Teatro |CCM à procura de actores para residência artística com encenador de Hong Kong

 

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Centro Cultural de Macau está a recrutar actores para integrarem uma residência artística com o prestigiado encenador de Hong Kong Fredric Mao. Em comunicado, o Instituto Cultural (IC) indica que um grupo seleccionado de actores locais vai ter oportunidade de subir ao palco para integrar uma produção profissional especialmente concebida para esta experiência criativa, sob a direcção de Mao, reconhecido tanto como actor como encenador nomeadamente pelos Prémios de Teatro de Hong Kong. As audições com Fredric Mao vão ter lugar nas instalações do CCM de 21 a 23 de Setembro, devendo o espectáculo final subir ao palco um ano depois. O projecto faz parte de uma série de residências que, ao longo dos anos, tem trazido profissionais das artes performativas do exterior para apurar as técnicas artísticas do panorama cultural de Macau, indica o IC. Os interessados podem visitar o ‘site’ do CCM para mais informações.

17 Ago 2018

Teatro | Companhia da Chanca em Macau para o Encontro de Marionetas que se realiza em Setembro

É já no próximo mês que arranca mais um Encontro de Marionetas. De Portugal chega a Companhia da Chanca com “Sítio”, uma peça de teatro, sem falas, que narra a vida de uma aldeia no interior do país

 

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]com “Sítio” que a Companhia da Chanca vai fazer a sua estreia em Macau no âmbito do Encontro de Marionetas no próximo mês. O espectáculo de teatro físico aborda a desertificação do interior do país, um problema que não se cinge apenas a Portugal.
Com dois actores em palco, mas sem uma única palavra durante 55 minutos, o espectáculo gira em torno de “um casal de idosos que mora numa aldeia isolada de Portugal que recebe um cartão a anunciar o nascimento do neto, algo que vai alterar a sua vida quotidiana rotinas diárias”, explicou ao HM o actor e co-fundador da Companhia da Chanca, André Louro, desvendando mais pormenores sobre a narrativa. “O casal resolve fazer uma encomenda, com brinquedos para o neto, com a história a passar também pela viagem epopeica até ao posto de correios mais próximo”, complementou.
“Sítio” é “um pouco o reflexo da nossa visão da aldeia”, sublinhou o artista que, a par da mulher, Catarina Santana, trocou Lisboa pelo interior de Portugal, fixando-se em Chanca, concelho de Penela, no distrito de Coimbra.
A receptividade ao espectáculo – em que são utilizadas máscaras larvares para representar o tema dos idosos – “tem sido muito engraçada”, realçou André Louro. “Até já tivemos pessoas a chorar no final. É muito interessante ver como as pessoas conseguem entrar neste universo”. “Sendo um espectáculo sem palavras, muitas vezes, os códigos são diferentes para cada um que acaba por reagir e interpretar à sua maneira”, observou.
Durante o Encontro de Marionetas, a Companhia de Chanca vai realizar dois espectáculos: um no Teatro D. Pedro V, no dia 9 de Setembro, segundo o programa provisório, e outro na Escola Portuguesa de Macau.
A experiência de ter crianças ou adolescentes como audiência também se tem revelado muito positiva: “A interpretação das crianças leva-as a zonas incríveis. Não que a história que constroem seja muito diferente do que pretendemos contar, mas a imaginação delas vai muito longe”.
A particularidade de ser um espectáculo sem falas também permite alcançar públicos de diferentes culturas, dado que “o ‘handicap’ da língua não existe”. “Claro que hoje em dia temos muitos espectáculos legendados, mas não deixa de ser uma barreira à compreensão, porque em vez de estarmos a olhar para os actores estamos a olhar para um texto, muitas vezes fora do palco ou fora de visão”, sublinhou André Louro.

Silêncio em tour

A vinda a Macau será, aliás, a segunda experiência fora de Portugal da companhia de teatro profissional, fundada em 2015, após a do Brasil, prevista para o final do mês. “É emocionante. Claro que estamos muito curiosos sobre como vai ser fazer isto noutras partes do mundo, em saber o que é que o público vai perceber e retirar do espectáculo”, realçou.
Sobre as expectativas relativamente ao espectador chinês, André Louro afirmou que lhe desperta “muita curiosidade”. “Não sabemos mesmo [o que esperar]. Eu estive apenas uma vez em Macau, com um espectáculo de dança e a reacção foi muito boa”, afirmou, referindo-se à coreografia “Nortada”, da Companhia de Olga Roriz, em que foi assistente da direcção artística, espectáculo que integrou o Festival de Artes em 2012.
O Encontro de Marionetas, organizado pela Casa de Portugal, arranca a 8 de Setembro. Segundo o programa provisório, o Encontro de Marionetas abre com espectáculos de marionetas com o grupo de Hong Kong HK Puppet and Shadow Art Center e com os tradicionais Robertos, com o artista local Sérgio Rolo, no Jardim Lou Lim Ieoc. Depois de “Sítio” da Companhia da Chanca, no dia seguinte, no Teatro D. Pedro V, segue-se o espectáculo “O Circo”, de Elisa Vilaça, no dia 15, no Conservatório, estando previstas duas sessões para bebés e crianças. Entre 16 e 22 de Setembro vai ter lugar uma exposição interactiva de histórias contadas e recontadas por Elisa Vilaça, com dias dedicados a escolas e outros ao público em geral.

9 Ago 2018

Primeiro teatro municipal para crianças e jovens abre em Lisboa

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] primeiro teatro da Câmara de Lisboa exclusivamente direcionado para crianças e jovens, o LU.CA – Teatro Luís de Camões, abriu em Lisboa no Dia Mundial da Criança com um programa de festas de três dias.

Um programa à medida de uma “festa popular em grande” e intensa, como referiu a vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa, numa visita guiada à imprensa juntamente com a atual diretora artística do teatro, Susana Menezes.

O LU.CA localiza-se na antiga sede do Belém Clube, na Calçada da Ajuda, em Belém, onde no século XVIII (1737) foi a Casa da Ópera do Rei D. João V, e é a partir de agora a sala de espetáculos municipal vocacionada para o público infantojuvenil, que era assegurada pelo Teatro Municipal Maria Matos, cuja gestão a autarquia decidiu entregar a privados.

Do programa de abertura, a decorrer das 15:00 às 20:00 até domingo, constam um concerto pela Orquestra Juvenil Metropolitana com As Fábulas de La Fontaine e outras atividades como uma seleção de Livros Espetaculares relacionados com as fábulas, um ateliê intitulado “Fotografismos” e uma visita aos camarotes com binóculos como no tempo de D. João V.

Tudo em pequena escala, o novo espaço conta, nomeadamente, com uma plateia amovível de 81 lugares, 23 camarotes incluindo o real, apoio técnico e camarins.

Com uma programação destinada a crianças dos três aos 16 anos, o LU.CA tem um orçamento anual na ordem dos 300 mil euros, quase o triplo dos cerca de cem mil euros de que Susana Menezes dispunha para programar no Maria Matos, como disse a diretora artística à imprensa.

Nas obras de reabilitação, iniciadas em 2016 segundo um projeto dos arquitetos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira, a Câmara de Lisboa despendeu 1,2 milhões de euros.

1 Jun 2018

FAM | Companhia sul-coreana traz Franz Kafka ao Centro Cultural

[dropcap style=’circle’] O [/dropcap] palco do Centro Cultural recebe a peça de teatro baseada na obra de Franz Kafka, “O Processo” nos próximos dias 26 e 27. A encenação é da companhia sul-coreanos “Sadari Movement Laboratory” que aposta no teatro cinético e no jogo entre a luz e o som para dar espaço às interpretações.
“O Processo” de Franz Kafka vai ser apresentado no grande auditório do Centro Cultural de Macau nos próximos dias 26 e 27 através da visão e encenação da companhia sul-coreana “Sadari Movement Laboratory”. O espectáculo integra a 29ª edição do Festival de Artes de Macau e constitui um dos momentos altos do evento.
Para quem está familiarizado com a obra do autor checo, “O Processo” é uma reflexão acerca do absurdo da existência e do que acontece quando esta, por si, se torna num crime, refere a apresentação oficial do evento. O romance, considerado como a obra-prima do autor, retrata um tema recorrente no universo kafkiano: o esmagamento do ser humano pela máquina estatal.
Numa adaptação do clássico romance de Franz Kafka, a companhia sul-coreana traz a vida do homem moderno na sua coexistência com uma ansiedade permanente. Um cerco que se encerra pela força da pressão da competitividade, dos jogos de violência, da vivência entre sofrimentos, sacrifícios e prazeres que colocam o homem moderno em confronto com a sua própria existência e o seu auto-julgamento. É este tribunal da vida que Kafka escreveu e que a “Sadari Movement Laboratory” reinterpreta numa linguagem que mistura movimento às palavras.

Teatros vários
A companhia é conhecida pelo trabalho que faz recorrendo a técnicas como o teatro físico. Uma via artística assente na ideia de “que os actores podem expressar os estados sociais e psicológicos das suas personagens de forma mais pungente, através de espaços separados e ritmos dinâmicos”, lê-se num comunicado do Instituto Cultural.
A “Sadari Movement Laboratory” foi fundada pelo seu director artístico, Im Do-Wan, que também é uma referência do teatro cinético na Coreia do Sul. Um dos métodos cénicos centra-se em jogos de luz e de som para acompanhar e dar mais profundidade às interpretações levadas a palco.
Depois de completar os estudos na L’École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq, em Paris, Im Do-Wan fundou a companhia em 1998. Ali, todos os membros são treinados no método de Jacques Lecoq, assim como na dança tradicional coreana. O objectivo é maximizar as potencialidades dos trabalhos que resultam “num empenho único em cada experiência em palco”, fazendo com que o teatro vá além do diálogo e das convenções mais realistas desta arte.

11 Mai 2018

FAM |“A Noite antes da Floresta” sobe ao palco no próximo dia 18

A Associação de Arte Teatral Dirks apresenta nos próximos dias 18, 19 e 20, “A Noite antes da Floresta”. A peça, integrada no Festival de Artes de Macau, é dirigida pela encenadora irlandesa Sinéad Rushe que deu nova vida ao monólogo homónimo do dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès. A história gira em torno da sensação de se ser estrangeiro no lugar onde se vive

 

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] das experiências de alguém que não pertence, ou não se encaixa, no lugar onde vive que fala “A Noite antes da Floresta”. Levada à cena pela Associação local de Arte Teatral Dirks, a peça tem aos comandos Sinéad Rushe para quem a obra homónima de Bernard-Marie Koltès reflecte os tempos de hoje. “É realmente uma peça dos nossos tempos”, observa a encenadora irlandesa, em entrevista ao HM, após um ensaio.

“Sinto que fala, de facto, do momento que atravessamos, de pessoas desesperadamente alienadas e sem opções que deixam a sua terra-natal – por não poderem mais permanecer ou por terem poucas oportunidades para regressar – e que enfrentam constantemente a experiência não serem bem-vindas”, sublinhou. A encenadora referia-se em particular ao “clima político” em todo o mundo, citando os exemplos dos refugiados ou da saída do Reino Unido da União Europeia que, apesar de figurarem em planos incomparáveis, remetem para “o estranho que sente não ter lugar no sítio onde vive”.

Com efeito, a peça, que não é política, oferece uma perspectiva “mais existencialista”, sendo-lhe conferido “um lado mais universal, que toda a gente pode compreender, sobre as experiências de quem não se sente integrado”. Esta foi, aliás, uma das razões pelas quais decidiu converter o monólogo original num trabalho polifónico. “Foi, de certa forma, por isso que segui este impulso de desdobrar a personagem em cinco corpos, tornando-a dispersa, fragmentada e inconstante, porque há uma inquietude no texto que eu queria transpor literalmente”.

Essa universalidade fica também patente no facto de em palco estarem diferentes nacionalidades e géneros. “Quando estávamos a discutir a peça pensamos na possibilidade de ter pessoas de lugares diferentes, porque é uma realidade que temos em Macau, mas que acontece um pouco por todo o mundo, pelo que quisemos abrir essa janela para a audiência”, sublinhou Ip Ka Man, co-director artístico da Associação de Arte Teatral Dirks, e um dos cinco actores d’ “A Noite antes da Floresta”. Ip Ka Man representa Macau num palco que conta ainda com May Bo (de Hong Kong e Macau), Koh Wan Ching (Singapura), Kim Shin Rock (Coreia do Sul) e Chan Tai Yin (Hong Kong), numa peça interpretada em inglês, com pequenas incursões pelo cantonense, mandarim e coreano.

“É muito interessante termos esta diversidade. Eu sou estrangeira e estou aqui a tentar fazer-me entender pelos actores, os actores a tentarem entender-me a mim, todos a tentar entender o texto. Tudo isto com pessoas de lugares diferentes e com línguas diferentes, em que nem tudo é realmente directo ou explícito”, considera Sinéad Rushe. “Esperamos que [o resultado] fique interessante para o público, porque faz parte do processo tentar passar a mensagem do personagem que, muitas vezes, não é clara, ou seja, furar essa obscuridade”, realça a encenadora, para quem a linguagem através da qual nos “encontramos a nós próprios e nos conectamos com os outros é muito relevante para o autor, para a peça e para a sociedade contemporânea”.

“Bernard-Marie Koltès viajou durante grande parte da vida e tem a experiência de ser um estrangeiro em diferentes lugares. Aliás, ele vai para a América Latina e para África para escrever tudo, sair do ponto de vista da classe média branca do primeiro mundo. Ele fala do encontro ou da relação particular que se estabelece quando não estás no lugar donde és, ou onde não te sentes confortável e travas uma luta para comunicar, acabando por estabelecer diferentes tipos de contacto”, descreve, apontando que o dramaturgo acaba, “em certa medida, por ter horror à situação em que todos nos compreendemos totalmente”.

A peça sobe ao palco durante três dias no âmbito do FAM, mas o trabalho iniciou-se no Verão passado, quando Sinéad Rushe iniciou a tradução da obra de francês para inglês, a qual viria a ser vertida, depois, para cantonense, dado que a produção é local.

Um acaso afortunado

O caminho da encenadora cruzou-se com a Associação de Arte Teatral Dirks há meia dúzia de anos quando Ip Ka Man e May Bo foram estudar teatro para uma universidade de Londres, onde Sinéad Rushe leccionava. “Ela abordava a biomecânica e as técnicas de representação de Michael Chekhov [sobrinho de Anton Chekhov], muito baseada na imaginação, bastante raras em Macau, pelo que quando regressamos decidimos convidá-la para partilhar os seus conhecimentos. Dois anos depois, em 2016, repetimos o convite para um workshop e foi quando abordamos a possibilidade de trabalharmos juntos numa performance para aplicar o que aprendemos”, explica Ip Ka Man. A encenadora aceitou: “Eu viajo e ensino em todo o mundo e, de facto, é muito raro eu voltar a um lugar para fazer um espectáculo. Mas este caso é muito especial, porque primeiro vim dar formação e agora esses conhecimentos podem ser desenvolvidos num contexto real de performance”.

“Ip Ka Man e May Bo têm um compromisso com a formação contínua, uma dedicação que, por vezes, não se encontra a nível profissional e isso também é parte do motivo pelo qual quis vir, porque senti que o trabalho vem do sítio certo, que há um interesse em realmente explorar as coisas de forma adequada e não apenas de montar um espectáculo ou algo do género”, acrescenta.

“Em cinco semanas não treino os actores que, aliás, são experientes. Eu apenas sugiro exercícios e guio-os no sentido de todos tentarmos compreender melhor o texto e descobrir e explorar de formas diferentes o mundo da personagem e ir mais a fundo no mundo da personagem. Sinto que o meu papel é trabalhar com eles o texto em pormenor, ou seja, compreender a sua jornada interior”, complementou.

O restante elenco Sinéad Rushe conheceu apenas em Macau, o que, “em certa medida, acaba por ser muito libertador”. De facto, a única sugestão que deu em termos da equipa foi ao nível do desenho de som, a cargo do alemão Niels Lanz. “A peça foi escrita como uma composição musical, como uma fuga de Bach, criando um espaço denso. Eu queria seguir o impulso de Koltès para libertar a audiência da possibilidade de ficar aborrecida por ter de seguir os actores. Depois, quando lês a peça há uma clara musicalidade: parece começar com um ária e acabar com uma sinfonia”. Para tentar invocar esse cenário contactei o Niels, que trabalhou muito tempo com o coreógrafo William Forsythe, porque sabia que precisava de alguém que realmente dominasse microfones e espaço e ele aceitou. É uma enorme oportunidade para mim e para eles e para explorar o que o som pode oferecer em termos de caracterização”.

“Em geral, não acho que o Koltès quereria algo do género, mas espero que ele nos perdoe, mas pelo menos estamos a agarrar o texto dele e a homenageá-lo”, sublinhou Sinéad Rushe que, pela primeira vez, tem um encontro marcado com o público chinês.

10 Mai 2018

Teatro | “Eu, Salazar” estreia em Coimbra a 25 de Abril

[dropcap style=’circle’] O [/dropcap] Teatrão estreia a 25 de Abril, em Coimbra, “Eu, Salazar”, uma peça que apresenta um ditador de múltiplas facetas, imaginado por uma geração que nasceu após a revolução dos cravos.

“Qual é que foi o meu primeiro Salazar? Qual é que foi o primeiro contacto que tive com esta ideia de Estado Novo de quem foi Salazar?”. Foi esta a pergunta que o encenador e actor Ricardo Vaz Trindade lançou a si próprio, ao elenco e ao escritor Nuno Camarneiro, que participou na criação do texto da peça.

Partindo dessa pergunta, o espectáculo acaba por transformar Salazar em vários “Salazares imaginados” – possibilidades de um ditador que não existiu, ao mesmo tempo que se socorreram da figura histórica.

Para Ricardo Vaz Trindade, o espectáculo usa Salazar como se fosse um pedaço de plasticina moldado pelos actores e pelas suas memórias, resultando num homem diverso e distinto, encontrando-se um lado político, humano ou romântico. “É um laboratório teatral, onde experimentamos, onde ensaiamos fazer coisas com o Salazar”, disse à agência Lusa o encenador que faz do ditador na peça.

No palco, encontra-se um Salazar que procura seduzir ao som de tango, um outro somítico que nem carne, pão ou vinho precisa, um homem prostrado ao lado da mãe convalescente e o ditador, de voz fina e frágil, que vai tecendo as suas ideias para Portugal.

Como é referido no texto de apresentação da peça, o ditador é retratado na Oficina Municipal do Teatro, em Coimbra, sem se querer explicar “o que há muito foi entendido, tampouco maquilhar o monstro ou ainda domesticá-lo”.

O espectáculo acaba por ser resultado de uma inquietação em torno da figura, deixando várias perguntas no ar, numa peça que tem como eixo um actor que procura ser Salazar, explica Ricardo Vaz Trindade, que tem quase a mesma idade que a do ditador quando este assumiu a pasta das Finanças durante a ditadura (é sobre esse Salazar “sem um futuro conhecido” que o espectáculo incide). “Sabemos historicamente o que é Salazar, mas a isso juntamos cargas simbólicas que não são propriamente realistas e construímos cenas que são sonhos, devaneios, possibilidades”, resumiu. O espectáculo conta com a consultoria dos historiadores Joana Brites, Luís Reis Torgal, Miguel Bandeira Jerónimo e Rui Bebiano, e a participação do escritor Nuno Camarneiro (prémio Leya 2012).

 

Peça sem moral

Para o escritor, a peça trabalha as memórias de uma geração que não viveu o Estado Novo, mas que ainda o tem presente, “através das memórias dos pais”.

“Não quisemos que a tónica estivesse no Salazar histórico, na ‘persona’ histórica. Mais importante que isso era o nosso olhar, o olhar da nossa geração, múltiplo e caleidoscópico”, contou à Lusa Nuno Camarneiro.

A peça acaba por ser tanto sobre o Salazar como sobre o actor (Ricardo Vaz Trindade) que quer interpretar o ditador que se assume como uma espécie de lente que se vai afastando ou aproximando, explicou, considerando que criar uma peça em torno da principal figura do Estado Novo é difícil. “O caminho entre o apologético e a demonização da personagem é um caminho estranho. Não quisemos que a peça fosse uma coisa nem outra. A peça não tem uma moral, tem sobretudo perguntas”, frisou.

Segundo Nuno Camarneiro, a pergunta central do espectáculo acaba por ser: “Até que ponto Salazar é algo que surgiu destacado de nós, portugueses, nós, país, ou foi uma emanação de nós?”.

A peça vai estar em cena na Oficina Municipal do Teatro de 25 de Abril até 13 de Maio, de quarta-feira a sábado, às 21h, e aos domingos às 19h. O preço do bilhete varia entre quatro e dez euros.

Para além da peça de teatro, são ainda promovidas pelo Teatrão quatro mesas redondas moderadas por historiadores sobre o Estado Novo e Salazar, estando também a ser criado um filme de João Vladimiro sobre o processo de construção da personagem. O elenco é constituído por Ricardo Vaz Trindade, Isabel Craveiro, João Santos e Margarida Sousa.

24 Abr 2018

Dia Mundial do Teatro | Macau com ausência de companhias portuguesas

Em Macau o teatro está vivo, reinventa-se, mas apenas em chinês. A época em que existiam companhias teatrais em português acabou em 1999, para não mais voltar à cena. No Dia Mundial do Teatro, Miguel de Senna Fernandes e Fernando Sales Lopes falam da importância de ter mais peças na língua de Camões

 

[dropcap style≠‘circle’]T[/dropcap]odos os anos, consegue-se assistir em Macau a teatro falado em português, mas os projectos não são locais. Tudo se deve à parceria existente entre os organizadores do Festival da Lusofonia e o Instituto Português do Oriente (IPOR), que traz, na iniciativa TEATRAU, companhias teatrais dos países de língua portuguesa.

Em 2015, o projecto MacauArtFusion e a companhia chinesa Hiu Hok juntaram-se para fazer a primeira peça bilingue, sendo que a adaptação para português esteve a cargo de Fernando Sales Lopes, historiador. O seu nome está também ligado ao teatro de língua portuguesa que se fez em Macau nos anos anteriores à transferência de soberania e que, desde então, ficou arredado dos palcos.

Hoje celebra-se o Dia Mundial de Teatro e Macau, apesar de ter o português como língua oficial, continua a não ter uma companhia teatral portuguesa. Em chinês há vários e novos projectos, com gente formada lá fora que faz adaptações de peças internacionais. Há depois o grupo de teatro em patuá Doci Papiaçam de Macau, mas em português esta arte praticamente não existe.

Ao HM, Fernando Sales Lopes fala da falta de interesse de possíveis colaboradores. “O teatro em português não o vemos. Havia um grupo, que fez teatro durante muitos anos, mas acabou antes de 1999 porque deixou de haver gente interessada. Trabalhávamos muito com pessoas novas que tinham este problema de que, quando a coisa estava a correr bem, os miúdos iam embora para Portugal estudar. As pessoas aproveitaram os últimos anos para estudar no ensino superior e também não tinham tempo livre.”

Gonçalo Lobo Pinheiro

Sales Lopes lembrou que, no TEATRAU, “a representação de Macau sempre foi coxa”. “Gostava que houvesse [mais projectos em língua portuguesa], e muitas pessoas ainda me dizem para fazer alguma coisa, mas depois no outro dia essas pessoas já não estão aí. Vai-se embora o entusiasmo, as pessoas gostam muito porque acham que é chegar lá e ir para o palco, e não é assim”, apontou.

Actualmente, o Conservatório de Teatro oferece uma formação muito virada para o cantonês e que não está equiparada a licenciaturas em Teatro, como existe em vários países. Sales Lopes espera que a nova presidente do Instituto Cultural, Mok Ian Ian, possa mudar o rumo das coisas, uma vez que é autora, mestre e doutorada em Ciência de Teatro Chinês pela Universidade de Nanquim.

“Não é tanto pela falta de espaço, há sítios para se ensaiarem e fazer as coisas. Não há teatro porque não há gente para o fazer. O que está a ser feito é aprendizagem para os jovens”, frisou Sales Lopes.

Miguel de Senna Fernandes, fundador do grupo Doci Papiaçam de Macau, lamenta que não existam mais projectos em português.

“A comunidade chinesa sempre teve o seu teatro, e não estou a falar de ópera chinesa. Eles têm o seu público e a sua escola. Há duas grandes companhias que são veteranas, e foram aparecendo mais. Antes de 1999 havia companhias da comunidade portuguesa, e lembro-me de uma dirigida por Fernando Sales Lopes, por exemplo. Se calhar, as pessoas não têm muito tempo e as coisas acabam por parar, mas vale sempre a pena formarem-se grupos de teatro nas comunidades.”

Para o também advogado, é preciso apostar mesmo que não existam espaços suficientes ou um público vasto. “Não tem a ver apenas com o facto de haver, ou não, público, mas com a atitude. O teatro pode ser um veículo de aprendizagem, com o patuá por exemplo. No contexto especial de Macau, é fundamental que haja teatro português. Os Doci Papiaçam têm características próprias e preenchem necessidades específicas.”

Foto: Sofia Margarida Mota

Olhando para o cartaz do Festival de Artes de Macau, Senna Fernandes lembra que há vários grupos a representarem no território vindos de Portugal. “São trabalhos bem feitos, têm público. Porque não voltam a formar grupos de teatro locais? Se existe uma comunidade portuguesa, porque não?”, questionou Miguel de Senna Fernandes.

 

Tecnologia destrutiva

Há 70 anos instituiu-se o Dia Mundial do Teatro. Várias mensagens de figuras ligadas a esta arte chamam a atenção para a importância de subir ao palco para combater o poder da tecnologia.

A dramaturga mexicana Sabina Berman defendeu que o teatro é a manifestação adequada para salvar a humanidade da submissão aos algoritmos, na “ordem tirânica” global, tal como sustentou o encenador britânico Simon McBurney.

“Mais do que a literatura, mais do que o cinema, o teatro – que exige a presença de seres humanos diante de outros seres humanos – é maravilhosamente adequado à tarefa de salvar-nos de tornar-nos algoritmos. Abstracções puras”, defende Sabrina Berman, na sua mensagem.

Para Miguel de Senna Fernandes, as redes sociais, os telemóveis e os computadores afastaram as pessoas dos palcos, que preferem ir ao cinema ou assistir a concertos.

“Não quero culpar a tecnologia mas, de facto, parece-me que o mundo digital veio substituir o entretenimento do dia-a-dia. Sem público é difícil expressar uma vontade de fazer teatro. Há uma dialéctica, que é o palco e a assistência, e muitas vezes o palco depende da reacção da assistência, e isso é fundamental. As artes performativas sofrem muito com isto.”

Em Macau falta também formação específica na área do teatro, não só em termos de formação de actores, como de técnicos. Há 25 anos que o grupo Doci Papiaçam de Macau sobe ao palco com casa cheia, mas fá-lo de uma forma amadora.

“Andei durante muito tempo à espera da formação técnica para os Doci Papiaçam, e resolvi avançar enquanto esperava. Andamos durante 25 anos assim, não sou formado em teatro. Não sei ainda se faço teatro, mas não interessa, pois faz 25 anos que estamos em palco, nunca tivemos uma preparação técnica, e sempre acalentámos essa oportunidade. Mas não é razão para não haver”, contou Miguel de Senna Fernandes. 

Espaços insuficientes

O teatro existe em Macau mas continua a estar inacessível a uma grande parte da população, uma vez que permanece a barreira intransponível da língua. Teresa Lam, fundadora do grupo Rolling Puppet, trouxe ao palco do edifício do Antigo Tribunal uma das poucas peças com tradução para inglês: o espectáculo “Macau 2.0”, um projecto que também esteve em Praga, capital da República Checa.

Ao HM, Teresa Lam fala de um florescimento de inúmeros projectos fundados por pessoas que estudaram lá fora e regressaram à sua terra natal. Há, contudo, ainda muito a fazer no teatro interpretado em chinês.

“Estes grupos têm vindo a brotar e precisamos de mais palcos e espaços para que estes profissionais consigam manter estes projectos. Mas, neste momento, não há uma grande atenção relativamente a esta questão, pois só existe o Centro Cultural de Macau e espaços em casinos, por exemplo.”

Ainda assim, é difícil as pequenas companhias teatrais terem acesso aos espaços que as operadoras de jogo disponibilizam. “Não há muitas oportunidades para as companhias teatrais locais apresentarem as suas peças, pelo que era importante o Governo fazer alguma coisa. Também gostaríamos de ter um plano de financiamento a três anos, por exemplo, pois teríamos acesso a um espaço. Há muitas coisas que têm de ser melhoradas.”

Teresa Lam acredita ser fundamental o reaproveitamento de espaços abandonados, como é o caso de antigas fábricas e cinemas, que “podem ser renovados para uso do público”. “Mesmo o Armazém do Boi está em obras e o edifício do Antigo Tribunal vai ser transformado numa biblioteca central. Estamos sempre em espaços provisórios e nunca sabemos por quanto tempo. Precisamos de um plano, de um centro multifunções”, concluiu.

Sobre este aspecto, o empresário William Kuan, ex-candidato às eleições legislativas, começou a desenvolver, há mais de dois anos, um projecto de renovação do Teatro Cheng Peng, localizado na histórica Rua da Felicidade.

27 Mar 2018

Cheong Kin I, encenadora a peça “A Reunificação das Duas Coreias”: “Aspiro criar a minha realidade”

Hoje às 20h sobe ao palco do Edifício do Antigo Tribunal a peça “A Reunificação das Duas Coreias”, pela mão da encenadora local Cheong Kin I. A peça estará em cena até 11 de Fevereiro, sempre às 20h, com a excepção com espectáculo do dia 10, que será às 10h. O HM falou com a encenadora sobre amor, identidade e a natureza da realidade

 

Como foi o primeiro contacto com a obra de Joël Pommerat?

A primeira vez que conheci a obra de Joël Pommerat foi quando um amigo meu encenou “Les Marchands”. Pommerat insiste sempre em escrever e encenar os seus próprios argumentos, uma vez que considera que não há ninguém que sabia melhor o que é que ele quer. Tem os seus próprios actores e designers de iluminação com quem tem vindo a colaborar já há muito tempo. Costuma ensaiar directamente nos espaços onde as suas peças são interpretadas, para que os seus designers de iluminação possam participar activamente no processo de criação das peças. Pommerat gosta da obscuridade. A iluminação é só para projectar sobre e para as interpretações, as vozes e os corpos dos seus actores. Tem uma estética extraordinária.

Esta peça não é sobre política, mas sobre amor. Que ligação sentiu com a história?

O título parece muito politizado, mas não tem nada a ver com a política. São vinte capítulos com vinte histórias sobre o amor, entre aspas. Trata-se de uma metáfora para falar sobre vinte tipos de amores acabados devido à impossibilidade de comunicação, das clivagens nas relações e da impotência de amar.

Vejo a palavra “reunificação” como muito irónica. Todas estas histórias falam de separações. Penso que Joël Pommerat queria também falar do facto que cada um é um indivíduo completamente independente, sempre com diferentes maneiras de pensar, mesmo a respeito das coisas minúsculas numa relação e na vida em geral. Tenho a expectativa que nesta peça as actrizes e os actores de Taiwan e de Macau possam aproveitar bem as suas diferenças culturais e linguísticas para abordar a impossibilidade de comunicação como um ponto fundamental do espectáculo.

Tem alguma ideia de como será próximo projecto?

Imagino que, depois da “A Reunificação das Duas Coreias”, vou continuar a trabalhar nos temas identitários, directamente ou indirectamente. Não acho que possa mudar nada, mas pelo menos penso que sou capaz de me mudar a mim própria.

Quais os maiores desafios de realizar um projecto destes em Macau?

Aspiro criar a minha própria realidade, mas vai ser sempre só um processo de procura, porque, como dito, a realidade não existe. É uma ilusão eterna. É uma grande ironia que sempre procuramos ao falar de tudo o que vimos a acumular, como percepções e experiências de vida. Mas isso não me interessa para representar na peça porque, como não é nada novo para ninguém, já não tem importância.

Sempre detestei qualquer género de discriminação ou exclusão. Nos meus primeiros tempos em Taiwan, negava sempre quando me diziam que ser de Macau queria dizer ser da China continental. Com o passar do tempo, comecei a reflectir se também eu própria discriminava os chineses do continente. Lá em Taiwan, toda a gente pensa de maneira independente e faz muitos esforços para trazer Taiwan ao mundo. O que me levava a questionar sobre, sendo eu de Macau, qual seria a minha identidade. Macau é um território minúsculo, onde as convenções ainda são muito predominantes. Mas não é razão para que o teatro siga também esta direcção. Pergunto sempre a mim própria como é que posso contribuir para o mundo, antes de pedir qualquer coisa a Macau.

Qual a sua ligação às artes dramáticas? O seu irmão escolheu o cinema, você o teatro. Porquê?

Partilho um ponto comum com Pommerat: não falamos da realidade, mas procuramos a realidade. Para mim, a realidade não existe. Isso é simples e complicado ao mesmo tempo. É vida, é impressão, é imaginação, é criação. No ano passado, em Agosto, a Associação Teatro de Sonho convidou-me para encenar uma peça. Naquele momento, estava já muito interessada pela questão da identidade. Li uma antologia bilingue franco-chinesa dos dramaturgos franceses co-publicada pelo Festival de Artes de Taipé, na qual encontrei o argumento “A Reunificação das Duas Coreias”. Fiquei profundamente atraída quando o li pela primeira vez.

Alguma parte em especial?

Eis uma passagem do argumento da qual gosto muito: O marido pergunta à mulher: O que é que se passa? Porque não consegues dormir? A mulher responde: Não é que não consiga dormir. É que não quero mais ficar contigo. Vou ter que partir. O marido pergunta: Estás com outra pessoa? A mulher diz: Não. Eu amo-te e tu amas-me. Mas isto não é suficiente. Era só uma história de cinco minutos. Nesta história, não se via uma causa nem um efeito. Havia só as emoções no meio da história, sem início, sem fim. É justamente neste meio que existe mais tensão dramática. Quanto ao meu irmão, foi feita há já alguns anos a sua “Uma Ficção Inútil”, que tem sido apresentada várias vezes em Taipé. É um filme difícil de compreender, no qual há muitas imagens de árvores. Lembro-me que, no tempo da nossa infância, quando ele estava triste, levava-me a ver as árvores no Jardim de Camões. Agora já tenho 26 anos e ele 32. Não sei quando é que começou a fazer filmes. Ele está à frente e eu atrás. Fico orgulhosa do meu irmão.

8 Fev 2018

A última garrafa

[dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]OUTOR: (antes de atender) É a chamada que esperava, do hospital. (atende) Sim!… Morreu?… Assim que possa vou imediatamente para aí… Até logo.

 

RAUL: Más notícias, doutor?

 

DOUTOR: Não propriamente. Um doente meu que morreu. Mas já se esperava que isso viesse a acontecer esta noite. Melhor assim. Cancro no pulmão. Um sofrimento atroz, meu amigo. É como escrevem nos maços de cigarros: «Fumar mata».

 

RAUL: Doutor, viver mata.

 

(silêncio e o doutor levanta-se e anda pela sala, pensando)

 

DOUTOR: O senhor está decidido a não sair daqui sem o comprimido, não está?

 

RAUL: Estou, doutor.

 

DOUTOR: E também já sabia disso quando para aqui veio, não sabia?

 

RAUL: Sim, já sabia, doutor.

 

DOUTOR: Diga-me mais uma coisa, sinceramente. Está armado?

 

(silêncio)

 

RAUL: Julgo que o doutor merece a verdade. Estou sim. Venho armado.

 

DOUTOR: E então?

 

RAUL: Então o quê, doutor?

 

DOUTOR: Já se decidiu, se vai ou não usar a arma?

 

RAUL: Já me tinha decidido antes, doutor.

 

DOUTOR: E julga ser capaz de chegar ao ponto de me matar?

 

RAUL: Isso não lhe sei dizer, doutor. Julgo que só iremos saber no último momento. Você e eu. Mas espero que não seja necessário chegarmos a descobrir os meus limites.

 

DOUTOR: (voltando a sentar-se) Sabe o que é que eu penso? Penso que você não é capaz. É demasiado decente para isso. Não é que lhe falte a coragem ou a tenacidade. Falta-lhe não ter escrúpulos. Uma coisa é planear uma fraude, outra coisa bastante diferente é realizá-la. E não se esqueça que a fraude iria ser realizada por mim, não por si. Você só planeou. É só do que é capaz.

 

RAUL: Não vou sequer tentar contrariá-lo. Talvez até tenha razão. Mas está a esquecer-se do desespero, doutor. E o desespero é inimigo dos escrúpulos.

 

DOUTOR: (levantando-se e erguendo a voz) Mostre-me a arma! Vá, mostre-me a arma, homem!

 

RAUL: Tenha calma, doutor. Sente-se, por favor! Sente-se, peço-lhe.

 

(o doutor volta a sentar-se)

 

RAUL: Para que quer ver a arma? Não acredita em mim? Começa agora a duvidar de mim? Olhe que não é o momento certo para começar a ter dúvidas, doutor.

 

DOUTOR: (levantando-se e erguendo a voz novamente) Então sai! Saia, por favor!

 

RAUL: (levanta a camisola e tira um pequeno revólver, que tinha entre as calças e a barriga, e pousa-o sobre a mesa junto a si) Queria ver, então aqui está! Já está convencido ou ainda tem dúvidas?

 

DOUTOR: (pálido, volta sentar-se) E agora, que vai fazer?

 

RAUL: Depende de si, doutor. Eu só quero o comprimido. Se mo der, saio por aquela porta do mesmo modo que entrei e o doutor pode telefonar imediatamente à polícia. Se não me der o comprimido, vamos acabar por descobrir se sou ou não capaz de atirar num homem.

 

DOUTOR: E que ganha você com isso? Se me matar não vai poder levar o comprimido. Como é que vai descobrir qual deles é, no meio de tudo isto (e aponta para os armários).

 

RAUL: É verdade. O doutor tem razão, não ganho nada com isso. Só o doutor é que perde. De qualquer modo, talvez depois de matar um homem também já não tenha escrúpulos em me suicidar. Há sempre que contemplar essa hipótese. Talvez venhamos a descobrir que até sou capaz de matar para morrer em paz.

 

(silêncio)

 

RAUL: Então, que decide? Vamos jogar até ao fim, ou terminamos por aqui?

 

(o doutor volta a levantar-se de novo e anda pela sala, pensativo)

 

RAUL: (que não tira os olhos dele e segura o revólver) Espero que não vá tentar qualquer acto violento, porque é sempre assim que acontecem os acidentes.

 

(após algum tempo, o doutor dirige-se a um dos armários e, de volta à mesa, traz consigo um comprimido numa embalagem especial)

 

DOUTOR: Está aqui o comprimido, senhor Santos.

 

RAUL: (segura no comprimido e olha-o) Como é que vou saber se é este o comprimido, doutor? Não estará a enganar-me?

 

DOUTOR: Isso nem me ocorreu, homem! Para que é que o havia de enganar?

 

RAUL: Consigo encontrar mais do que uma razão, doutor. Quanto tempo leva o comprimido a matar-me?

 

DOUTOR: Cinco minutos. Mas em quatro adormece profundamente.

 

RAUL: Óptimo! Não parece que haja algum soporífero que me ponha a dormir em quatro minutos, pois não?

 

DOUTOR: Não. Mas porque é que me está a perguntar isso?

 

RAUL: Ora, doutor, não estava à espera que me fosse embora, correndo o risco de me ter enganado, pois não?

 

DOUTOR: Que quer dizer com isso?

 

RAUL: Quero dizer que o vou tomar aqui à sua frente e se em quatro minutos não estiver a dormir vamos finalmente conhecer os meus limites.

 

DOUTOR: Não pode fazer isso aqui, à minha frente!

 

RAUL: Porque não? Você é o meu médico. Tem o direito e o dever de me acompanhar até ao fim.

 

DOUTOR: Mas não foi algo que eu tenha escolhido. Nem sequer estou convencido de que seja um doente terminal.

 

RAUL: Por favor, doutor, já devia saber que escolhemos muito pouca coisa durante o tempo que temos neste mundo. Julga que escolhi ser doente? (olhando para o comprimido) Como é que isto se toma?

 

DOUTOR: Como uma aspirina.

 

RAUL: (retira o comprimido da embalagem, põe-o na boca e ingere um gole de whisky; e ainda com o copo na mão) Proponho um último brinde: às excepções! (pausa) Vá lá, acompanhe-me. Sei que não é um brinde original, mas também nunca fui pessoa muito original. Vá lá, doutor, faça-me esta última vontade!

 

DOUTOR: Às excepções!

 

RAUL: Obrigado. Não se preocupe que vou segurar firmemente a arma, para que a polícia possa comprovar a história que lhes vai contar.

 

DOUTOR: Julga que alguém vai acreditar no que aqui se passou?

 

RAUL: Talvez não. Mas vão acreditar na arma na minha mão. E não os pode levar a mal, doutor. O senhor também só acredita no que constata. Esperemos que a arma não se me escape da mão, doutor. O melhor será apoiar-me aqui na mesa. Não lhe quero causar problemas. (debruça-se sobre a mesa com a arma apoiada nesta e apontada na direcção do médico)

 

(o tempo passa, adormece)

 

DOUTOR: (pega no telefone e marca um número, ouve-se o telefone chamar, apagam-se as luzes)

23 Jan 2018

Guida Maria (1950-2018): A bela diferente

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] actriz portuguesa Guida Maria morreu ontem, aos 67 anos, vítima de cancro, revelou o encenador António Pires. “A actriz faleceu hoje de manhã, tranquilamente durante o sono, após ter sido vítima de doença prolongada”, referiu o encenador.

Nascida em Lisboa em 1950, Guida Maria fez cinema, ficção em televisão, mas sobretudo teatro, tendo participado em cerca de 40 peças, entre as quais “A mãe”, “Auto da geração humana”, “A casa de Bernarda Alba” e, possivelmente uma das mais conhecidas da carreira, “Os monólogos da vagina”.

Filha do actor Luís Cerqueira, Guida Maria estreou-se aos sete anos na peça “Fogo de Vista”, de Ramada Curto, aos dez anos entrou em “A sapateira prodigiosa”, da Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, ao lado de Eunice Muñoz, e, aos 13, fez sucesso em “O milagre de Anne Sullivan”, encenada por Luís de Sttau Monteiro. Com vários anos de experiência de palco, Guida Maria estudou depois no Conservatório Nacional, ao mesmo tempo em que entrava noutras peças produzidas por Vasco Morgado.

Ainda antes do 25 de Abril de 1974, a actriz entrou em “A promessa”, uma adaptação de António de Macedo de uma peça de Bernardo Santareno, na qual protagonizou o primeiro nu integral do cinema português. O filme foi exibido em vários festivais, nomeadamente em Cannes.

Ainda na década de 1970 foi convidada a integrar o Teatro Nacional D. Maria II, onde permaneceu até aos anos 1990, tendo entrado em peças como “O leque de Lady Windermere”, “Maria Stuart”, “Slag” e “Sherley Valentine”, o primeiro de vários monólogos que protagonizou na carreira. Durante esse período no teatro nacional, Guida Maria fez uma pausa em 1980 e, com uma bolsa de estudos, entrou na American Academy of Dramatic Art, em Nova Iorque, e fez vários ‘workshops’ na Actors Studio.

Além de “Sherley Valentine”, Guida Maria ficou conhecida por outros monólogos como “Andy & Melissa” (2001), “Zelda” (2004), “Stôra Margarida” (2006) e “Sexo? Sim, mas com orgasmo” (2010). O maior sucesso de carreira, com vários meses em cena e reposições, terá sido a peça “Os monólogos da vagina”, de Eve Ensler.

A telenovela brasileira “O bem amado”, da TV Globo, a novela portuguesa “Passerelle”, as séries “Nico d’Obra” e “Riscos”, e os filmes “O barão de altamira”, de Artur Semedo, e “No dia dos meus anos”, de João Botelho, são outras produções em que participou. Em 2009 lançou uma autobiografia, “Guida Maria – Uma vida”.

3 Jan 2018

Luís Miguel Cintra apresenta última parte da tetralogia “Um D.João Português”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] quarta e última parte da tetralogia “Um D. João Português” é apresentada “em meados deste mês”, em Guimarães, onde em Janeiro se estreia o espectáculo na sua versão integral, disse à Lusa o encenador Luís Miguel Cintra. A residência artística inicia-se prolonga-se até quinta-feira da próxima semana, abrangendo a apresentação, nos próximos dias 13 e 14, da quarta e última parte da peça, “Um D. João Português. A Escuridão ao Fim da Estrada”, na Black Box da Fábrica Asa, em Guimarães, com entrada livre.

O espectáculo, encenado por Luís Miguel Cintra, cruza uma tradução anónima de cordel com o texto original de Molière, “D. João”. Na versão portuguesa, do século XVIII, é o homem quem acaba por ser vencido pela mulher, que generosamente o perdoa e força o casamento.

Esta opção foi qualificada por Luís Miguel Cintra como “uma ironia”. Na versão portuguesa, “para não desagradar ao público, D. João não vai para o inferno, mas casa-se com D. Elvira e faz um banquete com os seus irmãos”. Segundo o encenador, este último acto desemboca numa cena de fantasmagoria com espectros e outros acontecimentos espectaculares, transformando o casamento da versão portuguesa, numa mascarada de “Halloween”.

O primeiro ato do projecto “Um D. João Português”, “Na estrada da vida”, teve lugar no Montijo, em Abril; o segundo – “O mar (e de rosas)” – foi em Setúbal, em Julho; Viseu acolheu a terceira parte, composta pelo terceiro e o quarto atos da peça, “As árvores (dos desgostos)”, em Setembro. Este é “um projecto muito especial, que é o contrário de um projeto pronto a consumir”, disse Cintra à agência Lusa, referindo que a ideia foi sempre “mostrar às pessoas como é feito”.

O projecto conta agora com um apoio da Direção-Geral das Artes, mas “depende muito do entusiasmo de quem participa”, disse Cintra, que acrescentou que foi uma opção sua fazer “com tanta gente”, esta peça, “pois podia fazer com muito menos gente”.

“A peça – explicou – é uma espécie de peregrinação de duas personagens com cenas avulsas que se vão confrontando com outras personagens, até à morte de D. João”.

Este quinto acto conta com a participação dos actores Bernardo Souto, Dinis Gomes, Diogo Dória, Duarte Guimarães, Joana Manaças, João Jacinto, João Reixa, Leonardo Garibaldi, Luís Lima Barreto, Nídia Roque, Rita Durão e Sofia Marques.

Em Setembro, em vésperas da apresentação da terceira parte, em Viseu, Cintra tinha salientado à Lusa que o projeto surgiu “porque há muita noção de que o contacto entre público e espectáculos é muito superficial e está a tornar o teatro numa coisa muito sem importância na vida das pessoas, como se fosse um mero passatempo, coisa contra a qual lutei toda a vida”.

“Eu e pessoas da minha geração, sempre sonhámos com um teatro que estivesse implantado no centro da cidade, a falar do presente, com coisas que dissessem respeito à vida dos espectadores”, sustentou, em Setembro, Luís Miguel Cintra.

A partir de janeiro, depois da apresentação em Guimarães, no Centro Cultural Vila Flor, a versão integral do espectáculo será também apresentada no Montijo, em Setúbal e em Viseu, além de outras localidades, adiantou Luís Miguel Cintra à Lusa.

Luís Miguel Cintra afirmou que “vai ser engraçado” apresentar “as diferentes partes complementadas em sítios, com características diferentes uns dos outros”. “Vai implicar o refazer daquilo tudo e voltar a dar uma unidade àquilo tudo. Portanto, vai ser divertido”.

5 Dez 2017

Entrevista | Jeff Hessney, produtor da companhia de dança Raiz di Polon 

[dropcap style≠’circle’]”A[/dropcap] Serpente” é a coreografia que vai estar esta noite no palco do Teatro D. Pedro V. A companhia Raiz di Polon vem de Cabo Verde a convite da Associação da divulgação da Cultura cabo-verdiana e traz uma peça que explora as relações vividas dentro de um triângulo amoroso. Para o produtor Jeff Hessney, trata-se de um tema universal compreendido por todos. O espectáculo tem início às 20h e conta com entrada livre

A Raiz de Polon é conhecida por tratar várias temáticas. No entanto, é a primeira vez que pegam na questão do ciúme para a traduzir em movimento. Porquê?

Esta peça foi feita, ao contrário das outras nossas produções, a pedido do Festival Internacional de Teatro em Língua Portuguesa que acontece todos os anos no Rio de Janeiro. Já tínhamos participado nesse festival duas vezes e no ano passado era inteiramente dedicado à obra de Nelson Rodrigues pelo que todos os espectáculos tinham de ter um trabalho baseado em peças daquele autor. A directora do festival, Tânia Pires, achou que seria interessante fazer uma adaptação para a dança de uma peça de teatro. Acabámos por montar “A Serpente”, toda ela original e acompanhada com música cabo-verdiana, em menos de três semanas. O ciúme faz parte de toda a criação cénica e dos escritos do Nelson Rodrigues, mas podemos dizer que se trata de um tema universal. Por outro lado as semelhanças culturais entre o Brasil e Cabo Verde também facilitaram esta adaptação que foi ainda um desafio muito interessante: transpor o ciúme expresso no texto para a corporalidade e para a dança.

Estamos num território com poucas semelhanças culturais com Cabo Verde. Como é que vê a receptividade do vosso trabalho aqui?

A primeira vez que estivemos em Macau foi há 11 anos. Na China em geral, a recepção tem sido muito boa, mesmo em lugares que não têm a marca lusófona que Macau tem.

Esta recepção positiva pode estar ligada à universalidade da própria linguagem, a dança?

Sim, penso que sim. O ciúme é universal mas também temos cuidado na forma como o abordamos. O que é interessante numa peça como esta – que não tem texto – é a forma como tratamos os nossos temas através da dança e dos movimentos típicos de Cabo Verde. Este aspecto faz com que as pessoas, não só reconheçam a temática comum à humanidade, como acabem por ter a atenção captada pelas particularidades do movimento de corpo característico de Cabo Verde e pela música que acompanha as coreografias.

Do vosso repertório fazem também parte coreografias com temas mais sociais como a migração ou as questões de género. Há uma aposta em abordar temas que ponham o público a pensar em determinados temas?

Não fazemos peças para passar uma mensagem. Penso que isso seria subestimar a capacidade do público, o que também não funciona. Mas, ainda assim, claro que tratamos esses temas de uma forma que pode ou não dizer algo mais às pessoas que estão a assistir. A nossa peça mais viajada, a “Duas sem Três”, é precisamente um dueto com duas das bailarinas da companhia, e que trata os temas da mulher e da emigração. A emigração é incontornável em Cabo Verde. É um país que tem mais pessoas a viver fora do país do que dentro. Todos os cabo-verdianos, sem excepção, têm algum parente próximo que vive no estrangeiro. É um tema omnipresente em todas as formas artísticas cabo-verdianas e na dança também acaba por estar presente. Numa outra coreografia, também de Mano Preto, que se chama “CV Matrix 25” não se trata necessariamente a questão da emigração, mas toda a apresentação retrata o imaginário de um cabo-verdiano que foi para Lisboa como emigrante, trabalhou na construção civil, tinha vivido durante décadas em Portugal e todo o seu imaginário era Cabo Verde. Esta peça foi baseada numa pessoa que o Mano Preto conhecia pessoalmente e toda a corografia é isso: o imaginário de um homem que vivia em Lisboa mas que na sua cabeça e no coração nunca tinha saído do seu país. Estes temas são tratados, não de uma forma pedagógica mas sim com uma abordagem mais sentimental.

1 Nov 2017

Corpos celestes

Horta Seca, Lisboa, 20 Outubro

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hega no último minuto, enfunado de mares e acordes, de ventos e carnes e bravezas e terra, este «Rua Antes do Céu», do José Luiz [Tavares]. Por continuar celebrando os cinquenta, desdobra-os para regalo de quem se dê ao esforço de andar descalço nas pedras de quase tantos poemas quantos anos de (muita) vida: «entre as sombras do recreio/ és tu que desces pelo meio/ de um mês de sol cheio// e como tudo o que nomeio/ vens de noites caladas/ duma solidão/ inda mais entranhada/ que ensina/ ao seco som da pancada// que morres porque vivo/ somes porque verme/ no meio das pedras/ que te sabem indemne// desamigado dos pasmos/ que sempre foram/ uma comprida conta/ no rosário da infância». Embrenhamo-nos no território do imponderável, guiados pelo metálico da voz que esculpe, como nenhuma outra, a golpes de navalha na carne da nossa língua materna.

Sabendo da relação do autor com a fotografia, chamámos à capa uma chapa do Flávio Andrade (que ilustra esta crónica), e que sinaliza bem as múltiplas sombras e direcções deste andamento. A estrada feita lugar-comum, mas ninguém por ela passa da mesma maneira. Toca-me mais fundo por ser esta a nossa primeira co-edição, disparada, com a Rosa de Porcelana, na direcção de Cabo Verde celeste. «Boa viáji!»

Escola de Mulheres, Clube Estefânia, Lisboa, 20 Outubro

Dia gordo, este, que acaba sob o signo da perturbação. Em vale desaguando no escuro, as cadeiras desenhavam as colinas que predispunham os corpos para experimentar o rio que aconteceu ali em baixo, mesmo à frente dos nossos olhos. O Nuno Moura respigou restos de vida a dois, amorosa, afectiva, conjugal, matrimonial. A Marta [Lapa] não procurou narrativa, antes deslaçou ainda mais as palavras, deu ao texto tratos de laboratório e dele extraiu, com a participação dos actores Margarida Cardeal e Vitor Alves da Silva, uma segunda voz para o fio musical do Pedro [Moura]. O combate virou dança. Ou terá sido o inverso. Passei dias mergulhado em pintura, talvez abstracta, homem e mulher a desdobrarem-se em músculo e suor, carne e espírito, consentimento e aversão, entrega e desapego, fuga e comunhão, relâmpago e monotonia. Leves e soltos, por instantes, para logo se fazerem de chumbo. Líquido, por força da temperatura, regressando à forma dos corpos, por via da palavra. Uma intensidade minimal de grande risco, onde cada peça de marcenaria encaixou, da luz ao trabalho dos actores, da orquestração das figuras à melodia. Há muito que não saía de um espectáculo* assim, desorientado, sem saber bem o que pensar. (*Escreveria experiência, se a palavra não tivesse sido roubada pelo marquetingue). Ainda não sei bem se gostei, mas isso interessa? Ah, tinha por título, de que desgostei, «AAC – Associação Amizade no Casamento». Sou homem casado, sei da amizade no casamento. Aprecio bastante o risco, como à mesa com ele.

Praça da Criatividade, Óbidos, 22 Outubro

No meio do desarranjo destes meses, contribuímos para a baderna do Folio com umas «rapidinhas», que as circunstâncias foram reduzindo a mínimos, mas cujo modelo gostaria de aprofundar: intervenções de 15 minutos, nas quais os autores, ou alguém por eles, se atrevem a extrair tema de um livro. E metidas a martelo na programação. Foi um ensaio, mas há que insistir em desenrascar outras formas de festivalar. Folia, mas melancólica, aconteceu na subida ao palco dos «Tomara Tu Ter uma Tia Assim (TTTTa)» para cantarmos loas ao desvario dos corpos. Sem copos, por razões que se não explicam.

Horta Seca, Lisboa, 23 Outubro

Desde sexta que, a cada pausa arrancada a ferros, me atiro a «Cento e Onze Discos Portugueses – A Música na Rádio Pública Portuguesa» (ed. Afrontamento/RTP/Antena 3/Cultura FNAC). Com coordenação do Henrique Amaro e do Jorge Guerra e Paz, a lista começa em 1936, com duas marchas de Beatriz Costa, para marcar o início da Rádio Pública, e segue até Capitão Fausto Tem Os Dias Contados, do ano passado. Estrutura e desenho simples, mas apetecível: capa do disco, comentário ao lado, ficha técnica, conjunto devidamente acompanhado por cronologia, pequenos textos de enquadramento e índices. Que mais precisamos para o deleite? Da rede, além da rádio. As listas possuem uma dinâmica curiosa: exigem logo opinião, artistas que faltam, trabalhos que podiam ser outros, discussão de critérios, etecetera. Nenhuma será perfeita, mas esta apresenta-se de talhe bem equilibrado, nos gostos, estilos, épocas e formatos. Oferece matéria para desilusões, que o afecto adolescente não é dos melhores críticos. Há rugas, claro, mas serão de expressão. Podemos ler as capas só por si, a ver se o que sobrou ainda diz bem ontem ou se desfez em nada. Mas serve sobretudo para revisitações e até descobertas. Diz-me ao ouvido que ter a minha idade pode ser consolo. Quando não estava distraído, assisti a uma série de pequenas e médias revoluções. A de Zeca e Sérgio e Zé Mário e Paredes e Fausto, a dos Telectu, Mler If Dada, Variações, Pop Del Arte, a dos Mão Morta ou Palma, a de Camané e dos Ornato Violeta. E por aí fora, em altas rotações, até à enorme riqueza deste presente pobre.

Horta Seca, Lisboa, 24 Outubro

«Contemplação Particular». Depois das desafiantes pinturas, que transcendiam o corpo, que o elevavam na sua mais pura materialidade, em abstracta dança de formas carnais, expostas depois em «Delubro», espaço do sagrado que parava o tempo ali para os lados do Centro Cultural de Belém, eis o livro, a tornar portátil o experimento. O António [Gonçalves] fecha com a inteireza da madeira (carvalho?) este seu deslumbrante e desafiante projecto, ignorado pela crítica. Aliás, que bem se cruzaria a peça da Marta com as telas do António! São da mesma massa, do mesmo risco: traço e navalhada. Por isso me irrita sobremaneira esta indigente falta de curiosidade. Serão cometas, mas podemos dar-nos ao luxo de ignorarmos a sua passagem por nós? Fecho parêntesis. Este objecto, ao menos, continuará a dizer do erotismo muito para além da inevitável morte, essa irmã chegada. Não será de igual modo, apesar de se estender a álbum, que a pintura se vê com o corpo todo, mas permite aproximações. E atira muita lenha para o desejo, com dvd e tudo. Tudo, que nasceu da leitura corpo-a-corpo de Flaubert e Bataille.

1 Nov 2017

CCM | Conto de Andersen em cena no fim-de-semana

[dropcap style≠’circle’]”A[/dropcap] Menina dos Fósforos” de Hans Christian Andersen vai ocupar o palco do Centro Cultural de Macau no próximo fim-de-semana. Vem pela mão da Open Heart Prodution, do Reino Unido, e promete transformar o triste conto infantil num momento de alegria

É capaz de ser um dos contos mais conhecidos de Hans Christian Andersen. “A Menina dos Fósforos” conta a história de uma criança que vive da venda de fósforos na rua. Numa noite, a de Natal, acaba por morrer de frio. O espectáculo trazido pela londrina Open Heart Prodution não fica por aqui e fez algumas transformações ao original.

A peça que integra dança, teatro e canções conta com a coreografia de Arthur Pita que, com o pedido, há cinco anos, para fazer uma peça de Natal, se juntou ao produtor Mathew Jones.

“Queríamos fazer algo que saísse do vulgar ‘felizes para sempre’”, conta o produtor na apresentação do espectáculo à imprensa. “Corremos uma série de histórias em busca de um tema que pudesse ser trabalhado e que saísse das peças comuns”, continua.

Por outro lado, a ideia seria não ter uma peça paternalista e completamente irreal, sendo que a procura incidia em “alguma coisa com um certo lado negro e que, ao mesmo tempo, pudesse servir a toda a família”.

“A Menina dos Fósforos” pareceu a escolha óbvia. “É uma história desafiante e achámos que seria também uma hipótese de desenvolver uma outra perspectiva para um espectáculo de Natal”, explica Mathew Jones.

Mudança de rumo

Para não ser “mais do mesmo”, de uma história que todos conhecem, a peça que vai estar no Centro Cultural de Macau foi alvo de algumas mudanças.

Passa-se numa cidade imaginária de Itália, e foram criados mais personagens que vivem naquele lugar e que interagem com a menina que vende fósforos.

Para ser fiel ao sítio, a produção resolveu também mudar o idioma. Apesar de ter sido concebido para Inglaterra, a companhia optou pela língua italiana como veículo dos diálogos que se vão desenrolando.

Mais do que uma opção estética e criativa, a ideia tem um propósito: “Desviar a atenção do público das palavras para que possam perceber a coreografia como um todo”, explica a directora artística e também bailarina Valentina Golfieri.

O próprio conto também sofreu alterações. “Esta peça não termina quando seria de esperar tendo em conta a versão de Andersen. Aqui, o fim da história passa-se mais ou menos a meio do espectáculo”, diz a directora. A partir daí, há todo um outro conto em que a personagem principal vai para “um lugar muito especial”, refere.

O conto mantém apontamentos “mais negros, mas o que se consegue com a transformação feita no final é transmitir uma sensação de esperança”, aponta Valentina Golfieri.

A matriz original de “A Menina dos Fósforos” mantém-se na produção que chega de Londres. “É um espectáculo social e político. Trata-se de uma criança que sofre devido ao contexto económico daquela época e é também uma história acerca de justiça social”, explica Mathew Jones.

No fundo, “não se trata de uma peça paternalista, mas de uma história que, infelizmente, pode acontecer no mundo real”, continua o produtor, sendo que, aqui, há a garantia de que, “após a apresentação, as pessoas não vão para casa com um sentimento de tristeza”.

Paralelamente, as situações que acontecem no palco são facilmente transponíveis para os dias de hoje. “O bullying, por exemplo, pode ser representado pela forma como as várias personagens tratam a criança.” O reconhecimento das situações tem também um papel pedagógico.

Para todos os públicos

“A Menina dos Fósforos” está pela primeira vez em Macau, mas já passou pelo Continente e por Taiwan. A surpresa da audiência parece ser um factor comum a determinada altura da apresentação. De acordo com Mathew Jones, “neste lado do mundo, as crianças são familiares com a história original e, quando pensam que estão a ver uma coisa que conhecem, são surpreendidas a partir do momento em que percebem a transformação que aconteceu ao final”.

Depois, completa a directora artística, “é uma história que convida a uma viagem e este é um aspecto que agrada a todos os públicos”.

O sucesso que tem tido em cinco anos de cena não surpreende a companhia. “Toda a apresentação acarreta algum mistério e deixa espaço ao público para a recriar, sendo que o facto de ser falada numa língua que muitas pessoas não entendem permite uma interpretação livre, em que não se consegue ter o detalhe da palavra”, remata a bailarina.

10 Ago 2017

BOK | Festival volta a trazer o teatro experimental ao território

Começa amanhã e vai até 8 de Julho. É festival BOK que vai ocupar o Edifício do Antigo Tribunal. Este ano o evento não vai para a rua, mas a organização promete, a quem se deslocar aos espectáculos, uma experiência a registar

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omeça amanhã. É o BOK, festival que se dedica à apresentação de espectáculos for do circuito comercial. Nesta quinta edição, a ideia é a interactividade com o público e o factor surpresa domina o programa.

Ao contrário das edições anteriores, em que os espectáculos tinham apresentações espalhadas pelo território, este ano a organização optou por uma situação inversa e o programa do festival vai estar concentrado no Edifício do Antigo Tribunal.

A ideia, apontou Erick Kuok em entrevista ao HM, tem que ver com a própria temática desta edição. Em causa está a dinâmica capaz de ser criada com o público, sendo que a organização pretende, desta forma, testar as possibilidades do que um espectáculo pode fazer com os espectadores e de que forma os pode integrar no palco. “Se por um lado, nesta edição, temos uma concepção mais formal de teatro – os espectáculos voltam a ser feitos neste tipo de espaços, ao contrário do ano passado em que andámos em espaços alternativos –, por outro, podemos jogar com isso e dinamizar o interior do próprio teatro e usar o público”, explicou o organizador.

O projecto que, pelo segundo ano, está de pé sem apoios do Governo, tem nesta edição os horizontes estendidos. Para o efeito, a organização estabeleceu parcerias com companhias de Taiwan, Coreia e Hong Kong para trazer espectáculos a Macau, mas não só. A pensar nos artistas locais, é intenção do BOK, poder levar com este trabalho os artistas locais ao exterior.

Começar pelo local

O festival tem início com as duas secções pensadas para a promoção de artistas locais. “Give it a Shot” é um espaço de trabalho em tempo real em que os projectos de Macau têm, diz Erik Kuok, “um acompanhamento crítico para que sejam devidamente desenvolvidos”.

Este ano, a secção tem lugar nos dias 1 e 2 de Julho e integra projectos dedicados à dança, música clássica e electrónica independente. Da coreógrafa Chloe Lao, é apresentado o espectáculo de dança “Artificial Roses”, baseado no conto homónimo de Gabriel Garcia Marquez. Vão ainda ser mostrados publicamente “E-arrangement of Vivaldi’s Summer”, do quarteto de cordas Opus-A, e “Chemtrails, Morgellons”, de Sonia Ka Ian Lao.

A secção “Bok Lab”, é o espaço em que são apresentados os trabalhos desenvolvidos no “Give It a shot” do ano passado. Nesta edição, Miki To vai apresentar “Moderation”. A iniciativa está agendada para os dias 28 e 29 de Junho, às 20h e pretende ser um espaço de reflexão social.

De 28 a 30 de Junho, às 21h15, é também o tempo marcado para a apresentação de “Picturesque” pelos Water Singers. De acordo com a organização, trata-se de um espectáculo que convida a “uma viagem na escuridão, sem nada mais a não ser a voz”.

Desafiar limites

O final da edição de 2017 do BOK é preenchida por espectáculos internacionais. Entre 4 e 8 de Julho tem lugar a secção “Crossibition” em que a ideia é trazer ao território espectáculos experimentais que demonstrem “maturidade a nível de conteúdo, meios e formas de encarar o público”, aponta a organização.

Este ano foram seleccionadas três peças em que “o espaço, os sentidos e a experiência do público fossem testados”.

De Hong Kong vem o grupo de teatro “Heteroglossia”, com “Woyzeck” do dramaturgo alemão Georg Büchner. A ideia é a exploração de técnicas narrativas utilizadas em conteúdos de cinema e a sua adaptação para o palco.

“Bodies in the Dark” é a peça trazida pela companhia coreana “Elephants Laugh”. O espectáculo é feito num ambiente de escuridão absoluta em que “podendo ser desconfortável, irá testar os limites do público”, lê-se na apresentação facultada pelo BOK.

De Taiwan, a companhia “Riverbed Theatre” apresenta “Hypnosis: The Just for you Project”. A companhia de Taipé traz um espectáculo destinado a um público de um elemento em que o objectivo é “criar um ritual de intimidade e ligação e um veículo para o subconsciente”.

Acabar à conversa

O festival conta ainda com um espaço dedicado à conversa informal e ao encontro entre artistas e o público. É o “BOK CLUB”.

Para Erik Kuok, “o teatro é também um espaço para as pessoas partilharem ideias, para conversarem”. Este ano o espaço de conversa vai ter lugar num bar na zona da Praia Grande onde vão ser apresentados pequenos espectáculos. Ao mesmo tempo, a organização tem na agenda a realização de algumas pop up performances. “Estas apresentações serão sempre uma surpresa porque o público nunca sabe o que vai acontecer. Tem de ir para se surpreender e para ver”, explicou o organizador.

26 Jun 2017

Teatro | Companhia portuguesa colabora com escolas da RAEM a convite do IPOR

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]rranca na próxima segunda-feira uma série de apresentações do projecto “As Raposas”. O espectáculo nasceu da simbiose entre a companhia portuguesa “Cabeça no Ar e Pés na Terra” e escolas de Macau, a convite do IPOR.

O projecto partiu da dramatização dos textos em português das “Fábulas de La Fontaine” e começou em Novembro do ano passado, quando se iniciou nas escolas e turmas participantes a leitura e exploração didáctica da obra do francês Jean de La Fontaine. Como a personagem central da narrativa é uma raposa, o nome do projecto estava mesmo à mão de semear, daí “As Raposas”.

A elaboração dos figurinos que os actores da companhia de teatro vão usar na apresentação da peça teve um processo original. Primeiro, as crianças envolvidas no projecto desenharam as personagens da história e enviaram esses esboços para a companhia. A partir da imaginação das crianças os figurinos foram construídos.

A peça terá como base uma selecção de textos de “O Corvo e a Raposa”, “A Raposa e as Uvas”, “A Raposa e a Cegonha”, “O Galo e a Raposa”, “O Gato e a Raposa” e “O Lobo e a Raposa”.

O espectáculo une a cenografia em que os alunos participaram à representação em palco dos actores da “Cabeça no Ar e Pés na Terra”.

As apresentações começam na Escola Portuguesa de Macau na segunda-feira, na Escola Luso-Chinesa da Flora na quarta-feira, no Jardim D. José da Costa Nunes na quinta-feira e na Escola Oficial Zheng Guanying na sexta-feira. Além disso, haverá ainda uma sessão aberta na quarta-feira, às 17h30, no Café Oriente do IPOR.

26 Mai 2017

Erik Kuok, director do festival Bok: “O teatro não é só um espaço de apresentações”

A quinta edição do Festival Bok está a ser preparada e, de 28 de Junho a 9 de Julho, o edifício do antigo tribunal vai ser ocupado por teatro e artes performativas. Ao HM, o director executivo do evento avançou alguns detalhes da programação e explicou por que é esta iniciativa diferente de tudo o que se faz em Macau

 

O Bok nasceu em 2013. Como é que apareceu a ideia de criar um festival de teatro?

Na altura, a companhia Horizonte queria alargar as funções do teatro. Estavam num espaço, num edifício industrial, e pensavam no que podiam fazer com ele, além dos ensaios e das apresentações. Começaram a pensar em formas de fazer com que o teatro não fosse só para eles e se dirigisse aos outros. Foi assim que deram início a este projecto. Ainda não se chamava Bok, mas o conceito já era o indicado pela palavra que, em cantonês, que dizer ‘luta’. A ideia era uma espécie de ‘fightclub’ dentro do teatro. Bok também tem que ver com jogo, quando se joga usa-se a mesma expressão. Por seu lado, quando se fala de jogo, fala-se de correr riscos e, nesse sentido, o Bok também é um termo apropriado. A Horizonte resolveu então pegar neste conceito. Convidaram companhias de teatro locais, mas também de Hong Kong e do Continente, e durante quatro semanas fizeram a primeira edição do festival. Cada semana era dedicada a uma companhia. A intenção era fazer com que cada espectáculo pudesse ser apresentado o maior número de vezes possível, porque normalmente as companhias acabam por, depois de produzir uma peça, apenas a mostrar em uma ou duas ocasiões. Na terceira edição fui convidado a juntar-me à equipa. Propus à organização que o festival fosse feito em mais do que um teatro porque, com o aumento das rendas, os espaços dos teatros vão desaparecendo. As companhias não conseguem suportar os custos. Pensei então pegar no próprio conceito de Bok que, em chinês, também é associado a ligação, com a mesma pronúncia. Foi quando se pensou em fazer o festival em vários espaços. Havia, naquela altura, quatro teatros na Avenida Venceslau de Morais. Mudámos o conceito e fizemos o festival não em quatro semanas, mas em quatro espaços durante uma semana, sendo que, na mesma rua, o público tinha sempre quatro opções de espectáculos. No ano passado, expandimos esta ideia e não a resumimos a uma avenida. Saímos para a rua, e associámo-nos a vários espaços e organizações.

O festival criou entretanto várias valências, uma delas o Bok Club. O que é?

O Bok Club apareceu da minha experiência noutros países. Em Portugal, reparei que as pessoas, depois de assistirem a um espectáculo, ficavam a conversar até bastante tarde. Mesmo quando o teatro estava prestes a fechar, as pessoas continuavam a conversar e a beber. Achei que era uma coisa boa. O teatro não é só um espaço de apresentações. É também um espaço para as pessoas partilharem ideias, para conversarem. Não tínhamos este tipo de atmosfera em Macau e achei que seria importante promover uma coisa do género. Por exemplo, aqui as pessoas vão a um espectáculo no Centro Cultural e, quando acaba, saem e vão às suas vidas. O Bok Club está aberto para que, depois das apresentações, artistas e público se encontrem de uma forma informal. Nos últimos dois anos, depois dos espectáculos, criámos um bar onde as pessoas podiam estar. É também uma ocasião social em o público se conhece. Este ano vamos implementar o Bok Club de uma forma diferente. Este ano estaremos apenas em dois lugares: vamos trabalhar com um bar na zona da Praia Grande em que vamos preparar pequenas coisas todas as noites durante o festival, de modo a que o público se possa encontrar ali. Ao mesmo tempo, estamos a pensar em ter algumas pop up performances. Estas apresentações serão sempre uma surpresa porque o público nunca sabe o que vai acontecer. Tem de ir para se surpreender e para ver.

Este ano voltam a estar em espaços fechados. Saíram da cidade e foram para o teatro. Porquê a mudança de estratégia?

O tema deste ano do festival tem que ver com a dinâmica do público. A questão que se coloca é o que fazer com o público que vai aos espectáculos. Neste sentido, as pessoas podem não ser meros espectadores e podem tornar-se parte das próprias peças. Se por um lado, nesta edição, temos uma concepção mais formal de teatro – os espectáculos voltam a ser feitos neste tipo de espaços, ao contrário do ano passado em que andámos em espaços alternativos –, por outro, podemos jogar com isso e dinamizar o interior do próprio teatro e usar o público para isso.

Há alguma apresentação que destaque desde já?

Vamos ter um espectáculo que vem da Coreia que se chama “Bodies in the Dark”. No entanto, ninguém saberá do conteúdo até ir vê-lo. O mesmo se passa com o local onde vai acontecer. Quem comprar o bilhete para este espectáculo será contactado pelos artistas e eles darão indicações. O espectáculo acontece e, ainda assim, o público continuará sem saber onde está, nem com quem está. Em termos de programação, tentamos trazer teatro diferente e alternativo. Queremos encontrar coisas que o público de Macau, de outra forma, não teria oportunidade de experienciar.

É o segundo ano que o festival avança sem apoios do Governo. Como é que conseguem fazer esta gestão, tratando-se de um festival internacional?

Trabalhamos com muitos parceiros, tanto locais, como de fora. Por outro lado, temos tido a colaboração de voluntários. No ano passado tivemos 15 e, este ano, resolvemos fazer uma chamada aberta. Recebemos 50 inscrições e neste momento estamos a dar formação. Penso que estas acções são muito importantes para os próprios voluntários. Não é só uma força de trabalho, é a participação numa actividade que lhes pode mudar a vida. Foi o que se passou comigo. Comecei como voluntário e agora trabalho enquanto profissional. É uma oportunidade de descobrirem uma actividade que gostam e de conviverem com pessoas que, no futuro, podem ser úteis caso optem por uma carreira na produção. Outra característica que se destaca com o nosso programa de voluntariado é que são elementos que contribuem activamente para o festival, podem dar opiniões e trocar impressões.

Também promovem o desenvolvimento do teatro local, nomeadamente com a rubrica “Give it a shot” onde incentivam à prática do teatro experimental. Que mais-valias traz esta secção aos artistas de Macau?

É uma secção que trata do próprio processo de trabalho. Apareceu porque percebemos que, em Macau, as companhias estão sempre a produzir. A razão é terem de criar novos conteúdos calendarizados para que possam continuar a receber os fundos que as apoiam. Sentimos que não há tempo de fazer a parte da pesquisa e do desenvolvimento de um trabalho em profundidade. O que fazemos é convidar artistas locais, com um ano de antecedência, dizemos que vão trabalhar juntos e que têm de fazer um trabalho que não necessita de ser finalizado. Nós tratamos de dar o devido acompanhamento com dramaturgos, com espaço e algum dinheiro para apoiar o projecto, bem como recursos humanos. Por outro lado, fornecemos também uma rede de contactos que vai ter acesso a estes trabalhos e a estes artistas. Depois de apresentarem a ideia, durante o festival vão desenvolvê-la, vão pesquisar e ter tempo para investigar, aprender e evoluir. Também fazemos intercâmbio internacional mas não da forma usual. Em vez de convidarmos artistas internacionais sem saber o que os locais precisam, primeiro sondamos as necessidades que mais se fazem sentir e depois vamos ao encontro dos profissionais mais adequados.  

Estamos a falar de um festival de teatro que implica a utilização, muitas vezes, de uma linguagem verbal. A língua é um obstáculo neste género de eventos? 

A linguagem não é problema. Da minha experiência, trata-se somente do que se sente com o trabalho que se vê. Quando vamos ao teatro, as palavras não são a única forma de transmitir uma mensagem. Há dois anos, por exemplo, tivemos uma peça coreana que não estava legendada e que foi inteiramente falada em coreano. O que fizemos foi dar ao público alguma informação básica acerca da peça, de forma a dar contexto. O resultado foi uma grande satisfação por parte do público. Apesar de não entender cada uma das palavras, através da forma como foi encenada a audiência percebeu os conteúdos. Um bom espectáculo consegue fazer isto.

Qual é o balanço que faz, nesta quinta edição?

Posso dizer que ainda estamos numa escala pequena no que respeita a público. Dentro do nosso e daquele a que queremos chegar, digamos que nos dirigimos a dois extremos. Um deles constituído por pessoas que são amantes do teatro e que vão ver peças frequentemente, e outro que nunca frequenta o teatro. Para chegar a este segundo alvo, tentamos ter actividades que não têm nada que ver com teatro e com elas levamos as pessoas a ter uma experiência diferente em que, de alguma forma, entram em contacto com esta arte. Por exemplo, este ano vamos ter uma corrida com sessões de leitura. Os interessados juntam-se a um atleta que contratámos e vão com ele, a correr, conhecer a cidade. O percurso tem várias paragens e em cada uma delas é dada a conhecer a sua história. No final, juntam-se, descansam e partilham uma sessão de leitura em que o tema está relacionado com a cidade e o silêncio. Claro que estamos abertos a todo o tipo de público, mas estes dois lados, que de alguma forma são opostos, são os nossos maiores alvos. Talvez um dia possamos fazer mais mas, este ano, já temos muitos eventos livres de forma a chamar a participação das pessoas.

18 Mai 2017

A lotaria do nada e da morte

15/04/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma dramaturgia respeitamos o ethos dos personagens mas introduzimos umas buchas. Como Os Pilares da Sociedade era para ser representada em Moçambique, onde campeia o machismo, eu puxei um pouco pelo feminismo já de si pioneiro de Ibsen e introduzi na emancipada Lona Hessel alguns juízos que lhe sublinham o carácter.

Quem ia representar Lona era Graça Silva, uma das fundadoras do Mutumbela Gogo,  que morreu de repente este fim-de-semana, aos 51 anos, sem que nada o adivinhasse, muito perto da estreia da peça. E eu tinha escrito algumas deixas para a voz dela e a clareza da sua dicção. Quem poderá agora projectar a voz, no tom e no timing certos, e explorando a fundo os seus efeitos no público, replicar com a mesma autoridade: «CÔNSUL BERNIK – Se olhares para dentro de qualquer homem, seja ele qual for, hás-de sempre encontrar pelo menos uma mancha que ele quer ocultar.

LONA HESSEL (olhando-o bem de alto abaixo, alteando a voz, escarnecedora)Um coalho! Um pobre coalho de sangue, urina, caca e presunção… E são vocês que se dizem os pilares da sociedade!».

É lamentável ser ceifada assim, aleatoriamente, uma artista que há trinta anos se entregava ao palco e tão à vontade nas figuras populares como em Gertrudes, a mãe de Hamlet. Pior num país que não cultiva a memória ou patrocina tantas vezes o popularismo fácil e o embuste, negócio a que ela sempre se furtou, preferindo ganhar menos e fazer melhor – um percurso que nem todos entendem. Ou ainda: um percurso que nem todos merecem.

Morreu uma senhora actriz, e apetece dizer: a vida é nesciamente merencória porque nos esmurra até que deixemos de distinguir entre o falcão e a garça!

16/04/17

O mecanismo do sorteio e a lógica do casino infiltraram-se no imaginário global. Talvez devido a que o homem, já não acreditando no equilíbrio das simetrias entre o trabalho e a recompensa, ou entre a boa-fé e a benignidade social, parece agora apostado em recuperar pelo jogo da sorte e do acaso uma ideia de destino.

No entanto, o sistema de sorteio já teve efeitos positivos na História dos homens. Em Atenas, na Grécia antiga, os 500 membros do Tribunal dos Heliastas eram eleitos por sorteio entre os cidadãos livres. E para minimizar aí qualquer juízo imponderado, associado ao risco de que o cidadão com mais de 35 anos chamado para o desempenho de uma função pública fosse imprestável, deu-se um impulso galvanizador à educação, em todas as áreas.

Hoje prefere-se produzir tele-sorteios ou programas de busca de “talentos”, promovendo a “lotaria genética”, a apostar previamente na formação.

Na semana passada um grupo de hackers fiéis ao DAESH, o UCC (United Cyber Caliphate) divulgou uma lista de mais de 8700 nomes e endereços de norte-americanos que espera ver mortos pelas mãos dos lobos solitários. “Matem-nos onde os encontrarem!”, incita.

A novidade é que a lista inclui nomes alegadamente escolhidos ao acaso, enquanto as listas anteriores se focavam em nomes de responsáveis, como políticos, chefes religiosos, etc. Agora não, veio o vento de Deus de que nos fala o Ezequiel e sopra de onde quer.

Quando a culpa fica indeterminada, o que atacamos? A inocência. É estranho que tal se arrogue em nome de Deus. Que já não se busque nem a justiça, nem quem determina. E em nada diminui o crime saber que os ossos do defunto são a consolação das violetas.

Entretanto, se pensarmos no que declarou David Altheide, professor jubilado do Arizona, ao DN: «Trump apelou a um passado que nunca existiu. Com o seu slogan “Fazer a América grande de novo” (…) quando foi isso mesmo? (…) De certa forma, Trump apresentou uma espécie de quadro em branco e as pessoas podiam preencher as suas próprias ideias acerca do que o ser grande era.», compreendemos que nos situamos num sistema de lotaria em que cada um já “imagina” o seu próprio prémio.

Miséria franciscana que redobra quando lemos: «A obra, intitulada “Votar nos Democratas: Um Guia Completo”, da autoria do jornalista Michael J. Knowles, tem 1235 palavras e 266 páginas… quase todas elas em branco. O livro tornou-se bastante popular no seio do Partido Republicano, incluindo junto do presidente Donald Trump», porquanto, sendo natural que a piada tenha tido sucesso, deprime constatar que isso celebra a suficiência com que se admite como ganho um zero de imaginação, tal e qual se depreende do que se segue: «O livro estará a ser um sucesso entre os conservadores americanos, depois de um outro livro de páginas brancas se ter tornado popular entre os liberais, de seu título: “Porque é que Trump merece confiança, respeito e admiração”.»

Afinal, entre os ganhos que só eu imagino, as páginas em branco, as convicções que eu alucino, a sorte e o descaso e o défice total de imaginação – rimos de quê quando a roleta rola?

18/04/17

Não era a lua quem cruzava a perna, era ela. E não havia nuvens naqueles joelhos. Que belo avental seria eu para a sua nudez, desejei. Chegou a minha filha ao café e baixou-me a gripa, desviando-me da sombra dos salgueiros, mangueiras e jacarandás, dos recônditos e miríficos leitos onde se escrutinam os buracos que existem numa agulha. Pai, posso ir passar o fim-de-semana a casa da minha amiga? A entrada da miúda já me tinha eliminado a vantagem inicial, agora, nas costas dela, via-la retirar-se, a dos joelhos cor de cobre, rompido o fio da oportunidade. Responde rápida, já estou atrasada; a minha amiga está no carro lá fora, com o pai, estão à minha espera. Percebo aí o sentido do verso de Rene Guy Cadou:”Je suis en retard sur la vie.” Crescer é isto: ficar em atraso com a vida. E então respondo: não, não podes! Mas porquê? Porque a prontidão do livre arbítrio é um dos direitos inalienáveis de ser pai!

Quem é o porco-espinho que me bufa junto à prata dos cabelos?

20 Abr 2017

Teatro | Comuna de Pedra apresenta “Canções dos Migrantes”

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]oucos nasceram em Macau e quase todos vieram do lado de lá. Da China, de Portugal, das Filipinas, de Taiwan. A sociedade local é complexa e cheia de diferenças culturais mas é, sobretudo, feita de migrantes. Jenny Mok, directora da Associação de Arte e Cultura Comuna de Pedra, quis mostrar isso mesmo no seu novo projecto, que será apresentado nas Oficinas Navais, nos dias 14 e 15 de Maio, no âmbito do Festival de Artes de Macau (FAM).

“Canções dos Migrantes” é um espectáculo de teatro físico que entrelaça diferentes experiências de migrantes. Para isso, Jenny Mok foi buscar um actor filipino, uma actriz brasileira, nomes de Taiwan e de Hong Kong. Porque a sociedade não é apenas composta pelos que vieram da China nas décadas de 70 e 80, dos que vieram para trabalhar nas fábricas e na construção civil com as suas famílias.

“Há um processo colaborativo”, conta Jenny Mok em entrevista ao HM. “Com estas histórias diferentes, que representam pessoas diferentes, vindas de vários lugares, tentamos procurar a resposta a esta questão: o que é a identidade nesta longa história de migração? O que significa para Macau ser um território destes enredos? Porque sem estas experiências este território não tem história”, aponta a directora da Comuna de Pedra.

O espectáculo é composto por três fases, sendo uma ideia que já existe na cabeça de Jenny Mok desde 2014. “Nesta primeira fase do projecto apresento uma peça de teatro físico onde as pessoas partilham. Não tenho as histórias tradicionais, com personagens, um guião. O espectáculo tem menos disso mas crio mais ambiente, há texto, mas não é propriamente um enredo. Tenta focar-se mais na experiência que o público obtém através dele.”

A falta de uma terra natal

Jenny Mok é ela própria um resultado de uma migração do Continente. Os pais já tinham um filho quando se candidataram a um visto de trabalho para Macau. “Eu nasci só pelo facto de eles se terem mudado para cá, porque viviam sob um regime comunista, tinham uma vida completamente diferente e o meu irmão tinha nascido há dez anos. Só o facto de terem tomado essa decisão já afectou a minha vida, porque eu nasci, e isso trouxe um corte emocional e intelectual em relação à minha ideia de terra natal.”

Hoje Jenny Mok assume não sentir que a China é a sua terra natal, embora tenha memórias e algumas ligações. “[A terra natal] é suposto ser o local onde os meus pais nasceram e cresceram, mas não sinto nada em relação ao sítio que é suposto ser a minha terra natal. Ao mesmo tempo, tenho muitas memórias de infância de Macau, das pessoas que trabalhavam o tempo todo nas fábricas.”

A vinda dos migrantes da China, tal como todos os outros, é feita de necessidades e de escolhas por uma vida melhor. “Nos anos 80 houve uma abertura económica e as pessoas começaram a abrir muitas fábricas em Macau, e começaram a ser necessários mais trabalhadores. Apareceram muitos imigrantes ilegais, a vida era muito difícil, e muitos queriam escapar ao que restou da Revolução Cultural. Acreditavam que iriam ter uma vida melhor se viessem para Macau ou Hong Kong. Os meus pais não têm histórias incríveis como existem por aí, histórias de pessoas que nadaram nove horas para chegar aqui, ou de outras que vieram escondidas. Simplesmente candidataram-se a um visto de trabalho.”

Jenny Mok acredita que faz falta contar as histórias dos outros migrantes, dos antigos e dos mais recentes, que muitas vezes permanecem na sombra. “Constroem as casas onde moramos, trabalham para nós, mas não sabemos nada sobre eles. Têm acidentes, morrem, não nos preocupamos. Todos têm diferentes histórias, seja um trabalhador das obras ilegais que vem da China ou um filipino.”

A ausência de cultura

Apesar do sucesso em termos de bilheteira que o FAM tem registado, a directora da Comuna de Pedra garante que a maioria da população continua a não sentir necessidade de consumir cultura.

“Não é uma prática comum. As pessoas chegam ao fim-de-semana e não pensam ‘vamos a um concerto, vamos ver uma exposição’. Há pessoas que vão, mas essa não é a maioria. Se um evento tiver a presença de uma celebridade [há uma maior participação], mas se as companhias locais estiverem a apresentar um espectáculo, o público não vai além das 1500 pessoas, no máximo. E fica por aí.”

Jenny Mok defende que a origem desse problema é a própria educação que é transmitida. “As pessoas sentem que ir a eventos culturais é algo da classe média, algo luxuoso. Mas há um problema educacional, de que a arte não é importante, não é apreciada. A educação das artes, como existe hoje, está a afastar as pessoas. Os alunos do ensino secundário não têm aulas de arte, fazem uns trabalhos com plasticina, com moldes, coisas aborrecidas.”

Apesar dessa realidade, a Comuna de Pedra assume continuar a querer fazer coisas diferentes, numa altura em que está prestes a celebrar o 21.º aniversário. “É um desafio e uma atracção para mim. O teatro já representa uma minoria, e o teatro físico é ainda mais específico, porque as pessoas dizem que não há guião, não há história, não vão entender. Todos os artistas fazem coisas para eles próprios, e, no meu caso, se não fizer o meu coração bater, então não faço”, conclui.

23 Mar 2017

Carla Maciel: “Adoro o que faço. Sou uma privilegiada”

Carla Maciel

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á vinte anos que vens trabalhando em teatro, cinema e televisão. Imagino que exijam esforços e técnicas diferentes. Podes explicar-nos quais as maiores diferenças que encontras nesses diferentes modos de se ser actriz? E tens alguma preferência por um deles? E a tua preferência foi mudando ao longo dos anos, ou sempre se manteve a mesma?
O meu pai era um apaixonado pela música e em criança comecei juntamente com ele a aprender a cantar e tocar guitarra. Durante a infância e a juventude a música e a dança ocupavam a maior parte do meu tempo. Até que aos 17 anos entrei numa escola de teatro no Porto. Tive o privilégio de ter um enorme background do que poderia ser este universo tão fascinante e ao mesmo tempo tão assustador. O teatro apareceu de uma forma espontânea. Não tenho preferências. Adoro o que faço. Sou uma privilegiada . Gosto de fazer de tudo um pouco. Depende muito das fases e do trabalho que aparecer. Até agora tem sido muito equilibrado mas confesso que o cinema tem sido a linguagem que menos tenho trabalhado.

Há sempre alguns personagens que marcam mais as actrizes, quais foram os personagens que mais te marcaram até hoje? E por quê?
Fiz muitos personagens ao longo da minha carreira. Passei por várias companhias desde o Porto até chegar a Lisboa e tive a sorte de interpretar grandes personagens. Houve uma personagem que dada a exigência de transformação me deu muito gozo fazer, uma velha alentejana (inspirada na minha avó) no Teatro Meridional. O espectáculo chama-se Amanhã, de José Luis Peixoto. Nos últimos anos a Madame Bovary, de Gustave Flaubert, tão inteligentemente encenada pelo Tiago Rodrigues; e Albertine, a partir de Marcel Proust, e tão brilhantemente escrita e encenada pelo Gonçalo Waddington. Em televisão também tive a sorte de fazer bons papéis.

De há uns anos a esta parte tens trabalhado com o teu marido, o Gonçalo Waddington, há algumas desvantagens em levarem o trabalho juntos para casa, ou são só vantagens?
A minha parceria com o Gonçalo nasceu instintivamente. Conhecemo-nos e ambos tínhamos um percurso artístico e objectivos semelhantes. À medida que fomos crescendo e amadurecendo, fomos conciliando os nossos sonhos sempre com a nossa vida pessoal. Claro que traz desvantagens e riscos, adoramos debater, somos os dois muito activos mas sempre com espírito de equipa, de colectivo, pelo respeito mútuo na discussão das ideias. Juntar o útil ao agradável e porque não? Dois casamentos numa única lógica. Respeito, cumplicidade, e muito amor pelo que fazemos.

Uma outra actividade à qual tens emprestado o teu tempo é o da leitura de textos literários. Embora hoje não seja uma actividade exclusiva de actores – há, aliás, cada vez mais não actores a fazerem leituras –, os actores fazem-nos melhor?
Comecei a ler muito tarde. Sou uma auto didacta. À medida que ia trabalhando com encenadores e colegas, fui escutando e absorvendo informação. Nomeadamente livros que eram bases importantes para o entendimento do próprio espectáculo. Com os anos comecei a sentir falhas estruturais, senti que precisava de ler os clássicos por exemplo, os filósofos, a poesia e por aí adiante. Qualquer pessoa que lê muito, sabe ler um texto. Claro que os actores têm mais facilidade, talvez pela colocação da voz, alguma interpretação e talvez um maior à vontade. Mas depende dos textos.

Qual achas que está mais pujante hoje, em Portugal, o teatro ou o cinema?
Penso que ambos estão pujantes. O cinema tem dado provas que cada vez mais há novos realizadores e de qualidade. Neste momento encontram-se um grande número de curtas e longas metragens fora do país, em festivais, a mostrar que o nosso cinema português apesar das dificuldades existentes ainda tem cinema de excelência. Estreou recentemente o filme do Marco Martins, São Jorge, que é a prova disso. Em relação ao teatro existe cada vez mais criadores, estão a nascer novas companhias, e os teatros, que têm vindo a criar diferentes dinâmicas para que o público consiga ter opção de escolha do teatro que pretende ver, apresentam-nos cada um a sua linguagem, trabalhando cada um deles para públicos diferentes. Considero que estamos no bom caminho. Apesar das dificuldades sentidas temos de ser perseverantes e exigentes continuando a mostrar o quanto a cultura é essencial. Nunca desistir.

Que projectos para este ano?
Este ano entro como actriz na segunda parte de uma tetralogia escrita e encenada pelo Gonçalo Waddington, O Nosso Desporto Preferido – futuro distante, com estreia em Abril no Teatro Municipal São Luiz. E em Novembro junto-me á actriz Teresa Sobral para criarmos um espectáculo com um texto do Gonçalo M. Tavares que tem estreia prevista para Janeiro de 2018. O ano ainda se preenche com um mestrado de teatro, ser mãe intensivamente, leituras e o que imprevisivelmente aparecer.

10 Mar 2017

Vencer a gravidade

Possolo, Lisboa, 11 Fevereiro

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]elder Macedo veio lançar o estimulante «Camões e Outros Contemporâneos» (Presença), mas ainda teve tempo de ir ao Obra Aberta e à Escola de Escritas do mano Luís Carmelo, onde dissertou sobre a demanda que fez dele ensaísta, ficcionista e poeta. Demanda em busca de si, com passagem pelo Gelo e pelo Império, e do outro, sobretudo o obscuro feminino. Helder transporta-nos ao avesso dos orgânicos movimentos da inteligência que podemos ver em acção, putos fascinados na torre do relógio. Algumas traduções bíblicas, descobriu ele, investiam na palavra moça o sentido de alma. A outra luz se lê o «Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe», de Bernardim. De corpo e alma, partiu ela. De alma e coração, fico eu a ouver Helder Macedo.

Horta Seca, 13 Fevereiro

A Companhia Nacional de Bailado, ainda sob direcção da Luísa Taveira, foi convidando um grupo heteróclito de poetas para dançar. Quer dizer, para se sentarem a ver. Chegou hoje a antologia de inéditos da temporada de 2016. O inevitável desequilíbrio em nada mancha a boa ideia, depositada agora nas cadeiras de quem arrisque deixar-se impressionar pelo sublime esforço. De Fernando Luís Sampaio, ressoam-me «as canções mais tristes/do meu tempo» (…) «Canções queimadas por mil vozes, onde a língua se precipita». E tocou-me a agreste melodia de Margarida Vale de Gato atirada à filha: «Peço de ti o que não te ocorre perguntar e tenho/para te apontar este mundo cheio de lapsos, é certo./O mundo está cheio de mortos que não chegam/a cair, o mundo está cheio de mortos que são vivos/com pouca sede (…)» Pelo meu lado, lá consegui erguer a fio-de-prumo tristonhos versos, depois de horas no escuro a ver corpos erguer-se muito acima. De si e destes dias rasteiros.

Teatro Nacional, Lisboa, 14 Fevereiro

Era questão de tempo. Estou sempre a perder o combate com a agenda e costumo atirar-me para cima dela na velha táctica de peso morto para suster a vaga de golpes, mas desta vez ultrapassei uma linha qualquer. Ontem vi-me à porta de um Nacional na semi-obscuridade das segundas-feiras. A conversa aprazada entre Carlos Fiolhais, Miguel Loureiro e Gonçalo Waddington, em torno de «O Nosso Desporto Preferido – Presente», há muito estava marcada para hoje, São Valentim. Como bem notou o arguto e divertidíssimo Carlos, melhor dia não haveria tendo em conta a proposta radical da peça para alcançar civilização de tipo superior: a abstinência sexual. Precisava, portanto, vencer, qual bailarino com a gravidade, a lei da física que me impedia de estar ao mesmo tempo em dois sítios diferentes, aqui e no lançamento do Helder. Não consegui, pelo que fiquei a ouvir o Miguel ler na perfeição excerto dos mais interrogativos, em páginas de torrencial poesia onde ecoam os gregos, essa natural raiz das coisas. A língua é desbragada e precipita-se. Uma cadeira arma-se em personagem principal. Temos deuses a insultar-se e um Michel, que só pode vir de Houellebecq. Ninguém como o Gonçalo usa em palco a ciência como instrumento de perguntar futuro, no caso a possibilidade de livrar a espécie humana das necessidades básicas. O Carlos soltou leitura desconcertante e erudita, em torno do cientista enquanto ladrão do fogo dos deuses, que será hoje a decifração final do código genético. Mas também na qualidade de pateta aprendiz de feiticeiro. Em ciência, a utopia acaba quase sempre em distopia, disse ele que sabe. Na peça, a experiência tem tudo para acabar mal. Por aqui, a conversa continua: é uma tetralogia…

Convento de Jesus, Setúbal, 15 Fevereiro

Não tinha ainda atravessado estas portas manuelinas para o interior da justa recuperação de Carrilho da Graça, dado voltas ao claustro onde Zeca e tantos outros cantaram, mirado as gárgulas a quererem soltar-se dos calcários. Detalhes, neles se encontra Deus e um espinho da coroa de Cristo ou um osso de S. Sebastião. Queria tanto tempo para me perder! Somos senhores de grandes tesouros e deles tão pouco usufruímos. Perderia horas prestando vassalagem a Santa Gerturdes, esta representação do mistério em corações inflamados, o olhar desejando a luz, os lábios ardendo em oração.

Ainda inebriado pelas visões, acabo em excelente companhia a usufruir de um divinal ensopado de pata-roxa, servido pelo castiço Luís Rebelo, n’A Casa do Peixe. Prosaicamente.

Horta Seca, 16 Fevereiro

Faz toda a diferença ver os originais do António Jorge Gonçalves para este seu livro que irradia «o esplendor dos corpos que dançam/Na órbita da morte», como escreve o Fernando Luís no seu poema. Em folhas de banal espessura e formato, desenhou a marcador em negativo. A cor acontece em folha separada com a transparência da aguarela. A combinação destes elementos aproxima a linguagem da gravura, mistura de tempos e tradições, fundo exacto para a dança da morte que coreografou. Cada imagem ganha peso de símbolo, abrindo para múltiplas leituras em jogo de espelhos. Mais um caso único, que merecia ser lido fora das fronteiras estritas do seu género.

Na inauguração, tivemos casa cheia, sobretudo com as gargalhadas de Novo de Matos, o desenhador de bisturi que lhe salvou a vida.

«A Minha Casa Não Tem Dentro», mas tem uma menina que desenha. E uma morte que anda com ela de comboio. Menina e morte as trouxeram de muito longe de regresso ao pai.

S. Luiz, Lisboa, 18 Fevereiro

Nisto, estou em palco rodeado de crianças a perceber que as minhas histórias para as mais disparatadas infâncias nascem do esforço de tudo e mais alguma coisa em ser outra coisa. Outra coisa um pouco mais que tudo. No Poesia-me, da Inês Fonseca Santos, circulou como arrepio a perguntinha: que queres tu? Pois, se o pretexto era o «Querer Muito», que tanto deve ao camaleónico talento do André da Loba. Às tantas, sobrou para mim. Costumo dizer a verdade do «astronauta», que me acompanhou longe no tempo, mas naquele instante quis ser «bailarina». Sem que tivesse dado por isso, sentada aos meus pés estava uma querídissima, de tutu e tudo. Ofereceu-se para dar lições, que começaram finda a sessão, ainda em palco para não perder minuto. Aprendi as três posições principais, mas não o nome dela. Tolo.

22 Fev 2017

Teatro | CCM estreia este fim-de-semana a comédia “Idiot”

Com “Idiot”, a companhia teatral de Macau Canu Theatre traz-nos um espectáculo de comédia onde não há diálogo e em que as expressões corporais, à maneira da personagem Mr. Bean, fazem tudo o resto

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o Japão, uma mulher coloca um anúncio para recrutar um rapaz que lhe faça uns recados durante o dia e tudo o que ela pedir. Um jovem decide responder para ver o que acontece mas, se para uns essa decisão pode ser idiota, para outros pode ser apenas algo diferente. Quem são, afinal, os idiotas do nosso dia-a-dia? É este o mote para a história de “Idiot”, a mais recente produção da companhia teatral local Canu Theatre, que estreia na próxima sexta-feira no Centro Cultural de Macau (CCM), com mais um espectáculo agendado para sábado.

O público poderá ver um exemplo de teatro físico de comédia, sem diálogo entre os seus personagens. Joyce Chan, produtora do espectáculo, contou ao HM que tudo começou em França, onde estudou com Sami Abu Wardeh, actor que dará corpo à personagem principal. Lá teve o primeiro contacto com a forma de interpretação utilizada pelos palhaços e percebeu que tinha de fazer um espectáculo com estes elementos. Daí até à viagem ao Japão, onde viu um anúncio semelhante ao que deu mote à peça, foi um passo. “Os palhaços não fazem propriamente uma interpretação, mas fazem bastantes gestos e usam muito o corpo para transmitir mensagens. Mostram-se bastante ao público, é algo que vem de dentro, intimista. É diferente dos guiões que escrevemos para outro tipo de personagens”, explicou a autora de “Idiot”.

A opção por um espectáculo de comédia acabou por ser natural. “Durante o meu curso tivemos aulas sobre comédia e tragédia. Sempre que fazia trabalhos na área da comédia, e via as reacções do público a rir, sentia-me muito satisfeita, percebia que o público reagia de forma entusiástica ao que via. Pensei também que em Macau não há muitos espectáculos de comédia, então achei que seria uma boa oportunidade para trazer estes elementos para cá e fazer com o que o público local tenha acesso ao que aprendi em França.”

A inspiração de Mr. Bean

Sendo a primeira vez que pisa os palcos de Macau, Sami Abu Wardeh, londrino, revela-se expectante sobre um projecto que considera único. “Tem sido incrível trabalhar neste espaço e ter acesso a todas estas infra-estruturas. Temos muita liberdade para experimentar coisas diferentes”, disse. “Este tipo de interpretação, para mim, é mais honesto, temos mais liberdade, porque a maior parte das interpretações são isso mesmo, interpretações no sentido mais estático. Estou feliz por estar neste projecto. É algo alternativo sob várias formas, não vemos muitos projectos como este”, contou o actor ao HM.

Para Sami Abu Wardeh, a inspiração para compor o “idiota” veio de dois anos de trabalho com Joyce Chan, e também do famoso personagem da série televisiva Mr. Bean, interpretado por Rowan Atkinson. Joyce Chan admitiu que teve de fazer algumas adaptações ao público de Macau na hora de escrever a peça. “O início do projecto não foi fácil porque, no estrangeiro, a reacção à comédia é diferente, muitas vezes é difícil compreender o que é engraçado e o que não é, então fiz algumas adaptações para o público de Macau. Combinei vários elementos.” Fazer um espectáculo sem diálogo é, para Joyce Chan, uma forma mais libertadora de representar. “Uma performance sem linguagem oral é importante porque temos vários actores estrangeiros e usamos muitos gestos e expressões corporais. É uma forma bonita de contar uma história. Espero que as pessoas possam ter uma nova perspectiva, de que uma peça sem diálogo pode funcionar.”

Rir em Macau

Sendo a comédia um género pouco comum em Macau, Joyce Chan espera mudar mentalidades e aproximar o público a um tipo de espectáculo que é raro acontecer no território. “As pessoas gostam de comédia. Tudo depende do pensamento pessoal de cada produtor e a dimensão que pretende trazer para o público. Todos podem ter humor nos seus corações, todos podem sorrir. As pessoas de Macau vão gostar muito deste espectáculo”, apontou. Na calha está uma nova peça, também de comédia, mas mais virada para a crítica do panorama político local. Joyce Chan revelou estar confiante. “No curso abordámos também outro conceito de comédia com base na crítica política, onde exageramos expressões corporais. No futuro gostaria de fazer um espectáculo assim. O Governo de Macau dá-nos a liberdade para falarmos e esse espectáculo que quero fazer é uma forma leve de fazer comédia sobre questões políticas, por isso é que acredito ser possível levar esse projecto avante.”

8 Fev 2017

Espectáculo “Made in Macau 2.0” recorda vivências nas fábricas

É já em Fevereiro que estreia em Macau o espectáculo “Made in Macau 2.0”, que retrata o tempo em que milhares de pessoas vieram do Continente para trabalhar nas fábricas de Macau. Teresa Lam, mentora do espectáculo de teatro documental, optou por contar a sua história de vida, num misto de ficção e realidade

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi por pouco que Teresa Lam não nascia no meio de uma fábrica de têxteis, a meio da noite. A mãe, imigrante oriunda da China, sem posses económicas, sentiu as fortes dores do parto e foi sozinha para o hospital. Estávamos em 1980 e em Macau o boom do turismo ainda não se fazia sentir. Havia dificuldades económicas e muitos procuravam emprego.

Foi esta a realidade que Teresa Lam optou por retratar no projecto de teatro documental “Made in Macau 2.0”, que subirá ao palco do edifício do antigo tribunal nos dias 18 e 19 de Fevereiro. Ao HM, Teresa Lam explicou por que optou por ser a personagem principal da sua própria criação.

“Este projecto é sobre a minha família, que saiu da China para se estabelecer em Macau, e conta a história de como cresci numa fábrica têxtil. Nos anos 80 e 90 as fábricas eram muito comuns. Claro que, depois, a indústria do turismo tornou-se dominante e todas as fábricas foram fechando. Faço parte da geração que assistiu a esta rápida mudança, porque nasci em 1980 e a primeira parte da minha vida vivi-a numa antiga colónia portuguesa, mas depois tive de regressar à China com a minha família. Somos a geração que mais vivenciou esta rápida transformação da história de Macau.”

Sendo uma mistura de teatro documental com storytelling, “Made in Macao 2.0” pretende mostrar à sociedade dos dias de hoje a história de um tempo passado. “Esta é uma colecção de memórias muito especial para as pessoas de Macau. Espero que o público possa recordar os tempos difíceis de Macau por comparação a uma fase em que temos o PIB mais elevado do mundo”, defendeu Teresa Lam.

Para a mentora deste projecto, só faria sentido falar de si mesma se fosse para mostrar a história de tantas outras pessoas. “Pensei que, se fosse falar de mim, teria de ser mostrando toda a Macau e como o território mudou. E como as ideologias foram mudando, porque os nossos pais mudaram-se para Macau devido à situação política na China naquela altura. As suas visões são muito diferentes. O público poderá ver como nascemos e crescemos. Praticamente nasci na fábrica.”

Experiência checa

Esta não é, contudo, a primeira vez que este espectáculo sobe ao palco. Tudo começou em Praga, na República Checa, onde Teresa e Kevin Chio, produtor do espectáculo, fizeram os seus mestrados nesta área.

“Em dois anos fizemos um projecto final e decidimos que tínhamos de fazer algo sobre Macau. Ficámos muito felizes com um contacto que conseguimos com um centro de arte performativa local, um dos maiores de Praga. Foi importante porque a maioria dos teatros são em checo, mas este está aberto a profissionais do estrangeiro e, por isso, conseguimos apresentar o nosso projecto. Também cooperamos com artistas de Praga ligados ao teatro documental.”

Para Teresa Lam, estar em Praga e apresentar lá o seu espectáculo foi importante do ponto de vista criativo. “Conseguiram transmitir-nos uma visão estrangeira ao projecto, porque muitas vezes introduzimos elementos de uma cultura, como os pauzinhos, e não compreendemos como os outros vão olhar e entender esses elementos culturais.”

No ano passado, Teresa Lam e Kevin Chio foram convidados para regressar à capital checa, onde fizeram a segunda fase do “Made in Macau 2.0”, que vai agora ser apresentada ao público local.

Apesar de conter uma boa dose de realidade, “Made in Macao 2.0” também será feito de ficção. “O espectáculo vai mostrar a realidade, mas também alguma imaginação, sobretudo sobre o período anterior ao meu nascimento, quando os meus pais vieram para Macau. Abordo também os amigos dos meus pais, que não tiveram a mesma sorte de vir para o território. Fiz alguma pesquisa sobre isso e criei alguma ficção à volta desse período”, concluiu.

O espectáculo está a cargo da companhia de teatro alternativo Rolling Puppet, fundada por Teresa Lam, e será apresentado ao público no dia 18 de Fevereiro às 20h e no dia 19 de Fevereiro às 15h. Os bilhetes já se encontram à venda.

19 Jan 2017

A morte dos deuses é a morte da humanidade

17 DE DEZEMBRO DE 2016, LISBOA

[dropcap]O[/dropcap] céu de chuva dos dias anteriores afastou-se e o dia chega com sol e no mar ondas vigorosas, alguém, em redacção de jornal prepara notas laudatórias para cronologias de morte anunciadas. A cidade vive nesta tarde uma morte profunda, inevitável como todas, por isso absolutamente inaceitável, marcada com o ferro de cronos, irremovível, doentia, miseravelmente fútil. Acresce que ao incontornável aperto do tempo, a companhia viu-se sujeita a contornos orçamentais que, no seu entendimento, não permitem a continuidade do seu projecto, “a intenção de construir um teatro de reflexão com uma função activa na realidade cultural portuguesa”. Ainda talvez incerto, torna-se provável que a Companhia Cornucópia tenha terminado nesta tarde a sua longa, única, brilhante, e inestimável carreira. Em actividade desde 1973, levou a cena, 126 criações, cerca de 5. 100 representações, algumas estreias mundiais, encenadores convidados, co-produções, dezenas de actores em palco. Entre outros escritores dramaturgos, William Shakespeare, Tchekov, Moliére, Genet, Pasolini, Strindberg, Holderlin, Brecht, Garcia Lorca, Gil Vicente, Camões, Almeida Garrett, António José da Silva, Botho Strauss, Samuel Beckett, Heiner Müller, Raul Brandão, Edward Bond, Rui Belo, Rainer Werner Fassbinder, Arthur Schnitzler, Johann Wolfgang von Goethe, Aristófanes, Diderot, Voltaire, Marquês de Sade.

Luís Miguel Cintra, visivelmente cansado e doente, é um gigante da cultura portuguesa do último quarto do século XX e deste início de do XXI. Actor com presença magnética, de profunda sensibilidade e investigador da alma humana, foi e é presença referencial na cinematografia de Manuel de Oliveira, e marco na investigação estética do teatro contemporâneo.

A cidade empobrece, ficamos todos mais pobres, os que se revêem no projecto de criação e no talento do “Teatro do bairro alto” , e aqueles outros, e são muitos, demasiados talvez, que nada conhecem do homem nem da companhia de teatro, ou mesmo aqueles que conhecendo, ou pensando conhecer, estão contra este teatro que nunca quis ser de efeito comercial fácil e alegria tautológica à construção da imbecilidade humana.

“A cidade empobrece, ficamos todos mais pobres, os que se revêem no projecto de criação e no talento do “Teatro do bairro alto” , e aqueles outros, e são muitos, demasiados talvez, que nada conhecem do homem nem da companhia de teatro.”

São várias as vozes que pululam nos comentários nas redes sociais à notícia do fim da companhia, com afirmações tão esclarecidas como certamente quem as produz, de que se a companhia não consegue viver com o subsídio que lhe foi atribuído e com as receitas de bilheteira, deve fechar a porta, também ficam a perder a possibilidade de mais facilmente vir alguma a perceber qual a dimensão deste projecto na elevação do pensamento arcaico ao civilizacional, a relevância da cultura nas sociedades e nas relações entre povos e países.

Entretanto, há outras vozes, sem dúvida mais sábias, e igualmente neste sábado 17 de Dezembro, surge a possibilidade de, talvez, a companhia poder resistir algum tempo mais, a possibilidade de Luís Miguel Cintra e Cristina Reis ( que há dezenas de anos assina o espaço cénico das sucessivas criações) se mantenham em actividade.

Uma conversa em palco, improvisada, sem prévio ensaio, inesperada, e talvez auspiciosa. O Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rabelo de Sousa decidiu ir a palco, o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, também o faz, é um texto em cada um é autor próprio. Luís Miguel Cintra tem esta conversa talvez anteriormente imaginada, mas não programada. Prova-o o cancelamento da visita agendada a Castelo Branco do Ministro da Cultura.

Talvez que o problema do financiamento possa ser ultrapassada favoravelmente à continuação do teatro do Bairro Alto em função criativa, dando continuidade ao que tão brilhantemente tem feito; interrogar o homem sobre os seus anseios, medos, sonhos, fragilidades, grandezas. Ajudar-nos a perceber o que é a final estar vivo em sociedade, o que somos e o que podemos ser.

Talvez Lisboa não tenha cado irremediavelmente mais pobre neste dia, ainda que seja breve e efémero, também o tempo dos mestres, todos ganhávamos com o esforço empenha- do e consistente da tutela no anular, ou avançar no tempo, a perda.

21 Dez 2016