Encruzilhadas

[dropcap]D[/dropcap]epois dos Mestres Cantores eis os Mestres Decapitadores: é uma fanfarra enleada em bosta de cão, na farsa deste século que tropeça nos próprios pés. O pai de uma aluna e um militante islamita radical emitiram uma “fatwa” contra Samuel Paty, o professor decapitado na sexta-feira na região de Paris. É um ver se te avias de fátuas e peregrinas arrogâncias, depois dos 15 segundos de Fama do Andy Warhol temos os 15 segundos de Empolamento do Poder Divino.

Dizem os testemunhos, Samuel tratou com deferência os seus alunos islâmicos e antes de mostrar as caricaturas de Maomé nas aulas explicou-lhes porque teria de as mostrar aos outros colegas, não os desrespeitou nem o seu gesto tinha um carácter denegridor.

Em 2006, por ingenuidade minha, na universidade em Maputo, querendo mostrar como as nossas escolhas quanto à identidade sexual que assumimos têm o seu quê de construção social, passei nas aulas o filme Crying Games/Jogo de Lágrimas, de Neil Jordan, um dos mais belos filmes que conheço sobre o amor e os conflitos que este pode gerar se toma uma feição desviante em relação à intratabilidade da educação que nos condicionou.

Fui depois chamado à direcção do departamento: para um grupo de estudantes islâmicos eu havia “pecado” ao mostrar um transsexual nas aulas e ao falar desassombradamente de sexo. Chocou-me não terem sido frontais, o espírito de baixa bufaria entranhado. Foram umas semanas de tensão no relacionamento com os alunos.

Chegado de outras coordenadas não imaginava que o filme chocasse jovens universitários e supus que as virtualidades do debate que o filme suscitaria seriam vantagens sobre qualquer melindre.

Tive sorte, o então coordenador do curso meteu-se do meu lado e “decapitou” logo a avançada moralista; estou incerto sobre se o resultado seria o mesmo agora – e este retrocesso é uma realidade descoroçoadora.
Hoje, na fronteira norte, supostamente a 3000 km de uma ilusória geografia, decapitam-se pessoas por dá aquela palha.

Esta semana, a minha amiga Aliete Matias, postou no fb esta fotografia de Jessica Antola, de uma Mãe Mursi (uma etnia da Etiópia) armada, e comentou “não encontro palavras para esta foto”. Também não encontro, mas aquela arma é para defender o filho nos portais do inferno com que aquela mulher se depara regularmente.

Agora que um filho da mãe de um burguês – a ouvir no leitor de cds de um Peugeot da última gama o mais recente disco da Fatoumata Diawara, baixado do Youtube – enquanto aguarda nos semáforos, decida lançar uma fatwa sobre um professor (tudo o indica) que não quis provocar, de modos delicados, num país que não reconhece a alegação da apostasia, é demasiado cínico e macabro.

“Um dos nossos compatriotas foi morto hoje porque ensinou a liberdade para acreditar e não acreditar”, acrescentou Emmanuel Macron. Como deve proceder a democracia diante de quem enfia o garfo no coração dos seus direitos mais profundos e o revolve? Como reagir face aos que usam a liberdade para negar a dos outros e não sabem viver senão em suposto apostolado?

Há um aforismo do poeta Wallace Stevens que talvez aqui caiba: «A intolerância a respeito da religião dos demais é tolerância comparada com a intolerância a respeito da arte dos demais». Ou seja: talvez não seja só a nossa liberdade que está em jogo como também a nossa arte, vista à luz dos radicais islâmicos. Lembremo-nos das estátuas dos Budas em Gandara.

Se o apelo da preservação da liberdade não for suficiente como reacção civilizacional que ao menos o da defesa da arte seja uma razão suficiente para a urgência de pensar e articular uma resposta para estes problemas, sem esquecer que é no vazio do pensamento que se localiza o ninho da víbora.
Sem isso, só se seguirá aquilo que Houellebecq previu: a obediência.

E já que chamei o poeta à liça aproveito para apresentar uma primeira selecção dos 289 adágios ou provérbios que o Wallace Stevens deixou e a que os organizadores, num livrinho póstumo, deram o nome de Adagia.  Esta é uma primeira selecção de entre os cento e cinco primeiros. A tradução é minha:

Cada era é uma casinha no pombal.
Dos vermes, faz o poeta trajes de seda.
Os poetas de mérito são tão aborrecidos como a gente de mérito.
O pensamento é uma infecção. No caso de certos pensamentos converte-se em epidemia.
Parece o poeta outorgar a sua identidade ao leitor. É mais fácil reconhecer isto quando se ouve música. Refiro-me ao seguinte: à transferência.
A imaginação deseja que a consintam.
A coisas vistas são as coisas como são vistas.
Tem em conta: I. Que o mundo inteiro é matéria para a poesia; II. Que não existe nenhuma matéria especificamente poética.
O poeta é o intermediário entre as pessoas e o mundo em que vivem, e também entre as pessoas entre si; mas não entre a gente e algum outro mundo.
A poesia não é o mesmo que a imaginação tomada isoladamente. As coisas são em virtude de interrelações ou de interacções.
A poesia deve ser algo mais que uma concepção da mente. Deve ser uma revelação da natureza. As concepções são artificiais. As percepções são essenciais.
Ler um poema deveria ser uma experiência, como quando se experimenta um acto.
A morte de um deus é a morte de todos.
Em presença da facticidade extraordinária, a consciência toma o lugar da imaginação.
Tudo tende a tornar-se real; o todo move-se na direcção da realidade.
(à suivre)

22 Out 2020

A fé subtil das imagens e a miragem da poesia

1

[dropcap]A[/dropcap]ntes do ovo apenas se poderia supor o impensável. O impensado. Qualquer coisa como a outra varanda da casa, de onde apenas os deuses podiam gozar das vistas. Foi o que abruptamente se me tornou possível no dia em que a fotografia foi inventada. De qualquer modo, antes de tecnicamente ter sido inventada, já a fotografia era essa vista inacessível. Essa suspensão da finitude. Mas não seria visível, já que se limitava a um desejo. Foi por isso que se mumificou no Egipto antigo, foi por isso que se deram 930 anos de vida a Adão, foi por isso que se idealizaram mitos como o de Prometeu. No dia em que avancei para a varanda proibida, pude desfrutar, através de traços porosos, é certo, daquilo que sempre me fora antes vedado: a magia tornada em matéria concreta.

Na nossa era, como sabemos, a captação fotográfica deixou de ser um instantâneo ritual tomado ao tempo. Contudo, na época analógica, a fotografia foi percebida como um meta-instante e havia nele ainda uma aura de sagrado que segmentava a diacronia. As imagens saltavam para os altares das salas de estar e dos quartos e compunham santuários com molduras a armar ao barroco. Via-se na fotografia uma subtil promessa de eternidade. Uma magia que incitava à fé.

Assim se evocavam os entes queridos já desaparecidos ou distantes. Assim se davam a ver as barbas dos grandes ideólogos de oitocentos a pairar nas cornijas de mármore ou nas publicações em papel. Assim se revia o furor das cidades e das máquinas modernas que assaltavam o animal que nós somos. A fotografia era um fado vadio com honras de santidade e a cultural material devolveu-lhe esse eco espiritual. A fotografia cresceu como uma arma de fé que celebrava os heróis, quer os domésticos, quer os que se substituíam aos velhos deuses. A fotografia era, afinal, o que já existiria antes do ovo.

Hoje a captura é ininterrupta e isso banalizou o tempo. Quer o da tomada, quer o da interpretação. Tudo se nivelou e esvaiu. Cada momento apaga o momento imediatamente anterior, através duma actualização galopante que faz com que a fotografia já não nos maravilhe, mas canse. Esse cansaço é simultaneamente o colapso de um dado tempo existencial e a aparição, a substituí-lo, de espaços desintegrados e sem contexto algum, o que, ao fim e ao cabo, é o território mais avesso à existência de heróis e aos alimentos da fé, seja ela qual for.

2

Façamos um breve parêntesis. Há vinte milhões de anos, as zonas mais altas de Lisboa eram um fundo marinho cheio de recifes. Uma paisagem deste teor não poderia ser observada de lado nenhum. Fosse como fosse, não seriam os humanos a tentar espreitar e fotografar através das águas, pois a espécie nem há meio milhão de anos surgiu. Segundo o paleontólogo Benjamin Burger da Universidade do Utah*, a média de duração de uma espécie ronda o milhão e setecentos mil anos, o que quer dizer que os humanos ainda têm três quartos do seu tempo pela frente, a não ser que o aquecimento nesta parte da galáxia os aniquile um pouco antes.

Estas considerações fazem-me lembrar uma discussão que mantive com um amigo comunista, há apenas um quarto de século. Argumentava ele que a nossa espécie ainda é jovem, razão pela qual a caminhada para o paraíso se torna inevitável no planeta. Mais milhão menos milhão de anos, tanto fazia, pois os verdadeiros heróis seriam os humanos no seu todo, concebidos à imagem de (um qualquer) deus. É o que se chama uma fé delirante.

Se eu fosse um tribuno a quem coubesse julgar a fé dos humanos, concluiria que ela tanto pode ser instrumental, se for levada a ombros por imagens fortes, sejam as que respiram em vitrais de uma catedral, sejam as da analogia fotográfica, como pode ser delirante, se for capaz de suprimir tudo à sua volta, à moda dos eucaliptos, com excepção para o pobre mortal que a sonha e pratica.

3

Benedetto Croce, no seu ‘Breviário de Estética’, escrito no ano de 1912, afirmou que a expressão poética contém em si um conhecimento de fundo que resulta do facto de a poesia se basear num princípio de universalidade e não no sentimento imediato, inevitavelmente preso a antinomias como a que, por exemplo, opõe o bem e o mal. É por isso que a poesia se elevaria por cima dessas contradições, posicionando-se para além dos conflitos e das realidades finitas. De qualquer modo, seria sempre possível descobrir nessa harmonia as marcas indeléveis do conflito e da dor que se imagina terem sido suprimidos.

A posição de Croce é de uma irrealidade bela. Por um lado, a elevação da poesia que defende baseia-se claramente numa fé que não careceria de imagens exteriores que a legitimassem e, por outro lado, esse arrojo não suprimiria o que nele não coubesse, o que lhe retiraria o epíteto de delirante (e de intolerante). Croce situa a poesia no impensado sem com isso nos desarmar.

Para Croce, apenas no plano da poesia o fundo marinho dos recifes onde viria a construir-se Lisboa e a aura fotográfica de retratos como o do meu bisavô materno permaneceriam em estado sólido e diante dos nossos olhos. Justamente por estarem fora do tempo e do espaço e, portanto, sem qualquer relação com a verdade, com o bem e o mal e com a própria duração da espécie humana. Só a miragem da poesia nos permitiria compreender que a fé se pudesse confundir com um gafanhoto antes de dar o seu grande salto. Fosse na direcção do início ou das pragas do fim da história; fosse sobretudo na direcção do impensado, esse território ideal ainda e sempre por concretizar. São estas irrealidades que me dão ânimo em tempo de pandemia.

*Sobre o paleontólogo Benjamin Burger, da Universidade do Utah: Vaidyanathan, G. E Viveram… [Em linha]. Público. 01/06/2014. Disponível em https://www.publico.pt/2014/06/01/ciencia/noticia/e-viveram-e-viveram-e-viveram-1634975 [Consult. 2 Julho de 2020].

16 Jul 2020

Livros | Antologia de poemas “Rio das Pérolas” apresentada hoje na Casa de Vidro 

São 24 autores a escreverem sobre a beleza e a singularidade do Delta do Rio das Pérolas. O coordenador da obra, e também poeta, António MR Martins partiu dos contactos já feitos aquando da sua participação no festival literário Rota das Letras e desenvolveu uma antologia poética que se insere no programa oficial das comemorações do 10 de Junho

 

[dropcap]A[/dropcap] imagem da capa é de Erik Fok, os autores são de Macau, por cá passaram ou por cá viveram e alguns ainda vivem. O pequeno território à beira do Delta do Rio das Pérolas plantado é o elo de ligação dos 24 poetas que se dedicaram a escrever sobre o território chinês onde também se fala português, inglês e tantas outras línguas e onde várias culturas se reúnem.

“Rio das Pérolas”, com coordenação do poeta português António MR Martins e edição da Ipsis Verbis, é uma antologia de poesia apresentada hoje na Casa de Vidro do Tap Seac e que se insere nas comemorações oficiais do 10 de Junho – Dia de Portugal, Camões e das Comunidades Portuguesas.

António MR Martins, autor de cinco poemas que compõem esta obra, fala ao HM de um livro que “ficou bonito” e que começou a ser pensado depois da sua participação no festival literário Rota das Letras, em 2016. “Comecei a consultar pessoas e houve adesão. A maior parte das pessoas começaram a apresentar os seus trabalhos, consoante aquilo que fui pedindo. Entretanto, deu-se a covid-19 e atrasou um pouco tudo.”

Neste livro “que é até acima da média em termos poéticos”, participam autores como Carlos Morais José, também director do HM, Ana Cristina Alves, António Graça de Abreu, Fernanda Dias e Fernando Sales Lopes, entre outros. Há também autores brasileiros como Natalia Borges Polesso ou Sellma Luanny, bem como autores de outros países de língua portuguesa, como é o caso de Deusa D’África ou Hirondia Joshua. A ideia, desde o início, era “escrever sobre Macau”. “O que está no livro é Macau, ou é algo sentido em Macau. E mesmo que não seja sobre Macau, foi aqui escrito.”

Era também fundamental que o livro fosse escrito em português. “Há autores que estiveram cá 30 anos, antes da transferência, há autores que estiveram cá na altura da passagem, que estiveram cá a relatar esses factos para a imprensa e para a televisão. Autores que estiveram também na rádio. Há a Macau descrita por pessoas que estiveram cá nos anos 80, anos 90 e a história dos autores de hoje. Toda essa panóplia de conhecimentos tem interesse para as pessoas que vão ler o livro”, apontou António MR Martins.

O “Rio das Pérolas” contém, portanto, poemas de autores que “encontraram no mito, nas lendas, situações para protagonizarem a sua escrita poética”, como é o caso de António Graça de Abreu, tradutor de poesia chinesa e, ele próprio, poeta. “É muito interessante na mistura escrita”, apontou o coordenador do livro.

Depósito de memórias

António MR Martins assume não conseguir escolher um ou vários poemas preferidos desta obra, porque, desde o início que “nunca se colocou nessa posição”. “Os poemas eram enviados, lia o poema para ver se estava tudo em condições, falava com as pessoas se houvesse algum problema. Este livro ainda não o li como leitor”, acrescentou.

Na obra, o coordenador de “O Rio das Pérolas” fala de um “significado emblemático e um valor enorme”, por serem “águas que encerram sentidos a oriente e englobam inúmeras histórias de milhões de pessoas, entre o imaginário e a realidade, muitas vezes míticas”.

No prefácio, Ana Paula Dias, doutorada em Educação e Interculturalidade e com formação em Estudos Portugueses, escreveu que esta antologia está radicada “nas memórias individuais e colectivas de um património comum de vivências” e nela “emergem ecos do cruzamento civilizacional com que os poetas aqui representados, portugueses ou de expressão poética em língua portuguesa, coabitam no quotidiano de Macau”.

Depois de ter coordenado uma antologia de poemas traduzidos para a língua romena, e também outra colectânea de poemas, António MR Martins diz ter o sonho de publicar um segundo volume de “O Rio das Pérolas”. “Pode ser que um dia aconteça um sonho louco, com mais autores que tenham interagido com o território”, rematou.

24 Jun 2020

Sara F. Costa, tradutora de “Poética Não Oficial – Poesia Chinesa Contemporânea”: “Há um trauma colectivo nestes poemas”

Depois de “Transfiguração da Fome”, Sara F. Costa decidiu embrenhar-se no mundo da tradução de poemas chineses escritos após um dos períodos mais conturbados da história da China. “Poética Não Oficial – Poesia Chinesa Contemporânea” traz uma selecção e tradução para português de 33 poemas escritos após a Revolução Cultural

 

[dropcap]P[/dropcap]orquê a escolha de autores do período pós-Revolução Cultural?

Apesar de eu me ter guiado por um certo enquadramento tanto a nível temporal como conceptual, realço que se trata de uma selecção que tem muito de pessoal. Vão encontrar nomes sonantes como Bei Dao, Hai Zi, Gu Cheng, mas vão encontrar nomes que só se encontram deambulando de leitura em leitura pela cena literária dos hutongs em Pequim ou no bar da poeta Zhai Yongming em Chengdu, sem terem necessariamente publicado fora de revistas literárias independentes. O período da Revolução Cultural e o Pós-Revolução Cultural fascina-me particularmente quando falamos da poesia moderna porque é quando surgem movimentos como os “poetas obscuros” (朦胧诗⼈). É quando surgem as revistas não oficiais e os salões literários (沙⻰) que, no fundo, nunca deixaram de existir nos meandros citadinos da China. Acho que é, no seu conjunto, um trabalho que pode fornecer pistas para quem quiser aprofundar o seu conhecimento sobre poesia moderna chinesa.

Que China que existe nestes poemas?

Diria que há, sem dúvida, sintomas de um trauma colectivo nestes poemas. Há uma certa China desmistificada, um desalento face à privação de uma primordial mudança. De salientar que nem todos os poetas deste livro têm uma postura abertamente política. Alguns apenas quebram com determinadas barreiras estéticas e optam pelo recurso a uma linguagem mais vernacular. Na sequência dessas opções estéticas, acabamos por ter acesso a uma China moderna, simultaneamente intercultural e aculturada. Uma visão crítica face à sociedade de consumo e uma pertinente revisão do conceito de “sofisticação” que a sociedade chinesa adoptou (sobretudo em relação aos produtos estrangeiros).

Qual o impacto que a Revolução Cultural terá tido nestes autores? É possível estabelecer alguma comparação com a poesia que se fazia antes desse período da história chinesa?

Após o fim da era imperial e o surgimento da República em 1911, Hu Shi e Cen Duxiu, proclamam a utilização de uma linguagem vernacular em detrimento do chinês clássico na produção literária, naquela que ficou conhecida como a Revolução Literária. É também nesta altura que surge o verso livre. Depois da institucionalização da poesia, a poética não oficial (⾮官⽅诗坛) opõe-se à poesia oficial ortodoxa e institucional e quebra com imposições estéticas e de conteúdo, libertando-se dos espartilhos ideológicos que a poesia oficial impunha. É por isso uma poesia com maior liberdade. Contudo, esta poesia não rompe completamente com a longa linhagem histórica que continua a influenciar muitos valores estilísticos e mesmo de conteúdo na produção poética actual. Há caractectísticas que já se encontravam até antes da época de ouro da poesia chinesa, (dinastias song e tang) como a importância do ritmo, a imagética sofisticada, muitos conceitos taoistas (nas metáforas sobre silêncio, vazio, contemplação estóica, a não-acção enquanto acção, etc), a relação alegórica entre o natural e o humano e as reflexões sobre destino e poder. É interessante verificar que a relação entre política e poesia na China é também uma conexão ancestral. Desde Qu Yuan passando pelo poeta imperador Li Yu e os inúmeros estadistas que eram poetas durante a Dinastia Tang como Yuan Zhen, quando o acesso ao poder era feito através dos conhecidos exames confucianos que avaliavam, entre outras coisas, a capacidade de escrever poesia.

O que é que a surpreendeu mais nestes poemas, no que diz respeito à mensagem que transmitem, à forma da escrita? Rompem com o que se vinha fazendo desde então na poesia chinesa?

Surpreendeu-me essa lealdade à tradição ancestral que referi na questão anterior, mas ainda me surpreendeu mais a forma como o melhor dessa tradição se combina com uma certa dose de ousadia. Há uma harmonia entre classe, subtileza e a função disruptiva do poema moderno. É uma poesia de pormenores, com muitos traços experimentais. É um bom exemplo da criatividade que se encontra nos artistas chineses contemporâneos em geral. Um facto curioso: apercebi-me que vários dos autores dos poemas que traduzi se suicidaram. É uma coincidência interessante. No caso de Gu Cheng, enforcou-se depois de ter assassinado a esposa. Apesar de saber perfeitamente disso, fico na mesma perplexa perante esta confirmação sobre a natureza da poesia: é um assunto sério, intenso e muitas vezes violento.

Que expectativas coloca em relação à resposta por parte do público português a este livro?

Quem já se interessa por poesia, terá certamente curiosidade em dar uma vista de olhos naquilo que se anda a fazer naquela parte do mundo nesta matéria. Digo “anda a fazer” porque este trabalho é sobre contemporaneidade. Há outras formas de se aceder aos clássicos – dinastias song e tang – mesmo em português, com boas traduções. Mas há muito pouco em português sobre poesia chinesa actual. Este livro pretende ser precisamente um ponto de partida, facultando pistas e deixando referências. Grande parte dos poemas seleccionados neste trabalho não se encontram traduzidos noutras línguas mais amplamente estudadas por cá como o inglês ou o francês e a única forma de aceder a esses poemas é indo directamente à fonte em mandarim. Nesse sentido, encontro assim duas vantagens para quem quer complementar e aprofundar o seu conhecimento da literatura chinesa: uma visão – na organização e selecção que fiz daquilo que considero representar o avant-garde e a poesia “não oficial” e, por outro, o acesso exclusivo a um trabalho que incorpora alguns incontornáveis poemas traduzidos para outras línguas mas que é composto, maioritariamente, por poemas que até agora só estariam acessíveis a quem lesse mandarim.

Quando se deu o seu primeiro contacto com esta literatura “underground” e porque lhe interessou esta cena literária?

Quando fui para Pequim no início de 2018, o editor João Artur Pinto, da Labirinto, já me tinha lançado o repto para traduzir poesia chinesa para português, mas eu estava ainda a tentar encontrar exactamente o que gostaria de traduzir. Depois de conhecer a organização com a qual vim a trabalhar, o colectivo artístico Spittoon, foi quando tive um contacto próximo com a vida dos artistas boémios dos hutongs de Pequim e quando veio o ímpeto de me desafiar mim própria para este projecto.

Depois de publicar “A Transfiguração da Fome”, como foi a transição para um trabalho de tradução deste nível?

Um escritor tem necessariamente que ler. Ler o máximo que puder. Muitas vezes, ler coisas que são muito diferentes daquilo que escreve. Traduzir é uma forma de leitura contemplativa. É uma forma de interpretar um poema e dar-lhe uma nova casa. Uma casa linguística. Sem dúvida que traduzir faz parte de um processo criativo que complementa a escrita. Este foi um projecto muito pessoal e fi-lo sobretudo para aprender com ele. Desde ler bastante, seleccionar, aprender a traduzir, aprofundar conhecimento linguístico, etc. Foi um acto de imensa aprendizagem e de auto-formação.

Esta obra estará disponível em Macau?

Sim! O editor já está a tratar de fazer com que alguns exemplares se encontrem à venda fisicamente em Macau. O livro pode sempre ser encomendado à editora que enviará para qualquer destino.

21 Mai 2020

Poéticas da pandemia

[dropcap]N[/dropcap]aquela altura não carregava pressupostos consigo. Não conseguia partir para a acção, fosse ela qual fosse, porque tudo o que fizera até ali esgotara-se precisamente na acção. Via-se de tal modo sem pressupostos que nem lhe era possível calcular a felicidade que isso poderia constituir. Pressupor é receber o ânimo que nos chega de longe, vindo daquele patamar para que caminhamos mas que ainda não atingimos. Poderemos verbalizá-lo, transformá-lo em regras claras ou apenas sondá-lo tal como se auscultam os pássaros, quando, ao fim do dia, regressam às suas folhagens.

Quando existem pressupostos, o leme permite a navegação (pelo menos a navegação costeira, não tanto a navegação apaixonada). Sentir-se-ão dificuldades, é certo, por vezes serão tantas que os pressupostos se alteram e entra-se, sem dar por isso, numa nova atmosfera. Mas nessa altura não conseguia sondar um simples esboço de atmosfera. Fora mesmo apanhado de surpresa. Levantou a cabeça e tudo era, de facto, novo. Debruçou-se à janela e o silêncio que vinha das ruas ofuscava todo os bramidos, toda a habitual algaraviada.

Circulou mil vezes ao longo do corredor da casa e sentiu-se partido em dois. Por um lado, alimentava a certeza de que a História (com maiúscula) teria um contínuo mais ou menos escondido e que tudo o que lhe escapara havia, um dia, de ser restituído (como que por milagre). Tudo passaria, portanto. Por outro lado, sabia ridicularizar essas mistelas mentais e estava consciente de que a história (afinal ‘coisa’ minúscula) tinha desaparecido há muito e que não passava de uma invenção (recheada de doces para criar a ilusão de verossimilhança). Ao fim e ao cabo, não tinha pressupostos e isso assustava-o sem que de tal se apercebesse. Diante de si tinha apenas o longo corredor para poder contar os tacos e as irregularidades do soalho.

Caminhava assim assustado e percebia nesse sinal de susto permanente algo que teria que ver com a natureza mesma dos humanos. Como, afinal, estava certo! Para dissimular tantos medos acumulados, observava os gráficos da pandemia. Era o que fazia todos os dias de manhã.

Os gráficos eram concebidos de formas bastante diversas, é certo. Terá chegado a concluir que existe uma ‘retórica de gráficos’, do mesmo modo que uma breve frase poética pode ser transformada numa charada (ou um sortilégio) sem fim. O que na poética é o prazer da hemorragia significativa (esse apogeu do prazer e da fruição dos materiais com que se escreve) não deveria ter correspondência neste tipo de gráficos, pensava. Até porque seria sua obrigação referenciar a realidade da infecção e não aceder a uma (qualquer secreta) ‘poiesis’. Por vezes, ao observar a ambiguidade dos quadros via-se a sorrir, não porque se iludisse com uma pretensa melhoria do estado de coisas da pandemia, mas porque descobria nesse jogo uma quase imparável tentação de trocar a imagem pela poética de todas as imagens. Era como se esses gráficos tudo fizessem para se sentirem também partidos em dois (ou em três, ou num número indefinido que os tornassem verdadeiramente inócuos).

Por vezes revia nos gráficos uma musicalidade redundante que ousava o ‘tudo ou nada’ para fazer sombra ao que é irrespondível. No meio de um território perigoso e desconhecido, talvez seja esse o modo de caminhar dos humanos: sempre aos círculos, evitando o face a face com um inimigo que, como se sabe, é invisível. Tal como Van Gogh visionou na sua ‘Ronda dos Prisioneiros’, pintada em 1890, ano em que uma pandemia de gripe, mais conhecida por “gripe asiática”, matou mais de milhão e meio de pessoas em todo o mundo.

16 Abr 2020

A Ásia na poesia de Gil de Carvalho

[dropcap]E[/dropcap]is a primeira novidade: a Ásia deste poeta não coincide, a não ser com a China, com os territórios típicos do Oriente português. Aqui não há então orientalismo (no sentido que lhe deu Edward Said em 1978) simplesmente porque não há Oriente, melhor dizendo, não há esse mecanismo de recondução do alheio ao próprio, essa necessidade de encaixar a Ásia num olhar europeu. Por outro lado, havendo intersecções de referências, estas dispensam qualquer formulação que implique identificação com a figura do “outro”: “Chegar à taiga. Mandala ou yantra?/ Panquecas muito secas fundindo/ O recheio no vermelho a rapariga/ Dum barco a neve montanhas fecha”. (Viagens, 2008, p. 273).

Seria assim penoso ou desadequado enquadrar o autor no Oriente quase sempre ideológico dos poetas portugueses do século XX, sempre entre império e exotismo. O que antes há no “orientalismo” de Carvalho é uma capacidade de notação, de registo – mesmo de investigação, o que se prende com a forte vertente “viajante” desta poesia – e que se tornou mais explícita a partir dos livros De Fevereiro a Fevereiro (1987) e Tarantela & Viagens (1998) –, exploradora de realidades culturais diversas, nunca endereçadas a partir dos binómios próprio/alheio ou eu/outro. Esta era porventura a dimensão que faltava à escrita poética portuguesa sobre o Oriente do século XX – exceptuando talvez Ruy Cinatti ou certos momentos de Couto Viana, muito ligados no entanto à ideia de império – e retomando virtualidades do nosso orientalismo “prático” quinhentista, de igual modo agindo no terreno. Quanto a mim, são precisamente certas dimensões da ligação histórico-cultural de Portugal à Ásia que são indirectamente retomadas na poesia de Gil de Carvalho, obviamente dispensando o poeta qualquer tipo de inscrição explícita nessa herança, e tendo em conta que estas não esgotam de modo nenhum a compreensão da presença da Ásia nesta poesia, ajudando contudo a explicar o uso de um certo tipo de olhar.

Numa cultura de prática do Oriente, foram as práticas humanas de campo, a exploração, a conquista, o comércio e a praxis de escrita (literária ou não), que se substituíram a um inexistente ou incipiente orientalismo cientifico, que iria depois ser criado por outras nações, tantas vezes com o material coligido por portugueses. De certa forma, e como se torna óbvio no século XIX e XX, em Camilo Pessanha ou Venceslau de Morais, a literatura fez as vezes de um inexistente orientalismo científico, assumindo-se como um conhecimento poético do Oriente, (como alguém disse) uma ciência de ver, tornando-se o veículo de uma continuada presença que sobreviveu à precariedade de um império asiático. E assim, dispensando todos os modelos culturais pré-estabelecidos de falar no Oriente por portugueses, a poesia de Gil de Carvalho é uma nova ciência de ver a realidade asiática, simplesmente por desejar conhecer, por notar, registar, alinhavá-la nas rugosidades da sua textualidade.

Com Carvalho são as viagens – título escolhido para a sua obra coligida – que dão, não a displicência sentimental do olhar do viajante, mas a sensação de percorrer realidades nunca lineares, nunca facilmente descritíveis, mas em tempos e espaços nos quais convivem o arcaico com o coevo, o urbano com o rural: “Por cima da estepe a última/ Cidade. Pacientes artesãos/ Em trocas eternas. O fumo/ Das centrais, aberto./ E a proverbial fidelidade/ Da mulher mongol. (Viagens, p.177) A noção de viagem parece-me ser, com efeito, uma chave para a compreensão da sua obra, em primeiro lugar como indicador, não só da constante mudança de cenário, mas da própria descontinuidade das coisas, indo ao encontro de uma horizontalidade geográfica de dimensão quase planetária. Em segundo lugar, aponta também para uma verticalidade, no sentido em que, quer a Mongólia quer a serra algarvia de que também fala a certo ponto são geografias complexas com camadas significantes, imagens do mundo em hiatos, em socalcos, de que a sua verbalização adopta a natureza. E não há aqui a imposição de uma subjectividade marcada que dê um sentido a esta errância, unindo os seus espaços; há antes um sujeito em viagem que é constituído pela descontinuidade do que vê, mais do que uma entidade sedeada no centro de algo, como neste encontro com a artesã manchu: “(…) Qual seria o rosto entregue/ Por ambos neste pagamento? Ancestral/Por certo./ Vermo-nos em vidros, manchus: séculos,/ Milénios passados após os Estreitos”. (Viagens, p.179)

8 Abr 2020

Cinco da tarde

[dropcap]A[/dropcap] Hora grave! E no entanto ainda pode acontecer uma súbita felicidade vinda de recôndito sentir quando estamos em pausa para um chá ou a escutar uma ovação ao nosso ser tão carente.

Pode ser que se fale na vida imediata, dos encontros, das promessas, e até pode ser que nada aconteça e estejamos normalmente trabalhando. Faenas pela tarde podem ser associadas a mortes violentas, mas a nível mais institucional foram as da alba as mais letais: todos os condenados estavam marcados para as madrugadas altas, talvez por que a noite alta é uma cortina de ferro que não deixa ver o fatídico instante, e, a noite é como a morte, negra, já a levantar a sua alvíssima cortina de luz na fronteira com o dia. Nesta interpretação rigorosa a «viagem» era um prenúncio de aurora.

Mas estranhos desígnios marcam o jovem Ano, e tudo vai dar ao mesmo discurso e situação: vírus, eutanásia, infectados, infectos, uma macabra manobra que suscita a nossa indagação mais profunda acerca do significado da vida. Andamos tão acorrentados nos dias que não se nos ocorre morrer, e se em outras versões estivermos agindo, é certo que o seu espectro também deverá andar longe, e nisto, sem que o saibamos, há manobras várias que nos indicam o provável destino breve. Por ora, Eros deve vencer Thánatos que não tarda aí a Primavera.

São sequenciais estas ilações vistas pela perspectiva dos vivos que assim se crêem por manobras várias, dos mortos adiados, e até dos mortos vivos, que não superam a dúvida de um querer que se deseja distante, e quando próximo, que não fale da sobra, resquício de vida consentida. É grave a matéria de facto, e mais gravosa parece soletrada ao som desta recente epidemia, ou pandemia, ou peste… seja lá o que for no domínio da expansão, nós os vivos, pensamos sempre que se vira para cada um. Os mais alienados acham que é obra postiça para derrubar impérios e verter cálices sujos de teorias conspiratórias, mas, sendo lá o que for, a consequência é o que nos deve importar. Aos quase mortos que desesperam por se fazer passar daqui para fora a solução pode estar por um fio, tão frágil quanto o sopro de entregar a alma (caso a alma esteja ainda anexada ao seu servidor e a não tenha vendido no altar dos benefícios).

É sempre prudente averiguar o grau de resistência e o que ela indica ao seu portador, não vá um milagre acontecer e nos vejamos privados de uma tão apoteótica visão, não é revertível o grau de derrocada que a falência orgânica contém, é certo, mas, nas sobras da vida há coisas que nem ela sabe contar. E soando o nosso último desejo, saibamos para tal que é ilusão, tal como a vida, não raro, também é sonho. Nesta desconfortável matéria de que a morte tão inefavelmente se reveste não há condições para abordagens fáceis nem os critérios que aqui são trazidos aumentam ou diminuem a sua força de ser. De certa maneira a nossa vida é uma escolha de morte – e quantos não pactuando, ainda endureceram posições sabendo do resultado delas? – Aqueles combatentes de causas…! E se mais não fosse, a volúpia dos desportos radicais que têm dentro o risco a todo o momento contornando esferas que pensamos quase impossíveis de lidar: são os riscos sadios dos condenados, uma estreita intimidade com a sua permanência, olhando o fim como um último grande desafio. Há ainda os que vão sem rede, preferindo jogarem-se com olímpica demonstração de lealdade.

Vivemos muito? Não. Vivemos mais. Muito é uma medida artificial para designar a vida, quando ela se solta não sabemos mesurá-la nem estamos interessados nisso, e contudo, os revezes dos viventes fazem muitas vezes com que se procure morrer pondo um fim a isto tudo nessa tão dura aprendizagem na carne. Os suicidas são quase sempre insuspeitos e nunca formalizam tal questão, dentro de si travam a batalha, e são gigantes. Talvez que a morte seja mesmo uma questão de pudor, como o sexo e os mistérios, e só em harmonia com o vínculo galáctico nos possamos aproximar dela com respeito. Ao longo da civilização os poetas falaram destas coisas com os utensílios que faltavam, acrescentaram na nossa humanidade uma maravilha alada que só eles podem e sabem fazê-lo, aprendemos a escutá-los como se despertassem em nós os vínculos universais oprimidos ainda pelo grau da sobrevivência, deram-nos algo que não podemos esquecer nesta marcha suicida para um naufrágio consumado. Nem sempre foram os mais audazes defensores de si mesmos, nem tão pouco os mais bem ajustados à vida, a morte aparecia-lhes quase sempre cedo demais… as suas competências, porém, não vacilariam no dom imenso de uma vocação de quase perfeitos intérpretes. Nunca a vida lhes terá provavelmente parecido um gozo, e à sua maneira estranha conseguiram uma dignidade que não vem nos mapas.

Gostaríamos de passar para o outro lado desta realidade tão severa e ameaçadora, mas, quando tudo se conjuga, o dever é estar atento. Até porque, já escolhemos a via, e deixamos para o imprevisto as suas faculdades, e também as nossas, ao lidar com ele. A finitude tem também um caminho longo, e esse caminhar é a nossa vida quotidiana, o tempo que passa, as cargas que vamos deixando, os prazeres que já não são prioritários, e essa melodia talvez nos toque melancolicamente ou com urgências entendíveis.

Pensamos que soçobramos mais rápido, e é verdade, pensamos que a voragem das coisas é mais forte que o nosso entendimento, e se houver destino, que é muito diferente de biografia, reconheço que não se soçobra sem uma consciente dignidade. A liberdade está mais ampliada nas vidas que não tiveram intenções de julgar, pois que julgar é matéria estreita e conduz a erros ilusórios: o caso humano é muito vasto e devemos entendê-lo até na sua máxima baixeza para não ficarmos presos a soluções personalizadas. Nada se sabe desta matéria que se julgue ser entendível por transferes de ideias onde estão projectados os filtros dos nossos valores.

Não é um tema, é uma escalada obsidional que transporta um coro. É tudo fantástico neste tempo, com aspectos de terror fantástico, pois que nem preparados estamos para o futuro, aquela marcha, que se entende melhor na voz de José Gomes Ferreira «viver sempre também cansa» que é diferente de viver para sempre, mas talvez por criogenia ou uma picada no dedo possamos ficar parados esperando um outro renascer. E também a frase de Pessoa «se te queres matar, por que não te queres matar?» que é diferente de: por que não te matas. Há esta subtil transferência de efeito que nos elucida mais que todos os discursos e promete alternativas tão vastas que ficamos esmagados no meio destas crenças várias.

3 Mar 2020

Jorge Arrimar, escritor: “A poesia continua com Macau”

É de uma enorme janela virada para o rio Tejo que o autor Jorge Arrimar escreve os seus versos, contos e romances. Poeta de Macau, escritor angolano, são muitas as facetas literárias que assume no triângulo geográfico da sua vida. Actualmente, trabalha num romance histórico sobre Angola e publicou muito recentemente um livro de poesia, “Insomne”, onde Macau surge de forma ténue

 

[dropcap]E[/dropcap]m Setembro esteve numa conferência na Universidade de Macau e falou do I Encontro de Poetas de Macau, nos anos 90, que não voltou a ter mais edições. Que razões aponta para a falta de iniciativa?

Nessa conferência tive a oportunidade de falar de um encontro que foi tão importante e único e que depois caiu num véu de silêncio sem se perceber porquê. Do que eu li não há qualquer referência a esse encontro, nunca há. As grandes referências que se fazem, com a Mónica Simas, Fernanda Gil Costa ou Ana Paula Laborinho, entre outros estudiosos, o próprio Seabra Pereira, todos esses fazem uma referência simpática sobre o resultado desse encontro que foi a edição da “Antologia dos Poetas de Macau”. Não se podem imputar culpas. Posteriormente, foram feitas algumas publicações, como a “Antologia dos Poetas de Macau”, que é um reflexo desse ambiente e desse espírito novo que aparece com o encontro. Entretanto dá-se a transição e creio que muitas pessoas do meio da língua portuguesa saíram de Macau, e creio que se criou alguma instabilidade com a transição. Houve muita gente que se sentiu intimidada pela grande mudança que se avizinhava, e outros tinham de sair porque iria haver uma mudança de Administração. Houve muitos motivos para que não se tenha criado de novo esse espírito de forma a haver um encontro similar. Mas criaram-se outros de acordo com as novas realidades.

Publicou recentemente “Insomne – Poema em Dez Actos”. Macau surge neste livro?

É um livro de carácter geral, mais de emoções com uma carga emocional muito forte. O próprio título acho que o diz, tem a ver com muitas situações da vida que nos marcam, muitas vezes de forma negativa, como a doença, a morte ou o envelhecimento, tem muito essa carga. Isso extravasa qualquer lugar. De qualquer forma, e como não podia deixar de ser, a minha vida…e a minha terra Angola e tem relação com outras terras por onde passei, como os Açores. Macau aparece de uma forma um bocado espumada, de uma forma metafórica, mas não é um livro tão centrado num destes territórios da minha escrita como é o “Rotas Circulares” [editado pela Gradiva em 2017], que é completamente dedicado a Macau. Uma pessoa olha logo para o livro e vê que é dedicado a Macau, este não tem esse cunho.

A sua carreira literária é marcada por um triângulo de lugares – Angola, Açores e Macau. Qual deles é o mais importante para si?

Sou um escritor angolano e ninguém tem dúvidas disso, e apresento-me e sou recebido como tal, porque nasci em Angola e há mais de 100 anos que lá vivia com os meus antepassados. Portanto, não é apenas 10 anos aqui e 13 anos acolá. Angola é a matriz, tem lugar primordial porque é lá que nasço e cresço. Em Macau e nos Açores só posso ser um escritor de Macau e dos Açores, não sou escritor macaense nem açoriano, há aqui uma diferença pelo menos de grau.

Está a escrever um novo romance histórico sobre Angola, mas nunca escreveu Macau em prosa. Porque é que Macau lhe desperta mais a vertente poética?

Não é bem assim. A poesia nasce em Angola e continuei sempre a escrever poesia que tem Angola como grande motivo. Macau aparece também nessa expressão, mas não quer dizer que só escreva poesia sobre Macau ou prosa sobre Angola. O que acontece é que acabei por não escrever nenhum conto ou romance sobre Macau nem sei porquê, talvez porque me toque mais a sensibilidade de poeta, mas não lhe sei dar uma explicação clara, calhou assim.

Para quando um romance sobre Macau?

Macau, para mim, aparece mais na minha escrita no género de poesia. Escrevo alguns artigos e ensaios, e depois a história de Macau que é uma das minhas áreas. Romance… ainda não tentei, nem contos. Tenho estado mais com o romance de Angola, que me ocupa imenso.

O romance tem uma linha de trabalho completamente diferente.

Mas a poesia também pode ser trabalhosa e pode demorar muito. Cada poema pode ter uma individualidade…enquanto que o romance é todo um trama que tem princípio, meio e fim, e se alonga, e é vasto, um poema pode ser muito curto e pronto, começou e acabou. E como o meu romance é histórico ainda tem a componente de pesquisa, que me exija mais tempo. Quando estou a trabalhar num romance não me sobra mais tempo para outro romance. A poesia continua com Macau e o romance continua com Angola, tenho estado meio dividido.

Quando é que o romance de Angola é publicado?

Ele está bastante avançado e queria tê-lo terminado no final do ano passado, mas estou com muita vontade de o terminar para do fim de 2020. Ainda falta algum trabalho.

Vive em Almada e escreve em casa. Como é que escrever sobre lugares que lhe dizem tanto e que estão distantes geograficamente?

Essa é, um bocado, a minha condição. Acabei por me integrar no quotidiano destas terras de que temos vindo a falar. Uma porque nasci e cresci, e outras porque houve uma integração na minha escrita. Passado algum tempo acabo por me irritar e acabo por escrever quase sempre de longe. Não sei se isso se reflecte na escrita, isso cabe às pessoas que me lêem e que me escutam dizer alguma coisa. Da minha parte, penso que a capacidade do cérebro de reter imagens e situações faz com que a falta desses lugares não anule qualquer manifestação artística. Há sempre o peso da distância, saudade e memórias, e isso acaba por se reflectir de forma positiva na escrita. Comigo acontece isso, volto com alguma frequência a esses meus lugares da escrita, não são lugares que ficaram lá aos quais eu nunca mais voltei. Este ano, em três meses, estive em Angola, Açores e Macau.

Foi para Macau em 1985 e foi director da Biblioteca Nacional/Central de Macau. Quando saiu, em 1998, sentiu que o trabalho estava feito?

Fiz parte do grupo que teve como missão reestruturar o IC, as bibliotecas e os arquivos do território. Nessa altura, houve muitas coisas que foram reestruturadas, como as leis, criou-se o depósito legal, nova legislação e regulamentos. A biblioteca passou a ter novas chefias intermédias, criou-se uma rede de bibliotecas, passou a chamar-se biblioteca central e deixou de ser nacional. Houve um grande trabalho de reestruturação de tudo o que eram leis e regras. Depois as coisas iam acontecendo. A biblioteca e o arquivo tinham direcções separadas. Por isso é que eu digo que nunca pagarei a Macau aquilo que Macau me deu, porque em termos profissionais nunca teria tido a possibilidade que tive ali de ter tudo, biblioteca escolar, pública, tudo.

Foi também consultado aquando do primeiro projecto para a Biblioteca Central.

Sim, em 2008, para uma das candidaturas. E agora voltaram a perguntar a minha opinião. De uma forma geral, concordei com o projecto. Achei que era uma boa possibilidade, seria central de nome e fisicamente. Penso que é um sítio bonito e quase equidistante em relação a tudo o que há em Macau. À partida, aquele edifício tem uma fachada interessante que é de preservar, é uma forma de o manter. Mas tudo o que for feito lá dentro essa é outra história.

Falemos agora do mercado livreiro em Macau. Publica-se muito sobre o território, mas falta um mercado na verdadeira acepção da palavra?

Dou exemplos meus. Publiquei a minha tese de doutoramento em Macau, uma edição do IC, e o livro na Livraria Portuguesa (LP) nunca se encontrou à venda. Se não está à venda na LP, sendo um livro escrito em português, não sei onde poderá estar à venda. Haverá alguma falha, mas não estou a dizer que é da LP ou que é da editora. Que é uma falha grande, é. Nem sequer consigo perceber porque é que isso acontece. Isso também acontece com um dos meus últimos livros, “Rotas Circulares”, que foi escrito logo à partida em português e chinês, que faz parte de uma colecção de poetas de Macau, o livro ficou mais caro por causa da versão numa segunda língua, e continua a não ser vendido em Macau e sei que se fizeram esforços nesse sentido. Pelos vistos, não acontece só comigo. Falei com várias pessoas que publicam e me dizem que há essa dificuldade na promoção, venda e distribuição. Em Portugal, tirando a altura da Feira do Livro, não há mais oportunidades, é difícil encontrar livros sobre Macau.

14 Jan 2020

Será a poesia feita de gnaisse puro?

[dropcap]N[/dropcap]em sempre Afrodite terá estado na disposição de dar vida a uma escultura para gáudio dos pigmaliões. Na ausência desse milagre e tal como afirmou Richard Rorty, no início dos anos oitenta, “há pessoas que escrevem como se só existissem textos”, imaginando-se abraçados ao monte de vénus de uma Galateia de mármore. Pobres nenúfares.

A noção de texto que Rorty evoca aproxima-se da dos dogmas das religiões do ‘Livro’ que fez do mundo, durante séculos e séculos, uma iluminura escrita. Para o homem medieval, todo o sentido do universo dependia de uma harmoniosa refracção entre textos. Os modernos alteraram a pulsação das coisas, sondaram territórios, interrogaram o que é (e o que não é) o homem, mas não resistiram à tentação de voltar a transformar a palavra em mandamento. Tanto estalinezinho que se pavoneou por essa Europa e por essa Ásia fora nos últimos dois séculos, tendo como refém verbetes limados, frases redondas e suratas definitivas.

Esta obstinação de escrever e de ler o mundo como se só existissem textos tem, de facto, marca categórica, fosse a sua origem escolástica, ideológica ou académica. A plenitude que cremos herdar (obsessivamente) do império da escrita sempre trouxe consigo esquadrias rígidas. Autores como Sade, Bukowski, Genet ou Céline, que misturaram registos elevados e ditos consagradamente levianos, viram-se amiúde como filhos de uma penitência menor.

No penúltimo Livro de A República de Platão, Gláucon reconheceu que a cidade ideal, longamente descrita ao longo dos diálogos da obra, era coisa ‘só de palavras’ (“Referes-te à cidade que edificámos há pouco na nossa exposição, àquela que está fundada só em palavras, pois creio bem que não se encontra em parte alguma da terra” – 592b/ p. 447). O fundamental estaria fora das palavras, seria até anterior a elas e, seguramente, jamais por elas fundado.

Se contarmos para trás a mesma distância que vai de Platão até ao nosso tempo, chegamos à Epopeia de Gilgamesh. Trata-se de um texto inscrito em argilas refundidas com origem na actual região do Iraque que data de antes de meados do terceiro milénio a.C., embora existam compilações conhecidas já do final do segundo milénio a.C..

O relato é um dos primeiros registos escritos da espécie humana. Não lhe pré-existindo uma matriz rígida para replicar (haveria matrizes mitológicas orais, como a de Afrodite que deu vida a Galateia para gozo supremo de Pigmaleão, mas essas sempre foram maleáveis e, portanto, sempre se alteraram no correr dos tempos ao contrário do dogma), o texto ocupa-se das coisas essenciais e não ainda de outros textos ou de idealidades contaminadas.

É por isso que a Epopeia de Gilgamesh é uma história de heróis e de deuses com os sonhos a funcionarem como ignição primordial. O tema de fundo é o da imortalidade, claro está: Gilgamesh bem tenta aceder ao dom da vida eterna, passa por mil obstáculos para o conseguir, mas acaba por se confrontar com o nosso denominador comum mais escandaloso: a mortalidade.

O que se torna fascinante, ao longo da leitura, é pressentir a respiração genuína dos humanos de há quase cinco milénios e perceber que o essencial que está em causa é o mesmo que, hoje em dia, ainda nos permite confiar (dir-se-ia mesmo ‘acreditar’) na poesia, porventura o único tipo de texto contemporâneo que, de vez em quando, tenta escapar a outros textos refundando-se radicalmente enquanto se forma e enuncia. A grande poesia restitui à fonte o leme perdido pela palavra. Pelo menos é neste tipo de transparência glosada que eu entendo a grande poesia, mesmo quando ela parafraseia as suas merdas, pois, ao fim e ao cabo, somos todos humanos e não génios a apalpar corpos perfeitos esculpidos em gnaisse puro.

Para uma boa leitura da Epopeia de Gilgamesh, aconselho a tradução/versão assinada por Pedro Tamen (Edições António Ramos, Lisboa, 1979).

12 Set 2019

Os novos misticismos

[dropcap]T[/dropcap]entar explicar uma realidade que não caiba nas palavras (ou nas possibilidades mais vastas da linguagem humana) pode conduzir a dizer, não o que ela é, mas aquilo que ela não é. Por outras palavras: em vez de o raciocínio avançar com as características que seriam próprias dessa realidade (e com analogias várias que a sugerissem), prefere antes enumerar o que ela certamente não é (negando e interrogando, ao mesmo tempo). Aplicado a deus, este método denomina-se teologia negativa; na retórica recebeu a feliz designação de apófase.

O ‘Cântico Negro’ de José Régio popularizou a fórmula com versos que se tornaram famosos, o que não deixa de ter a sua graça: “Não sei para onde vou/ Sei que não vou por aí!”. São Tomás de Aquino também recorreu abundantemente a esta prática, mas ela acabou sobretudo por ficar conotada com a tradição mística, caso de Johannes Scheffler (1624-1677), por exemplo.

O Verão, redundantemente apelidado de “silly season”, é um período associado a uma menor densidade de carga informativa. Trata-se de um fenómeno recente que não se adequaria, com toda a certeza, à era de quase ininterrupta devastação que ligou duas das datas fundamentais do século passado: 1918 a 1945. Antes do assassinato de Sarajevo, a alegada “agenda informativa” não tinha o peso, nem o significado de pedra angular que adquiriu dos anos sessenta para cá. De forma que o tráfico comunicacional da expressão “silly season” é filha do presente imediato e seria incompreensível fora das fronteiras da nossa época.

Por vezes, penso na sorte tremenda que é ter vivido, até hoje, sem me ter cruzado com uma guerra (ou com os seus efeitos directos na pele). Por vezes, penso como é frágil pronunciar e comunicar expressões como é o caso dessa idiota “silly season”.

Uma tal expressão quer essencialmente dizer que, entre Julho e Agosto, o mundo deve ser esquecido, removido, desclassificado. A anestesia a que os veraneantes são convidados coloca as greves como um pano de fundo divertido, as mortes no Mediterrâneo como lance para extraterrestres e as quedas nas bolsas enquanto episódios para esquecer a meio do hipnótico ‘zapping’ diário. Por outras palavras: a “silly season” é uma teologia negativa, porque é um modo prático e chão de dizer o mundo pelo que ele não é.

Há contudo algo que não bate certo. A teologia negativa só existe na medida em que os humanos se encontram face a uma realidade que não conseguem traduzir (que não cabe nas possibilidades da linguagem). Quando se traduz, intenta-se uma aproximação entre dois registos, pratica-se amizade. Quando nem se consegue traduzir, é porque estamos face a qualquer coisa de que não sentimos proximidade e que se torna, portanto, inexplicável, distante. A pergunta é: qual é ‘essa coisa’ que os veraneantes não conseguem entender e que os leva em massa para esta espécie de profana e elementar teologia negativa?

A resposta parece-me clara: a turba afirma claramente e sem complexos que não entende, nem pretende entender o mundo e por isso o apaga neste recente ritual dos meses de verão.

Na larga maior parte da história dos humanos, sempre houve grandes perguntas e grandes respostas, isto é: valores óbvios, referenciais. Foi por isso que surgiu a filosofia e foi por isso que surgiram mil e um mandamentos religiosos ou ideológicos, pelo menos desde que, no alvor do mundo moderno, o homem (e não a transcendência) se colocou como objecto por excelência a ser investigado pelos saberes. O nosso tempo saiu dessa fornada de aflições carregadas de sentimento de dever. Os veraneantes querem é que não os chateiem, querem é que os deixem em paz a arrastarem os carros pelas auto-estradas, querem é que os deixem em paz nas procissões pelo deus-património, querem é que os deixem em paz entre o iphone, o fato de banho e o shopping.

Este dissociar do mundo, que se tornou crónico, passou a ter o seu clímax massificado nesta altura do ano (enfim, no hemisfério norte do planeta). Duvido que seja um período de franca realização, é-o muito mais de fluxo, de repetição, de reconstrução das rotinas diárias num novo contexto em que a irracionalidade – como acontecia nas antigas tradições do carnaval – pode dar-se ao luxo de dar uns passos de dança em falso, mas, desta feita, sem temer atropelar o outro. Os meios esquecem-se e os fins cingem-se amiúde às gargalhadas frugais do indígena (a amizade e a ideia de ‘outro’ escapam-se facilmente à voragem).

Para explicar uma realidade que não cabe nas possibilidades das expressões humanas, bastará, pois, colocar à solta um leme negativo. Repetir o que ela não é. Se os místicos o faziam com poemas particularmente elaborados (e muitas vezes foram conotados com ateísmo, refira-se), os humanos de hoje escrevem-nos através das indústrias do lúdico como se elas fossem a redenção de uma qualquer divindade ausente, irremissível e jamais superável.

O misticismo está a renovar-se, como se vê. Para o provar, deixo em baixo dois poemas: o primeiro é um original de Johannes Scheffler, o segundo é de minha autoria, embora literalmente baseado na rescrita do primeiro:

“O Deus Desconhecido.
O que é Deus, não o sabemos: ele não é luz.
Não é espírito.
Não é verdade, nem unidade, nem um, ele não é
Aquilo que chamamos divindade:
Não é sabedoria, não é intelecto, não é amor nem
Querer nem bondade.
Nem uma coisa, muito menos uma não-coisa.
Não é
Uma essência, não é um coração:
Ele é aquilo que nem eu, nem tu, nem nenhuma
Criatura
Antes de ter-se tornado naquilo que Ele é, jamais
Conhecemos.”*

O Mundo Desconhecido.
O que é o mundo, não o sabemos: ele não é uma prancha de surf.
Não é hora de ponta.
Não é androide, nem sindicato das matérias perigosas, nem CGTP, ele não é
Aquilo que chamamos ginásio ou solário:
Não é charter, não é low cost, não é bandeira verde nem
Vilamoura nem festival no passeio marítimo de Algés.
Nem uma coisa, muito menos uma não-coisa.
Não é
Um fio dental, não é um alojamento local:
Ele é aquilo que nem eu, nem tu, nem nenhuma
criatura
Antes de ter-se tornado aquilo que o mundo é, jamais
Conhecemos.


*Tradução Nícia Bonnati em Derrida J, Salvo o nome, Papirus Editora, Campinas, 1995, pp.32/33.

22 Ago 2019

Poiesis

[dropcap]C[/dropcap]he cos´è la poesia?

Vem de um outro lugar, recria tudo, e liberta-se das cintilações e daquilo que para fora sujeita a esfera que o toma – ” ele ocorre então, no essencial, sem actividade, sem trabalho, no mais sóbrio pathos, estranho a qualquer produção, sobretudo a criação”. Do poema falamos, e o nosso braço vai buscar ainda a antiga asa dos pássaros lembrando que os braços vieram delas e que delas ainda há que dar testemunho. Não vem contar nada, a narrativa escasseia num grande poema, mas abundam estranhezas várias, as suas demonstrações e toda a composição verbal parte ao serviço de um dom absolutamente esquecido do antes da palavra, daí, o ser tão avassalador por vezes a leitura de um poema, onde regra geral, também não devemos em posição de choque perguntar nada, a não ser deixar-nos penetrar de modo desconhecido por esse corpo vivo que nasceu imerso em enigma.

O que o separa do acto discursivo é ainda o saber escutar a antiga onomatopeia a que o cérebro acede como um animal que bebe numa fonte granítica as águas da infiltração, e, em magma inteligível, o poema fala. As ligações estão feitas, só falta deixar correr, e aos que não têm sede poder-se-ão saciar com licores, o poema não o carregamos nem deseja que o surpreendam, a manifestação acontece dado que se recria partindo de um ponto remoto ao movimento que o faz soltar-se da nossa mão, o fazedor nunca será o gerador do significado, mas aquele que o exercita, distanciando-se da natureza próxima para recriar aléns. Acrescentar, continuar o que não foi testado, é esta a base da sua origem semântica e do seu grande impulso vital, e neste processo, remontar a uma pré-articulação seria uma forma de amputar aquilo que só ele diz sem que tenhamos de o pensar. Assinamos um poema e foi ele que nos sinalizou, ele merece não ser do artesão, e não ser andor para a festa das “criatividades” falamos de uma estrutura mais ambivalente se assim se pode chamar, e bem mais complexa que o simples desejo de termos feito o poema que projectámos. Ainda fazemos muito pouco face a este fenómeno que nos faz, e por nós passa sem que carregue a nossa desconhecida causa.

Por outro lado, não o podemos transgredir na medida que a norma não a sentimos presente, de tão longe as correspondências atravessam socalcos para alinharem na memória, que pode produzir por si só uma nova ordem recriando-se do caos das intenções, dedicar poemas é por isso um artefacto que não assenta na vertente mais elaborada deste registo, pois que atravessa na dedicatória um esforço para ir em direção a algo ou a alguma coisa ou a alguém, que nos obriga a um desvio e a procurar outro suporte, porventura belo e muito bem escrito, mas, que certamente retirou pelo dirigismo intencional a sua função primeira.

Deixemo-lo, ele fará o seu percurso, muitas das vezes nem o queremos ver, por vezes a sua pegada em nós pode levar-nos à prostração – os alinhamentos sangram – ( Poieses também é um termo biológico para designar as células do sangue) e toda esta atmosfera não se vive como se estivéssemos numa luta de razão-acção- emoção, pode não se passar nada disto, pode apenas seguir-se o trilho, e se tocar num ponto brilhante sabemos da torrente fresca em nosso redor, que nos alivia e aligeira como se a acção tivesse produzido uma vida nova e diante de um primeiro idílio despontássemos. Os sistemas têm contudo a capacidade de se recriarem, ou criar algo bem diferente de si, e ao juntarmos tais “metabolismos” enquanto artesãos entramos sem dúvida num grau de consciência bastante mais aperfeiçoado. Sistemas existem que não possuem limites ou tempos autodefinidos, talvez se multipliquem indiscriminadamente repetindo a mesma fórmula, o que ocorre dizer da doença oncológico que ao não recriar se esgota no seu próprio efeito de repetição, e talvez, numa época tão incrivelmente e mentalmente não “meta-poética” a epidemia mundial seja mesmo o cancro . Um sistema calcinado de circulação fechada que se reproduz sem capacidade moderadora, e, portanto, imprópria para gerar vida nova, vítima de um processo de auto- semelhança onde a única coisa a nascer foi a teoria do caos.

Poiesis significa “fazer” um termo grego, daí o poeta ser o fazedor por excelência. O fazedor é o amador, aquele que se irá transformar pouco a pouco na coisa amada, com o decorrer do tempo o amor bebe-se em cálices onde um cérebro cabe inteiro fazendo conexões transformáveis, e talvez se sinta que amplie e que lá bem por dentro esteja a molécula de Deus de onde todos os poemas nascem. Mas, ele não faz ligações à fronte projectada, mas sim aos que começam imperceptivalmente a tomar-lhe o pulso, e que sabem agora que o poema não nasce assim, e que se há esse encanto, por vezes até escarninho face a essa identidade tão rara, é porque sabem as gentes que sabem bem mais do que podem, ou para si mesmo admitem.

O dom do poema não cita nada, não tem nenhum título, não faz mais histrionices, ele, sobrevém sem que tu o esperes, cortando o fôlego, cortando com a poesia discursiva e sobretudo literária.

Nas próprias cinzas desta genealogia. Não a fénix, não a águia, o ouriço, muito baixo, bem baixo, próximo da terra. Nem sublime, nem incorpóreo, talvez angélico, temporariamente.

20 Ago 2019

A poesia não é um lamento

[dropcap]O[/dropcap] que é a poesia? Para esta pergunta, eu sei que há sacerdotes a sorrir e a guardar para si o sumo do mistério, mas também sei que há uma turba de poetinhas a pavonearem palavras e palavrinhas. Deixemos, pois, de lado os ‘jardins dos poetas’ e os guardiões do tesouro e falemos de lapso. Sim, a poesia é um lapso, uma inflexão incurável, um modo de descompensar as anamorfoses do mundo. Através da poesia, os humanos recorrem à roleta russa: disparam e por vezes a bala atravessa a linguagem e consegue emendar a morte. Um lapso de ouro.

Num jogo de xadrez, é possível viver esse momento-chave: o jogador levanta a peça no ar e ainda não a pousou. O poeta aprendeu há muito a manter o braço no ar (nessa suspensão infinda) e a movimentar as peças da linguagem entre variados campos semânticos. E é no movimento e não na escolha – essa morte súbita – que se lhe reconhece a pulsão essencial. O poeta tem setas movidas e moventes que imitam a luz, fonte de vida.

O desempenho inicial da linguagem é de natureza poética. É esse o seu cariz de “númen”. Hans Blumenberg situou o “absolutismo da realidade” nos primeiros estádios da caminhada humana – a chamada “vorverganggenheit” – desenvolvendo-se a comunicação nos antípodas das actuais convicções de realismo, ou seja, naquilo que Rudolf Otto designou por “numinous”. O númen, embora concreto como a areia que o mar amassou, designa um enigma que instaura algo ou que o faz viver e reviver.  Na obra que abre o romantismo em Portugal, Camões (1825), Garrett recorre justamente à figura do númen para se aproximar dos sortilégios da saudade: “Misterioso númen que aviventas/ Corações que estalaram, e gotejam/ Não já sangue da vida, mas delgado/ Soro de estanques lágrimas – Saudade!”.

O númen mostra e oculta ao mesmo tempo. Num conhecido fragmento (o nº93) atribuído a Heraclito por Plutarco, pode ler-se: “O senhor, cujo oráculo está em Delfos, nem fala, nem oculta, mas manifesta-se por sinais”. Os impactos desta bitola reversível que circula entre o conhecido e o desconhecido (e entre o visível e o invisível) sempre suscitaram disrupções emotivas e fóricas. Razão por que, quer na casa da filosofia (livro X de A República de Platão), quer nas narrativas axiais (caso do Alcorão por exemplo, em suratas como a 21,5, a 26,223, a 69,41-42 ou a 31,5), a poesia, enquanto registo, e os poetas, enquanto performers, foram amiúde mal vistos e até perseguidos. No entanto, G. Steiner, em A Poesia do Pensamento (2011), confirmou que a voz poética é também um númen que pensa e que, portanto, ao fim e ao cabo, nada seminalmente a distingue do ‘telos’ da filosofia. A não ser, estar muito para além dos modelos e das alfaias técnicas e metodológicas que a delimitam.

No início da Poética, Aristóteles afirma que a poesia é “uma arte que até hoje permaneceu inominada”. Desde então, durante mais de duas dezenas de séculos, a poesia foi fortemente dissecada e gramaticalizada, mas sem nunca perder, enquanto vestígio de fundo, a pulsão de númen. Daí a sua persistente incógnita. Borges bem avisou nas “Palestras Norton” (1967), referindo-se a Stevenson, que a poesia mais não faz do que devolver a linguagem à sua fonte. Com a passagem do tempo, os jogos de linguagem foram-se tornando num aquário opaco em que tudo – nas suas muitas camadas – se diluiu. Teriam, pois, que ser os românticos a redescobrir na singularidade da poesia o poder de desvelar o ser e o cosmos, no momento em que as grandes escatologias começavam a ceder o seu papel dominador a novas formas modernas de codificar o mundo.

Foi por isso que Shelley, em  Defense of Poetry (1821), se aventurou a dizer que “o poeta participa do eterno, do infinito e do uno”, acentuando no ofício uma perspectiva gnosiológica. Desligada de finalidades práticas e aberta a partilhas fluidas, a poesia surge em Kant (na Crítica da Faculdade do Juízo, 1790) entre as “artes elocutivas”. Na mesma época Schlegel, em Lucinda (1799), agradecia às entidades ‘superiores’ a novíssima revelação da ‘poiesis’: “Estamos contentes e gratos para com a vontade dos deuses, estamos satisfeitos e agradecidos com o que eles nos indicaram tão claramente nas Sagradas Escrituras da bela Natureza.”. Na mesma obra, a poesia afirmava radicalmente toda a sua autonomia e recusava a instrumentalização a que tanta vez fora votada: “Há poemas na antiga religião que, em si próprios, possuem uma beleza, uma santidade e uma delicadeza únicas. A poesia formando-os e transformando-os, deu-lhes tanta riqueza e tanta fineza que a significação deles, já de si tão bela, ficou imprecisa e permite interpretações e formações sempre novas”.

Entrávamos, logo a seguir, na esquadria do chamado ‘nosso tempo’ com a poesia, por vezes, a querer diagnosticar o que nunca lhe coube, nem caberia diagnosticar. É essa a doença dos realismos e dos artificialismos sem fim que persistem no seu cego jogging. Verdade seja dita que poucos ainda hoje agarram o animal pelo númen da roleta russa, ensaiando a abertura aos territórios onde o maior dos lapsos permitiu a Hilda Hilst escrever: “Minha sombra à minha frente desdobrada/ Sombra da sua própria sombra?/ Sim. Em sonhos via/ Prateado de guizos”.

Não, a poesia não é um lamento, nem é uma representação seja do que for, mas confirma na plenitude o que Píndaro deixou escrito na sua oitava Ode: “O humano é o sonho de uma sombra”.

A poesia pode não nos ensinar nada, mas pelo menos proporciona ao nada o espanto que o realiza.


Blumenberg, H. Work on Myth. Cambridge; Massachusetts; London. The MIT Press, 1985, p. 57.
Garrett. A. Camões. Editorial Comunicação, Lisboa. 1986, p. 55.
Hilst, H. Poema XVII/Via Espessa  em Da Poesia. Companhia das Letras, S. Paulo, 2017, p. 460.
Kirk, G.; Raven, J.; Schofield M. Dos Oráculos da Pitonisa – 11/604A em Os filósofos pré-socráticos, F.C.G. Lisboa, 1994, pp. 217-218.
Píndaro, Odes, trad. António de Castro Caeiro. Quetzal. 2010, p. 64.
Schlegel, F. Lucinda. Guimarães Editores, Lisboa. 1988, pp. 133-134.
Shelley P. A Defense of Poetry, Shelley´s Poetry and Prose. New York, Norton. 1977, p. 478-479.

8 Ago 2019

Esta que te escrevo

Horta Seca, Lisboa, 28 Julho

[dropcap]N[/dropcap]ão é gralha, esta data a abrir. Este exercício diarístio mistura-me os tempos ao modo de saudoso whisky sour, agitado sabiamente pelo Bruno [Abreu], no defunto Baliza.

Estou aqui a batalhar com as frases, a resistir que nem o ferro das vigas de colunas por encher das casas em construção. O betão do pensamento escorre atropelando tudo antes do erguer de paredes. Os dias recentes fazem do passado e do futuro animais obedientes, festas e pouca disciplina, desobedientes ao que por eles sinto. E sinto muito. Atrasos chegam de par com os projectos, âncoras lúgubres e caprichosos papagaios de papel. Para que o previsto aconteça, tenho que mastigar muito do tardamento, devo desatar nós. Dobrando curva do óbvio, uns são mais rijos que outros: como fazer chegar os livros aos seus leitores? As soluções de hoje não contêm amanhã.

Horta Seca, Lisboa, 22 Julho

Gosto muito de cartas. Pela parvoeira dos afazeres, de tanto desresponder, deixei de as receber. O meu mano Tiago [Manuel] continua dos poucos, senão o único, a praticar essa disciplina de samurai. E cada uma das que envia inclui lâmina desenhada e o mais que lhe aprouver. Retribuo de outras maneiras, todas frustres perante o gesto magnânimo de aplicar mão e tinta sobre branco a pensar naquela pessoa e não outra. Namorei muito por via postal e não conheço melhores preliminares, afinal, transfigurados em interliminares, pensando no sexo enquanto foz e cais de longas viagens ao encontro do ser, o próprio perdido ali ou em busca de mais além no outro. Disperso.

Por tanto gostar de cartas, temo que estas passem despercebidas, devolvidas ao remetente, sem as cores e os passos de Elvis. «Moléstias, Embustes e Pontinhos Amantes» (ed. Arranha-céus e capa algures na página) nasceu dos tratos de polé que Rita Marquilhas, Catarina Magro, Fernanda Pratas, liderando vasta equipa, deram à «Escrita Quotidiana em Portugal entre os séculos XVI e XIX». Trocadilho desajeitadamente com a «pluralidade de juízos – episcopais, inquisitoriais, reais, locais, corporativos, militares – [que] vigiaram o comportamento dos indivíduos de acordo com certos princípios legais e morais» e de onde foram retiradas para nosso deleite estas cartas. Gozo com os aflitos e seus medos, mas em que em melhor matéria mergulha a literatura suas garras criadoras? Este complexo volume (caixa que inclui 100 cartas, embrulhadas em fita lacrada a simular o selo da intimidade de outrora, sem contar com cartaz e livro de instruções) transfigura-se em máquina produtora de experiências. E roubo ainda ao prefácio, para que se perceba mais avante: «Quem as conseguiria inventar? Falam-nos de ladrões todos corteses, de padres nada católicos, de mulheres, numerosas mulheres, ora queixosas ora batalhadoras, mas sempre eloquentes. Há presos em fuga, amores, desamores, vinganças e maledicências. Há várias doenças, descritas quase com prazer, e também muitas viagens. Pelo espaço de duas publicações, uma portuguesa e uma espanhola, distribuímos este amplo fresco, ilustrado por Nuno Saraiva. São retratos de pessoas que viveram há 200, 300, 400 ou 500 anos e usaram um dos mais antigos formatos que o texto escrito pode receber: o da carta.» Enormes figuras, plenas de vulgaridade, aqui se apresentam, com enquadramento de primeira água, em português da época transcrito para a actualidade e ilustrado, com a malandragem adequada, pelo Nuno, e assim facilitando o acesso ao que se queira, da básica narrativa à evolução da letra manuscrita entre a época quinhentista e a oitocentista, das oscilações da língua às mudanças sociais nos donos da capacidade de ler e escrever. E mais, gesto política de aguda actualidade, que só a memória nos resgatará: «o resgate da vulgaridade, como concordam os estudiosos da sociedade, tem de estar presente nas interrogações que dirigimos à história, sob pena de, entre outras mistificações, perdermos o rasto de muitos dos nossos tabus.»

«Moléstias» talvez tenha sido, até agora, o mais atrapalhado dos nossos títulos, pela dificuldade em gerir cada dos múltiplos aspectos que o fazem único, do alcance do esforço posto no enquadramento e na transcrição, pela quantidade das ilustrações, pelo desenho da caixa, pelos desafios técnicos da fita fechada com lacre a simular a experiência original, e mais isto ou aquilo.

Mas sobretudo, por termos sido, por uma vez, incapazes de comunicar com o designer, resguardado sob pseudónimo de Melting Spot. Acontece, mas, à excepção da ausência, por vez primeira, do volume na data aprazada de lançamento, não se nota nódoa no essencial.

Casa dos Bicos, Lisboa, 23 Julho

Era suposto orientar debate, mas temo ter deitado conversa fora. O pretexto era a edição de «O Rasto de García Lorca» (ed. Levoir para o Público, colecção Novela Gráfica), com desenho e argumento de Carlos Hernández, e El Torres a «limpar, brilhar e dar esplendor». Juntámo-nos à mesa, Sílvia Reig, a editora, José de Freitas, coordenador editorial, e Pedro Rapoula, que comoveu a sala com leituras de alguns poemas menos conhecidos, mas ferozes na celebração da alegria e do amor. Pilar del Rio deu início ao assunto, do mesmo modo que o faz no volume, de par com Mercedes de Pablos, falando da ferida-Lorca a partir deste «caleidoscópio de 12 faces-cenas». Hernández recolhe vestígios de modo a compor o rosto fugidio do símbolo, a partir de fragmentos do homem. Ainda hoje a figura do poeta se faz incómoda, recusando Granada as tradicionais homenagens aos que se erguem identidade. No rasto do rosto final, conversa do autor com seu pai, fica claro que o presente não quer que regresse do passado este fantasma. Que força tão temível possui esta figura? O carisma que transgredia as arrumações, burgueses e camponeses, operários e actores? A homossexualidade a perturbar o modo como nos vemos e nos relacionamos? Um gesto que fazia do teatro, da poesia, da cultura, ferramentas de múltiplas possibilidades? Não traz respostas, esta bd, mas ajuda no labirinto de ruínas. «Sem encontrar-se. / Viajante pelo seu próprio torso branco. /Assim ia o ar. // (…) As nuvens, em manada,  / ficaram adormecidas contemplando / o duelo das rochas contra a aurora. // Vêm as ervas, filho; / já soam suas espadas de saliva / pelo céu vazio.
//Prepara teu esqueleto; /é preciso ir buscar depressa, amor, depressa, / nosso perfil sem sonho.»

Temos que voltar à escrita de cartas, como afinal este «Rasto…» acaba sendo, ao pai do artista e à cidade de ambos. Os tempos exigem-nos. Na sua última carta, responde à do seu namorado, Juan Ramírez de Lucas: «En tu carta hay cosas que no debes, que no puedes pensar. Tú vales mucho y tienes que tener tu recompensa. Piensa en lo que puedas hacer y comunícamelo enseguida para ayudarte en lo que sea, pero obra con gran cautela. Estoy muy preocupado pero como te conozco sé que vencerás todas las dificultades porque te sobra energía, gracia y alegría, como decimos los flamencos, para parar un tren». Energia, graça e alegria, receita para parar comboios.

31 Jul 2019

Poesia | Livro de António Mil-Homens lançado amanhã na FRC

O livro de poesia “Universália” saiu da gaveta de António Duarte Mil-Homens e vai estar amanhã à tarde na Fundação Rui Cunha, com apresentação de Sara Augusto e Carlos Morais José

 

[dropcap]U[/dropcap]niversália” é o título do segundo livro de poemas de António Duarte Mil-Homens, que é lançado amanhã, pelas 18h30, na Fundação Rui Cunha. Depois de uma primeira obra editada em Macau em 2010, “Vida ou Morte duma Esperança Anunciada”, o autor volta a abrir a gaveta onde guarda estes e muitos outros esboços para partilhar estados de espírito e emoções com os leitores.

“Sem ter em atenção a cronologia da escrita, porque tenho projectos mais antigos, resolvi pegar neste ‘Universália’ que, como todos os outros, tem por base sentimentos, emoções, estímulos exteriores”, que surgiram “na quase totalidade dos casos, como eu costumo frisar, de jorro e na forma acabada”, sob a forma de 45 poemas em meia centena de páginas.

António Mil-Homens, conhecido fotógrafo local, desde a adolescência que se aventura pelo universo da poesia, uma espécie de compulsão “como se eu tivesse qualquer coisa a borbulhar cá dentro, que tem que saltar para fora. E quando salta é assim, de fio a pavio”, explicou ao HM.

O seu repositório é extenso e os poemas podem acontecer a qualquer momento, “de repente tenho necessidade de agarrar num papel, posso já estar deitado, ou posso acordar no meio da noite”, e vai somando estados de espírito, que se agrupam e começam a fazer sentido no seu conjunto.

“É assim que as coisas me saem e é assim que tenho escrito. Também é assim que, além destes dois livros publicados, tenho mais seis prontos a serem editados. E outros em progresso.

Primeiro no papel – “que continua a ser o meu modo privilegiado de escrita” –, depois passados para computador, organizados em pastas já com título. “Universália” foi o livro que substituiu o projecto que o autor tinha pensado publicar para o Festival Rota das Letras de 2019, o “Poemografia de Macau” – que reúne poesia e fotografia – que, por razões diversas, não iria ser exequível até ao passado mês de Março.

“A coisa arrastou-se e, quando eu percebi que não ia dar tempo para ser editado, disse: então vai sair mais um da gaveta!”. Assim surgiu o “Universália”, após um contacto feito com o editor responsável da Temas Originais, editora de Coimbra, “com quem nos últimos dois anos tenho participado em colectâneas”. O livro foi impresso “logo com a condição de que viriam 100 exemplares para Macau, por via postal, a tempo do Rota das Letras, onde teoricamente seria apresentado” e “está claro que foi pago do meu bolso, porque infelizmente é assim que a maior parte das edições funcionam”. É um “livro fininho, porque foi logo tido em consideração o peso do correio aéreo”, justificou o autor.

Uma capa especial

O desenho da capa é produzido digitalmente e “é uma das muitas obras de um amigo meu que era completamente genial, em qualquer área pela qual se interessasse, mas que neste momento, já lá vão 17 anos de doença, não é mais do que um vegetal”, dor que António Mil-Homens continua a sentir de cada vez que o visita em Portugal. “Numa fase já adiantada da doença, ele interessou-se pelos fractais e pelo 3D”, de que resultou este desenho gráfico de computador, em tons de azul escuro e prata, utilizado pelo autor.

“Eu já tinha agarrado nesta imagem e decidido há muito tempo que seria a capa do Universália”. E conta porquê. “Eu vejo isto como um corpo celeste, com uma certa complexidade, e vejo o fundo como aquilo que conseguimos observar com a ajuda de um telescópio: vejo nebulosas. E o que de imediato me surgiu foi: universo, Universália. Achei que a imagem se adequava perfeitamente”.

Livros a caminho

“Universália” chegou de Coimbra a tempo do Festival Rota das Letras, em Março de 2019, mas acabou por não ter lançamento oficial, o que acontece amanhã na Fundação Rui Cunha, com apresentação da professora Sara Augusto e do jornalista e escritor Carlos Morais José.

Em Lisboa irá acontecer também um lançamento formal do “Universália”, em meados de Setembro, integrado no UnityGate 2019, “que é uma plataforma cultural em que eu participo desde 2013, normalmente com fotografia”, mas que este ano passa a ter pela primeira vez uma participação escrita do autor. A UnityGate, que organiza diversos eventos culturais, trará algumas dessas iniciativas também a Macau no mês de Outubro.

Entretanto, segundo António Mil-Homens, o “Poemografia de Macau” irá ser finalmente publicado pelo Instituto Cultural, ainda este ano, em edição trilingue (português, chinês e inglês).

8 Jul 2019

Fazer rir um poeta

[dropcap]E[/dropcap]m Setembro de 2011 conheci em Porto Alegre o poeta Pedro Gonzaga e o grande escritor Aldyr Garcia Schlee – falecido em Novembro passado, com 83 anos – através do editor e amigo Alfredo Aquino. Depois de um jantar, convidaram-me para estar presente num evento em Jaguarão, terra natal de Aldyr, que faz fronteira com o Uruguai. Tratava-se de um encontro de poetas de fronteira. Para além dos brasileiros do Rio Grande do Sul, iriam poetas do Uruguai e da Argentina, para falarem do que os unia e do que os separava.

Os dias passaram, regressei à chácara onde vivia, a 50 km a sudeste de Porto Alegre. Um dia antes do evento, Alfredo passou a buscar-me, juntamente com o Pedro, e partimos na direcção de Jaguarão. A distância não chega a 400 km. Grande parte da paisagem é esmagadora pelo horizonte quase infinito, a lembrar os planos de Dovzhenko no seu filme Terra: à nossa frente, uma fina sapatilha de terra e um céu esmagador. A diferença da paisagem gaúcha para os planos do realizador soviético está na cor: ao invés do preto e branco é o azul e branco. Um azul celeste e branco que nos lembra de imediato as cores do equipamento – uniforme, dizem os brasileiros – da selecção uruguaia. Andamos quilómetros em recta, sempre em direcção ao céu. Percebemos com o corpo, que isolamento está em todo o lado. O mundo está cheio de isolamento. Chegados a Jaguarão, e depois de deixarmos as coisas no hotel, atravessámos a pequena ponte da cidade para jantar em Rio Branco, no Uruguai, onde Aldyr nos esperava sentado à mesa. Contente por nos ver ali, tão longe da cidade grande.

No dia seguinte, Aldyr abriu o evento. Depois dos agradecimentos, do contentamento de ver na sua terra um evento que considerava muito importante e que se sentia também muito honrado por ser o seu patrono, começou a sua intervenção lendo o fragmento 21 de Novalis: “A filosofia é na verdade uma saudade da pátria, um impulso para se estar em toda a parte em casa.” Depois continuou: “A poesia é também uma saudade da pátria, mas não um impulso para se estar em toda a parte em casa. Não direi que a poesia inverte esta posição, mas ela é muito mais a iluminação do sentimento de se estar perdido onde quer que se esteja do que um impulso para se estar em toda a parte em casa. Para o poeta – aquele que habita temporariamente a poesia como o humano habita a Terra – todo o lugar é inóspito e nenhum esforço vai alterar isso, porque fora da linguagem estamos sempre fora de casa. O próprio poema é a expressão desse fora de casa permanente, dessa guerra que o poeta sente entre o mundo e a linguagem. A linguagem não conforta necessariamente, mas é o elemento do poeta, onde ele se sente o mais em casa que consegue, mesmo que nessa casa haja uma família inteira que não o compreenda. A própria linguagem não compreende o poema. A saudade da pátria, no poeta, é a falta que sente do que não há, que provavelmente nunca houve: um caminho de palavras até que tudo faça sentido. E esta saudade talvez seja a mesma de que fala Novalis. A diferença, parece-me, está em que o filósofo esforça-se por fazer sentido, por arranjar esse caminho perdido de palavras, enquanto o poeta sente – sem que o saiba dizer – que não há caminho. Contrariamente aos versos do poeta Antonio Machado: caminhante, não há caminho, desfaz-se caminho ao andar. O poeta escreve, não para saber ou para saber que não sabe, mas porque sente que o que sabe, muito ou pouco que seja, não o leva a lugar nenhum. O poema é um caminho desfeito em palavras. Um poema é umas férias que se acabam, uma vida que deixa de ser, um lembrar-se de não ter sido. No poema não há esforços ou impulsos, há feridas. O próprio poema poderia ser a voz surda do que não tem cura. E o romance, pelo menos eu quero acreditar que sim, é irmão do poema. O romance é um poema que ainda tem a ingenuidade de tentar explicar. Não quer fazer sentido! Isso não. É irmão do poema, sabe bem que a palavra desfaz-se em palavras e não conduz a nada, mas demora-se mais neste desfazer, como quem retarda um prazer.”

Aldyr deve ter dito mais alguma coisa de que não me lembro. Depois do evento, passeando pelas ruas antigas de Jaguarão, confessou-nos – ao Aquino, ao Pedro e a mim – que as palavras não foram o início do mundo. O início do mundo deve ter sido um tremer de frio de que tudo vai acabar. E todos sabemos disso, menos o Novo Testamento. O que disse no evento não tem importância nenhuma, é uma tarefa como sair de manhã para ir trabalhar. O que tem mesmo importância é o tempo que passei comigo a ler e a pensar, até dizer ou escrever o que ali disse. E também o tempo que passo com a minha mulher, com os meus filhos, com alguns amigos e com os meus cães. O que é tem mesmo importância? A poesia? Isso seria de fazer rir um poeta.

2 Jul 2019

Quando da metáfora se faz sinapse

[dropcap]S[/dropcap]empre essa vontade amarga de me fugirdes à mão, de vos esquivardes à intimidade com que busco acolher-vos mansamente. A má vontade de quem, em correndo uma brisa, débil que seja, voejaria para longe, onde o gesto fortuito dos meus dedos não vos pudessse alcançar. Sou eu que vos peço, com brandura: Vinde cá, meu tão certo secretário. Pois que dizeis?

Que não ides a lado algum e estais sereno, esperando-me, e que só vos entedio nesta bajulação melosa, lisonja sabuja de quem vende o amor próprio, por um cílio de atenção, em esperança vã?

Pois que não é lisonja, nem adulação galante; retórica bem mal ataviada, talvez: leve captatio benevolentia de pacotilha, porque vos quero deixar, com violência escrita, de rajada e sem pedir licença, o registo de uma poeta das que causam espanto; daquelas cuja poesia se escusa à percepção, e, que, ainda assim, e só por isso (será esta a definição da poesia que ainda nos surpreende à esquina do verso), não nos cansamos de mirar, franzindo os olhos à leitura: Andreia C. Faria.

O livro Alegria para o fim do Mundo contém quatro dos livros da autora, publicados de 2013 a 2017. É esta uma poesia que surpreende pela permanência de uma tensão, um confronto pelejado com a linguagem. Vacilamos ao aceitar reconhecer a língua do poema como a nossa própria língua; lendo poesia, apesar das gradações, modulações, diferentes, nela reconhecemos, apesar de tudo, uma gramática quase nossa, quase comum, quase partilhada. Mas, nos poemas mais conseguidos, até esse pacto é quebrado, para que na intimidade de leitura se instaure uma comunicação restrita e particular, não partilhável: oaristo, em código, do coração da página ao nervo do leitor. Um poema/epígrafe do livro Um pouco acima do lugar onde se ouve o coração (2015), incluído neste volume, evidencia bem, não tanto o impulso de escrita, como se sugere, mas o próprio recebimento, pelo leitor, desta poesia: «Escrevo com nervo e impaciência/com uma lâmina que se sabe/ela mesmo excrescência».

Estes são, então, poemas que se lêem com o mesmo nervo e impaciência com que se dizem escritos: a impaciência com que se cavalga as imagens e se passa além da metáfora improvável, para exercitar o nervo, fintando sempre o óbvio, a piada certeira, ou o trocadilho ligeiro, facilitista.

Muito forte a tensão, em cada poema, e não só pelas alusões ou pelas referências irónicas, ou pelo peso das ambiências sugeridas, mas por esta capacidade geral de nos retirar o chão à linguagem. Ora vede, meu tão certo secretário: acolhei este poema e vede como se coloca a língua em tensão, estabelecendo novos eixos e ligações, exibindo novas regras da lógica da língua; como a mesma gramática, a mesma sintaxe, inauguram outra semântica:

Penso no cavalo que transporta o sangue até ao coração
no sopro que o devolve
inteligível às extremidades.

Penso em chamá-lo a suaves mortes como a flauta do pastor,
enterrá-lo numa leira herdada de alegria.

O puro-sangue que repousa
no pasto de um homem pobre-
vejo-o ao espelho, um clarão de rins desfeitos
sob a etérea camisa de noite. É um laço de vida
a linha que me cose
com a agulha do cansaço, da má colheita, da humilhação.
É a promessa de uma morte calibrada
pela veia espúria, o vernáculo
do antepenúltimo, o antepassado.
[…]

É nova, até, esta capacidade de desdobrar o seu próprio vocabulário (todo o poeta, sim, meu tão certo secretário, tem um vocabulário muito seu, que domina e que vai descarnando como pode, até ao osso, nesse áspero processo da poesia que desfamiliariza a língua). Por outro lado, é densa e ampla a tensão metafórica e a amplitude das sinapses, das relações que a cada poema se convoca, exibindo essa escrita nervosa e impaciente, essa espada em excesso que descasca as palavras e exibe a poesia como um acto de violência que intenta contra o próprio pacto de linguagem. Sim, meu tão certo secretário, sabemo-lo desde Colerige: A literatura, o romance, obrigam à suspensão da descrença, a este estranho movimento que nos faz esquecer do nosso real e crer na lógica interna dos textos: são as perfeitas construções de palavras, que nos afastam da realidade, oferecendo-nos outra, em contrapartida.

Mas o que dizer da poesia, meu tão certo secretário? Desta poesia, por exemplo, cujo vocabulário em inquietante metaforização parece insinuar ao leitor, a cada momento:« — esquece, pois, que até agora falavas a tua língua». Escrever poesia é ludibriar: sujeitar-nos à descrença, que não suspendemos, sem que no entanto consigamos desviar o olhar desta estranheza que nos causa espanto: a metáfora torna-se sinapse, estímulo de afinidades e correspondências, intuições sensoriais que se experimentam, quando nesta poesia se faz uso da palavra.

Mas, que faço, meu tão certo secretário? Todo o comentário a um livro de poesia, a um poema, sabemo-lo, é um acto similar a cobrir-se com lençóis brancos os móveis de uma casa que se vai abandonar: protege-se do pó a mobília, é certo, mas desfigura-se-lhes as formas; desolada imagem que se forma, ao conceder-se-lhe o último olhar da despedida. Mais vale o esforço de, tempos a tempos, ir revisitando a casa, de pano em punho, lendo, instalando-nos confortavelmente e limitarmo-nos a limpar-lhe o pó que, às vezes, se acumula nas esquinas das palavras.

Há uma história antiga, meu tão certo secretário, recontada por Jean-Claude Carière que nos fala de um «mestre espiritual [que] tinha vários discípulos e que todo o dia lhes falava da poesia, da natureza, da bondade, da beleza e do amor. Uma manhã, quando se preparava para falar, um pássaro pousou no parapeito da janela e pôs-se a cantar. O pássaro cantou por algum tempo e depois desapareceu. O mestre levantou-se e disse: «Terminou a lição desta manhã:»»

Sim, meu tão certo secretário, será uma parábola forçada, que não me apresto para mestre (e que discípulos teria…), e por lição, só este arremesso de crónica sempre mal alinhavada, que não lhe faz as vezes. Não tenho quase nada da história de Carrière. Só tenho o pássaro. Aqui fica ele, para vosso proveito:

Admiro a pele dos homens
o couro moreno, bem lavrado, com que se recobrem
tem, ao relento, o calor de um animal esparso.

Pontua, respirando, os veios e os poros
a macia constelação das escamas
o sensorial rebanho que a matança multiplica

Lembra certos utensílios, o rufar tenso dos tambores
ou a espessa luz dos candeeiros

Transpirada, escurecida pelo uso, lembra as malas silentes
que as mulheres sempre carregam

Andreia C. Faria, Alegria para o fim do mundo, Lisboa, Coolbooks/Porto editora, 2019
24 Jun 2019

Sara F. Costa, vencedora do Prémio Glória de Sant’Anna, sobre Macau: “Um lugar inspirador”

O seu livro, “A Transfiguração da Fome”, ganhou o prémio do melhor livro de poesia publicado em países de língua portuguesa. Sara F. Costa reside em Pequim e fala da “dimensão inesperada” que esse reconhecimento lhe trouxe como poetisa, além de destacar o lugar de Macau para a sua obra poética

 

O que representa este prémio para si?

É um grande orgulho receber este prémio literário internacional, uma vez que é um prémio atribuído ao melhor livro de poesia editado em países de língua portuguesa durante o ano de 2018. Esta designação é realmente imponente e esta atribuição bastante inesperada. Quando vi que a lista de livros finalistas incluía nomes como Ana Horta, António Cabrita ou João Luís Barreto Guimarães, nunca pensei que o prémio me fosse atribuído. Estes são autores que admiro há muito tempo e é para mim um enorme prazer poder divulgar a minha poesia, também, junto deles. O Prémio Glória de Sant’Anna é um prémio de grande prestígio e graças a esta atribuição pude constatar que prima por uma excelente organização. Trata-se de um grupo muito especial de pessoas que realmente se interessam pela divulgação de valores literários.

Como foi o processo de escrita do livro vencedor deste prémio?

O meu processo de escrita é simultaneamente visceral e disciplinado. Necessito de organizar o meu espaço mental para que a escrita seja regular, mas preciso de ter algo que me é vital para dizer. Entre a experiência e a escrita. Por vezes não sei se escrevo sobre a experiência ou se experiencio para escrever, mas o que é certo é que nunca dissocio a vivência da escrita. Para que a escrita seja plena é preciso viver plenamente.

Até que ponto o livro “A Transfiguração da Fome” é influenciado pela cultura chinesa e pelo idioma?

Essa influência é inegável uma vez que foi um livro escrito entre Lisboa e Pequim com passagens por Macau. É um livro influenciado pela cultura chinesa na medida em que muitos poemas neste livro possuem representações culturais da minha passagem por Macau e pela vivência em Pequim. O idioma e a leitura de poesia chinesa também me ajudaram a conceber a minha noção pessoal de poesia. Se pensarmos em Ezra Pound ou William Carlos Williams podemos ver como a poesia chinesa foi introduzida na língua inglesa nas primeiras décadas do século passado como uma reação à forma vitoriana que era, essencialmente, o soneto. Claro que isso aconteceu também porque a poesia chinesa foi introduzida através da tradução em verso livre. A minha concepção essencialmente imagética do poema tem origem nessas traduções da poesia chinesa e japonesa. É também curioso verificar como essa poesia da imagem se cruza tão bem com o simbolismo francês. É nesse cruzamento de influxos que situo a minha poesia.

De que forma a vivência na China a marca como poetisa?

A vivência em Pequim tem sido surpreendentemente enriquecedora no alargar dos meus horizontes poéticos. Estou envolvida num colectivo artístico internacional que se dedica à criação e manutenção de uma comunidade literária muito dinâmica e muito consolidada. Não só aprendo muito sobre poesia chinesa como também sobre poesia de outras geografias, uma vez que aqui se cruzam poetas de várias nacionalidades. Neste momento organizo um workshop de poesia bi-semanal, o primeiro da cidade, integrado no colectivo de que faço parte chamado Spittoon.

Ao nível da poesia chinesa, quais são as suas influências?

A noção que há pouco referia da poesia imagética ou poesia-pintura acaba por ser uma grande influência e posso dar como exemplo o poeta Wang Wei da dinastia Tang ou Su Shi da dinastia Song. Hoje em dia, aventuro-me a ler os poemas contemporâneos de autores como Haizi, Chang Yao, Zhangzao, entre outros. Tenho acesso a esta poesia porque tenho bons amigos e amigas que me guiam na descoberta de novos poetas chineses e tem sido uma descoberta muito enriquecedora. No nosso colectivo artístico publicamos novos poetas chineses para inglês como forma de dar uma voz internacional a novos valores literários. Esta experiência é fundamental para estar a par da criação poética na China.

Depois de vencer este prémio, que portas se podem abrir?

Este prémio acaba por ter, para mim, uma dimensão inesperada. Para além de um pouco mais de visibilidade, já fui abordada com propostas de publicação do livro no Brasil, por exemplo. Da última vez que o meu livro anterior “O Movimento Impróprio do Mundo” foi seleccionado para a lista final do prémio em 2017, recebi um convite para representar poesia contemporânea europeia no Festival Internacional de Poesia de Istambul. É sempre bom ver o nosso trabalho reconhecido e é sempre bom ver que há algum progresso na sempre tímida carreira literária. Todos os pequenos passos contam.

Esteve em Macau no festival Rota das Letras. O território passa pelos seus planos literários, seja para escrever sobre ele ou para desenvolver projectos a esse nível?

É inevitável que Macau me inspire. Eu tenho uma trajectória peculiar enquanto portuguesa na China. Vivi em Tianjin primeiro, depois visitei muitas partes da China continental e só depois tive contacto com Macau. Encontrar este recanto intercultural que comunica tanto com os portugueses, causa sempre um grande impacto. É sem dúvida um lugar inspirador. Recentemente tive poemas publicados pela revista literária de Hong Kong Cha: An Asial Literary Journal na edição “Writing Macau”. Irei também fazer parte de uma antologia de poetas portugueses com ligações a Macau organizada pelo António MR Martins. Acho que esta ligação entre Macau e a minha poesia ainda está para durar.

3 Jun 2019

O lugar de que sou é estar aqui

Rivoli, Porto, 10 de Abril

[dropcap]V[/dropcap]iagem -relâmpago para outra manifestação em torno das «Constituições» atribuídas a Aristóteles, na versão do António [de Castro Caeiro]. O Rui [Spranger] emprestou a voz cava para dar corpo aos fragmentos e José Meirinhos propôs um detalhado e muito cuidado enquadramento do percurso destes textos até chegarem à mão do tradutor, que, como bem assinalou, atreve-se a contribuir com inúmeros neologismos. A nossa língua não tinha ainda acomodado medidas e moedas e demais peças de um quotidiano perdido no tempo (e na fantasia). Pena terem sido poucos os que se atreveram à viagem.

CCB, Lisboa, 11 de Abril

Poucos conseguem falar de livros como o Jorge [Silva Melo]. Há um saber que se esconde nas calorosas definições das personagens, no respigar do detalhe biográfico do autor que interessa para estender da história como toalha tombando sobre a mesa. Falou-se de teatro, e muito, neste Obra Aberta. E de língua, que o Duarte [Azinheira] trouxe como pretexto um utilíssimo «Novo Atlas da Língua Portuguesa», de José Paulo Esperança, Luís Reto e Fernando Luís Machado (ed. INCM).

Casa da Cultura, Setúbal, 12 de Abril

Acaba sempre sendo viagem, a conversa desta «Filosofia a Pés Juntos». Lá fomos às raízes para perceber que a alma ensopa o corpo e que demorámos séculos até perceber de que massa somos feitos. O órgão do tempo demorou a descobrir o coração como centro. Até então, o esterno era o lugar da consciência de si: quando apontamos para nós próprios, o cerne fica mesmo ali. Depois, em fundo de boca, fica-me o sentido de sarcófago como comedor de carne.

Povo, Lisboa, 15 de Abril

Sessão marcada por avarias e desencontros, esta dedicada à poesia de José-Emílio Nelson, que terá para mim sempre o caracter de «Beleza Tocada», de fruto que o toque encaminha para a maturação, talvez o apodrecimento. O Henrique de-tantos-nomes Fialho ficou na estrada, traído pelo motor. O Filipe [de Homem Fonseca] foi travado e não podemos ver as suas mãos dançar no ar que o teremim respira. Mas o Pedro [Proença] desenhou com a voz, a Rita [Taborda Duarte] abriu caminhos, que o Luís [Carmelo] e eu seguimos diligentemente. Mas esta poesia é ruim de se dizer, despega-se dos olhos, faz-se agreste e desassossegada, com ela todo o caminho se faz sobre gelo fino. Peculiar, portanto, o encontro.

Coura, sem paredes, 26 de Abril

De súbito, na esplanada, talvez em resposta ao Trakl que o António [de Castro Caeiro] acabava de ler, o Miguel [Martins] diz de cor o «soneto presente», do Ary dos Santos. Na rua onde pulsa o coração desta terra inscrevo na pele o meu hino para estes dias. «Não me digam mais nada senão morro/ aqui neste lugar dentro de mim/ a terra de onde venho é onde moro/ o lugar de que sou é estar aqui.// Não me digam mais nada senão falo/ e eu não posso dizer eu estou de pé./ De pé como um poeta ou um cavalo/ de pé como quem deve estar quem é.// Aqui ninguém me diz quando me vendo/ a não ser os que eu amo os que eu entendo/ os que podem ser tanto como eu.// Aqui ninguém me põe a pata em cima/ porque é de baixo que me vem acima/ a força do lugar que for o meu.» As gaiolas também se rasgam, grita o cartaz do «REALIZAR:poesia» (algures na página), assinado pelo António Pinto.

Biblioteca Aquilino Ribeiro, Coura, 27 de Abril

Por agora, uma certa ideia totalitária de cânone enquanto regulador do gosto vai fazendo escola, suscitando aqui e ali boas traduções, mas acompanhado de retóricas castigadoras, sem se afastar de miserável proselitismo. O momento, portanto, não será o melhor para entender que alguns livros possam nascer de gestos de amor, na crença de que o humano possui grandeza única. E que merece ser celebrada. O António Cabrita e o Miguel [Martins] escolheram guiar-nos através da esparsa produção do Levi [Condinho] com este «Pequeno Roteiro Cego». Trata-se de um tributo afectivo, um reconhecimento da importância que o autor teve no concreto de algumas vidas, tornando-se ainda testemunho de um certo tempo. A poesia ilumina e muito para além desta circunstância, apesar da tocante simplicidade que parece praticar. E depois Levi Condinho trata deus por tu, chama-o para inúmeras conversas, de braço dado, de olhos nos olhos. O autor não quis subir, não se dá com viagens, mas foi devidamente descrito enquanto paisagem pelo Miguel. Por causa da música que soa ininterruptamente em pano de fundo, a Luísa [Pires Barreto] glosou na capa um certo modo das cores se arrumarem para dizer jazz, como foi com certas editoras que, no seu tempo, não recusaram esta luxúria.

«A sensibilidade do miolo miúdo do poema/ não concebe o grito do pregador/ nem o sarcasmo dos castrados da intempérie// o homem vai no transporte da sua vida/ e a escrita faz-se no andar do transporte/ quem entende apenas o exterior parado/ nada vê – por isso o abandono é tanto// e o pudor de uma flor discreta comove/ como o grito das aves na montanha árida// voltar ao grito e ao silêncio/ mas não da forma tão visível como quereis/ eis a ciência do azul de dentro// canto/ mas os cães mijam/ nos postes de silêncio/ do meu canto.»

Retiro do Taboão, Coura, 28 de Abril

O sol esbatia, impiedoso, cada contorno. O rio parecia quedo, concentrado na tarefa de espelhar o céu. Os carvalhos receberam as palavras com soberana indiferença. E, no entanto, os versos de Georg Trakl, vertido pelo António para o cadinho do português, parecem resultar de golpes de canivete em um qualquer tronco. Lá nos explicámos o melhor que pudemos este volume de «Poemas», mas foram sobretudo as leituras em voz alta que me parece que impuseram uns laivos de magia. Não vejo melhor lugar para fazer soar esta melancolia escaldante, este «Sussurro ao Meio Dia». «Sol outonal, delgado e hesitante,/ E a fruta cai das árvores./ O silêncio habita espaços azuis,/ Onde um meio-dia se alonga.// Sons de metal, de moribundos;/ E um animal branco precipita-se./ Canções roucas de meninas morenas/ São levadas como as folhas em queda.// De Deus, a fronte sonha cores,/ Adivinha as suaves asas da loucura./ Sombras movem-se na colina,/ Envolvidas pelo negro da podridão.// Crepúsculo sereno cheio de vinho;/ Fluem tristes as guitarras./ E tu entras na terna lâmpada/ Como se de um sonho te tratasses.» Indistinto na folhagem pareceu-me ver o autor tal qual aparece, tão bem apanhado pelo Manuel [San Payo], na capa. Mantinha o corpo trocado pelo sobretudo de traços, de vestígios. E pareceu-me sorrir, mas ao longe podia ser apenas um esgar.

Algures entre Coura e Braga, 28 de Abril

Esta estrada sinuosa presta-se a devaneios meditabundos. À ida, tive por companhia uma série magnífica de nuvens a pintalgar um azul de espanto. Na descida, o assunto foram árvores, sobretudo os carvalhos e as oliveiras. Anda por aqui uma estranha moda de podar as oliveiras arredondando-as e achatando-as que nem pneu. Mas o que tenho que registar (para prova futura) é a revelação desta espécie que me era desconhecida: limão caviar. O fruto contém pequenas nuvens.

8 Mai 2019

«Um Chouriço é tão Poético como uma Rosa»

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, e de mansinho, aconchegado, acolhei estoutros versos que são teus; é que, se tudo vai sendo feito de mudança, tomando-se sempre de novas qualidades, se se converte, é certo, em choro, o doce canto, e a neve, como previsto, se sobrepõe ao verde manto; a bem da verdade, mesmo que tudo se transmude, sim, como soía, essa mudança, faz-se, ‘inda assim, de maior espanto.

Debaixo do mesmo sol, a metamorfose é regra, não novidade: a crosta, sabemo-lo, altera-se mutante, encerrando no imo a mesma matéria. A pedra fóssil recobre o bicho antigo; o âmbar sobrepõe-se à resina; e é próprio da pérola ter o empedernido coração de um grão de areia.

Assim corre a vida, também a poesia. A poesia está aí, no mundo, e mutatis mutandis, se rege pelas mesmas regras, mesma ciência: como ele, é cíclica, sim, em mutação, mas, no fundo, a mesma, sempre girando em torno da palavra, como a terra à roda do sol. Retoma novos atributos, sem perder os antigos. Tantas vezes, à poesia, então, não lhe basta por isso ser lida; há que ser manuseada, mas usando o corpo todo e os sentidos, para que lê-la seja literalmente testar-lhe as formas, os contornos e alterá-la, sim. A poesia, por vezes não se conforma à língua (um absurdo: o mesmo é que o dia não se queira sujeitar ao sol…). Mas o certo é que alguns leitores lhe adivinham o incorformismo; procuram, mansamente, satisfazer-lhe os desejos. Meu tão certo secretário, perguntais, já: «A que vem isto agora?». Que não? Que não perguntastes nada, que pensáveis até noutra coisa, distraído?… Pois tende paciência, e prestai atenção, que ainda assim te respondo:

Tudo isto vem propósito de Alberto Pimenta, para quem «uma rosa é tão poética como um chouriço», tal como, para o outro, o binómio de Newton ganhava aos pontos à Vénus de Milo…

Alberto Pimenta foi por estes dias duas vezes lido, duas vezes metamorfoseado, tomando-se sempre de novas qualidades, sem deixar, no entanto, de se mostrar como soía. A sua poética foi por duas vezes tomada e tornada corpo de performance. Dois modos distintos de a ler, mas mantidos num elo triangular, que fazem da poesia de Pimenta massa de modelar: poesia em processo de mutação e metamorfose; formas de leitura que actuam performativamente, poeticamente, até, nos seus próprios textos: em primeiro lugar, o filme (que não documentário) de Edgar Pêra (com argumento do próprio Pêra e de Manuel Rodrigues), a que foi dado o título «O Homem-Pykante- Diálogos Kom Pimenta», e que estreou no «Indie», 2018 e que teve, agora, a sua estreia comercial. Esta leitura da sua obra transmutada em filme é uma poesia-performance em movimento, em que o acto de montagem se transfigura no procedimento de montagem/colagem da própria linguagem poética de Alberto Pimenta. Tratar-se-á da sua poesia feita corpo-em-movimento, sempre dando conta da incomodidade da língua, em que a poesia vive. Sim, há sempre que fazer sentir o peso da língua; este grilhão de que o poeta não se livra. Alberto Pimenta bem foi escrevendo, avisado, que «não há opressão maior/e mais infame que a da língua.».

Mas outra leitura-metamorfoseada foi lançada também por estes dias: a publicação de «Anastática para Alberto Pimenta», antologia poética de Manuel Rodrigues (Abysmo, 2019) e dedicada a Pimenta, com prefácio e selecção de Edgar Pêra. Estes poemas, assim dispostos, \assumem novamente um corpo performativo, de duplo efeito; por um lado, são lidos inevitavelmente com a voz espectral de Pimenta a assombrá-los; por outro, obrigam, em simultâneo, a reler a sua poesia, através do eco de Manuel Rodrigues. E, ao assumir-se Pimenta e a sua poética múltipla, prenhe de estilos, como o destinatário único de cada poema, ergue-se, audivelmente, do livro, um diálogo, a que o leitor assiste como espectador de uma cena dramática que se liberta das páginas. Poemas, portanto, que se tornam cena em acto, como se a língua não se bastasse a si mesma e se procurasse no texto o espectro de um corpo-destinatário:

«Para Tal te Evitar»

se eu pudesse morreria ao escrever
um pintor que poderia desejar senão
uma morte d’óleo diante à tela
pianista o piano e cigala em cantante
amador a mando que ama a valer

_que quererão para boa morte_
esses povos sob mitos de recitar?
ora, diz-me lá tu, que leste mais
como crês que preferirão morrer
os exércitos de guerreiros ávidos
com tanta guerrilha ainda a devir?
eu, se pudesse, escreveria sempre»

(Manuel Rodrigues, Anastática, Abysmo, 2019)

Bem o sabemos, desde Lavoisier, que nada é novo e tudo se transforma; mas que fazer, se nós, leitores e habitantes do mundo, todos à uma, vamos vivendo como se a vida e a poesia fora coisa nova, exultando-as, em plena liberdade do espírito: Assumimos o mesmo exacto espanto perante um poema (escrito, claro está, com a mesma massa da língua que nos oprime), assim como perante o sol nascente por cima de cada manhã, gratos pela beleza que mais não é, afinal, do que a prova do tempo a morder-nos as canelas..«[…]/Pois é: sempre o mesmo e/ sempre desencontrado, o tempo/com o tempo.//Ele destrói tudo./Destrói tudo./Destrói tudo.// Como não havia de destruir-se a si mesmo? Levantar paredes/e deitá-las abaixo, /para poder levantar de novo…// – Não é o princípio/das estações do ano?/De que te queixas? » (Alberto Pimenta, Nove fabulo, o mea vox/De novo falo a meia voz, Pianola, 2016).

A previsibilidade do sol, consabido, requentado, a pontuar de laranja o fundo do horizonte traz a mesmíssima novidade de um poema. Atrás de um, a angústia do tempo passando, atrás de outro, as grilhetas da língua, asfixiando: e perante esse espectáculo triste, nós leitores e habitantes do mundo, celebramos o espanto, ainda assim. Por isso, estas insistências, absurdas, mas tão essenciais, em transformar a obra em metamorfoses, oferendas, tributos, palimpsestos, como se pretendesse alongar o efeito do nascer do sol. Na sua lição de sapiência, na Universidade Nova de Lisboa, Pimenta explica, a dada altura, que os poetas seriam importantes para exprimirem o indizível: se fosse para dizer, tão só, o dizível, explicava, então, «não seriam necessários poetas, bastar-nos-ia a prosa.» Mas, atrever-me-ia a dizer que, neste ponto, talvez Alberto Pimenta não tivesse razão: os poetas não procuram sequer dizer o indizível. Pelo contrário, procuram criá-lo e fazer crer ao mundo a sua existência. Na verdade, todos sabemos que, provavelmente, no princípio não estava sequer o verbo. Mas quem sabe se estará no fim? Por isso, só por isso, não basta ler os poetas: às vezes é preciso transformá-los, continuá-los, para que o ciclo não se acabe, nunca.

6 Mai 2019

Precipícios interiores

“Lembro-me de ter pensado que

há coisas que só se engolem
com muita fome e uma flor à frente.

Mas ele era um sem-abrigo ainda jovem

qualquer dia
já nem vai precisar da flor.”
André Tecedeiro

[dropcap]É[/dropcap] a terceira ida ao supermercado este mês. A música ajuda, sempre e em tudo. Bolsos e carteira vazios. Contas bancárias por onde nem o vento passa. As botas escorregadias por já não terem capas nas solas. A mala a precisar de ser cosida. A mala e a vida. Ou ela a si mesma. Pensava que era uma mulher, e a constatação de que esteve numa dolorosa aula de ioga nas últimas vinte e quatro horas acrescenta dez centímetros ao seu já maltratado ego. A fome é um precipício interior, erguido a medo, desolação, desespero. Quando chegamos ao limite ou ao que julgamos ser o nosso limite, eis que descobrimos os alheios e, sobretudo, a falta deles.

No autocarro, o cheiro do pão ainda quente. Outro dia, ao telefone, dois estranhos discutiam o que se conseguia comprar no supermercado com seis euros. Alguém, do lado de lá, dizia ser “muita coisa”. A estranha do lado de cá, com ironia, respondia, “Eu sei muito bem o que dá para comprar com esse dinheiro.” Seguiu-se um “Nada”, mudo. Mas ela sabe, afinal faz somas na calculadora do telemóvel a cada produto que escolhe, não vá o dinheiro tecê-las. Um após o outro devora três dos quatro pães que estão no saco. Armazenar é preciso, mas todos os dias se gasta, e a reposição não chega a ser feita em tempo útil.

Está cansada. Cansada de precisar, de depender, de não ter. Cansada de malabarismos financeiros nos quais o saldo acaba sempre negativo. Cansada de adiar, de adiar-se. De fazer planos e falhar-lhes. Cansada de falhar a si mesma. De não poder ser aquela com quem se pode contar. De falhar aos outros, mesmo se eles não o sabem ainda. A negação caminha de mão dada com a prostração. Raramente se permite chorar. Mas há dias em que não suporta a própria vida, dias em que não sabe quem é esta pessoa que se mantém por cá, que tem sempre um sorriso sincero para dar, que por vezes quase parece esquecer-se da situação em que vive. Que não quer preocupar ninguém, que guarda os desabafos até ao último momento.

Jardineira, panados de peru com massa, coelho com batatas fritas, peito de frango com esparguete. Poderia ser a lista de pratos do dia num qualquer restaurante, mas são parte da ementa privada que a colega do lado lhe tem trazido para o almoço. Comemos fora, estamos habituados a que sejam outros a preparar a nossa comida. Então, porque é tão estranho que alguém no-la traga? É a tal da vergonha. A paralisante vergonha da necessidade. A gratidão tem o mesmo efeito. Porque nunca parece suficiente. Porque a sentimos de tal modo que nem sabemos como expressá-la. A lista continua. Café, bananas, pêras, maçãs. A gratidão caminha lado a lado com a culpa e o pensar no que pertence e poderia, poderá, será que faz?, falta a outros. A culpa pelo sacrifício alheio é uma das mais corrosivas. Corrói mais do que dias corridos a sopa de pacote e pacotes de ketchup (surripiados de um restaurante de fast food), do que as noites em que vai para a cama sem jantar. Quando vivemos sozinhos, tudo dura mais tempo, não é assim?

A delicadeza de quem, para além de tão grande gesto de compaixão, ainda nos pergunta se gostamos disto ou daquilo, para nos dar a escolher, como se fôssemos da sua própria família. A delicadeza emudece, emociona, transforma. Há um precipício, mas não temos de atirar-nos dele. Muitos o carregam dentro de si e andam no meio de outros, em igual ou pior situação, e nada que os distinga porque a fome é isso mesmo, uma ameaça que demora muito a deixar-se ver. Há um precipício. Há mãos que nos agarram no último momento. Às vezes essas mãos são bem pequenas mas pertencem a alguém de coração gigante. Eu espero que haja sempre alguém que nos encontre. Há um precipício mas não temos de ceder. Podemos sentar-nos à sua beira e, com sorte, na relva. Com sorte, haverá flores. Com sorte, dias melhores.

18 Abr 2019

País sem vestígios

Rua Cor-de-Rosa, Lisboa, 8 de Abril

[dropcap]J[/dropcap]á vos tinha dito que as segundas-feiras se tornaram abomináveis? Perseguido pelos mastins das delongas, a semana começa com setas de todas as direcções possíveis mais as que se inventam no momento. E tudo concorre com este alinhavar dos dias, pingue-pingando para a última das horas. O primeiro acaba anunciando a semana que se desfaz, na mão em corrida de obstáculos. Prestes a chegar ao «Povo», para outra sessão de leituras em torno da colecção «Mão Dita», que acabou revelando-se saborosa e intensa, o telemóvel doía-me no bolso de tanto vibrar. Era, avisos de ser «taobua de tiro ao álvaro» em uma delicodoce cena do ódio, assinada por super-herói de saia justa se vangloria da mui nobre arte de espatifar supostas porcelanas, João Pedro George, sobrinho-bisneto do 1.º Visconde de Avelar e 1.º Conde de Avelar – segundo investigação na wikipédia que me deu um trabalhão.

Ora o que diz sua excelência, em douto «ensaio», assim chamado para se livrar ao contraditório, dispensável para o suposto jornalismo que a «Sábado» pratica. «Sim sim tem aqui bela coisa que bela coisa tem aqui» (aspas, ver abaixo). O enorme «investigador» foi, com cansativa dificuldade e resiliência, vitimiza-se o putativo herói, a distintas plataformas abertas ao público, do Diário da República à dos contratos públicos online, para levantar um conjunto de contratos que fui fazendo ao longo de vinte anos com câmaras ou entidades supostamente ligadas aos socialistas e ao António [Mega Ferreira]. Exclui todas as outras, de distintos quadrantes políticos, da monarquia ao comunismo, da Presidência da República ao Jardim Botânico da Universidade do Porto, que pudessem afectar a lógica narrativa, que de uma história de adormecer se trata. Põe tudo no mesmo saco, claro, projectos de dimensão e alcance variáveis, envolvendo mais ou menos participantes, assessorias concretas ou colaborações. Mais: se foram propostas ou convites. Em nenhum momento, lhe interessa investigar se alguma coisa ficou por cumprir, se sombra de sombra ou mijo de gato tombou sobre a gestão de cada uma das ideias postas em movimento.

Não, basta discorrer a demagogia dos valores e o uso das alarvidades do costume para o efeito: «empochar», «deitou a correr, dirigiu-se saltitante», etc. Aliás, o mais insidioso, que me obriga a defesa frustre perante ataque soez, é o sobrinho-bisneto não afirmar nada. Insinua, com a elegância do «elefante no nenúfar» (aspas, ver abaixo). As páginas da revista abrem para se tornar tribunal de série televisiva mediana, mas muito dramática, de apelo ao mais básico. Reparem que, ao contrário de qualquer prática deontológica, juiz e o advogado desapareceram, para entregar por completo o pôr-do-sol ao procurador-inquisidor que nem precisa apresentar prova alguma, apenas valores, maravedis, contado, dinheirinho de fazer salivar. Agora o projector cega-nos, recortando a figura do dono da justiça, a denotar torrencialmente para que o júri possa. O júri, quer dizer, os leitores. Julgar?, leia-se, condenar sem apelo nem agravo. O temível «investigador», sempre louvado pela coragem, não teve tomates para afirmar nada pelo qual pudesse ser responsabilizado. Só sugere, em nome da liberdade de putativa imprensa. As ligações à maçonaria, por exemplo, que botam sempre picante na grande caldeirada das teorias da conspiração, resultam de artigo do vizinho «Correio da Manhã», ia lá o visconde sujar as mãos…

Até na crónica anterior (primeira de quatro), no momento mais abjecto, ao falar das ameaças que vencerá com enorme sacrifício, ainda que isso ponha em risco a criação das filhas, fá-lo entre aspas. Alguém lhe disse, não foi ele. Insisto, de investigação jornalística (ou outra) a prosa nada tem, só manhosice. Para não maçar, veja-se a asneira de dizer que António Lamas sucedeu a Mega Ferreira. Mas há mais mentiras, incorrecções, torções na verdade, como se fosse esse o objecto, sendo mero ensaio. Deu-lhe sopro de ideia e vai de a borrar no papel. Com a máxima a liberdade de enlamear, por ser essa a sua pulsão, que outra. Diz ele, com extrema correcção e maior indignação: «o mártir da Abysmo e da Arranha-Céus, que tem mister de recorrer a parcerias com o El Corte Inglês, a INCM, a Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, etc., para publicar quase todos os livros do seu catálogo, é a encarnação do ideal de editor independente, que compromete o seu conforto e segurança em nome da formação cultural do país.» Lá está, o «investigador» nem sabe contar. Nos mais de 140 títulos que publicámos, se 10% resultarem de parcerias é muito, sendo que fica por explicar as diferenças, que nem tudo se resume a dinheiro, nem todos os logótipos. Talvez seja a única afirmação-acusação, logo falsa, por azar. Custa, ao rapaz, que eu seja mesmo editor independente. Agasta-o não ter pedido licença. Prova o contrário as edições apoiadas? Será que aquelas por si organizadas e devidamente apoiadas, as fez sem remuneração? Nos puros, sabemo-lo de outros quintais, a superioridade está na limpeza com que deixaram de evacuar. Tanto faz. Nada aqui carece de prova, o supremo tribunal das redes sociais já me condenou pelo crime capital da minha vida estar indelével e cabalmente ligado ao António Mega Ferreira, com o apoio activo do Duarte Azinheira, e as costas quentes do Partido Socialista sem esquecer a Maçonaria. Tenho como pior a «acusação de mau carácter», na vez desta terrível de ser, à vez e conforme as circunstâncias, extremista de esquerda, anarquista, adepto da teologia da libertação ou do Opus Dei. Decidam-se, por amor de Deus! Não me sinto lá muito bem, de nenhum ponto de vista, muito menos financeiro, mas não conto desviar-me muito do caminho feito. Até pelo orgulho nos projectos que partilhei com o António, sobretudo, o de ser um dos editores do seu português límpido, ao serviço de pensamento desabrido e curioso, hedonista e libertário. Sim, libertário significa isso mesmo: construir as montanhas de onde se respira ou vislumbram horizontes. E, de súbito, no meu país e em meio que, supostamente, pensa, a ideia de ser do contra tornou-se valor máximo. Erguemos bandeiras sem ler, sem interpretar, só por ser contra, mesmo uma parede, sem razão nem sentido. Embora lá e de cabeça, que não serve só para pensar!

Ao contrário dos santos adorados pela nova inquisição, que pagaram na pele o preço do dito e do feito, mais abjecta resulta esta manhosa impunidade. E em pasquim dirigido por alguém que, antanho, achei ser jornalista e ter noções de deontologia. Que a vergonha te seja leve, Eduardo Dâmaso! Não tenho filhos, mas tive pais e avôs e quem não se sente não é filho de boa gente. O debate pode continuar em outras sedes, com variegados modos de responsabilizar a leviandade da calúnia. Citando amigo querido, «a honra ainda é um valor e ainda há juízes em Berlim».

A propósito. Admiro o facto de o vigilante ter colocado em perigo o bem-estar das filhas por tão sanitária sanha (ou saga, ainda não sei bem). Como sou, além de independente, um romântico, acredito que estas leituras maldosas e tristes do mundo não fornecem alegria a ninguém, nem ao próprio, dobrado sobre si, ligado ao saco de fel na vez de soro, nem aos restantes, pela queima de oxigénio. Fiquei, portanto, com alguma compaixão pelas crianças que não escolheram conviver com gente desta cujas janelas dão apenas para o nevoeiro.

Mando beijo, com dedo de permeio.

A vizinha, Lisboa, 9 de Abril

Primeira intervenção do lado de lá da mesa, no «Inventário Possível», projéctil dos manos José [Romão] e Valério [Anjos], ainda por cima de Beckett e tendo por parceiro aceso de velório, o Nuno [Miguel Guedes], cuja quântica da vida reaproximou os nossos buracos negros. Antes do momento, de que já tenho saudades, uma delas o violoncelo rasgante da Sandra [Martins], o Tiago [Fezas Vital] pediu que posasse para projecto seu.

Revejo-me na ferida e no gesto. Piegas, comovo-me com o divertimento que erguemos, apesar de não ter sido servido com whiskey. De propósito, traduzi poema que me atapetou depois estes dias. Vede, sem há coincidências.

«om bom é um país/ onde o esquecimento onde pesa o esquecimento/ com suavidade nos mundos sem nome/ ei-la a cabeça que sustentamos a cabeça fica muda/ e sabemos que não não sabemos nada/ o canto das bocas mortas morre/ sobre as praias de gravilha fez a viagem/ nada há por que chorar// a minha solidão conheço-a vá conheço-a mal/ tenho tempo é o que me digo tenho tempo/ mas que tempo osso faminto o tempo do cão/ do céu empalidecendo sem parar meu quinhão de céu/ raio que sobe as cataratas tremelicando/ mícrones de anos tenebrosos// vocês querem que vá de A a B não posso/ não posso sair estou em um país sem vestígios/ sim sim tem aqui uma bela coisa que bela coisa tem aqui/ o que é que foi não me faça mais perguntas/ espiral poeira de instantes o que quer que seja dá no mesmo/ a calma o amor o ódio a calma a calma”.

17 Abr 2019

Os bugs da maré ansiosa

[dropcap]E[/dropcap]m meados dos anos sessenta do século XX, uma menina de mini-saia contida e de cabelos em ninho de cegonha anunciava, no branco e preto da TV, enceradoras, frigoríficos de cromado brilhante e móveis de mogno capazes de albergar uma telefonia e um gira-discos. Tudo isto atrás da montra que reflectia as muitas cores dos reclames luminosos que infelizmente desapareceram das nossas cidades em nome das higienes e das composturas contemporâneas (lembro-me de anúncios famosos que se moviam ao jeito de pirilampos gigantes: o Brandy Constantino, a Oliva, o Fósforo Ferrero, o Ovomaltine, o Ómega e sobretudo a capa e espada do bravo Porto Sandeman).

Essa menina congeminava desejos reprimidos e projectava uma espécie de direito natural à preguiça insossa e insonsa (e o que irradiasse do sexo não passava de nenúfares e de trinados da eurovisão). Todos esses electrodomésticos de luxo se cruzaram, ao longo de décadas, com revoluções de brado e com outras (paradoxalmente) pacíficas. O tempo passou e alguns desses electrodomésticos desapareceram ou abandonaram o epíteto do luxo e massificaram-se. Hoje em dia, já pouca gente sabe o que é uma telefonia, um transistor, uma enceraroda, a cabeça de um gira-discos, a fita acastanhada do gravador e muito menos quem foi o homem de capa e espada do Porto Sandeman (que se erguia das majestosas armações de metal que, de noite, sobre os telhados das cidades, contavam histórias de luz ao desalento sigiloso de que Ruy Belo tão bem deu conta nos seus poemas).

A democratização dos utilitários tecnológicos com funcionalidades e formatos novos (todo o caudal digital de aparelhamentos do dia-a-dia) tornou-se no dado mais óbvio da nossa vida. A menina de mini-saia contida e com cabelos em ninho de cegonha dos sixties respira hoje dentro de nós, como se a instantaneidade da tecnologia se confundisse, cada vez mais, com um pasmo liofilizado feito da magia ‘on’-‘off’. Os antigos reclames luminosos caíram para dentro do espectáculo individual dos telemóveis e o desalento foi rebaptizado a pensar em novas patologias de tipo compulsivo.

Comparar épocas tão distintas – e afinal separadas por apenas meio século – é um ofício parecido com o do carpinteiro José a tentar explicar aos vizinhos por que razão não era o pai de Jesus. Seja como for, a actual revolução tecnológica também teve já os seus lances proféticos falhados (ou, se se preferir, os seus telhados esvaziados de ilusões luminosas). Há duas décadas, na passagem do ano de 1999 para o ano 2000, todas as vozes autorizadas garantiam que a simples mudança de dígito iria gerar um crash global. Uma espécie de 09/11 informático antes de tempo. Esse Millenium Bug chegou a ser tratado, numa das Newsweek do fim de 1999*, através da expressão “banho de sangue”. As estimativas retiradas dessa mesma publicação eram e são, no mínimo, curiosas e, claro, tremendistas:

1º – Segunda Grande Guerra Mundial II – 4,200 biliões de dólares.
2º – Reconversão informática mundial do ano 2000 – 600 biliões de dólares.
3º – Guerra do Vietname – 500 biliões de dólares.
4º – Terramoto de Kobe – 100 biliões de dólares.
5º – Terramoto de Los Angeles – 60 biliões de dólares.

Às vertigens das viragens tecnológicas corresponderá o sorriso congelado da nossa menina de cabelos em ninho de cegonha (que cantarolaria as ventanias de Eduardo Nascimento). A memória avança na nossa direcção com o objectivo de devorar, é certo. E fá-lo para que se perceba – e para que se volte sempre a perceber – a impossibilidade de se ser e de se estar em tempos diferentes.

Presos ao futuro (e ao encanto dos seus pequenos projectos), os humanos viajam num ‘agora’ em movimento, mas um ‘agora’ que nunca se converte num outro ‘agora’ de modo nenhum. Uma tragédia em si mesma, dir-se-á.

Se Ruy Belo falava das tragédias de uma determinada época (Morte ao Meio dia, por exemplo, é um poema revelador dos sixties portugueses -“No meu país não acontece nada/ à terra vai-se pela estrada em frente/ Novembro é quanta cor o céu consente/ às casas com que o frio abre a praça”*), outros poetas houve que expressaram tão bem esta tragédia de fundo que consiste, ao fim e ao cabo, em não se ser de tempo nenhum. Razão por que se fala sempre do “meu tempo”, essa ilha isolada do existir a que nunca se regressa e para que nunca mais se caminha. No Fausto, Pessoa repisava o tema: “Tudo que vemos é outra coisa./ A maré vasta, a maré ansiosa,/ É o eco de outra maré que está/ Onde é real o mundo que há”*.

Fiquemos, pois, com o eco, esse espanto inexplicável que é olhar para a fotografia do Rossio da Lisboa dos anos sessenta e crer que ele nunca terá realmente existido. Esse, sim, é o verdadeiro bug. E ali ao pé do café Gelo, com o Diário Popular debaixo do braço, lá vou eu, mão na mão, aconchegadinho, com a menina de cabelos em ninho de cegonha a saborear-lhe o rouge. E o vento mudou e ela não voltou.


*Beyond 2000 em Newsweek, NY, November 8,| Vol. 154 No. 19, 1999.
*Belo, Ruy; Home de Palavra(s), Assírio e Alvim, (1970) 2016.
*Pessoa, Fernando; Fausto, Tinta da China, Lisboa (1907-1933) 2018.

11 Abr 2019

Espelhos toldados das palavras

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário. Mais perto. Tão próximo que mais ninguém nos ouça, pois que todo o papel será como as paredes: brancas e com ouvidos. Se me quiserdes escutar, dizer-vos-ei em surdina, a vós só, num oaristo tímido entre nós dois: A poesia, a melhor, é um equívoco. Um pantomima cega e ficcional em que vamos persistindo, fingindo como quem acredita, mentindo como quem crê.

Há livros de poesia que nos lembram isto mesmo, desejando palavras não com que se escreva e diga, mas com que se pinte ou componha, ou, pelo menos, se reaja ao mundo visível, emendando-o. «O Olho e a Mão», obra conjunta de Ana Marques Gastão e Sérgio Nazar David, com poemas que se interpelam mutuamente, assim como às pinturas por que se fazem acompanhar, e a que resistem, também, é um destes livros capazes de «cega[r] a ortografia»: rasurá-la, exibindo o equívoco de se chamar literatura à poesia, a par de outras artes literárias.

Tantos escritores, pensadores, poetas, Sartre, Croce, Verlaine vêm denunciando esse logro, insistindo, com o orgulho da convicção, que poesia e literatura estão nos antípodas e que o leitor de poemas é uma ilha rodeada de equívocos por todos os lados. Qualquer coisa como esta: todos sabemos, e repetimo-lo de lição estudada: a terra é redonda! Mas, e então? Há que vivê-la como se fora plana, que sempre é mais prático para conquistarmos o nosso quotidiano chão. Algum jeito haveria se andássemos a rebolar por esse universo fora, provando, a cada dia, a circularidade do mundo? Pois será redonda, é quanto basta saber-se, para continuarmos, no entanto, a vivê-la como se fosse aplanada, sem a precisão de nos pormos a escrever de pernas do avesso, só para corresponder à idiossincrasias manientas das realidades.

Assim corre a poesia e a literatura: Enfiamos, incautos, no mesmo saco da literatura, ficção e poesia como se fossem irmãos desavindos, mas ainda assim irmãos, como se fossem todos gatos, a esgatanharem-se lá dentro, mas ainda assim gatos. A ambos chamamos literatura, tratando-se nitidamente de seres vivos de espécies diferentes (até mesmo de Reinos, diria). Se o romance for (e é!) um bicho, a poesia será, por evidência, uma planta. Ou uma pedra. Uma pedra que pode florir, é certo (como em Celan), até fazer a fotossíntese, mas ainda assim, pedra: inteira e intacta.

Sartre tomou-se de outras palavras, para explicar isto mesmo, lembrando que, entre o prosador e o poeta, só há em comum o movimento da mão traçando as letras. O prosador faz uso das palavras, enquanto o poeta se limita a contemplá-las, desinteressadamente. Antes, aliás, Verlaine já o tinha explicado, com a leis cientificamente provadas da poesia. O que distingue um poema não é uma caminhada solidária na liteira da língua, aquele subsidiário desta, mas o inverso: a poesia- é uma arte que se move por uma rebelião contra a palavra, num perpétuo braço de ferro contra elas. As palavras, amiúde, sequer seduzem o poeta: atacam-no, ludibriam-no. E, quando ele as contempla, nem é, como julgava Sartre, para as apreciar em êxtase. Desenganem-se: Não! É para delas melhor se defenderem. Há que conhecer o inimigo, para melhor abrir a brecha do ataque. Quando toca à poesia, temos a certeza de que a língua, as palavras, a gramática, não serão um instrumento, sequer o material com que se constrói a parede do texto, os significados; não, a poesia é a destruição da parede da linguagem E se for mestra, tal parede, tanto melhor.

Não, meu tão certo secretário, não me desviei do livro, que um livro tanto é aquilo que é, desmentindo as próprias letras, como aquilo que somos capazes de lhe responder. E eu ainda estou procurando respostas às perguntas que ele me vai fazendo, mesmo depois de fechado.

Mas vejamos, que a leitura de um livro ( mas porquê?) não pode ser só este acto de dar a ver o rombo que no leitor provoca: Em «O Olho e a Mão», os poemas de Ana Marques Gastão e Sérgio Nazar David intersectam-se mutuamente e atravessam pinturas, diversas, de várias épocas, sem nenhuma regra implicada que não seja a urgência de lhes responder e de habitar esse lugar intermédio de comunhão poética, combatendo as palavras da língua e as imagens, num processo de remissões e reflexos especulares: trata-se de «espelhos toldados de palavras», como se lê na nota dos autores que encerra o volume. Não lhes chamaremos poemas ecfrásticos. Um substrato mais forte se indicia no livro: toda uma concepção poética que nos mostra como a alteridade não existe senão como interioridade, mesmo intimidade. Mais do que os implicados reenvios dos textos poéticos às pinturas, o que sobressai é o poema como espaço de liberdade: do olho à mão, tudo ė a linguagem a que se resiste, desfazendo a língua, esse tabique que separa o olho do mundo. Poemas e pinturas tornam-se um jogo de espelhos sibilinos, que não reflectem, mas devolvem, sim, imagens outras: no fundo, «escavam [com a mão e o olho impuro, necessariamente impuros, aliás] o atalho de cada verso», resistindo à língua, deixando-a para trás, para a transformar noutra coisa ainda.

Adequar-se-ia, facilmente, a estes poemas o epíteto «metamorfoses» (como, aliás, chamou Sena ao seu próprio livro): nada é o que é, senão o que fazemos sê-lo. É o que se diz num destes poemas, de Ana Marques Gastão, em confronto com o quadro de Christian Schad ( The portrait of Dr. Haustein, 1928):

Talvez o que mais importe na escrita dum poema
seja a sombra e o seu nome, não o meu nome
mas o dela o nome da sombra- umbra, ombre, ombra
shade, schaten» […]

que, por sua vez, será também é resposta ao soneto-leitura-rasura da mesma pintura, por Sérgio Nazar David, intitulado «The Wall»:

[…]
A sombra que projetam na parede os cães
que nos rodeiam é menos de mulher do que
de loba. Queria ser mãe, esposa, filha, irmã

dos que mordem o meu seio. Falta algum flor
voluptuosa neste quadro. Nele cubro de cinza e pó/
(não tenho remorsos) o rastro dissoluto de Satã.

A poesia é o que resulta do sinuoso percurso que vai do olho à mão e a transforma em «mão inteligente», usando a expressão de Ana Hatherly: este é o livro de um processo em relação, de como os poemas se furtam à linguagem e de como a mão que escreve poesia é a mão que rasura a língua e lhe propõe novas ortografias. A escrita que nasce destes quadros ou que lhe devolve as cores é a que traz, não a linguagem dos sentidos e da significação, mas a do espanto. Manuel Gusmão, um dia, traduziu em poema este gesto fenomenológico que nasce da escrita poética ao escrever: «Com o espanto vêm as coisas/ à mão imaginante.». É esta mão imaginante, um modo de «flexão de dedos incertos», que empresta novas imagens às pinturas, que nem o olhar, nem a língua comum, nem qualquer gramática, nos poderiam de outro modo ofertar.

Ana Marques Gastão e Sérgio Nazar David, O Olho e a Mão, 7letras, Rio de Janeiro, 2018 (edição apoiada pela DGLB)
8 Abr 2019

A verdadeira ralidade

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário. Não me olheis com esse olhar liso e branco de quem desconfia. Repara: as injustiças do mundo são para se cumprirem. Se a ti me achego, o teu papel é justamente o do papel: acolher-me com virgem resignação. E, de mim, só podes esperar, pacientemente, a mácula. Chegarei, com os meus bordões rascunhados, sem mata borrão. Terás de o suportar. O importante, como diria Ruy Belo, é que «não doa muito» e, depois, que te escondam na «terra como uma vergonha». Ao papel resta acolher as palavras que nele se sepultam. É a tua função, meu tão certo secretário. Que dizes? Que havíamos acordado em não nos tratarmos por tu? Mas, quem me pode demover? Tu? Vós? Sabes que mais, meu secretário, tão certo; tu, papel, nem mais existes na realidade concreta do meu dia-a-dia; a folha que serias é uma metáfora quase morta que me dá guarida, embora sem tecto, sem paredes. E toda a realidade, como tu, é coisa parca e indecisa; sequer dá luz: obscuridade bruxuleando, ao longe, só.

O mundo aspira à realidade: cada coisa, cada objecto, cada palavra. E a poesia também a deseja com todo o seu empenho; julga poder instituí-la, até. Nelson Goodman fez-nos crer que o realismo é um «caso de hábito», o malabarismo artificioso de fazer crer, convencer, inculcar.

Vejamos: temos o mundo, ele aparece-nos como resultado de um «ver confuso» (Fernando Gil) e esperamos, ingénuos, que seja o poeta a dispensar os óculos com a graduação exacta da nossa miopia. O poeta, sempre esforçado, empresta-nos de bom grado o seu monóculo, o seu binóculo, o telescópio, suas lunetas; um microscópio, e até os seus próprios olhos nus: e eis o real, diante do leitor, tão desfocado quanto possível. Não invento, meu secretário; também Juarroz isto nos explica, se nos diz que o âmago da poesia «é descobrir a realidade, inventando-a». Ou desfocando-a, diria, que é outro modo de a inventar. Ou, talvez, ainda, retirando-lhe uma letra, para lhe dar nitidez. Foi o que fez Manuel Resende: transformou em Realidade em Ralidade, e eis que nos surge um real muito mais ral(o) e fluido, que convoca passados num presente: História(s) em contemporaneidade(s); certo desconjuntar formal da língua, que, entre uma piscadela à poesia experimental (que culmina no hiperpoema, destacado no fim do livro), e certo espírito santo de orelha de surrealismo (que nem descura, porque não pode, a consciência social e política do mundo em que chafurdamos), carrega às costas a tradição clássica da poesia: porque na verdade clássicos somos todos, modernos e os antigos, inevitáveis cabeçudos, em que nos tornamos, nós, os anões, aos ombros de gigantes: «Eu é um pseudónimo de nós e nós pseudónimo disto tudo», escreve Manuel Resende. «O Leão é feito de carneiro digerido», diz-nos Valéry: e é a sombra dos que vieram antes de si (e que também tanto traduziu) que compõem o mosaico da sua poética.

Na poesia de Resende, agora reunida pela editora «Cotovia», tanto cabe uma cantiga, não de amigo, mas de amargo, como os diferentes rizomas que sobrevêm de uma tradição moderna (Baudelaire, Whitman, Campos, por lá se passeiam), ou a poesia clássica, ou o classicismo do nosso Renascimento, com a pernada barroca que o experimentalismo desencanta, sempre. Aliás, também vós por aqui estais, meu tão certo secretário, transposto em mensageiro dos tempos modernos. O tom é classicamente o da vanguarda, nesta dicotomia de inventar o mundo, sobre diferentes socalcos, em diversos sobressaltos. Ora lede e reconhecei-vos nesta «Crítica da Razão Pragmática»: «Vinde cá meu tão manso mensageiro/Febril mercúrio falar-me dos deuses/ Saberás que é impossível a mímica rítmica dos rins/saberás que é impossível amor meu//Impossível vivermos os dois sempre aos pares pela vida fora/vem cá corpo cru deusa em carne viva/vem cá saber as horas o irreprimível horário da manhã/ Um relógio de gestos uma religião de salários.».

Diz-nos Osvaldo Silvestre, no posfácio que acompanha este volume de Poesia Reunida, que, em Manuel Resende, «tudo: o político, o privado, a realidade, o sonho se funde numa espécie technicolor sem censura». Mas, mais do que fusão, trata-se da convocação do real em diferentes planos (disse convocação? Queria dizer descoberta; não, diria antes invenção; perdão, de novo, pois queria dizer revisão permanente de uma matéria nunca dada), apresentando tudo numa mesma dimensão de simultaneidade, mas à luz de várias lentes e graduações. Como um mosaico composto de peças de proporções diversas.

Num poema intitulado «Streptease1990», dedicado a Mário Cesariny e que termina com um endereço de email, como assinatura, escreve-se acerca da importância da libertação do real certeiro do dia a dia: «Pronto já me despi de certezas (das grandes primeiro que das pequenas)./ E agora , que dispo? /Espero ordens.»; e, num poema, mais adiante, no mesmo livro, resgatando um Manuel António Pina que pisca o olho a Camões, a mesma ideia do real que é simultaneamente memória histórica e tempo presente, tradição na contemporaneidade; mundo político-social e auto-referência poética; onírico e absurdo e reconhecimento concreto do quotidiano. Da mesma forma, a realidade física e matemática e aquelas partículas que, afinal, só a palavra e a poesia inventam e instituem, quando assumem às costas a canga da história, da memória, do social e do concreto, com a sensibilidade de quem transforma sentires em sentidos e em realidade: «Onde estão as partículas elementares/Quando a gente não está a olhar?/A questão é de se pôr, só que elas estão,/ Ou qualquer coisa, não sei o quê, em qualquer lugar.».

Mas, só um momento, meu tão certo secretário. Disse eu realidade (física matemática, onírica, histórica ou poética, seja lá o que isso for.)? Pois, desculpai-me, que uma vez mais me enganei. Queria eu dizer Ralidade. Ralidade é que é: sem lar, sem tempos, sem fronteiras. E é esta exacta ralidade, descoberta ao ser inventada, que Manuel Resende nos oferece, ao longo da sua poesia, e também aqui, expressamente, numa cantiga à laia de soneto:

CANTIGA À RALIDADE

S’a ralidade não me chatiar
Não vou eu chatiar a ralidade.
Porém, essa megera sem idade
Não tem tempo e fronteiras, não tem lar,

Não tem respeito, sempre a dar a dar,
Remexe-me no peito, busca o qu’ há-de
Servir-lhe de pretexto pra provar
que continua a mesma ralidade.

E eu que tenho mais o que fazer,
Dormir, dormir, morrer, talvez sonhar
–Ou contra o cruel fado a ‘spada erguer.

Mas esta dor no peito, a falta de ar,
Esta barba há três dias por fazer
Já ´stão à minha espreita ao despertar.

Manuel Resende, Poesia reunida, Lisboa, Cotovia, 2018

26 Mar 2019