O Sexo das Alterações Climáticas

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s alterações climáticas é  um daqueles temas transversais a tudo, tal como o sexo, por isso decidi casar um tópico com o outro para um argumento, que não é novo para alguns, mas talvez seja para outros. Tenho sofrido da particular frustração por ver que as alterações climáticas, que estão aí ao virar da esquina, ou que até já chegaram em força, é um conceito entendido como desconectado de tudo à nossa volta. Não está desconectado do ambiente em si, claro, mas está desconectado dos nossos sistemas morais, sociais, psicológicos, e do nosso dia-a-dia, no fundo.

Já em tempos me debrucei acerca de uma sexualidade ecológica, a forma mais fácil de casar os temas – seja porque se ama o planeta e se faz amor com o solo, as árvores e as plantas ou porque se tomam decisões de compra mais ecológicas, como vibradores, lubrificantes e outros que tais – com a garantia que não estamos a poluir o ambiente ou nós próprios. Mas será que basta? Será que é suficiente ter hábitos de consumo mais ecológicos e ponderados para evitar o fim da civilização tal e qual como ela existe? Será que a solução são os carros eléctricos, pensando agora num sentido mais lato de hábitos de consumo, ou os produtos biológicos,ou os materiais biodegradáveis, ou as casas inteligentes? Quando, no ano passado, Macau viu passar os tufões mais intensos e mortíferos dos últimos tempos, uns atrás dos outros, eu pensei para mim mesma que a minha geração, muito provavelmente, assistiria ao início da degradação dos nossos ambientes e sociedades.  E o que tenho aprendido é que as alterações climáticas vêm aprofundar o fosso socio-económico das nossas cidades, países, continentes, e planeta.

No dia da Mulher, as Nações Unidas apresentou uma campanha toda bonita sobre como as alterações climáticas são um problema de género – também. Eu sei que esta é uma ideia difícil de perceber, e pouco consensual. Que diferença faz se eu for homem, mulher ou outra identificação de género, à vista das alterações climáticas? Não serão os efeitos os mesmos para todos? Há quem discorde – as alterações climáticas são um problema que têm afectado primeiro as comunidades já frágeis, que para além de verem os seus ambientes a deteriorar-se, vêem-se em confronto com outro tipo de desafios. Países com escassez de água, de condições básicas de sobrevivência, seja pela seca ou pela inundação, sofrem de maior desigualdade de género. Tal como o sexo, as alterações climáticas não são um problema do mundo físico, somente, são um problema do mundo social. Reparem: a escassez de recursos ou as transformações no ecossistema, mexem com temas tão delicados como a maternidade – será que podemos ou devemos trazer uma criança ao mundo? – ou com a contracepção – porque é que os peixes andam cheios de hormonas femininas? – ou com o nosso consumo sexual – será que preciso de 30 vibradores, um de cada cor, para completar a minha colecção megalómana de dildos? Quanto mais consumimos, mais poluímos, não é?

O sexo das alterações climáticas não deverá ser uma discussão sem fim, porque de perguntas sem resposta já estamos nós fartos. O que considero útil neste desafio temático, é olhar para aquilo que está a acontecer no nosso planeta de forma interseccional – que o ambiente está no estado desequilibrado em que está, e que pode afectar e reforçar as dinâmicas de poder já existentes. No exercício de distopia da Margaret Atwood, que explora as questões das mulheres e as questões do ambiente (em vários exercícios de ficção, e não só na sua mais aclamada obra), torna este mesmo argumento óbvio: as alterações que o nosso planeta anda a sofrer são um desafio também ao sexo que fazemos, ao sexo performativo e representado e ao sexo que desejamos. O sexo destas sociedades que parecem mais loucas do que sensatas: mais loucas por poder, por desigualdade, nunca loucas por amor, ou pelo menos, nunca da forma certa de amor.

13 Jun 2018

Fuga de informação

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 4, a Comissão Independente Contra a Corrupção em Hong Kong (ICAC, na sigla original) deteve Xiao Yuan, professor de língua chinesa, por suspeita de ter recebido e enviado informação confidencial por smartphone, relativa às perguntas dos exames de 2016 e de 2017. Em causa estavam os exames de língua chinesa para obtenção do Diploma do Ensino Secundário de Hong Kong (HKDSE, na sigla original).

Este caso envolve quatro acusados, Xiao Zhiyong (Xiao Yuan), professor de chinês numa instituição privada e a sua mulher, Cai Yingying (Chai Yi), que foi vigilante durante os exames do HKEAA. Os outros dois réus, Zhang Guoquan e Wu Hongliang, são antigos examinadores das provas orais, ao serviço da Autoridade de Avaliação dos Exames em Hong Kong. Foram todos libertados sob fiança e aguardam julgamento.

A principal acusação que pende sobre todos é a de uso de computadores com fins ilegais, crime sob a alçada das secções 159A e 161(1) (c) da Lei Criminal de Hong Kong.

A investigação do ICAC revelou que Zhang Guoquan e Cai Yingying são suspeitos de terem usados os seus smart phones para enviar a Xiao Zhiyong as perguntas dos exames de Língua Chinesa, em 2016 e em 2017. Wu Hongliang é suspeito de ter enviado a Xiao Zhiyong, material confidencial proveniente de uma reunião informativa, realizada a propósito da preparação dos exames de Língua Chinesa de 2017. Logicamente, Xiao Zhiyong é suspeito de ter recebido informação confidencial sobre as perguntas dos exames no seu smart phone.

O ICAC iniciou esta investigação após ter recebido algumas queixas. Já em 2007, 2009 e 2010 Xiao Yuan tinha preparado os seus alunos para as perguntas exactas que sairam nos exames de chinês.

É evidente que desta forma Xiao Yuan colocava os seus alunos numa situação de grande vantagem em relação aos outros. A queixa deverá ter partido de alguém que, suspeitando da situação, se sentiu lesado.

No entanto, é estranho que estas quatro pessoas tenham sido acusadas pelo ICAC apenas de uso dos seus computadores para fins ilegais. Não foram acusados de ter revelado informação oficial classificada. Porquê?

Pela lógica, o Governo é responsável pelos exames nacionais. Antes do início dos exames, os enunciados são considerados informação oficial confidencial. Nalguma legislação, a informação confidencial encontra-se classificada em vários níveis, de acordo com o seu grau de secretismo. Contudo, neste caso, não é necessário ter em conta o grau de confidencialidade porque, antes do início dos exames, os enunciados são, sem sombra de dúvida, informação confidencial.

Mas a única forma de esclarecer estas questões é apurar mais factos. No entanto, como o processo já começou, é impossível fazê-lo.

De facto, o estudo e a preparação para os exames é uma forma de treino intelectual para proveito do próprio. Fazer batota nos exames é ir contra os fundamentos educativos. As notas podem ser boas, mas o conhecimento não aumenta. Se esta prática continuar, os alunos não vão saber lidar com as situações da vida, se não tiverem constantemente dicas sobre como o fazer. O conhecimento não floresce e, em última análise, toda a sociedade será afectada.

Os estudantes de hoje serão os profissionais de amanhã. Se a fasquia académica baixar, a sociedade vai ser gerida por pessoas sem a formação necessária. Imaginemos um estudante de medicina a fazer batota nos exames. Deus nos livre de ir ao seu consultório! O mesmo se poderá dizer de um estudante de direito que passe nos exames desta forma. Quem vai querer ser representado por ele na barra do Tribunal?

Se este método se divulgasse e os professors passassem a saber de antemão as perguntas e respostas dos exames seria muito grave.

Desta forma, nunca se saberá ao certo que conhecimentos foram verdadeiramente passados do professor para o aluno. Além disso, se os enunciados forem obtidos de forma ilegal, estaremos não só perante um acto criminoso, como também perante uma violação da ética profissional. E é desta forma que se pretende dar bons exemplos aos estudantes? Não parece ser grande pedagogia.

Os responsáveis pela elaboração dos enunciados de exames, estejam onde estiverem, devem prestar atenção a este caso.

12 Jun 2018

O desafio das alterações climáticas

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] s alterações climáticas são possivelmente o desafio ambiental mais significativo do nosso tempo e representa uma séria ameaça ao desenvolvimento sustentável no mundo e, mais ainda, na maioria dos países em desenvolvimento. O impacto das alterações climáticas afecta os ecossistemas, os recursos hídricos, a alimentação e a saúde. Assim, as políticas governamentais inter-relacionadas, devem ser projectadas para evitar conflitos no seu desenho e implementação. Existe uma ligação directa entre as alterações climáticas e a insegurança alimentar global, mais ainda nos países em desenvolvimento, onde as alterações climáticas agravadas com a pobreza exacerbaram os impactos.

A fim de enfrentar os desafios colocados pelas alterações climáticas, é necessário examinar os factores que contribuem para as mesmas e como tais, os que influenciam a produção de alimentos a nível global. Factores climáticos como a precipitação, evaporação, humidade e a duração do sol, formam a base para a melhoria da segurança alimentar. É necessário que os formuladores de políticas, comunidades e provedores de ajuda incorporem tecnologias baseadas em evidências de sistemas e conhecimento de alimentos. As tecnologias baseadas em evidências que são as que foram empiricamente testadas e usadas, incluem plantio directo, gestão integrada da fertilidade do solo, tecnologias de irrigação, como por exemplo a irrigação por gotejamento, melhoramento de sementes, captação de água, agricultura orgânica e incorporação do conhecimento local.

O impacto de algumas das tecnologias pode ser visto à luz da melhoria global da produtividade de grãos, através do uso de tecnologias integradas de gestão da fertilidade do solo, chuva e do ambiente irrigado. As culturas de grãos tolerantes à seca, também podem ajudar a aumentar os rendimentos. Os resultados dos estudos realizados nesta área são pertinentes aos formuladores de políticas no campo da segurança alimentar e sustentabilidade dos meios de subsistência. As medidas de mitigação e adaptação devem ser eficazes, acessíveis e apropriadas para a sustentabilidade e desenvolvimento ambiental.

Tal controlo, defende a integração de sistemas convencionais baseados na agrociência, com o conhecimento tradicional da agricultura, a fim de mitigar a severidade das alterações climáticas e o seu impacto na segurança alimentar e na sustentabilidade dos meios de subsistência. A integração de agrociência e sistemas agrícolas tradicionais é importante para que a segurança alimentar seja sustentada. A expressão “alterações climáticas” significa a alteração do clima do mundo como resultado das actividades humanas através da queima de combustíveis fósseis, desmatamento de florestas e outras práticas que aumentam a concentração de “Gases de Efeito Estufa (GEE)” na atmosfera. Tal está de acordo com a definição oficial da “Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima UNFCCC (na sigla inglesa)”, que afirma que as alterações climáticas podem ser atribuídas directa ou indirectamente à actividade humana que altera a composição da atmosfera global e a variabilidade climática natural observada ao longo de períodos de tempo comparáveis.

O “Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)” define as alterações climáticas, como uma transformação no estado do clima que pode ser identificada por mudanças na média e ou na variabilidade das suas propriedades, e que persiste por um período prolongado, tipicamente décadas. As alterações climáticas são uma mudança sistemática nas principais dimensões do clima, incluindo a temperatura média e os padrões de vento e precipitação durante um longo período de tempo. No uso recente, especialmente no contexto da política ambiental, as alterações climáticas, geralmente, referem-se a mudanças no clima moderno. Pode ser qualificado como alterações climáticas antropogénicas, mais geralmente conhecida como aquecimento global ou “Aquecimento Global Antropogénico (AGW na sigla inglesa)”.

É de considerar que devido à natureza predominante do efeito estufa melhorado na atmosfera, os seus efeitos ocorrem a nível global, regional e nacional. Tem havido evidências de aumento nas temperaturas globais que levaram às alterações climáticas a nível global, regional e nacional nos últimos cem anos. O aumento das temperaturas globais experimentadas ao longo do século passado, é o resultado da acumulação de GEE na atmosfera, levando ao aquecimento global. Utilizando modelos climáticos complexos, o IPCC, no seu terceiro relatório de avaliação, previu que a temperatura média da superfície global aumentará de 1,4 graus Célsius para 5,8 graus Célsius até ao final de 2100. Os múltiplos conjuntos de dados mostram essencialmente, a mesma tendência de aquecimento global nos últimos cem anos, com o aumento mais acentuado do aquecimento nas últimas décadas.

A evidência das alterações climáticas induzida pelo ser humano vai além do aumento observado nas temperaturas médias da superfície, pois inclui a fusão do gelo no Árctico, derretimento de geleiras ao redor do mundo, aumento da temperatura dos oceanos, incremento do nível do mar, acidificação dos oceanos devido ao excesso de dióxido de carbono, mudança nos padrões de precipitação e das funções do ecossistema e da vida selvagem. A produtividade agrícola reduzida com a escassez de alimentos, consequente, foi experimentada. Os estudos mostram que com menores concentrações de CO2, as plantas podem crescer mais e de forma rápida. No entanto, o efeito do aquecimento global pode afectar a circulação geral da atmosfera e, assim, alterar o padrão de precipitação global, bem como modificar os teores de humidade do solo em vários continentes.

Houve um aumento no nível do mar observado em algumas partes do mundo devido ao excesso de aquecimento do ar que causou a fusão em grande escala de coberturas de gelo, inundações de grandes proporções na Califórnia em 1999 e partes da costa ocidental da Índia nos últimos cinco a oito anos, que são testemunhos dos efeitos da elevação do nível do mar.

É de atender que se o nível do mar subir oitenta a noventa centímetros, talvez muitas das cidades costeiras do mundo sejam arrastadas, além de grandes mudanças nos portos e suas instalações, rotas marítimas e na indústria pesqueira, bem como a perda de terras agrícolas férteis, ocasionada por inundações, impactos na segurança alimentar e meios de subsistência a nível doméstico e nacional. Existiu um aumento da seca e inundações a nível global e ironicamente, alterações no clima devido ao excesso de gases causadores do efeito estufa, estão a causar o aumento da seca e das inundações. A actividade violenta das tempestades cresce à medida que a temperatura aumenta e mais água se evapora dos oceanos. Tal inclui a ocorrência de furacões mais poderosos, tufões e um aumento na frequência de tempestades e tornados considerados severos.

As tempestades muitas vezes resultam em inundações e danos às terras agrícolas, causando insegurança alimentar. O aquecimento também causa a evaporação mais rápida em terras, levando à fome induzida pela seca. As alterações/mudanças nas estações e no carácter sazonal, ocorrem em todo o mundo devido à mudança na temperatura do ar e nos padrões de precipitação. Algumas estações foram reduzidas ou prolongadas. Os invernos estenderam-se em muitos locais, enquanto o verão é mais severo em outros lugares. O grau de confiabilidade diminuiu e o elemento de incerteza aumentou. Tal desorienta os agricultores das comunidades rurais que dependiam do conhecimento local na previsão de padrões climáticos para a produção de alimentos. As grandes mudanças ocorreram nos recursos hídricos do mundo, devido a perturbações nos ciclos hidrológicos.

As zonas de chuvas intensas são gradualmente convertidas em áreas de baixa pluviosidade, com muitas áreas húmidas a serem transformadas em superfícies áridas e da mesma forma, a depleção de água subterrânea é alta e a recarga é muito baixa. Houve uma mudança nos ciclos de doenças/pragas de plantas e animais. Muitas das pragas/doenças insignificantes, estão a atingir grandes proporções porque a composição da população microbiana é afectada pela mudança de temperatura e ciclos hidrológicos. Estes tiveram impacto na produção de alimentos e perda pós-colheita ocasionando escassez de alimentos e perda de meios de subsistência.

Os ecossistemas modificam e as alterações no clima farão que algumas espécies mudem de uma região para outra e, em combinação com outros factores de “stress” como o desenvolvimento, fragmentação de habitats e espécies invasoras, podem ter consequências negativas sobre a biodiversidade e os benefícios que os ecossistemas saudáveis ​​proporcionam aos seres humanos e ao meio ambiente. O jacinto-de-água, uma espécie invasora no Lago Vitória, reduziu tremendamente as actividades pesqueiras com impacto nos meios de subsistência. As alterações climáticas afectarão sempre os meios de subsistência. A economia e o meio ambiente podem ser afectados como resultado das alterações climáticas, especialmente na ausência de contra medidas. Os impactos no sector da saúde afectarão as populações alterando o estado de saúde de milhões de pessoas, inclusive através do aumento de mortes, doenças e ferimentos devido a ondas de calor, enchentes, tempestades, incêndios e secas.

O aumento da desnutrição, doenças relacionadas ao meio ambiente, como a cólera, disenteria, meningite, filariose linfática, febre-amarela, malária, tuberculose, entre outras, exercerão grande pressão sobre os recursos de saúde pública e as metas de desenvolvimento serão ameaçadas por danos de longo prazo à saúde. Torna-se necessário limitar o aquecimento global a 1,5 graus Célsius que poderá evitar cerca de três milhões e trezentas mil mortes de casos de dengue por ano, apenas na América do Sul e nas Caraíbas de acordo com uma nova pesquisa da “Universidade de East Anglia. (UEA)”.

O novo relatório publicado na revista “Proceedings of National Academy of Sciences (PNAS)”, a 28 de Maio de 2018, revela que limitar o aquecimento à meta do “Acordo de Paris”, também impediria a disseminação do dengue para áreas onde a incidência actualmente é baixa. A trajectória de aquecimento global de 3,7 graus Célsius pode levar a um aumento de até sete milhões e quinhentos mil de casos de dengue, adicionais por ano até meados deste século. A dengue é uma doença tropical causada por um vírus transmitido por mosquitos, com sintomas que incluem febre, dor de cabeça, dores musculares e articulares. É endémica em mais de cem países e infecta cerca de trezentas e noventa milhões de pessoas em todo o mundo anualmente, com uma estimativa de cinquenta e quatro milhões de casos na América do Sul e Caraíbas. Os mosquitos que transportam e transmitem o vírus prosperam em condições quentes e húmidas, sendo mais comum em áreas com essas condições climáticas. Não existe tratamento específico ou vacina para a dengue e, em casos raros, pode ser letal.

8 Jun 2018

Gente de Jun(h)o

[dropcap style≠‘circle’]É[/dropcap] nesta melancólica tarde chuvosa de quarta-feira, dia 6 de Junho, que me apetece dissertar sobre o dia de Portugal, que se assinala no próximo Domingo, e sobre a portugalidade em geral, e como a sentimos deste lado do mundo. E chuva é mesmo aquilo que nos espera neste mês de Junho; se os Waterboys uma vez escreveram que “December is the cruelest month”, e porque nunca passaram por um Junho em Macau.

Somos portugueses (somos!), e amamos Portugal (amamos!), assim como nos sentimos no direito, e na obrigação de sentir a dor que sente o nosso povo, lá a 10 mil quilómetros de distância, assim como partilhar das suas alegrias. O que é que nós somos? (portugueses!). Contudo, é difícil para nós exercer aqui a portugalidade. Não faltam as boas intenções, a palmadinha nas costas do compatriota (e aqui há-os de todas as origens), e o mais elementar protocolo, sempre com a empatia quer do governo local, quer das restantes comunidades, tanto lusófonas, como as de outras expatriados. E pronto, bate-se a pala, iça-se a bandeira, “toca suíno”, então o que nos faz falta?

É a tal da distância, sim. Que coisa de um raio. E o clima, não posso deixar de insistir. Uff. É frustrante realizar um arraial de S. João à chuva, com a dita a bater na fatia de pau onde jaz a sardinha. E que festa é esta, em que tem que se andar a tapar a sangria. Há uma expressão local (ou fui eu que inventei, que não me recordo) que diz que “o S. Pedro não colabora com o S. João”. Eu até achava giro, se não fosse tão trágico. Até a habitual “ida ao pastel”, na residência do cônsul-geral, no idílico Hotel Bela Vista, peca pela roupa colada ao corpo, do suor da humidade, e não raras vezes o tal S. Pedro decide também lançar uma descarga. Deve andar irritado com os dragões que vão deslizando estes fins-de-semana nos lagos Nam Van.

Estamos longe e temos saudades sim. Por muito que nos tentemos desligar, há sempre ali um bocado de nós, que ora já existia, ora desponta subitamente como o botão de uma linda flor. Fazem-nos falta as noites sem fim, o bradar dos tambores, a alegria das nossas gentes. Pouco depois disso estamos lá, é verdade (alguns de nós, os que insistem em ir…), e este 10 de Junho e todo o arraial que se segue são apenas os preliminares. Um feliz Dia de Portugal para todos.

 

PS: Queria aproveitar, porque ainda não o fiz, para mandar um grande abraço e um muito obrigado ao cônsul-geral de Portugal, Vítor Sereno, que se encontra prestes a terminar a sua missão no território. Muitas felicidades, é o que lhe desejo, esteja onde estiver. Touché-sai.

7 Jun 2018

Velha Vagina

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]amos falar sobre a velhice, sobre ser-se velho e ser-se mulher: quando a vagina sofre de securas, quando os afrontamentos são constantes, quando a menstruação pára de aparecer mensalmente. O envelhecimento da nossa sexualidade não é de fácil compreensão porque está envolta em muitas falsas concepções e expectativas. Ora porque os velhinhos não são sexuais, ora são desinteressados, ora são ‘xéxés’ de todo.

A menopausa durante muito tempo esteve sob o paradigma médico como uma ‘doença’, uma falha grave dos órgãos reprodutores, e não como um processo natural de desenvolvimento. Ora isto traz alguns problemas à partida: se há uma história que lida com a velhice de forma patológica, que esperança temos nós de percebê-la de outra forma? O que nos têm tentado convencer é que a menopausa pode ser ‘curada’ ou ‘revertida’, nomeadamente, com tratamentos hormonais. Estes tiveram o seu pico nos anos 70 (pelo menos nos Estados Unidos), e a sua utilização prolongou-se até os anos 90, mesmo que trouxessem riscos (há quem diga altos) de acidentes cardiovasculares. Hoje em dia, apesar de não ser um tratamento popular, a retórica continua a mesma, o que quero dizer com isto: ainda se tenta ‘curar’ a menopausa com tratamentos. O que não é descabido de todo porque de facto há alterações no corpo da mulher que são extremamente difíceis de gerir. Recomenda-se, contudo, cautela e tacto, para não perpetuar a noção de que a sexualidade feminina saudável deve ser equivalente a uma vagina jovem e roliça – porque isso só faz com que o corpo envelhecido seja visto como não-saudável, e doente.

Claro que o cerne da questão está na visão heteronormativa e clássica do sexo, i. e., de que a penetração pénis-vagina é a única combinação possível (e digna) de sexualidade. De bem verdade que uma boa velha vagina pode sofrer alterações de forma a que penetração vaginal se torne mais dolorosa. Mas não limita a imaginação de criar outras possibilidades de sexualidade das quais os nossos corpos e as nossas mentes se possam sentir confortáveis. O que frequentemente acontece é que nós ficamos tão presos à ideia de que outras formas de sexualidade não são sexo de verdade, que a visão distorcida da velha (doente) vagina é, por vezes e infelizmente, inevitável. Espero que estejamos todos de acordo que são necessários mecanismos sociais para desfazer esta estupidez. Porque a velhice, essa sim é inevitável, agora como escolhemos vivê-la é que depende totalmente de nós – se soubermos que existem outras possibilidades.

Os media são importantes nesta dinâmica, por exemplo: há uma deliciosa série norte-americana com a septuagenária Lily Tomlin e a octogenária Jane Fonda que tenta fazer isso mesmo, ao explorar o mundo sexual na terceira idade. Seja porque são necessários produtos sexuais para a mulher madura, como lubrificantes adequados ou vibradores, ou porque explora a possibilidade de ‘recomeçar’ a vida íntima numa idade avançada.

Mas falar da sexualidade na velhice (e aos desafios é eles associados) sem falar da obsessão social pela juventude é descontextualizar por completo o problema. Idadismo – neologismo que nem todos os dicionários reconhecem – preconceito que tem como base a idade. Parece que no mundo ocidental andamos afectados com a tendência de julgar as velhas vaginas e os velhos pénis, na generalidade, como incompetentes. Ora, num mundo de desenvolvimento tecnocientífico, que tem aumentado a esperança média de vida, e com uma clara tendência de envelhecimento demográfico, urge uma nova visão sobre a velhice, e já agora, sobre o seu sexo.

6 Jun 2018

Casamento homossexual

[dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]o final da semana passada um jornal de Hong Kong publicou uma noticia sobre a derrota judicial de Leung Ching-kui, funcionário superior do Gabinete de Imigração. O caso prendia-se a reivindicação dos beneficíos sociais a que o seu esposo deveria ter tido direito por casamento. O Tribunal de Recurso deu razão ao Gabinete da Função Pública e ao Departamento Local de Contribuições. O casal viu ainda rejeitada a hipótese de apresentar uma declaração de rendimentos conjunta. Leung confessa-se desiludido e afirma que vai tomar medidas para continuar com a acção.

Ambos consideram este veredicto como um gigantesco passo atrás na luta contra a discriminação dos casais homossexuais em Hong Kong. Leung salienta que não estão a exigir um estatuto especial e que só esperam poder ser tratados com respeito e numa base de igualdade.

O Tribunal de Recurso expressou no veredicto a ideia de que é vital a preservação do conceito do casamento tradicional. Os benefícios devidos aos esposos e o direito de declarar os rendimentos em conjunto são prerrogativas matrimoniais. No entanto, o Tribunal de Recurso negou ambos os direitos Leung, que ainda terá de pagar as custas de tribunal.

O Tribunal salientou que em Hong Kong, quer do ponto de vista legal, quer do ponto de vista social, o único casamento reconhecido é o heterossexual. Assim, é mais importante defender o conceito do casamento tradicional do que encorajar as pessoas a casarem-se. Se os benefícios e direitos de que usufruem os casais heterossexuais se estender aos casais homossexuais, o conceito de casamento tradicional poderia ser posto em risco. Como a Lei Básica, e a opinão pública, de Hong Kong só reconhecem o casamento heterossexual, o interesse público é um factor de peso nos julgamentos. O Tribunal compreende que o queixoso se sinta financeiramente injustiçado. No entanto, se puseremos o “interesse publico” no outro prato da balança, a situação ficará equilibrada.

Três juizes do Tribunal de Recurso consideraram que a preservação do conceito do casamento tradicional ditou a sentença que privou este casal de benefícios e de outros direitos matrimoniais. A sentença não implica discriminação indirecta contra a orientação sexual do queixoso. O Tribunal acrescentou que, já que o conceito social de casamento foi a questão central deste julgamento, como os conceitos sociais mudam significativamente ao longo dos tempos, a decisão que agora foi tomada pode vir a ser alterada, se este conceito mudar.

O ano passado, uma lésbica britânica foi contratada para trabalhar em Hong Kong. QT, a sua esposa, apresentou uma petição ao Departamento de Imigração, para ficar no território como dependente. O pedido foi indeferido. O Tribunal de Segunda Instância rejeitou o pedido, mas QT recorreu e ganhou o recurso. É interessante que os três juizes que deliberaram no caso de QT, tenham sido exactamente os mesmos que presidiram ao caso de Leung. No entanto, as decisões foram completamente diferentes.

No caso de QT, os juizes argumentaram que também o sistema do matrimónio “monogâmico” não poderia ser posto em causa em Hong Kong, por ser anti-constitucional. Neste caso os juizes apenas tomaram em consideração se o queixoso estava, ou não, em situação de acordo com as directrizes governamentais de Hong Kong. O Departamento de Imigração não foi chamado para reconhecer o estatuto de depêndencia de QT, enquanto parte de um casal homossexual.

No entanto, os juizes salientaram que, ao abrigo da mesma política, o Departamento de Imigração já tinha reconhecido casamentos poligâmicos, e conferido o estatuto de dependência a mais do que uma esposa do mesmo homem. O Tribunal considerou que a recomendação resolvia a contradição e deliberou a favor de QT.

No caso de Leung, vemos claramente que a decisão dos juizes foi condicionada pela crença de que casamento só se pode efectuar entre um homem e uma mulher. Como o Tribunal afrmou, o veredicto pode ser considerado controverso. No entanto, a decisão não pode ser facilmente aceite pelos casais homossexuais. Mesmo hoje em dia, especialmente nas comunidades chinesas, o casamento homossexual continua a não ser bem aceite. Como os juizes referiram, possivelmente as mentalidades irão mudar ao longo dos tempos. Mas actualmente, já que se aceita a homossexualidade, também deveria ser fácil aceitar o casamento homossexual. Mas, por enquanto, não é.

5 Jun 2018

Pró-democrata

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo algo tão pequeno, indefeso e frágil consegue amedrontar o poder absoluto? Como pode uma palha ripostar contra o mais potente dos canhões? O medo dos outros fez Golias de um insignificante David. Sou um corpo estranho num organismo que me repudia e expele das mais variadas maneiras, ainda assim insisto em ter uma voz.

Uma vez eleito, sem grande expressão comparativamente às forças tradicionais que se abeiram dos tronos decisórios, seria apenas uma voz ineficaz no plenário. Mesmo que esbraceje e me multiplique, o poder terá sempre uma maioria confortável para fazer o que bem entender. Terei transcendido a posição de homem e ascendido a uma espécie de excelso ideário? Se por lá ficasse, passados alguns discursos inflamados a minha palavra seria diluída num mar de consensos contrários. Perderia o gás e tornar-me-ia parte da mobília, como as minhas versões anteriores, oposição meramente decorativa, relegada para o plano do capricho. Se me deixassem ficar seria apenas um ineficaz clamor no deserto, um joguete que daria legitimidade ao simulacro de debate de ideias da ordem pré-estabelecida.

Porém, o Pavor Absoluto de uma voz crítica que rompa o marasmo de ténues discórdias leva à extrema e desnecessária martirização, a matéria da qual a acidental História faz heróis.

O Poder opera como uma manada esmagadora de elefantes em marcha rápida, a levantar pó e a calcar o chão com o peso de dois mundos, mas que de repente entra num frenesim amedrontado por avistar um rato. A mera visão do pequeno roedor faz os elefantes erigirem-se nas patas traseiras, com a tromba no ar, soltando estridentes gritos de pânico e alerta para quem vem atrás.

Eu próprio fico assustado com o pavor, ou a aversão, que provoco. Não encontro razão para tamanho alarido, ou desproporcionalidade de reacção, às mais mundanas e naturais reivindicações que faço. Por mais que repita que não sou uma espécie de sucursal de pseudo-revoluções vizinhas, mesmo que tenho manifestado alguma simpatia por gritos de liberdade, o pouco tempo mostrou-me o pragmatismo daquilo que se pode alcançar, assim como aquilo que se pode perder. Ainda assim, o meu rosto imberbe é traumatizante para quem olha para a juventude como algo domesticável, para quem entende que as novas gerações, que transportam o mundo no bolso, podem ser manietadas por propaganda e ideias que cheiram a mofo.

Eu sei porque vi com os meus olhos. Quando um povo resolve o problema do tecto e da comida, a sua fome é outra. Cultura e liberdade. Não penso que já chegámos a esse ponto de insaciável fome de ideias, às discussões tolhidas de paixão, porque vivemos numa bolha de conforto. Mas quando as tenazes da opressão apertarem, essa fome fará roncar os estômagos dos mais novos. E aí testemunharemos outro tiro no pé que o amedrontado poder insiste em dar. Qual a razão para o aperto do cerco de controlo, numa sociedade totalmente pacificada? Porque andam à procura de sarilhos e lutas onde elas não existem?

A legitimidade tremida tem destas coisas, produz estes efeitos secundários de pavor a opiniões e visões contrárias, mesmo que não representem uma ameaça existencialista.

Tudo permaneceria na mesma se eu pudesse exercer o cargo para o qual fui eleito. Haveria um pouco mais de excitação na assembleia, discursos e interpelações proferidas de pé. Mas no fim do dia, o que interessa é que o Executivo continuaria a ter o monopólio legislativo com a total complacência da vasta maioria dos legisladores. Eu faria um posts de Facebook a marcar o meu desdém pela promiscuidade institucional e todos iriam para casa descansados. Esta seria a via mais fácil para todos. No entanto, isso está posto de parte, à medida que estão para atingir o clímax outros tantos desproporcionais processos.

A via dolorosa da perseguição, estes pequenos calvários institucionais, são a minha ascensão. Uma semente de despropósito que tem a transcendência como fruto.

4 Jun 2018

Foquemo-nos no estado de direito

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ulu Sou, com o mandato de deputado suspenso, que tinha sido acusado do crime de desobediência qualificada, foi condenado a uma pena de 120 dias de multa pelo Tribunal de Primeira Instância, a 29 de Maio. Scott Chiang, outro dos acusados, recebeu uma pena idêntica pelo crime de reunião ilegal. Como ambos podem ainda recorrer da sentença, o resultado final permanece uma incógnita.

O conceito de “estado de direito” é um valor universal e a pedra basilar do socialismo. Quando comparado com o “estado popular”, revela-se mais eficaz no que diz respeito à restrição dos abusos de poder, à implementação da ordem social, à gestão social, à redução das contradições e conflitos sociais e, em última análise, na obtenção da paz social.

O julgamento de Sulu Sou captou a atenção do público e dos media. A sentença do Tribunal de Primeira Instância terá certamente a sua base legal. Se a acusação e a defesa não a aceitarem, podem tentar revertê-la apelando para uma instância superior, o que é uma prerrogativa de qualquer estado de direito. Desde que este assuntos sejam tratados com transparência, correcção e justiça, a comunidade terá de aceitar a justeza das decisões do Tribunal.

No artigo “Olho por olho …” publicado em Fevereiro, falei sobre os combates “não-violentos” e exortei as pessoas a desistirem da ideia de fazer justiça pelas próprias mãos. Mahatma Gandhi disse um dia “olho por olho e ficamos todos cegos”. Esta afirmação nasceu da sua experiência enquanto testemunha da luta sangunária entre Hindus e Muçulmanos.

Estudei numa escolar secundária que defende a liberdade e onde os estudantes podem falar livremente com os professores. Nessa altura, o professor perante uma classe cheia de adolescentes enérgicos e apaixonados pelos seus ideiais, confidenciou que, em jovem, tinha sido apoiante do “Movimento 4 de Maio”. Esta conversa acalorada entre o professor e os alunos não degenerou em conflito, nem os alunos foram punidos por terem debatido estas questões. O fosso entre o professor e os alunos foi transposto através do diálogo. Tolerância, consideração, entendimento e diálogo são as melhores formas de resolver os problemas.

Uma lei injusta é aquela que ainda não foi revista. Conheço uma legista de Hong Kong, ligada ao campo pró-democrata, que faz questão de obedecer à lei porque acredita no estado de direito como arma para corrigir as “leis más” e que nunca se envolveria em actos de violação da lei. Quando os opositores não obedecem à lei, os ditadores ganham a força da razão. Daí resulta que a sociedade fica fora de controlo e as pessoas começam a atacar-se umas às outras. A frase de Gandhi não revela fraqueza nem submissão, mas sim a posição de um homem corajoso.

Os políticos devem ser pessoas de mente aberta e nunca devem agir em proveito próprio. O juizes terão de fazer respeitar a lei e o povo deve assegurar que a sociedade continua a ser por ela governada. Desde o “Movimento dos Guarda-Chuva”, parece que, tanto o Governo de Hong Kong como os seus opositores, perderam a paciência. A luta entre os dois campos só poderá agravar as clivagens sociais. É necessário que haja consenso para ultrapassar as cisões.

Se Gandhi ainda fosse vivo, o índice de felicidade da Índia e do Paquistão seria muito maior. Se Yitzhak Rabin ainda fosse vivo, a paz entre Israel e a Palestina seria uma realidade. Sob a liderança do Presidente Xi, que defende o socialismo de características chinesas, a possibilidade de Hong Kong e Macau atingirem o equilíbrio depende do empenho das suas populações na implementação plena do estado de direito.

1 Jun 2018

Os nomes da morte

[dropcapstyle=’circle’] F [/dropcap] oi ontem (terça-feira) a votos a proposta de despenalização da Eutanásia, e tal como seria de esperar, foi rejeitada por cinco votos. É um tema sem dúvida fracturante – diria mais, uma das grandes questões dos nossos tempo – ao ponto de nem toda a gente gostar de lhe chamar “Eutanásia”. Há quem prefira “morte antecipada”, ou ainda “suicídio assistido”, mas chame-se o que lhe chamar, está intimamente ligado ao conceito da morte. É um dos seus muitos nomes. Portugal é ainda um país conservador, e sempre foi desconfiado das ideias mais progressistas. Vendo bem as coisas, preferimos que os outros avancem primeiro, e depois se gostamos do que vemos, avançamos também. Eu sou a favor do diploma que foi agora recusado, mas entendo e aceito que não exista uma preparação para ele. Falta um debate nacional mais alargado, usando um lugar comum. Com o que não posso mesmo estar de acordo é com alguns dos argumentos que foram utilizados para votar contra a proposta. Vamos por partes.

Consegue-se aceitar o argumento de que a despenalização da Eutanásia é para os profissionais de saúde, que actualmente incorrem do crime de homicídio caso ajudem um paciente a terminar com a vida, e alguns deles recusam-se a eutanasiar um ser humano. O senão é que esta despenalização não é para quem não aceita fazer Eutanásia a alguém, mas para quem tem uma outra perspectiva do tema, igualmente válida. Quem também se opôs com veemência foi o “lobby” dos opiáceos, reclamando que a Eutanásia levaria a um “desinvestimento na área da prestação de cuidados paliativos”. Não está em causa a utilidade – que é muita – deste tipo de assistência. Nunca esteve sequer em causa. Dos mais desonestos, houve quem estabelecesse um paralelo entre a Eutanásia e a eugenia nazi. Claro que este tipo de discurso populista desvirtua completamente todas as possibilidades de debate. Simpatizo com o receio de que a despenalização abriria portas a “qualquer uma” Eutanásia, alargando o seu âmbito inicial, mas isso seria não cumprir a lei. O que é sempre mau, em qualquer caso.

Depois há que atender à parte metafísica da Eutanásia. De todos os nomes que lhe dão, um dos que se vê menos é “morte com dignidade”. Aparentamente, a palavra “dignidade” é demasiado abstracto para legisladores e políticos. Preferem atender a outros mais terrenos, como o da “fé”, da “esperança”, da “vontade de Deus” ou de “milagres” – tudo designações usadas e abusadas durante o curto período de debate público que precedeu a votação. Entendo que “enquanto há vida, há esperança”, mas a lógica diz-nos também que enquanto há menos vida, vai havendo menos esperança. Lamento não se ter dado voz aos pacientes de doenças degenerativas, como a distrofia muscular ou a Alzheimer. Pessoas cujo calvário passa por primeiro não conseguir andar, depois engolir, e finalmente respirar. Assim, por esta ordem, e de forma irreversível; esta proposta de despenalização da Eutanásia foi feita para estas pessoas. E quem somos nós, aqui de pé e com saúde, a bradar a viva voz que eles não têm direito à sua dignidade? Espero que essa dignidade seja recuperada o mais rapidamente possível. Discuta-se, então.

 

31 Mai 2018

Sexo de Paralelos e Perpendiculares

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] geometria que esperamos da vida não é única, nem previsível. O que sentimos nem sempre corresponde ao mundo que vivemos, às vezes está ao lado, às vezes está no encontro e às vezes estamos nós a sabotar com tesouradas as realidades que podiam ser mais pacíficas, mas que não são.

O dualismo corpo – mente é uma dessas realidades complicadas. Desde Descartes que começámos a separar o corpo da nossa consciência, um objecto material e outro imaterial que vivem de forma (quase) paralela mas que se encontram nas esquinas. O Damásio bem tentou desmistificar o pressuposto cartesiano com o seu tratado mais popular ‘O Erro de Descartes’, mas nem a perspectiva das ciências puras e duras, muito menos as medicinas holísticas vêm ajudar à mudança.

Porque é que esta é uma discussão relevante ao sexo? Eu atrevo-me a dizer que o sexo interessa a tudo, e que tudo interessa ao sexo. O sexo no fundo é interseccional às várias dimensões da vida. Neste dualismo, o sexo manifesta-se na consciência de quem somos e na forma como lidamos com o nosso corpo e com a nossa ‘materialidade’. Percebem? Mente e Corpo. Se calhar a solução para a desmistificação dualista não é neurologia do Damásio. Precisamos de sexo. Porque se o sexo carrega o dilema corpo mente mais polémico de sempre, se calhar até será capaz de resolvê-lo.

Podemos pensar nas várias dimensões do sexo, nas suas formas conceptuais para perceber que o dualismo cartesiano até se encaixa. A sabedoria popular facilmente escolhe o sexo como biologia ou o sexo como emoção para melhor perceber as vidas sexuais. E isso só perpetua a crença que estas poderão ser arestas paralelas, não relacionadas – mas as perpendiculares existem, tanta intersecção que existe! Tal como existem as tesouras, de golpes certeiros dos quais não estamos à espera, como o Marcelo Rebelo de Sousa que veta a lei da mudança de género em Portugal. No fundo, o que é problemático para o sexo é o uso do corpo, este corpo que é julgado com características essencialistas – se tens uma vagina, és mulher, se tens um pénis, és um homem. E o uso deste corpo de forma tão categórica sobrepõe-se as imaginações desta mente, que também tem corpo, mas que o re-inventa.

O prazer é dos exemplos clássicos de contestação do dualismo, que só existe com corpo e mente, juntos, em sintonia, em perpendicularidade. O prazer que pode ser o sexual e o orgásmico, também é o de sermos quem somos. Porque o corpo e a mente também nos fazem sentir mulher quando temos um pénis, ou homem quando temos uma vagina. Quando aparecem acusações de que a naturalidade do corpo não é respeitada percebe-se que a doutrina dominante acredita que o corpo que se vê é real, e a nossa consciência… O que poderá ser? A grande vitória das gentes Irlandesas que num referendo histórico conseguiram acabar com a abolição do aborto, uma luta de mentalidades que punham em causa a utilização deste corpo – de que direitos e liberdades? Quando a cabeça tem juízo, o corpo não paga, o corpo também pode ser feliz.

Estou ciente de que a minha tentativa de simplificação só veio complicar. Mas talvez, mostrar a complexidade da mente e do corpo para não os colocarmos em caixinhas certas e direitinhas seja o melhor caminho. Para não estarmos convencidos de que o que é paralelo nunca se encontra e que, lá por magia ou o que quer que seja, o paralelo ‘perpendicula’ – só mesmo porque geometria nunca foi comigo.

30 Mai 2018

As imagens interditas do Tribunal

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia 23 de Maio, o jornal de Hong Kong “Apple Daily”, publicou uma notícia sobre umas fotografias que tinham sido tiradas em Tribunal, durante o julgamento de pessoas envolvidas nos motins de Mongkok. O juiz, Chan Hing Wai, pediu explicações à “fotógrafa”, ao que a mulher respondeu:

“Gosto de tirar fotografias. Se eu quiser, posso tirar uma foto consigo, Sr. Dr. Juiz.”

A mulher adiantou que era chinesa, com cartão de identidade de Hong Kong, embora sem residência permanente. Acabou por nunca responder directamente ao juiz. Limitou-se a repetir a pergunta e a afirmar que o Tribunal é um espaço público e que tirar fotografias é uma coisa muito comum.

O juiz explicou-lhe imediatamente que tirar fotografias numa sala de audiências não é de todo comum. É alias grave, porque nas fotografias poderão aparecer os rostos dos jurados. O magistrado marcou para as 16h30, do mesmo dia, a audição do caso desta mulher, que ficou imediatamente proibida de sair de Hong Kong. O telemóvel foi-lhe temporariamente confiscado. O juiz informou-a que, se não se apresentasse a horas, seria emitido um mandato.

O julgamento decorreu na sexta-feira, mas, na altura, não foi tomada nenhuma decisão. Este caso pode vir a arrastar-se por algum tempo.

A Secção 7 da Ordenança de Crimes Sumários Cap. 228, do Código Penal de Kong considera crime tirar fotografias numa sala de audiências, incorrendo o transgressor no pagamento de multa, que poderá ascender a 250 HKD. Não se surpreendam os leitores com este valor tão diminuto, é que a lei data de 1949.

Este foi a terceira vez, num espaço de três meses, em que ocorreram episódios desta natureza numa sala de Tribunal. Todos estes episódios sucederam durante os julgamentos de casos relacionados com os motins de Mongkok.

Em meados de Fevereiro, na terceira sessão do julgamento dos envolvidos nos motins, um homem do continente, sentado na galeria do público, foi apanhado a fotografar os jurados e a enviar as fotos através do Wechat. No entanto, o oficial de justiça não registou os seus dados e deixou-o sair em liberdade. A juiza, Ms. Pang, afirmou que acreditava que o incidente tinha ocorrido de forma “inadvertida” e que esperava que os jurados não se preocupassem.

No início de Março, cinco jurados foram informados, por uma pessoa que estava na galeria, que estariam a ser fotografados. Nessa altura, a polícia deteve de imediato um homem do continente, mas não encontrou nenhuma foto incriminadora, nem sinais de quaisquer fotos apagadas.

Em meados de Maio, enquanto o juiz se dirigia ao júri, alguém percebeu que um homem estava a tirar fotografias. A pessoa que deu o alerta, gritou “alguém está a tirar uma foto”. No entanto, os seguranças não conseguiram apanhar logo o culpado. Foi o que bastou para o homem apagar a imagem. Posteriormente foi libertado. Sexta-feira passada, quando foi emitido o veredicto dos envolvidos nos motins de Mongkok, alguém enviou um e-mail anónimo para o Tribunal com a fotografia dos jurados, onde se podia ler “ainda existem muitos …”. O juiz chamou de imediato a polícia e pediu que os jurados abandonassem a sala, escoltados pelos agentes.

Nos Tribunais existem diversos avisos, bem visíveis, de proibição de fotografar.

No caso Regina v Vincent (fotografia ilegal) CACD 2004, o juiz salientou que os Tribunais têm de estar atentos a situações de intimidação de jurados e das testemunhas. As fotografias tiradas durante um julgamento podem ser usadas para ameaçar o juiz, os advogados, os jurados, etc.

Além disso, é uma forma de identificar as testemunhas, os funcionários do Departamento dos Serviços Correcionais ou os agentes da polícia. É óbvio que tirar fotografias em Tribunal põe em risco o julgamento.

Um das razões que leva à proibição de fotografar no Tribunal, é a preservação da solenidade da Lei e o garante de que o julgamento não virá a ser afectado. Como em Hong Kong é actualmente implementado o sistema da Lei Comum, o júri está presente no julgamento. Os jurados precisam de protecção. Recentemente, foram tiradas fotografias em Tribunal por diversas vezes. Alguém chegou a enviar algumas destas fotos por email ao juiz. Se estas acções não forem travadas de imediato, não só verá o Tribunal a sua dignidade diminuída, como acabará por haver interferência nos julgamentos.

A abertura dos Tribunais destina-se a permitir que o público possa ter mais informação sobre a aplicação da justiça. No entanto, as pessoas devem respeitar o Tribunal e obedecer à lei. A privacidade dos envolvidos também terá de ser protegida. Interferir nos interrogatórios e subestimar a correcção dos Tribunais só irá afectar Hong Kong.

O mesmo princípio é aplicável a todos os Tribunais, em qualquer parte. A protecção de quem está envolvido no processo jurídico é necessária. Se esta garantia não for dada, ninguém vai querer trabalhar nesta área. E se isso vier a acontecer, teremos um mundo sem lei nem ordem.

29 Mai 2018

Martelo pneumático

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or toda a cidade espalha-se o chinfrim dos meus congéneres, milhares de martelos pneumáticos a quebrar solidez, a refazer, a destruir para construir. Por todos os recantos soam rajadas que escavam fundo a insónia e a sanidade mental. Macau é um eterno estaleiro de construção.

Onde não se constrói algo de raiz, há uma reconstrução em curso e outra já planeada para multiplicar a divisão dos sólidos. Os materiais mais rijos, como o cimento, tijolo e ferro, não aguentam a exposição aos elementos da região. Humidade, chuva ácida e uma profusão de paradoxos tornam os edifícios em estruturas raquíticas, de ossos fracos. Eu sou a broca nessas cáries arquitectónicas, o escopro mecânico que empresta vibração à vida de quem faz de Macau a sua casa. Declaro morte à audição e a tudo o que é sagrado à face da terra.

Sou a sinfonia que musica esta pequena balbúrdia, a banda sonora para a vida que se erige na vertical, a impetuosidade que não conhece perdão ou respeito pelo descanso e a paz dos humanos. Repouso ao domingo, mas todos os outros santos dias, das 9 às 5 se as regras forem cumpridas na terra que as considera decorativas, sou inferno sonoro para quem tem de conviver a um piso de distância da minha obra.

Tomo totalmente conta da vida das pessoas, imponho-me de forma implacável, incontornável. Por vezes, alinho-me num trio de martelos pneumáticos, ou num dueto com uma marreta, e torno impossível a conversa, o pensamento, a habitabilidade. Empurro pessoas para fora de suas casas, para fora das suas mentes, para além das fronteiras da razoabilidade.

As minhas vítimas predilectas são aqueles que trabalham à noite e que precisam da manhã para retemperar energias. Pobres almas penadas, condenadas à incoerência e a deambular arbitrariamente pela cidade, movidos por objectivos com curta esperança de vida. Espectros de olhos cavados pelo deficit de sono que tentam, em vão, concentrar-se em algo. Desafortunados com tampões nos ouvidos que retalham o sono nos momentos permitidos pelo meu desmedido sadismo.

Gosto de criar a ilusão de esperança durante meia-hora de silêncio, para voltar à carga com toda a força do automatismo. Comigo tudo é vago e a vida transforma-se numa sequência de surdos fotogramas.

Sou a analogia perfeita para toda perfuração sexual que se espalha em quartos de hotel na colectiva coreografia de destruição de carne. Fricção mecânica de martelos biológicos a escavar amor desesperado e insaciável nas paredes de calor e humidade.

O martelo pneumático devia ser o símbolo de Macau. O instrumento da perpétua construção e o remédio para a inevitável decrepitude da osteoporose dos edifícios e instituições. A representação dos trabalhos em curso, das obras que nunca acabam e que se arrastam em infernal algazarra, a materialização da existência barulhenta, indiferente a tudo e todos.

Conjugo demolição e construção, destruição e criação, vida e morte, Génesis e Apocalipse, todos os extremos instrumentalizados para fazer e desfazer esta cidade. Sou forjado pela bigorna de Hefesto e o martelo de Thor, sou a acção e o exercício de desmantelamento de tudo o que é sólido.

28 Mai 2018

As ambições do combate às alterações climáticas

[dropcap style≠’circle’]”T[/dropcap]he reality we now face implores us to act. Today we’re dumping 70 million tons of global-warming pollution into the environment, and tomorrow we will dump more, and there is no effective worldwide response. Until we start sharply reducing global-warming pollution, I will feel that I have failed.”

Al Gore

O que seria necessário para combater as alterações climáticas? Como seria esse combate na realidade sem atrasos, truques, falhas, e fugas de responsabilidade? Só será possível responder a esta e a muitas outras questões se conseguirmos entender o superior limite da ambição no combate às alterações climáticas. A meta acordada pelos países no “Acordo de Paris”, em 12 de Dezembro 2015, é de o aquecimento global se situar muito abaixo de 2 graus Célsius, com esforços de boa-fé para manter a elevação da temperatura em 1,5 graus Célsius. Os países não estão a mover-se em uma direcção que se aproxime o suficientemente rápido para atingir esse alvo, daí estarmos actualmente no caminho certo para atingir algo à volta de 3 graus Célsius.

É geralmente aceite que atingir 2 graus Célsius seria bastante ambicioso, enquanto atingir 1,5 Célsius seria menos que milagroso. Ainda que não exista nada, como um plano do mundo real para atingir essa meta, os modeladores climáticos criaram muitos cenários sobre como seria possível realizar. No entanto, a maioria desses cenários dependem fortemente de emissões negativas, ou seja, formas de puxar o dióxido de carbono para fora da atmosfera. Se as tecnologias de emissões negativas puderem ser ampliadas no final do século, o argumento vai dar espaço para emitir mais no início do século. E é o que a maioria dos cenários actuais de 2 graus Célsius ou 1,5 graus Célsius mostram, pois as emissões globais de carbono aumentam a curto prazo, e precipitam rapidamente para se tornarem negativas por volta de 2060, com giga toneladas de carbono, posteriormente, capturadas e enterradas no restante do século.

A gigante petrolífera Shell lançou um cenário nesse sentido há algumas semanas. Espera-se que o principal instrumento de emissões negativas seja a “Bioenergia com Captura e Armazenamento de Carbono (BECCS na sigla inglesa)” que é bioenergia (queima de plantas para gerar electricidade) com captura e sequestro de carbono. A ideia é de que as plantas absorvam carbono à medida que crescem quando são queimadas, sendo possível capturar e armazenar esse carbono. O resultado é a electricidade gerada à medida que o carbono é removido do ciclo electricidade de carbono líquido negativo. A maioria dos cenários actuais recorre a muitos “BECCS” no final do século para compensar os pecados de carbono do passado e do futuro próximo.

A pequena complicação é que actualmente não há indústria comercial de “BECCS”. Nem a parte “Bionergia (BE na sigla inglesa)” nem a “Captura, Sequestro e Armazenamento (CCS na sigla inglesa)” foram demonstradas em qualquer escala séria, muito menos na escala necessária. A área de terra necessária para cultivar toda essa biomassa para a “BECCS” nesses modelos é estimada em cerca de uma a três vezes o tamanho da Índia. Talvez se pudesse compelir  rapidamente uma indústria “BECCS” massiva. Mas apostar em emissões negativas no final do século é, no mínimo, um jogo enorme e fatídico, pois aposta a vida e o bem-estar de milhões de pessoas futuras em um sector que, para todos os efeitos, ainda não existe. Muitas pessoas concluem razoavelmente que é uma má ideia, mas as alternativas têm sido difíceis de encontrar.

É de recordar que não tem havido muita construção de cenários em torno de objectivos realmente ambiciosos e anular o carbono o mais rápido possível, manter o aumento da temperatura o mais próximo dos 1,5 graus Célsius e, o mais importante, minimizar a necessidade de emissões negativas. Essa é a limite superior do que é possível. Três situações recentes ajudam a preencher essa lacuna que é a “Transformação Global de Energia: Um Roteiro para 2050”, da “Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA na sigla inglesa)”, que é uma organização intergovernamental que apoia os países na sua transição para um futuro energético sustentável, traduzido em um plano que visa uma oportunidade de 66 por cento de permanecer abaixo de 2 graus Célsius, principalmente através de energia renovável.

Os analistas da “Ecofys”, que é uma empresa de consultoria líder em energia renovável, energia e eficiência de carbono, sistemas e mercados de energia e política de energia e clima, divulgaram recentemente um cenário para anular as emissões globais até 2050, limitando assim a temperatura a 1,5 graus Célsius e eliminando a necessidade de emissões negativas. Um grupo de académicos da “Agência de Avaliação Ambiental da Holanda”, publicou um artigo na revista “Nature Climate Change” em que investigam como alcançar a meta de 1,5 graus Célsius, minimizando a necessidade de emissões negativas. Porque razão atingir 1,5 graus Célsius é urgente? Os americanos não atribuem muito sentido a temperaturas Celsius, e meio grau de temperatura não parece muito importante. Mas a diferença entre 1,5 graus Célsius e 2 graus Célsius de aquecimento global é um assunto muito sério.

O “Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC na sigla inglesa)”, publicará uma revisão científica sobre o tema em Outubro de 2018, e um outro trabalho recente publicado na “Nature Climate Change” enfatiza claramente a ambição do combate de 2 graus Célsius para 1,5 graus Célsius, que evitaria cento e cinquenta milhões de mortes prematuras até 2100, noventa milhões de mortes através da exposição reduzida a partículas e sessenta milhões de mortes devido à redução do ozono. É de considerar que mais de um milhão de mortes prematuras seriam evitadas em muitas áreas metropolitanas da Ásia e da África, e mais de duzentas mil mortes em áreas urbanas individuais em todos os continentes habitados, excepto na Austrália. E não é tudo! É, claro, que a diferença entre 1,5 graus Célsius, e 2 graus Célsius, pode significar a diferença entre a vida e a morte de alguns países ilhas. Não há tempo a perder. De facto, pode haver um tempo negativo. Limitar a elevação da temperatura a 1,5 graus Célsius, é possível, mesmo em teoria, somente se o orçamento de carbono para essa meta estiver no limite das estimativas actuais, pelo que, e novamente 1,5 graus Célsius, só é possível se começarmos, com os auxílios, imediatamente, e tivermos sorte.

O tempo não está a acabar, estamos além dele. O que é necessário para limitar o aumento de temperatura a 1,5 graus Célsius? Os três cenários são diferentes de várias formas. Os dois primeiros projectos consideram até 2050, mas o trabalho da “Nature Climate Change” é uma previsão para 2100 e têm como alvo situações diferentes e usa ferramentas distintas, mas compartilham algumas grandes cláusulas de acção, características que qualquer plano climático ambicioso inevitavelmente envolverá. O primeiro será aumentar radicalmente a eficiência energética. Quanta energia será necessária até 2050? Isso depende da população e do crescimento económico, mas também depende da intensidade energética das economias do mundo e quanta energia primária necessitam para produzir uma unidade de PIB.

O aumento da eficiência reduz as emissões e existe uma corrida com crescimento populacional e económico e para descarbonizar radicalmente com emissões negativas mínimas, a eficiência precisará de superar o crescimento. O cenário da Shell mostra uma procura global de energia muito maior nas próximas décadas e o crescimento supera a eficiência. O cenário da “IRENA”, reduz as emissões globais relacionadas à energia em 90 por cento até 2050 e dessa percentagem é de considerar que 40 por cento é proveniente da eficiência energética. A “IRENA” afirma que a intensidade energética da economia global deve cair dois terços até 2050. Os avanços na intensidade energética terão de acelerar de uma média de 1,8 por cento entre os anos de 2010 a 2015 para uma média de 2,8 por cento ao ano até 2050. No cenário da “Ecofys”, a eficiência energética é tão elevada que a procura total de energia global é menor em 2050 do que actualmente, apesar de uma população muito maior e uma economia global três vezes superior à actual.

O documento da “Nature Climate Change” resume a abordagem necessária à eficiência em primeiro lugar, através da aplicação rápida das melhores tecnologias disponíveis para a eficiência energética e material em todos os sectores relevantes em qualquer a região. Todos os sectores relevantes em todas as regiões significa electricidade, transporte, edifícios e indústria, com os materiais e tecnologias disponíveis mais eficientes, em todo o mundo, começando imediatamente, em segundo lugar, pelo aumento radical da energia renovável. Todos os cenários prevêem que as energias renováveis, principalmente a eólica e a solar estão rapidamente a dominar a electricidade. O cenário da “IRENA” prevê que as energias renováveis ​​cresçam seis vezes mais rápido, fornecendo 85 por cento da electricidade global até 2050.

A “Ecofys” faz com que forneçam 100 por cento da electricidade global, com esse sector completamente descarbonizado até 2040, mesmo que a procura global por electricidade triplique. O documento da “Nature Climate Change” observa que a visão do domínio das energias renováveis ​​rápidas em todos esses cenários, tem em comum o envolvimento de suposições optimistas sobre a integração de energias renováveis ​​variáveis ​​e custos de transmissão, distribuição e armazenamento e em terceiro lugar, a ideia é de electrizar tudo, pois notavelmente, todos os três cenários envolvem fortemente a electrificação de sectores e aplicações que actualmente operam com combustíveis fósseis. No caso da “IRENA”, a electricidade sobe de 21 por cento do consumo total de energia global actual para 40 por cento até 2050. No cenário da “Ecofys”, atinge os incríveis 70 por cento.

O estudo da “Nature Climate Change” é aumentado para 46 por cento em comparação com 31 por cento no caso de referência e defender a electrificação não é complicado. Sabemos como aumentar radicalmente a oferta de electricidade com zero carbono e a oferta de combustíveis líquidos com zero carbono é muito mais difícil. Daí que faça sentido mover o máximo de energia possível para a electricidade, principalmente para veículos, aquecimento, refrigeração domésticos e aplicações industriais de baixa temperatura. O cenário da “Ecofys” é particularmente claro, pois se a energia renovável e a eficiência energética forem as ferramentas primárias de descarbonização, esta de forma completa requer que se faça a electrificação e em quarto lugar, é de considerar que se gere um pouco de emissões negativas. Ainda que as intenções dos pesquisadores da “Ecofys” e da “Nature Climate Change”, em particular, fossem minimizar a necessidade de emissões negativas, também não foram capazes de eliminá-las completamente.

É de considerar que independentemente da rápida descarbonização os pesquisadores da “Ecofys” afirmam que o orçamento de carbono de 1,5 graus Célsius é provavelmente, excedido. A única forma de se manter em 1,5 graus Célsius é absorver o excesso de carbono com emissões negativas. A “Ecofys” acredita que as aplicações de “CCS” serão confinadas principalmente à indústria e o restante pode ser trabalhado por florestamento, reflorestamento e sequestro de carbono no solo, ou seja, por métodos “não-CCS” de emissões negativas, e acrescenta que esse excesso de carbono remanescente é significativamente menor do que a maioria dos outros cenários de baixo carbono. No estudo da “Nature Climate Change”, a necessidade de “BECCS” pode ser completamente eliminada somente se cada uma das outras estratégias for maximizada Os pesquisadores concluíram que sobre as emissões negativas, que embora o estudo mostre que opções alternativas podem reduzir bastante o volume de “Remoção de Dióxido de Carbono (CDR na sigla inglesa) para atingir a meta de 1,5 graus Célsius, quase todos os cenários ainda dependem do “BECCS” e/ou reflorestamento, mesmo a combinação hipotética de todas as opções alternativas que ainda capturou 400 GtCO2 por reflorestamento). Logo, o investimento no desenvolvimento de opções de “CDR” continua a ser uma estratégia importante se a comunidade internacional pretender implementar a meta do “Acordo de Paris” pelo que os formuladores de políticas devem procurar estratégias de emissões negativas, mas a pensar em cenários alternativos como um seguro contra a possibilidade de que essas estratégias encontrem obstáculos sociais ou económicos imprevistos.

 

25 Mai 2018

Júlio Pomar, o suave rebelde

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo que por coincidência, mirei ontem à noite o relógio. Eram 01:57 e, sonolento, coloqueios auscultadores que estão bem perto, para ouvir as notícias da Antena 1. O noticiário abriu com uma triste notícia: Júlio Pomar tinha falecido aos 92 anos.

Olhei para o breu do tecto e ocorreu-me “A Cegueira dos Pintores” e de como me tinha comprazido a ler a escrita de um dos maiores pintores de sempre, de Portugal e, porque não, do mundo.

Se Pomar se tornou icónico pelo “Almoço do Trolha” e, consequentemente da sua inscrição no movimento Neorrealista português, será redutor tentar classificá-lo dentro de qualquer movimento. Júlio Pomar foi, igualmente, e como António Arnaut – desaparecido quase no mesmo dia – um cidadão de corpo inteiro, combatente pela liberdade, que foi preso por isso e por ser filiado no Partido Comunista Português, consequências da sua rebeldia perante preceitos e conceitos já fora de prazo.

Foi através da grande Amizade criada com outros grandes lutadores pela liberdade, Manuel de Brito e sua Mulher, Arlete Alves da Silva que, nos princípios dos anos 1980, me foi possível trazer a Macau, para a Galeria do Museu Luís de Camões, exposições da Galeria 111, entre as quais figuravam obras gráficas de Júlio Pomar. Foi no aprofundar dessa Amizade e de outras, como o grande Poeta Pedro Tamen e o Arq. José Sommer Ribeiro, respectivamente Administrador para as Belas-Artes e Director do Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, todos amigos entre si, que foi possível realizar em 1985 o “Ciclo dos Últimos Cem Anos da Pintura Portuguesa” em Macau, na Galeria do Leal Senado, e na qual, também Júlio Pomar foi um dos cabeças de cartaz.

Na sua obra perpassam não apenas o Neorrealismo com obras de referência como o já referido “Almoço do Trolha” e “O Gadanheiro”, e posteriormente “Os Cegos de Madrid”, uma quase invocação a Goya, de 1957, e sucessivos ciclos como as sínteses nuas que encontram no “Banho Turco” e em “Maio de 68” referências que serão substituídas por outra linguagem radicalmente diferente com a sua série de tigres e macacos do início dos anos 80, que se desenvolve noutra série que aqui se representará com o retrato de Fernando Pessoa e outras personalidades, e touradas e corvos, numa incessante deambulação naquilo que ele próprio consideraria “a sua volubilidade”.

Para além da admiração pela sua espectacular versatilidade que aqui se testemunha de modo incompleto, Júlio Pomar foi sempre um daqueles rebeldes suaves incapazes de ser outra coisa que não a sua autenticidade. A atestá-lo fica esta pequena estória:

Pomar estava em Macau com sua Mulher Teresa e o casal Arlete Alves da Silva e Manuel de Brito e fomos os três casais ao Forum de Macau para ouvir um concerto onde pontificava um pianista da nossa praça. As cadeiras eram incómodas, eu fazia barulho com o celofane dos meus rebuçados e, pelo canto do olho, reparo num aceno do Pomar; propunha-me irmos fumar. Saímos os dois e fomos para o átrio fumar e conversar placidamente, enquanto ao longe rugia a orquestra. Conversámos e fumamos livremente, até que terminou o concerto e se nos juntaram as respectivas mulheres e os amigos. Dias depois, de um modo extremamente afável, no Arquivo Histórico do Tap Seac, Pomar descerrava um trabalho do jovem Ng Vai Meng, dando-lhe um afável abraço.

Para se ser verdadeiramente grande é preciso ser-se autêntico. Para se ser autêntico, é preciso por vezes ser-se rebelde, o que, no caso de Júlio Pomar, foi sempre um suave mas determinado rebelde, a recordar-me uma pintura anagramática: o SG Gentil, de um autor cujo nome teima em não me chegar à memória. Todos estamos mais pobres.

24 Mai 2018

IDAHOT ou o dia contra as fobias

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] 17 de Maio de 1990 a organização mundial de saúde retirou a homossexualidade da sua lista de doenças, já a DSM (o manual de diagnóstico de psiquiatria) tinha retirado a homossexualidade da sua lista de distúrbios mentais também. Foram lutas particularmente difíceis pela persistência de certas fobias. Há quem tenha fobia de aranhas ou de espaços fechados e há quem tenha fobia da auto-determinação sexual. Depois de mais activismo e reivindicação, há uns anos atrás tornaram o dia 17 de Maio o Dia Internacional contra a Homofobia, Lesbofobia, Transfobia e Bifobia e o acrónimo na língua inglesa apresenta-se como IDAHOT.

É-me difícil conceptualizar este tipo de fobias, conceptualizar no sentido muito pessoal e mundano, porque conceptualizações formais devem existir aí aos pontapés. Do ponto de vista do outro, na procura das representações do outro, suponho que as pessoas tenham medo daquilo que elas julgam o ‘não-natural’ (até porque nós, humanidade, até somos muito conhecedores da ordem natural das coisas…). Mas fico-me por aí. Confesso que a minha imaginação não consegue ir muito mais longe para conseguir perceber o que leva a uns e outros a simplesmente recusarem a individualidade do ser, seja ela de que natureza for.

Estas fobias tendem a pôr numa caixa simples o que é complexo, como a orientação sexual e o género. Seja porque me julgo homem e quero desenvolver características femininas, ou porque sou mulher e quero estar com outras mulheres, e não preciso de ser uma maria-rapaz para sê-lo (nem ser reconhecida como tal), ou porque não me identifico com uma coisa com outra, ora faço operações para não dar corpo ao que determinaram à minha nascença. São situações complexas, de caixinhas igualmente complexas, que suscitam as tais malfadadas fobias que continuo a não conseguir compreendê-las.

Mas elas existem, a nível micro e a nível macro, a discriminação existe e estes dias de celebração continuam a fazer sentido porque ainda há mentalidades por esse mundo fora por mudar. Muitos afirmam que sabem exactamente como é que esse processo ocorre, mas digamos que pelas números elevados de violência contra as minorias sexuais, eu diria que há coisas que ainda não sabemos fazer. Milagres, por exemplo, não somos capazes de tornar este um mundo melhor de um dia para o outro. Pergunto-me, contudo, se a minha ignorância acerca daquilo que torna a fobia real não seja um problema. Devia mergulhar na retórica anti-LGBTI para poder de facto contestá-la. Não sei se esta não será uma ideia demasiado complexa para tão pouco espaço de escrita, mas aqui fica: Quando penso nos intolerantes das sexualidades não-‘heteronormativas’ a minha paciência esgota-se. Eu fico irritada, julgo o outro como ignorante e parto para outra. Mas não dou espaço, não dou espaço para ouvir o que me irrita e não dou espaço (nem tempo!) para desconstruir o que quer que seja, porque, sei lá, se uma pessoa é mal informada, é porque não teve a educação adequada. Tem que haver qualquer coisa mais, não é? Porque os detentores destas fobias que perpetuam certas e muitas formas de violência continuam a existir, e sinto-me limitada por conseguir fazer muito pouco – mas será que é a minha falta de paciência?

Mas o Papa, por exemplo, consegue fazer muito e parece que fez algo porreiro nestes últimos dias. Ele disse a alguém em privado (e não alto e em bom som) de que a homossexualidade é um acto de Deus. Nasce-se, vive-se e somos quem somos e aparentemente o Deus da tradição judaico-cristã poderá concordar com esta realidade. Será que viveremos para ver hasteada a bandeira pelos direitos LGBTI no Vaticano?

23 Mai 2018

O Espírito da Rota da Seda

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]m artigos anteriores foram explorados temas importantes para perceber o enquadramento histórico das relações comerciais actuais da República Popular da China (RPC) com o resto do mundo: ajuda externa, que durante décadas definiu as relações económicas da RPC com o estrangeiro; investimento em África, continente com o qual a RPC mantém desde sempre uma relação especial; a “Go Out Policy” e o ímpeto para a internacionalização e busca de mercados no estrangeiro, conjugados com a transformação do tecido industrial chinês.

A Iniciativa Faixa e Rota, que já assumiu vários nomes e siglas (OBOR, BRI, B&RI), pode, e deve, ser encarada como a evolução natural de políticas que a RPC tem implementado ao longo das últimas décadas.

Comecemos pelo discurso. A iniciativa foi anunciada a 7 de Setembro de 2013 em Astana, Casaquistão, pelo Presidente Chinês Xi Jinping, num discurso intitulado “Promover a Amizade entre Povos e Criar um Futuro Melhor”. Nele, multiplicam-se as referências históricas aos vários eixos de trocas comerciais que conectaram durante séculos diferentes regiões da Eurásia,e aos quais se refere habitualmente como “A Rota da Seda”.

O anúncio público do projecto tem forçosamente de ser analisado no plano político. Três pontos definem a sua base ideológica: (i) Ordem mundial multipolar; (ii) Globalização económica; (iii) Diversidade cultural. São ideias fundamentais do discurso político chinês.

O “Plano de Acção para a Iniciativa Faixa e Rota” publicado em 2015 pelo Concelho de Estado da RPC salienta a necessidade de “(…) aprofundar a confiança política; promover intercâmbio cultural; encorajar diferentes civilizações a aprender umas com as outras e a prosperar em conjunto; e promover o entendimento mútuo, paz e amizade entre as pessoas de todos as nações”.

Este apelo à multiculturalidade pode ser encarado como um aspecto complementar tanto da globalização económica como da promoção de uma ordem multipolar. Neste contexto, a evocação de um passado caracterizado por prosperidade global e de interacção entre povos contrasta com o mundo “ocidentalizado” (principalmente) pela difusão alargada da cultura popular americana. É este apelo a uma visão algo romantizada da Rota da Seda que marca o início do Plano de Acção, cristalizada no “Espírito da Rota da Seda – paz e cooperação, abertura e inclusão, aprendizagem mútua e benefício mútuo”.

Este aspecto não deve ser negligenciado em qualquer análise do BRI. No discurso político chinês, a história tem um papel importante. Serve como elemento legitimador para novas iniciativas, associando visão política a elementos identitários da nação chinesa.

Olhemos para a “Faixa”, a componente terrestre do BRI. A multiplicação de nomeações a Património da Humanidade associadas à Rota da Seda resulta de um esforço conjunto dos países do continente euroasiático. Estas nomeações servem um propósito político para os países participantes, com o reconhecimento internacional da história e cultura de diferentes civilizações. Mas a associação à Rota da Seda oferece também uma perspectiva histórica sobre a ideia de ligações comerciais e contactos civilizacionais transnacionais.

Existe também uma dimensão securitária na avaliação das potencialidades do BRI para os vários países envolvidos. Comércio e intercâmbio cultural contribuem para a construção de relações de confiança e respeito mútuo. Para a China, a estabilidade das suas províncias ocidentais (Xinjiang, Tibete) é uma preocupação constante. A criação de dinâmicas transfronteiriças nestas regiões, com o seu consequente desenvolvimento económico, é encarado como um processo necessário, tanto para a China como para países vizinhos, para mitigar problemas recorrentes de instabilidade, como os associados ao fundamentalismo islâmico.

Outro dos objectivos inerentes a este renovado ênfase no intercâmbio cultural relaciona-se com a desconfiança que a China tem enfrentado em alguns países. Do ponto de vista Chinês, trata-se sobretudo de um problema de percepção. Peter Frankopan, historiador britânico e autor do bestseller de 2015 “As Rotas da Seda” (que, inexplicávelmente, demorou cerca de três anos a merecer a sua primeira edição portuguesa) lamentava, em entrevista à organização Intelligence Squared, o carácter eurocêntrico do ensino de História no Reino Unido, daqui resultando uma visão distorcida que menospreza ou ignora civilizações cujo contributo para o desenvolvimento da humanidade é imensurável. Esta será uma conclusão que poderá ser considerada como válida para virtualmente qualquer país ocidental. Esta ignorância relativamente a outros povos e culturas, esta visão incompleta da história, contribui para um clima de desconfiança sustentada em primeiro lugar no desconhecimento e no preconceito.

O ênfase dado no discurso político chinês a uma ordem multipolar deve ser lido na lógica que decorre dos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica (1954) –   de respeito mútuo pela integridade territorial e soberania; de não-agressão mútua; de não-interferência mútua em assuntos internos; de igualdade e cooperação para benefício mútuo; de co-existência pacífica. Outra leitura, complementar à primeira, é que constitui um desafio directo à ordem mundial vigente, interpretada como ainda a resultante do fim da Guerra Fria e caracterizada como unipolar, com os Estados Unidos da América (EUA) como potência hegemónica. Trata-se de resto de um passo que os EUA já previam desde o tempo da administração Clinton, como afirma o académico neo-conservador Robert Kagan no seu livro “O Paraíso e o Poder” (2003), onde afirma que era já consensual entre os dois partidos americanos que o crescimento da China constituíria o grande desafio estratégico para os EUA durante as duas décadas seguintes.

Não tenhamos dúvidas, no entanto, que nesta multipolaridade, a China pretende ocupar a posição que considera natural em face do seu legado histórico milenar, contributo civilizacional, e dimensões populacional (20% da população mundial) e económica (15% da economia global; contributo correspondente a cerca de 25 a 30% do crescimento económico global). Com o projecto BRI, a China assume um papel de liderança neste processo de mudança, re-definindo a sua posição à escala global.

Nas palavras do já citado Peter Frankopan: “We are seeing the signs of the world’s centre of gravity shifting – back to where it lay for millennia”.

18 Mai 2018

O 1º de Maio e a história das duas cidades

[dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]urante os últimos anos, em Macau, o 1º de Maio (Dia do Trabalhador) tem sido uma das poucas datas regularmente assinalada com manifestações populares, para além do dia em que se comemora a transferência de soberania. No entanto, quer Hong Kong quer Macau, têm assistido ultimamente a um decréscimo deste tipo de demonstrações no Dia do Trabalhador.

Tendo perdido qualquer esperança na realização de um sufrágio universal, no rescaldo do “Movimento dos Chapéus de Chuva”, a sociedade de Hong Kong padece de pessimismo. Embora grupos de jovens tenham expressado a sua insatisfação de formas radicais, acabaram por ser silenciados após os protestos de Mong Kok. A chamada “resistência corajosa” chegou ao fim. O afastamento de dissidentes, por parte do Governo em funções, tem vindo a ser progressivamente intensificado. Mesmo os jovens da organização “Demosistō” acabaram por ser considerados não elegíveis para o Conselho Legislativo. Como Hong Kong tem sido paralisado por um sentimento de impotência, tornou-se difícil mobilizar as pessoas para manifestações e protestos .

Em Macau, a política de “distribuição de dinheiros”, implementada ao longo dos últimos dez anos, tem funcionado como um anestésico. À excepção de pequenos grupos com consciência política, em geral, os manifestantes são desorganizados e não apresentam propostas concretas. Além disso, as manifestações não constituem momentos significativos. Mas, ainda mais determinante, é o facto de se registar uma fraca participação nos movimentos sociais, por parte dos jovens que não pertencem ao campo pró-governamental. E isto é válido tanto para as apreciações positivas aos bons desempenhos do Governo da RAEM, como para as críticas aos seus maus desempenhos.

Se os desempenhos dos Governos de Hong Kong e de Macau forem reconhecidos pelo Governo Central, as populações das duas cidades desfrutarão de paz e de estabilidade. Mas, na realidade, o que se verifica é uma constante subida dos preços das habitações e a um acentuar das discrepâncias entre os ricos e os pobres, o que causa um declínio da qualidade de vida das populações. O Governo de Hong Kong tem uma actuação excessiva, mas pouco gratificante para os habitantes da cidade, enquanto em Macau temos um Governo com discursos vazios de sentido, mas uma população satisfeita com a vida que tem. Estas duas regiões são assoladas por grandes questões e por pequenos problemas, no entanto, os conflitos de fundo enraízados nestas sociedades constituem uma situação deveras preocupante, especialmente quando verificamos a indiferença da juventude.

No 1º de Maio fui a Hong Kong e reparei que não existe tanta animação como em Macau. Causeway Bay não estava tão cheia de gente como a Avenida de Almeida Ribeiro. O Terminal de Sheung Wan, dos Ferrys que fazem a ligação Hong Kong-Macau não tinha muita gente. Apenas alguns grupos de pessoas iam em direcção do Terminal da Taipa, o que evidencia um decréscimo óbvio de turistas do continente. Se compararmos com as longas filas que se formaram para atravessar a fronteira de Gongbei para Macau, no passado dia 30 de Abril, verificamos que, para os turistas continentais, Hong Kong é um destino longínquo.

De acordo com os dados da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, a maioria do visitantes de Macau são originários da China continental. Se vier a haver um decréscimo no turismo do continente, Macau ficará tão“calmo” como Hong Kong, ou numa situação tão desastrosa como Taiwan. Por outras palavras, a seiva económica de Macau depende do turismo do continente. Mas será que existem em Macau produtos especiais de que necessitem particularmente os turistas continentais? Será que Macau possui algumas marcas de que se possa orgulhar? Se a China abrisse balcões com produtos farmacêuticos nas lojas duty-free, nos pontos de entrada em Macau, interrogo-me quantas Farmácias de Macau continuariam de portas abertas.

As Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong e de Macau não registaram nenhum desenvolvimento significativo desde a transferência de soberania para a China. O Centro de Medicina Chinesa e o projecto Cyberport de Hong Kong acabaram por não dar em nada. Depois do regresso de Macau à soberania chinesa, verificou-se um fiasco na reestruturação da indústria. Se a China não tivesse implementado o Programa de Visitas Individuais, que permitiu a tantos dos seus habitantes trabalhar em Macau, o sector imobiliário da cidade não teria florescido e, apesar da liberalização da indústria do jogo, os casinos não estariam cheios.

Os homens de negócios de Hong Kong e de Macau desejam fazer fortunas, mas carecem de visão para um desenvolvimento a longo prazo. Os funcionários dos Governos de Hong Kong e de Macau limitam-se a depender do Continente e perderam a vontade de trabalhar com empenho. Com a implementação da Área da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, muitas cidades da China já prepararam as suas infra-estruturas visando a participação neste projecto. No entanto, em Macau, a rede do Metro ligeiro nem sequer se vislumbra no horizonte.

A existência de uma cidade depende da existência de traços e de valores que a distingam. Mas os traços e os valores distintos de Hong Kong e de Macau estão a extinguir-se.

18 Mai 2018

Imaculadas concepções         

I

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma declaração que me deixou a pensar esta semana foi a da deputada e presidente da Associação Geral das Mulheres de Macau (AGM), que citada por um jornal da concorrência, terá dito qualquer coisa como: “Se uma mulher vai ter um bebé ela deveria saber se o consegue sustentar. Existem outros hospitais em Macau e estas mulheres [não residentes] podem sempre voltar para os seus países onde podem gozar benefícios. Além disso, uma grávida não está sozinha, ela tem um parceiro com que pode partilhar os custos”. Pode ser que tenha ficado qualquer coisa perdida na tradução, uma vez que estas declarações foram proferidas na língua chinesa, mas o essencial está lá. Isto veio a propósito do recente aumento do custo dos partos para as mulheres não-residentes, e apesar de eu não concordar com a ideia, consigo entender a estratégia e o contexto. O que aqui me causa arrepios é a forma. Em primeiro lugar, é mentira que em Macau existem “outros hospitais” – existem dois, que eu saiba, que realizam partos. E quanto à parte de mandar as pessoas para a terra delas dar à luz, prefiro não tecer comentários. Depois fico a pensar que a noção que a AGM tem dos mecanismos de reprodução humana são um tanto ou quanto bizarros. Desde quando é que um esperma sabe se o seu “boss” tem dinheiro ou não, ou um óvulo sabe se a sua proprietária é casada? Só posso depreender que uma mulher grávida que recorra à AGM leve com um seco “peça ajuda ao seu companheiro”. Nisso elas têm razão: os bebés não se fazem sozinhos. Alguma coisa sabem, pelo menos. É muito triste.

II

Falando agora de coisas agridoces. Realizou-se no último fim-de-semana em Lisboa o Festival da Eurovisão, que para mim é, como sabem, é uma grande coisa – já houve quem me tivesse chamado de “pimbalhão festivaleiro”, ao que só posso agradecer o elogio. Sinceramente não entendo como é que alguém pode ser averso a um evento que se realiza uma vez por ano, e não chateia ninguém, mas adiante. A imagem de Portugal saiu reforçada, graças a uma excelente organização e à forma sempre calorosa com que as gentes de Lisboa recebem os seus visitantes. Foi um investimento que valeu a pena, e para os fãs portugueses da Eurovisão, como eu, foi uma espécie de peregrinação a Meca. Mas não há bela sem senão, pois o vencedor foi a canção de Israel, no mesmo fim-de-semana em que o estado judaico comemorava os 70 anos da sua independência e a embaixada dos Estados Unidos se mudava para Jerusalém. Para piorar as coisas, deram-se confrontos entre o exército israelita e um grupo de manifestantes palestinianos que resultou em baixas significativas para estes últimos. Sem se saber bem como, todos estes ingredientes foram cozinhados numa indigesta omelete – e nada kosher, também. A canção de Israel ganhou porque era a favorita, e tinha tudo para ganhar. Apesar da lufada de ar fresco que foi Salvador Sobral no ano passado, e este ano termos uma senhora da Estónia a cantar ópera, o festival não é propriamente conhecido pela sua erudição. Só que teorias da conspiração não faltaram, desde que o resultado foi fabricado, até ao ponto de se sugerir que a realização do festival no próximo ano em Jerusalém é “uma provocação”. Israel já organizou duas vezes o festival, e foi sempre em Jerusalém. Haja dó. Quem fica mesmo a perder com isto é a artista, a Netta Barzilai, com quem dá para simpatizar e tudo. Coitada da Netta.

17 Mai 2018

Pedofilia (aqui tão perto?)

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e há por aí alguém que tenha acompanhado as minhas perspectivas do sexo nesta secção temática de escrita, saberá que pedofilia foi um tema sobre o qual nunca proferi nem uma palavra. E isso aconteceu por alguma razão. Primeiro, porque é um tema extremamente difícil de se tratar e de compreender, e segundo, porque é todo um universo que me dá raiva, mal-estar e indignação – tudo.

Não é fácil aceitar a suspeita de que poderão ter existido abusos sexuais no Jardim de Infância D. José da Costa Nunes. Estamos todos em choque. Eu andei no Costa Nunes – informação que não interessa para nada, tanto até porque foi há uns 25 anos, mas o sentido de familiaridade permanece. É com misto de surpresa e rancor que me pergunto como é que a pedofilia poderá estar tão perto.

A dificuldade de lidar com estes casos acontece nas várias frentes, e isso tem sido bastante claro para quem tenha acompanhado os acontecimentos dos últimos dias. Como se pode identificar? Como se pode prevenir? Como se pode sancionar? Como se pode resolver? Não tenho respostas claras e o universo institucional de Macau parece estar também no embroglio do não saber bem o que fazer, nem como fazer. Que até poderia dar um desconto – mas não quando estão crianças de três anos expostas a realidades que não deviam ser as delas. Não tendo eu respostas concretas, que não será novidade, porque este não é o meu tema de especialidade, certamente existirão académicos, profissionais, burocratas a quem pedir algum parecer e algum insight acerca das medidas a tomar. Macau (e vão perdoar-me a generalização) continua a provar que em tempos de crise (sejam eles de que tipo forem) não sabe reagir.

No Jardim de Infância poderá ter acontecido o que não queremos que aconteça, e a complexidade do que aconteceu não é só a do que leva ao comportamento pedófilo. Há estruturas burocráticas e institucionais, perspectivas de sexo e expectativas de género, que revelam certas ‘tendências’ ideológicas da sociedade e que moldam a forma como percebemos estes problemas. O que quero dizer com isto – o problema começa logo com a dificuldade em identificar, e em constituir prova e suspeita, o abuso sexual. Que não é, pura e simplesmente, penetração genital, mas que pode tomar todas e muitas formas de sexualidade e sensualidade. Quando, há 6 meses atrás, houve uma primeira desconfiança de que algo de errado se passava, pergunto-me o que poderá ter acontecido para não ter sido logo averiguada. Seriam falta de provas? Distracção? Incompreensão do que pode ou não pode constituir um abuso? O facto do alegado abusador não ter sido (logo) constituído arguido também me parece ser sintomático da dificuldade de identificação do abuso e do crime.

Na nossa tentativa de dar sentido a uma coisa destas, é normal também começarem a traçar ‘perfis’ de como identificar um abusador. Será que o problema (e culpa) foi da permissividade do infantário ao deixar um homem-empregado mudar as fraldas de crianças meninas? Aí já terei que pedir muita reflexão por parte ‘dos públicos’, porque infelizmente, os pedófilos não são só homens, nem tomam a direcção que se julga ‘heterossexual’. Parece-me ingénuo que se tome uma medida destas para travar todo e qualquer risco de abuso sexual a menores em instituições. Se calhar mudar fraldas não era da competência de um empregado de limpeza, concordo, mas certamente muitos de nós, em contexto de trabalho, já teve que desenvolver tarefas que não era da nossa competência. O problema não é mudar fraldas, o problema é que a pedofilia é um distúrbio mental identificado na DSM-5 do qual não existem exames psicológicos para encontrá-lo (só critérios de diagnóstico, que depende da honestidade do sujeito). Também – é um distúrbio que posto em prática é julgado com pena de prisão, que na minha opinião é curta (8 anos?!) quando o risco é o de afectar a vida e desenvolvimento de crianças indefesas. São precisas medidas, são precisas acções, são necessárias cabeças para reflectir acerca das nossas estruturas e mecanismos. Continuará a ser um tema difícil, de resoluções difíceis – a única coisa fácil é de que é urgente e imperativo proteger as crianças.

16 Mai 2018

As cidades sustentáveis e a eficiência de recursos

“Problems Of Poverty Are, On Most Occasions, Inextricably Linked With Those Of Water – Its Availability, Its Proximity, Its Quantity, And Its Quality.”

United Nations’ World Water Report, 2015

 

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]té 2050, o número de pessoas que vivem nas cidades terá quase duplicado, de três mil e seiscentos milhões de pessoas para mais de seis mil milhões de pessoas. No entanto, as áreas urbanas do mundo estão superlotadas e, particularmente nos países em desenvolvimento, sofrem com a escassez de água limpa, electricidade e outros recursos essenciais para o apoio das suas explosivas populações e economias frágeis. Os problemas criados pela urbanização desenfreada estão entre os desafios mais importantes do nosso tempo, mas também representam uma das maiores oportunidades e responsabilidades para o sector privado.

Os negócios estão posicionados de maneira única para moldar as cidades sustentáveis ​​e economicamente competitivas do futuro. Muitas empresas e investidores assumem que a fixação de cidades é da competência dos governos que devem agir em conformidade. Os governos ao redor do mundo estão presos, financeira e politicamente. Não é possível acreditar e esperar que resolvam sós os problemas da urbanização ou concebam soluções, como a electrificação eficiente e o transporte público confiável, que impulsionarão o crescimento económico.

A implementação dessas soluções requer grandes quantidades de capital, habilidade em termos de gestão excepcional, alinhamento significativo de interesses, e frequentemente todos são escassos nos governos municipais, mas abundam no sector privado. É possível concluir de estudos recentes que consultadorias com governos municipais, urbanistas, empresas e empreendedores nos Estados Unidos, Europa, América do Sul e Ásia, pela existência de muitas estratégias empresariais diferentes para enfrentar os desafios impostos pela rápida urbanização e recursos escassos. Muitas vezes, concentram-se na expansão do provimento, fornecendo mais água, electricidade, estradas e veículos.

As empresas estão a descobrir, cada vez mais, como criar e reivindicar valor, melhorando a eficiência de recursos, por meio da contratação de desempenho energético, por exemplo, e outras estratégias que superam as barreiras comerciais, reduzem o desperdício e ampliam os recursos. Para tal é necessário criar uma estrutura para identificar e perseguir tais oportunidades. A estrutura deve basear-se em três pilares como novos modelos de negócios que geram lucros optimizando o uso de recursos; engenharia financeira que incentiva investimentos em eficiência e selecção cuidadosa de mercados.

Ainda que qualquer abordagem de determinada empresa dependa das suas capacidades e objectivos e do mercado em que está a penetrar, as estratégias gerais a fornecer devem ser relevantes tanto para os participantes, como para as empresas de infra-estruturas e fornecedores de turbinas, comboios e outros equipamentos, e empresas de maior dimensão, como as dos sectores da tecnologia de informação, serviços financeiros e produtos de construção. Seja qual for a indústria, os investimentos estratégicos em eficiência de recursos à medida que as cidades estão a ser construídas ou reconstruídas, podem gerar valor para as empresas a longo prazo, ao mesmo tempo que aumentam a competitividade das cidades. Uma empresa ou um investidor pode ter como alvo uma série de iniciativas de gestão de recursos devendo os projectos de água, electricidade e trânsito merecer a maior atenção.

As empresas que têm água para processar alimentos e materiais, em que as luzes e computadores são alimentados de forma confiável, cujos produtos podem chegar ao mercado e que os funcionários podem trabalhar com rapidez e eficiência, estão claramente em vantagem. Os cidadãos com acesso fácil a água potável, cujos filhos têm luz para ler e estudar, e que podem viajar com eficiência e economia têm uma base sobre a qual prosperarem. Todos os outros serviços oferecidos por uma cidade competitiva, como moradia funcional, escolas, hospitais, lojas, instituições de polícia e bombeiros, aquecimento, arrefecimento, gestão de resíduos dependem de uma infra-estrutura confiável de água, electricidade e trânsito. Para entender esta oportunidade, deve considerar-se como as iniciativas de eficiência de recursos se comparam à sofisticação tecnológica e financeira.

Os produtos e serviços que as novas cidades precisarão, e que proporcionam o retorno necessário aos investidores e empreendedores, optimizam ambos. As ofertas de uma empresa podem ser posicionadas de acordo com essas características em uma matriz de eficiência. Se imaginarmos quatro quadrantes, a sofisticação tecnológica aumenta da esquerda para a direita, enquanto a sofisticação financeira aumenta de baixo para cima. As mercadorias de baixa tecnologia, como a compra de isolamento em uma transacção simples entre o comprador e o vendedor, ocupariam o canto inferior esquerdo e programas sofisticados, como a optimização da procura resposta na electricidade, ocupariam o canto superior direito.

O termo engenharia financeira na ciência matemática, descreve o uso de algoritmos para criar estratégias de negociação, mas neste contexto, refere-se a um conjunto geral de estratégias de financiamento e estrutura de capital para empresas e projectos. Em um projecto rodoviário de baixa engenharia financeira, por exemplo, um governo arrecadaria impostos para pagar a construção de uma só vez. A alta engenharia financeira para uma rodovia privada pode incluir dívida de curto prazo; obrigações de longo prazo; “swaps” de taxa de juros; contribuições de terrenos em troca de títulos, instrumentos de dívida ou acções; financiamento de fornecedores para apreciações futuras; e equidade no promotor, operador e na empresa de engenharia.

Tal abordagem é projectada para atrair mais capital para o projecto, oferecendo diferentes níveis de risco e retorno, prioridades de fluxo de caixa e oportunidades para investidores de curto e longo prazo. Quando os governos estão amarrados e não podem fornecer infra-estruturas básicas, sendo essas técnicas tão particularmente úteis, caso contrário, pode ser difícil igualar o custo do investimento inicial em eficiência de recursos, com os benefícios extensivos e amplamente distribuídos que são realizados a longo prazo. Os produtos e serviços de eficiência de recursos de uma empresa podem ser combinados de acordo com a sua sofisticação financeira e tecnológica.

À medida que a sofisticação aumenta, as ofertas aproximam-se da fronteira de eficiência no perímetro da matriz. A matriz é útil para determinar a actual posição estratégica dos produtos, serviços e investimentos de uma empresa, mas é mais valiosa para prever onde a empresa poderia ter melhores lucros. O novo valor pode ser criado e capturado movendo-se horizontalmente ou verticalmente dentro de qualquer parte do quadrante. No entanto, as empresas que mudam os seus modelos de negócios e ofertas para a parte superior direita do quadrante podem ganhar mais, e também terão maior impacto sobre as necessidades de recursos das cidades em expansão do mundo. Frequentemente significa desempenhar o papel de coordenador ou descobrir como financiar um serviço, algo que os jogadores individuais não podem fazer sós

É nessa parte do quadrante que as ofertas de uma empresa são mais diferenciadas, favorecem soluções multipartidárias e são mais propensas a criar valor para todos os participantes. Antes de considerar as principais empresas que estão a fazer essa mudança, é necessário analisar cada quadrante. O primeiro quadrante mostra que a maioria das empresas que vendem produtos e serviços com eficiência de recursos competem com ofertas de mercadorias relativamente simples, como equipamentos que economizam água e iluminação eficiente em termos energéticos.

Os mercados neste quadrante são grandes e as empresas sabem operar dentro deles. No entanto, as ofertas mostram pouca distinção e, embora o volume de vendas possa ser alto, as margens são baixas. Os produtos vendidos tendem a ter um impacto bastante pequeno sobre a sustentabilidade e a competitividade a longo prazo nas cidades. O segundo quadrante, mostra que as empresas que participam de projectos básicos de infra-estruturas e serviços públicos, como a construção de estradas e redes eléctricas e transporte colectivo, geralmente operam nesta área.

Os projectos neste quadrante podem implicar financiamentos sofisticados que dividem os riscos e recompensas de investimento entre as partes e podem atrair mais capital do que os governos normalmente conseguem. O terceiro quadrante mostra que as empresas industriais de produtos e tecnologia geralmente operam nessa área com ofertas como ar condicionado, bombas e roteadores de rede que competem em desempenho aperfeiçoado. As tecnologias aperfeiçoadas podem ajudar a alargar recursos, mas geralmente são fornecidas em vendas únicas a utilizadores individuais. O quarto quadrante, mostra que as empresas que aí operam, combinam tecnologias sofisticadas com novos modelos financeiros para dimensionar ofertas de eficiência de recursos e gerar economias ou lucros substanciais, geralmente para várias partes e frequentemente actuam como agregadores de informações que lhes permitem coordenar a entrega eficiente e o uso de recursos entre muitos fornecedores e consumidores.

A fronteira da eficiência é conceitual e separa os produtos e serviços de eficiência de recursos convencionais dos novos e sofisticados, que oferecem eficiência e retornos exponencialmente superiores. Produtos de mercadorias de baixa tecnologia ficam bem aquém dessa fronteira. Assim como uma empresa de alta tecnologia, com uma nova central de dessalinização de água, pode ultrapassar a fronteira. A melhor eficiência de recursos é difícil para as empresas conseguirem agindo sós; arranjos multipartidários, muitas vezes envolvendo serviços terciarizados, ajudam a mudar as inovações para a fronteira. As soluções de eficiência de recursos não são realmente soluções, a menos que sejam também empresas lucrativas.

As soluções mais convincentes avançam em direcção à fronteira da eficiência de três formas, são multipartidárias ou multiempresas; alavancam tecnologias de informação e comunicação em exclusivo; e atraem capital oferecendo aos participantes vários níveis de risco e recompensa ao longo de vários períodos. Existem assim, algumas soluções nas três áreas mais merecedoras de atenção. A água limpa está em escassez cada vez maior em todo o mundo. Quase metade da população mundial vive em áreas onde a água é escassa ou as infra-estrutura necessárias para colectá-la, purificá-la e distribuí-la é parca. Se as tendências actuais de consumo continuarem, até 2030 a procura excederá a oferta actual acessível e confiável em 40 por cento.

A Índia, vive uma dramática situação, com cento e cinquenta milhões de pessoas a viverem aquém do alcance das infra-estruturas de água potável existente. A “Piramal Sarvajal” é uma empresa social, criada pela “Fundação Piramal”, em 2008, localizada em Gujarat, orientada por missões que projecta e implementa soluções inovadoras para a criação do acesso económico a água potável em áreas carentes e está na vanguarda do desenvolvimento de tecnologias e práticas de negócios no sector de água potável segura, projectadas para tornar um modelo puramente baseado no mercado, sustentável tanto em condições de implantação rurais quanto urbanas, A“Piramal Sarvajal” combina tecnologias antigas e novas e engenharia financeira para fornecer água limpa com eficiência.

As unidades de purificação de água osmose reversa com lâmpada UV estão no centro do sistema da empresa que associa essas tecnologias convencionais a monitoramento remoto, baseado em nuvem que fornece dados de desempenho do sistema em tempo real, e máquinas de venda automática que fornecem água com o cartão pré-pago. As pessoas podem comprar água nas caixas electrónicas de água, e a empresa também abastece hospitais e outras instituições em assentamentos urbanos por meio de micro-redes aquáticas. A empresa depende de um modelo de franquia, trabalhando com empreendedores aos quais fornece formação, equipamentos de filtragem e outros recursos. Essa forma de engenharia financeira traz substancialmente mais capital para a P&D e para operações do que qualquer um dos empreendedores poderia ter adquirido.

Actualmente, cerca de cento e cinquenta franqueados venderam mais de duzentos milhões de litros de água potável em seis Estados indianos. A “Piramal Sarvajal” aplica uma solução eficiente de distribuição de recursos para atender a uma necessidade não satisfeita, economizando dinheiro de governos e pessoas (a compra de caixas electrónicas de água é menos dispendiosa do que a purificação de água em casa) e a eliminação do desperdício resultante de filtração individual ou distribuição em larga escala. A empresa mudou de uma abordagem do status quo d primeiro quadrante para uma solução do quarto quadrante de alta tecnologia e financeiramente projectada para o fornecimento de água rural e urbana fora da rede.

A uma escala muito maior, a “General Electric” também fornece soluções do quarto quadrante. Além de equipamentos como bombas e filtros, a “GE Intelligent Platforms” vende serviços que colectam e analisam dados de componentes de infra-estrutura hídrica. No passado, os operadores de equipamentos tinham pouca informação sobre como os componentes de um sistema interagiam. A falta de visibilidade dos padrões de procura, “stocks” em reservatórios ou tanques e questões de desempenho como a eficiência e vazamentos da bomba significaram que a extracção, o tratamento e a entrega de água eram ineficientes.

A alta procura por soluções de água limpa, electricidade e trânsito é certa em qualquer cidade em crescimento nos mercados emergentes. Muitos dos critérios naturais para a segmentação de mercados que se aplicam a economias desenvolvidas e cidades existentes também se aplicam a novas cidades, com características como tamanho e crescimento da população, rendimento per capita, maturidade da restante da cadeia de fornecimento e presença de concorrentes. Mas, obviamente, as circunstâncias nessas cidades são imensamente variadas e particulares às situações políticas e económicas e por vezes caóticas. Uma nova tecnologia de água ou modelo de negócio que é bem-sucedido em um mercado pode falhar em outro por razões que têm pouco a ver com a procura e muito com as características do mercado, recursos e capacidades do participante.

15 Mai 2018

Inimputável

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]evar é um fenómeno raro em Macau, ainda assim, não faltam flocos de neve no território. Frágeis, quebradiços e suspensos no ar. Sou um desses fenómenos que extravasa da meteorologia para o campo emotivo. Sou sensível como uma pluma, leve como o hélio, sou a soma de todas as sensibilidades num povo que se quer forte, implacável e talentoso. O meu núcleo é feito de delicadezas e nervos que concentram todas as susceptibilidades de uma personalidade que sofre de raquitismo. A última coisa que quero é sentir-me responsável pelo quer que seja, muito menos pelas minhas próprias acções ou palavras.

Nunca ninguém me disse que a idade adulta implicaria este grau de responsabilização e que teria de dar a cara pelas minhas convicções, nunca me explicaram que a minha voz tinha como efeito secundário a exposição do meu corpo nu perante os olhares reprovadores da aldeia. Em privado, mostro-me interventivo, corajoso, ostento uma estoica frustração de quem não consegue fazer mais pelo bem-comum. Quando tenho oportunidade para fazer algo, fico com as orelhas quentes, sobe-me um rubor à cara e lembro-me das palavras proféticas da minha santa mãe: “filho, tu vê lá no que é que te metes”.

A tacanhez tímida que me impede de participar na iluminação de um assunto é acompanhada por uma vociferante crítica de quem procura escalpelizar os problemas do quotidiano. Nas redes sociais sou um justiceiro, disparo teorias de conspiração e calúnias aberrantes aos quatro cibernéticos ventos. Nesse momento, atrás do aparente anonimato do verbo escrito, sem ouvir a minha própria voz, atiro ao ar todas as conjurações que me ocorrem. Depois disso, falo em surdina, de cabeça baixa, porque nunca se sabe quem pode ouvir e denunciar-me na paróquia.

Tenho tanta inveja das facilidades que o Governo tem em esquivar-se a questões. Basta-lhes atirar um rol de clichés e está feito, nunca ninguém irá perguntar mais nada ou, se o fizer, reitera-se o vazio até à náusea. Quem ocupa a cadeira do poder, mesmo que esteja perante algo visivelmente ilegal, profere a ave-maria jurídica “no rigoroso respeito da lei” e segue para o bingo da absolvição. Mas eles funcionam noutro nível, os seus flocos de neve derretem de outra forma. Também camuflam debilidades com força bruta, mas têm as costas bem mais quentes que eu. A eles falta-lhes a rijeza da representatividade popular, o que lhes dá um temor de morte da população que governam. A mim, falta-me a representatividade pessoal, não sou o embaixador de mim, sou um ser perdido sem ligação a nada, a não ser os meus mais profundos receios. Se baixo a guarda e falo honestamente durante um curto período de tempo volto atrás, nego o que disse ou tento voltar atrás na minha exposição e rastejar de regresso ao lugar escuro onde se sinto seguro.

Outra das minhas preocupações são as minhas pequenas coutadas. Acho sempre que tudo está mal nesta terra, ou na minha originária, ou na Lua. Mas com os meus interesses está sempre tudo bem e que ninguém ouse sequer iluminar o que se passa nos recantos das minhas predilecções, ou escrutinar as minhas coutadas.

Tenho responsabilidades na minha associação, mas não me responsabilizo por nada. Tenho assento numa entidade de interesse público, mas o que se passa lá não é do interesse do público. A minha forma de resolver os problemas é fingir que eles não existem, é mantê-los fechados a marinar no mofo. Se algo acontecer, negarei a realidade com todas as forças até ela me rebentar na cara. Aí escondo-me atrás do “sem comentários”, da “altura inapropriada”, “do respeito pelos envolvidos”. Estes são os meus álibis argumentativos, tão vazios como os lugares-comuns dos que me governam.

E agora é que estou a reparar que esta confissão está repleta de palavras comprometedoras, sinto-me exposto, a torrar ao sol como um condenado a trabalhos forçados. Retiro tudo o que disse, estas não são as minhas palavras, sinto-me profundamente agastado com a ignomínia do abuso das minhas posições depois de as ter proferido. Nunca disse nada, reservo-me ao direito de estar em silêncio, no meu canto, à espera do colo reparador da mamã. Não assumo responsabilidade por mim, mas tudo o que me rodeia é uma pouca vergonha e um escândalo de todo o tamanho. Olhem para ali, txiiii que vergonha. Fui.

14 Mai 2018

De quem depende a segurança do Estado?

[dropcap style=’circle’] O [/dropcap] Chefe do Executivo deslocou-se à Assembleia Legislativa para responder a algumas questões dos deputados. A maioria dos 33 representantes, à excepção de Ho Iat Seng (Presidente da Assembleia), de Cheung Lup Kwan e do deputado suspenso Sulu Sou, colocaram questões de circunstância. Foram muitos poucos os que levantaram questões significativas, pelo que daqui não saiu nada que valha a pena ser discutido. Parece-me mais interessante dedicarmos algum tempo a analisar o Artigo 23 da Lei Básica.
Os meus leitores provavelmente saberão que o Governo de Macau aprovou legislação para implementar o Artigo 23 da Lei Básica, em 2009, e que a “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado” foi então promulgada. Embora, ao longo dos 19 anos que decorreram desde o regresso à soberania chinesa não tenha havido em Macau nada que pusesse em risco a segurança do Estado, 9 anos após esta data foi introduzida legislação, que, de certa forma, pretendia concluir a missão da recuperação do território para a China. No entanto, obediência absoluta não quer dizer lealdade absoluta. O Governo de Macau vai introduzir uma série de leis e de regulamentos associados à “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado” e irá criar os respectivos departamentos estatais.
Macau confia na indústria do jogo para obter enormes dividendos e a prosperidade da sua economia está dependente dos turistas da China continental. A voz dos dissidentes locais mal é ouvida. O Governo de Macau dá todos os anos dinheiro aos seus residentes, o que provoca que se habituem a viver um estilo de vida “patriótico e apaixonado por Macau”. Os novos imigrantes veem Macau como um paraíso, e mais de 100.000 trabalhadores estrangeiros chegam aqui em busca de riqueza e não de “revoluções”. Acredita-se que esta cidade é um dos lugares mais seguros de toda a China.
Aprovar legislação relacionada com o Artigo 23 da Lei Básica é uma necessidade política. Mas qual é o objectivo de introduzir leis e regulamentos paralelos? Será para mostrar à população de Hong Kong que, futuramente, o seu sistema virá a ser igual ao de Macau, em termos de segurança do Estado?
Se for este o caso, temo que a visita de Qiao Xiaoyang a Hong Kong para explicar e promover a Lei Básica, e os seus esforços para abrir o caminho para a aprovação de legislação de acordo com o Artigo 23, tenham sido feitos em vão. E tudo isto porque Macau é absolutamente obediente e é uma cidade sem crises. Hong Kong e Taiwan não têm qualquer inveja de Macau no que respeita ao papel que desempenha nesta matéria. Uma boa governação é o melhor garante da segurança do Estado, muito mais do que leis e regulamentos restritivos.
Na História da China houve diversas dinastias muito fortes. Uma delas foi a Dinastia Qin, a quarta em termos de poderio militar, apenas precedida pelas Dinastias Yuan, Tang e Han. Contava com uma população de 25 milhões de almas, e os seus exércitos tinham um milhão e meio de soldados, cerca de 6 por cento da população, a maior percentagem de todas as dinastias. Então porque terá a Dinastia Qin durado apenas 15 anos, apesar de todo o poderio militar?
Para solidificar a sua estadia no poder, os Qin não promulgaram leis para garantir a segurança do Estado, em vez disso implementaram legislação do foro criminal muito restritiva, para eliminar os factores que potencialmente pusessem em risco essa segurança. Por exemplo, promoveram a queima de livros e o sepultamento de intelectuais para eliminar as dissidências e demoliram as muralhas das cidades para vigiarem melhor os seus moradores. Além disso, todos os que tivessem conhecimento de uma infracção cometida por outrém e não o denunciassem, eram considerados tão culpados como o infractor. As armas pessoais foram apreendidas em todo o País e transformadas em 12 esculturas metálicas.
Resumindo, o primeiro Imperador da Dinastia Qin fez tudo o que pôde para passar a coroa de geração em geração. Infelizmente, para ele, o resultado não foi o esperado. Pouco tempo depois da sua morte, o novo Imperador Qin foi destronado. Várias décadas após do fim da Dinastia Qin, um intelectual da Dinastia Han passou pelas ruínas da Dinastia Qin e escreveu um artigo onde analisava a queda desta linhagem. Esta família real não se extinguiu por não ter promulgado leis de segurança do Estado e leis e regulamentos paralelos a elas associados, caiu sim, por não ter governado com “benevolência e com justiça”. Se o intelectual Han tivesse nascido décadas antes e o primeiro Imperador Qin tivesse tido hipótese de o ouvir, poderia ser que tivesse ordenado aos seus descendentes que governassem o País com benevolência e com justiça. Nesse caso, a governação da China dos nossos dias poderia ser a continuação da administração da Dinastia Qin.
No entanto, não existem “ses” na História, apenas relações ocasionais.

11 Mai 2018

O meu jardim             

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão vou falar da entrada de Portugal no Festival da Eurovisão este ano, “O Jardim”. Se bem que podia muito bem, e já agora vamos apoiar a nossa canção, cum camano, nem que seja abstendo-se de dizer mal. Adiante. Do que queria falar era do “jardim” onde moro, o meu edifício. Ao contrário do que acontece com a generalidade dos prédios de habitação em Portugal, que têm um número de polícia numa qualquer rua, avenida, praceta ou pátio, em Macau estes têm além do número um nome, e é pelo nome que são mais conhecidos.

O meu chama-se “Jardim Real”, e com toda a certeza que muitos dos leitores vivem também num “jardim” qualquer, apesar de às vezes não se ver no raio do prédio uma única flor. Ás vezes há uma planta no rés-do-chão, junto ao condomínio. Isto explica-se facilmente pelo facto da designação para “edifício” e “jardim” serem a mesma: “fa yuen” (花園) . Isto tem ainda outra história, mas fica para outra altura.

O meu “jardim” (portanto…) tem vinte andares, e vivo num dos mais altos. Não vou aqui dizer qual, porque parece mal, e ainda pensam que estou a convidar para uma visita domiciliária, mas todos os meus vizinhos sabem. Ser o único português a viver num destes “jardins” é o mesmo que ser um elefante cor-de-rosa. Toda a gente sabe onde moro, a composição de todo o meu agregado familiar, e chego mesmo a ter quem no elevador carregue no botão do meu andar, sem que eu lhe peça nada. A mais engraçada é a senhora do condomínio, que por vezes quando chego diz-me “a tua mulher já está em casa”.

Um dia destes o meu filho chegou perto da hora da almoço, e a senhora informou-o prontamente que “o teu pai saiu há cinco minutos”. E garanto que não pago extra de condomínio por este serviço de secretariado! Adorável é também quando ela nos vê a sair carregados de malas e pergunta “ah, vão viajar?”. Que perspicácia! Repito: é uma querida. Do que é me que estou a queixar, se tenho tratamento VIP? Deveria eu pavonear-me deste estatuto de ave rara, ou de último moicano? E será que sinto…tchan tchan tchan…”racismo”?!?! Não, nada disso, pode-se dizer que é um “choque cultural”, pronto. E é mesmo, apesar de também se poder dissertar muito sobre este assunto. Fica igualmente para outra altura.

Escusado será dizer é que não me resta senão ser discreto. Sim, tenho a certeza que se acontecer alguma coisa cá em casa, toda a gente fica a saber que foi na jaula do elefante rosa. Foi por esse motivo também que não exagerei nos festejos do título do FC Porto no último fim-de-semana, que marcou o regresso à normalidade e repôs alguma justiça no atribulado futebol português. Muitos tentam, mas só um é penta. Pois, mas então a conclusão. Ah sim, é uma maravilha viver aqui neste jardim sem flores, junto da gruta de Ali-Babá.

10 Mai 2018

Quando o sexo gosta dele próprio

[dropcap style=’circle’] N [/dropcap] o início dos anos 80, num enorme rancho no estado de Oregon (EUA), instalou-se ao que na altura se desconfiava ser uma ‘seita’ religiosa liderada por Bhagwan Shree Rajneesh. Esta é a premissa inicial de uma série-documentário lançada há pouco tempo ‘Wild Wild Country’ – que recomendo vivamente. Esta narrativa foca-se, particularmente, no desenvolvimento das tensões e hostilidades entre os moradores locais e a recém-criada cidade de devotos ao Bhagwan. As ideias deste guru eram… diferentes, sendo que das suas propostas filosóficas e espirituais mais marcantes eram as do sexo livre, e do amor livre – e isso, não caiu nada bem aos residentes da América rural, nem ao Hinduismo Ortodoxo do seu país de origem. Parece que nos seus tempos na Índia, Bhagwan era descrito nos média como o ‘guru do sexo’.
Quando o sexo gosta dele próprio, quando é tido como livre, descomprometido, aceitante das condições humanas. Quando simplesmente não é censurado pela nossa tendência (neste caso, ocidental) do legado judaico-cristão, parece que é natural haver uma espécie de representação maléfica acerca dele. Neste documentário era muito clara esta representação de que ‘a comunidade de tarados – que estão a fazê-lo a toda a hora’ era tida como demoníaca. E claro, estamos a pensar nos anos 80, uma altura particular em que a SIDA ainda era uma ameaça misteriosa de que se sabia pouco, quando a revolução sexual dos anos 60 já tinha poucos seguidores e quando o sexo ainda tinha uns passos de emancipação por caminhar. O Bhagwan, consciente da repressão sexual, bem tentava explicar que o sexo estava no estado em que estava porque tradições religiosas assim o trabalharam. O guru, que teve uma vida e influência discutíveis, considerava-se um ‘playboy espiritual’ que pregava a diversão do sexo, sem medos nem tabus – até dava umas dicas, se fosse preciso. E entre 99 Rolls Royce’s, declarar-se o líder espiritual dos ricos, e não dos pobres, detentor de relógios repletos de diamantes, ele até disse umas coisas acertadas, no que tocava ao sexo, pelo menos.
Mas o sexo não gosta de si próprio ainda hoje, e isso não é novidade. A procura espiritual contemporânea continua a ser relevante, dentro ou fora das estruturas e instituições religiosas. Mas como é que as reflexões do espírito e da mente transformam o sexo? Enquanto se julgar o sexo como uma necessidade ‘instintiva’, ‘básica’ ou simplesmente ‘biológica’, as micro-agressões ao sexo continuarão a ser diárias. Aquilo que não é dito, mas que é sentido nas expressões subtis de desaprovação informam-nos do estado da arte sexual – que digo-vos, não é fácil de avaliar. O sexo é constantemente manipulado na esfera pública para comercializar produtos, materiais ou imateriais. Por isso, parece que vendemos uma sociedade contemporânea com imenso sexo, mas que ainda se choca ao dar de caras com um guru que desapareceu desta vida terrena há quase 30 anos.
O sexo para começar a gostar dele próprio teria que assistir a uma revolução. Não é a revolução do sexo – não – essa seria simples de mais e pouco sustentável. Também não seria somente espiritual, o espírito vive demasiado em isolamento e pouco ou nada partilha com as vidas globais, ou com os movimentos globais. A revolução é de estruturas, de políticas, de economias, de espíritos e mentes. A revolução tem que ser a todos os níveis. A forma como nós chegámos a um sexo que produz desdém é algo que ainda me surpreende – eu entendo bem como é que aconteceu, só não percebo porque é que aconteceu – por isso não há nada como tentativas (nem que sejam somente teóricas) para retroceder este processo. A pergunta que merece 1 milhão de patacas é: como é que tiramos este peso terrível, do sexo como pecado, das nossas costas?

9 Mai 2018