O erro ontológico de Machado de Assis na análise de O Primo Basílio

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que vou dizer agora, em verdade não foi dito em O Primo Basílio, mas só o amor poderia estancar de vez essa multiplicação contínua do desejo. Aliás, amar a Deus é o amor por excelência, é isso que Leopoldina muito bem vê, já que não acredita no amor entre um homem e uma mulher. No mesmo sentido que em Santo Agostinho: só se pode amar aquilo que não muda. Tudo aquilo que muda, pela sua própria condição de mutabilidade não é solo seguro para fincarmos o amor ou um projecto de amor. O amor é, em si mesmo, a possibilidade da permanência, da imutabilidade. A imutabilidade é o horizonte de sentido do amor. Por isso, Santo Agostinho dizia que só se pode amar a Deus.

Há ainda uma característica fundamental no estrutura do desejo, tal como ele é apresentado em O Primo Basílio, que não só passou completamente ao lado do espírito do senhor Machado de Assis, como ainda fez questão de afirmá-lo: “Luísa resolve fugir com o primo; prepara um saco de viagem, mete dentro alguns objectos, entre eles um retrato do marido. Ignoro inteiramente a razão fisiológica ou psicológica desta precaução de ternura conjugal: deve haver alguma; em todo caso, não é aparente.” Ora, trata-se de um dos vários toques de génio de Eça, onde não só nos mostra mais acerca da operacionalidade do desejo, mas também de como a sua multiplicação está intimamente ligada ao nada. Porque o desejo tem muitas dificuldades de deixar aquilo que experimentou e que gostou. Luísa pode não querer Jorge, querer Basílio, mas o desejo dela tem muita dificuldade em deixar Jorge, em deixar de ter Jorge. O desejo quer tudo. Uma vez despertado, consciente do seu objecto, o desejo não quer deixar nada para trás, não quer abdicar do que já teve. O desejo transforma tudo em possibilidade de se vir a ter. Nada mais difícil para o desejo do que fechar possibilidades. Para o desejo de Luísa, o retrato de Jorge significava o não fechamento da possibilidade de Jorge ser seu objecto. Não se pode querer entender o desejo com moral. O desejo é do foro do natural, e se quisermos compreendê-lo temos de esquecer os deuses modernos, as convenções sociais. Páginas atrás, que remetem para a manhã desse mesmo dia que produz indignação no senhor Machado, há uma outra passagem muito mais esclarecedora em relação a este ponto. Quando decide fugir, nessa manhã, Luísa pensa em Jorge e, depois de lembrar os cuidados extremos que ele teve quando ela esteve doente de cama, com pneumonia, pensa ainda: “E agora, quando ele soubesse, quando ele voltasse! Quando ao entrar ali na alcova – visse as duas almofadas, ainda! Ela iria longe, com outro, por caminhos estranhos, ouvindo outra língua. Que horror! E ele ali estaria, naquela casa só, chorando, abraçado a Sebastião. Quantas memórias dela para o torturar! Os seus vestidos, as suas chinelinhas, os seus pentes, toda a casa! Que vida triste, a dele! Dormiria ali só! Já não teria ninguém para o acordar de manhã com um beijinho, passar-lhe o braço pelo pescoço, dizer-lhe: “É tarde, Jorge!” Tudo acabará para ambos. Nunca mais! – Rompeu a chorar, de bruços sobre a cama…” Ela não chora pela antecipação da dor dele. É o seu desejo que chora, por ter de deixar algo que lhe pertence. O seu desejo também quer aquilo que já teve, os cuidados de Jorge, o seu amor, mesmo o amor dela por ele, embora não abdique do amor de Basílio. É esta a miséria. O poder sobre nós começa a perder-se em nós pela fome do nosso desejo. O desejo impele-nos a querer tudo o que queremos. E este querer tudo não se dá com a vida. O desejo é  selectivo, mas não o suficiente. Luísa quer o amor aventuroso de Basílio e quer o amor cuidadoso de Jorge, mas certamente não quer o amor de Julião, por exemplo. Mas este querer tudo-selectivo do desejo implica ter de escolher, ter de perder alguma coisa do que se quer. E isso dói-nos muito no desejo. Quem aqui é que já não experienciou isto em si mesmo? Quem ao deixar para trás uma relação, muitas vezes complicada, não mantém consigo, no seu computador, as fotografias de um outro tempo, a imagem daquele ou daquela que já deixámos, do tempo em que o desejo era efectivo? É o querer tudo do desejo a fazer-se sentir em nós. E este querer tudo do desejo, a sua impossibilidade ou dificuldade de deixar o que já foi seu, está intimamente ligado à experiência do nada pelo humano. É neste querer tudo do desejo, a um mesmo tempo – e não uma coisa a seguir à outra e outra, como é normalmente compreendido como sendo característica dele –, que o nada se tornar uma experiência e uma verbalização humana. O querer tudo do desejo, a um mesmo tempo, traz o nada à boca. Veja-se a cena:

– Al pallido chiarore

Dei ostri d’oro…

Luísa, através das últimas vibrações dos seus nervos, ia entrando na realidade; os seus joelhos tremiam. E então, ouvindo aquela melodia, uma recordação foi-se formando no seu espírito, ainda estremunhado: era uma noite, havia anos, em São Carlos, num camarote com Jorge; uma luz eléctrica dava ao jardim, no palco, um tom lívido de luar legendário; e numa atitude extática e suspirante o tenor invocava as estrelas; Jorge tinha-se voltado, dissera-lhe: “Que lindo!” E o seu olhar devorava-a. Era no segundo mês do seu casamento. Ela estava com um vestido azul-escuro. E à volta, na carruagem, Jorge, passando-lhe a mão pela cinta, repetia:

– Al pallido chiarore

Dei astri d’oro…

E apertava-a contra si…

Ficara imóvel à beira do divã, quase a escorregar, os braços frouxos, o olhar fixo, a face envelhecida, o cabelo desmanchado. Basílio então veio sentar-se devagarinho junto dela. Em que estava a pensar?

– Nada.

É o desejo a exigir o que lhe pertence, a exigir o que é dele. O desejo – com a ajuda da memória – expondo à consciência de Luísa que não quer perder o que é dele, que não pode perder Jorge. Jorge e Basílio fazem sentido, a um mesmo tempo, para o desejo de Luísa. É neste preciso momento, ao escutar a terceira ária do Fausto, que Luísa passa a ser refém da multiplicação do desejo. Pois até aqui o desejo ainda não se multiplicara, esta singular experiência não se fazia realmente sentir, ela e o desejo só tinha olhos para Basílio, mas a partir de agora ela entende que Basílio não chega. O desejo quer Basílio, mas nem por isso quer perder Jorge. O desejo quer tudo o que tem. E o desejo de Luísa já teve Basílio. Teve Basílio e teve Jorge. É extraordinária a frase que Eça põe na boca de Luísa para responder à pergunta de Basílio, acerca do que ela está a pensar: “Nada.” Precisamente. Ela não está a pensar em nada, ela está em nada, centrada no nada, na consciência do finito nada humano. Nesse momento ela é nada, é um imenso nada que se verbaliza a si próprio, um imenso nada a dizer o seu nome. Quando em situações semelhantes nós respondemos às nossas parceiras ou parceiros, nada, para além disso querer dizer que não queremos contar, é também um reflexo daquilo que verdadeiramente se está a passar em nossa alma: nada, isto é, o nada a aumentar através da multiplicação do desejo. Nesse momento ficamos melancólicos, porque estamos reféns de nós mesmo, reféns do imenso nada que nos habita e que subiu até à boca, verbalizado. A melancolia advém da suspeita – para não dizer mais – de que nada nos chegue. Se aprendêssemos a escutar o desejo nas suas múltiplas apresentações, talvez não fossemos mais felizes, mas seríamos seguramente mais capazes de entender o que nos acontece e o que poderíamos esperar que venha a acontecer. Não podemos evitar o desejo, mas podemos aprender a interpretá-lo e agir em concordância a essa mesma interpretação.

È fundamental que se entenda a diferença desta passagem do livro de uma outra, que apresentaremos em seguida, passada no dia seguinte nos aposentos de Luísa:

Todavia a lembrança de Jorge não a deixava; tivera-a sempre no espírito, desde a véspera; não a assustava, nem a torturava; estava ali, imóvel mas presente, sem lhe fazer medo, nem lhe trazer remorso; era como se ele tivesse morrido, ou estivesse tão longe que não pudesse voltar, ou a tivesse abandonado! Ela mesma se espantava de se sentir tão tranquila. E todavia impacientava-a ter constantemente aquela ideia no espírito, impassível, com uma obstinação espectral; punha-se instintivamente a acumular as justificações: não fora culpa sua. Não abrira os braços a Basílio voluntariamente!…

Aqui, o desejo não se faz sentir, o desejo não age. Luísa está antes tomada pela necessidade de justificativa para o seu acto de impiedade social. Há aqui uma tentativa de reduzir o nada da noite anterior, há um esforço para racionalizar o que se está a passar com ela, o que lhe aconteceu, que foi à sua revelia, ou, como ela mesma diz, não caiu nos braços do primo voluntariamente. Ela tenta encontrar no desejo um destino, tenta inverter o nada da noite anterior.

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