeza; trata-se da reviravolta por excelência, segundo Aristóteles. Mas esta reviravolta é simultaneamente um reconhecimento, pois Édipo passa de uma situação de ignorância em relação ao que de facto aconteceu no passado, para um conhecimento quase pleno daquilo que realmente se passou. No fundo, todo o reconhecimento é também ele uma reviravolta, pois o personagem passa de uma situação de ignorância para uma de conhecimento pleno, isto é, para o seu contrário. Aristóteles acrescenta ainda que a reviravolta ou peripécia é apenas apanágio das tragédias mais complexas, e também mais perfeitas do ponto de vista do trágico ou patético (não há uma clara diferenciação entre trágico e patético em Aristóteles). Ora, porque razão ele conecta complexidade do enredo, através da reviravolta, com amplificação do trágico? Precisamente porque a reviravolta é um mecanismo de acção trágica especialmente apropriada para suscitar o terror e a piedade ou compaixão. Mas estas reviravoltas surtem o seu efeito maior se conectadas a actos patéticos, pathê, como lhe chama Aristóteles. Em 53b 20, ele exemplifica quais são esses actos patéticos: um irmão que mata ou pensa em matar um irmão; um filho, o pai; uma mãe, o filho; ou um filho, uma mãe. Mas estes actos patéticos e a reviravolta não podem ser usados aleatoriamente, isto é, há situações de reviravolta com actos patéticos que não suscitaria o terror e a piedade, mas sim a repulsa. Por exemplo, ver um justo passar da felicidade à desgraça ou um injusto passar do infortúnio à felicidade. O que estás agora aqui em causa é o apuramento daquilo que efectivamente suscita piedade. E, em 53a 5, Aristóteles escreve: Sente-se piedade por aquele que não merece o infortúnio e não por quem o merece. Muito bem, se pensarmos já, adiantadamente no livro do Eça, poderíamos dizer que se Basílio caísse em desgraça nós não seríamos afectados de piedade, de compaixão por esse personagem. Contrariamente, sentimos toda a piedade por o que acontece a Édipo, que tenta tudo para não errar, age sempre justamente, mas não consegue escapar ao infortúnio que tinha já sido ditado pelos deuses. Por outro lado, não basta o personagem não merecer infortúnio, é necessário que possamos identificar-nos com ele. É preciso que a infelicidade atinja um nosso semelhante, acrescenta Aristóteles. Por conseguinte, e em forma de conclusão em relação à alma da tragédia, a reviravolta do enredo deve ir da felicidade ao infortúnio, devido não à maldade do herói, mas a uma grande falta cometida por ele ou por seus familiares.

Para terminarmos, não poderíamos deixar de mostrar o modus operandi daqueles que as compunham. A técnica que os tragediógrafos usavam na composição de um tema é a que podemos chamar hoje de técnica do zoom. Em que consiste esta técnica? O zoom é uma possibilidade técnica e material dos nossos dias que permite aumentar uma determinada imagem. Neste aumentar de imagem acontece duas coisas: 1) o campo do que se vê fica mais reduzido; 2) vê-se mais desse reduzido do que se via na imagem alargada. Para quem viu o Blow Up de Antonioni, sabe muito bem do que estou a falar. Um fotógrafo num parque tira uma foto a uma mulher em campo alargado de imagem. Mais tarde, em estúdio, vai fechando esse mesmo campo, deixando mesmo de ver a mulher e passar só a ver os arbustos e, nesse fechamento do campo, nessa diminuição do espaço, há um ganho de conhecimento, isto é, passa-se a ver algo que ainda não estava a ser visto. Neste caso, como também acontece na tragédia, passa-se a ver um revólver a disparar, causa pressuposta da morte dessa mulher. É precisamente este o método utilizado pelos poetas trágicos. Passemos a ver. Há uma situação conhecida, um campo alargado de imagem, que é o rapto de Helena ou a sua fuga com Páris para Tróia. Pois bem, usemos agora uma lente que permita fazer um enorme zoom sobre este campo alargado de imagem mítica. Imagine-se que, com este zoom, deixamos de ver tudo excepto Menelau no seu quarto às voltas com dores e decisões. Ou seja, através do zoom o poeta trágico faz-nos pensar, faz-nos ver o que poderia ter acontecido a Menelau naquela situação. O zoom não inventa uma imagem, não inventa um mito, antes reproduz um deles numa ampliação que não existia. Este é o método do poeta trágico: aplicar zooms aos seus mitos. Por conseguinte, e porque se trata de uma amplificação de uma imagem “real”, o final da tragédia também não poderia contrariar o curso normal do mito tratado pela tragédia e conhecida do espectador, isto é, o final não poderia revelar o que a imagem não ampliada não mostrava. Acontecesse o que acontecesse com Menelau, nesse zoom, ele teria sempre de partir para a guerra de Tróia.
Na próxima semana iremos ver de perto a arte de Esquilo.

27 Set 2016

Tragédia Grega

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]amos começar hoje, e prolongar por algumas semanas, a viagem a uma outra forma de poesia, que nasceu e morreu na antiga Grécia: a tragédia. A tragédia é uma composição poética dramática, isto é, que mostra uma acção a acontecer, e não uma narrativa, como em Homero, ou um estado de espírito, uma intemporalidade, como em Safo. A tragédia tem as suas origens num culto ao deus Dionísio (deus que não pertence ao Olimpo, que cresceu nos bosques do monte de Nisa); as pessoas organizavam um coro e, com máscaras semelhantes a Sátiros, celebravam a embriaguez e o vinho novo, por toda a Ática, não só nos campos, e cantavam. Estes cantos eram em forma de ditirambos, que eram versos religiosos usados no culto de Dionísio. Mais tarde, este coro evolui para um jogo de voz e canto entre o Corifeu, chefe do coro, e o coro. Nesta forma, à qual se chamou de drama satírico, eram contadas histórias brejeiras, quotidianas e com uma linguagem vulgar. No seguimento disto, Téspis introduz pela primeira vez um personagem, destacado do coro. Não obstante, a tragédia assume a sua característica fundamental apenas quando a linguagem se eleva e os mitos deixam de referir exclusivamente Dionísio, passando a referir os de toda a mitologia, inserido assim o culto do herói, daquele que enfrenta os deuses e a adversidade enviada por eles. Trata-se, por conseguinte, da união entre os deuses Dionísio e Apolo. Dionísio pela dança e pelo excesso, Apolo pela linguagem e a elevação da mesma.
A tragédia tinha de ter obrigatoriamente um coro e um, dois ou três actores, que se poderiam desdobrar em muitos mais personagens. Os actores apresentavam o rosto coberto por uma máscara, reflexo do personagem que representavam. A cena da tragédia conjugava dois temas heterogéneos: os mitos dos deuses e os mitos dos heróis, daqueles que cumpriam elevadas façanhas ou padeciam de duras penas cobertos de dignidade e glória. A tragédia encenava criações originais baseadas na mitologia, na história da cultura grega. Os elementos nucleares da tragédia eram três: 1) coro; 2) corifeu e 3) actores.

1) O coro era composto por 6, 12 ou 15 elementos, e estes eram chamados de coreutas. Após entrarem na “orquestra”, que é a área de dança no teatro, os coreutas cantam e dançam nesse espaço. Estes dançarinos-cantores eram em geral homens jovens que estavam em idade de entrar para o serviço militar. Não eram profissionais do teatro e daí a importância do tragediógrafo ser também o ensaiador do coro, muito embora os atenienses desde crianças fossem ensinados a cantar e dançar. O coro trágico quase não participa da acção, limitando-se apenas a comentá-la e expressando compaixão ou outros sentimentos pelos personagens. Algumas vezes também destaca o sentido religioso da acção e a intercala com preces. Por outro lado, simboliza o grupo – cidade ou exército – cuja sorte está ligada aos personagens. De todos os elementos do teatro grego, o coro é sem dúvida o mais estranho para o público moderno, embora tenha sido o núcleo inicial do teatro grego.
2) Corifeu: é um membro destacado do coro que pode cantar sozinho. Em geral tem três tipos de funções principais:
a) exortar o coro à acção, a começar o canto;
b) antecipar, ou resumir, as palavras do coro;
c) representar o coro, dialogando com os actores.
3) Actores: representam deuses ou heróis. São em número muito reduzido. Na verdade, pode-se dizer que o teatro surge quando Téspis cria a figura do actor, isto é, o separa do coro e ele passa a dialogar com este. O número de actores sobe para dois com Ésquilo, e em seguida três, com Sófocles, embora esta alteração tenha sido contemporânea de Ésquilo, tendo este inclusivamente usado mais tarde nas suas tragédias o terceiro actor, nomeadamente na sua famosa Oresteia. É no diálogo entre os actores que se concentra quase a totalidade da acção dramática. Os três actores tinham nomes que revelam uma relação hierárquica: protagonista – primeiro actor; deuteragonista – segundo actor; e tritagonista – terceiro actor. Os actores têm a sua etimologia conectada com agón, isto é, a luta, o confronto, embora originalmente o termo se referisse à assembleia, a uma reunião em praça pública, na agora. Proto + agón + ista quer literalmente dizer o primeiro lutador a entrar em cena, a entrar na skenê, o lugar onde se representava, para enfrentar os deuses. O actor ou actores representavam na skenê e o coro cantava e dançava nas orchestra, recinto grande em frente da skenê e que era envolvido pelo theatron, o auditório onde o público se sentava. A “orquestra” era o espaço cénico em frente e abaixo do palco (onde na nossa ópera, hoje, ficam os músicos, ao que chamamos o lugar da orquestra). Por conseguinte, os agonistas eram aqueles que subiam ao palco para enfrentar os deuses.
Passemos então agora a examinar a tragédia grega do ponto de vista da sua forma, quer na sua divisão em partes principais, quer na ocorrência de cenas típicas. É contudo extremamente importante não esquecermos o aspecto criativo e inovador dos autores trágicos, que os levava muitas vezes nas suas tragédias a romper com estas regras. Ao arrepio da ideia que uma leitura equivocada da Poética de Aristóteles disseminou desde o Renascimento, não havia uma norma que não pudesse ser quebrada. O objectivo dos tragediógrafos era vencer a competição e agradar ao público, e para isso usavam tanto o recurso da tradição quanto o da inovação. Mas veja-se a divisão da maioria das tragédias.

1. Prólogo: 
É a primeira cena antes da entrada do coro ou antes da primeira intervenção do coro. Trata-se de uma narrativa preliminar que visava introduzir o tema, que pode estar ou não presente numa tragédia. Os dramas antigos (séc. VI a.C.) e alguns de Ésquilo começavam sem prólogo, veja-se o caso de Os Persas e de As Suplicantes. No entanto, depois de As Suplicantes não temos nenhum outro exemplo de introdução puramente musical nas tragédias, como deveria ter sido na sua origem. 
Há vários tipos de prólogo: a) com apenas um actor, na forma de solilóquio ou monólogo – é o caso do Agamémnon, de Ésquilo, onde o solilóquio do vigia, que durante a noite espera o sinal da vitória em Tróia, nos antecipa tanto as circunstâncias da como o próprio clima ansioso e opressivo da tragédia; b) com mais de um actor, em cena aberta com diálogo e acção – que é o caso de O Prometeu Agrilhoado, também de Ésquilo, onde a peça abre com Prometeu sendo agrilhoado por Hefesto, indicando também onde se situa a peça e quais as circunstâncias; mas também em Medeia, de Eurípedes, ocorre esse tipo de prólogo com mais acção, através do diálogo entre a ama e o preceptor. 



2. Párodo: Inicialmente era a entrada do coro cantando e dançando na “orquestra” – por exemplo As Coéforas. Pode ser também a primeira ode do coro, pois este já estaria presente, em silêncio, desde o início da peça. Embora seja raro, acontece por exemplo em As Euménides.
Mas o párado pode ser executado de vários modos: a) por todo o coro – que é o caso mais frequente, por exemplo, em Agamémnon, de Ésquilo; b) por dois semi-coros em sucessão – por exemplo, em As Suplicantes, de Eurípides; c) pelos membros individuais do coro em falas rápidas – por exemplo, em As Euménides. Ao invés de um párodo cantado exclusivamente pelo coro, podemos ainda encontrar em vários dramas um “diálogo lírico”, isto é, uma parte musical, entre coro e actores – por exemplo, em Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo. Mas podemos encontrar esta escolha em muitas outras tragédias: Electra, Filoctetes e Édipo em Colono, de Sófocles; Reso, Medeia, Troianas, Héracles, Helena, Electra, e Efigénia em Tauris. 
Depois da sua entrada, o coro, em geral, fica presente durante toda a peça. São poucos os casos de saída de cena. Das peças que chegaram até nós, acontece apenas em As Euménides, Ájax, Helena, Alceste e Reso. O canto de retorno da orquestra é chamado de epipárodo. 


3. Episódio: é a cena que acontece no palco, entre os cantos corais, sejam estásimos (ver adiante) ou diálogos líricos, em que participa no mínimo um actor. Os episódios podem variar muito de tamanho e de importância. Além dos actores, podem também participar figurantes. Estes distinguem-se dos actores pelo facto de não terem falas. Podem ocorrer diálogos de tipo actor-corifeu ou actor-actor, nos quais predominam as narrativas. Os solilóquios, contrariamente ao teatro posterior, são pouco frequentes, pois o coro em geral está sempre presente depois do párodo. Um exemplo de solilóquio, durante um episódio, encontramos no Ájax, de Sófocles. Em geral, as falas dos actores durante os episódios são recitadas e não cantadas. Em certos momentos, porém, as personagens podem ser levadas por suas paixões a uma performance musical, cantada. As partes cantadas nas tragédias encontravam-se diferenciadas pelas mudanças da métrica do verso em grego. Não obstante, e de modo geral, nas traduções essas diferenças são imperceptíveis.
A actuação musical dos actores podia dar-se de duas maneiras: 
1. Com coro – os chamados “diálogos líricos ou musicais”, usualmente cenas de profunda emoção (o “diálogo lírico” pode apresentar uma grande variedade de estrutura) – e que se subdividem em: a) 1 actor + coro, são em geral os mais antigos, predominante nas obras de Ésquilo, por exemplo no 1.º estásimo de Os Persas, onde ocorre um diálogo lírico entre o arauto e o coro; b) 2 ou 3 actores + coro – por exemplo As Coéforas e Ájax –, que poderiam ser lírico-epirremático, isto é, cantada pelo coro e recitada pelo actor; ou então – e que era o mais comum em Ésquilo – o diálogo lírico propriamente dito, ou seja, coro e actores cantam juntamente. 

2. A solo, “monodias”, ou em duetos, era uma forma mais comum em Sófocles e em Eurípides. Pois com a diminuição do papel do coro aumentou o espaço no drama para os actores, havendo uma transferência do interesse da “orquestra” para o palco. É uma das características fundamentais nas cenas de violenta paixão nas tragédias de Eurípides.
3) Vários actores: diálogo entre 2 ou 3 actores. Forma também muito frequente em Eurípides. Neste formato, um actor canta e o outro responde em récita; o coro pode também fazer uma intervenção musical isolada dentro de um episódio, mas não temos certeza se o coro inteiro cantava ou cantava apenas uma parte dele – veja-se em Prometeu Agrilhoado, 4º episódio. Nestes casos a extensão do coro é pequena dentro do episódio. 
O número dos episódios não era fixo, variava de 4 (Persas) a 7 (Édipo em Colono), mas a regra generalizada era que as tragédias fossem compostas por cinco episódios. 

4. Estásimos: Eram os cantos e danças do coro na orquestra que separavam os episódios, marcando pausas na acção. Seu número é variável, em geral, de 2 a 5 estásimos por drama. A dança podia restringir-se a uma gesticulação enfática e era de carácter grave e trágico. Por vezes o coro podia apresentar um canto e uma dança mais viva, chamada de hipórquema, geralmente colocado antes da cena de catástrofe (ver adiante), para intensificá-la. Ao invés do estásimo, cantado exclusivamente pelo coro, poderiam ocorrer diálogos líricos com actores, como definidos acima no caso do párodo. No final de um episódio era muito comum a saída de actores para a skene, de forma a trocarem de roupas e de máscaras durante o estásimo, aproveitando esta pausa na acção. 

5. Êxodo: Inicialmente, como seu nome indica, era simplesmente a saída do coro cantando e dançando ao final da peça, como por exemplo em As Suplicantes e em As Euménides. Posteriormente, com a diminuição gradual do papel do coro, passou a ser a última cena depois do último estásimo e que encerra o drama – por exemplo, no Agamémnon. Assim, com a diminuição do papel do coro no êxodo, este poderia ser apresentado de dois modos: a) num diálogo lírico entre o coro e os actores – como por exemplo em Os Persas; ou, b) com versos finais do corifeu – neste caso poderia haver nesta última cena uma fala final de um deus que seria o epílogo, e que era a forma mais comum nas tragédias de Eurípides. 
Vejamos então como era arquitectura geral, mais usual, das tragédias gregas no seu período áureo:
PRÓLOGO (que faltava nas tragédias mais antigas) 


PÁRODO 


1º EPISÓDIO 


1º ESTÁSIMO 


2º EPISÓDIO 


2º ESTÁSIMO 


3º EPISÓDIO 


3º ESTÁSIMO 


4º EPISÓDIO 


4º ESTÁSIMO 


5º EPISÓDIO 


ÊXODO 
 


(continua)

20 Set 2016

Máquina de pendurar existências, o amor

Raquel Nobre Guerra (Lisboa, 1979), estudou Filosofia. É mestre em Estética e Filosofia da Arte na Universidade de Lisboa, onde investiga para o Doutoramento em Literatura Portuguesa “a categoria de fragmento na obra de Fernando Pessoa”. Publicou “Groto Sato” (Mariposa Azual, 2012), “SMS de Amor e Ódio” (Amor-Livro, 2013), “Saudação a Álvaro de Campos”, (Palavras por dentro, 2014), “Senhor Roubado” (Douda Correria, 2016). E é por este último livro que vamos viajar.

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]enhor Roubado é uma estação de metro de Lisboa. Enuncio isto de antemão, pois sei por mim mesmo que é muito fácil não sabermos disso, se não vivemos em Lisboa ou não tivermos vivido nos últimos anos, como é o meu caso. Se alguém em São Paulo intitulasse o seu livro de “Do Paraíso à Consolação”, talvez fosse difícil para quem não é de São Paulo, saber que se trata de duas estações terminais de metro, de uma das linhas da cidade; linha que vai precisamente da estação Paraíso à estação Consolação (nunca se diz o contrário), como se de uma metáfora da vida e do amor se tratasse. E não é por acaso que começamos esta viagem pelos metros de Lisboa e de São Paulo, e suas metáforas, pois o livro da Raquel Nobre Guerra é precisamente uma enorme metáfora da vida e do amor, que no Brasil, quando for editado, deveria até chamar-se “Do Paraíso à Consolação”. Como ela mesma escreve no início de um dos poemas:

“O amor desapareceu, diz-se por aí, e eu tendo a acreditar
porque dormes cada vez mais longe na metade da cama
que ocupaste com edições luxuosas do Paraíso Perdido.”

Sim, é um livro de amor. Um livro de amor como nas canções pop, em que ele já se foi e resta agora a melodia daquilo que ficou, para outros ouvirem e sonharem identificações, que ora se ajustam ao corpo, como se tivessem sido escritas para quem lê, ora ficam largas ou muito apertadas e não assentam bem. Restos de canções que também aparecem, aqui e ali, no corpo do poema. Por vezes aparecem como a única parte do mundo onde a poeta entra. Porque uma canção é o lado de fora menos perigoso, menos entediante aonde ir. Leia-se este poema, onde um verso de uma canção dos The Doors, de An American Prayer, nos surge como a parte mais quotidiana do poema, a parte em que a poeta vai à rua, em que sai de si:

“Deixa que nos chamem
pequeno cemitério de animais em flor.
O meu coração gótico espera por ti
aqui onde ninguém dança.

Porque havemos sempre de brincar
vestidos de santos até adormecer
nos olhos da cabra que, escuta:
I touched her thigh and death smiled.

Se perguntarem por nós aponta para cima
e responde com humor tipicamente irlandês
Senhor Roubado. Linha Amarela. Estação Terminal.”

Aquilo que podemos dizer acerca de nós não é muito mais do que isto: o nome e a posição do lugar onde enfrentamos os dias; e dizê-lo com humor, dizê-lo com a certeza de que a vida, a nossa, além de ter os dias contados, tem também um desconhecimento quase completo, para além de meia dúzia de nomes e algumas definições, que em relação aos frutos têm apenas um período mais alargado de validade. Entremos então no coração do livro:

“Movo-me na medida exacta da nossa distância.
Que direi eu deste lado do mundo?”

Esta passagem poderia ser o mote do livro ou, se preferirmos uma linguagem mais musical, o leitmotiv do livro. Este lado do mundo a que a poeta se refere, não é apenas ela, é a única possibilidade que tem de apreender o mundo e tudo o que lhe acontece: “a exacta medida da nossa distância”. Que não é senão a distância de cada um de nós para nós mesmos e para as coisas, para o mundo. Não estou agora a dar o dito por não dito, isto é, a recusar a leitura de amor que o poema encerra, um amor em cinzas, mas quero alargar a leitura à possibilidade de o próprio poema nos mostrar mais que amor: mostrar que toda a nossa relação com o mundo e connosco mesmos é um amor em cinzas; não é de amor, mas de nós no amor, de nós como o resto do resto do resto do amor. Ficamos cientes de que o amor é uma espécie de beleza que nunca chega para dois. Como a poeta escreve nestes dois versos: “Vim para dividir contigo a doença imaginária dos amantes. / Não tenho culpa de ter achado que a noite serve esse fim.” Mas a beleza nunca chega para dois. E julgais que o que nunca chega para dois é apenas um corpo, ou a impossibilidade de partilha do que se sente, quer seja no amor, quer seja no dia a dia?

“Nenhum clássico alternativo ao homem
mudou alguma vez o fuso do mundo.
A malha cai, o gajo escapa
é uma rosa, senhor, de plástico.”

E julgais vós que uma rosa de plástico é gajo fácil a dizer-se não? Julgais que há outras rosas que não as de plástico, no mundo e nos gajos? A rosa de plástico que um gajo é, é ela mesmo toda a humanidade. Nada muda o fuso do mundo, pois tudo, todos nós somos rosas de plástico. Raquel Nobre Guerra assume esta nossa condição humana sem quaisquer problemas ou pensamentos esotéricos:

“De resto, tenho uma perninha no bem e outra no mal
e mijo no meio, é honesto imaginar-me assim. ”

É honesto. E honestidade não é aqui uma prática ética, nem ontológica, nem estética. A honestidade é um sonho, um “imaginar-me assim”. Tudo é imaginação, menos o corpo que nos pede comida. E pede ainda outras coisas mais tenebrosas, pede imaginação. O corpo imagina. O corpo sonha. E isso, sim, é um problema. Adivinha-se. O corpo exige sonho. O corpo exige que o espírito desça do seu pedestal e se dobre para lavar o soalho, que os pés que o alimentam pisam.

“Sei que qualquer aragem me atravessará o corpo
(…)
Sei, porque me chego para a frente com força
que o poeta transporta um saco de luz
com um coração doente que canta
(…).”

A poeta sabe que é um duelo perdido, e por isso escreve: “Que eu só queria existir um pouco / na definitiva passagem do fogo / e suster a passo veloz os estragos / a força de um corpo resumido ao vento.” Mas nenhum corpo se resume ao vento. Os corpos nascem e morrem para imaginar. Os corpos até imaginam que são espírito. O corpo é em si mesmo um altar onde os amantes rezam. Não se é jovem de espírito, como se usa dizer nos arrabaldes da imaginação. É o contrário: o corpo é sempre adolescente, por mais idade que um espírito tenha. A Raquel Nobre Guerra sabe-o, e escreve: “Ou talvez esta minha inclinação adolescente / de pegar-te nas mãos para ficar nelas / ainda se torne o melhor par de versos de sempre.”
Nenhum poema de amor é somente um poema de amor. Principalmente neste livro de Raquel Nobre Guerra. Aqui, o amor é usado para dizer o mundo, para dizer o pó da humanidade. O amor é usado tal como os humanos são usados nele. Neste livro o amor não é uma máquina lírica, é antes uma máquina de pendurar existências, como nos diz os primeiros versos deste poema:

“Objectos restantes do nosso último encontro:
o tubo de tabaco Lucky Strike (seguramente)
e a pontuada consoante «só».
Coisas sem significado que se deixam ficar
como um piropo sem resposta.”

A inventividade da linguagem não prescinde de fazer sentido, não prescinde de ontologia. A vida, e não a linguagem, e não os efeitos da linguagem, e não o encantamento da linguagem, é o que importa aos versos de Raquel Nobre Guerra. A linguagem existe para dizer a vida, para complicar a vida, para fazer ver a vida, para tentar acalmar a vida. A vida é sempre o horizonte da linguagem, a vida que não existe a não ser que se invente. Nós na vida, aprendemo-lo com a poeta, somos todos “(…) um príncipe melancólico com abalos de amor / por mulheres mais tristes que uma mulher a correr (…)”.

Fora da linguagem, fora dos livros, fora de nós dentro dos livros, tudo é verdadeiramente triste como uma mulher a correr. Tudo é triste como amar uma mulher a correr. A tristeza maior, adivinha-se nos poemas deste livro, não é uma casa, seja ela qual for, não é uma vida, seja ela qual for, é uma vida separada da linguagem. Ir à rua é como se nos cortassem o cordão umbilical que nos liga à mãe linguagem; é essa dor, essa nostalgia que é sentida pela poeta que aqui escreve estes versos. Ainda que haja a consciência de que a linguagem nos mente com todas as letras do alfabeto; e consciência de que é com ela que nós também mentimos, a nós e aos outros:

“Minto, porque cedo ao poder das palavras
o que trago no saco são coisas remendadas
que vou deixando cair.”

Estes versos finais do poema inicial parecem ilustrar bem a falência do quotidiano face à poesia. Porque nada é mais triste do que o quotidiano, a não ser talvez escrever sobre ele. Fora dos livros, fora da leitura e da escrita, o mundo inteiro “ilumina-se de todos os anjos filhos da puta”, porque a tristeza começa sempre que um humano sai da sua casa para ir ao café do seu bairro ou para o trabalho ou simplesmente ir às compras, porque o corpo assim o exige.

“Acordo com um perfume que não é o meu,
faço contas ao corpo antes de ser bicho
— às vezes penso, esta obsessão não é verdade
estou morta sou infinita
e a manhã despenca como uma grua.”

Apesar de tudo é muito difícil ser-se bicho. É difícil entregar-se a uma animalidade esperada ou sonhada ou simplesmente uma animalidade que parece fácil aos outros. A animalidade não é ser viúvo de espírito, a animalidade é o corpo a deixar de sonhar. O corpo exige, mas o espírito põe os pés pelas mãos e põe-se a fazer contas. E depois há que pensar. Há que pensar, que isto é uma coisa que não nos deixa. Não nos deixa sequer dormir, não nos deixa sequer trocar de sexo com alguém. O cérebro, que serve para inventar tantas coisas belas, não consegue inventar um botão de pausa. Nem a troca de sexo com alguém nos dá descanso. Porque não há uma pausa para o pensar. Pensar não dá descanso à poeta. Pensar é ser viúvo do corpo. Raquel Nobre Guerra parece saber que o poeta quando cai de boca no sexo, a boca não vai sem palavras, não vai sem pensamentos, não vai sem indecisões, que são o departamento de finanças do país pensar, e com isso o poeta dá cabo de tudo. Não dá cabo só da sua vida, dá cabo também da possibilidade de fugir dela. Arruinada que está essa possibilidade de fuga, “a manhã despenca como uma grua.”

Estes poemas mostram a encruzilhada de se ser entre uma boca no amor ou uma boca na linguagem. E não há conciliação para esta poeta (ainda que a pessoa possa não ser assim), porque, como ela mesma escreve:

“Bebo uma bica por dia, às vezes bebo-a fria
depois disto bem que podia morrer, diga-se
com as mãos ao redor de um pescoço amigo
quero dizer, de um livro. Tenho o carácter
objectivo de uma incompetência para a vida.”

Só os livros nos compreendem. Só aos livros compreendemos. Tudo o resto é uma angústia enorme, por ter de ir à rua comprar comida, beber café (a parte boa da existência), fazer a máquina funcionar. “Quem nunca hesitou na paragem do 28 / e pensou: ali via a metáfora da minha vida.”

Vida e poesia não são coisas separadas. A poeta não vai à rua, lambuzar-se de vida, e chega a casa para escrever o seu poema, para afirmar o seu nome no mundo. Ela vai à rua (porque não pode deixar de ir) e sempre com culpa, por mais que haja açudes de alegria. Mas talvez os versos deste livro que melhor nos mostrem a identificação entre vida e poema para Raquel Nobre Guerra se encontrem aqui:

“E um bom poema? Uma banana a apodrecer numa fruteira.
E o que a comove? Uma banana a apodrecer numa fruteira.”

Além desta guerra entre os aliados – que formam um enorme exército e podem ser resumidos no verso “Gente que está viva, diria, pasto para as sensações”, que no fundo são a rua, o amor, o sexo, a vida – contra a escrita, e de traçar uma fenomenologia de bairro bem conseguida – pois toda a fenomenologia é como o fim do mundo, e “O fim do mundo começa sempre no café do bairro” – o livro é repleto de belos versos. Por fim, deixo para mostrar aquilo que é certamente a cor mais visível deste livro: a ironia. Uma ironia quase constante, a fazer-se sentir ao longo dos poemas como uma dor moinha nos dentes. Como nos exemplos seguintes, que não esgotam o caudal irónico desta poética: “Mas a natureza morta da metáfora / não me deu talho para o poema.”; “Mas aprofundei-me na ocupação da violência / um arzinho de filosofia para empernar meninos.”; ou ainda nesta estrofe inteira:

“Sais de casa porque a morte te agita
transpiras pelo empregado de mesa
que lê Balzac, tens ambições literárias
razões, enfim, para andar mal vestido
despenteado com um saco na cabeça
para que se diga ali vai a poesia portuguesa.”

Ironia e ontologia, numa sucessão de duelos, numa sucessão de inversões no modo como vemos as relações entre o corpo e o espírito, entre o corpo e o sonho. Terminemos com a voz da poeta, no final de um dos seus poemas:

“Dei por mim a propor duelos:
Café e pistolas para dois?”

13 Set 2016

Sem engordurar os dedos de vida

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ela boca morre o peixe, pela palavra morre a vida. Pela palavra morre a miséria da vida e nasce a flor viçosa do esplendor humano. A palavra aponta a miséria para superá-la, para sará-la, curá-la. Só a palavra cura a vida, só a poesia cura a realidade. Esta é a poesia, o sentido primeiro da poesia de Mariana Ianelli, na grande tradição de Fernando Pessoa. Mariana acredita na palavra redentora. A palavra redentora é a palavra poética. A palavra que começa sem começo. Que acaba sem fim. A palavra que magicamente desconhece a vida.
Mariana Ianelli faz uma das coisas mais difíceis de serem feitas em poesia: com os materiais da miséria, com os materiais da história humana repleta de atrocidades, constrói um arranha-céus de optimismo. Mas não se pense que optimismo se identifica com lirismo caduco ou com pieguice de polichinelo. Melhor seria dizermos que, para além da beleza dos seus versos, há ainda a desgraça do optimismo. Desgraça bem maior do que o pessimismo é o optimismo. Acreditar na palavra apesar de tudo, contra tudo e contra todos, acreditar na palavra como transformação, como advento, como o que pode e vai salvar o mundo é mais miserável do que não acreditar. Quem acredita na palavra poética como redentora do humano e do mundo sofre mais do que um pessimista. O que dói é acreditar e carregar essa crença nas costas. Não acreditar em nada não dói sequer uma unha. O optimismo, e isso aprende-se nos poemas de Mariana Ianelli, é a maturidade da miséria. Ao invés de acusar a miséria, de lhe pôr as culpas em cima, estes poemas ordenam as misérias com palavras, e é com este movimento que acontece o inesperado. Este inesperado é o poema que nos faz ver o que já julgávamos ter visto. O pessimismo é a adolescência da miséria. e o optimismo a maturidade da mesma. E quando digo aqui miséria, não falo apenas da miséria humana, mas a miséria de todas as coisas, a miséria do tempo com tudo o que engole.
Embora se tenha dito atrás que Mariana usa os materiais da miséria e os transforma, não se quer com isso dizer que se trate de uma poética da reciclagem. Uma coisa é fazer uma estátua com o lixo da rua, outra bem diferente é ordenar o lixo da rua de modo a poder seguir em frente. Assim são os poemas de Mariana. Nem descreve a realidade, nem a recicla. Os poemas de Mariana ordenam a realidade, de modo a caminharmos melhor e seguirmos em frente. Não temos de ter vergonha do lixo, das nossas misérias, as palavras sabem delas melhor do que nós e ao seguirmos as palavras, seguimos em frente, seguimos acima da vida. Há na poética contemporânea muito de reciclagem, mas não é o caso dos poemas de Mariana Ianelli. Os seus poemas destacam-se radicalmente daquilo a que se usa chamar de poesia contemporânea, tanto na forma quanto no conteúdo, como se verá em seguida ao analisarmos de perto um dos seus livros. A poesia de Mariana é uma poesia apocalíptica, no sentido literal do termo, uma poesia da revelação, uma poesia ainda por vir. Aquilo que está por vir não é contemporâneo, obviamente, mas apocalíptico.

A poesia desta jovem poeta tem a grandiloquência dos mitos, da autoridade do passado e o tom severo e encantatório da elegia. Não é por acaso que os seus versos começam todos em maiúsculas, quer sucedam a um ponto final, a uma virgula ou a nada. A vida é verso a verso e não uma correria até ao fim. Assim são os poemas da Mariana. Os poemas de Mariana Ianelli não falam da vida, não imitam a vida, não a descrevem. A vida é para quem não pode mais nada. Vejam-se exemplos. No seu livro Passagens, à página 31, escreve:
“Eu persisti,”
Neste início de poema, ainda antes de começarmos, paramos. Paramos por duas razões: pela forma e pelo conteúdo. Paramos porque pela primeira vez estamos a ver o sentido pleno e contraditório deste verbo, persistir, nesta primeira pessoa a dizer o verbo: Eu persisti, … a vírgula obriga-nos, aqui, a parar mais do que qualquer ponto final usualmente nos pára. Eu persisti só poderia ter ou vírgula ou nada, nunca um ponto final. E isto compreende-se pelo que falta, pelo que parece faltar à transitividade do verbo. Este verso faz-nos ver que persistir é parar. Persistir, que sempre tomamos por uma acção violenta de continuidade, aqui explode na nossa atenção como sendo o oposto. Eu persisti quer dizer “eu parei”, “eu fiquei”, “eu mantenho-me” “eu estou presente”, “eu sou”, ou como diriam os gregos antigos, “egw andreios eimi” (“eu sou corajoso”), eu mantenho-me no lugar onde sempre estive. Ou ainda, como ela escreve à página 23 do mesmo livro:
“Caiam todos sobre mim: eu subsisto.”
Trata-se em poucos versos de um projecto que depois será sustentado verso a verso ao longo do livro: o sentido de quem se mantém só, repleta de história. Porque a sua poesia não rejeita o conhecimento do passado, não rejeita mostrar-se como parte da miséria que assola o mundo desde o início dos tempos. Esta poesia está muito pouco preocupada com inovações formais. Isso é assumido de imediato pelos versos iniciados sempre por maiúsculas, mas não só, também há versos que no seu conteúdo nos dizem que é assim que esta poeta pensa, que esta poeta assume seu lugar no corpus poeticus, leia-se o verso à página 79:
“Os falsos poetas contemporâneos,”.
E, nesse mesmo poema, o primeiro verso diz: “Retorna para o Tártaro,” e, adiante: “E, depois, as Fúrias aprontarão”. Assim Mariana Ianelli assume a temporalidade, assume o mundo como seu objecto poético, e não apenas o seu lugar claustrofóbico: “Nós temos em comum este corpo que nos trai.” O corpo é uma prisão, viver no corpo e pelo corpo é recusar a totalidade do mundo, da história, da temporalidade. Viver para além da prisão do corpo é, para Mariana, a única possibilidade de fazer poesia. E, a tudo isto, se liga ainda um artifício muito bem conseguido: a voz desta mulher, desta poeta antiga construindo o seu passado, é a voz de um homem, a voz masculina. Por que faz ela isto? Veja-se como ela termina um dos seus poemas, à página 55:
“De um homem frente ao signo da morte, / Homem que eu jamais seria.”
Não se trata de uma imitação da heteronímia de Fernando Pessoa, mas sim de uma impossibilidade de nos aceitarmos, de aceitarmos que “passamos”, que estamos aqui de passagem, que “temos em comum este corpo que nos trai.” E com ele, com esta traição que nos habita, nesta traição que transportamos temos de defender as palavras. Rejeitar a sua própria voz, a voz com a qual responde pela manhã ao seu marido ou à tarde à rapariga da loja, é reconhecer que a vida não tem nada que entrar no poema. A vida não é p’r’aqui chamada. E, neste particular, sim, neste particular tem a ver com Fernando Pessoa. Não enquanto imitação, mas como profundo enraizamento numa estética que recusa que a vida entre poema adentro. Os poemas de Mariana Ianelli têm seus pés fortemente fincados aquém e além da vida, como podemos ver neste verso: “Com meus dedos engordurados de vida.” É assim que a poeta se vê ao chegar ao poema, ao debruçar-se sobre si mesma, sobre a página, sobre o poema: com os dedos engordurados de vida. E lembramos de imediato o verso final de um grande poema de Álvaro de Campos: “Raios parta a vida e quem lá ande.”
Nos poemas de Mariana, há a claridade quase ofuscante da vida não valer nada, da vida não valer senão o que se faz dela, o que se faz com ela. A vida existe para ser ultrapassada. Conhecer a vida é também fazer pouco mais que nada, saber pouco mais que nada, encantar nada. Leia-se outro verso de Mariana: “Com teu mágico desconhecimento da vida”. Desconheça-se a vida para conhecer a magia, a palavra, o mistério. Desconhecer a vida é existir sem engordurar os dedos de vida; é encantar, é ter o poder antigo da magia, o poder das palavras que abrem clareiras, que fazem ver, como se a cegueira fosse antes do poema a nossa única morada. Desconhecer a vida não é desconhecer a palavra. Desconhecer a vida não é desconhecer o que mais importa. Desconhecer a vida é a magia que hoje ainda nos é possível realizar. Mariana sabe que a nossa vida vale menos que um poema, menos que um verso. E esta é a sua guerra: contra a ausência de poesia que nos habita. A poesia dela não é pessimista, embora não nos faça rir, nem sequer ficar contentes. A poesia é de outra ordem. Da ordem da beleza, da ordem do que nos mostra a vida morrendo diante de uma palavra. E isto só pode fazer com que nós, humanos que vivemos nas palavras, tenhamos um esgar de esperança de que há Deus, o outro ou o nada para nos ouvir e compreender. Por fim, a beleza dos versos de Mariana Ianelli, avulso, como a própria poesia dela e a própria vida:
“Vivendo entre a espada, o luto e uma elegia. (…)”
“Esta dor voltou a ser (…)”
“O lugar santo visto à luz da chama, (…)”
“E os nossos iguais, que eram tantos, (…)”
“Que nos misturássemos aos mortos, (…)”
“Não fica o espaço transitório do nosso corpo, (…)”
“Todos nós caímos em desgraça. (…)”
“Desejei um tempo pela manhã (…)”

“Eu te quis vivo,
Transtornado, mas vivo. (…)”

“Contornada a margem fina
Do esquecimento,
Outra capital aparecerá
Sobre a antiga. (…)”

“Para as mão de quem eu nunca vi, (…)”
“Com teu mágico desconhecimento da vida (…)”
“Continuaste errando em nome da tua velha sensibilidade. (…)”
“E a mente padece como se arfasse, (…)”
“Estás muito bem guardado em tua alma. (…)

“O que por ti já passou, mas sempre retornará,
Carrossel do enforcados, profecia de tua desgraça,
Insânia nas alturas, e mais desgraça. (…)”

“Uma tarde cuja noite se tornou algum resíduo amortalhado. (…)”
“Nós temos em comum este corpo que nos trai. (…)”
“Tinha de ser o caos. (…)”

“Chovia no caminho de tabuas,
Ao pé da escada do pátio a lama cheirava bem
E a infância mostrava as suas vísceras. (…)”

“Ignoro se tu és capaz de voltar.”

“O desejo de que tu compareças
Não dura em mim do mesmo modo que tua imagem, (…)”

“Agora eu compreendo as tuas passagens.
Aos quinze tu pegaste corpo (…)

“Quantas vezes o pai te aturdiu no rosto e te cuspiu
Por cresceres apetecendo tanto aos outros… (…)”

“E verás em ti a emoção de uma outra face. (…)”

“E tudo o que amas com fervor
“Reside no absoluto esquecimento do passado. (…)”

“Chegamos ao extremo do caminho
Aonde ninguém vai sem antes dar-se por vencido. (…)”

“Diz que uma febre se esconde
No seio do próximo inverno, (…)”

“O inferno esteja contigo
No dia em que teu pai morrer (…)”

“Os falsos poetas contemporâneos, (…)”
“Atravessamos a época de um verão que faz sofrer, (…)”
“Estamos em ti sempre que te ausentas. (…)”
“Que a chuva descia pelos seus tentáculos d’água (…)”
“Era uma pepita de sangue (…)”
“Tudo o que era nosso nos foi tirado.”

“Mas algo ainda permanece, (…)”
“Penumbra da nossa própria sombra (…)”
“Derramada sobre o chão, (…)”

“Sentinela dos teus vários descendentes, (…)”
“As semanas despendidas à vara e a remo (…)”
“Um desvão onde guardar minha ansiedade. (…)”

Mariana Ianelli nasceu em 1979 na cidade de São Paulo. É autora de sete livros de poesia publicados pela editora Iluminuras, São Paulo – Trajetória de antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005), Almádena (2007), Treva Alvorada (2010), Amor e depois (2012) – e um, o mais recente, Tempo de Voltar (2016), pela editora Ardotempo, Porto Alegre.

6 Set 2016