Amélia Vieira VozesBiografia do orvalho Manoel de Barros leva-nos à ponte das Fadas, esse local lindíssimo numa localidade francesa, e no entanto ele é um poeta brasileiro do século XX, um modernista, fazedor de neologismos, que disse apenas ser de uma vanguarda primitiva. É um poeta do mais excepcional que os locais oníricos relembram como padroeiro, um talvez imenso duende que transformou a competência de ser numa alegria imprópria aos atormentados que se alongam nos mistérios sem a abrangência da maravilha. E este é o título da sua demonstração de poeta transfigurado. As fadas aparecem quais gotas de orvalho aos primeiros raios da manhã fazendo da condensação notas musicais de suavidade quase imperceptível, caiem em ramos e folhas bem ao ritmo das suas intérpretes bretãs e germânicas que galvanizaram os seus feitos que tanto influenciaram a geração poética dos anos 30, estando este estatuto ainda quase imerso num envolvente e maravilhoso pansexualismo. Manoel de Barros foi criador de gado, aquelas culturas, criadoras de mitos, e todos eles se levantavam provavelmente ao despontar da alba retendo o embrião feérico dessa hora: as bênçãos do orvalho são ainda, e mais que tudo, as rosas «rosée» que quer dizer exatamente, orvalho. E quando pelas noites quente de Verão o feminino se delícia com este denominado vinho, é ainda um brinde às fadas que quer transmitir. O nosso poeta pertenceu na adolescência à União da Juventude Comunista, e num imenso desaire persecutório apenas foi salvo por ter escrito uma coisa chamada «Nossa Senhora da escuridão» que fez balançar algozes e chorar simpatizantes, e só terá sido salvo por esta intercepção vinda da noite.- Já eram as Fadas! Aliás, ele viveu tanto, que só as pétalas das rosas contaram os seus dias. Mas fadas andam por todo o lado! Até Italo Calvino fez uma obra a partir de recolhas folclorísticas italianas para uma abordagem do conto popular onde vemos a importância da sua nomeação: «Sobre os Contos de Fadas» e será impensável não se mergulhar nesta obra com carácter de urgência. Ou então, nunca a conhecer. Vivemos aqui, na Terra, ninguém sabe quem são estes seres, e sobretudo, as novas gerações nem leram contos de fadas. « Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas» Pessoa tê-lo-ia adorado neste poema, e como se de grandes feéricos aqui se tratasse, a borboleta da biografia do orvalho é a plena metamorfose do tempo que se transmuta: mas partamos de um paradigma inverso onde a coisa amada primeiro se possui, e só depois a temos de conquistar. A janela está sobranceira aos primeiros orvalhos matutinos, e toda a graça da ressurreição condensada vem por ela, mas o sono fundo faz sonhar com dias outros sem a fronteira de orvalhos que são lembranças de lágrimas não choradas, e caímos então num lodo de finitas competências que não contemplam alvoradas. «Vertido em seis pratos dispostos em forma de triângulo de fogo, o orvalho é agora exposto ao fluído cósmico, para aumentar a sua força (grego, «rosis»). E ao fundo as cortinas protectoras desapareceram das janelas».
Hoje Macau EventosPoesia em português distinguida na 1ª edição do prémio chinês de tradução Poemas de Moçambique, Portugal e do Brasil estiveram entre os seis vencedores da edição inaugural de um prémio de tradução para chinês de poesia em português e espanhol, anunciados na terça-feira. Um dos prémios foi para Luís Lu Jing e Jasmim Wu Hui, dois alunos do doutoramento em Português da Universidade Politécnica de Macau (MPU, na sigla em inglês), pela tradução de poemas do moçambicano José Craveirinha (1922-2003). Um trabalho que resultou no livro “Poemas Seleccionados”, sob a coordenação da professora da MPU, Lola Geraldes Xavier, que foi publicado em Macau pela editora Praia Grande Edições em Maio de 2022. O poeta e tradutor chinês Yao Jingming, membro do júri, disse que a tradução “transmite o ritmo, tom e respiração” dos “poemas de batalha, rítmicos e sonoros, mas também poemas de amor terno” de José Craveirinha. Entre os vencedores esteve ainda Huang Lin, da Universidade de Macau, graças a seis poemas da portuguesa Natália Correia (1923-1993), que Yao Jingming descreve como de “palavras muito sedutoras e perigosas” para um tradutor. Chen Yibing, da Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim, foi também premiado pela tradução do poema “Março”, da luso-angolana Alice Neto de Sousa e de poesia da brasileira Cecília Meireles (1901-1964). Prémios e motivações O prémio de tradução para chinês de poesia em português e espanhol foi lançado no ano passado por uma associação de antigos alunos da Universidade de Pequim, em homenagem ao poeta e tradutor Hu Xudong, que morreu em 2021. A Associação de Alumni da Universidade de Pequim na Província de Hubei disse à Lusa que decidiu lançar o prémio bienal, destinado a estudantes universitários, após receber apoio dos familiares e amigos de Hu Xudong. A associação sublinhou que o prémio tem como objetivo motivar jovens tradutores chineses a olhar para línguas menos populares na China. Os candidatos, que vieram de universidades “de todo o país”, eram “encorajados a descobrir poemas de poetas” que ainda não tinham sido traduzidos para chinês, disse a associação. A China tem actualmente pelo menos 25 instituições de ensino superior que oferecem licenciaturas em português. Hu Xudong, que morreu em 22 de Agosto de 2021, é considerado um dos principais poetas chineses nascidos na década de 1970 e, além de poesia, publicou uma colecção de ensaios sobre o Brasil. Entre 2003 e 2005, Hu Xudong esteve no Brasil a dar aulas na Universidade de Brasília, tendo então começado a traduzir poesia em língua portuguesa para chinês.
Hoje Macau EventosPoesia | Sara F. Costa lança “Ser-Rio, Deus-Corpo” em Portugal e na Índia O sexto livro de poesia de Sara F. Costa intitula-se “Ser-Rio, Deus-Corpo” e será lançado no próximo mês de Novembro em Portugal, na cidade do Porto, e depois na Índia, na sua versão inglesa. A obra é resultado de uma bolsa de criação literária “Ser-Rio, Deus-Corpo” é o nome do novo livro de poesia de Sara F. Costa, ex-colaboradora do HM que tem vindo a crescer no mundo da poesia. A autora, que viveu em Pequim e é fluente em mandarim, lança no próximo mês, no Porto, aquele que é o seu sexto livro de poesia. A obra ganha uma versão inglesa que será lançada mais tarde na cidade de Bengaluru, na Índia. No ano passado, Sara F. Costa ganhou uma bolsa de criação literária financiada pela Direcção Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas do Ministério da Cultura Portuguesa, o que deu origem a “Ser-Rio, Deus-Corpo”, livro editado pela editora Labirinto. Nesta obra, a autora incorpora vários registos poéticos de “tradição simbolista, surrealista, imagista e objectivista” interpretando a psique e a índole humana “a partir do corpóreo”. Na carta de candidatura à bolsa de criação literária, Sara F. Costa descreveu este projecto de poesia como sendo “uma ode à fertilidade” ou “um trabalho sobre a criação intrauterina do ponto de vista estritamente matriarcal”, numa clara referência à maternidade. “Ser-Rio, Deus-Corpo” retrata “a experiência intimista de uma mãe durante o período de gestação do feto, incorporando, por vezes, elementos da tradição modernista como a objectividade, intelectualidade, abstração e distanciamento necessários para transformar a experiência em arte”. Contudo, “nunca se abandona o registo privado, quase doméstico, em que a voz poética procura transcender a casa-corpo”. A autora, num comunicado de imprensa, dá conta de que os temas que se relacionam com a maternidade, no campo da literatura ocidental, começaram a surgir nos anos 70 do século XX, “quando surge a segunda onda do movimento feminista”. Desta forma, “pretendia-se combater as pré-noções que sentenciavam certos tópicos como inapropriados enquanto motivos literários”. Mais internacional Sara F. Costa trabalha, com este livro, a ideia de “mãe-poeta” que “não é uma personagem muito presente”, uma vez que a mãe “é mais representada por autores masculinos do que femininos”. “O objectivo deste trabalho é trazer a representação da mãe que não precisa de ser representada porque o é. A poeta é universal, mas é mulher”, diz a autora no mesmo comunicado. De frisar que a ilustração da capa é da autoria da artista Constança Araújo Amador. Em relação ao lançamento da obra na Índia, este surge do convite feito a Sara F. Costa para participar no Festival Internacional de Literatura organizado Asia Pacific Writers & Translators, que tem como tema “Meridian – Writing Outside the Frame” e que decorre entre os dias 28 a 30 de Novembro. O livro é editado pela “Red River”, uma editora independente de Nova Deli, sendo apresentado no dia 28 de Novembro em Bengalore, no Festival Internacional de Literatura Asia Pacific Writers & Translators. Além das edições em português e inglês, “Ser-Rio, Deus-Corpo” será também editado em Espanha. Os textos de Sara F. Costa têm vindo a ser publicados e traduzidos um pouco por todo o mundo, tendo a autora sido convidada para participar em festivais literários em países como Espanha, Polónia, Turquia, China e Índia. O seu livro “A Transfiguração da Fome” obteve o Prémio Literário Internacional Glória de Sant’Anna para melhor obra de poesia publicada em países de língua portuguesa em 2018. Sara F. Costa publicou ainda uma antologia de poesia chinesa contemporânea por si organizada e traduzida, fruto do contacto com os meandros literários e artísticos de Pequim, onde viveu até 2020. Nesse ano, quando começa a pandemia da covid-19, a autora regressou a Portugal, quando estava grávida de oito meses.
Hoje Macau h | Artes, Letras e Ideias“Na margem do rio. Diálogos com a morte nos versos de quatro poetas polacos” In https://revistapiparote.com.br/ Apresentação e tradução de Piotr Kilanowski Quatro poemas, quatro poetas, um tema. Ou quase um. Temos três diálogos antes da viagem para o paradeiro mais misterioso das nossas vidas e um poema que reflete a solidão dessa viagem inconcebível. Dois dos poemas, o de Jarosław Iwaszkiewicz e o de Tadeusz Różewicz, ambos marcando seu silêncio pela falta de um título, ambos saindo da garganta apertada (talvez a articulação de Różewicz esteja mais apertada, mais essencial e mais simples e por isso mais impactante) nos colocam diante do último diálogo da mãe e do filho. A figura de pietá, na qual a ordem da natureza está revertida, obriga a doadora da vida ser também a pessoa que ajuda a fazer a transição para a não-vida, a outra margem. O que está nela? O nada? Se for, dentro dele também há uma réstia de esperança, como no poema de Iwaszkiewicz, o infinito do não saber. Todos esses poemas contêm em si a escuridão e a tentativa de expressar o inexpressável. Todos são um grito, um protesto que ele mesmo sendo mudo, por tentar expressar o silêncio, emudece o leitor. O protesto contra a condição humana e, em algum nível, também a aceitação da sua inevitabilidade. O drama existencial nos primeiros três poemas é encenado pela primeira forma de um drama: diálogo. E se no poema de Aleksander Wat temos a situação que pode se referir ao último diálogo apenas metaforicamente, o mais essencial dos poemas, o mais dramático, da autoria de Różewicz, é também aquele que nos despoja de quaisquer ilusões. As palavras mais banais, mais gastas, quase todas com marcas de oralidade são dispostas pelo poeta de uma maneira que não apenas rasga o leitor mas também o obriga a mergulhar no infinito das palavras como “tudo” e “nada” colocadas em uma oposição completa. Começando pela situação coloquial, que sugere uma partida ou viagem, Różewicz por meio de absoluta economia de palavras, que ecoam ao longo do poema e do diálogo, fortalece o efeito da nossa impotência diante do inevitável. Renovando as palavras gastas nos aproxima daquilo que não pode ser dito. “Busco as palavras que não existem”, disse Jerzy Ficowski no livro A leitura das cinzas, que por meio da palavra poética tentou instaurar o monumento à ausência provocada pelo Holocausto. Różewicz não procura essas palavras. Por meio das que existem nos aproxima à não-existência que sustenta a nossa existência. Tudo isso, “a vida inteira”, para nós, seres compostos da eterna insatisfação, será sempre um espantoso “só isso” … Jaroslaw Iwaszkiewicz (1894-1980) foi poeta, prosador, dramaturgo e político polaco. O amor e a morte e sua relação, assim como efemeridade da vida sempre figuraram como temas importantes na sua obra. Vários dos contos de Iwaszkiewicz serviram como inspirações para os filmes de Andrzej Wajda. Foi um dos fundadores e membro de Skamander (Escamandro) o mais importante grupo poético do entreguerras polaco. Sua obra lírica, extremamente melódica e pessoal é marcada pela constante presença de elementos contrários: afirmação da vida e fascinação pela morte, fé no poder da arte e dúvida no poder das ações humanas, elementos contemplativos e sede de viver. Jaroslaw Iwaszkiewicz Mamã, eu fiquei cego? “Não, filho. Só a noite escura”. Por que é tão terrível? “Nada, filho. Não tarda”. E ainda frio por cima “Depois não sentirás mais nada”. Mesmo assim, tenho medo. “Deus é bom – diz Epicuro”. Oh, tem uma réstia na frente. “Chamam isso de existência”. Roma, IV-V, 1975.
Andreia Sofia Silva EventosPoesia | Deusa D’África lança “Sinopse de cães à estrada e poetas à morgue” Deusa D’África, escritora moçambicana que foi uma das convidadas do festival literário Rota das Letras, acaba de lançar um novo livro, com a chancela da Alcance Editores. “Sinopse de cães à estrada e poetas à morgue” é hoje lançado na cidade de Xai-Xai “Sinopse de cães à estrada e poetas à morgue” é o título do quarto livro de poesia de Deusa D´África, escritora moçambicana que já se embrenhou nas linhas do romance. O livro será lançado hoje na cidade de Xai Xai, em Moçambique, numa parceria entre a Alcance Editores e a Associação Cultural Xitende, de que Deusa D´África é coordenadora geral. Este é um livro onde a poesia apresenta “uma influência da oralidade na constituição da linguagem poética e a recorrência da pertença local”, sendo este “um importantíssimo elemento de subversão canónica, fundamental para a inovação da literatura moçambicana, contestação e denúncia”, aponta a sinopse do livro. Nascida em 1988, Deusa D´África tem, apesar da paixão pela escrita, formação na área dos números, possuindo um mestrado em contabilidade e auditoria. Além disso, é ainda professora na Universidade Pedagógica e na Universidade Politécnica. É também gestora financeira do projecto Global Fund – Malária. Inspirada pela poesia de Noémia de Sousa, Deusa D´África começou a escrever poesia em 1999, sendo autora de diversas obras. Títulos como “A Voz das Minhas Entranhas” e “O Limpopo das Nossas Vidas” venceram o Concurso Literário Internacional Alpas do Brasil. Muitos dos seus poemas encontram-se publicados no Jornal Notícias, O País, Pirâmide, Diário de Moçambique e Xitende. Deusa D’África viu alguns dos seus trabalhos editados no Brasil e outros traduzidos para sueco. Um “golpe de azagaia” A sinopse desta obra dá ainda conta de que “os versos Deusa d’Africa desautomatizam a linguagem e causam estranhamento”, sendo que a poetisa “vê uma função dialéctica com o poder de inaugurar [mas também] de destruir”. “A sua actividade poética é revolucionária por natureza, exercício espiritual, um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Ciente deste poder regenerador da poesia, a lírica de Deusa d’África vaticina. Outros teóricos, como Ezra Pound, prescrevem a necessidade do tratamento directo do tema como factor intrínseco ao bom poema. Também assim pode ser a lírica de Deusa, que relata casos como o ciclone Idai, em 2019”, lê-se no mesmo texto, assinado por Vanessa Riambau Pinheiro. Os poemas da autora são tidos como um “golpe de azagaia”, enquanto que a escrita “desassossega, perturba, rouba a paz, tira-nos da letargia”. “Cães à estrada e poetas à morgue” é dividida em três partes (Cães de papel/Cães à estrada e Poetas à morgue/ Respeito nas bancas do mercado grossista) e, ao longo de mais de cem poemas, “entretece uma poética-manifesto”. Os versos expõem “males sociais, como a criminalidade, repressão, violência e miséria”, onde Deusa D´África aponta “as mazelas como problemas sociais de seu país, mas também rasura consonâncias metaforizadas entre a casa física e a entidade abstracta”.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasOs Girassóis de Odessa e poemas afegãos Luis Gustavo Cardoso https://revistapiparote.com.br OS GIRASSÓIS DE ODESSA¹ Quando a lua abre caminho entre os girassóis de Odessa sei de um perfume que arrepia os campos: Spasiba, Trachimbrod. Em cada haste na terra fértil pétalas, feito moinhos, retêm do vento o conto inquieto de outros cantos: Spasiba, Trachimbrod. Sei de uns seios firmes, calmos, brancos de cujas tetas mornas sabe a chuva e o leite branco a esperar nas portas: Spasiba, Trachimbrod. AFEGÃO O afago do afegão sobre a barba de outro é feito afago de mãe que não recebeu jamais carinho de filho. O afago do afegão sozinho é o maior dos carinhos. TALIBÃ Pense na barba do Talibã Na textura dos pelos secos e empoeirados Onde os traços do rosto se perdem Cavados na terra feito as vias do país Zeloso ele guarda o fuzil e a paz de seus companheiros: todos solteiros. ALI KHAN Ali Khan é avô de outra menina sem nome e sem um dos olhos, o esquerdo, que só com o direito pode ver a fumaça: Minas brotam do chão. Ali Khan e a neta assistem à explicação: sob as oliveiras o instrutor descreve minas, bombas, toda sorte de munição. Outras crianças afegãs sem nome, sem idade têm o rosto tocado pelo vento que arrasta as folhas das árvores: manhã de sol do afegão. Devem aprender onde pisar no chão onde não tocar onde se esconder. Com 4, 5, 6 anos as crianças afegãs não têm idade. Ali Khan também não. O VOO DO AFEGÃO Hoje vi um afegão voando direto das asas de um avião. Não era um juiz brasileiro, não era um caça espião. Era um homem sem asas No meio de algum lugar Caindo sentado no chão. O poema Os Girassóis de Odessa integra o livro “Noite Grande” (2017). Os poemas afegãos são inéditos.
Hoje Macau EventosFundação Oriente | Serão celebra Dia Mundial da Poesia em português Mais de 20 pessoas, entre estudantes, professores e amantes da poesia, assinalam na sexta-feira o Dia Mundial da Poesia em Macau num serão literário com a leitura de obras em português. “É um encontro de pessoas que gostam de poesia e em que uns dizem poesia de sua autoria – nós tentamos privilegiar os poetas de Macau para divulgarem a sua poesia através da leitura – mas também há outras pessoas que dizem poesia [de outros autores]”, explicou Ana Paula Cleto, coordenadora da delegação de Macau da Fundação Oriente, que se associa no evento ao Centro de Ensino e Formação Bilingue Chinês-Português do Departamento de Português da Universidade de Macau. Da Universidade de Macau, “seis ou sete alunos” sobem ao palco e, entre os autores convidados, encontram-se o jornalista Carlos Morais José, o fotógrafo António Duarte Mil-Homens e o poeta chinês Yao Jing Ming. “Mas quer-se espontâneo”, nota Ana Paula Cleto, referindo que, além dos convidados, o evento, “que tem sido organizado com alguma regularidade”, está ao alcance a todos aqueles que querem dizer poesia. “Tem sido sempre [poesia] de autores de língua portuguesa e penso que irá continuar a ser, mas não significa que tenha de ser restrito a autores de língua portuguesa”, afirma a responsável, frisando que este “é um evento aberto” à língua chinesa. “Mas também não há muita poesia chinesa traduzida para português”, sublinha Ana Paula Cleto. O serão literário, que se realiza na Casa Garden, sede da Fundação Oriente em Macau, vai também ser celebrado com música, com elementos da banda da Casa de Portugal em Macau a cantarem obras de poetas portugueses em três momentos.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasPoemas de Jacques Prévert Jacques Prévert (1900-1970) foi um poeta e roteirista popular da França. Participou do movimento Surrealista juntamente com o escritor Raymond Queneau e com o roteirista Marcel Duhamel, sendo, mais tarde, um dissidente deste grupo. Muitos de seus poemas foram cantados por Marianne Oswald, Yves Montand e Edith Piaf. Os poemas aqui seleccionados foram retirados do livro Parole (1946) e são apresentados em português do Brasil. Tradução de Luís Márcio Silva* – * Escritor, tradutor e editor da Revista Piparote, https://revistapiparote.com.br/, com a qual o Hoje Macau inicia assim uma colaboração O BUQUÊ O que faz aqui, garotinha, Com estas flores recém-cortadas? O que faz aqui, jovem menina, Com essas flores, essas flores secas? O que faz aqui, bela mulher, Com essas flores que murcham? O que faz aqui, decrépita mulher, Com essas flores que morrem? Estou à espera pelo triunfante. LE BOUQUET Que faites-vous là petite fille Avec ces fleurs fraîchement coupées Que faites-vous là jeune fille Avec ces fleurs ces fleurs séchées Que faites-vous là jolie femme Avec ces fleurs qui se fanent Que faites-vous là vieille femme Avec ces fleurs qui meurent J’attends le vainqueur. NA FLORICULTURA Um homem entra numa floricultura E escolhe umas flores A florista embrulha as flores O homem leva a mão ao bolso Para pegar o dinheiro O dinheiro para pagar as flores Mas subitamente ele coloca A mão sobre o coração E cai No momento em que cai As moedas rolam pela terra E depois tudo Cai ao mesmo tempo as flores o homem o dinheiro E a florista fica ali Com as moedas que rolam Com as flores que murcham Com o homem que morre Tudo isto é muito triste evidentemente E é preciso que ela faça alguma coisa A florista Mas ela não sabe o que fazer Não sabe ela Por onde começar Há tantas coisas por fazer Com o homem que morre Com as flores que murcham E com as moedas as moedas que rolam Que não param de rolar CHEZ LA FLEURISTE Un homme entre chez une fleuriste et choisit des fleurs la fleuriste enveloppe les fleurs l’homme met la main à sa poche pour chercher l’argent l’argent pour payer les fleurs mais il met en même temps subitement la main sur son cœur et il tombe En même temps qu’il tombe l’argent roule à terre et puis les fleurs tombent en même temps que l’homme en même temps que l’argent et la fleuriste reste là avec l’argent qui roule avec les fleurs qui s’abîment avec l’homme qui meurt évidemment tout cela est très triste et il faut qu’elle fasse quelque chose la fleuriste mais elle ne sait pas comment s’y prendre elle ne sait pas par quel bout commencer Il y a tant de choses à faire avec cet homme qui meurt ces fleurs qui s’abîment et cet argent cet argent qui roule qui n’arrête pas de rouler. A MENSAGEM A porta que alguém abriu A porta que alguém fechou A cadeira onde alguém se sentou O gato que alguém acariciou A fruta que alguém mordeu A carta que alguém leu A cadeira que alguém derrubou A porta que alguém abriu A estrada onde alguém ainda corre O bosque que alguém atravessa O rio onde alguém se joga O hospital onde alguém morreu LE MESSAGE La porte que quelqu’un a ouverte La porte que quelqu’un a refermée La chaise où quelqu’un s’est assis Le chat que quelqu’un a caressé Le fruit que quelqu’un a mordu La lettre que quelqu’un a lue La chaise que quelqu’un a renversée La porte que quelqu’un a ouverte La route où quelqu’un court encore Le bois que quelqu’un traverse La rivière où quelqu’un se jette L’hôpital où quelqu’un est mort. VERÁ O QUE VERÁ Uma moça nua nadando no mar Um homem barbudo andando sobre a água Onde está a maravilha das maravilhas Do milagre anunciado acima? VOUS ALLEZ VOIR CE QUE VOUS ALLEZ VOIR Une fille nue nage dans la mer Un homme barbu marche sur l’eau Où est la merveille des merveilles Le miracle annoncé plus haut ? DOMINGO Entre os canteiros de árvores na avenida Gobelins Uma estátua de mármore me conduz pela mão Hoje é domingo, os cinemas estão lotados, Os pássaros nos galhos observam os humanos E a estátua me abraça, mas ninguém nos vê, Apenas uma criança cega que nos aponta os dedos. DIMANCHE Entre les rangées d’arbres de l’avenue des Gobelins Une statue de marbre me conduit par la main Aujourd’hui c’est dimanche les cinémas sont pleins Les oiseaux dans les branches regardent les humains Et la statue m’embrasse mais personne ne nous voit Sauf un enfant aveugle qui nous montre du doigt. PARA O MEU AMOR Eu fui ao mercado de pássaros E lhe comprei pássaros, Meu amor. Eu fui ao mercado de flores E lhe comprei flores, Meu amor. Eu fui ao ferro-velho E lhe comprei correntes Pesadas correntes Para ti, Meu amor. E depois fui ao mercado de escravos E procurei por ti Mas não lhe encontrei, Meu amor. POUR TOI MON AMOUR Je suis allé au marché aux oiseaux Et j’ai acheté des oiseaux Pour toi mon amour Je suis allé au marché aux fleurs Et j’ai acheté des fleurs Pour toi mon amour Je suis allé au marché à la ferraille Et j’ai acheté des chaînes De lourdes chaînes Pour toi mon amour Et puis je suis allé au marché aux esclaves Et je t’ai cherchée Mais je ne t’ai pas trouvée mon amour
Hoje Macau Entrevista MancheteAntónio Izidro: “Acho interessante a ideia de estabelecer um paralelo entre Li Bai e Camões” António da Amada Izidro, macaense, bilingue em Chinês e Português, foi Chefe do Departamento de Informação no Gabinete de Comunicação Social, até se reformar em 2002. Daí para cá um dos seus maiores interesses tem sido a poesia e a vida do poeta chinês Li Bai. Agora vai publicar um livro – “Li Bai – A Via do Imortal”, que intersecta a biografia com numerosos dos seus poemas traduzidos para língua portuguesa. O lançamento, integrado na Semana de Cultura Chinesa do Hoje Macau, terá lugar na próxima segunda-feira, dia 7 de Março, na Fundação Rui Cunha, pelas 18:30 Como nasceu o seu interesse por Li Bai e pela poesia chinesa? Quem gosta de poesia chinesa, delicia-se. Quem não gosta, aprende a gostar. A poesia chinesa, como dizia um político chinês, é como cana-de-açúcar. Começa-se a degustar a parte menos doce da raiz e à medida que vai roendo tronco acima, o aroma açucarado intensifica e enche a boca. Por quê Li Bai? Das recordações da sua infância ao tempo de exílio, uma vida tumultuosa, Li Bai caracteriza-se por ser um poeta com verdadeiro amor à pátria. Uma vida contemplativa nos montes, exótica sob o luar, escondida no vinho. Provavelmente, é o mais multifacetado dos compositores chineses, de personalidade ímpar, que dificilmente se dobra. Os seus poemas são um cardápio de temas tão abrangente que não se encontra noutros poetas: misticismo, erotismo, espiritualidade, poemas melíferos e ácidos, sentimentais e românticos, tudo pincelado com a mesma originalidade e riqueza de estilo. Verticalidade é porventura o termo que assenta bem no seu discurso. Que passos teve de dar para fazer este livro? Visitou locais frequentados pelo poeta? De Sichuan até Hangzhou, um trajecto de quilómetros e mais quilómetros por entre municípios e vilas. «Ainda é possível ´respirar´ Li Bai», dizia eu. «Antigamente talvez se pudesse dizer isso. Hoje está tudo mudado», assegurava-me o meu cicerone, que aí procurou guiar a conversa para a excelência dos locais que o poeta pisou e que me ia mostrar. De manhã cedo metemo-nos no caminho. Quanto a mim, era para satisfazer um fascínio nascido no dia remoto em que sentia a necessidade de rasgar novos horizontes e lançar o trabalho rotineiro para as raias do esquecimento. A política de reformas e abertura mudou toda a China, cintilam agora grandes e modernas metrópoles. Os montes, em cadeia, capeados de pinheiros, os rios e vales verdes, esses, felizmente, é que não mudaram, nem as pedras, nem os pagodes que ainda emanam ´cheiros´ do poeta imortal. Foram muitos museus percorridos e papelada sem fim consultada. Eu sabia dos livros, mas preferia testemunhos vivos. De tudo fui ouvindo, perguntando, memorizando e anotando. Para realizar este livro, visitou então numerosos lugares na China. Como correram essas viagens e o que trouxe delas? Quanto tempo lhe levou a realização deste livro? Trouxe um volumoso bloco de notas que fui ordenando, pesquisando e acrescentando novos elementos, mas sem ainda o impulso para iniciar o trabalho. Foi então que a covid-19 estoirou e veio a ordem governamental que mandou fechar tudo. Eu também me fechei, mas no meu quarto deleitando-me com Li Bai durante cerca de um ano. Depois de tanto tempo a conviver com ele, com que ideia ficou do poeta e do homem Li Bai? Digamos que tem um perfil incompleto, quase perdido, mas nele tudo fala, nada esconde: homem de forte personalidade, sensível ao mal alheio, grande espiritualidade, observa a vida ao redor e não poupa críticas através de uma forma subtil. O filme pessoal que tinha pensado apresentar à história, contracenando com figuras heróicas do passado ruiu na estratégia, no idealismo que lhe parecia verosímil e no não aderir aos sistemas corruptos que grassavam na corte Tang, no curto tempo em que lá permaneceu. Granjeou, indiscutivelmente, a simpatia do imperador, num ambiente em que não faltaram oposição e ciúmes, com os quais os círculos do poder o alvejavam. Conquistou amizades e admiração dos seus pares. Morreu com dissabores e frustações. A fama e a arte ficam para a posteridade e a história. Acho interessante a ideia – penso que não é despropositada – de estabelecer um paralelo entre Li Bai e Luís de Camões, não me refiro ao engenho e à arte dos dois, evidentemente. É possível constatar, porém, que fizeram um percurso de vida que se assemelha em alguns aspectos: Camões também lia poemas na corte portuguesa, viajou por mares, enquanto que Li Bai peregrinou pelas montanhas. Ambos lutaram pela causa da pátria, receberam pensão da coroa, ambos foram presos. Li Bai morreu só e frustrado, no limiar de uma nova dinastia, enquanto que Camões viveu seus anos finais na pobreza. Terá dito o poeta luso que morria com a Pátria. Repara nestes dois poemas: O teu perfume ficará em mim para sempre, mas onde andas tu, meu amor? Suspiro e folhas amarelas caem dos ramos. Choro e o musgo verde brilha, húmido de orvalho. Li Bai Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente Que já nos olhos meus tão puro viste. Luís de Camões Tem algum método particular para abordar a tradução de uma língua tão distante da portuguesa como o chinês? Sim. Primeiro, procuro sempre encontrar o contexto histórico-cultural, às vezes físico, em que a poesia foi escrita. Em segundo lugar, faço uma tradução literal palavra a palavra, expressão a expressão. Em terceiro lugar, reescrevo tudo de modo a fazer sentido em português, sem que perca com isso o seu sentido original. Finalmente, procuro sentir o que terá sentido o poeta e volto a reescrever. Nem sempre fico satisfeito com o resultado (risos). De facto, o seu livro e as notas apresentam, de forma erudita, os contextos em que vários poemas foram escritos. Considera isso fundamental para o entendimento desta poesia? É preciso contextualizar não só em termos históricos e geográficos, mas também as circunstâncias, os sentimentos, as ideias que os poemas versam. São episódios distintos e ambientados, inseridos na vida do poeta Li Bai. As notas dos poemas, diria, são como o sal que se quer para a comida. Os detalhes eliminam o surreal e enquadram melhor o leitor na compreensão, no alinhamento com os cenários vividos pelo autor. É um tratamento virtual que se dá à leitura poética. Considera estas traduções poéticas o ponto mais alto da sua carreira de tradutor ou preferia traduzir discursos oficiais e ser intérprete como no tempo em esteve no GCS? Diria antes que foi um trabalho fascinante e o cumprimento de um propósito que me impusera. É recomendável manter-se sempre activo intelectualmente. Tive oportunidades de praticamente traduzir de tudo e todos. O trabalho profissional deve ser abrangente e o ineditismo circunscreve-se no âmbito da criação que não se deve abdicar. Traduzir e interpretar poemas clássicos chineses sã devera penoso mas empolga o espírito e assoberba a vontade. Nascido em Macau, assistiu ao final da administração portuguesa e a duas décadas de administração chinesa. Que mensagem gostaria de deixar aos presentes e futuros governantes desta terra? E aos seus conterrâneos macaenses? Continuo a achar que não podemos cruzar os braços e deixar escoar uma sociedade em que os ventos do Norte sopram cada vez mais fortes, num processo de transformação sem precedentes que acabará (espero que não) por diluir irremediavelmente a identidade e cultura macaenses. Há que atiçar o empenho para garantir que as condições existam; que os ´filhos da terra´ de agora e gerações vindouras possam assumir um papel mais interventor nos diferentes sectores sociais, sem fomentar o individualismo, mas posto ao serviço da sociedade de Macau e da comunidade macaense. O actual critério que rege a atribuição de cargos públicos de responsabilidade de acordo com o ratio étnico-racial da população local julgo que deve ser reconsiderado. Afinal, os portugueses de Macau (naturais e não naturais) são herança de uma história de cinco séculos, não é? Teve alguns apoios para a realização deste trabalho? Essencialmente livros de consulta e alguns mestres sinólogos.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasRuy Cinatti, uma poesia com vultos Disse Jorge de Sena, no prefácio a um livro de Ruy Cinatti, que os literatos seus contemporâneos, em matéria de insulíndias não iam além das livrarias do Boulevard Saint Michel. De facto, poucos como este poeta nascido em Londres em 1915 olharam de forma tão intensa para fora do eixo euro-americano, para terras que são as eternas ilhas dos exotismos dos outros. Cinatti escolheu Timor – por ninguém desejado ou escolhido, devastado que era pela invasão japonesa e pela péssima administração – não como um lugar de sensualidades imprevistas, mas como uma geografia humana, real e sensível. Foi aí que ele deu largas a uma amorosa compreensão do espaço e das gentes, e por isso se chama Timor-Amor um de seus livros. Homem de ciência e de terreno, da agronomia (sua formação de base) e da meteorologia, passou à etnologia e à antropologia (sempre timorenses, bem entendido). Na mesma década em que dirigiu, com Tomaz Kim e José Blanc de Portugal, os Cadernos de Poesia, chefiou também o gabinete do governador desta colónia portuguesa, de quem fala num poema dos anos 70: “Desse digo eu,/ que me queria às vezes/ para seu poeta,/ sorrindo às minhas luzes de botânico,/ «Você… da Orta…/ Eu, Albuquerque!»”, um que acabou “com os miolos fritos/ pegados no teto”. Mas as tais luzes de botânico deram para ter duas plantas batizadas com o seu nome, tal como o seu predecessor em Timor, o também poeta-botânico Alberto Osório de Castro. Cinatti vai e vem daquele território português e, entre os anos de 1951 e 1956, lá o encontramos diretor dos serviços de agricultura. Porém, incompatibilizado com a administração colonial, regressa a Lisboa. As visitas à “ilha verde e vermelha” ficarão cada vez mais condicionadas, até à definitiva proibição em 1966. Metido em Lisboa, dedicou-se a uma errância mais condicionada e à poesia das famosas folhas volantes, que distribuía mão a mão. Os versos timorenses, sobretudo o livro central Paisagens timorenses com vultos (1974), conseguem grande concisão nas suas intimações sobre o espaço e as gentes: diretas, despretensiosas, abertas ao estremecimento emocional e até ao humor: “Em Díli./ Em Baucau, tanto faz.// Um médico suplicava: «Não leias António Nobre,/ que eu adoeço».” Centrada numa atenção ao quotidiano que comunica diretamente com a linguagem de alguns poetas dos anos 70, a escrita de Ruy Cinatti abre-se a um tipo de discurso que a poesia portuguesa demorou a levar a sério. Mas bem antes, já nos anos 40, Cinatti constituía uma ruptura na poesia portuguesa, já que os Cadernos pretendiam ser uma opção quer ao presencismo, quer ao neo-realismo. O outro aspecto que ressalta nos versos dedicados a Timor é que aqui se realiza, talvez pela primeira vez na poesia portuguesa, uma forma de lidar com o mundo não-europeu que o não subjuga ao filtro do império e de seus avatares. Quer dizer, não é o Timor português, projeção colonial de um Portugal sempre fora de si, que se colhe destes versos, apesar de o poeta ter vivido o império in loco e de até o ter defendido em seu estertor. Não admira, pois, que o nome do poeta tenha caído na marginalidade, apesar da galeria ilustre de predecessores, como Camões ou Pessanha, cuja escrita – tal como a de Cinatti – dependeu estreitamente das formas que historicamente assumiu o funcionalismo colonial português. Neste sentido, é a partir do precedente aberto por este poeta que alguma poesia portuguesa contemporânea pode aceitar uma representação descomprometida e cosmopolita de espaços não-europeus: de forma notável na poesia de ambiente turco e chinês de Gil de Carvalho, mas também na poesia “macaense” de José Alberto Oliveira, na série «Poemas Orientais» de Fernanda Maldonado e ainda nos curiosos poemas japoneses de Miguel-Manso, numa dispersão geocultural que contrasta com o lastro de provincianismo que também deixou a sua marca na poesia portuguesa contemporânea. É partindo dos luminosos passos de Cinatti que novos poetas instauram novas formas de se falar na Ásia em Portugal, superando as marcas discursivas do exotismo orientalista. Longe do Oriente como metáfora do império ou locus exótico, o novo Oriente da poesia portuguesa é agora uma Ásia que é um entre outros interesses culturais, geográficos e sociais. Em suma, este descentramento físico e mental em relação ao espaço europeu, a constante plasticidade discursiva e ainda a positividade de fundo cristão são coisas que juntas se acham raramente e que não voltaram, depois de Ruy Cinatti, a juntar-se na poesia portuguesa.
Andreia Sofia Silva EventosPoesia | “Salitre”, de Duarte Drumond Braga, editado na RAEM pela Capítulo Oriental O novo livro do académico Duarte Drumond Braga tem Macau como musa e tema central. “Salitre” será editado este mês pela Capítulo Oriental e é, como descreve o autor, uma metáfora poética sobre as características do território “É que / na aldeia lê-se o que há na papelaria, / vai-se a tudo o que há no Dom Pedro V / desfraldou-se uma vela / e perseguimos o pirata”. O verso do poema “Sal” espelha bem a matéria do mais recente livro de poemas de Duarte Drumond Braga, académico da Universidade de Lisboa que viveu em Macau. “Sal” é um dos poemas que integra “Salitre”, livro de poesia inteiramente dedicado ao território, com versos escritos entre os anos de 2019 e 2020. Editado este mês no território pela Capítulo Oriental, com apoio da Universidade de Macau, ainda sem data oficial de lançamento devido à pandemia. A obra terá também lançamento em Lisboa. O livro de poesia é uma ode metafórica ao território que acolheu Duarte Drumond Braga. “Salitre é um fenómeno químico bem conhecido que actua nas paredes das casas. O salitre talvez possa ser uma metáfora da acumulação de sinais, traços, uns legíveis outros menos, que constitui uma cidade como Macau. Poderia ser também o bolor ou o mofo, bem conhecidos dos habitantes de Macau, mas já há um livro de Augusto Abelaira com o título do primeiro e talvez estes remetam menos para a escrita como acumulação de traços ou raspagens”, contou ao HM. O poeta e investigador escreveu “Salitre” ao mesmo tempo que ia fazendo versos para “Os Sininhos do Inferno”, mas os poemas do livro agora lançado foram “quase exclusivamente” escritos no território. Escrever novamente sobre Macau surgiu como uma necessidade, dado o interesse constante do autor pelas suas “textualidades”. “É pena termos sempre acesso a um dos lados da moeda apenas, nós que não falamos chinês, porque o texto-Macau tem muitas autorias. O livro procura mostrar, antes de mais graficamente, que esta é uma cidade que é também um conjunto de citações, em línguas diferentes, que se cruzam, formando um texto único, mas de autoria múltipla.” A Macau histórica Nestas muitas versões da mesma história, há também espaço para a Macau histórica, consumo de ópio e piratas. Exemplo disso é o verso “No esterquilínio / é a cena do ópio: / um homem / tragicamente hirsuto / de olhos rolados, / dobrado sobre si mesmo / como um feto ao fogo / e uma mulher / que queima bolas”. Mas, conforme explicou Duarte Drumond Braga, “Salitre” não é apenas isso. Os seus poemas contêm referências “a espaços muito concretos”, e não apenas a eventos históricos. “Volta-se a esse imaginário para colocá-lo de forma diferente, por vezes de forma cortante. Creio que ainda há marcas de um certo exotismo na literatura em língua portuguesa de/sobre Macau. Este livro demarca-se dele, ainda que não se esgote nisso.” A Capítulo Oriental indica que a obra contém uma Macau “lida como uma cidade-texto, feita de letras, signos, sinais”, “uma cidade que é também um conjunto de citações, em línguas diferentes, que se cruzam, formando um texto único, mas de autoria múltipla”. Uma interpenetração “Salitre” é também uma espécie de “livro-colagem”, onde “os versos à esquerda são da minha autoria e os destacados à direita pertencem a vários livros de literatura e até de história de Macau”, aponta o seu autor. Neste processo, “os lugares, as referências históricas e as personagens dessa cidade constituem um mapa que mobiliza a transformação de Macau em tropo da linguagem”. Investigador na área da literatura comparada, Duarte Drumond Braga adianta que “a investigação e a poesia são actividades que se interpenetram”. “Interessa-me cada vez mais a poesia como forma de investigação, interessa-me construi-la em simultâneo com as questões que eu estudo, como sendo a Ásia e a produção escrita de língua portuguesa, essencialmente”, frisou. Editar “Salitre”, o seu terceiro livro de poesia, em Macau é importante para o autor. “Vinte anos depois da transferência da soberania, a publicação de qualquer livro em língua portuguesa em Macau – o que é talvez mais significativo quanto a um livro de literatura – constitui, em si mesmo, um facto cultural de relevo”, rematou. Fundada em 2019, a Capítulo Oriental é a primeira agência literária a trabalhar entre a Ásia e países ou territórios de língua portuguesa, e que tem sede em Macau. Representa também autores de Macau, China, Hong Kong, Taiwan e Portugal, entre outros territórios.
Andreia Sofia Silva EventosPoesia | Duarte Drumond Braga lança “Sininhos do Inferno” Editado pela Não Edições, “Sininhos do Inferno” é o segundo livro de poesia do académico Duarte Drumond Braga, que viveu durante algum tempo em Macau. O território está, por isso, presente nos seus escritos, com poemas que revelam “o circuito quotidiano” que o poeta fazia, no meio das velharias, “entre a Rua de Santo António e o bazar chinês” Em 2015 lançou “Voltas do Purgatório” e agora tem um segundo livro de poesia. Até que ponto diferem um do outro? Do Purgatório ao Inferno vai um saltinho. O primeiro livro tinha um tom diferente, mais distanciado, este é mais cru e directo. Era um livro sobre Portugal, o país-purgatório, como lhe chamava Pascoaes. Reelaborava de forma críptica figuras portuguesas, este reelabora episódios, perdendo o lado mais críptico. De alguma forma era um livro mais formal, e este mais próximo, mais interessado em outro tipo de experiências. Porquê o nome “Sininhos do Inferno”? O primeiro poema, “Trombeta Bath, Lisboa”, de alguma forma responde a isso. Os locais bas-fond são infernos, não (só) no sentido moral ou religioso do termo, mas num sentido também de serem subterrâneos, de serem lugares do desejo, do cativeiro do desejo, da repetição, do círculo. A repetição é puramente infernal. Ouvem-se sinos no inferno, porque o inferno é musical, tem ritmos, regularidades sonoras. Este é um livro que “observa uma série de lugares e depois uma série de amantes”, todos eles “guardados por porteiros”. É um livro sobre sexo, mas também sobre amor? Como diz a Rita Lee: “Amor é um, / Sexo é dois./ Sexo antes,/ Amor depois”. Parece haver uma certa conotação com as ideias de religião e moralidade, sobretudo quando se afirma que “Deus não existe, como a China sabe”. Estou certa, ou não é esse o caminho ou a ideia de alguns destes poemas? O nome do livro também pode estar relacionado com estas ideias? Não estou preocupado com uma ideia moral, mas pode-se dizer que há uma inquirição religiosa ou espiritual, sim, que já aparecia no outro livro. Alguém já disse que o que mais perturbou os missionários católicos do século XVI foi o facto de uma sociedade tão sofisticada não se fundar numa ideia teísta. Para eles uma sociedade complexa não podia dispensar a ideia de Deus. Mas desde Wenceslau de Moraes só podemos ser no máximo peregrinos, não missionários na Ásia, e foi de facto um privilégio o tempo que estive na China e o que pude aprender. Macau surge representada em poemas como “Prefiro Rosas”, passado no Pátio da Eterna Felicidade, junto às ruínas de S. Paulo. Porquê este local? É aquele que melhor representa aquilo que Macau é, na sua plenitude? Tem a ver com o circuito quotidiano que eu fazia, o das velharias, entre a Rua de Santo António e o bazar chinês. O poema refere a destruição da Macau antiga, que para nós europeus pode ser perturbadora, mas que faz sentido na visão de mundo da Ásia ou mesmo extra-europeia tout court. No Brasil isso também se sente bem. O poema refere ainda a mistura entre as referências portuguesas, a partir das quais não podemos deixar, como portugueses, de ler Macau (Camões, etc) e a realidade da cidade financeira, aberta a qualquer invasor. Fascina-me ser ao mesmo tempo a cidade ex-portuguesa na Ásia e a cidade-puta, aberta a todos, sobretudo aos que já têm as tais “libras”. A Ásia, nomeadamente a cidade de Banguecoque, está também representada. São, no entanto, poemas diferentes face ao que escreveu sobre Macau? E o Brasil também está representado, gostaria de lembrar isso. São não só ecos da minha biografia, mas sobretudo uma forma de tirar partido da vida fora da Europa, que é uma experiência preciosa. Outras formas de organizar o espaço e talvez até o tempo. Parece-me haver aqui uma ideia de prazer oculto, de fuga, com a ideia de que há ‘uma série de amantes todos guardados por porteiros'”. Este é um livro de vontades, mas também de mistérios? Não. O que está, ou pode estar, oculto na realidade fica patente no poema. Os poemas que falam em sexo assumem o desejo pelo corpo do outro, não são fugas nem mistérios. Interessa-me assumir o corpo e um tipo particular de desejo. O desejo em si pode ser um mistério, mas isso já são outras conversas. Tens mais algum projeto de poesia para breve? Sim, até ao final do ano a Capítulo Oriental, editora/agência literária sedeada em Macau e Lisboa vai publicar um outro livro meu, Salitre, este inteiramente escrito e dedicado a Macau.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasCarta a um jovem poeta Organizada pelo poeta Zetho Gonçalves, saiu agora na Letra Livre (numa bela edição), uma compilação de textos de Jorge de Sena que de comum são difíceis de encontrar e cuja reunião se justifica no longo, justo, e tenso prefácio em que Zetho explana o pensamento poético do autor de “Metamorfoses”. Logra-se o efeito deste livro, precisamente, abanar alguns lugares-comuns sobre a poética de Sena (quer no prefácio, quer congruente propriedade que a montagem dos textos revela) e estar à altura da verve que o homenageado cultiva na ácida “Carta a Um Jovem Poeta”, aqui repescada como pretexto para de outros modos de viver a poesia e a dignidade que a deve estribar se falar. A impressão que nos fica desta leitura (de “Carta a um jovem poeta”; “Sobre Poesia, alguma da qual portuguesa”; “Acerca de um Puro Poeta – fragmentos”; “Oito Poemas para a Nova Madrugada”; “Prefácio da Primeira Edição de Poesia”; “Discurso do Prémio Etna-Taormina”; “Discurso da Guarda”) é a de que este fluxo de disparos e tinir de espadas nos chega de um pirata de Madagáscar, tal é a violência da carga que se apresenta no traslado. É impossível numa crónica apresentar todos os argumentos que aqui se esgrimam, iremos ater-nos ao texto que dá título ao livro e a algumas irremovíveis estocadas com que Sena desfaz as ilusões poéticas. Conta Zetho, o texto surgiu de um convite do poeta brasileiro Walmir Ayala, através de Sophia de Mello Breyner Andresen, para Sena figurar numa obra colectiva cujo plinto seria as famosas “Cartas a Um Jovem Poeta”, de Rilke. E relata-se, num delicioso apontamento memorialístico, que perguntando Zetho a Sophia pela sua própria Carta, da qual não haveria notícia, respondeu a poeta: “A carta do Jorge deixou-me sem mar para escrever fosse o que fosse”. Lendo a carta vê-se como Sena sabota as mais rudimentares pretensões pedagógicas e seca qualquer pingo de aragem para o mais mínimo cata-vento: «A poesia, caríssimo, é a solidão mesma: não a que vivemos, não a que sofremos, não a que possamos imaginar, mas a solidão em si, vivendo-se à sua custa. Já pensou no que isso é? Por ela, o senhor será egoísta, sendo altruísta; será mesquinho, sendo nobre; trairá tudo, para ser fiel a si mesmo. Por ela, o senhor ficará completamente só. E, quando, de horror, penetrar lá onde supõe que o “si mesmo” está para lhe fazer companhia, verificará, em pânico, a que ponto ele não existe, ou já não existe, ou nunca existiu senão como uma miragem, ou existiu sim mas também ele o senhor vendeu à poesia, a isso que não tem qualquer realidade senão como abstracção do que o senhor pensa e escreve, e que, por sua vez, é já uma abstracção do que o senhor viveu ou não. (…) Se for um poeta de verdade, meu caro, o melhor é com efeito não escrevê-los, e deixar de o ser.» Sena procede como Sileno, o tutor de Dionísio, a quem o rei Midas perseguiu na floresta, insistindo em perguntar-lhe qual dentre as coisas seria a melhor e a preferível para o homem. Forçado pelo rei, respondeu: «Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, ser nada. E o melhor em segundo lugar, para ti, é morrer rápido» (, in Nietzsche, A Origem da Tragédia). Sensivelmente pela mesma data da escrita desta carta de Sena, em Londres, o jovem poeta de Bombaim, Dom Moraes (tinha dezanove anos), em visita à cidade, almoça com o seu poeta favorito das gerações precedentes, Stephen Spender; o qual desfere, sem dó: «você está ciente de que ser poeta/ é olhar-se ao espelho e ir padecendo/ do ser monstruoso em que se vai tornando,/ porque a poesia não pactua com a mentira?». Gente sem feitio para andar com bordados. Mas que sobretudo previne que o terreno é pedregoso e que a poesia só oferece «uma garantia da dignidade humana» se a sua independência e liberdade se cumprirem (um poeta não pode esquecer-se de transformar o mundo), deixando então pressentir a vera radiação de uma presença inominável, reconhecível nos exercícios de cabotagem que a escrita permite, mas tão difusa que querer obter proveitos dela é como capturar o oceano com um garfo. E continua Sena: «Porque a única alternativa é pavorosa: ou prostituta, dando à cauda, entre as madamas; ou monstro solitário, rangendo os dentes na treva, ainda quando só tenha visões de anjos tocando flauta, numa apoteose (ou epifania, que é mais elegante, e era o que o Joyce dizia). Guarde os versos, rasgue os versos, esmague os versos, arrase com eles. É isso o que pretende: ranger os dentes, mesmo postiços, pelo resto da vida?» Quanto ao gesto do jovem poeta pedir conselhos, ou da pertinência destes, volta Sena a desenganá-lo: «a poesia autêntica não necessita de ser encorajada; antes se acrisola numa solidão que de própria natureza bem conhece». Percebe-se que Sophia tenha ficado sem chão, como todos nós. Mas o que torna necessário a leitura desta Carta contundente, visceral, é exactamente lembrar-nos que há uma espessura para as coisas e que na anti-pulcritude da verdade que contém se traceja a “aventura espiritual” (expressão repetida neste livro) que importa, mesmo contra o que parecia adquirido: «A literatura, de resto, é algo de somenos que nunca me interessou; salvo raras excepções que me espantam, sempre a achei uma forma de analfabetismo, exactamente como o ensino universitário: uma e outro não conferem cultura, mas ideias feitas, preconceitos, muita presunção vazia.» Dizia o Godard, se a cultura é a regra a arte é a excepção. Ainda que incomode, é a que encontramos nesta carta que nos devolve à solidão. O resto é o marketing – espuma, o que na longa duração apenas fede.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasPessoa, o Oriente e a Sociedade Teosófica A palavra de ordem dos românticos alemães: “É no Oriente que devemos procurar o romantismo supremo” (F. Schlegel). Mas nunca conseguimos sair do plano das representações. Seria preciso esperar pelas vagas de emigração de proveniência dos países do mundo árabe e da Ásia, a partir dos anos 60, na Europa, e em Portugal nos anos 90, para termos acesso não a textos sufocados por traduções, mas a pessoas reais, com práticas e contextos reais. Mas já de antes o Oriente do budismo, do Hinduísmo, numa espiritualidade muito diluída e mal traduzida, exerciam um verdadeiro fascínio na Europa, ainda que sempre separado e alheio do contexto religioso, social, doutrinal em que nasceram. Acresce a isto o Esoterismo, que tantas vezes se misturou com muitas destas tradições, mas que tem uma linha europeia própria: tradição hermética, alquímica, maçónica, cabala, simbolismo cristão. Um dos movimentos que mais fama teve, e logo na segunda metade do século XIX, foi a Sociedade Teosófica, cuja principal força motriz foi fazer essa ponte entre Ocidente e Oriente, daí o seu resultado textual ser fortemente orientalizado. Esse movimento propôs uma fortíssima e sincera revalorização das espiritualidades orientais. Com efeito, a fase madura da doutrina de Helena Blavatsky (1831-1891) foi influenciada pelo Hinduísmo e, mais tarde, pelo Budismo, sobretudo depois da sua viagem à Índia, em 1878, que deu origem à esmagadora obra em seis volumes A Doutrina Secreta (1888). É de notar que, instalada na Índia desde 1883, a Sociedade deu apoio ao combate anti-colonial contra os ingleses. Fernando Pessoa descobriu a Teosofia em 1915, tendo traduzido para Português várias obras teosóficas como a da Voz do Silêncio, de Helena Blavatsky, datada de 1916. Mas a sua relação com o movimento e com a Sociedade não ultrapassa o papel de estudioso e tradutor, nem consta que tenha sido filiado. De qualquer modo, a espiritualidade tradicional indiana, e asiática em geral (ou uma certa imagem dela), passa a ser um objeto de pesquisa de Pessoa e entra na formação do pensamento esotérico pessoano. Não por acaso o poeta Ricardo Reis e o filosofo António Mora sentem a necessidade de serem dois acérrimos críticos do Esoterismo, pois também no ensaio e na reflexão sobre estas questões a autoria heteronímica entra em cena. As posições da côterie heteronímica sobre esta questão são, como seria de esperar, diversas e contraditórias. O inicial respeito e fascínio conduz a um progressivo desconforto que o poeta e intelectual vai experienciando com esta tradição. Tal implica um repúdio face ao Oriente reciclado que a Teosofia apresentava, o que é visível neste apontamento inédito, datável da década de dez [c. 1917], onde se opõe a perspetiva teosófica ao Rosacrucianismo: “A Rosicrucian is a kind of occultist a man <† to> of <†> /our/ mind can understand. He cannot understand a neo-buddhist. The detestable indian sub-jugglery, called Theosophy, so despicably, taken far from the great, though diseased beauty of the Buddhism of the East, by its □ mixture with /western/ modernities” (BNP/E3, 26B-8r). Mas a crítica pessoana à Sociedade Teosófica visa não apenas as suas roupagens orientalizadas. Outro dos incómodos, para Pessoa, consistiria na vulgarização dos princípios do Esoterismo, que defendia não deverem ser massificados, ao contrário do que a Teosofia propunha, bem como no seu “humanitarismo” militante, visto pelo autor como uma espécie de novo supracristianismo, incompatível com o projeto do anti-cristianismo neo-pagão que estava a desenvolver. Confessa numa importante carta a Mário de Sá-Carneiro, datada de 6 de Dezembro de 1915, e que pode ser conferida pelo primeiro volume da edição de Manuela Parreira da Silva da Correspondência: “A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo (…), repugna-me por se parecer tanto com o cristianismo, que não admito”. Por isso, o caminho do esoterismo pessoano vai divergir para o Rosicrucianismo, a Alquimia, a astrologia ocidental. Mas certas ambições pessoanas de criar um sistema totalizante, que unisse as religiões, as filosofias, a ciência e da literatura, é da Teosofia que recebem o seu primeiro modelo e impulso de escrita.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e Ideias“A morte de um apicultor” 1 Esta será a primeira de quatro partes à volta de um livro do escritor sueco Lars Gustaffson, «A Morte de um Apicultor». A edição usada nas nossas citações é a da editora Marcador, na tradução de Mélanie Wolfram e Afonso Cruz. A seguir às citações, entre parêntesis, aparece o número de página desta edição. A edição original é de 1978. Estamos perante um livro «sui generis», por várias razões. Primeiro, porque se trata de um livro composto por 3 cadernos, de cores e temáticas diferentes, deixada por um professor primário, que nos conta a história a sua história, embora tenha sido organizada por uma outra pessoa, que é quem começa a narração do livro. Como se o escritor se colocasse de fora do que está a escrever e nos dissesse: isto que vão ler não fui eu que escrevi, apenas organizei. De imediato, faz-nos lembrar de uma peça famosa de Pirandello, Esta Noite improvisa-se, onde no início é o encenador que vem ao palco, não para desculpabilizar-se, como faz Gustaffson no início do livro, mas para dizer que aquilo a que os espectadores vão assistir não é da responsabilidade do escritor Luigi Pirandello, mas dele, o encenador. Embora ao contrário, com uma estratégia inversa, estamos perante o mesmo artifício: a de fazer com que o escritor não seja o foco da atenção do leitor ou espectador. Embora o problema da dificuldade de identificação do que é real e do que é ficção seja muito maior em Pirandello do que no escritor sueco, pois a obsessão filosófica primeira de Gustaffson é a linguagem. E adiantei-vos uma citação: «Contrariamente ao que acontece com a percepção das cores, a linguagem não desenvolveu palavras específicas para definir as sensações das dores. Elas não têm nome.» Faltam-nos palavras, não apenas para nos expressarmos, mas para nos conhecermos. Ainda nos falta palavras para sabermos quem somos. Isto sempre foi uma preocupação maior do filósofo Wittgenstein. E estas preocupações no livro de Gustaffsson alargam-se no terceiro capítulo, «A Infância», onde o narrador lembra várias expressões que ouvia na infância, em reuniões familiares, e analisa-as para além do esperado, isto é, escalpeliza as expressões tentando mostrar o que está de facto por detrás daquelas frases que são repetidas quase sem se pensar nelas. Dou alguns exemplos: «para cúmulo da desgraça»; «uma pessoa que eu cá sei» ou «é sempre a mesma merda». Quase no final do terceiro capítulo «A infância», lê-se: «Sabemos o que querem dizer as palavras, e ao mesmo tempo não as entendemos.» (126) Mas além da questão do entendimento ou não entendimento da linguagem, Gustaffson liga o uso compulsivo dela, o estarmos sempre a falar como uma espécie de procura de redenção ou, pelo menos, um acreditar que alguém nos ouve. Que alguém nos ouve sinceramente. Leia-se: «Liberta a humanidade sofredora / Mas primeiro liberta-me a mim, porque fui quem sofreu mais. / Basta apanhar o eléctrico durante uns quilómetros para perceber a situação. E não conseguirem queixar-se de nada, queixam-se das suas sagradas doenças, das dores dos joelhos, das pedras dos rins, das úlceras, das veias inflamadas, dos soluços e das azias, das diarreias ou das fezes duras como rochas, que fazem barulho ao bater no fundo do penico. / E enquanto falam disso, imaginam que alguém lhe dá importância, só por se queixarem.» (93) O problema da linguagem assume uma duplicidade: o parco conhecimento que temos da linguagem em si mesma e o esperarmos que ela nos liberte da dor ou, pelo menos, nos traga empatia. É esta a razão por que se reza. Rezar é esperar que as palavras que dizemos são escutadas, verdadeiramente escutadas, que alguém realmente nos ouve. O facto das palavras se fazerem ouvir fora de nós, pelos outros, e de também muitas vezes se fazerem compreender, como por exemplo «passa-me o sal», faz com que se extrapole para um «nós podemos ser compreendidos» ou, na tese mais radical «a nossa necessidade de consolo pode ser satisfeita ao falarmos». Mais: a linguagem impõe que o outro preste atenção em nós. Por isso se diz que é falta de educação não responder. Como se a linguagem nos obrigasse a responder. Se alguém te diz «bom dia», tens de responder de acordo com isso. Neste livro, mais do que o problema da incompreensão, de não sabermos o que estamos a dizer com o que dizemos, a linguagem cria a ilusão de que podemos ser escutados. Ou seja, a linguagem cria a ilusão de que ao falarmos alguém se aproxima de nós, alguém cria empatia por nós e que de algum modo o mal que sentimos ameniza ou sara. De tal modo, que o narrador identifica a única forma de retórica das camadas inferiores da pequena burguesia sueca: a lamentação. Como se o exercício da lamentação os redimisse de alguma coisa. Lamentar é uma forma de rezar na direcção do outro, ao invés de na direcção de Deus, esperando que os pedidos sejam atendidos. Em relação à linguagem é brilhante aquelas páginas em que, depois da visita dos jovens de 12 anos, adeptos de histórias de terror, surge aquela história fantástica acerca da origem da dor e dos seus meandros, «O Grande Órgão da Ilha de Og», para logo de imediato nos surgir uma descrição «científica» do que é um cancro. Dois modos distintos de abraçarmos a linguagem, e duas idades completamente antagónicas a infância e a idade adulta. A linguagem nunca é a mesma ao longo da vida, ainda que as palavras possam ser. Leia-se esta passagem, também do terceiro capítulo: «É sempre a mesma merda. Vamos para a escola, depois para o liceu, depois para a universidade, e passamos por várias represas que nos levam a uma linguagem cada vez mais refinada. E mais abstracta.» (125) No fundo, o narrador entende que a linguagem está ligada ao mundo que se tem. As palavras podem ser as mesmas, ou quase as mesmas, mas o sentido torna-se diferente no mundo que se tem. E este mundo não é apenas o mundo que se abre com as diferentes idades de uma vida, é também no interior de uma classe social, no interior de um modo de se viver, que o narrador identificava claramente quando era professor. Escreve: «A linguagem da classe média era a mais indefinida de todas. […] Sabemos o que querem dizer as palavras, e ao mesmo tempo não as entendemos.» (126) Por tudo isto e o muito que se verá ainda nesta minha leitura, estamos diante daquilo a que o próprio autor chama, quase no final do livro, de antropologia mística. No mesmo sentido que Wittgenstein denomina tudo aquilo que podemos saber para além da lógica. Para além da lógica há a mística. Porque não nos é possível outra coisa senão traçar um mapa de ilusões, mais ou menos plausíveis. (Continua na próxima semana)
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasDo prazer (e) da ilusão E trocar a erudição pelo belo? É o que me pergunto ante alguma distância e secura árida de algum do discurso sobre o discurso. A crítica sobre a obra. O saber sobre a arte ou a poesia, que me faz sempre querer tapar os ouvidos e ver simplesmente. Ouvir. Fruir e mergulhar fundo na ilusão de vida que é o uso da linguagem. O mais sólido e vazio prazer da ilusão, como disse Giacomo Lombardi. Uma astronómica manobra de sobrevivência, dado que o belo nunca desilude. Já a razão é uma barca de derivas abstractas que levam a cenários longínquos e analíticos mas, malgrado a euforia do saber, distancia-se do sentir e do embalar da simples e delicada beleza que em si é simplesmente o que é, sem necessidade de explicação ou fundamentação. Mas como dizer que a beleza seja um malabarismo da nossa capacidade de ilusão sem reconhecer a lírica e lúdica apetência do hedonismo que nos salva de todo o resto, sem graça, sem emoção e sem sentido e nos mergulha na trémula e deslumbrada sensação de pura contemplação. Talvez esta seja a chave do precioso segredo da humildade. A capacidade de deslumbramento. Que nada cobra do universo e em vez disso se silencia atónito ante o ver e o admirar. Nem que seja por momentos. Ignorar o próprio ser por momentos, por momentos esquecer e render homenagem ao objecto admirado é como abrir as portas afanosamente aos anjos e que entrem que deslumbrem ou sirvam. Isso é lá com eles. Sem juízos e avaliações e pódios. Sem hierarquizar um momento puro e emocional de prazer ante a beleza de uma frase, escrita, pensada ou lida, de um gesto, de uma paisagem, de um olhar ou de uma vida, ou discorrer sobre ela de um ponto de vista crítico. Às vezes todas as ilusões de nitidez, não para com a vida, não para com nada que nos seja reflectido dos outros, mas com a simples realidade familiar com que nos deparamos em nós. Que pode, de um momento para o outro, tornar-se uma vasta poalha de intermitências indefinições e paradoxos. O querer e não querer e o querer não querer ou o querer querer. Tornando-nos irreconhecíveis aos outros, no indeterminado momento em que lhes parecera reconhecer-nos e logo desconhecer. Talvez haja que manter a ilusão. Um certo olhar. Mesmo quando o dia é uma correria mas de repente fica com uma textura fina de calma e eternidade. Como se tudo se silenciasse a fruir um momento. Poderia ser esse brilho ainda tímido de sol de primavera e vizinhança de fim de tarde. Ou pode não ser nada de especial, mas algo que simplesmente acontece. Está bem. Vieste então desinquietar-me e eu encontro uma pertinência difusa e quase impalpável de tão subtil nas tuas razões que não sei. Sei o efeito. Ou antes a forma, depois, somente depois, o efeito. Mas é o efeito em mim. Esse pavor de não entender, que me persegue como monstro papão da infância já com a insónia pontual que haveria, depois, de se tornar personagem de casa. Sem convite, mas amiga estranha e a quem se instituiu o direito de vir depois, mesmo sem chamamento. Lá longe era o vulto do roupão pendurado atrás da porta, um ser de contornos sombrios a apelar um olhar incauto de um sono que de súbito não vinha. Os murmúrios da casa em respiração que dizem natural e saudável. E que se não existisse seria como viver uma casa morta de si. Mas é estranho. A casa range. É a verdade que me incomoda os passos que sempre quis silenciosos. O universo já é ruidoso por demais. Depois penso como ser feliz. O futuro a deus pertence, diz-se, mesmo que não tocados de uma fé que não temos mas no assumir simples de que é algo susceptível de tantas variáveis que não podemos controlar, que melhor é não termos essa ilusão de o saber. Mas como sobreviver até lá, é a tarefa humana que me ocupa todos os dias. A de não perder paisagens imaginadas, também. Como não nos deixarmos tocar de melancolia e pessimismo sem ignorar a realidade humana e a sua inalcançável mas presente e férrea subjectividade. Plena de oxidações corrosivas e dolorosas de variações cromáticas. Mas adaptável, flexível e sempre sujeita a viajar de um extremo a outro. Deixarmo-nos abundantemente embriagar pelo possível. Pela beleza do possível ou simplesmente pelo belo existente nas coisas. As coisas, um gesto bom, uma carícia sincera. Um elogio à vida como ela é ou como ela se pode construir. Ver. E não como deveria ser e se oferecer. Uma certa forma de ilusão. Como a arte. O copo meio cheio, afinal.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA essência da literatura No seu ensaio «O Espaço Desarmado», pequeno livro de 133 páginas, a escritora nova-iorquina Alice Barnes faz uma análise da literatura – talvez até uma análise do acto de escrita –, buscando o seu fundamento. Escreve: «A carta é a essência de todo o texto literário e de pensamento. Toda a literatura ou tratado é uma carta escrita para nenhures dentro de nós. Escrita para nos socorrer. A carta é uma esperança.» Curiosamente, esta designação não nos mostra o carácter original da carta, mas sim a do texto literário. Pois, é sabido, a origem da carta é encurtar o espaço entre as pessoas, o espaço entre um eu e um outro. Mais do que uma forma de comunicação, a carta é um mecanismo de aproximação, a primeira máquina de aproximação à distância. Mas Barnes põe-nos a ver esse objecto, esse mecanismo que é a carta, de um outro modo. Leia-se: «O que é factualmente uma carta? Palavras escritas e enviadas de um a outro. Que diz factualmente uma carta? Dá informações, pede informações, faz pedidos, concede-os, revela segredos, pergunta por dúvidas muitas vezes tormentosas, responde a essas perguntas, faz confissões, cobra dívidas, salda-as… Enfim, a carta faz tudo ou quase tudo o que se faz na vida. O que caracteriza a carta, acima de tudo, em relação a qualquer outro modo de comunicarmos as palavras, é o tempo.» Barnes enfatiza a questão do tempo e não do espaço na definição de carta e, de certo modo, baralha-nos as contas. Pois, como escrevi atrás, estamos habituados a entender carta como um mecanismo de encurtar distâncias ou de aproximar «distantes». Ou seja, como uma forma de anular ou enfraquecer o espaço. Assim, e até pelo título do livro de Alice Barnes, «O Espaço Desarmado», ficamos perplexos com esta enfatização do tempo e não do espaço no mecanismo da carta. Veja-se como Alice Barnes nos mostra o tempo como característica fundante e fundamental do mecanismo da carta: «O tempo que as palavras que se enviam têm: 1) a sua durabilidade, pois ficam ali guardadas para serem relidas continuamente por quem a recebe, por vezes até ao desespero, até à exasperação; 2) a sua ponderação, pois quem a escreve tem tempo de ponderar nas palavras que vai inscrever no papel. Uma carta pode ser o relato daquilo que está a acontecer longe daquele a quem a carta é enviada. Pode e é, a maioria das vezes. De facto, a carta dá notícia do longínquo, pretende encurtar a distância que separa quem escreve de quem lê, daquele que está no centro dos acontecimentos daquele que está longe deles. A carta desarma o espaço. Como? Com tempo.» Ou seja, a carta encurta o espaço entre os correspondentes, mas ela mesma é tempo. Melhor: a sua natureza é temporal; tanto pela capacidade de se poder repetir e repetir até à exaustão a leitura das palavras, como a possibilidade de se pensar e pensar antes de enviar as palavras escritas. Leia-se à página 79: «A carta leva um coração a outro. Transporta de aqui para ali em palavras, por vezes em continentes de diferença, o amor que se sente. A carta não relata apenas o que está a acontecer a alguém para outrem. A carta tem a intenção de aproximar, de unir ou de manter a união entre os correspondentes. Mas em si mesma ela é tempo. O que subjaz a uma carta é o tempo. O tempo que somos e o tempo dos outros. A carta obriga-nos a uma relação privilegiada com o tempo, connosco mesmos, como mais nenhum mecanismo consegue fazer. A carta congela o tempo. Faz durar para sempre um momento que o seu leitor nunca viu. E é da consciência deste durar para sempre nunca presenciado que nasce a ambição da literatura, o seu fundamento.» Alice Barnes, ela mesma, tem uma obra de ficção que se chama «Carta A Um Amante Para Que Nunca Esqueça Que Me Perdeu», em que a narradora escreve uma longa carta – na esteira de «De Profundis», de Oscar Wilde –, contando o encontro entre ela e o seu amante; e depois o desencontro, devido a um acto ignóbil perpetrado por ele. Amante este que rapidamente se arrepende, mas que a narradora não desculpa e, ao invés disso, escreve uma longa carta – o livro tem mais de trezentas páginas –, que no fundo é um romance, onde expõe o seu amante à sua própria ignobilidade. A quem é dirigida a carta? Ao amante mesmo, tal como De Profundis. O livro é maravilhoso e para além das ligações evidentes ao livro de Wilde, é também traçada uma ligação com um poema de Marina Tsévtaieva, «Tentativa de Ciúme» – poema que surge no livro – que vos deixo aqui numa versão minha, a partir de várias línguas que não a russa: Como é a tua vida com outra mulher? Mais simples, não? Uma simples braçada! Minha memória recua, alcança no horizonte uma ilha flutuante (mas no céu e não nas águas). Alma e alma! Vós sereis irmãs mas não amantes! Como é a tua vida com uma mulher vulgar, sem divino? Agora que destronaste a tua rainha e tu mesmo renunciaste ao trono, como é a tua vida? Que fazes? Não sabes? E como te levantas? Pagando o preço da banalidade imortal, e ficando mais pobre? “Basta de sustos e de suspeitas! Hei-de arranjar um lar!” E como vai a tua vida com essa mulher, tu que foste escolhido para mim? A comida é mais apetitosa? Não te queixas se enjoares? Como é a tua vida com uma pobre coitada – tu, que pisaste o monte Sinai? Como é a tua vida com uma qualquer, uma mulher deste mundo? Diz-me – agradável? A vergonha, como as rédeas de Zeus, não te fustiga a testa? Como é a tua vida? A tua saúde? Vai indo, não? Como cantas? Como enfrentas a consciência imortal que te assalta, pobre homem? Como é a tua vida com um acessório de plástico? O preço é caro, não? Depois do mármore de Carrara, como é a tua vida com um bocado de gesso partido? (Deus talhou-a de um bloco e estilhaçou-o?) Como é a tua vida com uma qualquer, tu, que conheceste Lilith? O teu apetite satisfez-se? E agora que a lascívia não exerce mais poder sobre ti, como é a tua vida com uma mulher deste mundo, sem um sexto sentido? És feliz? Não? Nesse poço sem fundo do mundo como é a tua vida, meu amor? Pior do que a minha vida com um outro homem? No fundo, não será também este poema uma carta? Independentemente de concordarmos ou não com Alice Barnes no tocante à carta ser a essência da literatura, a verdade é que a escrita dela merece toda a nossa atenção. Acima de tudo, as suas reflexões proporcionam-nos prazer e alguma perturbação.
Anabela Canas Artes, Letras e Ideias CartografiasNovas dos icebergs – 1 Ou não. Aquele momento insinuou-se numa poética em cinzas. A poesia que surge em claros cinzentos não é nova e se bem que luminosa, melancólica. Por outro lado, há as pequenas coisas e em cada uma, uma ligação a algo maior. Links. Azuis acinzentados. Uma cor variável muito pouco saturada. O gelo marinho ou as neves, em camadas com uma subtil química diferente. O momento começou assim, mas terminou na densa complementar laranja. Os cinzentos de um drama frio, longe da ribalta, num planeta a aquecer e depois os tons potencialmente quentes do planeta vermelho, frio, frio. A ver o futuro. Em cinzentos. Uma falha enorme, uma linha cortante e progressiva a desenhar a cartografia da desolação na plataforma de gelo de Brunt. Um lugar paradigmático de vazio na Antártida. No silêncio dos brancos nas imagens adivinha-se o som de um estalar quase tectónico e igualmente brutal. Uma rotura que se vai delineando em quilómetros de um desenho imparável, que por estes dias, não se sabe quando, deixa de ser apenas uma linha de fissura irreversível no mapa gelado. E desprende-se do colo gelado materno um novo iceberg, ou talvez dois. Irmãos. Órfãos que iniciam, então, a deriva. Ou a rota previsível do suicídio. Do tamanho de duas cidades de Nova Iorque. Ainda mais do que o necessário para os Martinis gigantes dos deuses que nos contemplam, irónicos. São fotografias da NASA. Mas não as dos deuses. Todos os dias a subliminar apetência à elaboração de mapas, á revisão de planos cartesianos a dimensionar a distância, referências ou camadas de verdade espacial nas coisas sólidas e por inerência nas que são impalpáveis. – Encontramo-nos em Marte. Acedi como sempre ao tom incontornavelmente definitivo e misterioso, do enigma em que não se conhece cota ou afastamento e portanto de geometria impossível. E à recusa subjacente em definir pistas ou desenhar linhas no mapa imaginário. O único à mão. E que, como todos, é formado por camadas de diferentes estratos. Não geológicos, mas de verdades sobrepostas e com uma desfocagem inerente àquilo em que umas, como camadas de transparência, diferem das outras, na multiplicidade de contornos e na variação das linhas que demarcam fronteiras. A história, a política, as religiões e as lutas territoriais, a flutuação dos povos, a sucessão de camadas no tempo, a desfocar a leitura de um mapa. Das fronteiras que variam em função de guerras e também de sentidos. E as histórias que se contam, olhares, contos e pontos que se acrescentam. Ou a terra ela própria a criar uma narrativa de registos visuais. Ler as camadas, Também. Como épocas na história da estética. Um planeta no céu é sempre o ponto de encontro do olhar. Cruzado em cima e lá longe. Não sei se dizia isso quando o disse. A ideia era descobrir no enigma dos dias, a viagem a fazer. E o mapa, de momento, caído como sem vida nas mãos, desdobrado, a desvanecer-se em silêncio e a diluir-se em tonalidades difusas, de pouco mais que invisibilidade. Vejo o seu olhar atento à espera do meu caminho imprevisto. Dos erros. E sinto-me espiada enquanto enceto caminho. Procuro. Talvez guiada pelo óxido de ferro. Aquela cor quente seca e em corrosão como as palavras que não se entendem, as dúvidas. Viajo à beira dos desertos. Do Arizona. A vastidão a secura e o desabitado que é. O vento. A cor. A terra. Um canal de irrigação serpenteia e desenho uma linha de viabilidade na terra desértica do estado. Quando o homem quer, tudo. Lembro de novo a fractura crescente no mapa do gelo. Olho pela janela e no cinzento quase total do dia, a custo algumas cores tímidas e persistentes se afirmam em voz baixa. Aquela terra árida e seca, mas fértil. Somente a precisar de ser regada, acalentada. E os monumentos que a erosão esculpe e que inspiram uma sensação de irmandade que nos repreende de tanto reagirmos ao desgaste da memória. Da dor. Ali, o desgaste construiu. Chamar-lhe nação Navajo, ainda, é uma triste demagogia. Mas ninguém. A paisagem é deslumbrante, desértica e esculpida com minúcia arquitectónica. Monument Valley. Formações rochosas como grandes catedrais, erguidas pela própria terra em homenagem a si. Arenitos. Camadas que são registo da sedimentação, que ecoa a depósitos em rios e mares. Conchas e fósseis e areias de quartzo e feldspato e micas de reflexo luminoso vítreo, aglutinadas por um cimento natural que preserva a memória das eras. A dizer tempos sobrepostos. Perfis. História. No planalto do Colorado, na linha de fronteira entre Utah, Arizona e Novo México. Os quatro cantos. Com os grandes montes rochosos de uma coloração rosada. Dos óxidos de ferro. Os mesmos que em Marte. Daí que possa ter-me perdido no caminho, atraída ilusoriamente pelo mapa de cor. Mas óxido de ferro parece ser a mesma coisa em qualquer ponto do universo. Hematite. Ou, às vezes ferrugem. Uma coisa bonita mas que estraga, voraz. E dali, daquelas sílabas, como voltando de uma viagem, fomos sentar-nos no sofá da sala, como duas páginas de insónia, cúmplices. Encostámos a cabeça, a ver. Num monitor Marte e no outro os desertos do Arizona. Num filme de John Ford. Os mesmos laivos rosados e ferrosos de terras diferentes e sonhos parcialmente idênticos. A verdade é o que vive no interior da nossa cabeça. Mesmo encostada a outra. E no fundo é indiferente se contemplamos a abóbada esférica e estrelada do planetário, nos confins da infância, a paisagem desértica que nos seca os lábios, ou um paradigma além nuvens, porvir para sempre. Separado por duas atmosferas e gravidades e muito espaço-tempo sideral. No meio de uma tempestade global de areia que envolve o planeta numa nuvem perene e avermelhada, ocultando crateras, cavidades abissais e outros registos cartográficos. É indiferente tudo, menos estar. No veludo puído e alaranjado rosa, do sofá, com todas as descolorações e colorações de muito viver o peso dos corpos sentados ao fim do dia. Encostados. Nas suas verdades estrangeiras. Penso: de todas as ficções, qual é a verdade viva. Dentro. Em que o espaço se abre, de uma forma ou de outra ao olhar e nas suas múltiplas imagens desertas. Marte e essa solidão concreta. Que cenário fabuloso, silencioso, estranhamente familiar, e que solidão verdadeira. Como somente aquela em que se acredita. O paradigma da ausência total. Do humano, dos objectos, da memória, dos vestígios. Marte, os desertos do Arizona e outros desertos. Depois penso nos nomes dos brinquedos a percorrerem Marte. O rover Perceverance e o helicóptero Ingenuity. Olho para o lado e pergunto-lhe se não é lindo…
Hoje Macau Artes, Letras e IdeiasNa Poesia de ser Macaense Por Alfredo Gomes Dias Dentro de cada um de nós, o conhecimento de si e do sentido que emprestamos à nossa vida é, talvez, o exercício mais exigente, porque mais doloroso, mesmo quando o revestimos sob a forma de poesia. E se esta ideia, assumida como verdade, é generalizável a qualquer ser humano, num qualquer ponto do globo, adquire um novo significado quando se refere a um macaense, aquele ser “entre dois polos / que se atraem / e repelem”, principalmente quando lhe acrescentamos a sensibilidade e a racionalidade de ser mulher. Quando Cecília Jorge oferece a Macau um livro de poemas escritos ao longo de uma vida, devolve à cidade o sentir e o pensar que a acompanharam nas ruas construídas de vivências múltiplas, entre amores e desamores. Neste quotidiano, parte ao encontro das suas origens, ao subir aqueles cinco degraus que a “levam ao casarão / Onde crescem raízes / agarradas a velhas paredes / que arrostaram tufões”. Recordando o “bisavô Jorge”, reconhece a felicidade de “ainda ter conhecido o espírito / que pairava neste chão”, transportando sentimentos que criam raízes nas memórias e na terra onde se mistura “A humidade o cheiro os meandros / da alma indómita / que remonta ao passado”. Contudo, não são as origens nem as memórias condições bastantes para que veja facilitada a tarefa do conhecimento de si, quer como pessoa, quer como parte de uma comunidade que mantém uma “Porta aberta para dois lados/ de entrada /sem saída”. Para Cecília Jorge, já vai longe o tempo em que sentia necessidade de se definir como macaense, assumindo finalmente que este ser macaense é, em si mesmo, uma indefinição, “que te (in)defines / pelo não ser bem / que também não és bem…”. Deste modo, o ser passa a reconhecer-se pelo não-ser, porque não é possível (re)conhecer-se. Nesta incógnita, que hoje paira sobre toda a comunidade, as suas palavras alargam aquela indefinição a Macau, que sempre a ajudou a identificar-se, consigo e com os outros. Por isso, “sei onde estava / não onde estou / Não sei por onde vou / por onde não vou”. Descentrando-se da terra, deixando secar as raízes que sempre deram sentido à sua vida, de dádiva e partilha, a macaense valoriza-se pelo que é, na sua individualidade, afirmando “Sou / apenas / mas sou / quanto baste”. E, num último esforço de encontrar-se, procura no Mundo aquilo que Macau já não oferece, questionando “Donde venho? De que lado / do Mundo?”. Uma questão que, no presente, só pode encontrar resposta num passado longínquo e num futuro por construir. Parar no presente, para “recarregar / energias para / retomar a rota do vento / e cumprir o destino”. Anuncia-se a esperança num futuro carregado de um presente de incertezas. Sempre fez parte do ser macaense a procura, numa “Miragem / de olhos postos no Ocidente”, das suas raízes mais profundas, que Cecília Jorge reconhece como “berço secular / da eterna presença”, embora longínqua, mas que emerge na “confluência de civilizações” que transformaram Macau no “patamar” de dois mundos “harmonizados / num só”. Talvez resida aqui o sinal de esperança antes enunciado, embora assente nos “Pés de barro da lusitanidade”. Fragilidades de uma origem que se prolonga no acto do regresso, anunciadas nas “caravelas de vela solta / que se vão rasgando / no retorno à Pátria”. Desta síntese imperfeita e, mais uma vez, indefinida, fica como garante a “Língua materna Mãe”, aquela língua que nos embala “num fado de Amália / até ao finar da vida”. Nesta língua, que na casa e nas ruas se fez arma, apresentada como um “Lago fecundo sem margens / Como o mar que banha o teu berço”, encontramos uma das razões de querer partir, uma vontade representada num relógio que teima em impor uma lenta marcha do tempo, demasiado lenta para quem deseja bater “as asas / no devaneio / que me leva para / longe / daqui”. Já não é suficiente o ser que se confunde com a terra, o “reinol aventureiro” que se cruzou com a “mãe asiática”, num caldo de cultura com cheiro a canela, criando “ternura e sensualidade / no recato de uma alcova” e lutando “contra as monções”. Já não é suficiente acreditar que se vive numa cidade “maior que o mundo”, onde era possível uma “existência singela / humana partilha / solidariedade / e amizade”. Já não é suficiente sentir Macau “na curva do Chunambeiro / que já nem curva é”, obrigando a macaense, mulher e poetisa, a sentir “a alma da urbe / viva”, a transformar-se num espírito solitário que vagueia e pisa um “chão inexistente”. Junta-se, então, a angústia e a desmotivação – “Nem chorar / consigo” –, que se vivem e sentem numa profunda “dor indizível dor abstracta fugidia / dor infinita” que, sem matar, “despedaça e / chaga sem sangrar”. Macau vai-se esmaecendo nesta dor de quem, como muitos, como Cecília Jorge, desconhece a terra que sempre chamou de sua, como se, na velha Baía da Praia Grande, ainda fosse possível sentir uma “aragem / que nos embalava” ou ver “Raios de sol em despedida”. É na rua que persistem as memórias de uma Macau que se perde nos dias que passam, nos “jasmins / que espalhados ao sabor do vento / nos perfumavam as madrugadas / e os crepúsculos”; no “sabor dos fritos / comidos na rua”; nos macaenses “em volta de / uma só / taça de chá”. Estas são algumas das memórias que persistem numa cidade em mudança permanente, abandonando o nome de porto de abrigo. Como a rua da “Felicidade sequestrada / num nome”, também Macau se entregou a um futuro sem passado e, por isso, com um presente comprometido na auto-negação de si própria, comprimida “em caixotes / a tanto-por-metro-quadrado”, impedindo a mulher da cidade de desfrutar da “grandeza / de um céu distante”. Ao ser macaense, agora sentindo-se em terra alheia, sobra apenas a solidão, mesmo quando se mistura “num mar de gente / tão transparente / e frágil / que se esquece”. Uma solidão que se dilui na cidade, na “Ficção criada pelos portugueses”, que “nem os próprios dela / se apercebem”. Fica apenas a solidão e a memória. A memória esmorece e se apaga no vazio.
Hoje Macau EventosJoão Luís Barreto Guimarães vence prémio norte-americano de poesia Willow Run A obra “Mediterrâneo”, de João Luís Barreto Guimarães, traduzida para inglês por Calvin Olsen, venceu o prémio Willow Run Poetry. João Luís Barreto Guimarães, 53 anos, é o primeiro autor português a ser distinguido com este galardão, e o terceiro poeta, sucedendo aos norte-americanos Roy Bentley, 67 anos, vencedor em 2019, e Carol Tyx, em 2018. Em 2017, João Luís Barreto Guimarães foi o vencedor do Prémio de Poesia António Ramos Rosa, com “Mediterrâneo”, originalmente publicado em março de 2016, pela Quetzal. Além do prémio pecuniário no valor de mil dólares, cerca de 830 euros, que o poeta vai receber, “Mediterrâneo” terá uma “publicação [ainda este ano] e distribuição no mundo anglo-saxónico, numa edição da Hidden River Press, de Filadélfia, dirigida pela escritora Debra Leigh Scott, que presidiu ao júri”, adianta a Quetzal Editores. Ao Willow Run Poetry Book Award foram admitidos cerca 200 originais de poetas norte-americanos e de outras nacionalidades, em tradução para inglês, tendo sido selecionados 52 semifinalistas e 10 finalistas dos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, África do Sul, Suíça, Japão, Índia, China e Portugal. João Luís Barreto Guimarães, também tradutor e médico, arrecadou, em 2019, com a obra “Nómada”, o prémio de Melhor Livro de Poesia nos Prémios Bertrand. Em 2019, “Mediterrâneo” foi finalista do prémio literário italiano Camaiori Belluomini, à semelhança do seguinte do autor, “Nómada”, nomeado na categoria de Prémio Internacional. “Mediterrâneo” foi editado em Espanha, Itália, França e Polónia. No final do ano passado, João Luís Barreto Guimarães foi o vencedor da primeira edição do Prémio Literário Armando da Silva Carvalho, instituído pelo município de Óbidos para premiar a poesia dos países lusófonos. Nascido no Porto, em 3 de Junho de 1967, João Luís Barreto Guimarães publicou o primeiro livro de poemas, “Há Violinos na Tribo”, em 1989, em edição de autor. Seguiram-se “Rua Trinta e Um de Fevereiro” (1991), “Este Lado para Cima” (1994), “Lugares Comuns” (2000), a coletânea “3” (2001), “Rés-do-Chão” (2003), “Luz Última” (2006) e “A Parte pelo Todo” (2009), em editoras como a Quasi, Gótica e Lumiar. A “Poesia Reunida” (2011), já lançada pela Quetzal, congregou os primeiros sete livros originais do autor. Em 2013 publicou “Você Está Aqui”, que a Quetzal definiu como “balanço poético e pessoal do homem e do poeta, aos 40 anos”, e que viria a ser publicado em Itália. A “Mediterrâneo” sucedeu-se “Nómada” (Quetzal, 2018), também publicado em Itália. Em 2019 publicou a antologia “O Tempo Avança por Sílabas”, obra igualmente publicada na Croácia, à qual se seguiu “Movimento” (Quetzal, 2020).
Salomé Fernandes Entrevista MancheteZerbo Freire, poeta cabo-verdiano: “Cheguei a Macau com uma caderneta de poesias em crioulo” “Visão, Direcção, Acção” é o primeiro livro do poeta cabo-verdiano Zerbo Freire. Nascido em Lém Cachorro, o autor veio para Macau estudar língua e cultura chinesas com uma bolsa de estudos e fez intercâmbio em Pequim. Depois de vir para Macau, Zerbo Freire passou dos receios que tinha em se expor para ver as coisas sob outro ângulo. A obra é uma publicação da cod e será apresentada por Carlos Morais José na segunda-feira pelas 18h30, na Fundação Rui Cunha Como é que o Centro de Protecção Social de Lém Cachorro influenciou o teu desenvolvimento? Para falar a verdade foi o momento mais crucial e importante até agora, até chegar aqui. Entrei nesse centro com seis anos, por causa de muitos problemas familiares socio-económicos. É uma casa a que devo muito respeito. De uma certa forma é um centro que contribuiu para o meu desenvolvimento não só pessoal, mas para dentro de mim, é uma coisa mesmo psicológica. Foi lá que comecei a tirar as mágoas, medos, choros. Vim de um bairro problemático, com muitos problemas sociais, e isso de uma certa forma acaba por influenciar a sua vivência, as suas coisas, a sua forma de pensar e estar também. Foi lá que comecei a aprender as coisas, que entrei na escola. Tive sempre aquele acompanhamento, iam ver como estavam as notas. De certa forma foi a casa que contribuiu para eu estar aqui hoje. Saí de lá com 18 anos. E quando saí de lá vim para Macau. É por isso que digo que é uma casa que esteve comigo até hoje. Chegaste a frequentar o curso de Economia e Ciências Empresariais mas tiveste de o deixar por razões financeiras. Na altura como ficaram os teus planos académicos? É uma coisa que nos deixa um bocadinho por baixo. Eu já tinha planos de fazer o curso de Economia, porque sempre foi um sonho. Quando se vê que não se pode fazer porque não se tem certas condições financeiras isso acaba por abalar. A única forma de superar isso foi vir para Macau. Vir para Macau foi uma forma de esquecer esse fracasso. Não foi só um fracasso da minha parte mas também foi um fracasso no sentido em que as coisas foram superiores a mim. Não podia fazer mais nada a não ser aceitar e caminhar, fazer as coisas. Foi de certa forma um fracasso da sociedade… ficaste zangado? Como encaraste a situação? Um bocadinho. Quando vi que as condições não estavam a dar certo para fazer o curso, a única solução foi deixar o curso e procurar outra coisa para fazer. Tentei procurar trabalho mas não dava para suportar os custos, não era só pagar a escola. Não dava para fazer tudo. A solução era procurar uma bolsa fora, então foi aí que encontrei Macau. Já te tinha ocorrido vir para Macau antes? Em relação a Macau, China, nada. Falando a verdade nunca tive ideia de fazer o curso fora, sempre tive uma visão de que se quero ajudar o meu país então tenho de estudar lá, senão há um contraste. Sempre tive a visão de estar lá dentro. Vieste para estudar língua e cultura chinesa. O que te atraiu mais nessa área? Foram a língua e a cultura em si. Antes de chegar cá, quando faltavam dois meses para vir, já tinha encontrado a bolsa e comecei a estudar um pouco a língua, ter noção das coisas que ia encontrar, as coisas básicas, aprender um bocadinho de caracteres. Então a partir daí comecei a ter noção do que iria encontrar aqui. Quando cheguei, é claro, [houve] aquele choque, mesmo linguístico. Muitas pessoas falam do choque cultural, mas falo muitas vezes de choque linguístico porque estudar a língua chinesa foi deixar uma parte que sempre sonhei de lado, esquecer mesmo e focar na língua chinesa. Passando anos começou a fazer parte de mim e agora não quero deixar. Às vezes falo sobre a contradição, que mudança. O sonho do cara era ser economista, e agora só quer saber da língua chinesa. Escreves poemas em chinês. Sentes alguma barreira quando te tentas expressar dessa forma? Quando escrevi o meu primeiro poema em chinês estava em Pequim. Como as coisas em Pequim são a um ritmo mais elevado, as coisas são mais sérias, num modo mais crítico de falar. Foi lá que comecei a ter mais tempo. As coisas entram, entram, e sente-se uma necessidade de as tirar para fora também. Já gosto de poesia, porque não escrever também poesia em chinês? Claro, não foi fácil escrever a minha primeira poesia em chinês, tenho um programa que se chama pleco no meu celular, e tem algumas ideias na minha cabeça mas são em pinyi, não sei escrever o caractere. Então tinha o celular ao lado, um papel, sentava-me fora da residência e escrevia assim. O caractere que não sabia via no pleco, a gramática que não sabia tinha de ir ver ao livro. Depois complementava. Durava quase uma semana para terminar uma poesia. Os poemas deste livro foram escritos ao longo de quanto tempo? Comecei a escrever quando comecei a fazer música, porque também sou rapper. Comecei a fazer música com rimas de poesia, e [decidi] que não ia escrever texto mas poesia. Até é mais sensível. Quando está ‘rappando’ está rimando, tem uma base que é poética. Não é um texto, é uma poesia, é mais completo. Foi assim que comecei a tirar as coisas, com a minha língua de origem, o crioulo. Cheguei a Macau com uma caderneta de poesias toda em crioulo. Quando cheguei ao segundo ano comecei a ter essa ideia de organizar as coisas e fazer um livro. Comecei a tirar tempo para fazer a tradução para português e depois comecei a enviar para o pessoal com mais experiência nessa área aqui, para começar a dar opiniões e dicas. Havia algumas dicas que não me agradaram, mandava a poesia e vinha igual de novo. Não sei se estou a perder o meu tempo, porque não mudava nada. Mandei para outras pessoas até encontrar o Carlos. É fácil tomar a decisão de tornar público algo que também é tão pessoal? Claro que não. Eu sempre tive a ideia de que a minha escrita era para mim e ninguém tinha o direito de saber o que estava a escrever. Inicialmente era essa ideia que tinha. Até nas minhas músicas, tenho cerca de 10 faixas de rap mas pouca gente sabe. Aquela gente que sabe é a minha família e amigos mais próximos. Muitas vezes as coisas que escrevo são pessoais, são os meus medos, minhas frustrações, o momento que estou mais sozinho. Quando falo assim de escrita englobo sempre o que está dentro, então quando tiro para fora tinha medo de me estar a expor. É aqui que chega Macau. Quando cheguei a Macau passei a ver as coisas num ângulo diferente, é uma coisa mais diversificada. Porque quando se chega aqui e vê que não é um cara sozinho, que tem muita gente com muitas formas de pensar e que só está a contribuir para isso, é aí que quer se expor, mostrar as ideias e o que sente. Fiquei a perceber que somos feitos de sentimentos, se escrevo sentimentos quero que o pessoal o sinta. Comecei a ter essa coragem. No poema “partida” falas de abraçar um mundo novo. Em que aspectos sentes que te aculturaste? No momento em que comecei a tirar as primeiras palavras em chinês, as primeiras frases. A pessoa sai no fim de semana, é a rotina de estudante, quer curtir, e acaba por encontrar outro tipo de pessoas. Há pessoas que falam português, outras inglês, cantonês ou mandarim. Eu sou um cara bem envergonhado, então inicialmente não fui eu. Depois de duas cervejinhas é que começava a chegar junto do pessoal para falar. Então passava todos os meses a estudar, saía para beber e começavam a sair pequenas frases, pequenas conversações. Foi aí que comecei a sentir que não estou sozinho aqui e a coisa estava a começar a entrar. É como comer uma comida pela primeira vez, acha uma coisa horrível, mas quando se come regularmente começa a apreciar as coisas. Não fiquei admirando as coisas, comecei a apreciar, a senti-las. No livro falas de como o “poder económico é a nossa dívida”. É uma mensagem sobre Cabo Verde, ou mais geral? É uma mensagem mais geral mesmo, esse poema é uma dedicatória ao continente africano, é uma poesia que fiz especialmente para lá. É uma poesia inspirada no Joseph Ki-Zerbo, que foi um activista burkino e um historiador africano. Através de um livro dele que li, “Para quando África?”, tirei de lá essa inspiração e depois escrevi. Isso que falo de “tornámo-nos soldados mercenários”, tem algumas coisas lá que descrevem a nossa situação hoje. Então essa poesia é uma visão geral do continente, inspirada em Joseph Ki-Zerbo. E o que achas da forma como está agora o continente? As coisas continuam a mudar de uma forma lenta, mas continuam a mudar, mas de uma forma lenta. Como Joseph Ki-Zerbo falou, para quando? E quando se coloca essa questão vê-se que esse quando está ainda distante. É por causa da nossa lentidão. Estamos a reclamar de muitas coisas e andando lento. Vires para fora pode ajudar a que o processo seja mais rápido? O que podes dar de volta? A única coisa que posso dar de volta é esse conhecimento que a cada dia estou a ter na área de língua e cultura chinesa. É uma cultura e uma língua dotada não só de conhecimento cientifico, mas de conhecimentos do povo. São provérbios, a gente podia reeducar as pessoas através dessas coisas. Pelo menos, o plano que sempre tenho é abrir um instituto no meu bairro onde vou pelo menos começar a levantar crianças com cinco ou seis anos, em idade em que estão com força de aprender. Agora não é tempo de se manobrar com pessoas já com 16 ou 17 anos que já estão crescidas. Se se vê que a sociedade está muito rígida, tem de se puxar, uma coisa tem de ser familiar. Então cresce na família e depois tentar fugir para a sociedade. Tem de aprender isso socialmente. É um dos meus planos, abrir essa coisa para pelo menos levantar no bairro. Quem admiras mais no ramo da poesia? Eu nunca peguei num livro de poesia em português para ler assim. É uma coisa bem esquisita para quem escreve poesia em português. Eu comecei a sentir a poesia quando comecei a ler os clássicos chineses. Pode perguntar como é que eu já tinha escrito poesia há três ou quatro anos, é uma coisa meio esquisita mas foi aí que senti, não vou negar. Porque comecei a levar a poesia mais a sério. É uma poesia não muito simples, muito interpretativa, histórica. Às vezes faço pesquisas e análise histórica e linguística da poesia clássica chinesa e foi lá que deu essa vontade. Isso também contribuiu de uma certa forma. Porque quando voltei de Pequim já estava decidido que queria procurar algo e lançar o meu livro, dar o meu primeiro passo. Falas na poesia como alavanca para a consciencialização. Para que temas queres que os teus leitores despertem? Começo a pensar na consciência lá do meu bairro. Quando falo em consciência falo em algo social. Quero que o pessoal desperte a percepção das coisas, que elas têm um processo. É por isso que falei em “visão, direcção, acção”. Vem das palavras que o meu pai sempre fala, da luta para a conquista. É isso que quero, que o pessoal tenha essa consciência da luta, o lutar para conseguir algo. O pessoal do meu bairro pensou que é a esperar que as coisas vêm, e é isso que tento despertar. Não só do meu bairro mas para todos os que vão ler a poesia. Eu estive nessa posição em que se sente fracasso, é por isso que falo na luta para a conquista. Aquele momento de visão em que só se quer lidar e controlar os medos e traumas que aconteceram há muito tempo, que se carregam, mas tentam-se controlar e equilibrar. Depois, quando tenta equilibrar, encontra o silêncio para decidir. Porque você só decide quando consegue ver as coisas como elas são. Foi isso que eu fiz. Tentei procurar, acalmar a minha dor, fazer as coisas e tentar manipular a frustração. Você tem de manipular a frustração, controlá-la. Deixar sair a frustação que você quer. Essa é uma frustração que eu já manipulei, é boa. Quando a frustração é manipulada torna-se sensível. Então foi isso que fiz e tentei decidir as coisas. Como eu falo, em busca do sol de horizonte.
João Paulo Cotrim Artes, Letras e IdeiasFata_listas Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 1 Janeiro Não faço lista de desejos. Tenho estranha relação com o dito, tal qual a metáfora. Se esta me leva a lugares, estabelecendo ligações, abrindo perspectivas, desdobrando possibilidades, mas no fingimento da transparência, de aproximação a um qualquer centro, uma verdade, nesse mesmo movimento me distrai. Há metafísica suficiente em não pensar em nada. No desejo não encontro degrau para chegar ao real, para transfigurar o volátil em palpável. Se mastigado com tempo e sentidos, o desejo desdobra-se fim em si mesmo e exige múltiplos cuidados e leituras. Portanto, faço listas dos afazeres que teimo em descumprir, mas não dos movediços desejos. Estou certo que na contagem dos dias que agora recomeça entrarei nas areias movediças da criação partilhada com o André da Loba. A imagem que aqui se tatua pertence a um projecto de revisitação da tira desenhada, buscando nexos entre o desenho livre e o aforismo selvagem, uma gramática das formas em movimento, posta a palavra na cadeira do espectador a dizer por dizer. Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 2 Janeiro As fatais listas dos melhores do ano, aqui e ali, incluem o «Aaron Klein» e «Os grandes animais». Também está frio e até choveu. Não sei se há neve nas terras altas. Amigo [querido] tem a mania de ilustrar as conversas com livros, pelo que durante o fechamento me atirou habitante das listagens, «Chuva Miúda», de Luis Landero (ed. Porto Editora). Não será mau romance, com excelentes observações, frases de bom tom, fino recorte dos protagonistas e uma competente gestão dos tempos da narrativa. É uma história, que se pretende dura, ou melhor, céptica na visão da família que não saberemos nunca como ser nem deixar de ser. Uma história que talvez seja de consolação, como as que o narrador pensa durante os pensamentos da Aurora, personagem que começa por parecer viver apenas nas palavras dos outros: «que haverá na narração que tanto nos consola das culpas e dos erros e das muitas penas que os anos vão deixando à sua passagem?» Cansou-me sobremaneira a omnipresença do narrador, inescapável, por certo, mas que não precisava tornar-se ferramenta voraz, eléctrica chave que abre tudo para pôr explicações e conclusões nas fendas. O mesmo querido [amigo] pôs-me nas «Viagens», de Olga Tokarczuk (ed. Cavalo de Ferro), que me tinha escapado por entre confusões, mediatismos e certa alergia ao corrente. Também por aqui se dá basto consolo e histórias de ver ao espelho, com princípio meio e fim, não sei se por esta ordem. Para bem dos nossos pecados, acende pensamentos que brilham por muito, faz canções, dá início a outros tantos romances, recorta notícias da banalidade, faz dos pontos de interrogação mapa onde coloca corpos e tempo, não se cansa de fazer e refazer bibliotecas. Está também em várias fatalistas, de prémios até. Não me quero armar em canonista, que não tenho carta de pesados, mas interessa-me mais o que entrega labirinto na vez de porta. Por bem desenhada que esteja na parede. Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 3 Janeiro A vizinha gruta de Ali Babá recebeu umas velhas novidades e lá colhi, puxado pela capa com título desenhado tão viva e modernamente que parecia impresso ontem: «50 anos de poesia portuguesa: do simbolismo ao surrealismo», de um algo destratado João Gaspar Simões, e inserido na colecção/editora movimento que me desperta curiosidade a cumprir. Sem surpresa, encontro por aqui ideias, prenhes de dados e conhecimento, com que dialogar. No essencial, Gaspar Simões defende que o simbolismo teria marcado de modo indelével a produção poética nacional, atacando-o, mastigando-o, celebrando-o, reinventando-o, no balanço do a favor e do contra. Os poetas do surrealismo «iam direitos ao absoluto, resolviam de uma só vez o enigma da alquimia medieval. O poeta é por assim dizer o demiurgo que refaz dentro de si mesmo os segredos essenciais do universo.» Nesse pólo oposto do simbolismo, depois de sustentada digressão, por nomes, movimentos, publicações, temas (onde o amor figura com destaque), acaba o ensaísta por detectar convergência paradoxal. «Esteticamente, afinal, o século XX viveu, e continua a viver, pelo menos no domínio da poesia, das grandes descobertas dos poetas que no final do século XIX conferiram à criação poética prerrogativas de conhecimento absoluto.» Sobra ainda da leitura uma lista de poetas que passaram entre os pingos da chuva radioactiva dos cânones, seja qualquer for a origem do dito, academia ou mediania. Será talvez triste para quem o não entenda, mas este jogo de escondidas torna-se, com o tempo, motivo de alegria para quem queira atrever-se. (Entrando nos alfarrabistas.) Eis um caso, distinto, por só agora deixar a obscuridade das gavetas. José Rui Teixeira, que já havia trabalhado como poucos a figura do morador da Horta Seca, Guilherme de Faria, tratou agora cuidado extremo o seu companheiro, António Hartwich Nunes, personagem a justificar curiosidades, não apenas pela ilustre filiação. «O Livro de Ónio» (ed. Cosmorama) reúne a poesia de alguém que a praticou toda a vida, como o desenho e a pintura, sem assumir as inerências da condição: «fui poeta sem querer e, sem querer, continuo e continuarei a sê-lo». Um mote essencial, não apenas na sua relação com o suicidado Guilherme, está no mote-enigma: «Sonhei um sonho tão velo,/ E foi pior para mim…/ Agora para esquecê-lo,/ Gasto a vida até ao fim.» Amor, Deus e uma solidão, que talvez só o humor alivie, traçam aqui singela paisagem de almas. «Só comigo fui;/ só eu sei quem sou./ Mas eu senti tudo,/ tudo me falou.// Tudo passa e move;/ tudo é já no fim./ Mas a morte é vida/ a chamar por mim.» Não será a modéstia encantatória do Levi [Condinho] a afastá-lo das atenções merecidas. Valorizamos demais a presença no palco. E para vestir o fato do poeta há que caber nas várias peças do bem parecer, gravata de maldito incluída. Levi está bem na penumbra, praticando os malabarismos de uma arte poética que independe das leituras: «Perscrutar os veios da matéria/ seus nexos sons perfumes/ íntimas substâncias copuladas pela língua/ inventar o Verbo que invente a negação/ da profaneidade da palavra/ que autómatos nos move sobre escarpas.» A Húmus fez «Colheita serôdia» de inéditos e dispersos. (Poucos poetas se ficam hoje por uma casa, quase sempre para responder ao apelo magnético da amizade, nem tanto por razões programáticas. Não vem daí mal ao mundo. Na área da música, mais do que bandas de formação fixa, vemos projectos com irrequietos e permutáveis interpretes.) Até ao começo do século, injustamente acusado de novo, o poeta continuou a cultivar como jardim este ao redor dos acordes, dos nadas, do pequeno e médio Deus, de leituras, das memórias, talvez da morte. E pássaros, corvos e melros. E árvores, sobreiros e choupos. «Ciclo fechado em perpétuo devir/ vertigem medida em tempos certeiros geometria perfumada».
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de Próspero hA poesia como refúgio [dropcap]T[/dropcap]rump não é louco, está a experimentar até onde vai a tolerância dos americanos no jogo entre a verdade e a mentira, se ele se der como aval. Sente-se como um ratazana esperta a manipular uma enorme manada de elefantes que se porta como galinholas, enquanto ele faz manobras à esquerda e à direita. Ou Trump é louco e está convencido de que é Moisés a separar as águas do Mar Vermelho. As duas hipóteses são plausíveis. A terceira hipótese é eu ser Crazy Horse e estar à beira da trombose, na véspera de Little Bighorn. Por via das dúvidas, para me desviar da alucinação, abro A Bola, e leio o que pensa sobre Mohamed Salah, o goleador do Liverpool, a antiga estrela egípcia Mido: «Salah cometeu o erro de marcar presença do casamento do irmão poucos dias antes do jogo da selecção do Egipto. Mostrou uma enorme negligência na prevenção contra o coronavírus e o resultado é que ficou infetado. A selecção também perdeu um jogador importante para um jogo decisivo e ainda arriscou a saúde dos companheiros de selecção. Ele não deveria ter estado no casamento e ainda por cima com 800 pessoas, das quais metade abraçaram e beijaram Salah. Outra crítica é o silêncio dos responsáveis sobre a atitude do jogador e que confirma que o jogador é maior do que a selecção…», afirmou Mido, em declarações à Imprensa local . E apanho-me a pensar que o “mais velho” tem toda a razão e que esta cedência à vaidade deveria ser recompensada com o despedimento sumário. Salah devia a partir de agora ser retido na necrópole de Saqqara como manicurista e pedicurista de múmias. Nas eleições do Brasil, Bolsonaro perdeu e o PT também, mas o Ciro Gomes não ganhou um palmo: uma honestidade comprovada em várias décadas de vida pública não faz vibrar um sino. Coitado, é dos poucos que estuda os dossiers e nunca fala barato, mas como ninguém lhe denuncia uma falcatrua parece um morrão de cinza num cinzeiro, i.é. um marrão pouco credível. Esqueçamos a política do ventre. Consolemo-nos com quatro poemas de Louise Gluck, transcriados para ir fazendo a mão à sua voz. O ESPELHO : Olho-te reflectido no espelho/ e interrogo-me como será ser-se tão bonito/ e por que ao invés de amares a ti mesmo/ te cortas, te barbeias como se fosses cego?/ E acho que me deixas observar-te/ para que te possas voltar contra ti mesmo/ com redobrada violência;/ precisas de me mostrar como arranhas/ a carne com desdém e sem hesitação,/ até te veja corretamente, como um homem ferido/ e não o mero reflexo que me engancha no desejo. POEMA DE AMOR: A dor sempre serve para alguma coisa./ A tua mãe faz malha./ Despacha cachecóis em todos as gamas de vermelho./ Eram para o Natal, e mantinham-te quente/ enquanto ela casava, uma vez e outra, levando-te/ consigo. Como poderia ter dado certo/ se ela escondeu o seu coração de viúva todos esses anos,/ na ideia de que os mortos pudessem regressar?/ Não admira que sejas como és,/ a tua cagufa ao sangue, as tuas mulheres/ como tijolos um após o outro na parede fria. F O R M A G G I O: O mundo/ estava inteiro porque/ se destroçou. Quando se destroçou soubémos o que era.// Nunca se curou./ Mas nas fissuras profundas apareceram mundos mais pequenos:/ foi uma coisa boa que os seres humanos engendraram;/ pois os seres humanos sabem o que precisam/ melhor do que qualquer deus.// Na Huron Avenue multiplicaram-se/ num fartote de tendas; converteram-se/ em Fishmonger, Formaggio. Foram/ o que foram, venderam o que venderam,/ a sua função era semelhante: eram imagens de segurança. Como/ um lugar de descanso. Os vendedores/ agiam como se fossem paizinhos; parecia/ terem sempre ali vivido. Em geral,/ mais gentis do que os próprios pais.// Afluentes/ que desembocavam num grande rio: eu tinha/ muitas vidas. Naquele mundo provisório/ abancava onde ficava a fruta,/ caixas de cerejas, clementinas,/ sob as flores de Hallie.// Vidas não me faltaram. Desembocavam/ num rio, o rio/ entroncava um grande oceano. Se o eu/ se torna invisível, é porque desapareceu?// Fui prosperando. Não vivia completamente só, sozinho/ mas não completamente – se estranhos/ me rodeavam.// Esse é o mar:/ existimos em segredo.// Tive vidas antes desta, hastes/ de um ramo de flores: convertidos/ numa única coisa, sujeita a um laço no centro,/ um laço visível sob a mão. Sobre a mão,/ o futuro ramificando-se, hastes/ que rematam em flores./ E o punho cerrado/ que seria o eu no presente. O JARDIM: Não aguentaria fazê-lo novamente,/ dificilmente suportaria vê-lo;// no jardim, sob a chuva miudinha/ o jovem casal planta/ uma fileira de ervilhas, como se/ ninguém nunca tivesse feito aquilo antes:/ os grandes problemas todos ainda/ atirados para trás das costas.// Reveem-se até esse momento imaculados / de qualquer sujeira, como começar/ despidos de perspectivas/ se nas colinas ao fundo, verdes e pálidas,/ alastra a nuvem de pólen?// Ela deseja deter aquele instante;/ ele prefere chegar até o fim,/ permanecer nas coisas.// É ela quem ao acariciar-lhe uma face/ abre uma trégua, os dedos engelhados pela chuva primaveril;/ enquanto pela relva macia/ reponta o vermelho açafrão.// Mesmo aí, então no princípio do amor,/ a sua mão ao afastar-se da face/ dá uma impressão de despedida,// e eles julgam-se/ capazes de ignorar/ esta tristeza. Nem tudo está perdido, mas temos um minuto para achar a chave e a escrivaninha tem oitenta gavetas.
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de Próspero hPerfumar a glande [dropcap]E[/dropcap]spanta nos diários de 1906 de Fernando Pessoa a sua confessada decisão de ler dois livros por dia, um de filosofia e outro de literatura, de preferência poesia. E esse ritmo só foi baixando porque a partir de 1913 se imiscui a decisão de aprofundar uma voz poética, ainda por cima em arquipélago e com uma clara propensão para em suaves declinações ensaísticas refinar uma espécie de mathesis universalis. Ou seja, Pessoa desatou a escrever ele mesmo um livro por semana. Exagero e caricaturo, mas releve-se a sua enorme capacidade de trabalho. Mas não é único, apesar de nos ser difícil acreditar (e, em Portugal, no século anterior basta pensar em Camilo). Depois de um delicioso livro de entrevistas e de um muito parcial mas cativante Diccionario De Literatura, pego numa biografia sobre o espanhol Francisco Umbral (1932-2007), outro omnívaro que escreveu cento e tal livros e muitos milhares de artigos e crónicas (só no El Mundo manteve uma crónica diária durante 40 anos). E conta Anna Caballé, a biógrafa-não-autorizada que fez em «Francisco Umbral/ El frio de una vida» o livro definitivo sobre o escritor de Diario de un escritor burguês: «Consideremos qualquer semana de sua vida. Qualquer semana de 1977, por exemplo, um de seus anos mais fecundos. Encontramos Umbral publicando um artigo diário (secção “Diario de un snob”) no El País e outro artigo, também de jornal, para a agência Colpisa, que o distribuia entre os jornais associados. Tem um artigo semanal na Interviú (algumas “Horteras Cartas” em que ensaia várias fórmulas coloquiais) e outro, mais exigente, na Destino, semanal. A essas colaborações regulares deve ser adicionado um artigo mensal com conteúdo erótico para a revista Siesta e uma história erótica bimestral que aparece na mesma publicação. Juntem-se a estas outras colaborações que ele espontaneamente concede em Diario 16, em Triunfo, em Hermano Lobo. Não levo em consideração os textos aleatórios que surgiram no decorrer da sua vida profissional, mas chamo à lista os livros que publicou naquele ano: La prosa y otra cosa, Diccionario para pobres, La noche que llegué al Café Gijón, Las jais, Teoría de Lola y otros cuentos e Tratado de perversiones. Seis livros – quatro deles de criação. Ou seja, um livro a cada dois meses. E não se pode dizer que seja fruto de acaso editorial, já que em 1976 publicou onze livros, quase um por mês. Com razão, o hispânico Jean-Pierre Castellani, baseando-se apenas na intensidade de suas colaborações jornalísticas, considera-o um fenómeno único na Espanha e “talvez na imprensa europeia contemporânea”». O que assombra, com flutuações naturais, é a qualidade média de cada livro, invejável. Cada pico em Umbral corresponderia ao melhor do dos seus colegas escritores, só que Umbral tem uma dúzia de picos. De entre os cinco que li, talvez escolhesse Mortal e Rosa (traduzido, e bem, em português por Carlos Vaz Marques) o livro que escreveu depois da morte do filho, de sete anos, com leucemia, ou El hijo de Greta Garbo. Noutra ocasião farei uma descida à “morfologia do estilo” de Umbral que foi um defensor e um dos mais bem sucedidos cultores do “romance lírico”. Aqui fica um parágrafo, breve, de Mortal e Rosa: «Outubro. Aperfeiçoa-se a rotundidade do mundo. As árvores são violinos cuja música é o azul do céu. O bosque brinca com o meu filho como um tigre verde com um pintassilgo. Somos o âmago de uma lentíssima maçã caindo silenciosamente no tempo». Sirva agora esta nota só para meter alguma humildade no toutiço de alguns jovens escritores que conheço, tão vaidosos como ignorantes, tão convencidos como improdutivos. Ontem fiz o download do livro póstumo que reuniu toda a sua poesia, um livro de 200 páginas. Não é o seu melhor mas tem coisas que me divertiram, como o ciclo de poemas em prosa erótica que dedicou à Letícia/Lutecia. Vê-se que lhe era fácil e como isso lhe menorizava os poemas, nem resistindo, por vezes, ao mau gosto; por outro lado, são divertidíssimos e a espontaneidade do seu jacto denota que aos setenta (morreu com setenta e cinco, suponho que gasto) mantinha ainda um ímpeto juvenil. Aqui traduzo um poema desse ciclo: EL PERFUME «Há sexos de mulheres que perfumam a glande durante uma semana. Há mulheres que têm na geografia da vulva, nas gargantas da vagina, na caverna das secreções, uma infinidade de jardins subaquáticos, uma pluralidade de peixes que antes foram flores e sonham em se cristalizar, silenciosamente, no sal. Há sexos que deixam um perfume a mancebia babilónica e a armazém portuário, e do mesmo modo que o poeta passou anos sem lavar a testa, pois ali fora beijado por outro poeta, pode-se passar dias sem lavar a glande para que não perca, no freio do prepúcio, a sua aura de mulheres e flores, o seu halo de mar e porto, que é como uma coroa olorosa, essa fragrância que hesita em adoptar uma forma única mas se vai assemelhando ao desenho balístico da glande. A rigor, havia que descer-se à rua com o erecto membro ao léu, circuncidado como o azul no céu, ou uma proa, ou a pequena e vermelha agressão perfumada que distribui fitas aromáticas pela vizinhança, como quando passa o peixeiro. Disse que era preferível não lavar-se, nesses casos, mas a verdade é que há também a mulher indelével, a que perfuma e perfuma, e ao cabo de numerosas e meticulosas lavagens, depois de repetidas esfregas e enxaguamentos, a coisa continua a cheirar ao mesmo, com aquela fidelidade dos cheiros, que é a única fidelidade no amor. Não há maneira.”