Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasRicardo Ben-Oliel (CONTISTA QUE VIVE HÁ QUARENTA ANOS EM ISRAEL) E O SEU LIVRO O QUARTO TRANCADO ONDE NEM A MORTE ENTRAVA (Segunda parte) [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]orque narrar não é apenas uma necessidade; narrar é fazer viver o vivido, fazer-nos viver de novo. Quem não narra não ressuscita. E quanto da narração não passa de vida parada! Mas não há só relato, sedução neste conto, como já víramos antes, há também a vida vivida dos outros: “Entretanto, já se fora o casal de jovens que se sentara à nossa frente. Ela saracoteando-se e a sacudir contra o azul do céu a bela cabeleira dourada; ele a perscrutar insistentemente algo no aparelhozito com que guardara uns tantos retalhos do universo. // Pouco após, veio sentar-se próximo uma senhora idosa e anafada, que passeava uma criança de berço, bem resmungona. Uma oportuna chucha enfiada a tempo restabeleceu a serenidade ameaçada.” A narrativa e mais uma interrupção por novos companheiros de mesa, até que, já levantados, já afastados do Cristo-Rei, no final do conto, Leo conta porque se riu, no início. De um simples riso à sua explicação, percorremos algumas décadas, dois continentes e alguns modos do humano se comportar uns com os outros nos dias de hoje, porque o outro – e já o escritor Mário de Carvalho nos tinha alertado na apresentação do primeiro livro de Ricardo Ben-Oliol, para essa dimensão humana, a compreensão do outro, que no seu entender domina todo o primeiro livro, em diversas tonalidades – é uma cidade onde se vive. “Entretanto, veio sentar-se na esplanada, perto de nós, um casal de velhotes, a acompanhar dois caniches, mimados e ruidosos. A imporem a sua presença. A fazerem-nos ver que havia quem mais tivesse direito a fruir um belo poente de Agosto.” Em “Pe-ter, Pe-ter, On-de Es-tás-as” inicia-se, e até ao fim do livro, os contos vindos desse pais singular: Israel. Os contos de Israel fazem-nos cair num ambiente que nos é estranho. Os campos de concentração estão presentes ao dia a dia das pessoas. São os sobreviventes ou familiares deles que referem as suas experiências, do mesmo modo que nos nossos cafés escutamos as aventuras amorosas passadas, de alguém idoso, ou uma ou outra arruaça mais atrevida. Percebe-se, pelo livro, que o sofrimento é uma crosta que cobre o país. Assim como a constante preocupação, apesar da habituação, essa característica quase essencial do humano, como o autor escreve, referindo-se a Shlomi, à pagina 68: “cidade sempre em perigo e que se habituara a viver como tal”. Por outro lado, há em Israel mais uma guerra que nos escapa a nós, portugueses de quase mil anos em todo o território, a diferença entre as cidades históricas, como Jerusalém e as cidades novas, como Telavive. Leia-se: “Telavive é a cidade dos escritórios, das grandes companhias. É a cidade do futuro, ao menos é quanto parece. Tem o mar, as praias, o Bauhaus. Até aí, tudo certo. Mas falta-lhe… – Falta-lhe o quê, quererás dizer-me? – Espaço e história!” Mas, e ainda neste mesmo conto, ficamos frente a uma dos mais estranhos e misteriosos sentimentos humanos: a guerra particular. Mais do que a guerra, é a quebra da amizade, de uma amizade que até aí parecia tão sólida quanto a Tora e de repente se rasga como papel higiénico, porque é mesmo uma marca de papel higiénico que conduz a isso. Neste conto magistral, Alan e Noa, Hana e Luna – A história De Uma Morada, em que um jovem casal que se muda para uma cidade do deserto testemunha a transformação da amizade de duas mulheres, vizinhas no mesmo prédio, em uma guerra sem piedade. E porquê? Por um rolo de papel higiénico. Pela compra de uma marca em detrimento de outra por parte de Luna sem partilhar essa informação com Hana. Informações que até aí, onde comprar mais barato e quais os produtos mais baratos, eram sempre partilhados entre elas, até ao trágico dia em que Hana se dá conta de que Luna passara a comprar Xelax ao invés de Alex, como sempre ambas fizeram, sentido nisso uma violenta traição, uma invasão da terra prometida. Leia-se à página 95: “Mal abro a porta, dou com o Alex e o Xelax, os dois estendidos pela casa fora. Dobrados e redobrados. O Xelax ganhava, era francamente maior. E as duas de joelhos, a apalparem-nos, demoradamente, a ver qual dos dois o mais macio. E o Xelax, uma vez mais, a atestar a vantagem sobre o rival. Hana, assanhada, nunca a tinha visto assim. A insistir, sempre: «E não me dizias nada, Luna! Lô, lô, Luna, lô, lô, Luna! // Noa a reviver, a recriar, zombeteira, o dizer ressabiado de Hana: «Eu, que nunca deixei de te avisar onde comprar o tomate mais barato, Luna! E a alface, e a farinha, e o mel! Quantas vezes te disse que não fosses à makolet do Arik, que vende tudo mais caro do que o Dov. Queres um canalizador, uma sanita nova, aconselho-te a que chames o Shimon, e não o Shmulik. Precisas de consertar o boiler, que procures o Kobi. Tens um estore empanado, diz ao Fadi, que é árabe e não é careiro. O tal que me pintou a casa, e até ficou bem. Mesmo quando tiveste problemas de gengivas, Luna, lá foi a pobre da Hana buscar-te à farmácia o melhor gel, e o mais em conta. E tu descobres uma coisa destas, e fechas-te em copas! Não fora eu ir lá dentro, e ficaria, sem saber que, afinal, estava a esbanjar, sem necessidade alguma. Só me faltava esta de andar a desbaratar dinheiro em papel higiénico!»” Este início de guerra entre duas amigas, que diariamente se entre ajudavam, neste preciso contexto de uma pequena cidade de Israel, não pode deixar de nos fazer pensar de como não existir o conflito entre os irmãos judeus e muçulmanos. Irmãos, sim, pois, e como é vivido e sabido em Israel, há muito mais similaridades entre o judaísmo e o islamismo do que entre qualquer uma destas religiões e o cristianismo, em qualquer das suas variantes. E, como o próprio narrador escreve páginas adiante: “Afinal, que frágil que é a teia de amizade a unir as pessoas. Às tantas, uma palavra, a mais ou a menos, um gesto mal esboçado, um qualquer esquecimento, quem sabe se propositado, ou apenas negligente, é quanto basta para tudo quebrar. Mas terá de ser assim? Não deverão a memória, o sentimento, e neste caso, até o apoio, a assistência, prevalecer sobre qualquer um desses incidentes? Às vezes, até dá a ideia de que há quem esteja à coca de uma razão, para logo desencadear a guerra.” Se é verdade que este conto e a fragilidade das amizades nos conduzem, por forças da origem da narrativa, a pensar no conflito do Médio Oriente em particular e nos conflitos ao redor do planeta em geral, não é menos verdade que neste caso também nos faz pensar em nós portugueses, e na aparente facilidade com que cortamos relações uns com os outros, levando-nos a pensar que talvez haja um modo de ser mediterrânico ao qual todos nós pertencemos. Da guerra do papel higiénico à impossibilidade da paz em Israel vai um conto. E, nesse conto seguinte, é um ex-aluno do narrador, e também ex-militar e ex-assaltante, que nos diz isto: “Todavia, se para uns a morte é um rito, uma memória, um símbolo, para nós, incapazes ou impossibilitados de construir a paz, a morte tornou-se uma vivência, uma vivência diária, uma vivência arrastada a toda a hora. E o que é pior? Fala-lhe um ex-soldado, que em circunstâncias duras se viu forçado a abater outros, deixando-lhes os corpos torcidos, os crânios esfacelados. Caídos ao mero pressionar de uma falangeta. Será esse o caminho para se alcançar a tão propagada concórdia, esse repisado shalom, dito e redito a cada instante? Mas se essa não é a via, professor, então também lhe digo que outra não haverá. A tão ansiada paz é inatingível. Nenhuma das partes no conflito se revela pronta a contemporizar, a correr os riscos necessários para a celebrar. Nenhuma delas está apta a prescindir de exigências, de condições, que desde logo inviabilizam qualquer solução. Assim sendo, só nos resta a alternativa de continuarmos a nossa existência a braços com a morte.” No último conto do livro, Balada Para Yair, o menor dos contos do livro, somos atingidos violentamente pela redemoinho da primeira frase: “Sabia que vinhas hoje, pai.” E o tempo todo de uma criança sem o pai cai-nos em cima neste começo de conto: Sabia que vinha hoje, pai. Neste último conto a morte de uma criança, Yair, filho do narrador, irmã da menina que nos atira à cara a frase com que começa o conto, é ligada a todas as atrocidades humanas, a Auschwitz Birkenau, o maior terror da história humana, onde se chegou a exterminar – infelizmente é este o termo – dez mil judeus por dia, no auge da barbárie. Porque para um judeu, matar um homem é destruir o mundo. E veja-se como o autor liga estes acontecimentos aparentemente desconexos: “Uma mina, e o jipe que saltou. E com ele Yair, pai. Como é possível, ainda há dias, e na semana passada, e no último Verão, e quando há uns anos fomos os três a Varsóvia, a Auschwitz, depois a marcha a Birkenau…” Esta tristeza partilhada pelo pai e pela filha, acentua-se para nós com esta frase, em interrogação retórica, que surge como um muro entre os humanos: “Porque será que as pessoas tão bem se entendem, quando nada dizem?” E para terminar, deixo-vos com mais uma passagem do último conto do livro: “Que final de tarde, que pesadelo, eu a ouvir as sirenes e a saber-vos, os dois, sós. – Julgo que foi das poucas vezes em que vi Yair chorar. Mas sem tirar a máscara [de gás do rosto], para que eu não visse. Quando a guerra terminou, Yair e eu, de novo, a sentirmos a tua falta. Voltavas para casa sempre tão tarde! Faz hoje um ano mais, pai.“
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasJoão Simões: “Não faço coisas, faço ver coisas” [dropcap]É[/dropcap] interessante ver que tens exposto regularmente em Nova Iorque, tens textos sobre o teu trabalho escritos pelos críticos Julian Myers e Julia Robinson – além do texto que eu mesmo escrevi, “Da Matéria” – a tua primeira exposição foi no Museu de Arte Moderna de Paris, em 1996, há algum tempo expuseste no Museu Tinguely, em Basileia e recebeste bolsas e encomendas de Fundações importantes – como a Fundação Calouste Gulbenkian e a All Art Initiative Foundation, de Amesterdão, mas não tiveste qualquer eco por parte da critica em Portugal. Julgas que há alguma razão ou é apenas por mero acaso que as coisas tenham acontecido assim? Não julgo que seja por acaso! Vivi muitos anos fora de Portugal – em Milão, Paris, Barcelona e entre 2004 e 2014 principalmente em Nova Iorque – foram quase 20 anos fora de Portugal. O meu trabalho não é visto em Portugal por uma questão de tradição. Por outro lado, a minha formação académica em arquitectura obstaculiza de imediato que me vejam como “artista”, há um preconceito… Para não falar sequer do teu mestrado em teoria da arquitectura… Sim, isso ainda piora as coisas. Porque o ponto de vista dos artistas e da arte, principalmente na Europa, está muito ligada à tradição da palavra grega technê, ainda que isso não seja propriamente consciente. E o “artista” é aquele que faz coisas dentro de uma técnica que de algum modo aprendeu, quer seja na academia, quer seja com outros artistas; numa comunidade técnica onde fazem coisas. E tu não fazes coisas? Não! Eu não faço coisas, faço ver coisas. O meu trabalho (exceptuando o “queijo de mulher”) não constrói, não faz aparecer novas coisas, por assim dizer. Mas tenta antes fazer aparecer as coisas que já existem. Fazendo uso das tuas palavras [em “Da Matéria”], o que eu faço aparecer é a falta que sempre temos de ver as próprias coisas, porque vemos de menos. Podes dar um exemplo, por favor. Por exemplo, o trabalho que fiz no museu de arte moderna de Paris, que consistiu em introduzir bolas de naftalina no sistema de ar condicionado do museu. O que aconteceu foi que as pessoas que entravam sentiam um desconforto que nunca tinham consciencializado antes: o cheiro subtil da naftalina entrava em confronto com as obras de arte contemporânea expostas. Havia um conflito entre os sentidos e os juízos. De modo geral, esse conflito não aparece na arte. Porque ajustamos sempre uns aos outros, ou estamos sempre a ajustar uns aos outros, mas ali as pessoas não estavam a conseguir ajustar. Não estavam a conseguir ajustar-se a si mesmas… Exactamente! Porque, de repente, estavam a ser confrontadas com o que elas assumem como indiscutível: que a arte é universal e, depois de concretizada, invulnerável no que se pretende que seja o seu próprio espaço: o espaço próprio da obra. Mas neste caso as obras estavam a mostrar uma total vulnerabilidade ao ataque de meras bolas de naftalina. E, acima de tudo, as pessoas não estavam a gostar, pois não conseguiam ajustar os sentidos com os juízos e os pré-juízos que traziam, que trazem. Já o disse uma vez e vou repeti-lo aqui: na arte, o teu trabalho é um trabalho de carácter ensaístico, mais do que de carácter poético. Concordas? Sabes bem que não concordo com isso! Mas, por outro lado, percebo o que pode levar-te a dizê-lo: porque o meu trabalho privilegia o fazer pensar em detrimento do fazer sentir. Mas, e por essa mesma razão, podemos chamar com mais propriedade a O Livro do Desassossego, de Pessoa, um ensaio do que um poema? Não me parece. E, no entanto, como o filósofo António de C. Caeiro costuma dizer, esse livro de Pessoa é um livro onde a língua, ela mesma, pensa. É evidente que nas Letras isso não constitui problema, dizer que um poema nos faz pensar mais do que sentir, mas quando se diz isso de uma obra de arte já temos de arranjar uma nova prateleira para arrumá-la. Voltando ao teu trabalho, o trabalho que apareceu mencionado na Rihzome/New Museum, e bastante elogiosamente, é também absolutamente descritivo da tua obsessão por fazer ver o que não se vê. Quem ler esta entrevista, pode não ter lido o teu texto acerca do meu trabalho, por isso gostava de explicitar esse fazer ver o que não se vê. Pois mais do que tratar-se de fazer ver, é tornar existente o que ainda não existia. Não no sentido de construir um objecto (artístico ou não), mas no sentido de pôr no mundo, na consciência do mundo o que ainda não estava. Este trabalho a que te referes, mais do que ser um metáfora acerca da descoberta do que ainda não se viu, consistiu em fazer vir à existência o vazio, pelo menos a consciência do vazio. Porque há um imensidão de lugares na net que estão vazios, que não têm ninguém. E, aí sim, podes ver isto como uma metáfora da própria existência humana.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasRicardo Ben-Oliel (Contista que vive há 40 anos em Israel” Ricardo Ben-Oliel [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]icardo Ben-Oliel é aquilo a que podemos chamar de um autor tardio. Se não na escrita, pelo menos na publicação. Em 2013, e já com mais de sessenta anos, publica na Abysmo o seu primeiro livro, um conjunto de contos intitulado Silêncio. Com formação em direito e muitos anos de estudo de música e piano, aos vinte e oito anos de idade muda-se de vez para Israel onde passa a viver e a exercer o cargo de professor universitário de direito, até aos dias de hoje. A sua escrita está impregnada do lugar onde habita, contrariamente a muitos escritores emigrados ou exilados, que tantas vezes escrevem tão-somente acerca de onde vieram e não acerca de onde estão. Não se veja, contudo, nesta minha afirmação uma qualquer crítica velada, mas tão somente uma constatação, até porque não sabemos o que seja melhor para aquele que escreve e para o leitor, se uma escrita acerca da prisão de onde se fugiu ou uma escrita acerca da prisão a onde se chegou. Assim, Ricardo Ben-Oliel neste seu segundo livro – O Quarto Trancado Onde Nem A Morte Entrava – e apesar de ter dois contos, os primeiros, que são passados em Portugal, remete-nos para um livro tão não-Ocidental como o seu primeiro livro, Silêncio, onde se lia à página 26: “Muito gosto eu dessas largas avenidas que há pelas capitais europeias. Sobretudo numa manhã límpida e azul. // A vida parece tornar-se, aí, mais fácil e leve. Prometedora. Alegre. São as esplanadas, os arvoredos, as largas montras envidraçadas a oferecerem um quase-tudo. Há um luxo disseminado, uma conjugação de esforços a criar um cenário optimista, uma risonha mentira consensual.” Trata-se efectivamente de uma visão de alguém que vem de fora da Europa, da calma e segura Europa das últimas décadas, das décadas do pós-guerra. E tal como algumas funções da vida nos ficam coladas à pele, como escreve o autor logo na segunda página do primeiro conto deste livro – “Era ele o magistrado-mor. Ou melhor, fora-o durante o tempo de uma vida; e quando tal acontece, é sabido que a função fica colada à pele como a crosta de uma insarável ferida.” – também um país ou uma zona geográfica nos fica colada à pele, quando aí vivemos mais de quarenta anos, como é o caso de Ricardo Ben-Oliel em Israel, nesse singular país, nessa singular região do planeta Terra. Quem tem a experiência de viver anos fora da Europa, em continentes e em países onde a violência faz parte da paisagem, não pode deixar de se sentir em casa ao ler estes contos. Aqueles que vivem o seu quotidiano sem tiros, sem sangue na rua, ou a sua possibilidade a cada instante, podem chegar a estes contos com alguma desconfiança. Não pelas descrições de violência, que as não tem, mas, por um lado, pelo ambiente contínuo de preocupação que se faz sentir nestes relatos e, por outro, pela omnipresença de um passado recente de dor, de fim do mundo que une as pessoas retratadas. Estas contínuas preocupação e memória colectiva da vivência ou iminência do fim do mundo percorrem todos os contos deste livro. Mas veja-se este exemplo no último conto do livro, já nas suas últimas páginas, e a que voltaremos mais tarde: “Uma mina, e o jipe que saltou. E com ele Yair, pai. Como é possível, ainda há dias, e na semana passada, e no último Verão, e quando há uns anos fomos os três a Varsóvia, a Auschwitz, depois a marcha a Birkenau…” Posso afirmar mais: a iminência do fim do mundo percorre todos os contos deste escritor, que até agora tem apenas dois livros publicados, contando já com este que aqui nos traz. Assim como também a precisão e a beleza da linguagem, aqui acerca de um vilarejo no Alentejo: “O vilar era um desses à maneira de pueblo blanco, onde as calçadas angustas serpeiam, libidinosas, por entre o casario. Baixo e acotovelado. Quase até ao castelo. Este, recortado como um brinquedo, pleno de infantil altivez, vinha do tempo em que os reis eram todos Sanchos e Afonsos. Mas, quando olhado de perto, já o mesmo parecia acanhar-se do seu pano de muralhas remendado, das ameias por terra esquecidas.” Aqui, e apesar de em um vilarejo alentejano, o assunto é algo tão universal e intemporal quanto é o humano: “Estirado na sua enxerga, as mãos sob a nuca, deleitava-se o velho magistrado com a quietação em redor, enquanto para si repetia, com sentido júbilo, já nada ter a ver com o vulgar mundo em que se sua e labuta. Finalmente, dava corpo ao grande sonho da sua vida. Que era pará-la, sustê-la, a ela e à morte também. // Conseguira quanto almejara. O gozo da imobilidade. A paragem no tempo.” As fronteiras que limitam a escrita deste autor, e que podemos ler logo de início no primeiro conto, são estas: um olhar de além-Ocidente e inquietações bíblicas. O território que é limitado por estas fronteiras mostra-nos uma linguagem precisa e bela como raramente se encontra em nossa língua. Leia-se, por exemplo, e logo nas primeiras páginas do livro, para além do já aqui transcrito: “Em baixo, para sul, uma lasca de rio verde-lodo, por onde, assim se dizia, coleavam, incessantes, as cobras-d’água.” ou “Num repente, assustou-se. Eram estilhaços a embater na pequena ventã. Uma chusma deles. Incessantemente. Uns tantos caíam inertes à altura do parapeito; outros aí se quedavam revirados, de patas no ar, num último esforço. Saltões. Os gafanhotos. De novo a morte, disse para consigo. Passou a espiá-los. Com o escoar dos dias, a ressequirem mais e mais.” Ou ainda: “Ficou-se a ouvir o zunido do vento suão. Era um silvo que crescia e recuava, que ganhava fôlego, e que o perdia, que se esgueirava pelas ruelas do povoado, para logo trepar montes e espraiar-se pela planície longa. Mas que voltava, como o respiro de um fogoso gigante a vogar no espaço. Vento fugido. Vento cigano.” e ainda mais esta “Comprara-o no mercado quinzenal. De caule franzino, folhas parcas, raiz bebé. Um pé de limoeiro. Vieram plantá-lo ao fundo do quintal. Mas mal começaram a rasgar a terra, logo deram com objetos duros e estranhos. Envoltos em terra mais que ressequida. Resquícios soltos, uma mandíbula, ainda uma outra, uma tíbia, logo uns fanecos de vasilhame. Ficou uma tarecada dispersa pelos cantos, aos montículos.” Muitos são também os momentos em que a metafísica se levanta, como já vimos anteriormente, mas veja-se mais um exemplo em que a linguagem para além da beleza e da precisão, levanta os pés do chão. Veja-se, e ainda nas primeiras três páginas: “Havia muito que a morte o intrigava. Que o atormentava até. Sobretudo pelo mutismo que se lhe segue. Qual o enigma por detrás daquela insondável, provocante quietude, tão próxima e tão remota, qual a razão para logo tudo se silenciar? Era quanto o alto magistrado inquiria em momentos de maior cogitação, que os tinha. O “após” sempre fora para ele o grande mistério, sobretudo depois que um dia…” Tudo é uma verdadeira relíquia. E não só pela linguagem, mas também pelo mundo que se abre diante de nós daquilo que fomos, ainda não há tanto tempo atrás, pois desde o tempo em que o conto nos mete até agora, passou-se não mais do que uma mão de décadas. E veja-se esta maravilha, onde a metafísica se torna bela só para se rir de nós, humanos: “Seguiu-se a audiência, quem lá estava era a Laldinha, em tempos rica de curvas, quem diria ser a mesma quando ao peito já só trazia penduradas como que duas alforrecas dadas à costa, veja-se no que a natureza dá volvidas as idades (…)”. No segundo conto, Sorrindo ao Cristo-Rei ou Simplesmente Perversa, a precisão e beleza da linguagem não nos abandona. Quase de início deparamo-nos com este curto parágrafo: “Passeamos junto ao rio, que ondula molemente. Súbito, é um sol de Agosto que se liberta de umas nuvens vagabundas e que nos ataca, esbraseado, impiedoso.” E estamos no meio de um passeio com um homem e uma mulher, o narrador Leo Blaustein, e Dafna. Um passeio de domingo ao Cristo-Rei. E o logo de seguida “Temos duas esplanadas à escolha. Uma lá mais ao fundo, de onde vem um intolerável banzé electrónico (…)”, mostra-nos claramente já não tratar-se de um outro tempo, como no conto anterior, mas deste nosso tempo de barulho ensurdecedor. Este conto corta-nos a direito. O modo como o narrador nos mostra o humano nas suas actividades de lazer, hoje, e ao mesmo tempo ligando-as sempre a uma ontologia, e como tal de sempre, é magistral. Leia-se as seguintes passagens: “Decorridos uns momentos, há um casal de jovens que se aproxima, a quebrar o letargo envolvente. Sentam-se diante de nós. Ela, elegante nos seus jeans, coçados à moda, e de uma deslumbrante cabeleira fulva; ele, atrapalhado na vestimenta, cabelos na vertical, olhos protuberantes e mortiços à Homer Jay Simpson.” Saltando um parágrafo, o narrador massacra-nos com aquilo que tantas vezes acontece na vida e só quem está a viver esse acontecimento não vê: “Então é o jovem quem, depois de fotografar o cenário, desata a disparar a máquina sobre a companheira – um clique, e mais outro, outro ainda, depois um último, já de muito perto – enquanto ela volteia instantemente os já desgrenhados cabelos áureos. Depois, é-lhe encontrada a mão. Porém, não obstante os carinhos, era notório o cunho de efemeridade que emanava daquela ralação, esteticamente tão díspar.” O autor sempre a lembrar-nos que a vida só a sabe quem a não vive. Só aquele que a observa pode julgar e saber convenientemente, ou mais aproximado da verdade humana, aquilo que acontece. Nunca aquele que vive. Nunca se sabe o que se vive. Há ao longo de todo este conto uma espécie de “Mil e Uma Noites”, e aqui então a narrativa retrocede no tempo, não como entretenimento do sultão, mas como artifício de pôr o outro a escutar a sua história. O artificio é simples, o mesmo usado na sedução, fazer parecer que vai beijar, contar, mas adiar continuamente o beijo e derramar a história um pouco mais para diante, ao ponto de Dafna chegar a perguntar-lhe directamente: “Mas diz-me uma coisa, Leo: será que, de facto, tencionas responder à minha pergunta, ou apenas entreter-me com mais uma das tuas histórias?” Este beijo que Dafna tanto espera, a resposta à sua pergunta logo no início do conto – “Importas-te de me esclarecer o porquê desse teu sorriso?” – será tão mais adiada quanto a maestria do contador. Assim, e tal como Sherazade vai adiando a sua morte, ao contar histórias ao sultão, também Leo vai adiando a resposta na certeza de com isso ter toda a atenção de Dafna, que é também um modo de adiamento da morte. Porque todos precisamos de contar a nossa história àqueles de quem gostamos. Porque narrar não é apenas uma necessidade; narrar é fazer viver o vivido, fazer-nos viver de novo. Quem não narra não ressuscita.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradeniz | O Filho [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vista, do terraço do restaurante do Conrad Hotel, é uma das mais terríveis do planeta Terra. É o lugar onde o que o homem faz e o que a natureza é se encontram esplendorosamente, sem máculas e sem culpas. Fui apenas duas vezes a esse lugar: a primeira por amor de uma mulher; a segunda pela morte de um homem. Karadeniz morreu em sua casa junto à torre de Gálata, numa das muitas noites em que lá ficava, em que não me apetecia apanhar um táxi para a minha casa em Baltalimani, junto a Bebek, no Bósforo. Deve ter tido uma morte santa, sem sofrer. Foi para a morte como se tivesse ido apenas deitar para outro dia. Encontrei-o de manhã com o rosto mais pálido do que o costume, e já só consegui tocar-lhe o frio. O homem já não estava ali. Tinha o passado à minha frente, diante do rosto e das mãos e não sabia o que fazer. Fiquei ali parado, sem fazer nada, a saber a morte. A seguir ao funeral de Karadeniz, em Istambul, o seu filho, T., que conheci na cerimónia, pediu-me para jantar com ele. Precisava de falar comigo com urgência, antes de partir para Londres, ainda essa noite. T: Soube pelo porteiro que você passava muito tempo com o meu pai, posso saber porquê? PJM: Porque gostava dele e ele me ensinava muito. T: Ensinava-lhe o quê? PJM: Tudo! Só não me ensinou a matar. T: A mim, foi só o que ele me ensinou. PJM: Ensinou-o a matar!? T: Não propriamente, mas vi-o várias vezes a disparar com a espingarda contra os gatos da rua. PJM: Foi só para saber porque me encontrava com o seu pai, que quis encontrar-se comigo? T: Não, não foi só por isso! Queria saber como é que ele morreu, parece que não sofreu, pois não? PJM: Não, não sofreu. Morreu a dormir. T: Morreu como viveu! PJM: A dormir!? T: Não, sem sofrer. PJM: Julga que o seu pai não sofreu na vida, é isso que me está a dizer? T: Não me leve a mal, mas não quero falar sobre isto consigo, com quem nunca vi e provavelmente nunca mais vou ver. Não me leve a mal, mas não sou muito bom a falar de mim. PJM: Não tem de que se desculpar! Compreendo perfeitamente. Há mais alguma coisa que queira saber? T: Gostava de saber o que é que você faz na vida? PJM: Escrevo livros. T: Que tipo de livros é que escreve? PJM: Romances, poesia e teatro. T: Romances acerca de quê? PJM: Acerca da vida e da morte, acerca dos homens. T: E isso dá-lhe para viver? PJM: Às vezes, dá! Outras vezes, não. T: Então e quando não dá, o que é que você faz? PJM: Isto é alguma entrevista, que me está a fazer? T: Se quiser não me responda, não é obrigado a fazê-lo. Mas tenho curiosidade em saber que tipo de pessoa passou os últimos… PJM: Dois anos! T: Dois anos!? PJM: Sim! T: Pois, gostava de saber que tipo de pessoa passou os últimos dois anos a visitar o meu pai, a fazer-lhe companhia. PJM: A companhia era mútua. Quanto à sua pergunta anterior, quando os livros não dão para viver, peço dinheiro emprestado, até que volte a dar. T: O meu pai chegou a emprestar-lhe dinheiro? PJM: Não! Estou num momento em que não é preciso. T: O meu pai chegou a falar-lhe de mim, a dizer-lhe o que faço? PJM: Sim! T: E o que é que ele disse que eu fazia? PJM: Disse-me que você era um homem de negócios, que importava vegetais da Turquia para Inglaterra. T: Foi só isso que ele disse, não mencionou mais nada? PJM: Não, só me disse isso. Porquê, há mais alguma coisa que você faça que o seu pai não me tenha contado? T: Não, não há mais nada. Queria só ter a certeza de que o velho não tinha perdido o juízo, nestes últimos anos de vida. PJM: O seu pai esteve sempre muito lúcido até ao fim, pode ficar descansado. O seu pai era um homem muito bom. T: Muito bom!? Ele chegou a contar-lhe como era o inferno? PJM: Qual inferno? T: Qual inferno!? A casa! Crescer naquela casa com dois loucos à volta dos gatos: um aos tiros aos animais e o outro a salvá-los; e eu no meio, sem ser gato. E nem os matava, nem os salvava. Ele não contou isso, pois não? PJM: O seu pai contou-me dos gatos, sim. Também me parece que sempre soube do mal que tudo isso lhe fez. Até ao fim, nunca quis aceitar culpa de nada, mas julgo que ele sempre se sentiu culpado em relação a si. T: Que mais culpas é que ele poderia ter? PJM: Culpa em relação à sua mãe. T: Em relação à minha mãe, não teve culpa nenhuma. A minha mãe era louca. Não se pode fazer nada por um louco, muito menos ser responsável por ele. PJM: O seu pai amava muito a sua mãe. T: Essa é que é a sua culpa! Nunca lhe perdoei, ter-se sempre esquecido de mim, do que eu precisava, por causa dessa louca. PJM: Se pensa assim da sua mãe, porque foi com ela para Londres, porque não pediu para ficar com o seu pai? T: Precisamente para magoá-lo. E também, porque não queria ter mais nada que ver com ele. Queria esquecê-lo. Queria ser uma pessoa completamente diferente dele. Queria ser o homem que ele nunca foi. PJM: Não sente culpa, por isso? T: Na vingança não há culpa. Depois de um longo silêncio, T. pegou no seu telefone e deu instruções para o piloto do helicóptero que o esperava no heliporto do hotel. Nesse momento pensei que Karadeniz sempre estava certo acerca das actividades do filho, que não é só legumes que ele importa para Inglaterra. Despedimo-nos e eu fiquei ainda ali sentado à espera de ver o ferro a voar para o aeroporto, levando para sempre da minha vida a história desta estranha família. Uma família sem culpa, a vingar-se da vida.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasDestruir a morte à custa da vida Um pequeno apontamento acerca de Fernando Pessoa [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] heteronímia está longe de ser mero artifício literário. Ela é expressão de profunda convicção do que deve ser o humano, daquilo que deve ser a vida humana na sua excelência. A heteronímia é expressão de uma nova weltenschaung (mundivisão), de uma nova visão do ser humano. O que está em causa no processo heteronímico de Pessoa é a excelência humana, a possibilidade de alcançar a excelência humana, isto é, a possibilidade do ser humano ser melhor do que é, de ser melhor do que lhe é imediatamente dado. Excelência essa que não visa uma prática religiosa ou ética, mas estética. Mas há um Fernando Pessoa heterónimo, que se iguala ou mesmo perde em existência para os outros heterónimos, e há um outro anterior: o que rejeita a vida para poder escrever. Aquele que rejeita a vida para criar o complexo jogo existencial é anterior a toda a criação, como o Criador é anterior à obra criada ou como a existência de algo antes do Big Bang. Por conseguinte, o privilégio deste Pessoa-criador é mais do que o do registo civil, é o privilégio do criador em relação à sua obra. Privilégio esse que lhe confere, entre outros, o privilégio da consciência da obra e dos esforços necessários para realizá-la; neste caso, a abdicação de vida, como ele tantas vezes escreve. E é precisamente nesta consciência de realização da obra, da sua obra, que a heteronímia não tem uma raiz ontológica, e sim estética. Pois tudo é jogo, nada mais do que jogo. Tudo é lúdico. Existir é brincar às existências. A ontologia aparecerá nos vários heterónimos que ele projecta, nos vários heterónimos que ele é, mas não na totalidade da obra, não na concepção da obra. Por outro lado, não se pense que esta consciência da existência como uma impossibilidade de escapar do lúdico traz em si uma facilidade para a existência, que não traz em si mesma um terrível drama. Haverá dor maior do que ter consciência de não haver verdade, de não haver existência para além do jogo, do lúdico, e ver isso com uma claridade tão grande que se recusa a vida? Fernando Pessoa deixou sempre claro ao longo dos seus textos o primado da escrita sobre a vida. A vida não interessa a ninguém. A vida só pode interessar aos animais ou à parte animal que nos habita, a parte animal que somos, nunca ao espírito, à parte espiritual que somos. Tanto no Livro do Desassossego, § 149, quanto em Reflexões Pessoais (374-5) Pessoa refere uma frase do biologista Haeckel (entre o macaco e o homem normal há menos diferença do que entre o homem normal e um homem de génio) para dissertar acerca desta distinção que lhe parece evidente e fundamental, isto é, viver segundo a carne, a mundanidade ou segundo o espírito. O que está aqui em causa, neste projecto de Pessoa, é, literalmente, à imagem da metafísica ou ontologia cristã: ganhar a vida perdendo-a. Ganha-se a vida se fizermos dela uma coisa maior do que ela é, se lhe encontrarmos um sentido que valha a pena ser seguido, fazer da vida algo que valha a pena. Por outro lado, ganhar a vida perdendo-a, já é muito diferente. Ganhar a vida perdendo-a, é um ponto de vista do entendimento ontológico ou metafísico cristão. E, embora Fernando Pessoa não fosse cristão, não acreditasse em Cristo, o seu entendimento ontológico ou metafísico da vida aproxima-se do entendimento ontológico cristão. O que é que aproxima e afasta Fernando Pessoa, e seu projecto de existir, da ontologia cristã? Imediatamente devemos responder: o para além da vida. A saber, ganhar a vida, perdendo-a, em sentido cristão, implica estar certo de haver uma vida depois da morte, uma vida em Deus para além desta vida terrena. Para Fernando Pessoa, a vida terrena esgota-se e tudo se esgota. O para além da vida, em Pessoa, é na vida. Perder a vida é perder tudo o que se tem em troca de nada. Fernando Pessoa, embora também rejeite a vida terrena, não espera alcançar Deus. Pessoa não abdica da sua vida para Deus, nem sequer para si mesmo, mas para o seu jogo. E, neste sentido, bem podemos falar de um cristianismo pagão. Fernando Pessoa, embora não numa linguagem filosófica, compreendia a falência da metafísica, isto é, da ontologia tradicional metafísica. Fernando Pessoa compreendia que a metafísica não dava conta do mistério. No fundo, podemos agora dizê-lo, a metafísica deixava escapar o jogo. Era deste modo que Pessoa compreendia a metafísica. Veja-se algumas passagens: “A metafísica – caixa para conter o Infinito (…)”; “Negada a verdade, não temos com que entreter-nos senão a mentira. Com ela nos entretenhamos, dando-a porém como tal, que não como verdade; se uma hipótese metafísica nos ocorre, façamos com ela não a mentira de um sistema (onde possa ser verdade) mas a verdade de um poema ou de uma novela – verdade em saber que é mentira, e assim não mentir.” Chega mesmo a pôr em causa, através de uma inversão completa, a posição socrática do conhecimento: “Conhecer-se é errar (…). Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho.” Há uma total desconfiança por parte de Fernando Pessoa em relação à metafísica e à possibilidade do conhecimento dos fundamentos, daquilo que faz do humano o humano, daquilo que faz do mundo o mundo, daquilo que faz do universo o universo. Uma coisa ele sabe: ele desconhece-se. Do centro deste desconhecer-se, Fernando Pessoa irá traçar uma poderosa e profunda forma de pensar que será projectada na sua própria vida. Fernando Pessoa vive o que pensa. Não há propriamente uma redução da vida ao pensar, mas há uma formalização dessa relação. A vida é uma arca vazia, que foi feita para encher de coisas. O conceito central e fundante de todo o pensamento de Fernando Pessoa é o conceito de vida. Vida é aquilo que nos é dado, aquilo que partilhamos com tudo o que há, com tudo o que existe. Por conseguinte, também a pedra tem vida. Vida é estar no universo. Mas este estar é sempre dependente de uma consciência. A frase com que termina as suas Reflexões Pessoais é: “Vida é consciência.” Vida é existir para uma consciência. Ao tornar-se um dado da consciência a pedra torna-se vida, pertence à vida, assim como os sapatos que calço ou o meu vizinho do lado. Assim a vida não nos pertence. Só somos vida para um outro. A vida é nos dada, ao nascer, e depois continuamente dada pela consciência de um outro. “Assim é a vida, mas eu não concordo.” A partir daqui, a vida assume-se claramente como inimigo, adversário ou algo incómodo. A vida é aquilo que nos mata, aquilo que nos reduz, que nos impede de sermos nós próprios. “Nunca saímos do cárcere de viver, nem com a morte que é a vida individual das muitas de que a nossa unidade ficticiamente se forma.” A vida é uma servidão. Todo o projecto de Fernando Pessoa é uma guerra contra a vida, contra a servidão e a impossibilidade de, nela, sermos nós próprios. Como pode isso ser possível? Como pode Fernando Pessoa dizer estas frases: “Que tenho eu com a vida?” ou “Que coisa reles e baixa que é a vida!” Como pode ele escapar da vida? Como se pode escapar da vida? Para Pessoa, faz sentido dizer que ele não quer ganhar a vida, ele quer ganhar à vida. Ele quer aumentar-se, quer tornar-se maior do que é, quer tornar-se à sua medida. Tornar-se à medida do humano que se pode ser para além da menoridade da vida. Esta noção de aumentar-se aparece em Reflexões Pessoais (embora seja desenvolvida de múltiplas formas em Livro do Desassossego): “2. Aumentar é aumentar-se. // 3. Invadir a individualidade alheia é. Além de contrário ao princípio fundamental [1. Cada um de nós não tem de seu nem de real senão a própria individualidade.], contrário (por isso mesmo também) a nós mesmos, pois invadir é sair de si, e ficamos sempre onde ganhamos. (Por isso o criminoso é um débil, e o chefe um escravo. ) (O verdadeiro forte é um despertador, nos outros, da energia deles. O verdadeiro Mestre é um mestre de não o acompanharem.) // 4. Atrair os outros a si é, ainda assim, o sinal da individualidade.” Pessoa perde a vida, não para ganhar Deus ou a si mesmo, mas para ganhar os outros. Aumentar-se é aumentar o número de si mesmo, desdobrar-se em muitos, fazer de si mais do que é, alargar o espaço e o tempo do que é. Veja-se a nota do filósofo António C. Caeiro à sua tradução das Píticas de Píndaro: “Apenas a vitória consegue anular a solidão máxima da disputa. O campeão granjeia a fama e a glória. O triunfo altera quem o obtém. Permite o reconhecimento, um identificação e um ‘lugar’ para ser. O brilho esplendoroso da vitória amplia. Potencia a vida. Ao vencer-se é-se maior do que se era, é-se falado. Transcende-se o espaço que se ocupa e o tempo durante o qual se existe. Expande-se e propaga-se. Mas a derrota é uma desgraça. Uma calamidade. Quem perde não apenas é esquecido como também não quer ser lembrado. A derrota extirpa a simples hipótese de ainda ser possível. Deixa o perdedor entregue a si, desamparado. Sem ilusões. Não pode senão sobreviver-se. Infame.” Por conseguinte, não se pense apressadamente que este aumentar-se está na origem da heteronímia, pois seria errado pensar assim. A heteronímia é a expressão do si mesmo, da individualidade de Pessoa; o aumentar-se é o sinal da individualidade nos outros, isto é, o reflexo da sua própria individualidade no mundo. Posso expressar-me sem que haja sinal disso, mas o sinal da minha expressão é o reflexo que o mundo dá da minha individualidade. Fernando Pessoa dá a vida em troca do mundo. Escreve ele numa das páginas dos seus diários: “Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma – nem de salas, nem de cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo se não aos meus raciocínios e aos meus projectos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia. // Devo-me à humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus. // Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo.” A vitória é aumentar-se. Multiplicar-se pelo tempo futuro. Esta multiplicação é, simultaneamente, superar as condições que esmagam o humano. Se me entregar à vida e aos seus prazeres, jamais serei lembrado, jamais conseguirei um lugar para ser. “O prazer é para os cães (…)”, escreve Pessoa enquanto Barão de Teive. Que devemos então fazer? “Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem. // É certo que, em absoluto, esta vida é impossível. Mas não é impossível relativamente.” Há nesta redução das necessidades, de algum modo, um projecto de âmbito estóico. Não podemos esquecer que os estóicos e os santos sempre atraíram Fernando Pessoa. Sempre lhe atraíram as formas mais radicais do humano, de ser humano. Por outro lado, o seu livro, atribuído ao semi-heterónimo Barão de Teive, denomina-se a educação do estóico. Mas mais do que um projecto estóico, trata-se de um projecto de lucidez humana, um projecto de aproveitamento máximo dos recursos de uma possibilidade de excelência humana. Não no sentido do humanismo, mas no sentido do humano, no sentido do jogo. A redução das necessidades não tem como fundo a contenção do sofrimento e da alegria, mas a contenção do outro, isto é, a amplificação da possibilidade máxima de se estar a só consigo mesmo. Porque o outro nos escraviza. O humano ou é só, ou é um escravo. Escreve em O Livro do Desassossego: “Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo. Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. (…) Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite (…).” E que limite é este, que aqui se fala e que devemos alcançar, se não é um limite de estóico? A resposta é-nos dada no mesmo livro, em menos de vinte páginas adiante: “Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcançava, em viver onde não se está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo (…) durar depois de não existir.” Chegamos por fim ao centro do vulcão. Aquilo que verdadeiramente importa é destruir a morte. Derrotar a morte e a realidade do mundo, os dois opressores do humano. A morte, porque nos faz desaparecer para sempre; a realidade do mundo que nos limita, nos sufoca enquanto existimos. O que esta em causa, tal como vimos para Píndaro, é a vitória. A vitória aqui não é vencer na vida, mas uma vitória mais radical: vencer da vida. Esta vitória sobre a vida é simultaneamente a vitória sobre a morte e sobre a realidade do mundo. Para se ser mais vivo depois de morto do que quando se está vivo é fundamental e necessário vencer a vida em vida. Vencer a vida no seu próprio terreno. Há como que uma estética da abstenção, uma estética que abstém-se de tudo o que não seja a própria arte a ser feita. Não é a arte pela arte, é a vida pela arte. Viver é criar. Outras frases fortes: “Viver é não pensar.; e Viver é ser outro.” Viver é ser outro, porque aquilo que somos é seres que criam, seres criadores, e na vida deixamos de ser o que somos. A vida mata-nos mais do que a morte. Mais do que viver, é necessário criar. É preciso dar a vida pela arte.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradeniz: “Saber matar bem tem sempre futuro” PJM: Lá está você a dizer mal do seu filho, Karadeniz! K: É verdade, tens razão!… PJM: O Karadeniz também frequentou a prostituição de elite, porque critica o seu filho? K: É muito diferente, Paulo! Muito diferente. Eu ia algumas vezes a Zurique, mas já foi depois de ter ficado sem a mãe dele, sem quaisquer possibilidades de nos encontrarmos. Quando se ama muito alguém que não se esquece, só se pode ir às putas. Mas para o meu filho, as putas vêm antes do amor. Antes e depois, que ele não conhece outro modo de se relacionar com uma mulher. PJM: Sente culpa em relação ao seu filho? K: Não, não sinto culpa. Tenho pena que nunca nos tenhamos chegado a encontrar, mas não sinto culpa. O amor que sentia pela mãe dele, esse amor sempre desencontrado, não me deixava ver mais nada. PJM: O Karadeniz gostava mais da sua mulher do que do seu filho, não gostava? K: É verdade, Paulo! Não podia fazer nada. PJM: Julga que o seu filho sabia disso, que ele sabe disso? K: Não sei. Eu não sei quase nada do meu filho. O meu verdadeiro filho é as coisas que tenho naquela casa perto de Eminonu. PJM: Não gostava de estar mais com o seu filho, nesta fase da sua vida? K: Antes de morrer, queres tu dizer! Não sei se gosto do meu filho, Paulo! Tenho-lhe amor, como pai, quero que tudo lhe corra como ele quiser que corra, mas julgo que não gosto da pessoa que ele é. Julgo que ele também não gosta da pessoa que eu sou. Vivi sem hipocrisias e não quero morrer próximo dela. É melhor assim como está, cada um para seu lado. Se pudesse, antes de morrer, gostava era de ver uma vez mais a minha mulher. Ver o amor pela última vez. Mas isso não é possível. PJM: A sua vida parece uma canção de amor e morte, Karadeniz! K: Não, Paulo, a minha vida é, como já te tinha dito, uma história de amor. Mas não há histórias de amor sem mortes. Aliás, a morte só ganha sentido com o amor. Se não sentíssemos amor à vida, amor a alguém a morte não tinha poder nenhum; a morte não assustava ninguém. A morte é de quem a vê, de quem fica, de quem se sente afectado pelo que vê, afectado por quem acaba de perder. A morte só existe na vida. Não há morte depois da vida. Isto é uma coisa que se aprende na profissão que tive. Por isso é que a morte que fazia acontecer aos outros não era morte. Eu não a via acontecer, eu não perdia ninguém. Eu não era aquele que ficava, era aquele que continuava, que é muito diferente. Saberes da morte de um desconhecido não é saberes a morte, mas saberes da morte de alguém que amas é saber a morte. PJM: Antes e depois de cada um dos seus trabalhos, costumava pensar acerca da morte ou, pelo contrário, concentrava-se apenas na técnica e na perícia necessária à execução? K: Precisamente, Paulo, antes e depois de fazer acontecer a morte a alguém, a morte é apenas algo a realizar e todos os pensamentos vão nessa direcção: identificação dos problemas possíveis à realização do trabalho e encontrar as soluções para os mesmos; após a realização, faz-se o balanço de tudo. A morte nesses momentos é apenas um objectivo a alcançar, como para o atleta cortar a meta. Só mais tarde, passados uns dias, já no conforto de casa é que a morte se tornava pensamento, uma coisa geral, uma coisa de todos. Quando se está em campo, presos na dualidade de se ser atingido ou preso, ou fazer a morte, a morte não aparece. Ela pode acontecer, mas não aparece. PJM: Julga que também é isso que acontece na guerra, em combate? K: Não, Paulo! Aí a morte dos outros à tua volta pode fazer com que a morte fique à tua frente de um modo que não te deixa ver mais nada. Nesses casos, a morte não te deixa fazer nada. Absolutamente nada. A presença da morte torna-se tão evidente que anula a acção e a vontade. É a cobardia extrema. PJM: Mas essa evidência também pode empurrar o homem para a frente, para um acto absolutamente temerário, não pode? K: Sim, também pode! A evidência total da morte produz dois efeitos completamente contrários: a inacção e acção total. De qualquer modo, esta acção total é, acima de tudo, uma tentativa de fugir à morte. A morte é tão presente que o homem foge dela, indo na direcção daquele que pode fazer a sua morte acontecer. Repara que a expressão que se usa é a de “fuga para a frente”, de fuga para morte. Fugir da morte na direcção dela, de onde ela vem. No fundo, é um acto religioso, porque quem avança na direcção da morte, acredita que pode assustá-la ou fazê-la parar, só pelo facto de ir enfrentá-la completamente a descoberto. Acredita que vai ser recompensado. PJM: Mas pode acontecer, ou não? K: Pode! Como também pode acontecer pormos cinco balas no tambor de uma arma de seis tiros, rodá-lo, apontá-lo à cabeça, disparar e ser a vez da câmara vazia. Mas quem é que sensatamente faria essa aposta? PJM: Sim, só no desespero completo alguém faria uma coisa dessas! K: Precisamente! O desespero completo é ter a morte como evidência total. PJM: Também pode acontecer na vida de cada um, sem ser em combate. K: Acontece sempre. A diferença é que em combate é tudo mais decisivo, é tudo mais apressado, e também tudo muito mais tangível. Em combate a morte sente-se fora de nós e à flor da pele. Se já tiveste a experiência de lutar na rua com desconhecidos, sabes que essa luta é muito mais do que uma luta a treinar. Podes sair magoado de ambas, mas na luta de rua, tudo à tua volta é sentido por ti como possibilidade de dor. Uma garrafa na mão do outro, já não é uma garrafa, é uma possibilidade que pode acabar contigo naquele momento. A grande diferença é que em combate a morte não é pensada, é sentida, na vida a morte é fundamentalmente pensada. Em combate, as coisas estão contra nós, se não estiverem a nosso favor. Na vida, as coisas são as coisas, são neutras, não precisam de ser nem a favor, nem contra. É por isso que em combate a morte se sente mais. PJM: Presumo então que o Karadeniz também esteve em combate! K: Claro! Antes de ser assassino profissional, fui militar. E cheguei a estar em combate. PJM: Aonde é que combateu e quando? K: Fiz o serviço militar nas forças especiais, quando regressei dos EUA, depois do curso de engenharia, e cheguei a combater em operações secretas nas montanhas entre a Turquia, o Irão e o Iraque. PJM: Foi aí que adquiriu a perícia para a sua posterior profissão? K: Uma parte dela, sim. A Turquia tinha, e ainda deve ter, das melhores forças especiais do mundo. A Turquia sempre foi e tem de continuar a ser fortemente militarizada, por causa do lugar onde se encontra. Vivíamos, e ainda vivemos, rodeados de inimigos. PJM: Se, nos dias de hoje, estivesse a começar a sua vida, voltaria a ter a mesma profissão? K: Voltaria. Parece-me uma profissão de futuro. Saber matar bem tem sempre futuro.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasEquívocos de juízo acerca dos escritores [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje vivemos num mundo em que queremos que os escritores sejam excelentes cidadãos e aceitamos que os políticos sejam maus cidadãos. Quantas pessoas se escandalizam ao saberem, ou verem, que o escritor ou poeta que tanto admiravam, é um bêbado em público? Como se isso não fosse natural. Quantos escritores e poetas ao longo dos tempos não eram bêbados? Fernando Pessoa, Charles Bukowski, James Joyce, Tenesse Williams, Dylan Thomas, Ernst Hemingway, Edgar Alan Poe, Serguei Iessienin, Camões, Li Bai… Por isso, tem de se traçar uma linha entre o escritor e a pessoa. Podemos evidentemente não querer privar com um escritor bêbado, mas não devemos deixar que esse comportamento vá influenciar a leitura dos seus livros. Provavelmente seria pesaroso para muitos privar com Dylan Thomas ou James Joyce, pelas histórias que se contam, mas não deixamos de ler os seus livros por causa disso, mesmo que fôssemos seus contemporâneos. Não me parece uma condição necessária a um escritor, a sobriedade, contrariamente a um político. E se em relação à bebida estamos conversados, pois talvez todos concordem com o que aqui foi escrito, ainda que possam depois não o praticar, a verdade é que em relação às posições políticas dos escritores a concordância fica muito mais difícil. Conheço pessoas que não lêem ou não valorizam um poeta ou um escritor, apenas porque ele é politicamente de direita. Como se ser de direita fosse equivalente a escrever mal! Como se tantos e tantos bons escritores e poetas ao longo dos tempo não tivessem posições de direita nas suas vidas! O grande dramaturgo norueguês Hentik Ibsen dizia, algo controversamente, que o escritor é por natureza um animal conservador no modo como conduz a sua vida e revolucionário no modo como escreve. Talvez se estivesse a ver a si mesmo, mas no fundo o que ele está também a dizer é que um escritor deve ser julgado pelo que escreve e não pela vida que leva. E por falar em norueguês, temos um dos maiores escritores do século XX, que era não apenas de direita, mas de direita reaccionária, Knut Hamsun. Contrariamente ao professor Georg Steiner, que é judeu e separa completamente o trabalho intelectual de um autor do cidadão que esse autor foi, o professor Harold Bloom não o consegue fazer, invocando o que esses cidadãos fizeram de mal ao povo judeu, não conseguindo claramente separar o escritor do cidadão. Por isso vemos fora do seu Cânone Ocidental, autores como Kunt Hamsun, Pirandello ou Céline. Mas numa livraria de Telaviv encontrei livros de Céline, mostrando-me que a nação judaica consegue fazer essa separação. Por outro lado, hoje, se um escritor tem a ingenuidade de dizer numa rede social que é de direita, erguer-se-ão vozes, que em breve se multiplicarão em milhares, a acusá-lo de fascista, acrescentando que não irão ler mais livro nenhum dele (caso o tenham feito antes). E o mesmo acontecerá se um escritor escrever no seu mural de Facebook: eu sou comunista. De um lado e do outro formam-se fileiras de exércitos de opiniões, acusando a escrita deles. Conheço quem não leia José Saramago por ele ter sido comunista a vida toda. E conheço quem o leia apenas porque ele foi comunista a vida toda. Qualquer um destes leitores está errado. Pois se José Saramago ao escrever não fosse muito maior do que era enquanto cidadão, não valaria a pena lê-lo. Qualquer grande escritor é muito maior a escrever do que é enquanto pessoa. É precisamente por isso que ele é um grande escritor: porque escreve acima daquilo que é como cidadão. E este equívoco estende-se a muitas facetas das nossas vidas. Por vezes, ao se falar de futebol, oiço alguém a criticar o jogador Cristiano Ronaldo por ele ser vaidoso ou por outras idiossincrasias da sua personalidade. Ora, aquilo que deve interessar na apreciação de um jogador de futebol é o seu desempenho entre as quatro linhas do relvado. Fora das quatro linhas, o Cristiano Ronaldo interessa-me apenas na medida em que também me interessa um habitante distante das Maldivas, isto é, espero que não sofra. Esta crescente confusão entre a excelência de uma actividade e a cidadania tem vindo a aumentar com as chamadas redes sociais. Estas, como promotoras de opiniões que são, tendem a julgar as actividades das pessoas pelo comportamento delas. E isto acontece, porque as pessoas naturalmente querem falar, querem fazer-se ouvir, e também porque é mais fácil julgar alguém a cair de bêbado ou uma frase que escreve no Facebook do que ler os livros que ele escreveu. Sem dúvida, um escritor é um humano. E deve ser julgado como humano na sua praxis e como escritor na sua actividade. Aqueles a quem devemos julgar pelas suas acções são os políticos, pois esses têm o dever de ser exemplos. Evidentemente, não falo da vida privada, falo da vida pública. Um político deve ser exemplar. Não um escritor, um cantor, um cineasta ou um jogador de futebol. Devemos exigir decência a Donald Trump, a Vladimir Putin, a Marcelo Rebelo de Sousa, e julgá-los por isso, e não a Bukowski, Iessienin ou Pessoa (ainda que, como cidadão, qualquer um deles deva ser julgado pela sua cidadania ou falta dela).
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradeniz: “Na vingança não se tem remorsos!” (continuação) 5. A MORTE [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mediterrâneo é um vasto continente cheio de história e de rochedos com vegetação rasteira junto à água. Depois de Istambul, é o lugar onde Karadeniz se sente melhor. Tinha aí uma pequena, mas confortável casa junto a Kas. Os túmulos hititas no meio da vila, no meio dos passos das pessoas parecem dizer que a morte é bela, que a morte se transforma em pedra e em arte. Ao fim da tarde, costumávamos passear por entre as pessoas e por entre a morte como se fossem coisas separadas, como se não houvesse ligação nenhuma entre ambas, como se a morte fosse um lugar para se visitar e tirar fotografias. Depois, no porto, vemos os barcos dos pescadores a trazer a morte de um ou outro tubarão agarrada à popa, e que muito diverte o Karadeniz, por causa da usual reacção de pânico dos turistas. Acrescentava sempre: “este hoje não se pode comer, só amanhã”. A carne precisava ainda de horas para amaciar. Aproximávamo-nos então dos baldes onde vinham os peixes e ele acabava por perguntar ao pescador para que restaurante ia o peixe que ele queria, e apontava. A morte vinda do mar é que ditava sempre o lugar onde íamos jantar. Qual é a sua relação com a morte? Ela foi mudando ao longo da vida, segundo o ponto de vista daquele que a sabia fazer, segundo o ponto de vista daquele que também sabia que um dia ela lhe iria acontecer e segundo o ponto de vista daquele que está próximo dela? Fale-me da morte, por favor! No início a morte não era a morte. A morte era matar e matar era uma forma de ganhar a vida. Para quem, como eu, viveu da morte, e ainda vive dela, dos seus lucros, ela não assusta, Paulo. Por outro lado, sempre fui meio-morto, na minha vida cheia de segredos. Fui provavelmente o melhor assassino profissional do século XX e ninguém sabe disso. Quem soube, tão poucos, ou já morreram ou estão prestes a levar com eles para sempre o meu segredo, o testemunho da minha perícia. Imagina saberes que és um dos melhores escritores do teu tempo e ninguém saber disso! Isso sim, assusta mais do que a morte, meu amigo. Senti mais vezes o terror, que muitos atribuem à morte, em outras coisas da vida do que na morte propriamente dita. Em que coisas? Sabes o que é acordar a meio da noite alagado de terror, porque sonhaste com uma mulher que amaste no teu passado, com quem viveste, a fazer amor com outro homem, e isso estar a passar-se no tempo em que ainda viviam juntos? Um sonho acerca de um facto que nunca existiu, provavelmente, mas após tanto tempo como se pode realmente saber se não aconteceu? Ela já não vive contigo há anos e volta à noite por entre os sonhos para destruir, não só o teu descanso, mas também o teu passado. Alagar de dúvidas e de rancores e de mágoa e de desânimo toda a tua vida. Não é fácil perceber que facilmente se mata um homem à distância, mas que na distância do tempo não consegues sequer impedir que uma mulher faça de ti o que quiser. Só não te mata, porque seria pôr a sofrer-te de menos. Nunca sofri pesadelos pelos homens que matei e, no entanto, uma mulher tortura-me todas as noites, vinda de longe, vinda da morte. E esta morte que nos atormenta, que nos faz sangrar de infelicidade, cabisbaixos pelo dia fora, não se transforma num belo túmulo, para que apreciemos o passado. Para mim, a morte é aquilo que poderia ter evitado e acabou por se tornar inevitável. A outra, a do fim de tudo, não sei do que se trata, não me mete medo. A morte fez muito por mim, não tenho de que me queixar, Paulo! Mas o evitável a tornar-se inevitável é que me macera a existência toda. É mesmo verdade que nunca sentiu pesadelos pela morte que fazia acontecer aos outros? Completamente! Nunca senti remorsos pelo meu trabalho. Alguém tinha de o fazer e eu era muito bom a fazê-lo. Fosse eu crente e diria que a minha perícia tinha sido uma bênção de Deus. Também nunca sentiu remorsos pelos gatos que matava, gratuitamente? Não, porque estava apaixonado por esse ódio. Queria vingar-me da minha mulher, da falta de amor dela por mim, da falta de amor dela pelo filho, da falta de amor do meu filho por mim. Se não era falta de amor, pelo menos era falta de vivência desse amor. Na vingança não se tem remorsos! Nem por um momento deixei de dormir ou acordei alagado de suor e terror pelas balas que cravei nos gatos. Não se arrepende de nada na sua vida? Arrepender, não, mas se pudesse voltar atrás tinha começado a minha colecção mais cedo. Tinha começado a colecção antes da minha mulher se ter ido embora. Alguma vez a deixou de amar, à sua mulher? Nunca! Esse é que é o problema, essa é que é a morte. Uma mulher que diz que me ama, mas que não consegue fazê-lo, embora continue a dizê-lo e mesmo assim tu não consegues deixar de amá-la nem mandá-la embora. A minha morte é a minha mulher. Tornou-se a sua morte desde que o deixou ou desde que morreu? Não, Paulo, tornou-se a minha morte desde que a conheci. Foi o evitável a tornar-se inevitável. No fundo, a minha vida é uma história de amor. Mas quando conheceu a B. já há muito que trabalhava, que havia tomado importantes decisões acerca do rumo da sua vida. Antes da B., já matava para viver. Mas nunca havia amado antes, nem amei mais ninguém depois. E isso conta mais do que o modo como ganhava a vida. Matar não durou para sempre, mas o amor por ela durou para sempre. Provavelmente, não haverá muitas pessoas no mundo que possam dizer isso. Pois não, Paulo? Hoje, provavelmente, nenhuma. Mas o seu amor só durou para sempre porque nunca se concretizou, não pensa assim? Tens razão, Paulo! Durou para sempre porque nunca nos chegámos a ter um ao outro. Ela queria-me de um modo e eu queria-a de outro muito diferente. Nunca nos chegámos a encontrar no nosso amor. O seu filho sabe desse seu grande amor pela mãe dele? O meu filho não quer saber de nada que não seja dinheiro e poder. Herdou da mãe a distância em relação às pessoas e herdou de mim o pragmatismo em relação à vida. Para o meu filho, o amor é uma puta fina.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasNotas acerca do livro A Urna, de David Oscar Vaz Para Valério Romão [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]avid Oscar Vaz é um escritor brasileiro, de São Paulo, que recebeu em 1997 o prestigiado prémio de revelação da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), um dos mais importantes prémios brasileiros, com o seu livro de contos Resíduos (Ateliê Editorial). Em 2000, e também pela Ateliê, edita o seu segundo livro, também de contos, A Urna. Livro que iremos ler aqui através de alguns dos contos que o compõe. “A CASA” “A Casa” acaba connosco. Acaba connosco a recolhermo-nos ao cérebro e a perguntar: é verdade ou não? E, com esta pergunta, voltamos atrás no canto, atrás no texto. Talvez seja esta a mestria dos grandes contistas: a capacidade de nos fazer voltar atrás, sempre para trás. Voltar atrás, perguntar se é verdade ou não, aqui, não é do foro dos factos, nem tão pouco ontológico. Voltamos atrás e perguntamos pela veracidade estética do conto. Independentemente da sua veracidade ontológica. A factual é que não é sequer p’r’aqui chamada. Verdade factual interessa tanto ao conto como a água interessa ao vinho. Conto bom, dá à ré! Tão contrário ao romance, com a sua seta afiada em direcção ao futuro do tempo! Ainda que continuemos o romance, depois dele acabar, não voltamos atrás, pelo contrário, vamos para a frente. No fim de um romance, o que ficou para trás não causa perplexidade. No fim do conto, é o que já lemos que causa perplexidade, isto é, o que lemos e que agora se nos é revelado como “se calhar não lemos”. Este conto, de David Oscar Vaz, de apenas meia dúzia de páginas, mostra de um modo extraordinário a peculiar arte do conto. Independentemente do seu conteúdo, excelente, de resto, é na sua formalidade que encontro a razão que me faz começar por ele, na curta leitura deste livro. “A URNA” Conto que dá título ao livro e com o qual se começa. Tem a particularidade de se centrar num tempo muito anterior ao nosso: há um século atrás. E, talvez por essa mesma razão, a comparação com a tradição machadiana torna-se inevitável. Sem dúvida, lembra Machado no seu melhor. Lembra Machado, no seu melhor, no uso preciso da linguagem; preciso das metáforas, preciso como um relógio, e é tão difícil acertar uma metáfora; no uso preciso do ritmo; no uso preciso dos desequilíbrios narrativos, no uso preciso da lei universal do conto: o que é dado por certo ao leitor, no início, é directa e proporcionalmente retirado no fim. Por conseguinte, uma vez mais, ao terminarmos a leitura do texto, todo o conto é posto em causa. Lá vamos nós outra vez para trás à procura de onde nos enganámos, de onde nos deixámos enganar. “TALAGARÇA” Este é um conto dentro de um conto. Sem dúvida, uma técnica clássica de narrativa. Mas difícil é sustentar o clássico na contemporaneidade, como uma mulher que entra hoje num clube nocturno vestida como nos idos anos vinte do século passado e, ainda assim, ninguém consegue tirar os olhos dela; não por excentricidade, mas precisamente porque ela e o vestido fazem todo o sentido. Quem ainda não viu uma mulher assim, nunca viu uma mulher. Pois estou convicto de que somente nas revelações em contra-posição se chega realmente a ver alguma coisa. Depois, o conto, antes mesmo da sua formalidade clássica, começa com uma frase pré-clássica, isto é, uma frase antes do conto, antes do clássico, antes dos espartilhos de género literário. O conto começa assim: “Você pergunta se eu acredito em fantasma! Mas, se veio me procurar é porque já sabe a resposta.” Para as senhoras e os senhoras mais familiarizados com a obra de Platão, torna-se claro o ponto de vista da reminiscência. Reminiscência, porque já trazemos em nós uma resposta daquilo que perguntamos, isto é, já trazemos em nós um conhecimento prévio daquilo que desconhecemos. Imagine-se um homem que chega de Portugal a São Paulo e pergunta onde fica a Avenida Paulista. Ele pergunta por algo que não desconhece de todo, embora não saiba disso, claro. Ele não sabe onde fica, mas sabe que fica em São Paulo e que se trata de uma avenida, e que fica “não sei onde”. Ele pergunta, não por aquilo que desconhece de todo, mas por aquilo que vislumbra. Ora, e o que é um vislumbre senão um fantasma. É o próprio Platão que diz que há fantasmas, ao afirmar que se sabem coisas em forma de simulacro. Simulacro em Grego Antigo é precisamente phantom (fantasma). Assim, todo aquele que pergunta, pergunta por um fantasma, pergunta por aquilo que o assombra, isto é, pergunta pelo conhecimento que deseja. E só se deseja o que não se tem, mas que, de algum modo, lhe acedemos, que vemos, nem que em sonhos. Por conseguinte, DOV (David Oscar Vaz) começa o seu conto com um projecto iminentemente platónico. Correcto será dizer: com um projecto de filiação a Platão. De qualquer modo, e a apesar da profundidade do seu início, trata-se de um conto e não de um texto filosófico. Por isso mesmo, a terceira frase é: “O que você quer saber é da minha estória, não é?” DOV não pretende enganar o leitor, vendendo gato por lebre, dando conto por filosofia. O autor engana-nos apenas na justa medida do que nós merecemos; na justa medida de cada um como leitor. E quanto mais treinado, mais enganado. Todo o texto que vale a pena ser lido trai o seu autor, põe-lhe os cornos, é sabido, mas neste caso particular o texto também põe os cornos ao leitor. Pois durante toda a narrativa do conto o leitor fica preso aos acontecimentos relatados, à relação entre aquele que relata e a sua falecida mulher, embora na verdade, no final, leve com um grande par de cornos, isto é, no final explode todo o sentido formal deste conto: “Às vezes penso que o fantasma seja eu, preso a minha casa e ao labirinto das minhas lembranças. Já tem minha estória, moço. Agora, aperte minha mão.” Terá sido coincidência o autor terminar o livro precisamente com essas duas frases, não apenas o conto, mas o livro? Parece-me pouco provável. Em relação ao conto, a transladação do fantasma para o próprio, recupera o sentido original de Platão e das primeiras duas frases do conto, à revelia de toda a narrativa. O fantasma não é ninguém senão o próprio. O fantasma não é ninguém senão a reminiscência que nos habita, que nos enforma. Mais: é o fantasma que escreve contos. É o fantasma que escreve poemas. O filosofo é precisamente o caça-fantasmas, aquele que ambiciona e esforça-se por estar acima do seu próprio fantasma; ele luta contra o fantasma que é. O escritor, não. O escritor assume a sua condição de fantasma. O escritor diz: Platão você tem toda a razão, mas eu não consigo ser de outro modo, não consigo ir para além do meu fantasma. Mas, e isto parece-me evidente, quem escreve as frases que escreveu neste conto, tem consciência clara e aguda disto mesmo. Entre a verdade e a verdade há uma estória. A estória que é narrada no conto intromete-se entre a verdade das primeiras frases e a verdade das últimas. De qualquer modo, e isto parece exemplar neste conto, a estória é sempre uma reminiscência, uma imagem da verdade, um simulacro, embora não seja mentira, não seja um embuste. Assim, parece-me claro que fazer “Talagarça” ser o conto final deste livro não é por acaso. Pois que melhor conto nos faria andar para trás no livro todo, na reflexão acerca do livro e da própria escrita? “O OUTRO” Talvez este não seja o conto que eu prefiro, mas é seguramente o mais perfeito. A técnica narrativa, a beleza de expressão e a filiação a Platão atingem aqui o seu ponto máximo. O que importa, ou o que parece ser recorrente (obsessivo?) em DVO é precisamente o lugar da reminiscência: o lugar do que está em nós, não estando; do que se faz sentir, sem conhecer; do que nos aparece, sem aparecer. A reminiscência, em Platão, é precisamente esse lugar intermediário entre o que há e o que não há, entre o que se tem e o que não se tem, entre nós e nós mesmos. Usando as palavras de DOV “quando o outro é você mesmo.” O outro nós-mesmo é esse lugar intermédio, esse lugar a meio caminho entre saber e não saber, isto é, o lugar humano. O lugar que poderia ser descrito hoje como que o lugar da revelação fotográfica, como aparece escrito no conto: “qual solução de nitrato de prata a fazer surgir em papel lavado de branco a imagem que não havia, mas que ele, o papel possui sem saber”. E se essa imagem é escrita para mostrar o amor pelo outro a aparecer na poeira do dia, também podemos usá-la para mostrar tudo o que aparece em nós. Nós somos o que não sabemos que somos. E esta é a grande obsessão destes contos. Mas, se para Platão, há uma saída, não para a condição humana, mas para uma melhoria da sua condição, através do conhecimento, para DOV isso nem sequer é secretamente pensado. Viver não tem saída, isto é, não tem uma seta na direcção do melhor, pois nunca se sai da reminiscência. A reminiscência não é um modus operandi que através de uma tenaz perseguição do conhecimento nos põe num estádio diferente de consciência. Não. Reminiscência é o que somos sempre, o que não podemos deixar de ser. Viemos ao ser como reminiscência e vamo-nos de igual modo. Como se lê no conto: “Renato tentou se ver vendo, saber o que sentia ao vê-lo.” Tentar pode-se, mas não leva a lugar nenhum diferente daquele em que se está. Adiante, escreve: “Quando deu por si, se é que de fato deu por si”. Diria que toda a escrita de DOV é este movimento de nos fazer dar por nós, mas sem que de facto isso altere o nosso estádio de reminiscência. Dar por nós é compreender a prisão reminiscente em que nos encontramos. Por isso, o conto assume a certa medida desta verdade. O conto é, em si mesmo, uma contínua e perpétua reminiscência, pelo menos neste autor. O ser humano está claramente, nesta escrita, entre sucinto e explicativo, entre o poema e o romance, entre o fragmento e o ensaio. Concordemos ou não, o humano tem na escrita de Vaz a dimensão do conto. Humano e conto são uma e a mesma coisa. Não há uma seta na direcção do melhor; há uma recorrência do que há. E nesta recorrência se faz a vida e a pomos a pensar e a escrever, que é pensar pra fora.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradeniz: “O que nos espera é o nada” (Continuação) Mas o Karadeniz disse que também tem moedas muito antigas, de antes deste seu tempo!… É verdade, mas não foram procuradas como raridades de colecção! Foram encontradas em lugares do dia a dia, compradas a quem não sabia do seu real valor. Essas moedas são mais um testemunho do que se encontra nas ruas da cidade neste meu tempo do que um troféu raro. Não é peça de colecção, é peça do que se encontra na cidade. O que é que o Karadeniz pretende fazer com tudo isto? Enquanto for vivo, vou juntando mais coisas todos os dias. Quando morrer já não posso decidir nada acerca disto. Provavelmente vai tudo para o lixo. Mas não o angustia saber que todo este seu esforço vai acabar em nada? É como a vida! No fundo, o que aqui estou a fazer é uma metáfora da vida. Provavelmente, preferiríamos viver para sempre, ou ser recordados para sempre, mas o que nos espera é o nada. Não é, Paulo? O que vamos ser quando já não formos, ainda não sabemos! Não sabemos, mas temos bons indícios do que vai ser. Sabes o que é que também colecciono, Paulo? O quê? Esqueletos de peixes. Esqueletos?! Sim, espinhas de peixe! Tenho um esqueleto de cada um dos peixes que se pode comer em Istambul. De todos?! Bem, de quase todos. Desfio-os com muito cuidado antes de comer e depois guardo o esqueleto do peixe. E hoje, portanto, é esta a sua vida?! Podemos dizer que sim! Por vezes, vejo o que faço como uma grande obra de arte. Outras vezes, vejo tudo isto apenas como uma obsessão em relação à permanência. Gostava que as coisas permanecessem. Gostava que o que vem a seguir não apagasse o que já há. O que há devia haver sempre. O que há não devia tornar-se passado. A sua mulher chegou a saber desta casa, deste amontoado de coisas? Nem ela, nem o meu filho. Já pensou que esta casa, esta obsessão por juntar coisas não é muito diferente da obsessão da sua mulher pelos gatos? Já! Quem está apaixonado, seja pelo que for, não tem jeito para mais nada. Não se pode estar apaixonado por mais do que uma coisa, por exemplo, uma pessoa e aquilo que se faz, ou por mais do que uma coisa que se faz ou por mais do que uma pessoa? Não estou certo disso. Podemos ter relações intensas com várias coisas ou várias pessoas, mas julgo que a paixão é um sentimento exclusivo. A paixão pode ser um ódio. O ódio que tive aos gatos era uma paixão. Não me deixava ver mais nada. O ódio é a carga negativa da paixão; a paixão é a carga positiva do ódio. Por isso é que tantas vezes se passa de uma carga para outra em relação ao mesmo objecto ou à mesma actividade ou à mesma pessoa. Nunca sentiste ódio pela escrita ou por uma pessoa por quem já estiveste apaixonado? Adiante! Há alguém que saiba da sua colecção? Há alguém que já aqui tenha estado? Não e não. Um cidadão não pode compreender o que se passa aqui. As pessoas que moram neste prédio, nos outros andares, se soubessem de tudo o que aqui está, obrigavam-me a vazar o apartamento. Tenho sempre medo de que alguém venha a saber. Uma vez mais, uma actividade que tem de manter em segredo! Infelizmente assim é! Trago as coisas a horas diferentes, de modo a que tenham dificuldade em controlar as minhas entradas e o que faço. Porque, como já viste, o amontoado de coisas é tão grande que a porta de entrada já nem sequer abre toda. Se me virem a entrar de lado vão pensar que há algo de estranho. Vão querer saber. Vão começar a bisbilhotar. Um destes dias já nem sequer consegue cá entrar, Karadeniz! Como é que vai fazer, arranjar outra casa? Com a minha idade já não vai ser preciso, Paulo. Mas imagina que tinha começado com isto muitos anos antes! Então, sim, é que teria de arranjar outra casa. Por outro lado, não conseguiria deixar umas coisas aqui e outras lá. Teria de mudar tudo para uma casa maior, teria de ter tudo junto. Não consigo ver as minhas coisas separadas. Nem conseguiria separar-me delas. E então teria outro problema: a mudança de tudo isto. (pausa) Gostava de morrer aqui entre as coisas. Só que o seu corpo poderia apodrecer aqui, sem que ninguém desse por isso! Era bonito! Tornava-me eu mesmo parte da colecção, parte do amontoado de coisas. O Karadeniz não tem mais nenhum familiar vivo, para além do seu filho? Não! Fui filho único e os outros parentes há décadas que não sei deles. Como o meu filho não vai precisar do meu dinheiro, nem sequer o vai querer, gasto o dinheiro nestas coisas e nas viagens que faço, que agora já vão sendo poucas. Quase ninguém sabe de mim, no mundo inteiro. Julgo que nasci para ser tudo o que quisesse, desde que não fosse conhecido, desde que passasse completamente despercebido. Comecei por matar pessoas e gostava de acabar entre estas coisas que ninguém quer. Mas há muita grandeza na sua vida, Karadeniz! Muita grandeza, como assim!? Você deixa de matar pessoas pelo ódio aos animais, que passa a matar, e acaba por encontrar o amor, a paixão entre as coisas que ninguém guarda, que ninguém quer, nessa sua obra de arte, como por vezes lhe chama. Não vê grandeza nisso? Você foi sempre exemplar em tudo o que fez! Uma coisa é certa e, se bem te percebo, tens razão, vivi sempre nos limites do humano. Se isso é uma grandeza, já não sei. (continua)
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasPoesia ao vivo [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado domingo, actuaram em Macau os No Precipício Era O Verbo, grupo de música e poesia composto pelos músicos Carlos Barreto (contra-baixo) e José Anjos (percussões e também o poeta que incorpora o grupo), pelo actor André Gago e pelo filósofo e tradutor de Grego clássico e alemão António de Castro Caeiro. Trata-se de um grupo que concilia a música, de vertente experimental, e a recitação de poemas. Poemas esses que vão desde poemas portugueses a poemas da antiga Grécia, lidos no original e em tradução, assim como alguns poemas alemães, também lidos no original e em tradução (poemas alemães e gregos lidos por António de Castro Caeiro). Recentemente editaram um belo disco, com um precioso trabalho gráfico levado a cabo por Dulce Cruz e com ilustrações de André da Loba, que já tinha feito um livro em conjunto com a poeta Rita Taborda Duarte, também ele um livro precioso. No Precipício Era O Verbo não é o único projecto deste género, embora seja o mais recente. A Lisbon Poetry Orchestra é outro destes projectos, do qual já fez parte o actor André Gago, e que envolve vários músicos, entre eles o antigo baixista dos Rádio Macau e actual proprietário do bar Povo, onde desde há cinco anos se lê poesia todas as segundas-feiras a partir das 22h. Aqui, no Povo, também as leituras de poesia são acompanhadas por um ou mais músicos. Mas estas leituras de poesia não se ficam pelo Bar Povo, que têm à frente do projecto Alex Cortez e Nuno Miguel Guedes; deste projecto nasceu também a revista literária Cidade Nua. E, em Lisboa, este é apenas um dos projectos a que se juntam vários outros: Terças de Poesia Clandestina, que neste momento é no Titanic Sur Mer, e o evento está também ligado à revista Apócrifa; e os encontros mensais, nas primeiras terças-feiras de cada mês, no Teatro Nacional D. Maria II, a cargo da actriz Teresa Coutinho; recentemente desapareceu as leituras de poesia, em Lisboa, com mais tempo e mais sessões, as leituras às quintas-feiras no bar do Teatro da Barraca, a cargo do poeta Miguel Martins, também editor da Tea For One; e ainda outros pontuais, como os que aconteceram recentemente no Bar Irreal, por iniciativa do poeta José Anjos (também regular colaborador do Bar Povo). Mais recentemente, em Maio passado, deu-se início às leituras na livraria Ferin / Ler Devagar, projecto liderado pela Marta Lapa e que acontece uma vez por mês (no último sábado do mês) à volta de um poeta. Na cidade do Porto já tinha começado há mais anos, com o Rui Sprangler, no Café Pinguim, e continua; e também com as Quintas de Leitura, projecto do João Gesta, no Teatro do Campo Alegre. Há duas décadas atrás, Nuno Moura e Paulo Condessa iniciavam, nessa altura completamente a contra-corrente, o projecto O Copo, que consistia em leituras de poemas e performance à volta dos mesmos. Hoje a leitura de poesia em público parece estar na moda, e isso por si só não é bom nem mau. Há leituras melhores do que outras, escolhas melhores do que outras, e talvez resida precisamente aqui, nas escolhas, a diferença entre as leituras que acontecem, um pouco por todo o país. O poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto (Recife, 1920) dividiu a sua obra em duas “águas”: a primeira seria a da comunicação restrita, elaborada e de difícil leitura, poemas que necessitavam de mais de uma leitura; a segunda, uma poesia mais popular, de compreensão mais imediata, que não necessitaria de mais de uma leitura para se fazerem sentir, aos quais chamou de “poemas em voz alta”, que foram escritos para serem lidos a um público ouvinte. Assim também entendo que há poemas, não que sejam para ser lido em voz alta, mas que sem dúvida resultam melhor em voz alta do que outros, que necessitam de uma maior concentração, de uma maior atenção. Seja como for, a verdade é que estes eventos e estes grupos, de poesia lida em voz alta para grupos de pessoas e acompanhada de música (ou não), parece ter vindo para ficar. E parece ser um modo eficaz de divulgação dos poetas que são lidos. O tempo o dirá. Mas para já, já se passaram uns anos e a tendência é para que o fenómeno cresça. Seria talvez bom, que alguns destes eventos pudessem ser reproduzidos em Macau. Para já, Macau pôde assistir ao singular projecto, fruto deste tempo de poesia ao vivo, No Precipício Era o Verbo.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradeniz: “Não sinto culpa por ter matado quem matei” (Continuação) [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ostumam encontrar-se? Raramente. Ele vem cá uma ou outra vez, mas eu nunca vou a Londres. Por vezes, o T. também vem a Istambul e nem sequer tem tempo para me visitar. Não tem medo que, depois de publicar esta entrevista, ele reconheça o pai? Não, Paulo! Não acredito que o livro venha a ser muito conhecido e menos ainda que o T. o possa vir a ler. Ele nunca lê, para além do que tem que ver com o seu trabalho. Que idade tinha o Karadeniz, quando a sua mulher se separou, quando ela deixou Istambul e regressou a Londres? Tinha 49 anos. O T. era uma criança com nove anos. Ainda na década de 70… Sim, em 1975, precisamente. A B. não voltou a casar? Não. Julgo que teve namorados, mas foi sempre muito discreta em relação a isso, por causa do filho. Não lhe deve ter sido difícil, ela não era uma mulher muito fogosa, não tinha muita necessidade de ter relações sexuais. Quando acontecia fazermos amor gostava, mas não eram muitas as vezes que lhe apetecia. Quanto à solidão, ela não a deveria sentir rodeada de tantos gatos. Os gatos eram o verdadeiro amor da sua vida. Os gatos que tinha aqui em Istambul, deixou-os cá? Nem pensar! Enviou-os todos por barco para Inglaterra. E o Karadeniz voltou a ter namoradas? Voltei, claro! Mas nunca nada sério. Mais tarde, comecei a preferir ir a Zurique, ficar bem instalado no Ritz e telefonar a uma agência de acompanhantes. Ainda mata gatos? Não! Não os posso nem ver, mas já não os persigo. Há muito que deixei de matar o que quer que seja. E quando vê um gato lembra-se da sua mulher? Isso é inevitável! E a solidão, o Karadeniz não se sente só? Não, Paulo! Leio bastante, como sabes, oiço os meus discos de jazz e vejo filmes. Mas a leitura e a música é que são as minhas companhias. Sempre leu muito ou foi influência da sua mulher? Sempre li muito, Paulo! Lia muito mais do que B. Com a porcaria dos gatos, ela não tinha tempo nem disposição para ler. Sempre leu muito poesia, como parece que lê agora? Sempre! Ao longo da minha vida, as minhas leituras foram sempre divididas entre os livros técnicos, de engenharia, física, química, matemática e os livros de poesia. Mas a leitura é e sempre foi para mim uma actividade nocturna, o que realmente ocupa mais o meu tempo, as horas dos dias, é a minha colecção de coisas. Comecei a adoptar coisas quando percebi o amor não correspondido pelo meu filho. Guardo isso tudo em uma outra casa, do outro lado do Corno de Ouro, muito perto de Eminonu. 4. A COLECÇÃO Eminonu é um grande centro de chegadas e partidas dos vários destinos de Istambul. Os turistas conhecem certamente o Bazar Egípcio (de especiarias), a mesquita de Suleyman e o pequeno porto onde estão atracados os barcos que os hão-de levar a passear ao longo do Bósforo. Mas para quem vive em Istambul, Eminonu é principalmente um centro de comércio barato, com centenas de lojas onde tudo se compra e a todos os preços. Quando se pensa em Eminonu, pensa-se imediatamente na ponte de Gálata, com dezenas de homens em cima a pescaram e outras dezenas debaixo dela a beberem cerveja e a comerem petiscos. Ao contrário da maioria dos turcos, Karadeniz preferia o xadrez ao gamão. Quando comecei a acompanhar Karadeniz à casa da colecção, parávamos sempre debaixo da ponte para umas cervejas e um rápido jogo de xadrez. Descrever aquela casa é de uma dificuldade extrema. O que primeiro se vê é o pó. O pó é o verdadeiro habitante da casa. Depois, assim que conseguimos ver onde estamos, o nosso horizonte é preenchido por pilhas de jornais que, em alguns sítios, chegam quase ao tecto. E, por todo o lado, os objectos desafiam o vazio, conquistam o espaço. Para um humano, depois da estupefacção, a dificuldade maior naquela casa é mover-se. Para além do pó, que nos atrapalha a visão e nos dificulta a respiração, os jornais e os outros objectos são como minas que temos de evitar. Caminha-se naquela casa como na guerra: a medo e como se pela primeira vez estivéssemos na vida. Karadeniz, o que é isto? (risos) Tens toda a razão, a pergunta é o que é isto! Isto é uma espécie de colecção. Uma espécie?… Sim, Paulo, uma espécie de colecção. Mas porque é que não lhe chama colecção? Porque todas as colecções têm um critério ou critérios; esta não tem critério nenhum. Uma colecção sem critério é um amontoado de coisas. É o que isto é: um amontoado de coisas. Esta colecção é precisamente o contrário do que foi a minha actividade de matar pessoas selectivamente. Matei criteriosamente e salvo objectos a-criteriosamente. Salva objectos?… Sim, o que eu faço é salvar objectos. À excepção dos jornais, que devem ser guardados em alguma biblioteca, os outros objectos vão perder-se no tempo, se não forem guardados por alguém. Hoje em dia as pessoas deitam tudo fora, não guardam nada. Deitar coisas fora define muito bem este nosso tempo. Amontoar coisas aqui nesta casa é uma tentativa de salvar o tempo de si próprio, de salvar estas coisas do tempo. Paradoxalmente, salvá-las do tempo é mantê-las no tempo. Mas que tipo de coisas é que salva, pode ser mais específico? Por exemplo, as etiquetas das camisas, das camisolas, das cuecas, das meias, das calças, de refrigerantes, de vinhos, de cervejas. Etiquetas que recorto e plastifico com as informações da data de compra, o preço e o lugar onde as adquiri. Mas também guardo um exemplar de cada uma dessas coisas, sem as tirar dos plásticos ou das caixas originais. Por isso é que a casa está impossível de ser habitada. Felizmente não preciso de viver aqui. E também tem aquelas coisas que são mais usuais serem coleccionadas: selos e moedas? Também! Tenho selos e moedas de quase todo o mundo, e algumas das moedas são muito antigas e de valor incalculável, mas não têm organização nenhuma; não seguem um critério. São coisas que vou comprando e juntando. O Karadeniz vê esta sua actividade de juntar coisas como uma atenuante da sua antiga actividade? Não, Paulo! Já te disse que não sinto culpa pelos trabalhos que fiz. Não sinto culpa por ter matado quem matei. Junto estas coisas porque não tenho um filho. Porque, para o T., eu não sou um pai, sou um parente afastado. A evidência da falta de amor do meu filho é que fez com que estas coisas se juntassem aqui. Não vê, portanto, nenhuma relação entre o seu passado e estas coisas? Para além de serem inversamente paralelas quanto ao critério, não! E como é que as adquire? Ando pelas ruas e pelos mercados de Istambul, vejo coisas que me interessam e compro. Algumas, compro porque são estranhas, quase insólitas, como por exemplo uma lanterna que comprei no mercado polaco, que só trabalha com força manual, vamos apertando como se exercitássemos os pulsos e dá luz. Outras, compro porque me parecem marcas importantes de pequenos períodos do tempo, como por exemplo aquelas garrafas de refrigerante que traziam um berlinde lá dentro. Sempre há algum critério! Mas não é um verdadeiro critério, Paulo! Vamos lá a ver uma coisa: podemos também considerar critério o facto de eu ir com regularidade a esse lugares à procura de coisas ou comprar os jornais todos os dias. Mas o critério de uma colecção deve residir no interior da colecção e não fora dela. Uma colecção é sempre restrita. Uma colecção é sempre alguma coisa em detrimento do resto das coisas. Para mim, são todas as coisas, exceptuando as que não cabem aqui dentro de casa, porque também gostava de ter aqui uma betoneira ou uma grua, mas não cabe. Uma colecção é a condensação de uma fracção do mundo. A minha colecção é uma ambição de condensar o mundo ou, pelo menos, este tempo por que passamos no mundo. Segundo o ponto de vista do coleccionador, a minha colecção é uma aberração. A minha colecção é uma tentativa de congelar o tempo por que passamos. Uma verdadeira colecção está sempre fora do tempo, isto é, atravessa-o longitudinalmente.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasLeitura na festa literária de Angola [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o início da Metafísica de Aristóteles, lê-se “o ser diz-se de muitas maneiras”, e podemo-lo afirmar para a poesia. Vários foram os períodos da história, e não longe de nós, em que se afirmava que a poesia deveria ser desta ou daquela maneira e não de outra. Por exemplo, muitos viram na poesia concreta aquilo que deveria ser a poesia, relegando para o passado ou um não-sentido toda a poesia que não fosse concreta. Mais recentemente, muitos afirmaram que só a poesia do quotidiano era realmente poesia, tudo o resto era história da poesia ou má poesia, que o mesmo seria dizer “não poesia”. Em Portugal, no período salazarista, também tivemos as nossas guerras poéticas, por exemplo entre os poetas da Presença e os poetas do Neo-realismo. Ambos pretendiam que a poesia fosse aquilo que cada um deles pensava ser. Mas também podemos invocar as hostilidades entre neo-realistas e surrealistas. Hoje, e pelo menos em Portugal, a poesia diz-se de muitas maneiras. E se é verdade que não acabaram completamente os policias da poesia (parafraseando o poeta e escritor António Cabrita), dizendo o que é e o que não é a poesia, passando multas nos seus artigos de jornal, não é menos verdade que diminuiu bastante esse policiamento e há uma variedade maior na expressão poética em Portugal. Esta falta de policiamento não implica uma diminuição da qualidade poética, pois o mau e o bom sempre existiu, tanto no passado quanto agora. A falta de policiamento originou uma maior liberdade de expressão, fazendo com que apareçam múltiplas vozes. A poesia apresenta hoje um horizonte temático e formal muito alargado. Evidentemente este fenómeno tem origem na multiplicação das novas editoras. Há em Portugal uma proliferação de pequenas e novas editoras, que maioritariamente se dedicam à publicação de poesia, como nunca existiu antes. Abysmo, Artefacto, Averno, Companhia das Ilhas, Do Lado Esquerdo, Douda Correria, Guilhotina, Licorne, Língua Morta, Mariposa Azual, Palavras Por Dentro, Poéticas Edições, Tea For One, Tinta da China, Volta d’Mar e ainda outras que estarei aqui a esquecer injustamente, para além das editoras mais tradicionais: Assírio & Alvim, Cotovia e Relógio D’Água… Vários destes poetas editam em várias editoras, dependendo do projecto poético do momento ou também da oportunidade, fazendo com que não haja tanto uma linha editorial, no sentido antigo do termo, em que uma editora publica apenas um determinado tipo de poesia ou um modo de entender o que deve ser a poesia. A Douda Correria, por exemplo, e talvez a mais prolífera das novas editoras de poesia, edita até inéditos de autores brasileiros, onde a realidade social, politica e estética é bem diferente dessas mesmas realidades em Portugal. O que parece estar em causa nesta nova atitude editorial é o entendimento de que é a própria poesia que encontra os seus próprios caminhos, os seus próprios leitores, e não os editores ou os críticos. Irá fazer no início de Julho um ano que escrevo todas as terças-feiras uma ou duas páginas no jornal Hoje Macau acerca de poesia contemporânea, de autores mais novos do que eu. Autores maioritariamente portugueses, publicados pelas editoras que antes mencionei, mas também já escrevi acerca de autores brasileiros e acerca de um autor cabo-verdiano. Devo dizer-vos, contudo, que não faço crítica literária. Escrevo acerca de cada um dos livros um diálogo que estabeleço com os mesmos. Por vezes, esse diálogo nem sequer é com todo o livro mas tão somente parte desse mesmo livro. Pois há livros que embora possam parecer desequilibrados de um ponto de vista poético, acabam por ser extremamente ricos em matéria de reflexão, tanto de um ponto de vista linguístico quanto de um ponto de vista existencial. E, parece-me, é isso que hoje os editores finalmente entenderam. Aquilo que um leitor de poesia encontra num livro não é o mesmo que outro leitor de poesia poderá encontrar. Não defendo aqui qualquer espécie de relatividade poética, ou de que tudo é válido e tudo tem qualidade. Não. Pois hoje também proliferam as pseudo-editoras que “editam” livros que não têm qualidade. E esta qualidade a que me refiro é visível por si mesma. Porque em verdade, deveríamos usar para a poesia as mesmas palavras que Duke Ellington usou para a música: “There are two kinds of music. Good music, anda the other kind.” (Há dois tipos de música. A boa música e a outra.) E dessa outra poesia não pretendo falar aqui. E acerca da boa poesia, talvez fosse bom deixarmos de lado o pensamento infantil de que há um melhor poeta, de que há uma melhor qualidade de poesia. Como disse recentemente o poeta português Vasco Gato, uma das vozes da boa poesia portuguesa, numa entrevista ao jornal Hoje Macau: “Se há território que não me apetece pisar é o da qualidade poética. Será maior hoje? Serão tempos de mediocridade? Assumo nesse âmbito uma posição cautelar: não estou em condições de o aferir, não é esse o propósito e será a lâmina da história a cortar as goelas que tiver de cortar. Com toda a injustiça, com toda a falência.” Parece, sabiamente, ser também esta a posição dos editores de poesia hoje, em Portugal, das pequenas editoras, ainda que alguns deles possam não se rever nas palavras que aqui pronuncio. Por outro lado, um dos factores que me parece importante assinalar, em relação à poesia hoje em Portugal, é proliferação de poetas mulheres. Se recuarmos vinte anos atrás, veremos que o número de boa poesia escrita por mulheres cresceu exponencialmente. Deixo-vos aqui alguns nomes, só de poetas até aos quarenta anos de idade, todas diferentes, mas sem dúvida poesia com leitores e com qualidade: Catarina Santiago Costa, Cláudia Lucas Chéu, Cláudia R. Sampaio, Inês Dias, Inês Fonseca Santos, Joana Emídeo Marques, Matilde Campilho, Patrícia Baltasar, Raquel Nobre Guerra, Raquel Serejo Martins, Rita Taborda Duarte, Rosalina Marshall. Evidentemente a estes nomes femininos, de mais jovens poetas, juntam-se ainda outros nomes femininos. Mas os nomes anteriormente citados, 12, e outros faltarão, certamente, mostra bem a mudança registada nos últimos vinte anos.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradenis (continuação): “Não se pode andar a trabalhar carregado de ódio” E quais são os factos, Karadeniz? Os factos são o ódio que passei a ter aos animais, por causa da minha mulher. A minha mulher gostava mais de animais do que de pessoas, especialmente gatos. O seu amor aos animais era inversamente proporcional ao amor pelas pessoas: quanto mais se aproximava dos animais mais se afastava das pessoas. Os animais, especialmente os gatos, eram quase tudo para ela. Pôs a casa cheia de gatos. De tal modo que se tornou impossível viver nesta casa. O cheiro dos animais, dos seus excrementos, das suas diferentes comidas. Divisões da casa fechadas com animais que não podiam misturar-se com os outros. Enfim, um inferno para um ser humano. A sua afectividade sempre foi mais extensa e efectiva para com os animais do que para comigo. Era uma vida frustrante, a minha. Não sabia dessa afeição da sua mulher pelos animais, antes de casar? Não sabia que era tão grave. Não era apenas afeição, era uma obsessão. Levava os gatos da rua para casa; saía todas as noites para alimentar os gatos da rua à volta destes quarteirões. Enfim, tratava dos gatos como não tratava de mim, nem dela, nem, mais tarde, do seu próprio filho. Não tenho dúvidas de que amava o filho, mas o filho não era gato, nem cão, nem pássaro. Ela amava-o a si? Julgo que sim, mas de um modo bastante distorcido, pois era incapaz de demonstrar o seu amor. Incapaz de me acariciar o rosto ou o corpo como o fazia aos animais, por vezes horas a fio. Aos poucos, afastou-se da comida. Começou a comer como um pássaro: sementes, vegetais, arroz. Passou a não comer, nem peixe, nem carne. Não comia animais. Por outro lado, eu ia ganhando um ódio irreversível aos animais, especialmente aos gatos. Eu que até aí tinha vivido de matar pessoas, comecei a não conseguir fazê-lo mais. Comecei a querer salvar as pessoas, a salvá-las dos gatos. A minha mulher saia para cuidar dos gatos e eu para matá-los. Muitas vezes cheguei a disparar deste terraço para tudo o que era gato que se mexesse aqui à volta, nos telhados ou lá em baixo nas ruas. Matar os gatos era um modo de repor a justiça no mundo. De repor a afectividade de novo nos eixos, a afectividade de novo nos humanos. Porque é que não se separou simplesmente dela? Porque havia sempre a esperança de que a situação mudasse; havia a esperança de que ela ainda pudesse transferir a sua obsessão pelos gatos para um filho, assim que engravidasse. Mas não foi nada disso que se passou. Depois, aos poucos, sem dar por isso fui ficando doente. Um dia percebi que odiava de morte os gatos e que havia de passar a viver para os matar, para os fazer sofrer. Então essa é que é a verdadeira razão para ter abandonado a sua actividade profissional tão cedo? É! Não se pode andar a trabalhar carregado de ódio. Não se pode matar pessoas estando doente. Ou era os homens ou os gatos! E os gatos tornaram-se uma obsessão impossível de ultrapassar. O último trabalho que fiz, em 1966, já foi o focinho de um gato que vi na mira da arma e não o rosto de um homem. Assim, não era possível trabalhar. Mais tarde ou mais cedo iria falhar. Mais tarde ou mais cedo a raiva e o ódio iriam deitar tudo a perder. Quando e onde é que conheceu a sua mulher? Conheci a B. em Londres em finais de 1962. Por conseguinte, ainda antes do trabalho em Dallas! Sim! Mas durante esse ano encontrámo-nos apenas quatro ou cinco vezes e não vivíamos juntos. Aliás, nesse ano julgo que nem sequer cheguei a ir a sua casa. Que idade é que ela tinha e como é que se conheceram? Ela tinha 24 anos, eu tinha 36 e conhecemo-nos numa loja onde ela trabalhava. Entrei lá para comprar uns discos de jazz. Apareci lá passados três dias e convidei-a para beber café. Depois é o que sempre acontece. Ela vivia sozinha, em Londres, com o ordenado de empregada de loja? Vivia, mas não era com esse ordenado. A B. era uma mulher muito especial. Tinha tido uma educação tão privilegiada quanto a minha e havia-se formado em Literatura Inglesa. Mas recusou continuar a estudar ou dar aulas. O dinheiro dela vinha de uma herança de família. Aos 21 anos herdou a parte que lhe cabia da morte do pai, quando ela ainda só tinha 12 anos. Trabalhava naquela loja porque era a loja de uma amiga, porque gostava de jazz e porque o tempo em que lá estava não deixava que a sua cabeça se ocupasse com pensamentos mórbidos, que usualmente a assaltavam. Era bonita? Era lindíssima, mas não acreditava que fosse. Vivia como se fosse uma rapariga feia e desinteressante, que nada tivesse para dizer a quem quer que fosse. De cada vez que a elogiava, reagia mal. No início, tem o seu encanto, mas depois começa a atingir o nosso próprio juízo de gosto. Quando é que se casaram? Casámo-nos no Verão de 1964. Por essa altura já eu tinha conhecimento da sua obsessão por gatos, mas sempre julguei que o casamento alterasse isso e que a mudança para Istambul também tivesse um efeito semelhante. Decidimo-nos por viver aqui, porque era melhor para os meus negócios. (pausa) Sabes que houve um homem que não morreu por causa do meu ódio de morte aos gatos, Paulo? Como assim, Karadeniz? A seguir ao meu último trabalho de que te falei, que vi o focinho de um gato em vez do rosto do homem, fui contratado para um outro serviço, que acabei por rejeitar fazer, por causa do que se estava a passar. O Jesuíta não estava disponível, eu sabia disso, e acabaram por contratar um inexperiente que acabou por ser apanhado antes de ter realizado o seu trabalho. Depois disso, desistiram completamente, para evitar problemas maiores com a Interpol. Ficaram escaldados. Mas o interessante desta história é que se fosse eu a fazer o trabalho esse homem teria sido morto e, assim, acabou por viver. Tudo pelo meu ódio de morte aos gatos. Tudo pelo amor enorme da minha mulher pelos gatos. (pausa) Meu amigo deixa-me dar-te um conselho: se queres continuar a escrever, não te cases! Como é que a sua mulher morreu? Morreu num desastre de viação. Um jovem bêbado foi bater com o seu carro contra o dela. Parece que foi morte imediata. Em Londres? Sim, nos arredores de Londres. E o seu filho, passou a viver consigo? Não. O T. já estudava nos EUA. Regressou para o funeral e para aquelas questões chatas e práticas das heranças, mas partiu logo de seguida para a América. O que é que ele estudou na América? Economia, finanças, gestão… esse tipo de coisas. (continua)
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasAs Olímpicas [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s Olímpicas, de Píndaro – importante poeta lírico da Grécia Antiga (século V a.C) –, que já tinham sido traduzidas pelo professor Frederico Lourenço, e publicadas pela Cotovia (Poesia grega – de Álcman a Teócrito. Cotovia, 2006) foram agora traduzidas, também directamente do grego clássico, e editadas pela Abysmo. O autor da tradução, assim como das notas, é o filósofo António de Castro Caeiro, que já tinha traduzido as Píticas, editadas então pela Prime Books em 2006 e pela Quetzal em 2010, desta feita com o título Odes. As traduções, tanto do primeiro quanto do segundo livro, apareceram no seguimento de cursos que o filósofo ministrou na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Desde logo, ficamos a entender que há matéria aqui que importa à filosofia. Por outro lado, a tradução de um autor tão distante de nós (a língua em que escreveu já não existe), leva-nos a pensar a tradução. De modo geral há três modos de entender esta actividade: 1) deixar que a estranheza da língua de partida se mantenha na língua de chegada, o que pode implicar que aquilo que realmente é mesmo estranho num autor passe a ser para todos os autores dessa língua, que neste caso particular seria traduzir Píndaro do mesmo modo que se traduz Aristóteles (que António de Castro Caeiro também traduziu, e diferentemente); 2) ajustar a língua de partida à língua de chegada, como se o poema tivesse sido escrito na língua de chegada (neste caso em português); 3) que a tradução forme uma língua apátrida, uma espécie de terceira língua, em que já não é a língua de partida (nunca é), mas também não é propriamente a língua de chegada. Se as dificuldades de tradução são maiores em línguas distantes, como sejam o caso do chinês, por exemplo, não o deixam de ser menos numa língua que, embora seja o berço da nossa civilização ocidental, já não existe. Outra das discussões acerca da prática da tradução divide ao meio os tradutores: a preferência da forma sobre o conteúdo ou o seu contrário, caso o ideal de ambos não seja possível de alcançar. António de Castro Caeiro seguiu o critério de nos mostrar a força filosófica, a profundidade do sentido dos versos de Píndaro, ao invés de se ater a um excessivo rigor métrico (até porque não há equivalências em português para a métrica em causa). E este critério, deve-se sem dúvida ao facto do tradutor ter-se debatido durante anos com a leitura e um pensamento filosófico acerca da mesma leitura. Isto não retira beleza à tradução. Pelo contrário, pois se a beleza de um autor reside principalmente na profundidade dos versos, no modo como faz explodir o sentido da condição humana, ser fiel a isso é ser fiel à beleza dos seus versos. Logo na apresentação do livro, Caeiro escreve: “A lírica de Píndaro medita nos diversos destinos humanos abertos à possibilidade, mas configurados por uma inanulabilidade do sentido irreversível do tempo. A situação humana é descrita na sua incapacidade de anular o que quer que aconteça. Uma situação que também vincula o tempo.” Estes poemas eram escritos como louvor à vitória. Neste louvor estavam incluídos os vencedores e a linhagem de onde vinham. Por isso, são poemas também imersos na história da Grécia antiga, tanto no tocante aos mitos quanto no tocante aos factos. Se é que conseguimos distinguir uns dos outros. No Prólogo, a professora Maria José Velasco, escreve: “Os Odes Olímpicas são composições poéticas compostas para celebrar o triunfo dos vencedores nos jogos olímpicos, os jogos mais importantes realizados na Grécia. Além de seu carácter de competições desportivas, os Jogos Olímpicos serviam para manter o espírito de unidade de toda a Grécia, porquanto, durante a sua celebração, era proclamada uma trégua sagrada e suprimiam-se os confrontos entre as diferentes Cidades-Estado (Poleis). Por tudo isto, estas composições triunfais serviam não só para enaltecer as condições atléticas do vencedor como eram também uma ocasião para exaltar os ideais gregos de beleza e força física, pois proclamavam o homem perfeito como parecido com os deuses.” Há também ao longo dos versos de Píndaro o cheiro de fim do mundo, de fim de um tempo que já foi, o tempo dos heróis, o tempo de uma ética da honra e da coragem. É o fim da aristocracia grega arcaica, a que Píndaro assiste e regista ainda os últimos esgares, através do elogio da vitória na competição. E a vitória não é apenas a vitória da competição. Escreve Caeiro, na sua introdução às Odes: “Para Píndaro não há empates. O acontecimento fundamental da vida é a vitória. Não basta para isso a mera participação. Toda a disputa é individual. Não há desportos de equipa na antiga Grécia. Cada competidor está sozinho mesmo quando representa uma casa, uma família, uma aldeia, uma cidade ou uma nação. Apenas a vitória consegue anular a solidão máxima da disputa. O campeão granjeia a fama e a glória. O triunfo altera quem o obtém. Permite o reconhecimento, uma identificação e, assim, um ‘lugar’ para ser. O brilho esplendoroso da vitória amplia. Potencia a vida. ao vencer-se é-se maior do que se era. É-se falado. Transcende-se o espaço que se ocupa e o tempo durante o qual se existe. Expande-se e propaga-se. Mas a derrota é uma desgraça. Uma calamidade. Quem perde não apenas é esquecido como também quer ser lembrado. A derrota extirpa a simples hipótese de ainda ser possível. Deixa o perdedor entregue a si próprio. Desamparado. Sem ilusões. Não pode senão sobreviver-se. Infame. Píndaro vê a na situação da disputa pela vitória em competições desportivas um caso exemplar para o estudo da situação existencial do humano. E elabora-a como situação hermenêutica.” (Odes, pp. 13-4) O que Píndaro parece ver muito claramente, e nos mostra de forma excepcional e brilhante, é que os diferentes conceitos com que as palavras tentam mostrar a vida, se podem traduzir num coração humano através do canto, da poesia: vencer e ser derrotado; receber o bem e ser afastado dele; fazer amor e ser destruído por ele; alcançar a honra e cair na desonra; escrever uma bela canção e não conseguir escrevê-la. São experiências da mesma ordem. A experiência humana é uma sucessão de elevações e quedas, de vitórias e derrotas. A poesia é a arte que mostra como nenhuma outra essas experiências de exaltação na vitória e de frustração na derrota, quer sejam no combate, quer sejam no amor, quer seja na honra, quer seja na tentativa de fazer aparecer o belo. E é também o entendimento do tempo como sujeito, não só dos versos, mas também da vida humana e de tudo o que acontece. Em Píndaro, o tempo identifica-se com o ser. E isto é captado exemplarmente nesta tradução de António de Castro Caeiro. Terminemos com uma das odes, uma das mais curtas do livro: XIª OLÍMPICA Para Hagesidamo, de Locros Epizefírios, vencedor em Boxe (476 a. C.) Por vezes, os homens têm uma enorme necessidade de ventos, outras vezes, das águas dos céus, essas filhas das chuvas das nuvens. Mas, se alguém alcança sucesso através do seu esforço, ecoam hinos com voz melosa, hinos que são a origem de lendas futuras e a garantia credível para grandes feitos de excelência. Este louvor, dedicado aos vencedores das Olimpíadas, é desprovido de toda a inveja. Embora a minha língua esteja preparada para tratar com cuidado destas coisas, é de um deus que provém aquele homem, que floresce com disposição hábil para lidar com as coisas. Fica a saber agora, Hagesidamo, filho de Arquéstrato, que é pela excelência do teu boxe que eu vou entoar alto uma doce melodia, um enfeite para pôr no cimo da tua coroa feita com as folhas douradas da oliveira, ao mesmo tempo que honro a estirpe dos Lócrios Epizefírios. Entrai aqui nesta procissão vitoriosa, musas, dou-vos a minha palavra como garantia de que se trata de um povo que não evita os estrangeiros e não é inexperiente no que é belo, antes altamente sábio e guerreiro, em exactas medidas. Na verdade, o que é inato não pode ser alterado, nem a raposa cor de fogo, nem os leões que rugem alto podem alterar a sua disposição.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradenis: “Não se mata, nem se salva ninguém com crenças” [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]em razão, na escrita a verdade não se encontra no mundo com essa determinação com que se encontra na actividade de matar por dinheiro. Por isso, parece-me, o juízo auto-crítico deverá ainda ser mais determinante na escrita do que na minha actividade. Falhar o alvo ou ser-se morto parece-me comprovação suficiente para a falta de talento, na minha profissão. Mas, na escrita, o que é falhar o alvo? E, obviamente, morrer, não se morre. Quer então dizer que estou ainda mais só do que você? Mais só não estás. Caso sejas um bom escritor, podes estar tão só quanto eu estou, quanto eu estive toda a minha vida, mas não é possível estar-se mais só, parece-me. Agora o que me parece evidente é que estás muito mais incerto do que eu. Muito mais abandonado à dúvida. Não tens ninguém que te possa matar, nem sabes qual é o teu alvo. Se fosse a ti, agarrava-me ainda com mais forças à única possibilidade de certeza que tens: o teu juízo auto-crítico. (pausa) Já reparaste bem na beleza desta cidade, Paulo? Não achas que esta cidade tem que ver com o jazz, Paulo? Nunca havia pensado nisso, do jazz! A beleza de Istambul só é igualável à beleza dos mitos. Mas porque é que diz que a cidade tem que ver com o jazz? Porque ela é tocada por modos gregorianos, como o jazz! A cidade é constituída por modos… Sabes música, não sabes? Sim, sim, pode continuar! Aqui é o modo dórico (e apontava), ali o modo lídio, mais além o modo mexolídio e por aí adiante. Percebes agora? A cidade não é diatónica, como a música clássica. E a magia do jazz reside nas misturas dos diversos modos numa canção, como Istambul. Como é que começou a gostar de jazz? O jazz é do meu tempo, Paulo! Comecei a gostar de jazz quando fui estudar engenharia para a América, para os EUA, na década de quarenta. Depois nunca mais deixei de ouvir jazz. O seu filho também gosta de jazz? Gosta. E também gosta de Istambul? Gosta, mas não vive cá! Vive em Londres. É um bem sucedido homem de negócios em Londres. Faz importação de legumes da Turquia para Inglaterra. Mas não estou certo de que seja só isso que ele importa? O que o leva a pensar isso? Pequenos detalhes, Paulo, pequenos detalhes. Mas não quero falar nisso. Posso até estar errado. Não quero ser injusto com o meu filho. Que idade é que ele tem? Deve ter a tua idade. Nasceu em 1966. É um ano mais novo. E a sua mulher? A minha mulher já morreu. Morreu há 12 anos. Mas já estávamos separados há muito mais tempo. Separámo-nos ainda o meu filho era criança e divorciámo-nos dois anos depois. A minha mulher era inglesa. Depois da separação voltou para Londres. O T. cresceu muito mais em Londres do que aqui. Mas vinha cá todos os anos. Ele fala correctamente turco. O seu filho sabe da sua actividade passada? A sua mulher soube? Não, nenhum dos dois! Seria o começo do fracasso, Paulo. Sempre julgaram que eu era um homem de negócios. Negócios disto e daquilo; negócios aqui e ali. O que também acabou por vir a ser verdade. O que é que o levou a contar-me a sua história? (sorri) Várias razões. O modo como nos conhecemos e a tua atitude naquele momento de crise; o facto de seres escritor; o facto de amares Istambul; o facto de vires de um país de influência mediterrânica, com um passado grandioso e um presente exíguo. Depois, restam-me poucos anos de vida e já nada vai importar. 3. A MULHER Em determinadas horas a cidade é coberta pelo som altifalante dos muezines como se algo ou alguém magoasse a cidade e esta se queixasse. Karadeniz abandona o terraço e refugia-se dentro de casa, no isolamento sonoro da casa. Recordo-me de um taxista, que um dia me conduzia a Beyoglu, e desligou o rádio no momento da oração dos muezines. No fim da oração, disse-me que não era por ser religioso, mas por respeito. “Respeito” é uma palavra de grande densidade em Istambul. Isto é um disparate completo! Isto o quê? Estas orações em árabe, que ninguém percebe. Como é que alguém pode acompanhar as orações, se não percebem nada do que está a ser dito? Devemos todos aprender árabe para rezar ou, pelo contrário, as orações deviam passar a ser em turco? A mim parece-me evidente qual a resposta a dar. Não percebo este país! Porque é que diz isso? Porque temos escrito no bilhete de identidade que somos religiosos, que somos muçulmanos, mesmo que não sejamos coisa nenhuma, como a maioria das pessoas que vivem nesta cidade. Mesmo os que dizem ser religiosos, se não são extremistas, não rezam cinco vezes ao dia e bebem regularmente bebidas alcoólicas. É possível um país ser muçulmano e ter como bebida nacional o Raki, que tem 45% de álcool? A religião muçulmana não é compatível com a vida em grandes cidades como Istambul. Provavelmente nenhuma religião é compatível com as grandes cidades. Sinto o meu bilhete de identidade como uma agressão contra mim mesmo. Ando pelo mundo com uma mentira escrita por baixo do meu nome. Percebo que o Karadeniz não tem religião, mas acredita em Deus? Acredito coisa nenhuma! Sou agnóstico, sou um homem de ciência. Não se mata, nem se salva ninguém com crenças, mas com conhecimento e acção. Porque é que o Karadeniz se separou da sua mulher? Não fui eu que me separei dela, foi ela que se separou de mim. E porquê? Porquê? Porque as pessoas se fartam muito depressa umas das outras. Porque à medida que se envelhece ficamos mais sós connosco mesmos e torna-se muito difícil viver com os outros. Principalmente se os outros esperam que nos comportemos desta e daquela maneira precisa. E estar casado é ter de ser desta ou daquela maneira. Parece então que não foi propriamente uma desilusão, quando a sua mulher decidiu deixá-lo… Claro que não! Por um lado, até foi um grande alívio. Mas não seria eu a deixá-la. Isso não conseguia fazer. O Karadeniz é um homem feliz? A felicidade é uma grande contradição. Aquilo que mais se ambiciona é ser feliz, mas na felicidade não se faz nada. Se o mundo fosse feliz, parava. Ser feliz é sair do mundo. Quer ser feliz quem se sente a mais ou a menos no mundo! No fundo, é o que todas as religiões vendem: a felicidade, sair do mundo. Claro que isso tem um preço muito elevado: Deus. É estranho que tu, sendo escritor, me perguntes pela felicidade. Não foi uma pergunta para saber se era ou não feliz, mas para saber o que pensava da felicidade. Só que não consegui perguntar-lhe se acreditava na felicidade ou o que é que pensa dela. Essas perguntas parecem-me ainda mais esdrúxulas do que a que lhe fiz. A sua mulher chegou a aprender turco? Não! Os ingleses têm muita dificuldade em aprender a língua dos outros. E ela não era excepção. Falávamos sempre em inglês. A B. nunca se sentiu bem em Istambul. Não era só pela língua, mas por tudo. Ela não gostava do cheiro da cidade, nem da comida, nem das pessoas. Sentia a falta do bife. (risos) Por conseguinte, foi por convicção que não voltou a casar. Mas ao longo dos anos não sentiu a necessidade de ter alguém junto a si? Aprendi duas coisas preciosas na profissão que tive: não se podem cometer erros; mas se por acaso cometemos um e sobrevivemos, então é imperioso aprender que não o podemos voltar a fazer. Para mim, o casamento foi um grande erro. Sou uma pessoa que não nasceu para viver com outra. Nasci para mim. Muitas vezes penso que as pessoas vivem umas com as outras por fraqueza. Devíamos viver todos sozinhos e depois encontrarmo-nos uns com os outros para o que quiséssemos, ou não nos encontrávamos. Sei que isto é impossível, mas parece-me que se vivêssemos sozinhos a vida seria melhor para todos. Dá-se mais valor à vida, só, do que acompanhado. A vida torna-se maior, mais pesada e mais densa. A vida torna-se no que ela verdadeiramente é. Mas então por que é que se casou? Casei-me por fraqueza e por um erro de cálculo. Fraqueza, porque julgava que precisava daquela mulher para viver; ninguém precisa de ninguém para viver. Erro de cálculo, porque queria ter um filho e julguei que casar-me ou viver com alguém era fundamental para que isso acontecesse. O que se passou foi que o casamento acabou por me levar o filho. O T. é muito mais filho da B. do que meu; e é muito mais inglês do que turco. Um homem se quiser ter um filho, é melhor que pague. Pague a alguém para gerá-lo consigo e carregá-lo nove meses na barriga. Depois, assim que nasça, dinheiro numa mão e a criança noutra. É o único modo de ficarmos descansados quanto à possibilidade de mais tarde alguém nos querer tirar o filho. De outro modo, é impossível. As pessoas não vivem juntas para sempre e quando se separam a mãe leva a criança consigo. E mesmo que consigam viver juntas, o filho é sempre mais filho da sua mãe do que do seu pai. (pausa prolongada) Ainda que seja verdade tudo o que tenho estado a dizer, os factos são diferentes…
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasAs mulheres em Francisco Huguenin Uhlfelder [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]as fotografias de Francisco Huguenin Uhlfelder (FHU), [refiro-me às fotografias de mulheres maduras] as mulheres aparecem diante de nós expostas ao esplendor do paradoxo humano: o lugar inalcançável da beleza. Digo: a intangibilidade da beleza surge-nos aqui mais intangível do que nunca. O que é que nos faz ficar tão angustiados face àquelas mulheres: a beleza que já foi, a beleza que ainda nos tenta ou reconhecermos que estamos vulneráveis à indagação desta manifestação omnipresente, à indagação do que é que vale a pena nesta vida? O mistério da beleza identifica-se nestas fotografias com o mistério da vida. Diante do limite extremo da beleza a desaparecer, a vida e a morte assumem uma consciência concreta, uma pedra de que não nos podemos desviar. A fotografia, mais ainda do que um texto, impede-nos de não ver o que está a acontecer na metáfora que o autor trabalha. Ainda que distraídos, ainda que não haja uma elaboração do problema que está diante dos nossos olhos, não é possível furtarmo-nos a ficar incomodados, como se estivéssemos mal sentados há muito tempo e na mesma posição. Porque exerce a beleza tanto poder sobre uma vida? Porque faz tanto frio (à vida que a contemplava e à vida que a transportava) quando a beleza se acaba ou se vislumbra o seu fim? A melancolia percorre o olhar destas mulheres que são convocadas a enfrentar a câmara. Em algumas das fotografias, consegue-se perceber muito bem o incómodo por parte de quem fica exposto, vulnerável à luz que há-de revelar esse exacto momento para sempre. É este “exacto momento” que inunda estes rostos de melancolia! Se a luz não fosse revelada, muito diferentes seriam as expressões nestes rostos. Saber antecipadamente que o “exacto momento” será revelado, será mostrado, é que introduz um arrepio existencial. Mais do que ser revelado ao mundo, o que arrepia é ser revelado ao próprio (pois o próprio toma como certo que o mundo o vê como a câmara o revela). Ninguém é como a sua revelação à luz de um “exacto momento” captado entre si e uma câmara, obviamente, mas quem se deixa fotografar sabe que vai enfrentar muito mais a imagem que os outros vêem de si, do que aquela que vê frente a um espelho. O que FHU capta na sua câmara, no fundo, é o medo. O medo de não se ser quem se é. O medo, por parte de quem é fotografado, de não se ir reconhecer na imagem que tem de si mesmo. Estas mulheres, outrora indiscutivelmente belas, sentem medo de não se encontrarem na revelação. FHU capta esse arrepio existencial, que é o medo de, ao nos olharmos na revelação de uma fotografia, ficarmos diante de um desconhecido. Pode acontecer muito pior ainda: ficarmos diante de quem nos recusamos a ser (um desconhecido que não queremos aceitar que somos). Mas também pode acontecer algo muito mais simples: apenas não querermos ser lembrados da imagem que somos (embora geralmente estes recusem enfrentar a revelação). O que leva então estas mulheres a enfrentarem a câmara, exporem-se ao medo? Para além das diferentes circunstâncias e dos diferentes dias de cada uma das mulheres fotografadas, isto é, para além da subjectividade, importa tentar perceber a objectividade da exposição à luz da câmara. Nesta procura de razões objectivas, adiante-se três: porque sabem que ainda são belas; porque querem uma confirmação de como o mundo interpreta a sua beleza; porque querem afirmar as suas próprias vidas acima da imagem que o mundo possa ter delas. A quem sabe que é bela, a câmara não capta um ar de melancolia, nem causa arrepio nenhum. Só que a situação aqui não é “sabe que é bela”, mas antes “sabe que ainda é bela”. Este “ainda” muda tudo. Quem tem consciência de um “ainda”, tem um arrepio pela existência acima. Num jantar, entre apreciadores de vinho, quando se ouve a frase “ainda há vinho”, ouvem-se sem dúvida duas coisas contraditórias: isto está bom, por enquanto, mas vai ficar mau. E, se usarmos como exemplo aqueles que cheiram cocaína, torna-se mais visível: se ao “ainda” não se juntar “há muito”, eles pensam imediatamente que as coisas estão a ficar mal. Mas o exemplo que prefiro vem do desporto. Se, num jogo de futebol, uma equipa precisa impreterivelmente de marcar um golo e um dos seus jogadores ou adeptos pergunta o tempo que falta para o jogo acabar e a resposta é “ainda faltam cinco minutos”, esse ainda não traz muita alegria (embora haja esperança, por isso se justifica responder “ainda”). “Ainda”, enquanto advérbio de tempo, põe-nos imediatamente reféns da duração, da medida da duração daquilo que o “ainda” acusa. O arrepio advém de, no fundo, a consciência nos dizer: isto está a acabar. No caso das mulheres das fotografias: a beleza está a acabar. No caso de quem fica diante das fotografias: a vida está a acabar. Se as mulheres destas fotografias sentiram um arrepio mais próximo do jantar dos apreciadores dos vinhos ou do adepto da equipa de futebol, provavelmente variou dependendo de cada uma delas e do ânimo subjectivo desse dia em frente da câmara, mas do “ainda” e do seu arrepio não se livraram. Por outro lado, a confirmação da beleza que essas mulheres possam ir buscar à revelação, por si só, mostra a situação em que se encontram as suas consciências: necessidade de confirmação. Quem está imerso numa necessidade de confirmação, do que quer que seja, está imerso em águas desconfortáveis. Necessidade de confirmação é muito diferente da necessidade de ouvir o que já se sabe, mas que se gosta de ouvir continua e repetidamente (o exemplo da mulher e da rapariga que necessita de ouvir que é bela, que necessita de ouvir o mundo repetir o que ela tão bem sabe). Necessidade de confirmação acerca de si, pois é exactamente do que se trata, só pode trazer também um valente arrepio pela existência acima. Por fim, as mulheres destas fotografias enfrentaram a câmara para enfrentar o mundo. Para mostrarem ao mundo que são maiores do que a beleza. Maiores do que a beleza que já foram (ou ainda são), maiores do que a expectativa de beleza que o mundo tem delas. Pode ser. Mas quem é que tem necessidade de se afirmar acima da beleza? Não é seguramente a mulher que nunca a teve, mas aquela que a teve ou que sente que está prestes a perdê-la. Afirmar-se diante do mundo (através da revelação) acima da beleza, só lembra a quem julga ser necessário essa afirmação. Uma mulher que nunca foi bela sabe que não precisa afirmar-se acima da beleza: ela é acima da beleza (pode-se também dar o caso de se sentir abaixo da beleza). Mas então porque é que estas mulheres se expuseram ao medo? Pela beleza. A mesma razão por que nós nos expomos à vida. Vemos agora mais claramente porque é que estas fotografias, que parecem simples retratos, nos perturbam tanto. Mesmo que a beleza desapareça do rosto, do corpo de uma mulher, nunca desaparece totalmente. Por vezes, fica apenas uma suspeita; outras vezes, um desejo de que ela ainda não tenha acabado; outras, uma memória, um modo de vida antigo que ficou incrustado nesta mulher de agora e que, tal como um vestido, não lhe assenta bem. O modo como os deserdados se comportam em relação à fortuna perdida são muitos, mas em nenhum desses modos vamos encontrar o esquecimento da fortuna perdida (da fortuna que foi interrompida). Só quem doa aquilo que herda ou pode herdar (recusando a herança) é que não tem a memória povoada por esse bem. Em verdade, a beleza perdida nunca se perde, acabamos é por deixar de vê-la. Mas ela continua lá, nestas mulheres, a fazer-se sentir sem uma luz que a traga até nós. Precisamente este deixar de se ver ou poder vir a deixar de se ver (a beleza que continua na memória) é que causa o arrepio existencial que a câmara de FHU capta exemplarmente. Como é possível não nos apaixonarmos por estas mulheres, pelos retratos que aqui mostram estas mulheres? Apaixonamo-nos pela beleza que julgamos perdida para sempre; apaixonamo-nos pela beleza que ainda resta; apaixonamo-nos pela dor que essas mulheres transportam, no receio de irem da luz às trevas; apaixonamo-nos por aquilo que fomos, por aquilo que somos ou por aquilo que seremos, consoante o caso, a idade e a sensibilidade de cada um dos observadores, ao reconhecermos a nossa vida na vida retratada dos nossos semelhantes, na vida retratada destas mulheres. Mas a paixão cai ainda mais longe: neste trabalho de FHU, apaixonamo-nos pela existência. Apaixonamo-nos pelo humano, comprimido pela totalidade do tempo de uma vida. Porque, como já vimos, este “exacto momento” só é exacto porque, para além dele mesmo, arremessa ainda a nossa compreensão para um antes e um depois do momento representado. Mas frente a estas fotografias, a nossa compreensão vai ainda mais longe: frente às retratadas, neste trabalho do fotógrafo, a compreensão arremessa-nos contra nós mesmos.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradenis: “Na minha actividade não há meio-termo” [dropcap style≠’circle’](c[/dropcap]ontinuação) E quem é que o quis matar à bomba? A CIA! Foi depois de um trabalho que fiz para eles. Depois quiseram acabar de vez com os rastos que poderiam levar até eles. Encomendaram-me um trabalho fazendo-se passar por uma corporação financeira da Suíça. Aliás, fizeram a encomenda precisamente através dessa corporação. O plano era simples: davam-me todos os dados e só tinham de esperar que eu cumprisse o contrato: que eu cumprisse ir morrer. E como é que o Boris Solomatin soube de tudo isso e o avisou? A KGB sabia sempre dos movimentos da CIA, e vice-versa. O que a CIA não estava à espera é que o chefe da KGB tivesse escrúpulos, que me avisasse, que tomasse partido pela minha vida. Pois não tenho dúvidas de que eles sabiam ter sido eu a destruir as informações e a eliminar o dissidente soviético em Burgas! Só poderia ter sido eu! Só poderia ter sido um profissional turco, que passasse a fronteira sem levantar suspeita. Mas eles não sabiam duas coisas: que esse trabalho tinha sido uma encomenda pessoal do Boris, e não da KGB, uma espécie de favor pessoal, e que por isso mesmo ele me respeitava. E não se fica de braços cruzados a ver morrer um homem que se respeita. O seu profissionalismo acabou por lhe salvar a vida… É a única coisa que nos pode salvar a vida, Paulo! Ser-se o mais profissional possível na actividade que se faz. Não é assim também na escrita? Não estou certo disso!… Embora se passe o tempo todo a dizer o contrário, o talento é fundamental na escrita. E julgas que para se viver de matar não é preciso igualmente talento? É sempre preciso talento para se ser profissional! E, quando digo que nos salva, digo-o porque é a única certeza que se tem na vida: sabemos fazer bem aquilo que fazemos, independentemente de tudo o resto. E como é que sabemos isso? Como é que sabemos que fazemos bem aquilo que fazemos, que fazemos bem a nossa actividade profissional? Porque perguntamos sempre! Para além do talento que nos impele a fazer, a fazer continuamente melhor, há a contínua interrogação: será que não estou a cometer nenhum erro? Será que não seria melhor fazê-lo de outra maneira? Será que não devia parar? Enquanto continuares a exercer a tua actividade e a interrogares-te pela tua capacidade diante dela, poderás dizer que fazes bem aquilo que fazes. Mas essa interrogação pode muito bem ser uma interrogação retórica! Um mau assassino profissional pode ser assaltado pela pergunta: estarei a fazer bem; não deveria fazer de outra maneira? Ele pode fazer estas perguntas e ser efectivamente mau profissional, por isso essa pergunta acaba por ser uma pergunta que cabe a todos quantos fazem e não a quem faz bem. Por outro lado, bastava saber-se disto para se ser bom, isto é, quem fosse mau bastava saber que a pergunta o salvava e passava a ser bom. Isto parece-me muito retórico, não concorda? Não sei, Paulo, porque nunca morri. E nunca cheguei a conhecer aqueles que tinham a mesma profissão que eu e morreram. Sempre tomei por certo que o sentido crítico apurado era um efeito do talento. Mas talvez não seja assim. Talvez tu estejas certo e eu esteja errado. Certo, certo, é que não morri. E desejo o mesmo para ti. Desejo que não morras na escrita, como eu não morri na morte dos outros. Desejo, portanto, que sejas conhecido inversamente ao meu desconhecimento. Aquilo que faz o teu sucesso, seria o meu fracasso, como já sabes, mas na minha actividade não há meio-termo, como parece existir na tua. Não há um homem meio-vivo ou meio-morto, por outro lado parece-me que é possível ser-se meio-escritor. Tornar-me conhecido era morrer. Mas um escritor pode não ser muito conhecido e ser um bom escritor. Pode também ser muito conhecido e ser um bom escritor. E pode ser pouco conhecido e mau e muito conhecido e igualmente mau. O que pretendo dizer, Paulo, é que na minha actividade a verdade vem logo ao de cima; ou, melhor, a verdade nunca vem ao de cima, pois aquele que é bom nunca se deixa reconhecer.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA grande invenção [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iego Moraes, nascido em 1982 em Manaus (onde ainda vive), publicou 4 livros, dois em Portugal e dois no Brasil: A fotografia do meu antigo amor dançando tango (2012), A solidão é um deus bêbado dando ré num trator (2013), ambos pela editora Barteblee; Um bar fecha dentro da gente (2015) e Dentro do meu peito você pode cultivar a solidão o ano inteiro (2017) ambos pela Douda Correria. E é este último que será pretexto para falarmos do autor. O livro divide-se em duas partes: contos e poemas. Mas vamos tratar como se tudo fosse poesia. Porque talvez tudo seja poesia. Aliás, é o próprio autor que, no texto que faz parte dos contos, ao descrever uma curta história, termina deste modo o seu conto: “Ela apertou a minha mão e fez um pedido: ‘já que você não quer ficar comigo, promete uma coisa? Escreve um poema ou um conto bem bonito para mim?’ ela entrou no táxi. Deu um tchauzinho triste e respondi para meus demónios mais líricos: ‘já virou poesia’.” Aquilo que virou poesia foi o conto. O filósofo colombiano, Danilo Cruz Vélez, escreve em El Mistério del Languaje (Universidad de Los Andes, 2015), que Paul Valery disse que “a poesia é o paraíso da linguagem”, provavelmente porque ela tem à sua disposição todas as possibilidades, à imagem do que acontecia com Adão antes da queda. Pois, digo eu, antes da queda tudo era possível, antes de nos cair em cima o que temos de ser, aquilo que temos de fazer. É quando aquela célebre pergunta da infância “o que queremos ser quando formos grandes?” se torna uma resposta sem volta, que deixamos o paraíso. E a poesia é antes disso. A poesia é o que acontece antes de sermos alguma coisa, antes de fecharmos as possibilidades numa definição que carregamos ao longo da vida e que iremos responder sempre que nos perguntarem “o que é que faz na vida?”. Mesmo quando já se é alguma coisa, e não possibilidade pura, liberdade antes da liberdade – pois esta define-se precisamente por ser sempre o ter de escolher –, a poesia quando aparece é uma suspensão naquilo que se é. Por conseguinte, a palavra que talvez melhor dê a mão à palavra poesia seja “invenção”. A poesia inventa tudo. E, como Fernando Pessoa viu muito bem, inventa até o sentimento que não tem. A poesia só não inventa a linguagem, o resto inventa tudo. A poesia é a expressão de linguagem que mais inventa dentro da própria linguagem. Não se trata somente da invenção de conteúdos, mas também da invenção da gramática. Aqui e ali, inventa também novas palavras. A poesia chega mesmo a inventar-se a si própria, a inventar aquilo que é. Chega a ser prosa, a ser diálogo, teatro, aforismo; chega mesmo a ser o que não é, porque também há poesia que, embora pareça ser, não é. O paraíso – não ser nada ainda e poder vir a ser tudo – não comporta definições. A poesia viaja facilmente entre a metafísica e o mercado da ribeira (neste caso, entre a metafísica e os arrabaldes de Manaus), entre a ironia e a edificação religiosa. O paraíso não tem tempo. É invenção pura, ainda que tenha lá um homem e uma mulher e isso esteja condenado a, mais cedo ou mais tarde, não dar certo. Inventar, na poesia, não é escrever o que não existe, o que nunca foi, mas o que nos sufoca de tal modo que, mesmo que não seja a nós que nos acontece, acaba por acontecer cá dentro, num espaço sem tempo, no paraíso que todos temos, que todos somos quando inventamos. E esta noção de invenção é, parece-me, uma das condições fundamentais na escrita de Moraes. Neste poeta, a vida e a escrita confundem-se propositadamente, isto é, o autor deixa o leitor próximo da sua vida, devido a um tom ostensivamente confessional, para ao mesmo tempo inventar melhor aquilo que é, aquilo que foi e aquilo que será. Ele mesmo escreve no conto “Buraco”: “Não gosto de escrever coisas verdadeiras. Sinto-me jornalista. Escritor é escritor que inventa coisas.” Os factos, como sendo da sua vida ou do que ele descreve como sendo da vida dos outros, importam na medida em que são um jogo intencional, como no texto “11 de Setembro”, em que o narrador fala da Dona Lígia, de quando ele era mais jovem e do reencontro de ambos 15 anos depois. Mas muitos outros exemplos poderiam ser aqui citados. O que mais importa nesta escrita, de Diego Moraes, não é a possibilidade de rastrear uma biografia, mas a de deixar-se levar pela invenção. A de podermos ser o que não somos, porque, na realidade, ninguém é o que é. Acima de tudo é isto que o autor nos diz, ao ir-se desfazendo página a página. E esta condição de deslocamento de cada um em relação a si próprio – ou porque anos atrás deixou de fazer o que queria ter feito, ou porque mesmo agora não é aquilo que julga ser, ou porque falha continuamente no que tinha prometido a si mesmo e aos outros fazer – é o que mais aparece a cada esquina da escrita de Moraes. A humanidade, descrita ao longo das páginas, bem poderia definir-se pela última frase do conto “11 de Setembro”: “Um cheiro meio brega de perfume barato e esperança.” Porque em comparação com um vida humana, com o que uma vida humana deveria ser, com o património de sonhos que carrega, tudo é barato. Nada é tão luxuoso, tão caro como uma vida humana. É este ensinamento que percorre a escrita de Moraes. E o maior problema não é a vida acabar-se, a vida de cada um perder-se, mas que a alegria se acabe e continuemos a viver; que a amizade acabe e continuemos a viver, que o amor acabe e continuemos a viver, que as madrugadas belas de tudo parecer ser possível acabem e continuemos a viver, que o querer bem a alguém se acabe. E que melhor modo de enunciar tudo isto, que uma grande invenção, como se, todos nós de cada vez que lemos, ainda cheirássemos a paraíso? Terminemos com um poema de Diego Moraes, 14, que diz melhor tudo isto, como só a beleza pode fazê-lo: Sinto muito ter invadido sua casa Estava bêbado e amanhecido e com aquela camiseta preta da banda Joy Division que odeia tanto Desespero Saudade Sinto muito por ter comido sua melhor amiga e estragado o dia dos namorados no rio de janeiro Sinto muito por ter quebrado os dentes e abandoná-la naquele hotel do centro Aqui dentro está tão frio Não para de ventar e uivar teu nome Sinto muito por não ter comprado os azulejos e a pia do banheiro Por ter gastado tudo com drogas e cancelado o sonho de morarmos juntos nos fundos da casa da minha mãe Às vezes acordo e choro pensando como poderia ter sido bom Sinto muito por ter gozado dentro naquele sábado que dormimos abraçados vendo um filme do van damme e você disse “um filho agora foderia tudo, di” E sua menstruação atrasou como o brilho da lua Juro que queria ter um filho contigo Um filho negro com nome bíblico Que jogasse futebol e fosse artilheiro do Vasco da Gama Sinto muito por não ter dinheiro para levá-la para Florianópolis Cidade que só conhece por cartão-postal Sinto muito por teu pai ter me visto com o nariz sujo de pó no estofado da sala e não ter falado nada quando ele disse que o amor não enche barriga Devia ter dito que o amor escreveu os melhores livros e que ainda existe mundo por causa da brasa que nos esquenta por dentro Sinto muito por não ter comprado “crime e castigo” na saraiva e empurrado sua cabeça por ciúmes Aqui dentro está tão frio As ruas de Manaus parecem de Moscou Agora deixo mensagens no teu Samsung como se fosse Nostradamus prevendo o pior A tua indiferença seca os tumores no fígado do mendigo do outro lado da rua e não tem poema que console a dor de tê-la trocado por cerveja e cocaína Sinto muito não ser o melhor pra você e seus filhos Ele deve ser um homem digno que acorda cedo e te leva para o trabalho falando sobre jurisprudência e direitos do consumidor O direito não pesa na balança O que pesa é teu rancor por eu não ser o que sonhavas Minhas promessas não cumpridas Eu nunca poderia te fazer feliz com a minha literatura suja e meu sonho de vencer o mundo com lirismo Sinto muito por não ter emagrecido e me matriculado no CCAA Nunca quis falar inglês A minha língua é morta como as cartas que a tua empregada jogou fora Aqui dentro está tão frio Meu peito parece a Antártida e tudo que mais queria era que você botasse um par de patins e patinasse em mim sorrindo como se fosse uma criança no natal.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradeniz (continuação): “Cheguei a ter de matar para não morrer” 2. O terraço [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] luz ao fim da tarde. O palácio Topkapi, a mesquita Suleyman e Hagia Sofia do outro lado do Corno de Ouro e, muito mais perto de nós, a torre de Gálata: tudo isto se avistava do enorme terraço da casa de Karadeniz. Podia-se ainda ver os inícios do mar de Mármara e do Bósforo. Mais do que uma paisagem esmagadora, era um lugar estratégico por excelência. Estratégico desde os remotos tempos do início desta cidade, então Bizantina. O som que se podia ouvir em todo o terraço era o de John Coltrane e a cor do líquido no copo que trazia na mão denunciava o seu whisky preferido: Lagavulin 21 anos; uma cor e um sabor tão raros, somente igualados pela raridade com que se encontra esse precioso líquido. Isto não é uma casa, K., é o ponto da cidade mais estratégico a seguir à torre de Gálata! Este observatório teve a ver com a sua antiga profissão? De facto, já tenho esta casa desde os tempos em que trabalhava! Comprei-a em 1964… Mas comprei-a realmente pela vista fantástica e não pela localização estratégica. Aliás, a estratégia foi tê-la comprado (risos). Alguma vez o tentaram matar? Várias vezes! Não matei só em trabalho, cheguei a ter de matar para não morrer. Embora as tentativas que fizeram para me matar tivessem que ver com a minha profissão. Tentaram matá-lo como e onde? Sempre no estrangeiro! Nunca se aventuravam a entrar na Turquia, nesses tempos. O país era muito militarizado e controlava muitíssimo bem as suas fronteiras. E também não havia necessidade de vir aqui, porque quando me tentavam matar sabiam qual o trabalho e onde o ia executar. Por isso, era mais fácil fazê-lo aí. Tentaram umas duas ou três vezes nos hotéis onde estava, a tiro, e uma vez com uma bomba no local onde previamente seria suposto eu estar para atirar no alvo a eliminar. A da bomba, só não me matou, porque alguém da KGB me informou a tempo. Um amigo de profissão? Antes de mais, Paulo, nesta profissão não se faz amigos, só inimigos. No fundo, não é muito diferente do que é na vida em geral, quando se é bom no que se faz. Não se faz amigos, mas ganha-se respeito. E isso sim, o Boris Solomatin já tinha por mim muito respeito quando interferiu para sempre na minha vida. Estamos a falar de quem? Tu não sabes mesmo nada, pois não? (risos) Estamos a falar do extraordinário Boris Solomatin. Um senhor da minha idade e que se reformou em 1991. Foi chefe da KGB até 1988. Foi militar na Segunda Guerra Mundial, voluntário e muito jovem, ainda não tinha 18 anos, segundo consta, mas depois nos Serviços de Inteligência nunca chegou a executar trabalhos de eliminação. Nunca foi um operacional. Ainda no meu tempo, chegou a chefe da KGB, com quarenta e poucos anos, um feito inigualável. Impressionante, não é? Sem dúvida! Como é que se conheceram e porque é que ele lhe salvou a vida? Em finais de 50, houve um espião cujo nome não me lembro que tentou escapar para o ocidente com valiosíssimas informações dos sistemas de segurança militar soviético. O objectivo dele era chegar a contactar com as forças da NATO, estacionárias no Mar Negro, nas águas territoriais turcas, de modo a receber uma grande soma de dinheiro e uma identidade nova. Em suma, mudar de vida, privilegiadamente, à custa do que conseguira saber na KGB. Esse senhor dissidente encontrava-se numa casa perto da cidade de Burgas, na Bulgária. Uma cidade do Mar Negro, muito perto da fronteira turca. Nesse tempo, ficava a uma hora e meia de carro da fronteira, hoje não deve ser mais de meia-hora. Quando Boris Solomatin soube da traição, já não havia tempo de lá chegar, senão pela Turquia. Não podia arriscar nos Serviços de Inteligência da Bulgária, pois não sabia até que ponto eles podiam ou não estar envolvidos ou quem é que estava envolvido. Havia apenas uma hipótese de destruição das informações e de eliminação do dissidente: alguém que viesse directamente da Turquia, sem levantar suspeita, isto é, um turco; simultaneamente, um profissional, que estivesse interessado no dinheiro e em mais nada. Como acabei por executar o trabalho na perfeição, não deixando sequer rastos de ter sido a KGB e destruindo tudo, pegando fogo à casa onde o homem se encontrava, ficou até a pensar-se que poderia ter sido a CIA, Solomatin ficou-me bastante grato. Em 1964, quando tudo isto se passou, ele já era chefe da KGB. Ele admirava dois tipos de pessoas: as que morriam pelo seu país e as que morriam por dinheiro; no fundo, ele admirava quem dizia a verdade e morria pelo que acreditava. Chegou a fazer mais algum trabalho para ele? Vamos a ver uma coisa: este trabalho que fiz foi um trabalho pessoal, embora tenha tido reflexos em toda a defesa soviética, foi um trabalho para o Solomatin; um trabalho para ele. Mas antes já havia feito um trabalho para a KGB. Depois, acabou! Como já te disse, eles não repetem os free lancers, pelo menos nesse tempo da guerra-fria não repetiam. O Solomatin acabou por me contactar porque não tinha outra saída, não havia tempo para mais nada. (continua)
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasLeitta para a Universidade dos Andes – acerca do riso e do livro La Enfermidad Feliz [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Do Sentimento Trágico da Vida, Miguel de Unamumo escreve, logo nas primeiras páginas: “O homem, dizem, é um animal racional. Não sei porque não se diz que é um animal afectivo ou sentimental. Pois talvez o que nos diference dos outros animais seja muito mais o sentimento do que a razão. Já vi mais vezes um gato a raciocinar do que a rir ou a chorar. Talvez chore ou ria para dentro, mas para dentro talvez também o caranguejo resolva equações de segundo grau.” Estamos perante um definição de humano através do sentimento. Mas não é de um sentimento ou de sentimentos quaisquer que Unamuno fala. Pois ele não teria dificuldade em admitir que os animais sofrem ou sentem alguma espécie de contentamento. Os animais têm sentimentos, sem dúvida, mas aquilo que define o humano, segundo Unamuno, são as sensações ou sentimentos limite: o riso e o choro. Independentemente, e é aqui o que menos importa, da definição de humano, tentemos reflectir acerca do riso. Talvez o choro não seja tão difícil de definir, pois embora por vezes se possa rir de alegria ou de emoção por algo ou por alguém, a maioria das vezes o choro tem origem no sofrimento mais intenso, quer seja da perda de alguém até às nossas próprias dores físicas. E, por conseguinte, talvez também não nos seja difícil atribuir choro, ou alguma forma de choro, a alguns animais em sofrimento intenso. Mas o riso é mais difícil de entender e de explicar. Dito de outro modo: o choro tem quase sempre uma causa, o riso não. Em qualquer parte do planeta, um homem com uma bala no estômago chora, mas não podemos dizer que em qualquer parte do planeta nos rimos de uma anedota ou de um comentário engraçado. Luigi Pirandello, no seu ensaio Humorismo, escreve: “(…) é inegável que cada povo tem o seu humor; o erro começa quando este humor, naturalmente mutável em suas manifestações segundo os momentos e os ambientes, é considerado como humorismo (…)” A dor é universal, ou tende à universalidade, o riso não. Aliás, qualquer um de nós sabe bem que as relações pessoais ganham muito ao desenvolverem a sua própria linguagem de riso. As chamadas “private jokes” são do que melhor acontece entre os humanos, aquilo que mais liga os humanos. Isso e a partilha de sacrifícios. E uma vez mais temos como motor das ligações humanas o riso e o choro. Mas o riso, embora possa ser universal – no sentido em que todos se riem – tende para o particular. Muita amizade nasce no riso, na partilha do riso. Por outro lado, contrariamente ao choro, não sabemos de onde nasce o riso. De onde vem essa nossa necessidade de rir. E reparem noutra coisa interessante: raramente nos rimos sozinhos; as vezes em que o fazemos, relembramos episódios passados, vemos filmes ou peças de teatro ou assistimos a um acontecimento; e em todos estes exemplos há sempre o outro (já o filosofo francês, Henri Bergson, nos alertara para a necessidade de eco do riso, o riso é sempre o riso de um grupo). No choro, não. A maioria das vezes choramos sozinhos. Aliás, quantas vezes não nos afastamos dos outros, precisamente para chorar, para chorarmos sozinhos. A relação entre riso e choro é estranha, e não poucas vezes nos leva a ficar diante do contraditório. Por exemplo, choramos sós, rimo-nos acompanhados, mas há mais metafísica no riso do que no choro. E é aqui que iremos lembrar Henri Bergson, que contrariamente ao filósofo espanhol, com que iniciámos esta leitura, diz que o riso é inteligência pura. Para o filósofo francês, para que o riso aconteça teríamos que anestesiar momentaneamente o coração. Para se rir há que não ter coração, por instantes, apenas inteligência (ainda que haja risos que nasçam sem qualquer migalha de inteligência, como se sabe). Independentemente de concordarmos ou discordarmos desta posição de corte entre riso e emoção, por parte de Bergson, o que parece não causar dúvidas é a ligação necessária entre inteligência e riso. E não se veja aqui em inteligência uma medida do uso do cérebro, mas tão somente a capacidade de separar o que se conta (ou que assistimos) da nossa vida. A inteligência, num primeiro momento, separa. E para rir temos de separar a anedota da nossa vida. Quando nos rimos de alguém bêbado, estamos a conseguir separar o que está acontecer da vida. Não só da minha vida, como se isso não me acontecesse, mas também como se quem faz aquelas figuras não fosse uma pessoa, mas apenas um personagem. A empatia acaba com o riso. Se, ao nos rirmos de alguém que está bêbado e faz figuras caricatas, nos lembrarmos que podíamos ser nós, ou que essa pessoa tem filhos e mulher e que eles sofreriam se o vissem assim, paramos de rir. Ainda no seu ensaio Humorismo, Luigi Pirandello escreve: “Vejo uma velha senhora, com os cabelos retintos, untados não se sabe de qual pomada horrível, e depois toda ela torpemente pintada e vestida de roupas juvenis. Ponho-me a rir. Advirto que aquela velha senhora é o contrário do que uma velha e respeitável senhora deveria ser. Assim posso, à primeira vista e superficialmente, deter-me nessa impressão cómica. O cómico é precisamente um advertimento do contrário. Mas se agora em mim intervém a reflexão e me sugere que aquela velha senhora não sente nenhum prazer em vestir-se como um papagaio, mas que talvez sofra por isso e o faz somente porque se engana piamente e pensa que, assim vestida, escondendo assim as rugas e as cãs, consegue reter o amor do marido, muito mais jovem do que ela, eis que já não posso mais rir disso como antes, porque precisamente a reflexão, trabalhando dentro de mim, me leva a ultrapassar aquela primeira advertência, ou antes, a entrar mais em seu interior: daquele primeiro advertimento do contrário ela me fez passar a esse sentimento do contrário. E aqui está toda a diferença entre cómico e humorístico.” Contrariamente ao que Unamuno escreveu, o riso realmente não é sentimento. O riso é muito mais uma reacção contra o sentimento do que um sentimento em si. O riso nasce da nossa consciência de sentirmos demasiado. O riso nasce da nossa necessidade de esquecimento da vida, ainda que através do humor se possa alcançar uma consciência ainda mais elevada da consciência da nossa situação no mundo. Richter escreveu que aquilo que leva ao riso é “a melancolia de um espírito superior que chega até a divertir-se com aquilo que o entristece.” Como, por exemplo, naquela célebre tira de Quino, em que um homem está perdido no deserto, diante de uma placa que diz: “Agora, você está precisamente aqui.” [“En este momento usted se encuentra exactamente aquí”.] Imediatamente nos rimos. Mas se pensarmos que essa é a nossa situação na vida, o riso vai esmorecendo, como no exemplo dado atrás por Pirandello. Pois acerca do nossa vida, que sabemos nós, além de que “agora, estamos exactamente aqui”? E é agora, com a ajuda de Quino, que passamos a falar do absurdo. E de como o absurdo está inequivocamente ligado ao riso. No livro Sobre o Riso e a Loucura, do célebre médico da Grécia Antiga, é narrada uma suposta viagem de Hipócrates à cidade de Abdera para curar o filósofo Demócrito, que, rindo de tudo e de todos, é considerado louco pela população da cidade. Demócrito, no diálogo com Hipócrates, zomba da condição humana de seu tempo, especialmente da ganância e dos grandes vícios. Condição humana que continua igual, passados quase três milénios. O que estava em causa no riso de Demócrito era o sem sentido do mundo e da existência. Esse sem sentido levava-o a viver com o único propósito de estar bem disposto. Tudo o fazia rir, porque ele sabia que tudo era nada, que tudo conduzia a nada. Para Demócrito, a existência é um absurdo. E absurdo, como a palavra mesmo diz em latim, ab surdo, é algo que não se consegue escutar. É algo que está para além do entendimento, algo que não faz sentido. Mas o absurdo não é a existência, é antes que ela exista e nós não saibamos nada acerca dela, a não ser que se nasce e que se morre. Da existência, sabemos o mesmo que o homem perdido no deserto sabe, na tira do Quino: agora, estamos precisamente aqui. Este estar vivo e não saber nem porquê e nem para quê é que fez nascer o riso. O riso é filho da ignorância e do saber. Da ignorância, porque nós realmente não sabemos o que se passa; do saber, porque é a tomada de consciência desse não saber. E é daqui que nasce o riso. Chegados aqui, entramos na minha novela. A Doença da Felicidade é uma alegoria acerca de um dos conceitos que menos sabemos e de que mais falamos: a felicidade. Assim, e para levar a ironia, porque é de ironia que se trata, a ironia é o veículo que transporta as palavras desta novela, ao extremo, fiz da felicidade um objecto de estudo das chamadas ciências exactas, criando inclusivamente toda uma história dessa ciência, a eudaimonologia. Eudaimonologia, ciência que na novela estuda a felicidade, deriva da palavra Grega Antiga “eudaimonia”, que quer dizer, um “bom deus”, “um bom daimon”, isto é, que alguém tinha um bom deus a interceder por ele, ou simplesmente ele tinha “felicidade”. Neste contexto, crio também a palavra “eudaimonina”, que deriva de “eudaimonia” e da partícula “ina”, que no Grego Antigo é indicativo de toxicidade, como por exemplo nas palavras “caféina”, “cocaína”, “heroína” e “nicotina”. E a eudaimonina é a substância responsável por querer ser feliz ou ser feliz. E querer ser feliz é muito pior do que ser feliz, como se pode ver no livro. Toda esta alegoria pretende alertar-nos para o absurdo da existência e para o absurdo de se traçar uma vida segundo valores que não sabemos de todo em todo o que são, o que querem dizer. Que quer dizer ser feliz? O que é ser feliz? São muitas as tentativas filosóficas ao longo do tempo, de dizer o que é a felicidade, e algumas contraditórias. E são ainda mais as tentativas burlescas, teorias de trazer por casa e pelas mesas de café, que só a rir, se pode falar disso. Só com ironia se pode falar disso. A Doença da Felicidade, além de ser um livro irónico, é um livro que nasce da noção de que o absurdo é estar vivo, não saber nada sobre a existência, ainda que se saiba como fazer uma jangada para ir à Lua, e estar continuamente a viver segundo mandamentos, regras que são tão válidas como esta, que o narrador de A Doença da Felicidade escreve às páginas 51-2: “CANTAR PODER PREJUDICIAL? [a quem contraiu a doença] A actividade de cantar deve ser administrada com muito cuidado. E, tal como com fazer amor, muda de caso para caso. Se uma pessoa canta muito mal, cantar não prejudica o tratamento. Se canta muito bem, tal pode ser um entrave ao tratamento. No fundo, o mesmo se aplica para qualquer actividade artística. De modo geral, meu pai proibia aos seus pacientes envolverem-se nessas actividades durante o tratamento.” E eu, para terminar, diria: se está vivo, evite seguir regras, pois elas foram feitas por alguém que muito provavelmente não sabe mais acerca da existência do que você.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradeniz | “A democracia também chegou ao assassínio por encomenda!” (continuação) Não sei como é que se consegue viver bem consigo mesmo depois de se fazer mal a alguém?! Eu arrasto a culpa por males que fiz, e nada que se compare com isso… Tu não vives bem contigo, não é pelo mal que fizeste ou deixaste de fazer, Paulo! Tu não vives bem contigo, porque é essa a tua natureza. Tu e as pessoas como tu vivem num mundo paralelo: um mundo onde se julgam responsáveis pelo que acontece. E não somos todos responsáveis pelo que acontece? Não! O facto de eu ter sido um assassino profissional, aconteceu apenas porque era uma possibilidade de profissão como outra qualquer. Se ninguém pagasse tanto dinheiro pelos meus serviços, eu não teria tido a vida que tive. É o mesmo que hoje se passa com os cantores pop, as top model e os jogadores de futebol. Ainda muito antes das crianças saberem quem são, já querem vir a ser cantores ou jogadores de futebol, porque ganham muito dinheiro e são reconhecidos por toda a gente. Porque é que nunca se falou de si, como por exemplo se falou do Chacal? Muito simplesmente porque nunca cometi um erro sequer! Nunca cheguei a ser procurado, porque nunca cheguei a pisar os calos de quem não devia. O mesmo já não se pode dizer do Chacal, como sabemos. O problema dele, e que acabou por derrotá-lo, era a sua vaidade. Quando se anda nesta profissão, tem de se ter a consciência de que o mundo não pode saber de nós. Era como se tu escrevesses um livro magnífico, mas que ninguém o fosse ler; ou então um grande cantor que nunca quisesse cantar para ninguém. É portanto uma profissão ao contrário deste nosso tempo, em que toda a gente quer ser reconhecida pelo mundo, nem que seja por cantar pior do que todos os outros! Exactamente! (risos) Nessa profissão em que se tem necessariamente de ser o melhor e de não se ser reconhecido (e quanto melhor, menos reconhecido), o Karadeniz conheceu ou soube de alguns colegas seus, cujos nomes não tenham chegado a público, ao contrário do Chacal? Claro! O melhor de todos nós era provavelmente o Jesuíta! Um belga que havia passado pela Legião Estrangeira, na sua juventude, e que falava na perfeição imensas línguas. Teve, tal como eu, uma educação privilegiada. E há que ver uma coisa, Paulo: o Chacal não era um assassino profissional, mas um terrorista, e nunca foi meu contemporâneo. Abandonei a actividade em meados dos anos 60 e ele começou no início ou em meados de 70. De qualquer modo, repito, o Chacal era um terrorista, não um profissional. Mas então qual é realmente a diferença? O que é que faz com que o Chacal tenha sido um terrorista e não um assassino profissional?! Já te disse que o terrorista mata indiscriminadamente e, também, muitas das vezes por convicções, sejam elas políticas, religiosas ou nacionalistas. O assassino profissional mata apenas aquele por que foi pago, embora as coisas hoje já estejam muito diferentes do meu tempo! Diferentes, como? Para além de toda a tecnologia que existe e que não existia no meu tempo, hoje também há muita gente a matar por cinco tostões. Hoje já qualquer um é assassino profissional, tem trabalhos encomendados por dá cá aquela palha! A democracia também chegou ao assassínio por encomenda! Toda a gente, hoje, à menor dificuldade com alguém, paga para que se mate. Dantes não era assim, só se mandava matar gente importante! E isto faz com que seja muito difícil distinguir entre terroristas, arruaceiros e assassinos profissionais. Mas continua a haver os verdadeiros assassinos profissionais, como o Karadeniz? Julgo que sim! Até porque a queda do comunismo pôs muita gente especializada no desemprego, e nem todos se devem ter dedicado aos tráficos e às máfias. Por outro lado, continua a haver pessoas importantes que têm de ser mortas, sem que se corra o menor risco de ficar implicado, e não tenhamos quaisquer dúvidas que estes trabalhos só podem ser levados a cabo por quem saiba ser eficiente e discreto. (continua)
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasApresentação de Autismo (2ª Edição) [dropcap style=’circle’]V[/dropcap]ou começar a apresentação deste livro por um filme recente, de Tom Ford, Animais Nocturnos. Numa cena do filme, em que o casal ainda está junto, a mulher diz ao homem, acerca da sua escrita: “tu estás sempre a escrever sobre ti” e di-lo de modo depreciativo, mostrando-lhe que isso é entediante, com pouco interesse. Ao que ele contrapõe, deste modo: “todos os escritores só escrevem sobre si mesmos.” Anos mais tarde, muito depois dela ter terminado a relação com ele, o homem faz-lhe chegar um livro onde descreve o modo como ele viu a separação deles, mas pondo a cena num lugar e numa circunstância completamente distinta. Aquilo que o homem finalmente entendeu, e por isso escreveu aquele livro que agora tocou tanto a sua ex-mulher, é que um escritor não escreve o que lhe acontece; um escritor escreve com o que lhe acontece, o que faz toda a diferença. Esta introdução para dizer que Autismo de Valério Romão é as duas coisas. Ele escreve com o que lhe aconteceu, sem dúvida, mas também escreve o que lhe aconteceu. E é nesta dobra que o incómodo da leitura se instala. Ele é o livro que não é. Dito de outro modo: o livro é ele amplificado. Antes de mais, amplificado pela arte – e toda a arte é mais do que o indivíduo, é uma amplificação deste –, e também amplificado pelo que não aconteceu fora dele, mas dentro dele. Amplificado, não pelos factos, mas pela vida, isto é, amplificado pelo que sentiu e ninguém viu, pelo que pensou e não disse, pelo que imaginou e nunca manchou a realidade e ainda pelo que apareceu no mundo apenas literariamente. Por isso, podemos dizer que ele é o livro que não é. A pergunta acerca da veracidade da narrativa é secundária. O que é que é verdade e o que é que é mentira, não tem qualquer importância para apreciação de uma obra literária ou para a fruição de um romance. Pois, onde há verdade, os factos recolhem-se com vergonha. Entenda-se verdade, aqui, não como qualquer ultimato religioso ou científico, mas como profundo, humano, entenda-se verdade como aquilo que é património de todos aqueles que carregam as suas próprias vidas ao longo dos dias. Por isso, neste livro, Autismo, o narrador sou eu. O narrador é cada um dos seus leitores. Evidentemente, isto acontece com quase todos os livros em que as narrativas são na primeira pessoa, como é o caso, mas principalmente acontece porque o tom do livro é trágico. E a tragédia, sabemo-lo bem, é a verdade, isto é, é o que é de todos. No fim do dia podemos não ter uma cama onde nos deitar, mas temos tragédia. Podemos não ter o que comer, mas temos tragédia. Podemos até ter tudo, pois a tragédia arranja sempre modo de aparecer: ou por um filho que se mata, ou que morre precisamente ao volante do bólide que lhe oferecemos, ou o próprio escuta a notícia de que tem uma doença incurável, e não consegue trocar o tudo que tem por dias de vida. Isto é a tragédia. Os negros do Mississípi do século passado diziam: this is the blues. Voltando ao livro que aqui nos reúne, acompanhamos as desventuras do narrador, através da descoberta do autismo do filho, do fim do casamento e da ruptura com o pai. Caímos do narrador abaixo até ao medo de aquilo sermos nós ou de ser algo que nos possa acontecer, ou eventualmente que já nos aconteceu e só agora nos damos conta, que é o modo de ficar a saber mais traiçoeiro que existe. E isto, que acontece ao longo das páginas de Autismo, é a passada larga da tragédia grega. Não é uma tragédia, porque não há herói, mas o tema é sem dúvida o da queda. O tema é sem dúvida este: estamos vivos, logo isto vai correr mal. Pois se não fosse para correr mal não se escrevia, como os gregos antes de nós também já sabiam. Há escritores que têm a capacidade de nos mostrar exteriores de um modo interior. Quando Valério Romão descreve a sala de espera num hospital ou um consultório médico, estes não ficam apenas palpáveis, concretos diante de nós, eles passam a ser partes de nós, recordações nossas. Hoje, posso dizê-lo já com dias de prova, quando recordo o meu tempo de espera nesses espaços, recordo-me das descrições do Valério no Autismo. Um grande escritor diz-se de muitas maneiras, mas a mais cruel de todas é esta: fazer das suas memórias trágicas as de todos nós. Nesses espaços, consultórios, salas de espera nos hospitais, a angústia, o sem sentido da vida, a miséria de estar ali cresce como os embondeiros nas florestas tropicais, rasgando o céu. A nossa vida, de algum modo, pelo menos a partir dos trinta anos, é uma espécie de sala de espera de um hospital. E o Valério Romão não só viu isso muito bem, como no-lo disse exemplarmente. Leia-se um excerto do capítulo “Urgências”: “Rogério aproveitava para perguntar se era possível obter mais elementos, porque aquilo das urgências era um bocado vago, mas a rapariga dizia que dali lhe era impossível, tinha de lá ir ao local, perguntar, em suma, fazer pela vida, e Rogério saiu, despedindo-se com pressa, virando–se apenas para apontar para uma direcção e perguntar se era por ali o caminho, se ia bem, porque a direita variava consoante se estava de costas ou de frente e ele não queria ir parar à radiologia, do lado oposto do complexo de edifícios, só por ter desprezado perguntar pelo norte a quem soubesse dele. Rogério entrava por um complexo de veredas onde floresciam ocasionalmente umas placas com direcções e encaminhava–se para as urgências. Passados alguns carreiros quase a correr, Rogério deu com um edifício cor–de–rosa, a modos que pequeno, e à entrada do edifício estava um segurança, fardado, a ocupar–se, pelos vistos, da regulação do rádio. Rogério dirigiu–se–lhe, Olhe, desculpe, estou à procura das urgências, disseram–me que era um edifí́cio assim como este, para não confundir com as urgências gerais, pode dizer–me se é aqui, e onde posso conseguir informações, é que tenho o meu filho nas urgências, internado, sabe, um acidente. O segurança, a manusear o rádio para vazar o vagar das mãos, Sim, de facto é aqui as urgências, mas não lhe sei dizer se o seu filho está aqui, mas se conseguiu essa informação no balcão geral é porque deve estar. O melhor é esperar que entre ou saia alguém; aqui não há recepção, há uma campainha ali dentro, e apontava para o interior do hall de entrada das urgências, uma espécie de corredor largo ladeado por cadeiras e horas de espera, onde as pessoas se deixavam afundar sob o peso da preocupação. Pode experimentar tocar e talvez venha alguém abrir a porta e falar consigo, nem sempre acontece, eles são muito ocupados, sabe, estão sempre a entrar pessoas em situações muito urgentes, pelo que é preciso ter paciência aqui, porque aquela campainha nem sempre dá resposta.” Toda esta longa passagem é memorável, mas acho esta pequena parte muito querida: “Rogério aproveitava para perguntar se era possível obter mais elementos, porque aquilo das urgências era um bocado vago (…)”. Como se na vida pudéssemos pedir mais elementos e como se ela não fosse vaga (um bocado é o lado humorístico do autor). E esta é a nossa tragédia, a de estarmos à espera. Estamos à espera de nós, e nós nunca chegamos. Estamos à espera dos que amamos e eles escapam-nos por entre a vida. Estamos à espera de notícias e elas são vagas. Estamos à espera. E, como se sabe, isto só pode dar merda. Pois sabemos bem que não se faz nada de bom quando somos obrigados a ficar à espera. Escreve Valério Romão: “É preciso ter paciência aqui, porque aquela campainha nem sempre dá resposta.” E eu digo-vos: é isto é a vida, quero dizer, o Autismo.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradeniz: “Comigo o ódio acabava” Introdução Este livro aparece no seguimento das inúmeras conversas que fui tendo com o Karadeniz (que quer dizer Mar Negro, em turco), ao longo dos dois últimos anos que vivi em Istambul e de algumas vezes que fomos juntos para o Mediterrâneo. Karedeniz foi o seu nome profissional e não é o seu nome de cidadão, que aqui não é revelado, pois também não é esse que interessa a este livro, mas sim o mito que ele representou para as organizações, instituições e governos nas décadas de 50 e 60 do século passado. Conheci o Karadeniz em Istambul, na Avenida de Gumussuyu, junto ao consulado alemão, no Outono de 2001, umas semanas depois dos atentados às torres gémeas de Nova Iorque. Ele vinha a sair do prédio do barbeiro, em Gumussuyu, e eu ia a entrar, no preciso momento em que se dá o rebentamento de uma bomba junto ao consulado. O meu instinto foi derrubá-lo e protegê-lo. Felizmente a bomba não fez vítimas, exceptuando a rapariga que a transportava. Há já muito tempo que não havia atentados em Istambul, mas o 11 de Setembro parecia trazer de novo o terror à cidade. Embora não lhe tenha salvo a vida, depois de se levantar, e no meio dos gritos e da confusão generalizada, Karadeniz agradeceu-me com intensidade esse meu gesto reflexivo, convidando-me a ir a sua casa para tomar uma bebida. A sua idade e o seu reconhecimento impediram-me de rejeitar o seu convite. Haveria de ser o grande encontro da minha vida. Acabámos por conviver quase diariamente até ao dia da sua morte. 1. O trabalho Nos dias que correm, em que o terrorismo se tem tornado uma instituição mundial, como é que vê a profissão que teve? Detesto terroristas! Não têm respeito nenhum pela vida humana. Eu não fui um terrorista, fui um assassino profissional. A diferença é total!… Como assim? Em que consiste essa diferença? Eu matava apenas quem estava a mais neste mundo, a mais para um outro ser humano específico, ou uma organização específica. Era uma espécie de intermediário entre a origem do ódio e o fim dele. Comigo o ódio acabava. No fundo, fui um exterminador de ódio! (risos) Nunca matei inocentes! Nunca matei quem não devia matar. Mas quem é que decide que alguém está a mais no mundo? Quem tem dinheiro para pagar e coragem para viver com as consequências da decisão que tomou. Pode ser um governo, uma empresa, uma organização ou um indivíduo. Por outro lado, não há aqui qualquer desigualdade ou injustiça no uso desse dinheiro para matar, porque quem paga para que se mate alguém, não paga para que se mate alguém sem poder, mas alguém com poder igual ou superior, qualquer que ele seja. Talvez não seja sempre assim tão linear! De qualquer modo, como é que o Karadeniz conseguia viver com essa sua actividade? Ou seja, como é que justificava, para si mesmo, viver de matar pessoas? Pela própria natureza do ser humano: ele não é insubstituível! Depois, a partir de um certo momento, já não se procuram razões para aquilo que se faz. Faz-se e pronto! Tentamos aperfeiçoar-nos, tornar-nos cada vez melhor. Pensa mesmo que o ser humano é substituível? Claro que sim! Tudo e todos são substituíveis. Acredita mesmo que um filho pode ser substituído por outro filho ou por outra criança? Ou que um pai pode ser substituído por um outro homem, nos sentimentos de um filho? Vamos lá a ver: uma coisa é a pessoa, outra coisa muito diferente é aquilo que ela representa para uma outra pessoa. Se tu morreres, não vais ser substituído (a não ser talvez, num tempo futuro, se fores clonado), mas aquilo que representas para o teu pai ou para o teu filho pode ser substituído. As relações são substituíveis, ainda que os indivíduos isolados não sejam. Mas o ser humano isolado não existe, ele é um conjunto de relações. O Karadeniz é pai? Sou!… E aquilo que me disse também se aplica ao seu filho? Claro! Se o T. morrer amanhã, a minha relação com ele pode ser substituída pela minha relação com outro homem (acaso ainda houvesse tempo). Aquilo que sentimos não é infinito, Paulo. Não podemos estar continuamente a sentir coisas novas e diferentes. Imagina um homem com doze filhos, ele não sente doze diferentes amores filiais!… Dou-te um exemplo que talvez percebas melhor. Já encontraste alguma vez uma mulher que fosse insubstituível no teu coração, uma mulher que acalmasse o vazio de um desejo de prazer e de uma contínua insatisfação? Uma mulher que te transformasse para sempre? Julgo que não!… Julgas?! Claro que não, Paulo! E é disso que estou a falar. Ou julgas que se houvesse uma mulher que te transformasse para sempre, ela seria menos importante do que um filho ou de que um pai? Digo-te mais: o facto de não haver quem transforme as nossas vidas para sempre, é razão suficiente para aceitar pacificamente a vida que levei, de assassino profissional. Eu nunca fui pai, mas dizem que essa experiência muda as nossas vidas para sempre. É verdade? Não! Se fosse verdade, o mundo melhorava imediatamente com o nascimento do primeiro filho. Se fosse verdade, neste mundo cheio de filhos, o mundo teria de ser melhor do que é. Ou então, foi precisamente o nascimento do primeiro filho que transformou o mundo em algo que não consegue ser melhor do que isto. Quer dizer, quando um homem se torna pai, torna-se pior! Mas eu não acredito em nada disto, Paulo! Ser pai não transforma um homem em nada. Se o transformasse realmente, então ele seria diferente, olhá-lo-íamos de forma diferente, provavelmente nem o reconhecíamos. Mas não é isso que se passa, pois não? Parece que não!… Ser pai é como ser uma outra coisa qualquer que exija responsabilidade. Olha, é como ser assassino profissional! Há que ter responsabilidade, ter cuidado e não desiludir quem de nós espera o melhor. E, repara, que eu sou a pessoa que pode realmente falar com propriedade acerca desta comparação… Vamos lá a ver uma coisa: se um homem ou uma mulher mudassem realmente ao serem pai ou mãe então passariam a querer ser melhores do que eram. Passariam a querer ser o que ainda nunca tinham sido. Mas as qualidades deles não mudam, a qualidade não muda. (continua)