Fazer ver

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]o fim de pouco mais de um mês de páginas semanais acerca da poesia, ocorreu-me que, por falha minha, não deixei claro aos leitores aquilo que entendo por poesia, independentemente das suas escolas e dos seus maneirismos, pois a poesia diz-se de muitas maneiras, como Aristóteles dizia em relação ao ser. Através de um verso, o primeiro, de “O Regresso dos Guerreiros”, do livro, Paixão e Cinzas (Assírio & Alvim, 1992) de José Agostinho Baptista, vou então tentar explicar o que julgo ser a poesia:

“As camélias apagam-se ao longe ao fim do dia.”

Repare-se, as camélias deste verso não são seguramente as camélias da botânica nem tão pouco as camélias dos olhos de todos os dias (essa desatenção oriunda do viver em funcionamento, a saber, um viver fechado no específico, espaço e tempo onde as coisas deixam de ser coisas em si mesmas, coisas mesmas, e passam a ser coisas funcionais; a transmutação do essencial em valor de função). Primeiro, as camélias do verso não são, não existem, isoladas do verso que lhes segue (verbo apagar; presente do indicativo, terceira pessoa do plural, conjugação reflexa): apagam-se. Segundo, o verbo sem o qual as camélias não são  recebe de as camélias um ganho que de per si não possui. Terceiro, as camélias apagam-se forma uma unidade indissociável no próprio verso, perde-se nesta unidade as unidades dos seus signos isolados, e ganha-se uma outra unidade, à qual se denominou metáfora. Mas não é a metáfora o que aqui interessa, ela é aqui o que menos importa, pois aquilo que se busca, a intencionalidade do verso, é-lhe muito anterior. A metáfora, de per si, não possui poder para despertar uma emoção, que transcende a estética literária e nos coloca na pura existência. Aliás, é da própria existência que a metáfora recebe o ganho de intencionalidade. Mais ainda, antes da metáfora, as camélias apagam-se, é o resto do verso, ao longe ao fim do dia, que coloca a metáfora em posição de receber a existência. É tempo de reouvir-se o verso.

“As camélias apagam-se ao longe ao fim do dia.”

Já que se vulgarizou a metáfora, ouça-se atentamente o resto do verso, ao longe ao fim do dia. Temos um advérbio de lugar (longe) que tem como função sintáctica modificar o verbo (neste caso, o verbo apagar), dois substantivos masculinos (fim, dia) e … Bom, os factos são estes: O verso possui uma só oração, um sujeito (camélias), um predicado (apagavam-se), um adjunto adverbial de lugar (ao longe), um adjunto adverbial de tempo (ao fim), e um complemento nominal (do dia). Ainda uma figura de sintaxe (metáfora), três substantivos (camélias, fim, dia), três contracções preposicionais (preposição mais artigo; ao, ao, do), e um artigo definido plural (as). E isto seguramente não é o verso, são considerandos que não conduzem a ele, pelo contrário, afastam-nos para um local onde jamais o recuperaremos. Se nos é impossível alcançar o verso através das análises sintáctica e morfológica, avancemos uma análise semântica.
Evidentemente as flores, quaisquer que elas sejam, não se apagam tal as velas, os candeeiros, as simples lâmpadas ou as ancestrais fogueiras. A multicoloração das camélias, como qualquer cor, com excepção do negro, necessita necessariamente de luz para se fazer aparecer. É a luz que se esgota nas camélias, em reflexo, como um espelho, da parte final do verso “ao fim do dia”. “Ao longe”. intensifica ou reforça a ideia, da impossibilidade das camélias se fazerem ver, embora se perceba que é só no fim do fim do verso. Há um jogo de claro-escuro, dia-noite, luz-trevas, e presença-ausência. “Ao fim do dia”, tem um poder temporal que ultrapassa o simples dia (dia-luz), e alarga-se até ao fim do dia, ao fim do tempo, ao fim de tudo (ao fim da esperança). As camélias que se apagam é, também, o declínio dos ombros, o pensar finito que nada pode contra o envelhecimento, pode nada contra o devir; é só uma parte que agora se esmaga. E, assim, “ao longe”, e uma vez mais, intensifica ou reforça a ideia, alagando todo o verso de melancolia, de uma soturnidade maior que ao fim do dia. Ao longe não é somente espaço, é, aqui, principalmente tempo. Esse ao longe é todo o verso, o tempo que passa, que passou, a própria vida vivida, ao longe. É o local da irrecuperabilidade da infância. Somos nós que estamos “ao longe” de nós mesmos e caminhamos para o fim do dia. Não são as camélias que se apagam, é a vida. Este verso enraíza na tradição Grega de olhar o tempo: caminhamos para o passado, para a morte, porque a vida, o futuro, vamo-la deixando para trás das costas.

“As camélias apagam-se ao longe ao fim do dia.”

É claro que a análise semântica nada deve, isto é, deve pouco aos conteúdos semânticos da relação dos elementos dentro da proposição, do verso, ou dos conteúdos dos elementos. A análise semântica que se efectuou, foi efectuada por um sujeito vivencial e não por um sujeito abstracto. É o resultado da cristalização do sentir face ao verso. Já não é o verso nem a percepção dele; é um critério do verso. Qualquer análise traz já consigo o seu antecedente, a contemplação, só possível porque se toma contacto com as coisas mesmas. A coisa mesma do verso reside antes do verso. E, se é verdade que um verso não é passível de ser objectivado, não o é menos que a sua subjectividade advém de um ganho objectivo e universal, por parte de um sujeito vivencial. Este objecto, anterioridade da subjectividade do verso, é um dado puro, que tem como base a auto-contemplação imediata, isto é, tudo quanto exista por si mesmo, na vivência e na contemplação, e precede a verdade e a falsidade. Um amor inequívoco pelo essencial, através de um uso da linguagem, cuja técnica tenha apenas uma regra: fazer ver. Mas fazer ver é uma expressão que pode muito bem ser reivindicada pela filosofia. Mas enquanto a filosofia faz ver através de um discurso, em que o pensar se sobrepõe ao sentir, a poesia faz ver através de um discurso em que o sentir se sobrepõe ao pensar, como se viu na análise que se levou a cabo ao verso de José Agostinho Baptista. Fazer ver, em si mesma, é uma expressão rica de sentir e pensar, e por isso mesmo, reivindicada como sendo propriedade quer da filosofia, quer da poesia. Assim como o amor ao essencial. Talvez por isso mesmo, vários filósofos, muito acertadamente, referiram-se à poesia e à filosofia como sendo irmãs. E, como todas as irmãs, muitas vezes desavindas. Nós somos mais o que lemos, do que o que comemos, a não ser que alguém se veja a si mesmo como um corpo, ou julgue que a comida “biológica” é mais importante para a sua formação do que a leitura continuada de filosofia ou de poesia. E é por isso, que o conhecimento de filosofia ajuda na leitura de poesia, pois a filosofia ajuda no conhecimento do que somos, do que julgamos ser, ajuda-nos no conhecimento de estarmos entre um nada de conhecimento sobre nós mesmos e coisa nenhuma sobre o universo. Assim, e do mesmo modo que o Tejo alaga os arrozais das lezírias, a filosofia alaga a poesia.

“As camélias apagam-se ao longe ao fim do dia.”

2 Set 2016

A misericórdia da solidão

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ascido em Lisboa, em 1972, Rui Almeida tem seis livros de poesia editados e muitos poemas ainda inéditos. Lábio Cortado (Livrododia, Torres Vedras, 2009), Caderno de Milfontes (volta d’mar, Nazaré, 2011), Leis da Separação (Medula, Coimbra, 2013), Temor Único Imenso (Labirinto, Fafe, 2014), A solidão como um sentido, seguido de Desespero (Lua de Marfim, Lisboa, 2016) e Muito, Menos (Companhia das Ilhas, 2016). Rui Almeida é um poeta pessimista. Não no sentido de pensar que o mundo vai piorar, mas no sentido de ter a consciência de que tudo é já o pior, porque tudo é uma construção humana, tudo é o humano: “Perdes sempre /
Quando vives. Perdes tudo
/ O que nunca foi teu. És
/ Apenas o vazio desolado
/ Em busca de mais vazio. / Nada há senão perder.” Este tom, de um poema inédito de Almeida, é o leitmotiv da sua poesia, se não da sua vida, que importa tanto aqui como a última camada de electrões do átomo de Bório.
Entramos na poesia de Rui Almeida como se entrássemos na cabeça de um Diógenes de Sinope (o Cínico) radical. Se Diógenes percorria as ruas da antiga Atenas durante o dia, com uma candeia acesa, a ver se encontrava um homem honesto, Rui Almeida percorre as páginas dos seus livros em busca daquilo que mostre de uma vez por todas que o humano não presta, que o humano não vale a tinta que o descreve. Não se sabe se escreve para provar que está errado, se para nos mostrar que está certo, já que muitos dos pessimistas são optimistas falhados, optimistas que não deram certo. Mas o que sabemos, com certeza, a certeza que é possível ter através das palavras, é que ele busca incessantemente em seus poemas a origem do mal humano, aquilo que faz ou fez com que a vida seja um contínuo desespero, uma contínua injustiça. E a poesia torna-se tão mais pujante, mais forte, quanto o poeta se furta a efeitos retóricos de descrições inúteis, porque redundantes, e remete-se ao essencial. De facto, há nestes poemas, concomitantemente, uma aproximação ao pensamento filosófico e um afastamento do mundano e do quotidiano. Como se nos dissesse: falar de uma taberna, de uma paragem de autocarro ou das árvores de um jardim não passa de redundâncias para enunciar o vazio; o vazio não precisa de nada para ser enunciado. E essa é que é a dificuldade, que parece ter sido ultrapassada ou contornada por Rui Almeida: “És
/ Apenas o vazio desolado
/ Em busca de mais vazio. / Nada há senão perder.” Nada há senão perder. Para quê então enunciados que, para o poeta, parecem não passar de máscaras carnavalescas do vazio e não do vazio ele mesmo, ou tão-somente do mais próximo que podemos chegar-lhe com palavras? Almeida já o havia escrito em A solidão como um sentido, seguido de Desespero: “E sempre o desespero, / (…) A criar atrito e dor. / Sem nome a dor, sem Limite amparado // Por uma linguagem.” Descrições em poemas são, para Almeida, adivinha-se nos seus versos, rodas auxiliares para bicicletas. Mas, e também se suspeita, não como forma de aprendizagem, mas como forma de nos proteger da realidade, criando uma paisagem, campestre ou urbana, que serve de amortecedor ou de entretenimento para o que realmente acontece no humano. Mesmo quando há descrições nos seus poemas, não são verdadeiras descrições, mas abstractos, como no exemplo destes versos de Temor Único Imenso, à página 8:

Diante das aves caem migalhas,
Silenciosos pedaços do mundo,

A prometer sustento. Para as aves,
Fazem parte da existência, do
Convívio com tudo o que existe sempre.

Com as migalhas que caem, as aves
Se alimentam, se divertem, se lembram
Que são aves pequenas, que a queda
É apenas o assombro de ser
Não mais do que ave e ave pequena.

Aves, aqui, é tão abstracto como dizer pedra ou chão ou céu ou mar. Mar, aliás, que é palavra recorrente nos poemas de Almeida e, a maioria das vezes, uma pedra tão abstracta como ave. E tudo vai sempre dar ao nada, ao vazio, ao não se ser, como neste poema, também inédito:

“Voltam o silêncio e o deserto,
Palavras frequentes, demasiado
Frequentes, comuns como sobras
De dias passados, o sabor gasto
Na boca sem saber que dizer.
Silêncio e deserto, apenas palavras,
Apenas a desilusão de uma outra vida,
Limite incerto, viragem súbita
Para fazer algo mais, para alcançar
O inesperado. Outra coisa, nada.”

E à página 28 do mesmo livro, escreve: “Cinco aves pousam nos ramos nus /
De uma árvore no inverno. Pousam / Devagar trazendo o sopro, trazendo /
A distância dos lugares de onde chegam.” Aves e árvores (mais um abstracto) são instrumentos para dizer distância e nada. Lugares de onde chegam e ramos nus de uma árvore no inverno, nós nos afastando de nós mesmos, nos deixando por todos os lugares em fomos até à árvore nua no inverno, que não passa da sorte que nos espera. Sente-se, na poesia de Rui Almeida, metafísica e abstracta, no uso da linguagem, que a existência não nos serve, está-nos apertada, precisávamos de um número acima. E muito provavelmente aquilo que mais choca a nossa sensibilidade – pois como escreveu Miguel de Unamuno, “não se é pessimista por ler livros pessimistas, é por se ser pessimista que se lê livros pessimistas” – encontra-se no início do primeiro poema aqui citado: “Nunca voltarás a ter / Aquilo que viste.” Nestes dois versos, que iniciam o poema, vemos aqueles velhos nos bancos do jardim, junto a nossa casa, ou no caminho par ao trabalho, a seguirem com os olhares as pernas magras e belas da rapariga, que os calções curtos deixam ver ao passar. E, de repente, dói-lhes algo não se sabe onde; dói-lhes a vida perdida, não se sabe onde; dói-lhes o futuro que não volta. Nunca voltarão a ter o que viram. Porque aquilo que agora vêem, as belas pernas da rapariga a passar, não estão realmente a ver; não é a ver, é o visto. Aquelas pernas que passam são o já visto, muito tempo lá atrás, e não o a ver, aqui e agora. Através dos versos ficamos a sentir que o que dói aos velhos, que vêm passar a beleza, não é não a ter, mas não se terem a eles mesmos. “Nunca voltarás a ter / Aquilo que viste” explode como sentença fúnebre, macabra, aterradora. Como se fosse o eco de um verso de um poema de A solidão como um sentido, seguido de Desespero: “A saudade de nunca teres existido.” Nunca existimos, não porque o que desaparece não existe, mas porque o que foi já não é. Ter existido é uma aberração do existir; e o próprio existir só existe na confrontação com a consciência de ter existido. Esta aporia existencial continua ainda no mesmo livro, à página 11: “Lado a lado, a solidão / E a memória queimada / Da infância. Falhas / Na superfície lisa do tempo.” Lado a lado, podemos dizer, a existência e o ter existido. A identificação da existência com solidão não tem carga ética, mas ontológica. E por isso mesmo passível de nos ajudar a carregar o nosso ter existido ao longo do tempo, como neste verso de Lábio Cortado: “– respirar é o acto de misericórdia permitido ao corpo.” E veja-se neste “respirar”, para além do concreto que é no verso, o abstracto que também não deixa de ser: aquilo que só a cada um de nós nos diz respeito, que só a cada um de nós pode interessar e que só cada um de nós pode resolver.; ninguém pode respirar por nós. A solidão não é um castigo, é a misericórdia que nos é permitida. Estamos diante de uma poesia, toda ela ainda por descobrir, porque recente, eivada de metafísica, de abstracto – que aqui nesta poesia é o concreto sem entretenimento – e um convite a mergulhar na solidão. Porque no fundo somos todos abstractos uns dos outros como as aves das árvores, como a morte, como o Outono, como nestes versos com que o poeta inicia o livro Temor Único Imenso: “Eram de novo as aves e morriam / Doutras armas porém do mesmo modo / Eram de novo e era Outono”. Tudo será sempre da mesma maneira, a morte, as aves, as árvores, os humanos com suas armas, que só diferem na forma como matam, mas não no matar. A redundância da descrição fica completamente às claras nestes versos agora citados, principalmente no primeiro verso do livro: “Eram de novo as aves e morriam”. Para os leitores frequentadores da filosofia contemporânea, já há muito que se coçam de Wittgenstein. E, sem dúvida, estamos perante uma poesia de braços abertos ao solipsismo, que não pretende construir pontes ou descobrir ligações entre um humano e um outro. Uma poética, quase toda ela – com excepção de Caderno de Milfontes – a fazer ver as sombras. A fazer ver que os outros são sombras de nós, que nós somos sombras de nós, quando com os outros, a fazer ver que nós somos sombras de nós mesmos quando sozinhos, embora sem chão ou sem parede para a sombra caminhar. Rui Almeida jamais poderia dizer, como Rimbaud, “Je suis un autre”, pois para Almeida “eu” ou “outro” são o mesmo abstracto que não nos levam ao respirar, à solidão misericordiosa e pessoal. Termine-se, com o poema que abre o livro Lábio Cortado:

“Suave, devastadora, a sombra deste tempo
De pernas dormentes por não caminharem.
Esta coisa de estar parado a assistir a nada,
Consciente da cor de cada objecto à minha frente
Enquanto a visibilidade se fecha dentro de um candeeiro.

Não são crianças que oiço, nem pássaros,
São os pés de quem sabe andar e se desloca,
É o riso de quem reage à sedução e ao modo do desejo.
O peito está vazio e abandonei-o
– respirar é o acto de misericórdia permitido ao corpo.

Penso até à exaustão naquilo que podia ter sido.
Demasiado cedo me reconheci como vivente,
Como servo do movimento e das funções vitais.
Não renego a força que em mim surge
Nem me permito a queda na tentação da morte.

Os braços são pequenos demais para a coragem,
Isso que nem sei que seja ou de que me valha.
O roubo é uma solução como outra qualquer
Para viabilizar a vontade ou o impulso do gesto.
O risco é projectar a voz para além do mar;

Para além de tudo o que de imenso se estende
Diante de um homem que tem olhos perdidos.
Como se perde a distância? – é esta a pergunta
Sussurrada no momento em que se desiste
E da qual nasce a sede que permite a resposta.

É no candeeiro que extingo o excesso do pensamento;
Não reconheço à luz os efeitos salvíficos
A que a aparência poderia levar-me.
Prefiro o vazio sistemático da brancura
Diluído no ar que me envolve e que respiro.”

30 Ago 2016

Hesíodo – A aurora do Eu poético

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]esíodo era pastor e rapsodo (não tem nada a ver com rap) e recitava poemas de Homero. Saber acerca do seu nascimento, só isso dava um romance. Pois a data em que viveu tem vindo a alterar-se ao longo dos séculos. Hoje é comummente aceite que Hesíodo é posterior a Homero, mas ao tempo de Platão, por exemplo, Hesíodo era considerado como anterior a Homero. Se pensarmos acerca disso, o facto de não haver muitos registos, de as comunicações serem muito precárias, e de a Teogonia mostrar a genealogia dos deuses, não parecerá assim tão estranho. Pois seria fácil de pensar que a Teogonia era a base do conhecimento de Homero para escrever as suas obras. Por outro lado, Hesíodo, em Os Trabalhos e os Dias, reflecte a vida do campo, a vida do camponês e do proprietário rural, ao invés dos valores da nobreza e da guerra. Hesíodo é também um poeta de um profundo pessimismo, mostrando no seu poema Os Trabalhos e os Dias uma humanidade decadente e corrupta, bastante parecida com a dos nossos dias. Logo nos versos 25-26, podemos ler o seguinte: “O oleiro irrita-se com o oleiro, o carpinteiro com o carpinteiro; o mendigo inveja o mendigo, o poeta o poeta.”
Segundo o próprio Hesíodo, no início da Teogonia, a responsabilidade de ter passado de rapsodo a poeta deve-se a o facto de um dia ter encontrado as musas no monte Hélicon, que lhe insuflaram o talento de compor os seus próprios poemas. Contrariamente a Homero, e pela primeira vez na escrita do Ocidente, estamos diante de um poeta que fala em seu próprio nome, da sua própria história. Não só neste início da Teogonia, mas principalmente em Os Trabalhos e os Dias. Com a morte do pai, ele e o seu irmão Perses herdam a sua fortuna, que é dividida em maior favor de Perses, com a ajuda de juízes corruptos. Mais tarde, e novamente através da corrupção, Perses tenta retirar a parte da fortuna de Hesíodo. E é com este caso pessoal que ele começa a sua grande obra, Os Trabalhos e os Dias. Pela primeira vez, a poesia não se centra somente na repetição, recriação ou criação de mitos, mas passa também a ser veículo de vivências pessoais. E, além das vivências pessoais, que percorrem todo o poema, tem também a descrição da vida do campo. Há uma enorme ambiguidade no modo como o trabalho é cantado neste poema. Se por um lado há uma glorificação do trabalho, pela sua ligação estreita ao conceito de justiça, por outro lado não podemos falar de uma ética do mesmo. Pois o trabalho é uma necessidade, e tudo o que é necessário não tem valor. Valor e necessidade são antagónicos. Valor é algo a que atribuímos importância independentemente da sua necessidade. A amizade é um valor, pois podemos viver sem amizade; a honestidade é um valor, pois podemos viver sem ela; mas comer não é um valor, é uma necessidade; assim como o trabalho, para aqueles que não têm fortuna ou não são políticos de carreira. Por outro lado, o termo erga, trabalho, não tem hoje o mesmo sentido que tinha nesta altura na Grécia. Erga quer dizer trabalho agrícola, e não um outro tipo de trabalho. Mas há, e isto, sim, é de extrema importância, uma ligação estreita e profunda entre os conceitos de trabalho e de justiça, em Os Trabalhos e os Dias. Hesíodo escreve: “frequentemente uma cidade inteira sofre por causa dos crimes de um só homem, qualquer que seja: e em respostas às maldades deste, Zeus manda fome e peste, ‘e o povo perece’.” A honestidade está intrinsecamente ligada ao trabalho.
Há também neste poema aquilo que poderíamos considerar a primeira consciência de composição poética, no sentido formal. No final do mito de Prometeu, e de modo a conectar o mito de As Cinco Idades do Mundo, sem que se perca o sentido de exortação a Perses, ele tem de usar um artifício. Escreve Hesíodo, no final do mito de Prometeu: “Se quiseres, contar-te-ei um segunda história até ao fim. Acolhe-a, porém, no teu coração.” Temos, sem quaisquer dúvidas, um poeta diferente de Homero, um poeta que se coloca a si mesmo no centro da narrativa, para além de permanecer também na tradição dos deuses helénicos. Como escreve Alessandro Rolim de Moura, na introdução à edição da sua tradução de Os Trabalhos e os Dias: “Poderíamos talvez ver nessa diferença entre a postura homérica e essa guinada “autobiográfica” de Hesíodo o sinal de uma evolução, da passagem de um estágio em que o poeta se vê como um discreto intermediário das Musas para uma poética em que o artista está mais consciente de seus meios e apresenta uma individualidade mais delimitada.” (p. 19) Se é a vida do poeta que é relatada ou se trata de uma invenção, quando no poema o autor se refere a si próprio, é o que menos importa. E, como uma vez mais escreve Rolim de Moura “a pergunta sobre o estatuto verídico ou não desse “eu” hesiódico não é propriamente a questão mais interessante. Tem maior relevância a constatação de que o poeta se preocupa em apresentar uma individualidade assim definida e a investigação de como essa vida é imaginada e representada poeticamente.” (21)
Segundo Hesíodo, em Os Trabalhos e os Dias, foi dado a Prometeu e a seu irmão Epimeteu, que eram titãs e não homens, a tarefa de criar o homem e todos os outros animais. Epimeteu encarregou-se da obra e Prometeu encarregou-se de supervisioná-la. Epimeteu quer dizer “aquele que pensa depois”, assim como Prometeu “aquele que pensa antes”; isto é, Prometeu não pensa nas consequências dos seus actos e Epimeteu não pensa que algo de mal lhe possa acontecer. No poema de Hesíodo, Epimeteu distribui atributos por cada animal: coragem, força, rapidez, sagacidade… asas a um, garras a outro, uma carapaça protegendo um outro ainda. E, quando chegou a vez do homem, formou-o do barro. Mas como já tinha gasto todos os atributos disponíveis, com os outros animais, pediu ajuda a Prometeu. Este, que não tinha como ajudar o irmão, roubou o fogo aos deuses e deu-o aos homens. Como castigo, Zeus ordenou a Hefeto que acorrentasse Prometeu no cume do Monte Cáucaso, onde todos os dias uma ave lhe comia o fígado, que também todos os dias se regenerava. Este castigo deveria durar trinta mil anos. Para todos os outros homens, o castigo foi Pandora. Pandora (pan dôran) quer dizer “um presente de todos”; presente esse que se vai revelar envenenado. Prometeu tinha já avisado o seu irmão para não aceitar nunca presentes dos deuses, mas ele, estando sozinho e nunca desconfiando de mal algum, esqueceu a advertência do irmão e introduziu a mulher no mundo. Sim, porque Pandora é a primeira mulher na mitologia grega, criada por Hefesto e Atena, auxiliados pelos outros deuses, sob as ordens de Zeus. Cada um dos deuses deu-lhe uma qualidade. Recebeu de um a graça, de outro a beleza, de outros a persuasão, a inteligência, a paciência, a ternura, a habilidade na dança e nos trabalhos manuais. Hermes pôs ainda, no seu coração, a traição e a mentira. Estamos diante de uma equivalente da Eva bíblica. Mas enquanto a Eva é um presente bom ao homem (ainda que depois seja responsável pela queda da humanidade), Pandora é desde logo um mal que Zeus quis infligir na humanidade. Foi oferecida como presente a Epimeteu, que esquecendo as advertências de seu irmão Prometeu, a aceitou e desposou. Epimeteu tinha em seu poder uma caixa que os deuses lhe tinham dado, muito tempo antes, e que continha todos os males que existiam. Avisou a mulher que não a abrisse, mas Pandora não resistiu à curiosidade. Ao abrir a caixa, Pandora deixou que todos os males escapassem para o mundo, fazendo com que a humanidade passasse a ser afligida por eles. O mito de Prometeu explica a criação do homem, a aplicação da justiça divina e revela a relação com o trabalho.
Para além de se tratar de um mito da origem, de um génesis, é também um poema ético, que liga ao próprio tema do trabalho humano, e que não devemos aceitar presentes sem ter a certeza de os merecermos. A vida custa. Custa trabalho. Os deuses, e os outros, não nos dão nada, tudo tem de ser conquistado pelo trabalho. Cortar caminho, leva-nos seguramente a males maiores, como o exemplo da caixa de Pandora. Hesíodo é extremamente pessimista e isso é visível em vários versos, mas principalmente na própria concepção do poema Os Trabalhos e os Dias.
Na parte final do poema das “Cinco Idades”, também em Os Trabalhos e os Dias, a vida humana é pintada com cores negras, e é impressionante a actualidade dos seus versos, impressionante e aterrador, pois os versos mostra-nos claramente o quão pouco ou nada mudámos. Avançámos muito na tecnologia, mas quase nada no tocante ao que liga um humano ao outro ou a si próprio. O mito de “As Cinco Idades” divide-se em Idade do Ouro, Idade da Prata, Idade do Bronze, Idade dos Heróis e Semi-deuses, e Idade do Ferro (a Idade actual). Na primeira Idade os homens viviam à semelhança dos deuses, uma sequência constante de prazeres, pois desconheciam o cansaço, a doença e a dor. Depois de muitas anos de felicidade, a morte chegava como um suave adormecer. Esta idade foi totalmente destruída pelos erros do titã Cronos. Na segunda Idade, os homens eram todos fracos e tolos, incapazes de administrar as suas próprias vidas e incapazes de se ajudarem uns aos outros. Levavam anos para iniciar a vida adulta e não faziam distinção entre o bem e o mal. As suas vidas eram repletas de dor e de tristeza. Não se amavam uns aos outros e eram completamente indispostos para o trabalho. Roubavam-se e matavam-se uns aos outros. E, como não se submetiam aos deus, Zeus resolveu matá-los a todos. Seguiu-se então a Idade do Bronze, onde os homens eram altos e fortes, guerreiros destemidos, moldados em bronze, tal como as suas armas. Tudo era de bronze, nesta Idade. Não se cultivava a terra, viviam da caça e da colecta. Por fim, tornaram-se arrogantes e vaidosos e tentaram tomar o monte Olimpo, levando Zeus a matá-los a todos. A quarta Idade veio ao mundo com Hércules (Herácles, na nomenclatura grega), Teseu, Orfeu, Jasão, Aquiles, Agamémnon e todo o exército de heróis da mitologia grega. Os actos corajosos destes deu nome a esta idade, a Idade dos Heróis. Estes eram mais justos e mais nobres do que os das Idades anteriores. Recebiam frequentemente a visita dos deuses do Olimpo, partilhando com eles as alegrias e as tristezas. Muitos dos heróis eram filhos de algum deus, que os protegia. Grandes cidades floresceram nesta Idade: Atenas, Micenas, Esparta, Creta, Corinto e Maratona. Mas a Idade dos Heróis foi destruída. Muitos morreram as Sete Portas de Tebas, combatendo pelas riquezas do rei Édipo, e os outros morreram mais tarde, na luta que se travou durante dez anos nos muros de Tróia. Esta foi a geração ou a Idade representativa dos valores do homem helénico. Como final da idade dos Heróis, chega a Idade do Ferro. Zeus gerou da terra a abundante geração de ferro, que ainda hoje habita a terra. A vida é difícil para estes homens, pois têm de trabalhar para sobreviver, enfrentando diariamente problemas e provas. Os deuses também não lhes demonstra amor, já que se retiraram de vez para o Olimpo. Distribuíram algumas alegrias, mas o mal sempre excede o bem e obscurece a vida dos homens. Nesta Idade, os homens vivem com a lembrança da Idade que os precedeu, pois esta deixou uma rica herança cultural a ser seguida e, por isso mesmo, as suas histórias foram contadas pelos poetas.
Depois desta passagem pelos mitos do poema, regressemos ao trabalho, que é o que nos cabe, a todos nós, nesta Idade. Se honestidade está intrinsecamente ligada ao trabalho, como vimos anteriormente, o trabalho está intimamente ligado ao conceito de justiça. Este poema é também, como o próprio título parece anunciar, e não engana, um elogio do trabalho. Veja-se os versos de 308 a 311: “É com o trabalho que os homens se tornam ricos em rebanhos e em bens; / e ao trabalhar tornas-te preferido dos imortais e dos mortais, pois todos desprezam o ócio. / O trabalho não é nenhuma desonra, desonra é não trabalhar.” Podemos ver como estamos longe de Homero. Quase parecem palavras saídas da Bíblia. Mas o que está aqui em causa, em Hesíodo e na necessidade do trabalho, é a própria condição humana. O humano, nesta nossa quinta idade, foi condenado ao trabalho, e tem de assumir a sua pena de modo a cumprir os desígnios dos deuses. Estes deram-nos o trabalho como modo de nunca esquecermos a diferença enorme que nos separa. É preciso não esquecer que o trabalho era considerado uma actividade menor na cultura helénica arcaica, visto a maioria das tarefas serem asseguradas pelos escravos. Contrariamente a Homero, que glorifica o combate, ou a Píndaro, que glorifica a vitória, Hesíodo glorifica o trabalho. E isto, só por si, é uma revolução tremenda na Hélade. Aquilo que é comum a Homero e Hesíodo, é a não separação da ética da estética. Um poema tem uma carga ética. Um poema tem de ser formativo, exemplar. Mas os protagonistas de Os Trabalhos e os Dias são homens que precisam do trabalho diário para viver. Eles vivem da terra e dependem do esforço dos próprios braços para que a terra produza. Não podem contar com a ajuda de muitos escravos ou serviçais E este retrato contrasta profundamente com o que vemos nos poemas homéricos. Lá o foco principal da atenção são nobres guerreiros cuja relação com a dureza do trabalho agrícola está muito mediada. Certamente as comparações épicas trazem por vezes cenas de trabalho no campo, mas isso parece ocorrer numa realidade paralela à da Guerra de Tróia e das aventuras de Ulisses. Hesíodo expressa a mundividência de uma classe social diferente daquela cantada em Homero. Mas não se veja aqui uma espécie de luta de classes avant la lettre, pois nada mais errado pensar isso. Se por um lado, Hesíodo glorifica o trabalho e a vida do campo, por outro não desdenha da nobreza dos heróis, bem pelo contrário. Hesíodo apenas acrescenta um outro lado do mundo, um outro lado da vida, que estava afastado dos poemas homéricos e que, segundo ele, descreve melhor esta nossa era, a dele e a nossa. Nos versos 366-67, podemos inclusivamente ler algo que tem a ver muito com o nosso Portugal de hoje: aconselhar as pessoas a ter apenas um filho. No fundo, poderíamos dizer que com Hesíodo já não há heróis. Não há heróis antigos, os heróis são as pessoas que esgravatam na terra à procura de dias, de dias de vida. Desde o dealbar da poesia, que se sabe que não é o tema que faz a grande poesia, mas o talento com que se expressa esse tema. O que realmente está em causa na grande poesia, é que não há forma de distinguir o real do ficcional. A poesia é, na sua génese, mito, isto é, uma narrativa sobre as possibilidades do humano; e não uma narrativa sobre os factos humanos. É precisamente isso que Aristóteles, na sua Póetica, nos diz, quando escreve: “A história escreve acerca do que acontece, a poesia acerca do que poderia acontecer.” O poeta sente o tempo que é como se não houvesse outro, fazendo dele um para sempre, que é o que caracteriza a grande poesia. E não há para sempre estritamente real. O para sempre da poesia tem de ter um pé no mito, um pé bem fincado no que poderia ser.
Há que salientar a importância do conceito de justiça, para Hesíodo. No poema, quase no final, ele deixa claro que é através da justiça e não da força, que o humano pode prosperar em sociedade. A coragem é a coragem de ser justo e não a de vergar um outro. Não estou a dizer que não haja justiça em Homero, mas seguramente não desta forma explícita e valorativa que aparece em Hesíodo. Esta noção de justiça, como a grande diferença que nos separa dos animais, será o tom que irá reger grande parte do pensamento grego. E, por isso mesmo, a sabedoria também tem uma importância enorme em Hesíodo, aquilo que poderíamos chamar de trabalho intelectual. No início da parte seguinte de Os Trabalhos e os Dias, onde aparece uma ética do trabalho, ele escreve: “Também é nobre aquele que é convencido por quem diz boas coisas; / mas quem não recebe no seu espírito esses ensinamentos, / quer seja por si mesmo, quer seja ao ouvir o outro, esse homem é um inútil.” (295-97) O resto do poema desenvolve-se em tom de máximas para a família, o agricultor, o navegador, as relações sócias e a religião, intercalando sempre os conselhos pragmáticos com os práticos, o saber fazer com saber; por fim, faz uma espécie de fenomenologia dos dias, onde atribui a importância e a diferença de cada um dia do mês. Há um dia para cada coisa e ligado a uma razão específica; parte destas razões são mitos, parte são fruto da observação, do empirismo.
Fiquemos com este verso, quase no final do poema de Os trabalhos e os Dias: O dia, por vezes é mãe, por vezes madrasta.

16 Ago 2016

O futuro não tem temporada

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]á em Homero, na Ilíada, encontramos o aviso acerca da possibilidade de se perder a vida, e pôr outras a perder, por causa das paixões que nos assolam e às quais não resistimos. Foi assim com a guerra de Tróia, como o foi ao longo de tantas e tantas existências ao longo dos séculos, mais ou menos relevantes para a humanidade, ecoando ou perdendo-se no silêncio de uma vida, como recentemente – tendo a história da poesia como medida – no exemplar De Profundis, de Oscar Wilde. Entregar-se à paixão que se abate sobre si mesmo, ao invés de lhe resistir, de lhe dar luta, pode levar-nos à responsabilidade da guerra de Tróia ou à da perda da nossa própria vida, ou parte dela. E é precisamente nesta tradição, que podemos situar a poesia de Pedro Gonzaga, poeta nascido em 1975, em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, cidade onde ainda vive. Pedro Gonzaga tem dois livros de poesia editados, ambos pela ArdoTempo, Última Temporada (2011) e Falso Começo (2013). Iremos percorrer a poesia dele, aqui, através do seu primeiro livro, Última Temporada. Se lermos com alguma atenção o título deste livro de poesia de Pedro Gonzaga, entendemos de imediato do que se trata: de um livro que faz apresentações de modalidades em torno da expressão “última temporada” e do que isto possa significar numa alma humana. Por conseguinte, não iremos fazer outra coisa senão falar do título do mesmo, nas suas diversas modalidades de apresentação. A expressão “a última temporada”, assim sem referente determinativo, como no título do livro, é uma expressão com dois sentidos quase opostos, mas que aqui se amalgamam de modo a nos mostrar de um modo privilegiado a vida e a linguagem que expressa essa vida. Passemos então a ver o que está em causa no título do livro.
Quando alguém diz “a última temporada” de uma peça de teatro ou a “última temporada” de uma série televisiva, está a dizer que, depois de várias outras temporadas anteriores, depois de vários meses ou vários anos, esta aqui e agora onde estamos é a última. Quer isso dizer que depois desta já não vai haver mais nenhuma. Esta é a última, a derradeira temporada, acabou-se. A derradeira temporada pode muito bem ser a vida de cada um de nós, aquela vida que somos aqui e agora, a que nos carrega ou que com ela carregamos.
Assim, A Última Temporada, de Pedro Gonzaga, numa primeira instância remete-nos logo para a vida de cada um de nós, aqui e agora. Mas como “última temporada”, neste sentido, tem necessariamente de ter um antes do agora, isto é, é preciso existir uma ou mais temporadas anteriores para que se afirme “última temporada”, a última temporada aqui não pode ser a vida, pois as pessoas não tem vidas anteriores. capaultimatemporadaweb
Por conseguinte, esta última temporada é a última temporada da vida, aquela a que se atribui, ou alguém atribuiu, ser a parte final da vida de alguém. A vida humana é assim dividida em temporadas pelo título do livro. Aqui não podemos deixar de lembrar o poeta francês Rimbaud e o seu livro Une Saison en Enfer, Uma Temporada No Inferno. Mas aqui trata-se da última parte da vida humana, e não de um interlúdio amoroso mal sucedido. E o escândalo deste título assume aqui a sua extensão máxima, se tivermos em atenção a idade do poeta, trinta e poucos anos, e tratar-se do seu primeiro livro de poesia. Sabemos isso pelos poemas “herança”, onde se pode ler à página 15: “(…) aos 35 anos / com meus dentes perfeitos (…)”; e pelo poema “para além dos bancos de areia prateada”, onde, na página 36, se lê de um modo algo jocoso, nos últimos dois versos: “señor, não se chega impunemente / ao trigésimo quinto inverno”. Por conseguinte, não podemos deixar passar isto em claro, tomar a coisa por irrelevante. Ora, se um poeta regista em um poema a sua idade, 35 anos, e ao mesmo tempo põe o título ao livro de A Última Temporada, é porque, evidentemente, quer que fique claro que a partir de agora é o início do fim. Para trás ficou tudo o resto, todas as outras temporadas, e se boas ou más não importam aqui e agora. Não se pense também precipitadamente que se trata de um livro de despedida, pois o mesmo poeta remata o poema “descobertas”, à página 52, da seguinte maneira: “(…) serei um homem-bomba / até aos noventa anos”. O poeta entende que a última temporada da vida humana é a mais longa ou, pelo menos, pode vir a ser muito mais longa. Longa, aqui, quer dizer infindável. E, ao mesmo tempo, um infinito de perdas. Leia-se em “imperativo”, página 43:
 
se puderes fechar
os olhos para o real
fecha agora
não te preocupes,
antes, aproveita
hão-de acordar-te
os credores
a dor no ciático
o fingimento da mulher
que nunca se entrega
 
Por outro lado, e também como pudemos ler no excerto anterior, não se trata de uma poética do queixume ou de qualquer denúncia situacional ou de adversidade. Não, aqui a denúncia é a da condição humana (e não a de um humano em particular). E a responsabilidade do que se faz com essa condição humana, desconhecendo-a ou dissecando-a, é nossa. No fundo, aquilo que neste primeiro sentido se pode apurar para o título, A Última Temporada, é o seguinte: a partir de agora é que é a sério, a partir de agora é que se vai ver o que a vida é, pois até aqui foi a brincar. A partir de agora a vida é a doer, como se usa dizer, nos embates desportivos. Um segundo sentido que a expressão e o título A Última Temporada parece ter, escrita assim sem qualquer referente definido, é a de “a última temporada” de verão. Por outro lado, a última temporada de verão pode ter ainda dois sentidos distintos, a saber, que essa última, a outra anterior a esta em que estamos, é que foi boa, ou que a última, a anterior foi muito má e esperamos que esta agora seja muito melhor. Julgo que podemos excluir de imediato a segunda subdivisão, pois a análise que se fez em relação à primeira modalidade do sentido da expressão de “última temporada” assim mesmo o obriga. Parece ter ficado claro anteriormente que a “última temporada” a que o poeta se refere não é melhor do que as anteriores. Como ele mesmo termina o penúltimo poema deste livro “versos de agora, versos de antes”:
 
versos de agora,
versos de antes
vocês sabem que fomos
o que duas criaturas humanas juntas
não poderão nunca superar
 
Dito de outro modo: fomos o insuperável. Fomos! E fica, já quase no fim do livro este eco interminável em nossos corações: fomos, fomos, fomos, fomos, fomos… Comecemos então pela análise do sentido desta segunda modalidade do entendimento que se faz da expressão que dá título ao livro e que, como iremos ver, ao invés de ser contraditória em relação à primeira será antes complementar. Comecemos por pensar que essa outra temporada, a anterior, cheia de sol e de alegria, não é esta aqui e agora, cheia de chuva e de tristeza. E bem podemos dizer isso, pois leia-se os seguintes versos do poema “estrada”, à página 19:
 
mais uma vez a armadilha
mais uma vez o desejo
nenhuma certeza subsiste
nunca fica mais fácil
nada se aprende
da estrada percorrida
 
Para além de que nunca ficar mais fácil, reparemos ainda numa questão técnica, como se fosse suplementar, como se a poesia não fosse toda ela a vida exposta com técnica e alguma ternura: Pedro Gonzaga divide os seus poemas em pontuados e não pontuados. Há nos primeiros uma sensação de náusea a que o leitor mais atento não escapa, como se cada vírgula fosse uma curva na estrada, nos levando a contragosto montanha acima. Confira-se isto, por exemplo, no magistral poema inaugural do livro. O poema fala do amor, fala da possibilidade do amor nos acontecer, mas ele é escrito com tantas curvas, com tantas vírgulas, que quando ele termina com os seguintes versos
 
quando alguém me diz
Ah, o amor é fácil
mal contenho a vontade
de cuspir-lhe na cara
 
é um alívio a viagem terminar. Mais: se ele não cuspisse, nós mesmos provavelmente vomitávamos, depois de tanta curva, de tanta e tanta vírgula num poema. Por conseguinte, depois de tanta dificuldade ainda ir escutar alguém dizer que o amor é fácil, ninguém merece, como diz a voz de Deus, a voz popular.
É, sem dúvida, um dos exemplos da superioridade poética de Pedro Gonzaga, da mestria com que usa a técnica única com que podia ditar este poema. Mas, no outro poema que falávamos atrás, cujo título se chama precisamente “estrada”, ele retira todas as vírgulas, retira todas as curvas, fazendo deste poema uma estrada a direito, como se a vida fosse isso mesmo, sempre a direito, como se a vida fosse ir de Porto Alegre até à Argentina. Sempre a direito. Ou seja, nossa vida vai daqui ali num instante, ela vai daqui, onde estamos agora, a um imenso e eterno nada, com o desejo pelo meio. O nada aqui, obviamente não é a morte, é não se aprender nada. Iremos sempre daqui para a Argentina para nada, para não se aprender nada. Está bem de ver, então, que esta “última temporada” a que me refiro agora, é a temporada passada, é o passado, é aquilo que já foi um dia, que aconteceu e já não é e já não volta.
A primeira modalidade de expressão de “a última temporada” tem os dois pés bem vincados no presente, ao passo que a segunda modalidade de expressão de “a última temporada”, tem a cabeça lá trás, no passado. A primeira é aqui e agora sem referências ao passado, a não ser enquanto lógica linguístico-temporal: se esta é a última é porque teve outra ou outras antes desta. Estas duas “últimas temporadas”, uma que nos mostra a consciência do fim eminente e, a outra, que nos mostra uma anterioridade melhor do que o presente, o aqui e agora, é aquilo de que trata, e muito bem, este livro. Estamos literalmente entre a espada e a parede. A parede é o passado atrás de nós que não nos deixa fugir para o tempo bom, recuar até ele, e a espada é aquilo que aqui e agora nos ameaça, o presente prenhe de um futuro laminoso (e me perdoem o neologismo). De outro modo, e me fazendo de sujeito do livro, passo a dizer: eu entendi que é aqui e agora, aqui onde estou, a última temporada, esta é a minha vida e já nada mais me resta até ao fim senão ir sofrendo cada vez mais, declinando lentamente e estar exposto a todas e mais algumas intempéries usando a técnica e a ternura; por outro lado, ficamos também conscientes de que a temporada passada, a da adolescência, a da juventude é que foi boa e não esta aqui e agora, que se mostra como sendo a última, a última dança. Podemos ler à página 30, nos versos finais do poema “procela”, o seguinte:
 
finis terrae
a praia prometida
o barulho das folhas
ilusório verão
Ilusório verão
 
E é como acaba o poema: ilusório verão. Precisa de explicações, ilusório verão? E “procela”, que diz tempestade no mar, precisa de explicações? Mar esse que não é só a vida, é também aqui a vida de um poeta. Aliás, no poema podemos ler estes belos versos, preciosos, testemunhais:
 
há um mar em Camões
há um mar em Pessoa
 
Mas querem ver o gume mais afiado da espada que aponta o peito do poeta, esse presente prenhe de futuro de que falámos atrás? Escutemos então, e vejamos como a vida humana só pode ser pior a cada dia que passa, pelo extenso verso com que termina “o baile”:
 
eu sou o medo do dia em que haverei de abraçar o corpo frio de meu pai

Há, contudo, vários outros medos que o poeta afirma ser, antes desse medo último, derradeiro. Medo que é também o meu. Medo que causa um arrepio pela existência acima! Mas passemos então agora, e sem demoras, ao centro do vulcão deste livro, aos poema “a primeira rebentação”, e aos seus oito versos finais, e ao poema “em algum lugar”. Comecemos pelo primeiro destes poemas:
 
éramos invisíveis
e o que não entendo,
minha adorada,
enquanto seguem a quebrar
as ondas sonoras
na praia deserta do presente
é quem foram aquelas criaturas
que ressurgiram das águas
 
Sim, quem foram aqueles que fomos? Quem éramos nós, que já não estamos aqui? Como é possível haver outros agora ali fazendo de nós? Onde é que fomos parar, que não nos reconhecemos senão naqueles que não somos? Mas o abismo inultrapassável destas modalidades de últimas temporadas, assume a sua expressão mais pungente no poema dedicado a Sérgio Fischer, denominado “em algum lugar”, e que nos leva a um hospital de uma qualquer parte do mundo e à temporada derradeira de alguém (presumivelmente o amigo a quem o poema é dedicado). Leia-se uma vez mais os oito versos finais de um poema, desta feita os versos finais de “em algum lugar”:
 
lá dentro atrás da porta verde
está o amigo que um dia amamos,
lá está o patrimônio
de tantos almoços
e cafés na juventude
lá estará o tempo
de um telefone
mudo à cabeceira
 
Repare-se na fantástica transformação do espaço em tempo através do advérbio de lugar “lá”. Começa por dizer o poeta, com uma locução adverbial de lugar, “lá dentro”; lá dentro onde a morte já se instalou e o amigo passa a ser “antes”, através do verso “está o amigo que um dia amámos”. “Um dia”, aqui, é o mesmo que antes, que é o mesmo que nada, pois aquilo que começa por parecer nos colocar num lugar, “lá”, passa a “um dia” e “um dia” passa a nada, através dos penúltimo e último verso “lá estará o tempo” e “um telefone mudo à cabeceira”. O tempo, visto como um telefone mudo à cabeceira, é o perto mais longe do mundo. E ficámos a saber que um telefone que não toca é o tempo mudo. O tempo mudo é o inferno. Assim, e de modo magistral, a vida humana passa de espaço a tempo, de um lugar preciso para um tempo passado e de um tempo passado a nada, esse substantivo aterrador por excelência. Não podemos deixar de focar a precisão impressionante da forma verbal onde o tempo vai aparecer e transformar o dia em nada: “estará”! No futuro está o nada. No futuro está aquilo que já não somos, onde poeta e amigo são uma e a mesma coisa: lá dentro, um dia, estará o tempo; todos nós vendo a morte de alguém e sendo vistos pelas lágrimas de outrem. O futuro não tem temporada.
 

9 Ago 2016

Tens um minuto que me possas emprestar? | Parte II

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m “Há sangue arterial no abate diário do sol” – poema em três páginas, contrariamente ao que se possa apressadamente pensar – Anjos leva um artifício, que usa com alguma frequência, ao limite. A penúltima estrofe termina um pouco abaixo do meio da página e a última encontra-se na página seguinte, com os seus míseros e paradoxais três versos: “É possível que / acorde sempre / no mesmo dia”. O uso do espaço gráfico, levado ao exagero neste poema – quase todos os outros espaços gráficos são entre versos – e que pode confundir-nos quanto a saber se a última estrofe pertence ou não ao poema, encontra aqui a sua explicação no facto da necessidade deste três últimos versos aparecerem isolados, sós, como se, ainda que parte do poema, pudessem também ser lidos independentes, porque, o próprio sentido dos versos assim o pede, com os dois últimos gritando, “acorde sempre / no mesmo dia”. Sempre no mesmo dia é uma página, e magra como um dia. E com isto termina o autor a primeira parte do livro.
Se a primeira parte chamava-se “Dos Lírios”, a segunda chama-se “Construção”. Este capítulo é constituído por quatro poemas e, uma vez mais, deparamo-nos com uma inversão: o capítulo começa em IV e termina em I. No primeiro poema, que se chama “IV corpo em queda”, há evidentes influências futuristas, influências do célebre engenheiro, não só nas repetições dos versos “Rapart! Rapart! Rapart!”, primeira e quarta estrofes, mas ainda na intencional glosa na antepenúltima e última estrofes: “come come filho” e “come filho / que o teu mal é fome”. Um claro final anti-metafísico, restituindo assim o acto de comer a seu dono. Mas, e como já vimos, o poeta não é um poeta que rejeite a metafísica, bem pelo contrário, qual a razão que o terá levado aqui a fazer a inversão de Álvaro de Campos na sua celebre passagem da “Tabacaria”? Embora não possa afirmá-lo com certeza, julgo que a intenção de Anjos prende-se com o próprio poema – e porque não dizê-lo, com a sua própria poesia – estar eivado de surrealismo, que ele contraria no final, e com isso fazer com que o verso mais chão seja aquele que causa mais efeito. Depois, ter com isso aproveitado ainda para inverter, ou reconduzir o sentido do verbo “comer”, de Campos, ao seu sentido original, é genial. Veja-se, então, apenas na antepenúltima e última estrofe do poema, alguns versos surreais, de modo a entender-se o final chão e o seu efeito: “o comum mortal não volta ao início, a não ser que o cimento / ainda não tenha secado”, “bancadas de pulmões frescos como peixes / mortos à superfície”. Estamos, por conseguinte, diante de um poema importante, por múltiplas razões.
No poema seguinte, “III porta líquida”, convém realçar o feliz jogo nos primeiros dois ou três versos, consoante seja feita a leitura – artifício literário que será levado a cabo em todos estes poemas da segunda parte do livro, ainda que seja usada apenas uma vez no primeiro poema. Mas veja-se como eles aparecem no segundo poema desta segunda parte:
“em nome do fogo respirar não chegava era preciso destruir
o ar todo não chegava”

Podemos ler dos seguintes modos: 1) “em nome do fogo respirar o ar todo / não chegava era preciso / não chegava destruir”; 2) “em nome do fogo respirar não chegava era preciso destruir / o ar todo não chegava”. Os espaços gráfico são colocados evidentemente para que ambas as leituras, ou ainda outras sejam feitas, se possível, simultaneamente. Como se os versos deixassem a sua característica Melódica e ganhassem uma nova, harmónica. No último poema desta parte, “I fome”, há um retorno à inversão do sentido dos versos de Campos, desta vez em letras muito menores, com que acaba o poema, como se se tratasse de uma técnica musical, fade out, onde não falta também a diminuição do comprimento dos versos do antepenúltimo para o penúltimo e deste para o último “tem fome”.
A terceira parte do livro chama-se “III Outros Factos Paliativos”. Comece-se por destacar o poema “à vizinha”, onde uma vez mais encontramos um final que contrapõe o resto do poema. O uso da anáfora ao longo de todo o poema, na repetição do começo dos versos com um “é possível que” – só os versos 13 (é possível mudar), 18 (é possível deixar) e 20, e último (é possível trazer-me), alteram ligeiramente esta estrutura –, e aventando hipóteses existenciais levadas ao absurdo ou, pelo menos, a contrapelo do ponto de vista usual, sublinham, mais do que uma abertura de possibilidades ou propostas de libertação do nosso ponto de vista, a prisão e que nos encontramos. Estamos presos à gramática, ao uso da linguagem e ao modo como nos relacionamos desde sempre com as coisas. Por mais que seja possível enunciar “cair do rés-do-chão ao céu é um instante”, isto não nos fará sentido, isto não constituirá mundo, como no exemplo do verso que passo a citar: “é possível que as torradeiras te beijem o pescoço ontem de manhã”. Se por um lado é verdade que nada disto faz sentido e que não constituirá mundo, por outro, e é aqui, parece-me, a guerra de Anjos, não ficamos indiferentes quando partimos o verso ao meio e nos deparamos com “te beijem o pescoço ontem de manhã”. Esta enunciação explode, mesmo que não faça feridos. A explosão deste meio verso é a consciência da gramática e, simultaneamente, a consciência da nossa percepção da realidade através das regras gramaticais de uma língua. Por fim, e regressando à anáfora alucinada, o poema termina com um chão “é possível trazer-me um café?”. Esta possibilidade em forma de pedido, pedido retórico – já que presume-se ser um enunciado pronunciado numa pastelaria, num café ou num restaurante, e a pessoa poderia apenas levantar a mão e dizer “café”, que alguém o traria –, com que acaba o poema, deixa-nos no lugar certo das nossas possibilidades. Por outro lado, este último verso representa também a diferença entre o poeta e o advogado – para manter a dicotomia de um poema anterior, embora evidentemente se possa substituir advogado por padeiro, mecânico, gestor de empresas –, a diferença entre o tempo da criação e o tempo do dia a dia.
Em “Interruptor” ficamos frente a uma inversão do sentido do ser. O poema tem apenas três versos e diz assim: “Em caso de perda / basta ligar as baratas / para acender paredes”. O último verso é sem dúvida o mais lírico, aquele que nos faz ver; o primeiro verso baralha um pouco as coisas, depois de lermos os outros versos, devido à não determinação da perda; e o segundo verso, verso do meio, é o verso que nos agride mais, o verso que liga simultaneamente o poema e nos enoja, devido à comum aversão que se tem às baratas. Sem baratas não havia poema. Imaginemos que trocamos baratas por formigas, ou por lagartixas! O poema deixa de ligar. O poema só liga porque as baratas estão lá e elas acendem as paredes. É um poema extraordinário de precisão e de inversão do sentido do ser, na medida em que tudo nos aparece ao contrário do usual: paredes que se acendem, baratas que nós ligamos e, em caso de perda. Mas que perda? Evidentemente não estamos cegos para o facto de que o título do poema é fundamental para a compreensão do mesmo. Formam um todo de quatro versos, título e poema.
Em “Manual de instruções para escrever da direita para esquerda (bússola do aprendiz)” logo pelo título, fica uma vez mais sublinhado aquilo que aqui temos visto, isto é, uma obsessão pela inversão do ponto de vista usual. O poema cresce dividido em cinco partes, com os versos emprosados e escritos ao modo de sentenças ou conselhos de utilização.

Em “Havia uma cidade na ponte” – novamente o hipérbato –, poema de cinco versos divididos por duas estrofes, pode ler-se na última estrofe os seguintes versos: “Pergunto simplesmente / para que servem as pessoas?” Trata-se de uma inversão total e completa da pergunta pela utilidade da poesia. É isto que explode de imediato na leitura do poema. Contrapondo à estafada pergunta “para que serve a poesia?”, José Anjos replica com “para que servem as pessoas?”. E, assim, o sentido da poesia acontece, nesta dupla interrogação – uma explícita e outra implícita – de um para que serve? No fundo, acabamos por ficar a pairar num “para que é que serve tudo o que há?” Tal como já se tinha visto em um poema anterior, aquando da inversão do sentido de uns versos de Álvaro de Campos, agora trata-se da inversão de um ponto de vista usual, jornalístico, por assim dizer, e que nos remete para uma pergunta acerca da utilidade ou não daquilo que há.
Em “21:47”, poema de cinco versos, sendo dois deles compostos por apenas uma palavra e um deles por duas, com muitas peculiaridades. Começamos logo pelo título. Sendo o poema tão pequeno e o título uma hora específica, hora e minutos, parece que o autor está a apontar-nos o horário do poema. Não está apenas a mostrar que, nesse minuto 47 das 21 horas, o poema foi escrito; está também a mostrar o horário do poema: este poema é às 21h47m, hora de Lisboa (presume-se). Mas leia-se agora o poema: “Foi este poema / que se tornou / silêncio / vazio / sem silêncio”
O “foi” refere-se a um futuro: o futuro da leitura do poema. “Foi este poema”, um dia, àquela hora, naquele horário. E este poema que foi, tornou-se silêncio e vazio à força de já não ser nada aquando da leitura, está morto, calado, despojado de vida, ele foi, já não é. Mas o último verso, “sem silêncio” mostra o leitor. O poema foi, aconteceu, no momento em que foi escrito e é agora uma nada, um vazio, um silêncio a não ser que seja recuperado, ressuscitado por um leitor, e tornar-se-á então sem silêncio, como um morto de quem se fala. O poema é isto. Aconteceu, foi, torna-se nada até que aconteça um leitor.
Os três poemas finais – 3 versos, 4 versos, 3 versos – perfazem a parte IV e última do livro: “IV Da Vaidade (ainda 25 gramas de autofagia)”. Exponho aqui o último dos três versos: “A tua vida consiste em / apanhares o teu assassino / enquanto é o teu tempo” A primeira estranheza do poema é haver palavras em itálico nos segundo e terceiro versos: “teu assassino”, “teu tempo”. Esta estranheza leva-nos a pensar que o poeta pretende, uma vez mais, embora com artifício diferente, uma leitura harmónica do poema, ao invés de uma leitura melódica. Não podemos deixar de ler melodicamente o poema, evidentemente, mas ao mesmo tempo não podemos deixar de ficar presos no contraponto dos versos segundo e terceiro “teu assassino / teu tempo”, “teu assassino / teu tempo”, “teu assassino / teu tempo”. Mas no que a vida consiste, aquilo que ela é, resume-se a apanhares o teu assassino enquanto é o teu tempo. Estamos desde logo num labirinto lógico, num paradoxo. Paradoxo este que é a própria vida. A vida é o paradoxo que nos mata; somos o nosso próprio assassino, o nosso próprio tempo. E é nisto que a vida consiste. E porque a vida consiste nisto, este livro não poderia ser diferente dela e não poderia deixar de ser todo ele um enorme paradoxo.

2 Ago 2016

Tens um minuto que me possas emprestar?

Parte 1

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Manual de Instruções Para Desaparecer” (Abysmo, 2015) é o primeiro livro do poeta José Anjos. Dividido em partes, quatro, a primeira delas chama-se “I – Dos Lírios”. E o seu primeiro poema é “Instruções de tempo, modo e lugar para encontrar um lírio antes do jantar” O título do poema é ele mesmo um poema. Não ver aqui uma gramática é impossível, pois “tempo, modo e lugar” não deixam que isso aconteça. Este tempo, modo e lugar acaba por tomar, privilegiadamente, conta da atenção. Como se nos avisasse: antes de mais isto aqui é feito com uma língua, e esta língua tem uma gramática, e uma gramática tem regras, instruções, que inclusivamente nos podem levar a “encontrar um lírio antes do jantar”. Sem gramática, nem um nada encontramos.
Para a economia deste texto será necessário pôr aqui o primeiro poema do livro, por inteiro:
Hora:
oito (menos 5) = vinte e três cabelos brancos antes do rugido circular

Instruções:
com um traço de giz na lapela, barba e olhos estrelados apenas visíveis muito
perto do lado de fora

Sítio:
duas asas à esquerda do portão em assobio leve

Código:
com uma mão no bolso, a outra transversal à linha mais doce da terra

Outras recomendações:
Ter atenção à rotação cardiovascular entre cada hemisfério e esperar

O poema surge-nos em forma de dicas, de notas que se escrevem para não esquecermos algo. Começando pelo fim, aquilo que não devemos esquecer é precisamente a última palavra do poema, que é colocada um pouco afastada das outras, no último verso, de modo a fazer salientar ainda mais aquilo que é preciso realmente não esquecer: esperar. Na realidade aquilo que é importante, e nos surge em forma de “outras recomendações” – para além das mais importantes, depreende-se – é ter atenção ao mundo e esperar. Mas para além da programática evidente do poema, como todo o livro, há versos absolutos de belo: “duas asas à esquerda do portão em assobio leve”, “com uma mão no bolso, outra transversal à linha mais doce da terra” e os maravilhosos “com um traço de giz na lapela, barba e olhos estrelados apenas visíveis muito / perto do lado de fora”. Passado o teste iniciático, caímos num poema cujo título mostra-nos o fascínio, uma vez mais, que a gramática exerce sobre José Anjos. “A Este Inverno”, chama-se o poema. Há uma estranheza neste título por duas razões: 1) Inverno passa a ser sentido como alguém; 2) sentimos também o título como um brinde que se faz, com copos na mão. Depois, é do Inverno que se fala. E o poema, tal como sentimos geralmente o Inverno no hemisfério norte, é triste: “Há uma tristeza que morre pelos cantos / deixa-se levar pelo vento / como uma criança num dia de escola / sem dar muita importância a si própria // mas um quadro não diz tudo” E nem o último verso, afundando-se em dúvida, salva o poema da tristeza em que o Inverno nos deixa ou parece nos deixar. Mas o último verso não tem somente a eficácia da dúvida, introduz também um “quadro”, polissémico, que nos faz ver o poema como uma pintura, ao mesmo tempo que nos remete para a infância e nos faz andar para trás no poema, como se nos dissesse, ou quisesse que víssemos, que o mais importante de tudo é “(…) uma criança na escola / sem dar muita importância a si própria”. A chave para ultrapassar tudo, até um Inverno, é isso que este verso nos faz ver repetidamente, devido ao toque mágico daquele substantivo “quadro” no último verso do poema. Nada é deixado ao acaso nesta poesia, nestes poemas. Para além da magistral e desconcertante lírica, no primeiro poema, entende-se também agora o mecanismo profundo que sustem a máquina. Melhor: entendemos que há um mecanismo profundo que sustém esta máquina. Veja-se o caso do primeiro terceto da segunda estrofe de “Às vezes morde”: “É sempre tramado o rato [Mickey] / do passado, ainda agora é hoje / e amanhã já está fechado”. Para além da eufonia evidente entre o “passado” do início do segundo verso e o “fechado” no final do terceiro, atente-se no jogo retórico dos segundo e terceiro versos, que acabam por iluminar metafisicamente o poema: “do passado, ainda agora é hoje / e amanhã já está fechado”. Eivados de enálage, figura retórica que distorce a gramática (“ainda agora é hoje”, “e amanhã já está fechado”), os versos obrigam-nos a ver não só a gramática – por comparação, pela estranheza que o uso gramatical causa – mas também a relação que usualmente temos com o tempo, com as categorias temporais, subdivididas em passado, presente e futuro. Mas voltemos um verso atrás, de modo a termos mais balanço para o que se pretende mostrar: “É sempre tramado o rato [Mickey] / do passado”. Este “é sempre” arrasta o passado. O passado estende-se mesmo para além do futuro, naquele “e amanhã já está fechado”. O passado, que é sempre tramado, abalroa o presente (“ainda agora é hoje”) e boicota completamente o futuro, no “e amanhã já está fechado”. Perante a força do passado, todo o futuro se fecha e o todo o presente é sempre um ainda, faz-se sentir como sempre ainda. “Às vezes morde” é um poema belo, onde o que ficou para trás, aqui “personificado” pelo rato Mickey da infância, está sempre presente. Mas não é a infância que está presente no poema, nem tão pouco o rato Mickey, mas a queda deste, a prisão deste, a perda irreversível da infância. Assim, o passado não é a infância, mas a perda da mesma. Aquilo que é para sempre – é sempre tramado o rato Mickey – é um passado que nos roubam, que ficará para sempre connosco na categoria de objecto perdido, sempre em frente a nós, sempre a ser lembrado. Mais: o passado apresenta-se neste poema como a perda da ingenuidade, como a descoberta de que não há pai natal, só rato Mickey. Repare-se na quarta estrofe do poema: “Mas digo-te a verdade: / mesmo derrotado / eu sabia (com o cérebro semi-encalhado) / que tu és um delírio doce / e que o sacana do Mickey / um culpado” E, ainda que os três versos finais do poema (escritos entre parêntesis) pareçam apontar alguma possibilidade de redenção, isto é, alguma possibilidade de nos libertarmos do passado, de conseguirmos fazer o tempo correr como nos ensinaram que ele corre, de trás para a frente sem parar, o uso dos parêntesis, por um lado, e o “apesar de velhas” não nos dá conforto. Mas veja-se então os oito últimos versos: “Só para te ver sorrir e depois / no fim / poder perder / e forjar asas esdrúxulas / no dorso tenro de Morfeu / (e que jeito deram, apesar de velhas / para voar atrás do rato Mickey e / apanhá-lo pelas orelhas)” Duas situações importantes de salientar: 1) “no fim / poder perder”; 2) “e forjar asas esdrúxulas / no dorso tenro de Morfeu”. Há uma possibilidade de fuga, ou neste caso, pois o poema é todo ele uma inversão do ponto de vista como o passado é visto por nós, há uma possibilidade, ainda que remota, de apanhar o passado: forjar asas esdrúxulas no dorso tenro de Morfeu. Morfeu aparece-nos aqui ao lado de Mickey, embora sem o poder deste, porque é aquele a quem vamos pedir ajuda contra a prisão da infância, contra a omnipresença do passado. Mickey (poderia ser outro herói pop e de banda desenhada) representa o passado, assim como Morfeu o presente, pois para nós Mickey está antes de Morfeu. E este último, representando o presente e por isso de dorso tenro, é a nossa única possibilidade de podermos conseguir libertar-nos de um omnipresente passado, culpado de quase tudo. Há aqui, sem dúvida alguma vibração de Freud, mas também um apontamento ontológico fundamental, ao enunciar o passado como um mar que nos envolve para sempre e como Morfeu (que aqui representa não só o deus grego dos sonhos, mas também todos os novos heróis que vamos conquistando depois de exilados da infância) será sempre menos poderoso que o rato Mickey, embora seja no dorso tenro dele que temos de forjar esdrúxulas asas. É um poema brilhante, que nos mostra um tema muito comum – a infância perdida – de um modo absolutamente original e ontológico, que nos faz ver coisas que não tínhamos ainda visto, ou pelo menos não as tínhamos visto por este ângulo. Mas veja-se ainda, como já anunciado páginas atrás, aquando da inusitada dedicatória, a importância da atenção e do ver para José Anjos, com a terceira estrofe do poema: “Bem o quis ajudar, [ao rato Mickey] / mas nessa noite / eu já era advogado / era oficial bisonho / de um navio / naufragado no coral do engano” Estes versos são também um dos poucos onde é possível encontrar alguma referência biográfica do poeta – eu já era advogado. Claro fica aqui quem não pode ajudar o rato Mickey, isto é, a transformação do passado, de modo a libertarmo-nos do peso esmagador do mesmo, do para sempre do passado. Mas o que me traz a esta citação é, antes de mais, o adjectivo “bisonho”. Ora, se aceitarmos que o poeta usou o termo na etimologia enraizada no italiano (bisogno, necessidade), entendemos que ele como advogado tornara-se um oficial da arte de estar sempre em necessidade de algo, oficial de estar sempre a pedir alguma coisa, pois só por ele mesmo não lhe seria possível provê-las. No fundo, ele tornara-se um oficial de incapaz, oficial de não saber prover aquilo de que necessita. E esta incapacidade apresenta-se, uma vez mais, como uma inversão do ponto de vista usual, já que aquele a que nos habituamos a acusar de bisonho é o poeta e não o advogado. Mas o advogado não tem poder para transformar o passado, só o poeta, só aquele que forja asas esdrúxulas. A guerra aqui não é a do dia a dia, a do sucesso ou fracasso usuais, mas a de resgate do passado, do rato Mickey, preso algures entre a saída da infância e ser-se advogado. Resgatar o passado é ao mesmo tempo libertar-nos dele, é finalmente fazer com que os dias se tornem um enorme passado a crescer, e não um enorme passado onde o futuro está fechado e o presente é ainda hoje. Assim, bisonho, apresenta-se também como aquele que não vê, aquele que não presta atenção às coisas, isto é, aquele que não vê e que não presta atenção ao que realmente importa. “Ás vezes morde” é um poema iniciático e programático, um poema que nos mostra onde estamos e as possibilidades que temos.
No poema seguinte, Ícaro TV, encontramos logo no título o que já antes tínhamos encontrado no poema anterior, a convivência entre os mitos clássicos e a cultura pop. Mas, e como vimos, anteriormente, esta convivência não é pacífica nem deixa de ser; não é sequer uma convivência posta em comparação, é uma convivência que tão somente acontece, como pessoas completamente diferentes num mesmo bar. Como se continuasse o poema anterior, de alguma forma, Anjos volta a invocar as asas, na sua negativa – já sem asas – como algo que perdeu no tempo, na vida, deixando o seu contentamento um pobre de duas pernas. Resta-nos o contentamento de que há saúde e estamos inteiros. A vida resume-se, e depois do passado e enquanto não se o transforma, a um “Dormir viver acordar / e morrer”. Não há capacidade, forças, para acordar ao lado de alguém a meio da noite ou de manhã e ainda ter asas. Estamos reduzidos a duas pernas, que não é mau, e com isso não se inventa amor, ilusão, não se inventa um sentido para a vida para além do andar dali p’ra fora, que é visto e sentido não só como um bem, mas também como um contentamento. O contentamento que nos resta – à falta de asas para voar uma relação com outro – é essa resignação de duas pernas.
Em “Seremos apenas dois” a liguagem faz uma festa. O poema é denso, grande – duas páginas e meia, um dos maiores – mas de um lirismo arrepiante. Em alguns momentos lembramos Pessanha, como nestes dois versos: “Mãos que afagam o vazio / num ritmo ágil e delicado” ou nesta estrofe de quatro versos: “E onde antes / nasceram asas crescem agora / pelo fundo das brasas / cinco vértebras de dor”. Ou ainda na beleza, densidade e música dos últimos versos da penúltima estrofe: “Como podem viver estes imortais, assim, / ao contrário da terra à porta do mundo? / É simples: vivem um dia de cada lado”.
Em “Asas de Cesariny”, poema pequeno, dividido em duas partes (I e II), o autor além de uma evidente homenagem ao poeta referido no título, pretende também sublinhar a sua familiaridade ao surrealismo. Sem dúvida, identificamos essa herança em alguns versos de José Anjos, mas é no que tem de herança de Camilo Pessanha, e no modo como também distorce essa herança, que encontramos o seu melhor tom, o seu tom efectivamente superior, único.
(Continua na próxima semana)

26 Jul 2016

Patrícia Baltazar

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]atrícia Baltazar é uma poeta contemporânea, que vive no Barreiro, parte sul de Lisboa, do mesmo modo que Kadıköy fica na parte asiática da cidade de Istambul, ou a Lesbos de Safo ficava na parte asiática da Hélade. A poeta tem quatro livros publicados: Ré Menor (Língua Morta, 2010), Fumar Mata (Madrugadas, 2013), Catapulta (Do Lado Esquerdo) e A-Rh sanguis languae (Palavras Por Dentro, 2016). Aqui e agora, percorreremos apenas os caminhos de Fumar Mata. Chega-se a este livro de Patrícia Baltazar, como a uma casa arruinada, cansada de tempo e de miséria, sem ninguém, e passamos a sentir-nos como a ruína de um recordação que nunca foi, a ruína de uma vida por ser, porque “Não tenho de ser ninguém para perder a memória.” (XXXIII, p. 55) Aqui não nos encontramos face a face com a etiqueta de Aristóteles acerca da poesia, o que poderia ser, aqui ficamos face a face com o que nunca irá ser, a vida que poderíamos ter sido se houvesse vida. O livro começa com o verso “Precisamos de pássaros” (I, p. 7) e termina com um verso final, poema inteiro e sem número romano ou árabe “Que se foda.” Entre o que se precisa e o irremediável, o livro divide-se entre as “lâminas de algodão” (V, p. 15) da lírica e a realidade implacável de “45 quilos de ossos para uma tempestade” (XXII, p. 37). E muitos dos versos sucedem-se interrompidos, deixando eles também adivinhar a vida que poderia ter sido “De nada que me” (VI, p. 16) e “Fecha os olhos como se” (VII, p. 18) e “Não houvesse água que nos salvasse (…) Não houvesse absolutamente nada” (XXIV, p. 41). Somos incompletos como um verso inacabado. Mas pior, porque ninguém nos quis assim. Não é apenas para os outros que somos um discurso continuamente interrompido, também para nós mesmo o somos. A memória faz o que pode para nos conferir unidade, mas somos o que os outros fazem de nós, somos também o que não fazemos de nós, no fundo, “des-somos” mais do que somos. “Tenho várias salivas. Vários géneros. Acumulei rostos e corpos. E o teu, o teu, o teu, o teu e ainda o teu, continuam guardados, para sempre, em todos os meus lugares. Eu sou tudo o que vocês fizeram de mim.” (III, 10-1) Mas o humano que des-somos vê-se ainda melhor neste verso: “Ser uma cicatriz.” (X, 23)

Não se pense, contudo, que estamos diante de um livro que arrasta uma voz de queixume ou uma voz de vingança. Nada mais contrário a isto. Estamos antes diante de uma voz que ama as profundezas do mistério. E amar é já partilhar. Assim são vários os versos que iluminam esta ética “Se tenho 50 cêntimos num bolso e esse é o único dinheiro que me resta, então são 25 para ti e 25 para mim, que estás aqui à minha frente. Não importa quem és.” (XXXIII, 56) “Perdoo toda a gente que pensa que me magoou ou magoou mesmo.” (XXXIII, 57) E essa compreensão maior que é a dádiva que nos prende à vida, expressa num verso tão luminoso como uma estrela: “Uma dádiva, ter a vida presa por um filho.” (XXX, 52) É preciso ter-se perdido muito, quase tudo, e a nada e a nem ninguém culpar, para se chegar a este qualidade de verso. Estamos diante de um livro de amor. Não do amor inaugural de Safo, mas do amor ao próximo, um livro de amor à vida, aos confins da vida, um livro que vai do mistério de partilhar um prato de sopa, de fazer uma sopa que chegue para todos, essa verdadeira multiplicação dos alimentos – “Se tenho sopa feita, fiz com certeza para mais de 2 pessoas. Faço sempre isto. Tenho jantar para todos.” (XXXIII, 56) ou ainda este roçar de asas pela santidade, com que termina o poema XXII, “Quero que os meus irmãos me doam.” (XXII, 38) – até à transformação de tudo o que nos faz sofrer, “Engole tudo quanto se sofre.” (XXIX, 50)

No fundo, Fumar Mata trata-se de um livro que opera uma inversão completa do ponto de vista usual da poesia, que pode ser melhor entendida neste verso “Faltou-me o desânimo.” (XXXIII, 57) Assim, a vida em ruínas que percorre este livro é mais rica e mais sólida do que as vidas que percorrem a maioria de outros livros de poemas. Pois pode-se viver muito mais, do que nunca vivemos, do que se vive da própria vida, “Eu sou eles todos e as viagens que nunca fiz. Sou tudo isso.” (III, 10) Já Fernando Pessoa, por exemplo, nos tinha ensinado isso, mas aqui em Patrícia Baltazar a ultrapassagem da vida é na própria vida. Não temos vida, mas temos sopa, que chega para todos. Não temos vida, mas temos 50 cêntimos num dos bolsos, que se divide connosco, o leitor. Há nestes poemas da poeta uma espécie de alquimia ou de toque de Midas, uma transformação da dor em ouro em cada verso. Mesmo quando a poeta parece cair num banal queixume – “A minha infância está guardada na caixa das / fotografias antigas // É uma história para contar pouco. Uma coisa rápida. Uma bicicleta verde, a praia, as brincadeiras solitárias e caladas. // (…) Nunca fui uma rapariga. // Estes pés nunca andam juntos.” (XX, 34-5) – e, no poema imediatamente seguinte, lê-se este verso pujante, de apreço pela vida, de apreço pelo tempo de vida, por nada ser mais importante do que estar vivo e dar-se conta disso: “Mãe: não me dói nada.” Ainda que termine o poema pedindo novamente a atenção da mãe “Mãe? Estás? Mãe? Ouves-me, mãe? / Devolve-me, / A manta da tua ternura ou não sobrevivo.” (XXI, 36) A grande poesia faz com que a vida de quem a escreve seja soterrada nas vidas universal e de cada um que lê. E esta, de Patrícia Baltazar, não é diferente. Quem é a pessoa que escreve, não importa nada para este livro, para estes poemas. Eles são hoje património de estar vivo. Património daquele estar vivo entre a sobrevivência e a existência. Porque tudo poderia ser pior do que é, se não estivéssemos vivos, se não nos faltasse o desânimo. De que modo? A isso responde-nos Patrícia Baltazar, no final do seu poema XXIV: “Não houvesse água que nos salvasse. / Não houvesse vinte dedos para a realidade dos / corpos. // Não houvesse absolutamente nada.” (XXIV, 43) Mas há. “Eu e os meus poemas vamos fumar para longe. // Haverá uma árvore.” (XIII, 27) Entende-se que o livro nasce do centro de uma profunda dor. São vários os versos que iluminam essa dor. Mas esse centro, essa dor é apenas de onde se vem. Não é nem onde se fica nem para onde se vai. O final do poema XXII é o melhor exemplo desse entendimento da dor, como se ela existisse para nos rirmos dela: “Quero um grande relâmpago que me ilumine as / ancas. Que as estenda para o outro mundo. Que / as alargue até me sentir um cadeirão para Zeus se sentar.” (XXII, 37) Encontramos uma profunda união entre ética e estética, ao longo dos poemas de Patrícia Baltazar. E isto é, além de profundamente antigo, original, como se escrito em grego arcaico, ao tempo de Safo, e também uma viragem na poética actual.

12 Jul 2016