Jorge Rodrigues Simão PerspectivasOs Estados Unidos e a saúde mundial “Global Health Governance must be understood broadly. Health is made in all policy and political areas-from agricultural through education policy. Without adequate nutrition, education and hygienic standards, mechanisms to fight global pandemics will remain a drop in an ocean.” “Coordinating Global Health Policy Responses: From HIV/AIDS to Ebola and Beyond” – Annamarie Bindenagel Sehovic [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] governo dos Estados Unidos tem permanecido na vanguarda do estabelecimento de políticas internacionais, o que até à eleição do Presidente Donald Trump trouxe maior segurança para os cidadãos americanos e de outros países, através da melhoria da saúde e ajudando a criar sociedades mais estáveis em outros países e um mundo mais humano para milhões de pessoas que enfrentam sérias e graves doenças.Os Estados Unidos trabalham com outros países para criar a “Aliança das Vacinas (GAVI na sigla inglesa)” que é uma organização internacional, constituída em 2000, para melhorar o acesso a novas e subutilizadas vacinas para crianças que vivem nos países mais pobres do mundo. Tem sede em Genebra e reúne os sectores públicos e privados, com o objectivo comum de criar acesso igual a vacinas para crianças, onde quer que vivam. A GAVI tem desempenhado um importante papel na redução da mortalidade por doença evitável por vacinação, sendo um contribuinte importante para se atingirem os “Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM)”. Os Estados Unidos a trabalhar com Oganizações Não Governamentais (ONG`s) apoiaram a criação da “Iniciativa Global de Erradicação da Pólio (GPEI na sigla inglesa)” que é uma parceria público-privada liderada por governos nacionais, com cinco parceiros, a “Organização Mundial da Saúde (OMS)”, o “Rotary International”, os “Centros para o Controlo e Prevenção de Doenças (CDC na sigla inglesa)” dos Estados Unidos, o “Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF na sigla inglesa)” e a “Fundação Bill & Melinda Gates”. O seu objectivo é erradicar a pólio em todo o mundo e conta com vinte milhões de voluntários, catorze mil milhões de dólares de investimento internacional, duzentos países envolvidos e mais de dois mil e quinhentos milhões de crianças vacinadas, o que levou o mundo à beira da permanente vitória sobre o vírus da pólio. A indústria dos Estados Unidos e as ONG`s têm estado na linha da frente para dar resposta a emergências sanitárias globais, e ao avanço da pesquisa e inovação que ajudou a reduzir os patógenos mais perigosos do mundo. Os esforços de colaboração internacional, especialmente o fortalecimento da capacidade dos sistemas nacionais de saúde, são essenciais para prevenir e se preparar para um variedade de ameaças, de pandemias de doenças infecciosas aos assassinos silenciosos de doenças não transmissíveis crónicas. O “Comité de Saúde Global e Futuro Papel dos Estados Unidos” tem lutado pelo bom equilíbrio no cumprimento do seu mandato para examinar o papel dos Estados Unidos no futuro da saúde global, ao mesmo tempo que reflecte como membro da comunidade global de estados, que tem desafios e lições comuns para aprender com outros para influenciar o nosso futuro. O Comité deu prioridade aos desafios globais da saúde com o potencial de perda catastrófica da vida e impacto na sociedade e na economia, como pandemias, doenças transmissíveis persistentes, como a SIDA, tuberculose e malária e doenças não transmissíveis, como a saúde cardiovascular e diversos tipos de cancro, bem como áreas onde os investimentos significativos dos Estados Unidos criaram ganhos que devem ser consolidados e sustentados, como promover a saúde das mulheres e das crianças, aumentar a capacidade, inovar e implementar a saúde global. O Comité concluiu que o governo deve manter a sua posição de liderança na saúde global como um interesse nacional urgente e como um benefício público global, que melhore a posição internacional da América. Embora seja necessário um investimento adicional, pois o dinheiro por si só não é a única resposta. O Comité elaborou um relatório qur contém catorze recomendações, significativas, para fortalecer os programas de saúde globais dos Estados Unidos, reconhecendo que muitas outras áreas merecem atenção. A fim de maximizar o trabalho em direção aos desafios de saúde globais priorizados, o Comité concentrou-se em como aproveitar os recursos, fazendo negócios de forma diferente, especialmente através do uso de processos de pesquisa e desenvolvimento aperfeiçoados, e mecanismos de financiamento de saúde digital para maximizar o retorno dos investimentos, e demonstrar a liderança dentro da arquitectura e governança da saúde global. Ao investir na saúde global nos próximos vinte anos, existe a possibilidade de salvar a vida de milhões de crianças e adultos. Além desses benefícios de saúde para os indivíduos, a saúde global está directamente ligada à produtividade e ao crescimento económico em todo o mundo. Assim, e de acordo com a “Comissão Lancet sobre Investir na Saúde”, o retorno dos investimentos em saúde global pode ser substancial, pois os benefícios podem exceder os custos, nos países de baixo rendimento e países de baixo rendimento médio. Trata-se de a nível mundial, investir em capacidades básicas para prevenir, detectar e responder a surtos de doenças infecciosas através do desenvolvimento de sistemas multidisciplinares. O “One Health” focado na interacção da saúde humana e animal pode resultar em uma economia estimada em quinze mil milhões de dólares anuais contra a prevenção de surtos isolados. À luz desses benefícios, bem como o surgimento contínuo e ressurgimento de doenças infecciosas e a crescente ameaça de resistência antimicrobiana, um compromisso sustentável com a segurança sanitária global é um imperativo para todos os países. É de recordar que “One Health” é um esforço de colaboração de múltiplas disciplinas, a trabalharem a nível local, nacional e global para alcançar a saúde ideal para pessoas, animais e meio ambiente. O “One Health” é uma nova frase, mas o conceito remonta aos tempos antigos. O reconhecimento de que os factores ambientais podem afectar a saúde humana, foi defendida pelo médico grego Hipócrates no seu texto “On Airs, Waters e Places”, em que promove o conceito de que a saúde pública dependia de um ambiente limpo. Os Estados Unidos têm sido um líder na saúde global, inclusive através de programas de alto desempenho como o “Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos Para Alívio do Sida, (PEPFAR na sigla inglesa)”; a “Iniciativa Presidencial Contra a Malária (PMI na sigla inglesa” que foi criada em 2005; o “Fundo Mundiall de Combate à Sida, Tuberculose e Malária (GFATM na sigla inglesa).” O GFATM é uma associação criada em 2002, entre governos, sociedade civil, o sector privado e as pessoas afectadas pelas doenças e concebida para acelerar o fim das epidemias de SIDA, tuberculose e malária, recolhendo e investindo quatro mil milhões de dólares anualmente, para financiar programas dirigidos por especialistas locais nos países e comunidades mais necessitados, tendo salvo mais de vinte e dois milhões de vidas, e recentemente a “Agenda Global de Segurança da Saúde (GHSA na sigla inglesa)” que foi criada em 2014, e é uma parceria crescente de mais de cinquenta países, organizações internacionais e partes interessadas não governamentais para ajudar a construir a capacidade dos países a criar um mundo seguro e protegido contra ameaças de doenças infecciosas, e elevar a segurança sanitária global como uma prioridade nacional e global. A GHSA prossegue uma abordagem multilateral e multissectorial para fortalecer tanto a capacidade global, quanto a capacidade dos países de prevenir, detectar e responder a ameaças de doenças infecciosas humanas e animais, que ocorrem naturalmente, acidentalmente ou deliberadamente. Todavia, os recursos não são ilimitados, e o compromisso contínuo deve ser realizado. A nova administração americana no contexto do legado influente dos Estados Unidos no desenvolvimento da saúde global, enfrenta a escolha de garantir ou não os ganhos na saúde global, tendo em conta os beneficios de milhares de milhões de dólares, anos de dedicação e programas fortes que são sustentados e preparados para um maior crescimento. O enorme crescimento das viagens e do comércio internacional que ocorreu nas últimas décadas, aumenta a urgência de investimentos contínuos na saúde global. A crescente interconexão do mundo e a interdependência entre os países, economias e culturas trouxeram melhor acesso a bens e serviços, mas também a uma variedade de ameaças para a saúde. A assistência externa é muitas vezes considerada um tipo de caridade, ou suporte para os menos afortunados. Ainda que, possa ser verdade para as populações mais pobres e vulneráveis, a maioria desses auxílios, especialmente, quando direccionado para a saúde, são um investimento na saúde do país receptor, bem como dos Estados Unidos e do mundo em geral. Tal motivação de investimento para os Estados Unidos tem duas vertentes, a de proteger contra ameaças globais à saúde e promover a produtividade e o crescimento económico em outros países. Embora o ónus das doenças infecciosas recaia predominantemente em países de baixo rendimento, essas doenças representam ameaças globais, que podem ter consequências terríveis para qualquer país, incluindo os Estados Unidos, em termos de custos humanos e económicos. Aproximadamente duzentas e oitenta e quatro mil mortes foram atribuídas ao surto gripe H1N1 em 2009, por exemplo, e dois milhões de mortes são previstas em caso de surto de uma pandemia de gripe moderada futura. Em apenas alguns meses, de 2003, o surto do “Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS na sigla inglesa) custou ao mundo entre quarenta e cinquenta e quatro mil milhões de dólares, enquanto em 2014 os Estados Unidos dispenderam 5,4 mil milhões de dólares como resposta ao surto Ebola, dos quais cento e dezanove milhões foram gastos em monitorização doméstica e acompanhamento dos passageiros das companhias aéreas. A crescente prevalência de doenças não-transmissíveis (DNTs) também afectou negativamente as economias globais, ameaçando ganhos societários na expectativa de vida, produtividade e qualidade de vida global. As perdas de produtividade associadas à incapacidade, ausências não planeadas ao trabalho e aumento dos acidentes incidem em custos até 400 por cento superiores aos custos de tratamento. As pesquisas também mostram que os investidores são menos propensos a entrar em mercados onde a força de trabalho sofre uma pesada carga de doenças. Assim, populações saudáveis são importantes em vários níveis. Investir no capital humano contribui significativamente para o crescimento económico, prosperidade e estabilidade nos países e cria parceiros mais confiáveis e duradouros no mundo. Tal estratégia mostrou-se bem-sucedida, como é evidenciado pelo facto de onze dos quinze principais parceiros comerciais dos Estados Unidos serem ex-receptores de assistência estrangeira. O Comité foi encarregado de realizar um estudo de consenso para identificar prioridades globais de saúde à luz das ameaças e desafios actuais e emergentes para a saúde global e fornecer recomendações ao governo dos Estados Unidos, e outras partes interessadas, para aumentar a capacidade de resposta, coordenação e a eficiência para enfrentar essas ameaças e desafios, estabelecendo prioridades e mobilização de recursos. Tendo o apoio de um conjunto amplo de agências federais, fundações e parceiros privados, foi nomeado um Comité ad hoc composto de catorze membros para realizar esta tarefa ao longo de seis meses e com base em um processo de consenso rigoroso e fundado em evidências. Os membros do Comité formularam um conjunto de catorze recomendações que implementadas, oferecerão uma forte estratégia global de saúde e permitirão aos Estados Unidos manter o seu papel como líder mundial em saúde. As recomendação passam por melhorar a coordenação internacional de resposta às emergência, combater a resistência antimicrobiana, construir a capacidade de saúde pública em países de baixo e médio rendimento, observar o próxima actuação do PEPFAR, confrontar a ameaça da tuberculose, sustentar o desenvolvimento na eliminação da malária, melhorar a sobrevivência de mulheres e crianças, assegurar uma vida saudável e produtiva para mulheres e crianças, promover a saúde cardiovascular e prevenir o cancro, acelerar o desenvolvimento de produtos médicos, melhorar a infra-estrutura digital da saúde, realizar investimentos de transição para bens públicos globais, optimizar recursos através de financiamento inteligente e comprometer-se a liderar continuamente a saúde global. A paisagem da saúde global é vasta, e com prioridades novas e por vezes díspares em todo o sector da saúde, pelo que considerar cada questão ou doença no seu local próprio pode ser contraproducente. Uma perspectiva tão estreita, dificulta a capacidade de incentivar investimentos em outros programas e adaptar recursos de programas existentes quando surge uma nova ameaça. Assim, embora a prioridade para os recursos seja necessária, também é essencial adoptar conceitos holísticos e centrados no sistema de integração, capacitação e parceria para obter resultados de forma mais abrangente e com esse entendimento, o Comité identificou quatro áreas prioritárias para acções de saúde global que, se abordadas, terão um maior efeito positivo na saúde, sendo a primeira alcançar a segurança da saúde global, pois nos últimos dez anos, os surtos de pandemia de gripe, no Médio Orienteo, o síndrome respiratório coronavírus (MERS-CoV), Ebola e, mais recentemente, o Zika ameaçaram populações em todo o mundo. A segunda, será manter uma resposta sustentada às ameaças contínuas de doenças transmissíveis. Os esforços dedicados dos governos nacionais, das fundações e da comunidade global resultaram em milhões de vidas salvas da SIDA, tuberculose e malária, mas as três doenças continuam a apresentar ameaças imediatas e de longo prazo para a saúde das populações em todo o mundo. Mais de trinta e seis milhões de pessoas vivem com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV na sigla inglesa), com dois milhões de novas infecções em cada ano. A terceira área, será economizar e melhorar a vida das mulheres e das crianças. Os esforços para salvar a vida de mulheres e crianças em todo o mundo, historicamente foram um múcleo importante para o governo dos Estados Unidos, embora as taxas de mortalidade infantil e materna tenham diminuído a partir de 2000, em cada ano cerca de seis milhões de crianças morrem antes de fazerem cinco anos de vida e mais de trezentas mil mulheres morrem por causas relacionadas com a gravidez e o parto. A quarta área, será promover a saúde cardiovascular e prevenir o cancro, pois as doenças infecciosas muitas vezes atraem os meios de comunicação, mas uma preocupação igualmente importante é o aumento das taxas de doenças não transmissíveis, em todos os países, independentemente do seu nível de rendimento. Os custos para gerir essas doenças está a aumentar. As doenças cardiovasculares deverão custar ao mundo um trilião de dólares por ano em custos de tratamento e perdas de produtividade até 2030.
Leocardo VozesBaralhar e voltar a dar [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ealizaram-se no passado domingo as eleições para a Assembleia Legislativa da RAEM, e pela quinta vez desde a transferência de soberania, a população foi chamada a escolher parte dos deputados que vão compor o hemiciclo na próxima legislatura. Das análises que foram feitas nestes últimos dias, concordo basicamente com o essencial: todos ficaram a ganhar. Os sectores tradicionais mantiveram ou reforçaram a sua presença, bem como o sector tido como “anti-establishment”. Foi um progresso significativo em relação ao sufrágio de há quatro anos, onde o eleitorado preferiu votar em massa nos sectores que representam mais os interesses económicos e associativos. Se há algo com que não concordo é com a possível influência do tufão Hato nos resultados eleitorais, que assim serviriam para mostrar um “cartão amarelo” ao Governo. Pode ser que os danos provocados pela tempestade, e a resposta pouco adequada que foi dada à mesma estivesse na mente de uma pequena parte do eleitorado, mas não era o poder Executivo que ia aqui a votos, mas sim o Legislativo. Uma das funções deste é a de “fiscalizar a actuação do poder Executivo”, e nesse particular os resultados forma positivos. Existe pelo menos alguma esperança em relação a 2013, no que toca a esse particular. Portanto, estabelecido de que aqui não se pode falar de quem “ganhou” ou “perdeu”, falemos de quem teve mais votos, que foi a Associação do Novo Macau (NM), que no somatório das três listas com que se apresentou ao sufrágio, obteve mais de 30 mil votos. Dizer que a lista única da União-Macau Guangdong foi a grande vencedora porque obteve mais votos que as 23 restantes é fazer “contas de merceeiro”. Aqui não se trata de uma maratona, ou de uma corrida de fórmula 1, onde ganha quem atravessa a meta em primeiro lugar – por essa lógica o PSD seria Governo em Portugal, nesta altura. Nem se pode falar de um grande sucesso da parte das democratas nestas eleições, mas antes de um regresso à normalidade. Era a força que vinha obtendo mais votos desde 2001, e há quatro anos sofreram um revés, quando optaram por se dividir em três listas, perdendo eleitores, bem como um lugar na AL. A receita agora foi a mesma, mas com outro ingrediente. Em 2013 a terceira lista foi encabeçada por Jason Chao, que vinha sofrendo de um exposição negativa da sua imagem e era tido como um “radical”, e este optaram por Sulu Sou, uma figura mais carismática, com um discurso mais próximo do eleitorado de base da ANM. Sou conseguiu triplicar o número de votos do seu camarada e ser eleito, provando ter sido uma aposta sensata. A grande surpresa da noite eleitoral foi a eleição de Agnes Lam, que concorreu pela terceira vez à frente do Observatório Cívico, duplicando o número de votos de há quatro anos. Atendendo ao facto de que o seu eleitorado não veio do sector democrata, nem de Pereira Coutinho, que reforçou a sua votação, apesar de ter perdido o seu companheiro de bancada, pode-se dizer que Agnes Lam foi a mais beneficiada com os novos 20 mil eleitores que participaram deste sufrágio. O papel que desempenhará na AL é ainda um mistério, mas pelo menos servirá para elevar o debate em termos de retórica. E sabemos como isso é necessário. Em última análise, pode-se considerar que existem dois grandes blocos do eleitorado. Uma maioria com ligação aos sectores tradicionais e às associações, que desta forma garantem praticamente a sua representatividade com os votos vindos da sua base eleitoral, e cerca de 50 e poucos mil votos ditos “independentes” (podiam ser mais caso a participação fosse maior), e que desta vez foram bem distribuídos.
Sérgio de Almeida Correia VozesNotas pós-eleitorais [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]umprida que está a primeira fase do ciclo eleitoral da RAEM, visto que a segunda só se concluirá com a indicação dos 7 deputados nomeados pelo Chefe do Executivo, a ocorrer no prazo de 15 dias após a recepção da acta de apuramento geral, dessa forma se respeitando os art.ºs 50.º n.º 7 da Lei Básica e 2.º da Lei 3/2001 (Lei Eleitoral), importa neste ínterim tecer algumas considerações sobre os resultados do sufrágio directo – o indirecto, por demasiado comprometido e dependente, falta de competitividade e reduzida legitimidade democrática, dispensa considerações nesta sede – e o que aí vem. 1. À cabeça é de referir que o sufrágio directo trouxe consigo um reforço da componente mais popular da Assembleia Legislativa (AL), por oposição a uma presença mais lobista, mais corporativa e empresarial, por um lado, mas também de cariz regionalista. Disto constituem exemplos os resultados alcançados por Ella Lei (Operários), Agnes Lam (Cívico), Sulu Sou (ANPM)e Wong Kit Cheng (Mulheres) por oposição aos resultados alcançados por Mak Soi Kun (Macau-Guangdong), Chan Meng Kam, via Si Ka Lon (ACUM) e Song Pek Kei (ACDM), Ho Ion Sang (UPP), Angela Leong (NUMD), Lam U Tou (SINERGIA) e, em especial, por Melinda Chan (APM). 2. Esta alteração do equilíbrio de forças dentro dos blocos saídos do sufrágio directo irá trazer consigo uma outra atitude dentro da AL. A leitura daquelas que têm sido as bandeiras das associações de Agnes Lam e Sulu Sou indicia que o chamado “campo pró-democrático” – entendendo-se como tal um grupo que pugna por uma maior participação e intervenção cívica dos cidadãos, maior transparência, rigor na fiscalização dos actos governativos e alargamento progressivo do sufrágio universal à escolha de todos os deputados à AL – vai passar a ter maior exposição pública, tempo de antena acrescido na comunicação social e possibilidade de fazer chegar mais longe a sua mensagem, penetrando em franjas do eleitorado onde até agora não entrava por dificuldade de acesso a essa tribuna. 3. Isto conduzirá a um escrutínio público reforçado dos actos de Governo, também potenciado pelo acesso desses grupos a mais informação, colocando maior pressão sobre a actuação do CE, dos secretários, da Administração Pública e dos concessionários. 4. A AL poderá também vir a beneficiar destas mudanças por via da introdução de uma maior transparência na sua acção. Algumas das iniciativas de Pereira Coutinho, nomeadamente quanto ao funcionamento e divulgação da actividade das comissões especializadas, são susceptíveis de ganhar novos apoios e adeptos mercê do equilíbrio e sensatez de Agnes Lam e das acções que esta empreenda no sentido de obter consensos alargados, bem como da moderação e inteligência de Sulu Sou, evitando radicalismos excessivos e despropositados que possam fazer perigar ou reduzir a eficácia da sua acção e os resultados a que aspira. 5. É previsível uma maior atenção às causas sociais, isto é, às preocupações que nos últimos anos se têm feito sentir por parte das comunidades de Macau, de modo mais ou menos difuso, mas que correspondem à necessidade de resolução de alguns problemas vistos como os mais urgentes para a qualidade de vida dos residentes, mormente habitação, transportes, qualidade do ar e das águas, mas ainda em relação às obras públicas, respectivos processos concursais e concessões de serviço público, colocando uma maior ênfase nas vertentes do controlo, eficiência, qualidade da resposta e prestação de contas. 6. Depois, num momento em que se aproxima o termo das concessões e sub-concessões de jogo que estão em curso, a redução dentro da AL do peso dos grupos associados aos “casineiros”, fortemente penalizados pelos resultados das listas próximas de Chan Meng Kan, Angela Leong e Melinda Chan, é um excelente sinal. Não só a AL estará um pouco mais liberta dessas influências que trazem conflitos de interesses e uma excessiva proximidade entre o trabalho parlamentar e o mundo dos negócios, como quando se tratar de apreciar eventuais alterações à lei do jogo e ao regime das concessões permitirão um olhar mais desligado e mais próximo da comunidade, capaz de ajudar a uma aproximação entre os interesses do jogo e as verdadeiras necessidades da comunidade, de maneira a que não sejam sempre os mesmos a ganhar e toda a sociedade a perder. 7. Deverá por tudo isso, o Chefe do Executivo usar o seu poder de nomeação dos deputados com inteligência, aproveitando o resultado do sufrágio directo, o único que tem indiscutível legitimidade democrática e goza da autoridade popular, para nomear pessoas qualificadas, que honrando a função e a nomeação possuam sensibilidade para compreender as preocupações sociais, as necessidades da boa governança e tenham capacidade para colaborar na construção de pontes dentro da AL – em vez de se dedicarem a fazer comentários disparatados e intervenções ofensivas da comunidade e reveladoras de grande ignorância – que permitam uma articulação equilibrada das aspirações de todos e dos interesses que importa defender, os quais não são, como bem se compreende, os dos empresários e famílias que se têm comportado como rémoras do tecido social e do trabalho de todos, monopolizando riqueza e influência em detrimento dos verdadeiros interesses de Macau e das suas gentes. 8. Por último, dever-se-á aproveitar o resultado destas eleições para se trabalhar no sentido de uma melhoria dos (i) instrumentos de participação, (ii) da acção da futura Comissão Eleitoral, (iii) avançando-se para uma mais do que desejável reforma do anacrónico sistema eleitoral, de onde resulte mais justiça, compreensibilidade sistémica para os cidadãos e se coloque um (iv) ponto final nos mecanismos de engenharia eleitoral que, a coberto da lei, incentivam a reprodução fraudulenta de listas e tendências para obviar aos resultados indesejáveis que o actual e perverso sistema de conversão de votos em mandatos a todos os títulos propícia.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesJogo demasiado real [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or ocasião do 40º aniversário, o Ocean Park de Hong Kong organizou uma série de eventos em grande escala. Os visitantes tinham à sua disposição 11 atracções fantasmagóricas e podiam experienciar 12 situações totalmente inéditas. Numa destas situações, inspirada no jogo Buried Alive, os visitantes são transportados à Europa Medieval. É o primeiro parque temático de terror da Ásia. O website do Ocean Park descreve esta experiência nos seguintes termos: “Os visitantes de Buried Alive iniciam a sua jornada de terror sendo “enterrados vivos” em caixões de madeira. Depois de conseguirem escapar a este pesadelo, a visita solitária prossegue ao encontro de criaturas horríveis. Vão cruzar-se com aranhas, bichos assustadores e fantasmas. Os afortunados que conseguem aqui chegar, reúnem-se aos amigos num trilho comum, ou então têm de enfrentar mais uma fuga a solo, passando por esqueletos arrepiantes, caixões, labirintos, por uma câmara de ossadas e, finalmente, pelo horror da magia negra.” O Parque é uma novidade em Hong Kong e, como tal, é bastante atractivo. No entanto o Ocean Park encerrou o cenário Buried Alive, depois da morte de um jovem de 21 anos no passado dia 16. O homem foi encontrado morto cinco minutos depois de ter entrado na Casa Assombrada. Foi dar a uma zona de manutenção reservada aos funcionários, segundo Eva Au Yeung Yee-wah, directora de animação e eventos do Ocean Park. O Ocean Park encerrou esta atracção e reportou o incidente ao “Departamento dos Serviços Eléctricos e Mecânicos” de Hong Kong. Todas as instalações do Parque, incluindo as do Buried Alive, tinham sido aprovadas nas inspecções oficiais. Este caso pode não ser exactamente uma novidade, mas merece alguma atenção. Todos sabemos que quando chegam as celebrações do Halloween, muitos jovens vão a Hong Kong à procura de divertimentos. A altas horas da madrugada formam filas enormes no Terminal do Ferry Hong Kong-Macau, para comprar o bilhete de regresso a Macau. Felizmente os noticiários alertam com frequência estes jovens para os perigos que correm, apelando para que tenham muito cuidado nestas saídas. Até ao momento não foi possível determinar se houve algum erro humano por trás deste incidente. O relatório preliminar do “Departamento dos Serviços Eléctricos e Mecânicos” apontava para a ausência de falhas mecânicas. Este departamento foi chamado à investigação no âmbito da Ordenança para a Segurança das Diversões Mecanizadas, que regula os parques de diversões em Hong Kong. O departamento é responsável pela aplicação da Ordenança. O Ocean Park tem um seguro que cobre eventuais acidentes que vitimem os visitantes. Desta forma os familiares do falecido serão indemnizados. Independentemente das causas do acidente, o Ocean Park irá sempre ressentir-se e com certeza irá baixar as receitas nos tempos mais próximos. Têm aparecido comentários no website a apelar à não participação nos jogos durante o Festival dos Fantasmas Famintos. Também conhecido como “Zhongyuan Festival” ou “Yulan Festival, esta comemoração ocorre a 14 de Julho no calendário chinês, Setembro no calendário ocidental. É uma festa tradicional Budista e Taoista celebrada em vários países asiáticos. Por esta ocasião, os fantasmas e os espíritos, incluindo os dos antepassados, emergem das profundezas e vêm visitar os vivos. Durante o Festival fazem-se ofertas rituais de alimentos, queima-se incenso, joss paper e objectos em papel-mâché representando diversos bens materiais, em homenagem aos espíritos dos antepassados. Como se acredita na China que neste período os Espíritos estão mais “activos”, os mais velhos lembram os jovens que devem recolher cedo para evitar maus encontros. Ficar em casa é sempre o mais seguro. Não que eu recomende a crença em espíritos. Mas a tradição desempenha um papel muito importante em qualquer sociedade. Se estivermos na China é bom que sigamos os costumes chineses. Sabe-se que o jovem que faleceu ia ingressar na Universidade este mês. Será que os pais vão ser reembolsados do dinheiro das propinas? Tudo vai depender do tipo de contrato que foi feito. Claro que do ponto de vista humanitário a decisão correcta será o reembolso. Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Tânia dos Santos Sexanálise VozesLentamente [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara quem é um ávido consumidor de pornografia vai-se deparar com sexo muito rápido e insistente. Imaginamos ‘coelhinhos/as’ a saltar uns em cima dos outros/as, violenta e prazerosamente. A lentidão parece que não se encaixa na representação do sexo per se, somente nos controversos momentos de preliminares é que parece que lentamente se tira proveito dos momentos de prazer – mas que a penetração não tem como aproveitar da lentidão – o slow motion. Parece que o sexo lento é o segredo melhor guardado dos senhores-mestres-deuses do sexo. Nem sequer é contra-intuitivo, é simplesmente romântico. Mas sejamos honestos, quantos de nós foge do romance? Daqueles momentos em que os corpos se entrelaçam em trocas de almas, em trocas do mais íntimo de ser? Tantos! E assim o segredo se mantém segredo, sem grande razão de ser. O prazer continua a ser negado e negociado por representações populares-pornográficas e a lentidão continua a estar na prateleira, em lista de espera. Não fosse o sexo lento muito bom! Para todos, para ele e para ela, para eles e elas. Porque estas manias não são tendencialmente femininas – apesar de ser um catalisador de prazer feminino. A vantagem é a sensação e sensibilidade de milímetros de consciência. Porque aqui também se aplica a história da lebre e da tartaruga… a lentidão não é de perdedores mas de vencedores audazes, na corrida orgásmica do sexo. Digamos que o bom sexo pode ser um sprint, mas é certamente uma maratona. Mas ninguém consegue inteirar-se da lentidão porque vivemos em tempos muito rápidos. Não se deve andar devagar, conduzir devagar, trabalhar devagar. Vai contra os princípios da produtividade – apesar da sabedoria popular sugerir que ‘devagar é que se vai ao longe’, ‘depressa e bem, não há quem’, etc. O sexo é assim mesmo, bom sexo exige tempo, despreocupação e lentidão para acordar os sentidos sensuais que possam estar perdidos e esquecidos. E sim, a lentidão favorece o orgasmo feminino. Mas qual é o parceiro/a que não quer privilegiar o orgasmo mais intenso todos, o de quem desejamos? Nem que seja momentaneamente. Ora pensemos heterossexualmente: se um homem em média ejacula em 7 minutos e as mulheres atingem o clímax em 45 minutos, o sexo lento parece uma óptima solução para resolver este desequilíbrio. Assim o coito é prolongado em minutos, ou em horas para os mais corajosos, e o culminar orgásmico é intensificado. Podem até não se deixar levar à primeira vinda do orgasmo, mas controlar (torturar) o êxtase leva a um acumular de desejo que resulta em orgasmos mais intensos e prazerosos. Não acreditam? Pois este é outro segredo dos senhores-mestres-deuses do sexo: adiem o prazer por mais que puderem. Não sejam consumistas em quantidade mas em qualidade, vão ver que triplicam (ou quadruplicam) o vosso bem-estar sexual. Uma abordagem estritamente capitalista ao sexo, i.e., de consumismo rápido, priorizando a quantidade (muitas vezes descurando a qualidade), pensado que o sexo é uma perda de tempo – e o tempo é dinheiro! – é uma injustiça pela nossa vida sexual. Claro que não quero aqui insinuar que o sexo rápido à coelhinho não valha a pena, nada disso. Mas o sexo não pode ser só isso. Dar o tempo necessário à nossa vida sexual, com a lentidão desejada, com o prazer que daí advém é um direito universal. Pronto, não é mas devia ser. Porque já dizia o Freud que a nossa saúde mental e física é afectada por uma vida sexual decrépita. Mais vale apostar na prevenção e tentar um sexo bem lento de vez em quando – pela nossa saúde.
João Luz VozesEleitor [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] somatório de todo o raciocínio, indiferença e sofrimento vertido na ponta de um carimbo. Com um simples gesto sepultam-se quatro anos de desfasamento na urna eleitoral. Já repararam na conotação fúnebre de tudo isto? O ciclo político encerra-se e reabre com um velório democrático. Um ritual mortuário mascarado de cidadania levando cortejos de eleitores enlutados e as suas lamúrias à cova das fracas opções. Um ciclo de vida afastado dos tronos da decisão onde se enterra a defunta liberdade. Tudo isto para chegarmos onde estamos, ou seja, exactamente onde estávamos antes. À terra regressamos. Hoje voltámos a ser o que éramos antes da campanha eleitoral, uma massa disforme, por definir, nas antípodas do poder, perfeitamente camuflados por uma perfusão de estudos e consultas públicas fantasmagóricas. Sinto-me aliviado por não ter de testemunhar mais a charada dos bilionários a tentarem meter-se na minha pele, a fingir que conhecem as minhas dores. Tenham decência e deixem-me em paz, regressem às vossas torres de marfim, às vossas mulheres esculpidas a bisturi, às vidas onde não existe o medo de ficar sem tecto, onde não cabe a matemática da mercearia. O vosso único medo sou eu, somos nós, é um povo desperto e raivoso a reagir ao vosso despudor. Este é o momento em que quase podemos tocar o Olimpo, roçar ombros com quem faz as leis da terra. Há um conceito que me desce da cabeça para onde se forma a bílis: Elite! A palavra tem origem no latim, eligere exlegere, uma cruel ironia para estes dias de retorno ao fosso incomensurável entre governadores e governados. Elegemos a elite, temos uma quota-parte de responsabilidade nisto tudo. De certa forma, este exercício de intoxicante livre arbítrio é o que nos traz a este dia, ao rescaldo do concurso de popularidades que terminou na urna. Alimentaram-me com aspirações colossais face ao liliputiano gesto de eleger, venderam-me a ideia de acto essencial como a respiração e saiu-me na rifa uma acção onde não há qualquer tipo de processo cognitivo, nem análise, intuição, nada. Resta-me o vazio de utilidade depois do direito/dever cumprido, uma flor que teimo plantar em alcatrão fresco a cada quatro anos, sempre com uma réstia de esperança de que floresça além das limitações biológicas. Mas pensemos no procedimento que me caracteriza, o voto. Como é que algo pode ser simultaneamente um direito e um dever? Este conceito tem na sua génese um enorme paradoxo que dificilmente poderá ter eficácia prática. É uma aberração lógica à qual não declino, talvez seja precisamente devido a esta inconsistência racional que não resisto, a todos os quatro anos, a carimbar um simulacro de escolha. Mas faço por eleger, presto-me ao sacrificial desígnio de sepultar o pequeno corpo democrático em caixão branco. Fica toda a realidade citadina reduzida ao gesto aniquilador do voto, ao último golpe de teatro antes do regresso à normalidade e regressamos à cidade estrangulada pelas tenazes dos múltiplos interesses e à invisibilidade das suas gentes. Agora instala-se a ressaca da inevitabilidade, mais quatro anos sem solicitações de cima. Volto a ser o cidadão, o residente, o mais elevado na hierarquia dos esquecidos, impertinente acorde na corda mais gorda do violoncelo, impetuoso na minha massificação, um fantasma andrajoso na cidade do super pib. Onde estão os milhões que as médias estatísticas me devem? Hoje desperta um novo dia, mais um daqueles sem história depois de todo o rebuliço deste pedaço de Verão escaldante. A treva fica para trás e o sol irrompe num horizonte de normalidade. Um sentimento de paz apodera-se das coisas, entranha-se nos passeios, como se entre os objectos se instalasse um narcótico armistício. Também entre as pessoas reina a reconciliação. Os eleitores voltam a ser quem eram, os trabalhadores residentes continuam a não ser ninguém e os políticos continuam a reinar acima de todos os outros. Como na relação entre astro e rotação celeste, Macau entra no “polistício”, a altura do ano em que a legislatura está no seu pináculo, iniciando, imediatamente, o seu declínio. A vida prossegue para mais um ciclo.
Isabel Castro VozesO último acto [dropcap style≠’circle’]1.[/dropcap] Este texto devia ser, em rigor, sobre as eleições do próximo domingo. Devia ser um texto de análise, profundo e revelador de algum conhecimento sobre a matéria, um texto acerca das diferentes opções ao dispor do eleitor. Não é. Não sei se sei e, mesmo se soubesse, não me apetece. Também não é um texto baseado em teorias da semiótica das artes visuais, uma abordagem à estética eleitoral, ao modo como se pretende passar as mensagens políticas do momento. Este texto devia ser sobre o momento político mais importante do território, mas não é. O momento não se dá à importância, não se dá ao respeito. Não se dignifica, nem dignifica os outros, os cidadãos comuns pelos quais deveria ter consideração. O que temos visto por aí é um pequeno circo ao ar livre, por entre os escombros do vento, as árvores e as tabuletas que continuam pacificamente derrubadas. Sendo certo que, independentemente da geografia, as campanhas eleitorais tendem a ser excessivamente burlescas, as da terra estão cada vez mais trágico-cómicas. Cómicas porque são arlequinescas; trágicas porque tudo isto é sério. Demasiado sério. O que guardarei desta campanha eleitoral. Um candidato que acha que Che Guevara reencarnou junto ao Mar do Sul da China. Uma candidata que acha bonito andar por aí, na televisão, a falar dos filhos dos outros. Uma polícia que gosta de demonstrar o quão musculada é. Um IACM que diz que respeita os tribunais, como se tivesse outra opção. Umas carrinhas podres com uns cartazes fraquinhos. Uma Comissão de Assuntos Eleitorais que precisa de amadurecer. Promessas dirigidas única e exclusivamente a determinados sectores profissionais, como se andássemos todos a baralhar cartas em casinos. O que guardarei desta campanha eleitoral. A conversa vaga e vã do costume. O que resultará destas eleições. Uma Assembleia Legislativa mais pobre, mais fraca, menos interessante. Ainda menos interessante. Não sabendo o que vai acontecer no próximo domingo, aposto um avo em como sairão vencedores aqueles que mais arroz distribuem, mais ajudam os necessitados e mais palmadinhas nas costas dão a velhinhos e crianças, como se política e beneficência se misturassem, como se melhor político fosse aquele que mais dinheiro tem. Este texto devia ser, em rigor, sobre as eleições do próximo domingo. Não é. É sobre aquilo que eu não gostaria que Macau passasse a ser. Ainda assim. Quando o próximo domingo chegar, vote, senhor eleitor, vote em consciência, coisa que falta à grande maioria dos candidatos. Mas vote, vote sempre. Ponha o carimbo no quadrado que a alma lhe indicar. Se não houver caminho para nenhum dos quadrados, vote na mesma, não escolha nenhum. Compreendo a indecisão, mas vá lá e vote, faça tudo como vem nos livros. 2. Há precisamente 20 anos, em Setembro de 1997, entrei numa redacção e nunca mais de lá saí, apesar de ter vindo para o outro lado do mundo e de ter conhecido algumas redacções, das quais também nunca mais saí. Muitas voltas dadas, este jornal. Casa de portas abertas onde cheguei uma e outra vez, sempre de maneiras diferentes. Que me ensinou o que é pensar nos outros, que me pôs a discutir, a perguntar, a perguntar muito, no desassossego constante sem o qual não é possível ser-se jornalista. Que me ensinou que tudo isto vale a pena, mesmo que amanhã já não tenha qualquer importância e estas páginas sirvam para embrulhar os copos em mais uma mudança de casa, para limpar vidros ou embrulhar peixe, funções todas elas nobres dos matutinos e vespertinos deste mundo. Não sei como vim aqui parar, a esta redacção e às outras todas. Aconteceu e nem sequer consigo precisar o momento. Talvez tenha acontecido por gostar das palavras, do acto da escrita, e depois a vida e as pessoas que se atravessaram nela fizeram o resto. Ensinaram-me o resto. E ensinaram-me que, nisto dos jornais e do jornalismo, não se é, nem se está pela metade. Quando as palavras nos custam, nos doem, mesmo que nos escorram pelos dedos às centenas, aos milhares, é porque só já somos metade de nós. E eu não sei ser só meia-eu. Este é o meu último texto. Obrigada aos que me ensinaram a ser em contramão.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO planeta Eaarth “If we don’t go back, we will go down. Whoever denies it has to go to the scientists and ask them. They speak very clearly, scientists are precise. Then they decide and history will judge those decisions. Man is a stupid and hard-headed being (a stern warning to climate change deniers).” Pope Francis [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s implicações políticas, económicas e sociais a longo prazo da desestabilização climática são preocupantes. O tempo indicará se o “Acordo de Paris” aprovado a 12 de Dezembro de 2015, e negociado durante a 21.ª sessão anual da “Conferência das Partes (COP 21 na sigla inglesa) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (CQNUAC)” e “11.ª sessão da Conferência das Partes”, enquanto, “Reunião das Partes no Protocolo de Quioto (CMP 11 na sigla inglesa)” é o início de um sério esforço global para evitar o pior que poderá acontecer ao planeta e à humanidade. O nosso clima e outros sistemas terrestres não alcançarão um novo equilíbrio durante muito tempo e a Terra pode tornar-se um planeta diferente, que o ambientalista americano Bill McKibben chama de “Eaarth”, com um clima mais quente e incerto. Os números são assustadores. A concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, em Março de 2016, passou o limite de 402 partes por milhão (ppm), o que significa um aumento de 42 por cento em relação ao nível pré-industrial. O total de outros gases de captura de calor medidos em unidades equivalentes de dióxido de carbono é talvez superior entre 50 a 70 ppm. A temperatura da Terra, como resultado, é maior em um grau Celsius, com talvez outro meio grau de aquecimento no percurso, devido ao atraso entre o que sai dos nossos tubos de escape e das chaminés e os efeitos climáticos resultantes das alterações climáticas que experimentamos. É possível ter sorte de cobrir os níveis de CO2 em 450 ppm, para manter o aquecimento de dois graus Celsius, e andar nos bicos dos pés com sucesso, à volta do retorno do ciclo de carbono, que poderia desencadear alterações catastróficas. Todavia, temos todos os motivos para agirmos com prudência, moralidade e instinto de sobrevivência para atingir e superar esses alvos o mais rápido possível. A humanidade está a aprender que o sistema climático é complexo e não-linear, isto é, imprevisível e totalmente implacável do erro humano e do atraso diário. Foram geradas mudanças muito grandes na atmosfera da Terra com uma duração medida em séculos e milénios, mas as nossas instituições, organizações, sistemas de governança, economias e pensamento estão voltados para o curto prazo, medido em anos e algumas décadas. O outro lado da equação está a capacidade tecnológica em rápido crescimento para impulsionar as economias americana e globais por uma combinação de maior eficiência energética e energia renovável em várias formas. Existem aqui boas razões para um optimismo sóbrio, mas o caminho pela frente não será fácil. A física da energia e as leis da termodinâmica são inamovíveis, assim como os factos obscuros do retorno energético do investimento e da densidade da energia. O base da energia do mundo moderno foi construída sobre combustíveis fósseis altamente concentrados, transportáveis e relativamente baratos. A energia renovável nas suas diversas formas é difusa, mais difícil de se concentrar, dispendiosa, com menor densidade e retorno no investimento. A demografia e o comportamento humano também agravam as dificuldades colocadas pela física. A população mundial era de sete mil e quinhentos milhões de pessoas em Abril de 2017, a caminho de um apogeu de talvez onze mil milhões de pessoas. As nossas expectativas materiais e necessidades de mobilidade são maiores do que nunca e continuam a crescer. Existem boas razões para acreditar que superamos a capacidade de suporte da Terra e contra este cenário, as possibilidades de conseguir travar as piores situações resultantes das alterações climáticas são de 50 por cento. Existe sempre a perspectiva de que nenhuma pessoa sã entrará em um carro com a possibilidade de ocorrer um acidente fatal. É de considerar que algumas das mudanças ocorrerão, para que o mundo sinta o que podem ser os perigosos anos do caos climático. O principal olhar não é sobre a transformação tecnológica, mas sobre as mudanças mais profundas de governança, economia, educação e outras que estão subjacentes à presente situação e sua solução. As mudanças de “hardware” e “software” são necessárias, mas nenhuma é suficiente e ambas devem ser recalibradas para um horizonte mais largo. Os nossos problemas são compostos, porque as alterações climáticas são apenas uma das várias ameaças inter-relacionadas ao nosso futuro comum. É de considerar que cada uma dessas ameaças é global, permanente e sintomática de falhas mais profundas, incorporadas nos nossos sistemas de governança, política, economia, ciências, dados demográficos e culturais, e que juntas representam uma crise do sistema que se prolongará por séculos. O Papa Francisco na sua Enciclica “Laudato Si”, afirma que não somos confrontados com crises separadas, mas sim com uma crise complexa que é social e ambiental. Será dificil acreditar que estamos destinados a destruir a Terra pelo fogo, calor, ou tecnologia usada de forma incontrolável e disruptiva. Mas, se existir um futuro mais feliz, o que certamente acontecerá, devemos agir com generosidade, prudência, energia e entender de forma inteligente que somos apenas uma parte de um sistema global inter-relacionado. Será necessário actuar de forma eficaz e justa, pelo que devemos ser governados por instituições democráticas responsáveis, transparentes e robustas; e para agir de forma sustentável, devemos viver e trabalhar dentro dos limites dos sistemas naturais a longo prazo, ou seja, devemos aprender e encontrar um modelo que inclua estruturas humanas de economia, governança, educação, tecnologia, sociedade, cultura e comportamentos incorporados na ecosfera do ar, terra, águas, outras espécies e ciclos biogeoquímicos complexos. O problema é que não somos muito bons na solução de problemas de sistemas que são grandes ou podem durar por um período largo. Primeiro negamos o problema e colocamos de lado; e, quando finalmente somos forçados a agir, tendemos a ignorar as causas estruturais subjacentes e mover pequenas peças marginais que muitas vezes têm efeitos imprevisíveis e contra-intuitivos. Por estes e outros motivos, as mudanças necessárias provavelmente começarão em bairros, cidades, estados, regiões e redes de cidadãos globais, devendo iniciar em uma escala capaz de ser gerida eficazmente e de forma compreensível por um processo de tentativa e erro, devendo paralelamente em catadupa mudar os sistemas maiores de governança e economia. É de aceitar que na actual conjuntura mudará tudo, como diz a jornalista, escritora e activista canadense, Naomi Klein, incluindo a nossa economia, hábitos de consumo, expectativas, governança, distribuição de riqueza e a prática da democracia. O cientista de ciências da computação e escritor inglês, James Martin, no seu livro “The Meaning of the 21st Century “, expressa a crença de que precisamos de outra revolução, que implemente a gestão desejável, leis, controlos, protocolos, metodologias e governança de meios. O economista ecológico americano, Herman Daly, acredita que as mudanças necessárias exigirão algo como o arrependimento e a conversão. É de acreditar que ambas e muito mais serão necessárias para navegar nos perigosos anos do futuro e uma sociedade sustentável, decente, equitativa e de densidade real não pode existir por muito tempo, como uma ilha em um sistema global governado por ameaças, violência e a perspectiva de guerra nuclear. Algum dia acontecerá algo de horrivelmente errado. Enquanto isso, o sistema de conflitos poderá sugar e destruir tudo, desperdiçar pessoas e recursos valiosos, secar a prática da democracia, corromper os serviços de comunicações e obscurecerá a nossa consciência acerca de melhores possibilidades. O hábito da violência predispõe-nos a pensar na natureza como algo meramente a ser conquistada. É de entender que não pode haver economia e harmonia lentas e justas entre humanos e sistemas naturais em uma sociedade governada pelo medo, ameaças, violência e guerra. Uma casa tão dividida não subsistirá. O movimento ambiental, desde o inicio, esteve ocupado a lutar contra a poluição, preservando o deserto e os rios férteis e que ofereciam paisagens deslumbrantes, travando todo o tipo de situações más ou prejudiciais. Era em grande medida um movimento agrário. As cidades eram principalmente negligenciadas ou tratadas como uma reflexão tardia. Todavia, o herói americano, David Crockett, sabia que um futuro humano decente seria essencialmente urbano. Mais de metade da população mundial vive em cidades e continua a crescer essa percentagem. As cidades geram 70 por cento das emissões de CO2 em todo o mundo, bem como a maioria de outros impactos ambientais e políticas de inovação, revelando o quanto as cidades são importantes. Onde a maioria dos outros viu apenas apenas o feio, crime, poluição e o alargamento desordenado, David Crockett e os primeiros pioneiros do urbanismo verde viram possibilidades e oportunidades. As cidades podem ser educativas com aquários, museus, centros naturais e universidades, e abranger uma vida cívica robusta que inclua espaços ao ar livre para debates públicos, leituras de poesia e arte. Os municipios podem promover a convivência autorizando cafés e arte de rua, teatros e locais de música, incluir jardins urbanos e terraços verdes, misturar o urbano com o rural, às vezes com um toque de região selvagem, introduzir pistas de bicicleta, trilhas para caminhadas e trânsito ferroviário ligeiro, que proporcione mobilidade sem poluição e congestionamento automóvel. As cidades podem ser limpas, verdes, seguras, educativas, emocionantes e excitantes incubadoras de conquistas e criatividade humanas e com políticas bem orientadas e incentivos adequados, podem reduzir uma grande parte as emissões de CO2 do mundo. Os primeiros urbanistas verdes que rapidamente entenderam a cultura de massas, deram-se conta que criar cidades verdes requer uma estrutura intelectual e política diferente. As cidades são as mais complicadas e complexas criações humanas. As suas patologias, incluindo o crime, poluição, expansão e congestionamento de trânsito têm muitas causas, entre elas a fragmentação das funções por zona e a falha em contar com a totalidade do organismo que deve ser alimentado, regado, servido de esgotos, informado, entretido, transportado e empregue, em particular, o seu enorme volume de resíduos aéreos sob forma de partículas, sólidos e lodo, que deve ser descartado, limpo e reciclado, permitindo o movimento de um grande número de pessoas e quantidades maciças de alimentos e bens diariamente. As cidades, dada toda a sua vitalidade e potencial dependem de cadeias de suprimentos longas e vulneráveis. Qualquer falha no sistema de suprimento de alimentos, água e electricidade causaria o caos em questão de horas e a falha total em apenas alguns dias. Existem outrass ameaças e muitas cidades costeiras enfrentam a certeza do aumento dos níveis das águas dos oceanos e furiosas e enormes tempestades como foi o caso do tufão Hato, que assolou o Sul da China, entre 23 e 24 de Agosto de 2017 e o furacão Irma as Caraíbas e a costa leste dos Estados Unidos, entre 6 e 10 de Setembro de 2017, como fruto das alterações climáticas e consequente aquecimento global, cuja tendência é de piorar, apesar da existência do “Acordo de Paris”, que entrou em vigor a 4 de Novembro de 2016, mas que muitos dos países signatários não cumprirão por falta de meios ou vontade política. As cidades continentais médias serão expostas a secas prolongadas e maiores e mais tempestades e tornados. As cidades também são alvos fáceis para os detentores de qualquer tipo de fraqueza e sempre serão vulneráveis a grupos de ódio, seitas religiosas, terroristas e perturbadoras, o que não é algo pequeno em um mundo onde o meio tecnológico para causar estragos letais tem sido amplamente disperso. As cidades são sistemas complexos e dispersos. O seu futuro depende em larga medida do nosso entendimento de como trabalha o complexo sistema, como torná-las mais resilientes em uma multitude de situações e como desenhar as novas políticas, leis e incentivos económicos para torná-las mais limpas, verdes e seguras. O estudo do comportamento de sistemas complexos tem uma longa história. As décadas do pós-guerra entre 1950 e 1980, foi a grande era para a teoria dos sistemas, pois tendo como fundamento os avanços nas comunicações, pesquisa operacional e cibernética da II Guerra Mundial vários cientistas escreveram persuasivamente sobre o poder da análise de sistemas. Os benefícios eram muitos. O pensamento sistémico permitia erceber os padrões que se conectam de formas diferentes e detectar a lógica contra-intuitiva e uma importante realidade enganosa, criando análises, planos e políticas mais coerentes e efectivas. Os benefícios reais da teoria dos sistemas, no entanto, foram evidentes em computadores e tecnologias de comunicação, que, por sua vez, foram baseados em avanços na teoria da informação e na cibernética durante a II Guerra Mundial. As actividades, em muitas latitudes com confiança caminharam sem perturbações. Apesar da lógica inerente ao pensamento sistémico, os governos, bem como as fundações, universidades e organizações sem fins lucrativos, ainda funcionam, principalmente, decompondo os problemas nas suas partes e trabalhando cada uma isoladamente. A separação de instituições, departamentos e organizações especializadas em energia, solos, alimentos, ar, água, vida selvagem, economia, finanças, regulamentos de construção, política urbana, tecnologia, saúde e transportes existe como se cada uma não estivesse relacionado às demais. Os resultados, não são surpreendentes, pois muitas das vezes são contraproducentes, excessivamente caros, arriscados, desastrosos e irónicos. A modelagem de sistemas, por exemplo, ajuda a entender as causas das mudanças climáticas rápidas, os casos de falhas sistémicas do governo, a formulação de políticas e a economia evitando um vazio no muito que poderá ser feito e os consequentes prejuízos. A teoria dos sistemas, em suma, ainda não teve o seu momento copernicano e as razões estão ironicamente incorporadas na revolução científica. O atraso no seu estudo e implementação só vêm causar graves prejuízos, em particular, na compreensão, prevenção e minimização dos graves fenómenos naturais resultantes das alterações climáticas.
Leocardo VozesMacau, último Hato [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ive a sorte de não ter estado por Macau por altura do tufão Hato, no último dia 23 de Agosto, mas segui atenciosamente as notícias que vinham chegando, principalmente através da partilha dos (muitos) amigos do território nas redes sociais. Este não foi um tufão qualquer, quer em termos de intensidade, quer no que diz respeito às consequências, que em ambos os casos foram devastadoras. É – ou seria – impensável que numa cidade como esta tenham havido vítimas mortais a lamentar, cortes prolongados de energia eléctrica e no fornecimento de água potável, lixo espalhado pelas ruas, e cidadãos que acabaram a lamentar perdas materiais significativas. Chegamos à conclusão que Macau é uma cidade com dinheiro, mas está longe de ser uma cidade rica. O Hato não veio mais do que evidenciar as carências, mostrar que afinal estava tudo preso por fios, e de regresso das abençoadas férias que me fizeram escapar a este suplício, encontrei não só placares caídos e palmeiras desnudas. Dei também com uma população desencantada, desiludida, mas quem sabe com uma lição aprendida. Dos habituais predadores da desgraça alheia, que não se inibiram em inflacionar os bens de primeira necessidade, notaram-se rasgos de solidariedade, de auto-ajuda e de comunhão, próprios da dor que sente uma família unida em situações de desespero e impotência. Vamos ficar a desejar que renasça agora das ruínas do Hato uma nova Macau, que se não ficar consciente de mais nada, que seja apenas das suas fragilidades. II Pouco mais de uma semana depois da tragédia, e com a população ainda mal recomposta, arrancou a campanha eleitoral para as eleições que vão eleger 14 deputados para a Assembleia Legislativa pela via directa, através do voto popular. São 14 lugares de um total de 33, o que ao contrário de outras juridisções dão a estas legislativas um ar de somenos importância. Mas nem por isso a luta é menos feroz, e assim temos 24 listas, entre as habituais e as novidades, algumas bem coloridas, a batalharem durante 15 dias para convencer o eleitorado a confiar-lhes um lugar no hemiciclo. Não têm faltado os habituais golpes baixos, truques de manga, rumores de conveniência, e este ano tivemos inclusivamente um conhecido deputado a “ser atacado por uma vaca” (imagem deliciosa esta, muito bem esgalhada, e parabéns ao autor). Não faltam ainda as habituações acusações da prática de irregularidades por parte de algumas listas, com a Comissão Eleitoral a voltar a não demonstrar um critério uniforme quanto à actuação em alguns casos, e como não podia deixar de ser, paira no ar o fantasma da corrupção eleitoral, vulgo “compra de votos”. Aqui não entendo a razão de não se informar melhor o eleitorado em relação a um aspecto: o voto é secreto, e não existe forma alguma de saber em quem se votou. Por incrível que pareça, há quem ainda acredite que existe uma forma, mesmo que indirecta, de se saber aquilo que se colocou dentro da urna. Para a semana cá estarei para fazer a análise dos resultados.
Tânia dos Santos SexanáliseGlossário do Sexo [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s palavras usadas para descrever a verdadeira diversidade sexual são mais que muitas. No dia-a-dia mundano estes significados podem passar-nos ao lado porque vivemos uma realidade tendencialmente binária, e perdemos a noção do pluralismo sexual. Isto é, estamos mais atentos à dinâmica feminina-masculina heterossexual e esquecemo-nos do que se encontra entre uma coisa e a outra. Não há nada como um lembrete da nomenclatura que pode ser estranha a muitos. Para além de que é útil percebermos que a normalidade tem de ser alargada para uma total liberdade sexual de ser e de estar. Ora vamos por partes, a biologia do sexo não tem nada que saber: existem vaginas, pénis e outros formatos anatómicos que não são nem uma coisa nem outra. Imaginem um espectro de biologias que desafiam o normal desenho do órgão sexual e dos cromossomas a ele associados. A perfeição do sexo é coisa que não existe, mas há agora um espaço designado por interssexualidade para anatomias menos típicas – menos prototípicas. Mas para além destes factores biológicos, que não ditam experiências subjectivas de género, encontramos combinações de biologias, identidades e de preferências que vestem constelações e vivências sexuais únicas e particulares a cada um de nós. Imaginem-me uma mulher transsexual lésbica, ou como andrógena bissexual. Também posso ter um género fluído e ser assexual, posso ser agénero e demissexual ou identificar-me como mulher e ser pansexual. Este vocabulário não nasceu por acaso, nasceu da necessidade de reconhecimento e denominação. Isto porque frequentemente as minorias sexuais carecem de redes sociais directas que ajudem a esta identificação – porque vivemos num mundo onde ‘sair do armário’ continua a não ser um processo simples. Aqui vai uma lista com alguns termos que ainda possam ser desconhecidos. Agénero (adj.) – alguém com pouca identificação com o sistema de género mais comuns, não se identifica com os conceitos feminino/masculino. Andrógeno (adj.) – alguém que expressa elementos tanto do género feminino como o masculino, também pode ser usado para quem possua anatomia feminina e masculina. Demissexual (adj.) – um indivíduo que normalmente não sente atracção sexual, à excepção quando se cria uma forte ligação emocional com alguém, normalmente numa relação romântica. Fluidez de género/sexual (adj.) – descreve um identidade que não é fixa, que é capaz de se transformar ao longo do tempo. Pansexual (adj.) – uma pessoa que sente atracção romântica e sexual com todas as identidades e expressões sexuais (cisgénero/transgénero/agénero). E pronto, este é apenas um pequeno auxiliador para dar o nome certo a algumas identidades, práticas e desejos (atenção que existem muitas mais!). A semântica é importante porque espelha a diversidade sexual: fá-la real. Porque afinal, às vezes sentimos coisas que não podemos explicar e as pessoas à nossa volta também falham em explicar-se. No que toca ao sexo, toda esta pluralidade semântica veio facilitar a liberdade de sermos o que quisermos – o importante é que ninguém se intrometa a achar o que quer que seja. Porque se há quem ache que existem palavras a mais, há quem continue a manifestar-se porque as palavras ainda são de menos, e que uma semântica de liberdade é um requisito para a liberdade do sexo.
David Chan Macau Visto de Hong KongCelebrar a morte [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]sta semana a área da Educação tem estado ao rubro em Hong Kong. Um dos casos que mais deu que falar foi a morte do filho de Christine Choi Yuk-lin, Sub-Secretária da Educação. Poon Hong-yan, de 25 anos, atirou-se da janela do seu apartamento, localizado no condomínio Sorrento, Austin Road, e foi encontrado inconsciente num terraço do 9º andar do Bloco 3. Foi transportado imediatamente de ambulância para o hospital, onde o óbito acabou por ser declarado. Por enquanto, os motivos do incidente permanecem desconhecidos. Posteriormente surgiram papéis afixados no campus da Universidade de Pedagogia (EdUHK), onde se podia ler “Parabéns ao filho de Choi Yuk-lin por ter ido para Ocidente”. “Ir para Ocidente” significa ter morrido. É uma tradução literal do cantonês. Os estudantes congratulavam-se, portanto, com a morte do filho de Choi Yuk-lin. É habitual existirem nas Universidades de Hong Kong espaços onde estudantes e trabalhadores podem afixar o que bem entenderem, conhecidos como Paredes da Democracia. Quem põe um papel nesta parede tem de se identificar, quer seja estudante quer seja trabalhador. As Paredes da Democracia são um símbolo da liberdade de expressão dentro das Universidades. Como se pode ler no website “HKFP”, Choi é um dos vice-presidentes da Federação dos Trabalhadores da Educação de Hong Kong (HKFEW sigla em inglês). É também Reitora do campus de Siu Sai Wan da Escola Secundária Fukien. As duas organizações têm fortes ligações a Pequim. Em Setembro de 2016 Choi candidatou-se pelo sector da Educação a um lugar no Conselho Legislativo, que perdeu para o candidato pró-democracia Ip Kin-yueneve. Choi obteve menos 30% dos votos que o seu opositor. Mas, apesar disso, Choi foi indigitada com Sub-Secretária da Educação em Julho de 2017, pelo que foi muito criticada. Ip declarou na altura, “O resultado das eleições demonstrou que as suas opiniões políticas não são apoiadas pela maioria do sector da Educação.” A indigitação para o cargo de Sub-Secretária da Educação será “um insulto aos eleitores.” É muito provavelmente devido a estes antecedentes, que apareceram nas Paredes da Democracia da EdUHK os papelinhos de “felicitações”. Mas infelizmente este não foi o único ataque a Choi. O website “hongkongfp.com” escrevia no passado dia 8, “Também foram postadas mensagens online de ataque à família: “Sabia que o seu filho estava deprimido. Mas em vez de lhe dedicar o seu tempo, aceitou uma promoção que ainda a ocupou mais, e deixou-o ao cuidado de uma empregada. Que modelo de pedagogia! Se não sabe ser mãe, como é que pode encarregar-se da educação dos filhos dos outros? É uma vergonha, devia demitir-se,” escreveu um comentador numa discussão do fórum LIHKG.” A EdUHK emitiu um comunicado a condenar estes comentários e apresentou as suas desculpas pelo pesar que possam ter causado a Choi. Podia ler-se: “A escola gostaria de reafirmar que, embora desfrutemos do direito à liberdade de expressão, deveremos também assumir uma atitude razoável na discussão de certas situações, e respeitar sempre os sentimentos dos outros. No caso presente, os actos ofensivos são vergonhosos – esperamos que quem afixou os cartazes faça alguma auto-crítica.” Os responsáveis da EdUHK declararam que estão a visionar as imagens das câmaras de vigilância e que, se necessário, serão tomadas medidas disciplinares. A Associação de Estudantes da EdUHK emitiu um comunicado a negar a responsabilidade por esses actos e enviou representantes para retirar os papéis. A Universidade não deve, por causa destes acontecimentos, coartar a liberdade de expressão dos estudantes. “Ainda não foi confirmado se foi um estudante a colocar os papéis na Parede. De qualquer maneira, é evidente que se um estudante for punido pelas autoridades académicas, devido a declarações moralmente controversas, fica aberta a porta ao medo da liberdade de expressão e à auto-censura, e instala-se o terror no campus,” Se foi efectivamente um estudante que afixou os papéis, que castigo lhe será aplicado? Vão suspender-lhe a bolsa de estudos? Para já ninguém sabe. No entanto, a resposta de Universidade de Harvard a este tipo de casos poderá servir de modelo para situações futuras. Soube-se através do site “kknewscc” que Harvard vai recusar a admissão de, pelo menos, 10 candidatos, porque criaram um grupo de chat intitulado “Harvard memes para miúdas burguesas com tusa”. Este grupo permite que os seus membros postem fotos e mensagens sexual e racialmente discriminatórias. A este respeito a Universidade de Harvard declarou: “A Universidade reserva-se o direito de cancelar a admissão de um candidato se a sua conduta for desonesta, imatura ou imoral.” Todos sabemos que o desrespeito à moralidade é diferente do desrespeito à Lei, porque o primeiro não implica uma pena e o segundo sim; sobretudo, se se tratar de Lei Criminal. Os papelinhos de “felicitações” são obviamente desumanos. Representam uma falta de respeito à moral estabelecida, mas não implicam sanções legais. No entanto, podemos revoltarmo-nos e dizer alto e bom som “Não” a este comportamento desumano.
João Luz VozesTrompete [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ou uma onda contínua de embalo cruel, quero encher todos os copos com whisky, os oceanos e sistemas de canalização com single malt e trazer substância caótica às vossas inócuas vidas. Sou olhos cerrados no sublime, capturados pela fantástica nota que destrói o mundo. Uma escala imprecisa de variados agudos e precoces graves, uns soltos, outros despidos, expondo melancolia ao sol, a caminhar para onde o vento escolher em direcção à arritmia de cósmicas tarolas. Sou um vibrato de dourados. Dou o remate entre saliva e vida, deslizo com o veludo do Chet e corto com as facas do Miles, sou trilogia oscilatória, um metal dourado erigido em direcção ao firmamento. Fixo as coisas no definitivo, transformo o momento numa fotografia de nota azul. Levo os exaltados Deans e Jacks a saltarem afirmativos num amplexo que embarca todo o tempo que os relógios são capazes de conter. Sou exaltação de metedrina, combustível para almas que rasgam continentes de costa a costa. Tenho carícias de cetim e vertigem de suor, aceito tudo o que o alcatrão me traz, sou o seu mais benevolente filho e amante. Vivo em sessões a preto e branco em caves do East Side, uma sépia alma, longos e sofridos dedos negros em mim a voar num indómito vento melódico. Sou o ultraje que matou Lee Morgan, demasiado ousado para chegar aos 30, estouvado e escandaloso maquinista do comboio azul. Que me perdoem os saxofones, mas vocês são a minha salada, o acompanhamento, os lençóis onde me espreguiço libidinosamente. Tenho estado calado, antecipação nervosa no bocal, à espera de uma abertura para trazer o abismo ao ritmo do contrabaixo. Sou o melhor que a vida tem para oferecer, autenticidade recheada de ingenuidade, sou uma prenda inesperada num dia triste. Bochechas em lua cheia, amendoins salgados e descida ritmada até à mais aguda nota abafada pela surdina numa noite tunisina. Como fui feliz e torcido naqueles duplos balões de ar, cercado por anticiclones de fumo e corações brutos, meu querido pai Dizzy, minha alada mãe Bird, percursores artísticos da luta por direitos civis dos negros. Miles nosso que estais no céu, santificado seja o vosso bop, tanto no Harlem como em Nova Orleães, venha a nós o beat e livrai-nos de Kenny G. Amen-doim. Salt Peanuts, errante e aos saltos, com ginga na anca, matreiro como uma sorridente hiena e mais ágil que qualquer metal de orquestra. A minha voz é o som que exclama: Sim! Que impele à fuga das triturantes maquinações do tédio, que arranca sorrisos demolidores a anjos sacanas. A minha campânula é a fonte de vida desbragada, a liberdade que esmaga a conformidade, a paisagem adequada à ferocidade dos amantes, um divino chafariz sonoro. Trago alucinações e corpos suados a caves escuras, um sentimento sacramental a tudo o que é transitório, o gosto do ferro na saliva. Sou o completo oposto da docilidade, a estrada que se abre para a viagem infinita sem qualquer vestígio de destino no horizonte. Venham os saxofones e o titubeante contrabaixo suspirar pelo Terror vindouro, pela estridência que vai da agonia ao êxtase num amplo ápice. Que a luz rompa a treva como nos primeiros clarões de Vermeer e na revolta das alvas ondas de Turner. Sou um veículo de dom, o pedaço de metal que faz a extensão do Homem até ao Cosmos, a transcendência numa escala de notas astrofísicas. Projecto delírio fulminante e o nascimento do cool, pedaços de Espanha e África trasladados através do Atlântico. Sou um milhão de olhos raiados de sangue, veias salientes, esgares gelados, a perdição da carne com um trio de pistões que nascem e se põem como o Astro. Transformo marginais em deuses, becos em catedrais, fome em abundância, silêncio em amor. Sou a Anunciação, as sete trompetas do Apocalipse que pintam tudo de preto depois de rompido o sétimo selo. Trago presságios de fim, declaro o óbito da humanidade, a tudo precedo e a tudo sobrevivo. Sou o céu e o inferno.
Carlos Morais José A outra face VozesEleições 2017 | Daqui ninguém sai vivo [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] campanha eleitoral já vai alta e sem grandes motivos de interesse. Afinal, a eleição de deputados directos pouco influencia a política real. Contudo, apesar de pouco estar em disputa, assistimos esta semana a canalhices políticas que não deixam de ser dignas de nota porque são ilustrativas do tipo de gente que se candidata à Assembleia Legislativa da RAEM. É o caso da deputada de Fujian Song Pek Kei. Senhora de discursos vazios ou interpelações fúteis na AL, durante o período em que já foi deputada, a senhora Song resolveu num debate com Pereira Coutinho invocar situações familiares menos agradáveis do deputado da Nova Esperança, inaugurando na política de Macau um capítulo ignóbil. E fê-lo com toda a clareza como se as palavras proferidas não fossem, para quem possui um mínimo de ética, lama que caiu em si própria. Julga a senhora Song que não tem telhados de vidro na sua casa e por isso atira verrinosas pedras a telhados alheios. Dela poder-se-ia dizer, por exemplo, que só existe porque serve o poderoso senhor Chan e porque o senhor Chan lhe deu a mão. Seria talvez injusto. Mas, pela sua actuação na AL, poder-se-ia, desta vez dizer-se com justiça e razão, que foi uma nulidade. Zero ideias originais, discursos vazios, interpelações frouxamente escritas, nenhum projecto de lei, atitude seguidista e em conformidade com os interesses instalados. Filha de emigrantes, se não emigrante ela mesma, não se coíbe nos ataques ao trabalhadores não residentes, os mesmos que fazem realmente funcionar esta cidade. Mas até aqui tudo bem. O disparate e mesmo a estupidez têm direito à expressão no segundo sistema. O pior é quando a senhora Song ultrapassa esses limites como fez esta semana, inaugurando um capítulo que, suponho, envergonhará a RAEM agora e no futuro. Trata-se de trazer a vida privada dos candidatos para a a discussão política. Será que a senhora Song quer que seja feita uma devassa à sua vida privada e, sobretudo, à dos seus companheiros de lista e de associação? Acharia bem que se referissem os parceiros de cada um, as suas tendências sexuais, ou mesmo o que membros da sua família andam a fazer? Será que a senhora Song tem a certeza de só ter na sua cozinha pratos completamente limpos? A verdade é que este tipo de comportamento é muito triste e anti-democrático. Joga com as emoções mais brutas dos cidadãos, apela à sua estupidez e intolerância. Se até aqui a política local tinha escapado a este tipo de ataques soezes, a partir de agora, graças à senhora Song, parece que vale tudo, incluindo usar a família, valor sagrado para a cultura chinesa. Mas o problema deste tipo de comportamento é que, na realidade, afasta as questões políticas de cima da mesa. Ao invocar o factor privado da vida de cada um, deixamos de dar relevância às acções concretas dos candidatos e às suas propostas, para cairmos no género de conversa que se tem no café ou no mercado. Baixa e incapaz de trazer algo de bom. A senhora Song devia pedir desculpa a Pereira Coutinho e ao eleitorado em geral por ter inaugurado a estratégia do golpe baixo na política da RAEM. E se não percebeu o que estava a fazer, a perigosidade deste caminho, então ainda é pior porque com isso demonstra que não tem inteligência ou bom senso para o lugar que pretende ocupar. Ao continuarmos por este caminho, que parece agora ser irresistível, em breve teremos devassas pessoais sobre todos os candidatos, incluindo os que pertencem ao grupo da senhora Song. E olhem, no limite, a continuarmos na senda inaugurada pela senhora Song, daqui ninguém sai vivo.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesA marcha dos voluntários [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ecentemente, o jornal China’s People’s Daily publicou uma notícia sobre a nova lei que rege as transmissões do hino nacional chinês, em vigor desde dia 1 deste mês. O jornal avança que a lei pretende assegurar que o hino só se faça ouvir em situações adequadas. A lei proíbe que o hino seja tocado em eventos privados, como funerais, ou que sirva de música de fundo em espaços públicos. Proíbe ainda que o hino seja associado a qualquer tipo de publicidade. Sempre que o hino seja transmitido todos os presentes deverão permanecer de pé em atitude “solene”. A lei também contempla o ensino e a divulgação do cântico. Fica estipulado que deve integrar o programa escolar do ensino primário e secundário. As pessoas são incentivadas a cantá-lo nas ocasiões próprias para “expressar o seu patriotismo”. No continente, os prevaricadores podem ser detidos até 15 dias. A violação a este regulamento pode colocar o faltoso sob a alçada de outras leis. Wu Zeng, director do gabinete jurídico do Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo, declarou, “É uma regra básica que todos os cidadãos terão de respeitar e compreender. Todos têm de saber cantar o hino.” “A Marcha dos Voluntários” é o hino nacional da República Popular da China. O hino foi tocado em Hong Kong por ocasião da passagem de soberania da Grã-Bretanha para a China, em 1997 e, em Macau, quando Portugal devolveu a soberania do território em 1999. Em Hong Kong o hino foi adoptado ao abrigo do Anexo III da Lei Básica da cidade, com efeito a partir de 1 de Julho de 1997. Em Macau, também ao abrigo do Anexo III da Lei Básica local, com efeito a partir de 20 de Dezembro de 1999. Em termos da regulação do uso do hino, a lei de Macau é superior à de Hong Kong. A Lei nº 5 / 1999, que entrou em vigor a 1999-12-20, foca-se nesse aspecto. O Artigo 7 estipula que o hino deve sempre ser tocado de acordo com a pauta e, no Apêndice 4, proíbe-se qualquer alteração à letra. O Artigo 9 adianta que qualquer alteração intencional da letra ou da música representa uma violação à lei, e que o faltoso fica sujeito a uma pena de prisão até três anos ou a uma taxa diária ao longo de 360 dias. Embora na RAEM existam duas línguas oficiais, o chinês e o português, a letra do hino só está imprensa em chinês. Em Hong Kong não existe regulação sobre a transmissão do hino nacional. No entanto, durante certas cerimónias oficiais todas as escolas do governo são obrigadas a tocar e cantar o hino e a hastear a bandeira. É o caso do Dia Nacional da China (1 de Outubro) e do Dia Comemorativo do Estabelecimento da RAEHK (1 Julho). Nas Universidades, durante as cerimónias de graduação o hino é sempre ouvido. A implementação da Lei do Hino Nacional teve grande eco em Hong Kong. A este propósito pudemos ler no “South China Morning Post” no passado dia 30 de Agosto, “O noticiário de Pequim divulgava segunda-feira que o Comité Permanente do CNP vai propor em Outubro, durante a reunião bianual, que esta legislação seja inserida no Anexo III da Lei Básica.” De acordo com o princípio “um país, dois sistemas” a lei nacional chinesa só pode ser extensível à RAEHK se for inserida no Anexo III da Lei Básica de Hong Kong. Algumas leis chinesas foram inseridas no Anexo III, e entraram em vigor a 1 de Julho de 1997, data da transferência de soberania. Foi o caso da legislação referente à bandeira nacional, ao emblema nacional, ao exército chinês e às regulações dos privilégios consulares e imunidade. Se a “Lei do Hino Nacional” for incluída no Anexo III, Hong Kong passará a ter legislação nesta matéria. Funcionará exactamente como o “Regulamento de Hong Kong sobre a Bandeira e o Emblema Nacionais”. O propósito deste Regulamento é a aplicação em Hong Kong das Leis Chinesas referentes à Bandeira e ao Emblema Nacionais. “É obrigação e responsabilidade e do Governo da RAEHK a protecção da dignidade do hino nacional e, na verdade, de todos os cidadãos chineses,” declarou a Chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, que não acredita que neste assunto haja qualquer margem para susceptilidades. Segundo alguns legisladores citados pelo South China Morning Post, a lei contém alguma linguagem pouco clara; por exemplo, o que é que constitui exactamente uma quebra de solenidade? A propósito o repórter, Wu Zeng colocou a seguinte questão, “É ilegal tocar a Marcha dos Voluntários no telemóvel?” A Chefe do Executivo respondeu que não sabia porque nunca tinha lidado com um caso semelhante. É necessário proteger a dignidade do hino nacional e, por isso, a Lei do Hino Nacional deve ser incluída no Anexo III das duas Leis Básicas. Mas, ao contrário de Macau, Hong Kong não tem legislação própria sobre a matéria. O Governo da RAEHK terá de lidar com as questões atrás mencionadas com clareza e com cautela. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Blog: https://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
João Luz VozesCamilo [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om passos de chumbo, esforçados, San Ma Lo acima, persigo a custo o elusivo dragão, fustigado pela agonia da carência. O meu corpo tem-se evaporado com o tempo como uma nuvem narcótica em direcção à dissolvência, sou a rarefacção de barbas negras mas arrasto, determinado, todo peso do universo nos pés. Procuro outro santuário, enfastiado pelos dias fechado em casa. Dirijo-me para a Hospedaria On Iok Iun, onde um familiar cachimbo me retornará à comatosa paz que anseio, às pupilas minguantes e aos sonhos indefinidos. Resfastelo-me na acolhedora esteira de Tánatos, onde morrerei mais um pouco, por mais um dia. Consolo-me neste exílio físico de não me sentir presente, de ser todo ausência, de me tornar matéria sublime, etérea, fora desta terra e deste cárcere de carne que me encerra. Sinto um indomável desejo de sucumbir e ceder ao doce abismo de um lugar onírico. Por aqui me quedo, mergulhado em fantasia, esquecido do enfado das minudências tacanhas de uma cidade que desgasta mais o espírito que todos os cachimbos do Oriente. Macau é o meu túmulo, soube-o desde que atraquei. Fui desde o berço desterrado, perfilhado tardiamente, desde sempre consumido tanto por febril paixão como por profunda misantropia. Fruto do adultério, nunca me senti amado, desde que fui arrancado do útero. Joguei-me ao mar com o coração nas mãos, pronto para o alcançar o longínquo destino oriental, sedento de esquecimento, teria ido para a Lua se me fosse permitido. Cheguei a esta terra, cultivei amizades vitalícias e escrevi, quase em segredo, as paisagens do meu banimento, os hinos da minha melancolia. Deixei-me ferir pela cruel boçalidade saloia e bebi, consciente, o veneno oferecido por conterrâneos que sempre me olharam como se fosse o mais extravagante dos estrangeiros. Rapidamente deixei-me seduzir pela musicalidade tonal do mandarim, pela lisura dos lacados com que a Europa saliva desde os tempos do emproado Rei Sol, pela profusão de dourados e vermelhos. Rendi-me aos recantos abrigados da mais míope diáspora e abracei o inteiro continente chinês que se espraiava para mim depois das Portas do Cerco. Coleccionei arte, mulheres e manhãs de agonia, encontrei familiaridade no exotismo. A Macau que conheci era um pequeno pedaço de China onde reinava um conservadorismo de aldeia isolada, era como viver numa sacristia a céu aberto onde se espalhavam condenações e penitências generosamente a quem ousasse ser diferente. Macau coleccionava pequenas pessoas carregando enormes fardos morais cimentados pelo dinheiro, tornando em coros os cochichos de maledicência e acefalia analfabética. Felizmente fiz amigos que duraram a vida inteira, que floriram como o lótus deste lamacento canteiro civilizacional. Empreguei o labor que o devaneio me permitiu às minhas obrigações profissionais, emaranhei-me em burocracia enquanto a possessão estética me deu descanso. Mas esses labores apenas me trouxeram agastamento e uma imensa vontade de tudo largar. Hoje vivo na memória de poucos, como um vulto cuja sombra se projecta gigantesca no exterior e minúscula na cidade madrasta que faz por me esquecer. Tentei resistir até onde pude, para finalmente tudo largar, sempre com a imagem dela a trazer-me mares salgados aos olhos. Ana, minha perdição, meu eterno amor, minha rosa bravia florida fora da estação. Abismo de mim, vento agreste nas velas do batel do meu exílio, minha Cleópatra, minha Czarina, minha A-Má, minha Rainha. Passo dias inteiros a tentar reconstruir a tua voz. Por muitas concubinas que me tenham passado pelos lençóis, serás sempre a mais doce das negações, a ausência pela qual queimo sacramental sândalo no incensador da minha devoção. Arderei para sempre por ti. Sou teu antes de ser o quer que seja, é a ti que anseio retornar, a minha dor de ti é a única pátria que conheci.
Fa Seong A Canhota VozesQuem mais sabe mais viola a lei [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]rimeiro eram três, depois foram seis, tendo surgido mais dois. Eles são agentes da polícia que foram detidos por, alegadamente, ter recebido subornos para ajudarem pessoas a entrar em Macau de forma ilegal. Estas pessoas não podiam, segundo o que foi noticiado, entrar no território. Sabemos que os polícias pertencem, ou deveriam pertencer, ao grupo de pessoas que impede a ocorrência de crimes. Contudo, há cada vez mais casos de agentes que deixam de ter o papel de justiceiros para passarem a ser ovelhas negras na sociedade. Os primeiros agentes que foram detidos detinham cargos importantes no seio das forças de segurança, mas o caso mais recente aponta que o cabecilha do grupo terá apenas 29 anos. Ficamos com a ideia de que há muitos agentes envolvidos e que casos como este continuam a acontecer por aí, sem que tenham sido descobertos. Os agentes que são suspeitos de ilegalidades deveriam saber que os actos de que são acusados violam a lei e que os poderia levar a ser descobertos e a perderem os seus postos de trabalho. Ainda assim, optaram por esse caminho e o dinheiro é a única razão para que estes casos tenham acontecido. As notícias dizem que os suspeitos terão recebido entre 10 a 30 mil dólares de Hong Kong por cada entrada ilegal a que deram apoio. Quem não gosta de dinheiro? Poucos são aqueles que gostam de perder a oportunidade de ganhar mais dinheiro e nem os agentes da autoridade escapam. Foi assim que surgiu o esquema ilegal que junta no mesmo saco criminosos e polícias. Há inúmeras formas de ganhar dinheiro, porque optaram pela via do crime? Todos são um pouco gananciosos, mas isso não significa que, por dinheiro, toda a gente vai começar a cometer crimes e a pôr em causa a segurança da sociedade. Os polícias deveriam merecer a máxima confiança da população. Quando o primeiro caso foi divulgado, as autoridades afirmaram “lamentar” o sucedido, disseram que se “sentem tristes” e que vão “preencher as lacunas” registadas. As reacções sobre os casos seguintes não variaram muito e não convenceram muito o público. Estes casos lançam alertas sobre a segurança nas fronteiras e dúvidas sobre a possibilidade de existirem problemas de gestão na segurança pública. Mesmo que as autoridades digam que vão rever e aperfeiçoar os mecanismos, os seus trabalhos são apenas letras num papel: nada se vê na prática. Apesar do secretário da tutela, Wong Sio Chak, defender a melhoria da imagem das forças de segurança e da eficácia na execução da lei, alguns dos seus subordinados continuam a levar a cabo este tipo de acções ilegais. Isso só mostra que os objectivos de Wong Sio Chak estão longe de concretizar.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesHato, o devastador [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Tufão Hato, conhecido nas Filipinas como tempestade tropical Isang, atingiu recentemente o sul da China com grande violência. Chegou à costa quarta-feira 23 e, de repente, Macau e Hong Kong foram tomadas de assalto pela fúria dos ventos e por chuvas diluvianas. Até ao momento há a lamentar 10 mortos e mais de 200 feridos. O Tufão Hato foi a maior tempestade dos últimos 53 anos a atingir Macau. O impacto na cidade foi tremendo. Nas zonas inundadas as águas encapelavam-se, via-se andaimes caídos e todo o tipo de destruição. As ruas ficaram atapetadas de lixo. A passagem do Hato interrompeu o fornecimento de electricidade, água, rede telefónica, rádio e internet. Dia 23 estes serviços foram sendo interrompidos um a um. O corte de electricidade, rádio e internet impediu a divulgação imediata dos acontecimentos. A maioria dos habitantes deixou de poder estar a par do desenvolvimento da situação. Depois da passagem do Hato, houve quem tivesse comentado que a vida em Macau tinha recuado aos anos 70. Sem electricidade nem água, restaurantes e casinos tiveram de fechar. Ao longo dos passeios formavam-se filas enormes de pessoas com baldes na mão para recolherem alguma água potável. Só existe uma palavra para classificar tudo isto: terrível. O Chefe do Executivo, Fernando Chui Sai On, acompanhado de alguns secretários, deu uma conferência de imprensa no dia 24. Após a observação de um minuto de silêncio, o Chefe do Executivo declarou, “Durante estes dois dias, enfrentámos juntos um teste extremamente difícil. O Hato foi o tufão de maior intensidade dos últimos 53 anos e provocou danos tremendos em Macau.” “Admito que a forma como lidámos com este desastre teve algumas falhas. Estas respostas ainda precisam de ser melhoradas. Estou aqui em representação do Governo de Macau e, nessa qualidade, apresento as minhas desculpas aos residentes,”. De seguida comunicou a demissão do chefe dos Serviços de Meteorologia. Parece-nos que esta demissão merece alguma análise. Não há dúvida que o Hato foi o tufão mais forte dos últimos 53 anos, mas a sua intensidade não parece justificar por si só o estado deplorável em que ficou Macau. Há quem ache que o relatório sobre as condições climatéricas e o tufão não foi feito correcta nem atempadamente. Às 9.00h foi hasteado o sinal 8, e às 11.30 o sinal 10. Esta alteração deu-se apenas no espaço de duas horas e meia. É razoável que perguntemos. Será que o Hato sofreu alterações tão rápidas que era impossível aos serviços de meteorologia tê-las previsto? Em Hong Kong, às 5.20 já tinha sido hasteado o sinal 8 e já tinha sido avançado que mais tarde seria hasteado o sinal 10. É clara a diferença. E é natural que incomode algumas pessoas. O timing do alerta pode ter sido um problema, mas não foi o único. A interrupção do fornecimento de água e electricidade foi um dos mais graves, já que interfere com o dia a dia dos residentes. E já se sabe que quando as necessidades básicas são afectadas começam os burburinhos. A falta de água, por exemplo, proporciona o aparecimento de doenças infecciosas. É vital que o fornecimento de água e electricidade estejam sempre garantidos. Olhemos para Hong Kong, que sofreu os efeitos da mesma tempestade, e nunca deixou de ter água e electricidade. Parece ter chegado a altura de renovar algumas infra-estruturas em Macau. As questões estruturais são um problema, mas as questões funcionais também o são. Enquanto o Hato atacava Macau, o Facebook mostrou restaurantes a vender caixinhas com almoços a 100 patacas cada, hotéis a pedirem 10.000 patacas por noite, e algumas lojas a venderem garrafas de água a 50 patacas. Estes comportamentos fazem lembrar os assaltos a uma casa a arder. É usar o infortúnio alheio para fazer negócio. Felizmente também existem bons samaritanos que, de forma voluntária, têm limpado o lixo, ajudado a cuidar dos mais idosos, etc. Algumas empresas também têm ajudado a transportar água e outros bens de primeira necessidade de Hong Kong para Macau. Os voluntários mostram que têm bom coração, e as empresas que honram a sua responsabilidade social. São sinais positivos para Macau. A pedido do Chefe do Executivo, o Exército Popular de Libertação participou nas operações de limpeza e de desobstrução, a seguir à passagem do tufão. Na televisão vimo-los remover lixo sem máscaras e sem a ajuda de qualquer instrumento. Aliás, as emanações do lixo podem ter sido a causa do adoecimento de quatro soldados. A atitude destes soldados merece todo o nosso respeito e deveria receber também o reconhecimento do Governo. O rendimento per capita em Macau é 18.000 patacas, o mais elevado de toda a Ásia. A distribuição anual de 9.000 patacas por residente também causa inveja a muita gente. Também há quem se queixe por o valor do cartão de identidade em Macau ser superior ao de Hong Kong. No entanto, depois do Hato, muitos dos problemas de Macau vieram ao de cima. As infra-estruturas precisam de ser melhoradas com urgência. O comunicado do Governo a desincentivar as deslocações a Macau de 25 a 31 de Agosto pode pôr em causa o epíteto de “centro mundial de turismo e lazer”. Talvez esteja na altura de enfrentarmos todos os nossos problemas e de tentar resolvê-los. Escrevo este artigo antes de dia 27, altura em que está prevista a vinda de outro tufão. Espero sinceramente que todos fiquem a salvo e que não se venham a registar mais danos. Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Carlos Morais José Editorial VozesA próxima vez [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]oderíamos estar a falar de um governo paternalista, na boa tradição confuciana, em que os pais/Estado impulsionam os filhos/cidadãos no caminho de uma vida excelente. Mas não. Aqui o paternalismo traduz-se em dinheiro, como o pai que para não aturar os problemas do filho lhe dá do patacame para ele “ir ao cinema”. Ora isso significa que o Estado se esquiva a uma deriva educacional, preventiva, solidária, socialmente sustentável, para realizar o sonho de qualquer fanático ultraliberal: não intervir e ainda por cima dar dinheiro. Faz bem, faz mal? Ou antes pelo contrário? Perdoem-me os leitores, que isto não tem piada nenhuma, nem rabo de tufão por onde se lhe pegue. Uma catástrofe é uma coisa séria, que tem efeitos inesperados nos indivíduos e nas massas. Consideremos os aspectos positivos: uma catástrofe une as pessoas e motiva a acção. Nestes momentos, um governo precisa apenas de liderar, orientar, planificar, supervisionar, para que os esforços não se dupliquem, para maximizar a eficácia dos salvamentos e a celeridade das reconstruções. Um governo deve assegurar a continuidade dos serviços públicos com a rapidez que a sua importância justifica. Água, electricidade, telefones, internet, televisão, rádio, não podem permanecer inoperantes mais do que um breve espaço de tempo. E este é um trabalho do governo, junto com as concessionárias. Um governo tem de garantir a ordem e a normalidade nas ruas: não pode, por exemplo, assobiar para o lado quando táxis, mercearias ou hotéis se resolvem aproveitar da situação, demonstrando uma abjecta falta de solidariedade. Um executivo “normal” não faz ouvidos moucos a estas situações, não as ignora: protege o cidadão. No dia seguinte, um governo deve minimizar os efeitos perturbadores da catástrofes, ou seja, efectuar com rapidez a remoção de árvores caídas e de lixos diversos, reerguer as estruturas tombadas, garantir a circulação nas estradas e nas ruas, numa palavra, assegurar o regresso da ordem com a maior brevidade possível. Um governo que se defronta com uma situação deste tipo deita a mão a todos os recursos possíveis e a outros imaginários, perguntando-se, por exemplo, o que faz o destacamento do Exército da RPC no seu quartel e porque razão os garbosos soldados não aparecem a dar uma mãozinha. Como todos sabemos o governo da RAEM tem apenas 17 anos de experiência — em que, por exemplo, o actual Chefe do Executivo foi parte a tempo inteiro — e por isso não lhe podemos exigir que cumpra a sua responsabilidade com eficácia e determinação. Levantam-se dúvidas. Não há tempo para encomendar estudos? A população rosna, os deputados agitam-se. Há uma crise no Gabinete de Ligação. O que fazer? Investir a sério na prevenção e na educação a propósito de tufões? Fazer cumprir a lei no caso da qualidade das janelas? Criar um serviço de meteorologia “normal”, que consiga içar os sinais atempadamente? Avisar seriamente população e turistas da seriedade do evento, evitando-se com isso o deslizar de pessoas nos braços do vento? Punir severamente todos os que abusaram ou pretenderam abusar da situação? Não. Isso é tudo muito complicado, complexo, intrincado, polémico. O melhor é… Olha, dá-se dinheiro. O que se viu durante este tufão foi dramático, desgraçadamente dramático. Havia gente escondida em esquinas, acocorada em portas, no momento em que a força do vento atingia o seu apogeu. Parece que ninguém lhes disse que vinha ali um momento perigoso para as suas vidas. Não tinham cara de aventureiros em busca de emoções fortes. Estavam transidas de medo, molhadas, algumas eram arrastadas pelo vento. Ninguém os avisou e retirou das ruas? Não existe um veículo preparado para esse efeito? A água alagou “normalmente” o Porto Interior. Até quando temos de viver com esta “normalidade”? Mas a coisa não é fácil, já nos disseram. Possível, mas complexo. São obras complicadas, percebe. E, provavelmente, o dinheiro é necessário para qualquer outra coisa. Resta-nos exprimir a nossa melhor compreensão. Na China Antiga, rei que não entendia a Natureza nem sabia cuidar dos seus cidadãos em necessidade, corria o risco de perder o Mandato do Céu. O governo de Macau não corre esse risco: o Céu está confuso e o dinheiro tudo lava. Menos as vidas perdidas e as que se vão perder da próxima vez.
David Chan Macau Visto de Hong KongDeliberações online [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s jornais chineses anunciaram no passado dia 18 a criação de um Tribunal de Primeira Instância Online, que irá deliberar apenas sobre crimes e infracções relacionadas com a utilização da internet. O tribunal está sediado em Hang Zhou, China. Esta região concentra a grande maioria das disputas nesta área, já que a empresa Alibaba Group tem sede em Hang Zhou. A notícia não avança pormenores sobre o funcionamento do Tribunal, indica apenas que irá criar maior eficácia na adjudicação, mediação e na clarificação de leis, de casos, etc. Na verdade, a criação de um rastreamento legal das transacções online não é novidade. Já a 19 de Agosto de 2009 o Tribunal de Segunda Instância de Xangai tinha autorizado a possibilidade de serem feita adjudicações online. O site deste Tribunal também permite submeter documentos legais e pesquisar a legislação que regula as mediações via internet. No entanto a diferença entre um Tribunal dedicado em exclusivo a esta área e um site é significativa. De qualquer forma, o Tribunal Online, e os julgamentos realizados via internet, serão sem duvida uma novidade absoluta a nível mundial. Implicará uma combinação da alta tecnologia com os procedimentos legais. De futuro é normal de se adoptem novos procedimentos para os julgamentos online. Estas questões merecem algum desenvolvimento. Recentemente ouviu-se rumores sobre a existência de um julgamento na China realizado via Wechat. Mas é apenas um rumor, não existem provas que o sustentem. Agora voltemos ao Tribunal Online. Como já mencionámos, os julgamentos deste Tribunal são efectuados via internet, e vai ser o primeiro Tribunal chinês a ocupar-se em exclusivo de casos relacionados com transacções online. De acordo com as notícias, em caso de litígios nesta área é necessário recorrer ao Tribunal de Segunda Instância de Hang Zhou. O Tribunal Online não altera os termos originais do processo de recurso. No entanto, será preferível que venham a ser esclarecidas algumas questões relacionadas com este novo Tribunal. Por exemplo, se alguém fotocopiar um texto da autoria de outrem, o imprimir e o puser à venda na internet, mas também, na versão física, numa loja, será que vamos estar perante dois casos distintos, que devem ser apresentados a dois Tribunais? E isto porque o Tribunal Online se ocupa apenas de infracções cometidas online, desta forma, a venda do material na loja já não cairia sob a sua alçada. Mas, por razões de conveniência, poderão estas duas situações ser tratadas como um caso único, e ser entregues apenas a um Tribunal? Outra questão a analisar é a qualificação do juiz do Tribunal Online. Pela natureza dos casos que lhe são entregues, é natural que as provas apresentadas a este Tribunal sejam todas electrónicas. Daí que, o domínio que o juiz tenha desta área seja relevante. Mas qual será exactamente a formação académica exigida para o efeito? Seguindo o mesmo raciocínio, os advogados de defesa e de acusação também deverão ser “fluentes” em plataformas informáticas, sob o risco de não conseguirem lidar bem com este modelo, e assim, não poderem apresentar os seus casos convenientemente neste Tribunal. Por fim, apontarei outra questão que me parece importante. Sem poder olhar directamente os rostos e ouvir as vozes das testemunhas, poderá o juiz compreender da mesma forma se estão a falar verdade? Neste quadro, a mediação passará a ter um papel muito importante, porque independentemente das declarações falsas ou verdadeiras, o que vai valer para todos é o resultado final da mediação. Caso contrário, este resultado não pode ser implementado. Não há dúvida que a criação do Tribunal Online pode ter mérito em termos de eficácia e de eficiência. Vai poupar o tempo das deslocações às partes envolvidas e dispensar grande parte da logística dos julgamentos. Contudo, as questões relacionadas com a jurisdição deste Tribunal e com o domínio da área informática por parte do juiz e dos advogados devem ser levantadas. Devido às limitações deste processo, a mediação deverá prevalecer sobre a litigação nos julgamentos online. Para já, podemos afirmar que a criação de um Tribunal e de julgamentos online parece ser uma boa ideia, e que pode vir a ser uma nova tendência na área da justiça. No entanto deveremos estar atentos a algumas questões de ordem prática.
João Luz VozesTurista Chinês [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ensam que não vejo o vosso ar de enfado? Os suspiros que se levantam do fundo da vossa altivez? O carregado desdém com que me olham? Esta também é a minha terra, ou pensam que esta bolha está isolada do mundo, a flutuar acima do planeta. Macau é o último calhau na enorme montanha chinesa, o parque temático plantado para o meu divertimento no delta da pérola. Entretenham-me na minha curta estadia, tragam-me iguarias, quimeras e mulheres. Será demais pedir um pouco de humildade hospitaleira no grande centro de turismo e lazer? Grande! Como o ego incha neste quarteirão minúsculo de território. Reconheçam-me por um instante. Eu sou o fundo das vossas raízes, aquele que vos sustenta e agarra ao solo, o pão na vossa mesa. Ando pelas ruas vagarosamente, liderando pelotões de turistas conduzidos pela autoridade de uma bandeira erguida. Sou todos vós há duas gerações atrás, a confirmação desconfortável de quem são, revelação e memória, génese e ser. Em cada espasmo cosmopolita vejo uma barriga a querer saltar da vestimenta para saudar o sol com afagos e carícias. A minha pança é a proa que rasga caminho, o Sol no centro do meu sistema planetário de entranhas a irradiar esperança, é prosperidade e sorte ao jeito de Buda. Como se tivesse um amuleto dentro de mim, uma jóia no meu cerne. Também as minhas secreções representam o que tenho para partilhar de mais íntimo. Ostento produção de muco sem me importar, ao contrário de ti, Macau, que escondes a tua natureza em gestos medidos, em polidez sobranceira que não engana ninguém, nem a ti própria. Podes mascarar a barbárie que te funda à vontade, eu sei, conheço-a, encarno-a, consigo ver nitidamente o ponto onde a crueza se disfarça de nobreza. Nos vossos passos lestos e elegantes prevejo a violência de um escarro que se quer impor aos trejeitos da teatral superioridade. Sou matéria combustível nesta fogueira de vaidades, ofereço-vos excedente orçamental, alicerces para uma vida desafogada, sou a fertilidade na vossa carteira, Bona Dea, Ísis e Vénus. Este simulacro de cidade é alimentado por mim, pela perseguição que faço à ilusão da riqueza, pela esperança que despejo em mesas de fatalismo. Grito para que me ouçam em bom som, para que o volume assertivo se entranhe na vossa charada identitária. Marcho indolente pelas estreitas ruas de Macau como um soldado do exército Koi Kei. A minha mulher veste-se, aos 49 anos, com rendas cor-de-rosa e uma omnipresente Hello Kitty. Não se deixem enganar pela infantilidade da vestimenta, pois ela é um panzer de carne e nervo, uma fera na protecção do núcleo familiar. Ainda não tenho o gosto consumista limado pelo ocidente na vossa escala, mas esperem um pouco que eu chego lá porque quero chegar lá. Sou o representante de uma das grandes civilizações ancestrais e do país mais populoso do mundo, sou lenda e futuro avassalador, sou a conquista ponderada ao longo de séculos de paciência. Mas agora quero o meu rolex e o meu Jaguar, mereço-os inteiramente. Sou descendente de sucessivos impérios, o filho da derradeira revolução cultural, o último mandarim, a pluralidade que engole o mundo. Carrego às costas a determinação de um povo que anseia sair das trevas directamente para o trono, sou a conquista vindoura alicerçada em números, a maré alta que irá engolir o globo. Sou o canteiro onde o ténue lótus está plantado, forneço a água e os nutrientes enlameados que o sustentam. Sou a vossa vida e poderia ser a vossa morte, se para aí estivesse virado. Macau é a pequena e indefesa criança que embalo nos braços e à qual nada nego, que gatinha a meus pés, sempre sedenta a erigir birras exigentes. Sossega no meu regaço, Macau. Mas não me menosprezes, não te aches superior, não retires mais ilações das minhas vestes e maneiras sociais, não te percas demasiado na quimérica miragem do segundo sistema que te concedemos com misericórdia, por magnificência. Vem a mim e sente o terno abraço que te dou, sou o teu igual, farinha do mesmo saco, reencarnação cultural, o teu reflexo e tu és uma extensão de mim.
Leocardo VozesUm gesto é (quase) tudo [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Instituto Politécnico de Macau estabeleceu há alguns anos com a sua congénere de Leiria, Portugal, um protocolo de intercâmbio de estudantes de tradução de Português e Mandarim. Assim o curso de quatro anos implicava que os alunos de Macau fizessem o primeiro e o último no território, e os outros dois em Portugal, e vice-versa para os estudantes portugueses. Destes últimos há uma curiosidade interessante: chegados ao território com algumas noções de Mandarim, alguns deles abordavam a população local com um sonoro e caprichado “nin hao”, o que apesar de ser recebido com alguma estranheza, os residentes de Macau davam o devido desconto por se tratar de um estrangeiro. Quando cheguei a Macau, vai lá vão 24 anos, conseguia ser ainda mais ingénuo, pois assumia que se tratando de um território na altura sob administração portuguesa, a língua de Camões fosse falada pela maioria da população. Não foi presunção nem arrogância, mas o pouco que procurei saber antes de chegar, e sem conhecer mais ninguém que tivesse residido no território, tinha presente o facto que os nomes das ruas e outras indicações se encontravam escritos na nossa língua. Foi um pouco embaraçoso entrar em locais como uma padaria, ou mesmo em qualquer restaurante da cadeia McDonald’s e começar a falar em Português, e ao aperceber-me da minha falha mudar logo, mas das vezes que tinha algum sucesso, na maior parte delas notava uma reacção negativa das pessoas que não me entendiam – era mais por culpa da forma brusca com que me expressei. Fui um “bárbaro”, é o que foi. Os ocidentais que vão pela primeira vez à China podem estranhar a posição defensiva com que alguns chineses reagem à sua abordagem, e isto deve-se mais à linguagem gestual do que propriamente à expressão oral, ou ainda a atitude que demonstramos perante os obstáculos normais que encontramos em comunicar, ora rindo, levando as mãos à cabeça, ou fazendo um ar agastado – tudo sinais que os chineses interpretam como de agressividade. Mesmo quem chega a Macau e aprende rapidamente a falar o cantonense, depara com reacções que o deixam intrigado, consciente de que não terá faltado ao respeito ao seu interlocutor, mas terá bastado um gesto mal medido para arruinar o mais bem intencionado dos discursos. Macau não é a China em muitos aspectos, mas esta particularidade é comum à generalidade da cultura. Sempre são cinco milénios, e tentar mudar as coisas como alternativa a simplesmente adaptar-se – e nem custa assim tanto – é que se pode considerar uma atitude arrogante. Os portugueses têm gestos largos, apontam, mexem os braços, têm tendência para elevar a voz. Se há chineses que já se habituaram, e para os macaenses é fácil de entender, o são convívio com estas comunidades fica sempre mais facilitado se reduzirmos ao mínimo a expressão corporal, e evitar um certo repentismo próprio da nossa natureza de latinos. Quem chega de Portugal é possível que uma das primeiras coisas que nota seja a pouca receptividade que os locais têm ao tradicional “beijo no rosto”, a forma com que os portugueses habitualmente cumprimentam uma senhora, mesmo que a conheçam mal, ou tenham acabado de a conhecer. A rejeição não tem tanto a ver com a pessoa, mas com a cultura, e sobretudo com a forma como os outros entendem este comportamento: para os chineses o contacto físico mais ousado ou demorado é um sinal de grande intimidade. E isto adquiri-se logo desde a chegada ao mundo, pois se repararem o hospital “Kiang Wu” não permite que os recém-nascidos saiam da sala a eles destinada para as tradicionais fotografias com os familiares e amigos, um hábito enraízado no Ocidente, ao contrário da maternidade do Hospital Conde S. Januário, preferida pela maioria dos forasteiros. Para quem não nasceu em Macau, ou não cresceu no seio da comunidade chinesa, pode interpretar tudo isto como uma forma de distanciamento, ou até má vontade, mas quem quiser mesmo fazer desta terra a sua segunda morada, ou eventualmente a primeira, convém adaptar-se a estes detalhes, por vezes tão minuciosos, e que não implicam necessariamente que tenham que deixar de ser o que são. É claro que há sempre excepções, e pode dar-se o caso de encontrar chineses que achem graça a esta modalidade de contacto que a sua cultura considera “libertina”, e muitos macaenses são capazes de entender, e mais ainda dependendo da educação, da frequência do contacto com a comunidade portuguesa, ou ainda mais receptivos serão se já viveram em Portugal – mas isto não quer dizer que apreciem, entenda-se. Nestes casos é sempre melhor manter uma certa reserva, e esperar que a iniciativa parta da outra pessoa, demonstrando também uma vontade maior de se integrar nesta realidade diferente da sua. Pode ser um pouco chato, e parecer esquisito até, mas melhor do que aprender à custa de errar, é dar um sinal de que para bom entendedor, meio gesto basta. PS: Vou este sábado para Navarra limpar os pulmões com o ar dos Pirinéus. O Bairro do Oriente regressará assim em meados de Setembro. Um abraço do tamanho do mundo.
Hoje Macau VozesCamilo Pessanha (1867-1926) António Apolinário Lourenço “O mais, que é tudo, é Camilo Pessanha” (Fernando Pessoa) [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ompletam-se no dia 7 de Setembro cento e cinquenta anos sobre o nascimento, em Coimbra, de um dos mais peculiares e geniais escritores portugueses, Camilo Pessanha. Estudante de Direito, sem particular brilho, concluiu o curso em 1891. Apesar de os seus anos de vida universitária terem coincidido com a difusão, na cidade do Mondego, da corrente estética simbolista, defendida nas publicações rivais Os Insubmissos e Bohemia Nova, a participação do poeta nos círculos literários da cidade foi relativamente marginal. A sua formação artística e a sua iniciação na poesia decorreriam de forma muito mais pessoal e recatada, o que não impediu que tenha construído uma obra que o coloca num lugar cimeiro entre os poetas simbolistas portugueses e faz dele um dos principais mestres da moderna poesia lusitana. Grande parte da sua vida decorreu em Macau, território colonial para onde partiu em 1894, destinado à docência liceal, mas onde também exerceu outras actividades profissionais, como as de Conservador do Registo Predial, juiz e advogado. Aí viria a falecer em 1926, tendo passado, no entanto, largas temporadas em Portugal, beneficiando dos períodos normais de férias a que tinha direito como funcionário colonial, acrescidos de licenças extraordinárias para tratamento médico. Foi assim que pôde, ininterruptamente, permanecer na então metrópole entre 1905 e 1909. Mas foi sobretudo na sua última visita a Portugal (1915-1916) que Camilo Pessanha teve consciência de ser objecto de admiração e de culto por parte das novas gerações literárias lusas. A sua permanência em Macau, onde não seria nunca uma figura consensual, sobretudo no que respeita à sua prática como juiz, levou-o a uma aproximação da cultura e da arte chinesas, que se concretizaria na produção de textos ensaísticos, traduções e na colecção de arte que legou ao Estado Português e faz actualmente parte do espólio do Museu Machado de Castro. Pouco interessado nas glórias mundanas e com uma vida familiar sempre instável, encontrou na poesia a forma de exprimir conotativamente, através de uma imagética carregada de símbolos de carácter negativo, as suas emoções e sentimentos profundos, sem ser forçado a comprometer a sua intimidade. Antes mesmo de ter publicado qualquer livro, já o seu nome era apontado como um dos grandes criadores literários portugueses, sendo objecto de intensa veneração, na segunda década do século XX, pelos poetas da geração do Orpheu. É sobejamente conhecida a carta de 1914 em que Mário de Sá-Carneiro pede a Fernando Pessoa que lhe remeta uma cópia de alguns poemas de Camilo Pessanha, que aquele conseguira através de Carlos Amaro; e não é menos famosa a resposta enviada pelo autor de A Confissão de Lúcio, em Abril do mesmo ano, ao inquérito promovido pelo diário República, “O mais belo livro dos últimos trinta anos”, em que o mesmo poeta órfico declara que a melhor obra literária dos últimos trinta anos era um livro não publicado, aquele “que reunisse os poemas inéditos de Camilo Pessanha, o grande ritmista”. A descrição que Sá-Carneiro faz da estética de Pessanha aproxima-se extraordinariamente do projeto paúlico da geração do Orpheu: “Rodopiantes de Novo, astrais de Subtileza, os seus poemas engastam mágicas pedrarias que transmudam cores e músicas, estilizando-se em ritmo de sortilégio — cadências misteriosas, leoninas de miragem, oscilantes de vago, incertas de Íris. Pompa heráldica, sombra de cristal zebradamente roçagando cetim…”. Efectivamente, nenhum outro poeta português da geração simbolista, conseguiria explorar tão profundamente como Pessanha a capacidade auto-referencial e demiúrgica do discurso poético. Fernando Pessoa reconheceria, em carta a João Gaspar Simões, datada de 11 de Dezembro de 1931, ter sido influenciado por Camilo Pessanha, uma influência que parece evidente nalguns conjuntos poéticos do ortónimo, como é o caso de Além-Deus e Passos da Cruz, não menosprezando a existência, como o próprio Pessoa sublinhou, de leituras e influências comuns. É sabido que o autor da Ode Marítima pretendia publicar poemas de Pessanha no Orpheu 3, que seriam colocados em lugar de honra. Tendo-se gorado essa possibilidade, por motivos que são sobejamente conhecidos, acabaria por ser Luís de Montalvor, um dos directores do Orpheu 1, a conseguir a cedência de 16 poemas de do autor de “Ao longe os barcos de flores” para inserir no número único da revista decadentista Centauro, de 1916. Depois de concretizada a publicação, em 1920, da primeira edição da Clepsidra nas Edições Lusitânia, de que era proprietária Ana de Castro Osório, a paixão não correspondida do poeta, António Ferro apressar-se-ia a declarar que a sua geração passara a ter um missal e um relógio: o livro de Camilo Pessanha. Este reconhecimento é corroborado pelo autor de Mensagem, que, num apontamento datado de Novembro de 1934 (cerca de um ano antes da sua própria morte, portanto), registava que apenas três poetas portugueses dos séculos dezanove e vinte mereciam o nome de mestres: Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha: O primeiro ensinou a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade de que o ser imbecil não é indispensável a um poeta. O segundo ensinou a observar em verso; descobriu-nos a verdade de que o ser cego, ainda que Homero em lenda o fosse e Milton em verdade se tornasse, não é qualidade necessária a quem faz poemas. O terceiro ensinou a sentir veladamente; descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas a sombra dele. *in Homenagem ao Poeta Camilo Pessanha, Editorial Moura Pinto, 2017
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesMulta ou prisão, eis a questão! [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 9 ocorreu um acidente de viação perto de La Baie Du Noble. Um carro preto, conduzido por um indivíduo do sexo masculino, chocou com um táxi e acabou por capotar. Uma das portas do táxi foi arrancada. Felizmente os carros transportavam apenas os condutores, que saíram do acidente com ferimentos ligeiros. Posteriormente ambos os condutores foram submetidos ao teste de alcoolemia. Numa análise preliminar percebeu-se que o condutor do carro preto apresentava valores superiores ao normal. O condutor do táxi não apresentava sinais de ter ingerido álcool. Mais tarde veio a saber-se que o condutor do carro preto estava efectivamente embriagado. Este incidente foi divulgado pela imprensa de Macau e, ficou a saber-se, que o condutor do carro preto iria ser indiciado por “conduzir sob efeito de bebidas alcoólicas”. Acabaria por ser condenado a 100 dias de prisão, substituídos pelo pagamento de uma multa de 20.000 patacas. Ou seja, o transgressor pôde sair em liberdade pagando a multa. Ficou também com a carta apreendida durante um ano. O acidente teve lugar à luz do dia e foi testemunhado por muitas pessoas. Algumas tiraram fotografias e postaram-nas no Facebook. Este incidente desencadeou surpreendentemente uma quantidade de discussões. Um dos temas mais debatidos no Facebook foi a pena aplicada ao condutor. As pessoas em geral gostariam de tê-lo visto preso. Para analisar este assunto em pormenor, teremos de olhar para o Código Penal de Macau. O Artigo 279 (1) estabelece que, a condução sob efeito de bebida alcoólica, que ponha em risco terceiros ou bens alheios, implica uma pena de prisão até três anos ou uma pena pecuniária. Os Artigos 279 (2) e (3) estabelecem o montante da multa e o período de detenção consoante as circunstâncias. Por aqui podemos ver que o Artigo 279 deixa duas opções em aberto. O réu pode ser detido ou condenado ao pagamento de multa. Mas quem decide a opção a tomar, o juiz ou o réu? Para responder a esta pergunta temos de voltar à lei. Em primeiro lugar, a lei deve estabelecer de forma clara as circunstâncias que conduzem a uma penalização e as circunstâncias que conduzem à outra. Em segundo lugar, deverá ser inequívoca ao estabelecer sobre quem pesa a responsabilidade da decisão. Se a lei não for suficientemente clara nestes aspectos o juiz terá dificuldade em pronunciar-se adequadamente quando é chamado a decidir. O artigo 125 (1) do Código Penal de Macau, estabelece que a pena pecuniária não pode substituir a pena de prisão, salvo algumas excepções. Por aqui se depreende que o objectivo da nossa lei é impedir que os réus comprem a liberdade. Mas será que o réu pode escolher entre pagar a multa ou ir para a prisão? Mais uma vez a resposta depende da lei. Se esta lho permitir, uma vez cumpridos todos os requisitos, pode. Caso contrário terá de se sujeitar à decisão do Tribunal. O incidente que temos vindo a referir foi muito aparatoso e provocou muitos danos materiais e além disso envolveu um condutor alcoolizado. Foi uma situação grave, pelo que muita gente apelou à prisão do transgressor. No entanto, devemos salientar que, à parte os ligeiros ferimentos dos condutores, não houve mais danos pessoais. Só se pode pronunciar uma sentença de forma justa se todos os factores forem tomados em linha de conta. Se a lei permite que o transgressor pague uma multa em vez de ir para a prisão, teremos de aceitar. Se não concordarmos teremos de alterar a lei. Se este sentimento for maioritário, precisará de ser reportado ao Governo e, a partir daí, serem implementados os procedimentos que abrem caminho à criação de uma emenda à lei. Mas, mais uma vez, antes de abraçar essa opção, há que pesar todos os factores pois estão em jogo questões vitais e de justiça para todos. David Chan Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Leocardo Manchete VozesOriente incidente [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma notícia que me me deu que pensar. No último fim-de-semana dois turistas chineses foram detidos em Berlim, depois de terem sido surpreendidos a fazer a saudação nazi em frente ao Reichstag, o parlamento alemão. Repito, foi neste último fim-de-semana, e não em 1940, quando este acto não só era permitido, como também altamente recomendável (há quem defenda este gesto dizendo que se trata “apenas de uma saudação romana”, mas convém recordar que já não há desses “romanos” para saudar há 1500 anos). Hoje é crime, mas os dois turistas safaram-se com uma multa de 500 euros cada, o que acabou por tornar a brincadeira tão parva, quanto dispendiosa. E não foi um acto irreflectido da parte de jovens inconscientes, como quando há um par de anos um adolescente chinês achou por bem gravar o seu nome nas pedras de um monumento do Cairo. Neste caso foram dois homens de 36 e 49 anos. Seriam nazis chineses? Eu diria antes que eram curiosos. E ignorantes, claro. Aqui a China tem uma atitude exemplar: recomenda aos seus cidadãos que cumpram as leis dos países para onde viajam. Melhor do que isto é impossível. A este propósito lembrei-me ainda de um episódio que ocorreu em Macau durante a última tourada à portuguesa (1996?), realizada numa arena improvisada no antigo Campo dos Operários, em frente ao velho Hotel Lisboa. No fim havia um “touro para os curiosos”, com o aliciante de existir um “lai-si” de três mil patacas preso ao lombo do animal. Alguma barafunda depois e com o “lai-si” já arrebatado, há uma jovem residente que decide ficar mesmo no meio da arena, a sós com o touro. Com os aficionados de boca aberta, a pobre moça acaba por ser colhida, e só a intervenção atempada do grupo de forcados ali presente evitou uma tragédia. A jovem em questão era na altura estudante de design, e passado uns meses foi matéria de uma reportagem na TDM a propósito de um trabalho da sua autoria, onde foi também questionada sobre a sua…”veia taurina”, por assim dizer. Explicou então que teve aquele comportamento porque era algo “que nunca tinha exprimentado”. Bem, isto tem muito que se lhe diga, mas ilustra na perfeição o que pode ser a “curiosidade” de que falei um pouco mais acima. Naquele dia, e para aqueles dois turistas chineses, a saudação nazi em frente ao Reichstag era o touro do Campo dos Operários para a moça da outra história. Existe, sem dúvida, uma animosidade crescente em algumas cidades da Europa em relação aos turistas em geral (tenho lido sobre imensas queixas em Lisboa), mas no caso dos chineses em particular, a coisa muda de figura. Os chineses não são conhecidos por beber e armar confusão, como os ingleses, ou “entrarem ali a pensar que mandam em tudo”, como os espanhóis, nada disso. O que existe é um choque de culturas, uma incompatibilidade em relação a certos gestos e comportamentos que só dá mesmo para entender quando se vive dos dois lados – e nisso somos uns privilegiados, estando aqui em Macau. Quando vamos a Portugal não olhamos com os mesmos olhos que os portugueses de lá para um chinês que tenta empurrar para passar à frente na bicha, ou que tira os sapatos em qualquer sítio onde entra, ou até quando produz um sonoro arroto. Para nós é normal, e para os portugueses do rectângulo é tão estranho como são para os chineses alguns dos nossos comportamentos aqui, neste lugar da China. Não é preciso ser um génio para se chegar a uma conclusão quanto a este tema. Não somos obrigados a ser algo que não somos, ou aceitar algo que nos provoca asco a repulsa. A receita aqui é a tolerância, que é a regra de ouro do convívio entre os povos, do mundo que queremos ideal, para todos e ao alcance de todos. Isto na prática é muito mais complicado, de facto.