David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPilotar devagarinho (II) A semana passada, falámos sobre a questão dos pilotos de uma conhecida companhia aérea de Hong Kong que conduzem os aviões muito devagar nas pistas e das queixas que vários aeroportos fizeram ao longo dos últimos meses devido a esta situação. Normalmente, leva 10 minutos a conduzir um avião da porta de embarque até à pista de descolagem e alguns pilotos demoram 40 minutos para fazer este percurso, ou seja, mais 30 do que o necessário. Um dos motivos que pode levar a esta situação é a vontade dos pilotos de aumentar as suas horas de voo e, consequentemente, os seus salários. Na raiz do problema, poderá estar o cálculo salarial que, actualmente, é feito com base nas horas de voo efectivas e não nas estimadas, como a companhia aérea costumava fazer anteriormente. Se o avião chega mais cedo ao seu destino, o piloto recebe menos. Além disso, o número de horas voadas certifica a experiência do piloto. Quanto mais horas de voo acumuladas, mais experiente será o piloto e maior será a confiança que o público deposita nele e na companhia aérea para a qual trabalha. Se parte destas horas de voo acumuladas se ficam a dever à condução lenta nas pistas, a confiança do público será abalada. Devido a estes incidentes, as companhias aéreas estão sob grande pressão. A pandemia desferiu um golpe quase fatal nesta indústria, provocando prejuízos muito elevados. Na medida em que a pandemia já não tem o mesmo impacto, as pessoas voltaram gradualmente a viajar. Agora que o sector começava a melhorar ligeiramente, vê-se confrontado com o problema da condução lenta nas pistas. A melhor forma de resolver esta situação é, claro está, seria alterar o sistema de avaliação de desempenho através do qual os pilotos são pagos à hora. Desde que os salários dos pilotos aumentem, o problema vai naturalmente melhorar. No entanto, o número de pessoas que viajam ainda é limitado, por isso como é que a companhia aérea vai poder aumentar os salários? Os passageiros, são vítimas dos atrasos provocados pela condução lenta. Durante a epidemia, era impossível viajar e agora, finalmente, vão poder fazê-lo. Como é que iriam imaginar que vão entrar num avião pilotado por alguém que conduz propositadamente devagar? Portanto é natural que fiquem zangados e desapontados. A frustração será com certeza dirigida contra a companhia aérea. Face a esta situação, podemos apropriadamente afirmar que as companhias aéreas estão em sofrimento. No que diz respeito aos pilotos, a sua relação com a companhia aérea é uma relação de trabalho, ou seja, uma relação empregador/empregado. Nenhum trabalhador está disposto a ter o seu salário reduzido. Quando conduzem devagar e ganham 30 minutos nas suas horas de voo, os pilotos acabam por receber mais 1.500 dólares de HK. Mesmo assim, este valor não compensa os salários reduzidos. Os pilotos conduzem devagar porque estão descontentes com a companhia aérea por lhes ter reduzido os vencimentos devido à pandemia. Afinal de contas, os pilotos também foram vítimas da pandemia. Nesta questão, as pessoas concentram-se na condução lenta, mas quantas compreendem que durante a pandemia os pilotos foram afectados por reduções salariais? Com a permissão do Governo chinês, Hong Kong pôde implementar o sistema jurídico da Common Law na sua Lei Básica. Nas relações laborais, a Common Law estipula que os trabalhadores devem desempenhar as suas funções com esmero e cuidado. Torna-se pois claro que a condução lenta propositada viola esta lei. Assumindo que este caso ia a tribunal, o importante não seria quem ganhava a acção ou quem a perdia, porque a questão mais importante é estabelecer e manter boas relações de trabalho, de forma que a companhia aérea, os pilotos e os passageiros sejam todos beneficiados. A criação de boas relações de trabalho pode tornar esta companhia aérea famosa na indústria, os pilotos tranquilizam-se se forem mais bem pagos e os passageiros podem desfrutar de viagens agradáveis e confortáveis. É uma situação em que todos saem a ganhar. Nas actuais circunstâncias pós pandémicas, todos esperam aumentar os seus rendimentos e esperam mesmo compensar o que perderam durante a pandemia. Mas, na verdade, a economia tem de recuperar aos poucos, e não pode voltar ao nível em que estava antes deste problema sanitário, de repente. As companhias aéreas, os pilotos e os passageiros têm de compreender esta realidade. Para resolver o problema da condução lenta, a companhia aérea deve dialogar mais com os pilotos para que haja mais compreensão de parte a parte e para que os conflitos possam ser reduzidos. Assim que a pandemia desaparecer completamente e que o número de pessoas que viajam voltem aos níveis normais, a economia irá naturalmente recuperar, e o problema da condução lenta vai melhorar significativamente. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesJogadores e observadores Existem dois famosos versos do poeta chinês Bian Zhilin que dizem o seguinte: “Tu estás na ponte a observar a paisagem, quem mais acima a admira, observa-te também a ti.” Estejamos onde estivermos, nunca se sabe quem nos observa. Também existe um provérbio chinês que diz, “O observador vê melhor o jogo do que os jogadores”, o que, aplicado aos versos de Bian Zhilin, sugere que é difícil distinguir entre jogadores e observadores. A 22 de Setembro de 2015, o Presidente chinês Xi Jinping declarou num discurso de boas-vindas em Seattle, a “Armadilha de Tucídides” (tendência inexorável para a guerra quando uma potência emergente ameaça substituir uma potência hegemónica), não é um dado adquirido, mas repetidos erros de cálculo estratégico entre grandes potências podem levá-las a criar este problema pelas suas próprias mãos. Apesar das declarações do Presidente Xi, a luta de poder entre a China e os Estados Unidos é inevitável. Após quase quarenta anos de reformas e de abertura, a economia chinesa passou a ser a segunda maior do mundo e, em 2025, “Made in China” deixará de ser um mito. Perante a competitiva China, a relação entre os dois países começou a mudar. “Armadilha de Tucídides” é uma expressão criada pelo politólogo americano Graham Allison e, naturalmente, o círculo político americano compreende as suas implicações. Portanto, a questão é se alguém vai cair na armadilhada. Infelizmente, durante a governação de Leung Chun-ying e de Carrie Lam, a Região Administrativa Especial de Hong Kong defrontou-se com o Movimento dos Chapéus de Chuva e com o Movimento Anti Lei de Extradição. A forma como estes dois movimentos foram conduzidos criou muitas oportunidades vantajosas aos opositores e também veio a influenciar o resultado das Eleições Gerais em Taiwan. Dado que as consequências destes dois Movimentos excederam a capacidade do Governo da RAE de Hong Kong para lidar com a situação, o Governo Central da China promulgou a “Lei da República Popular da China para a Salvaguarda da Segurança Nacional na Região Administrativa Especial de Hong Kong” a 1 de Julho de 2020. A esta lei, seguiu-se a melhoria do sistema eleitoral de Hong Kong e, recentemente, o aperfeiçoamento da governação a nível distrital. Tudo isso inaugurou uma nova era que visa embarcar numa expedição para consolidar o princípio “Um país, dois sistemas” e também o princípio “Hong Kong administrado pelas suas gentes”. Critérios semelhantes foram aplicados em 2021 às Eleições para a Assembleia Legislativa de Macau. Concordo que um líder deve amar o seu país, mas o que verdadeiramente importa é que o patriotismo não pode ser reduzido a palavras de ordem ou mentiras cridas por quem procura ganhos pessoais. Um patriota tem de colocar os interesses do seu país em primeiro lugar. Desde que o seu objectivo seja a estabilidade a longo prazo do país, mesmo que discorde dos métodos usados pelo Governo para a alcançar, o seu desagrado deve ser encarado como uma expressão de patriotismo. Esta abordagem é muito mais correcta do que transformar o patriotismo numa ferramenta de supressão das vozes dissidentes. No seu livro “Decifrar o Pensamento de Pequim”, o falecido Huang Wenfang citou um conselho de Liao Chengzhi, que foi responsável pelos assuntos de Hong Kong e de Macau, relativo ao termo “patriotismo”: “O termo não é usado correctamente. Se dissermos que o nosso jornal é um jornal patriótico, isso implica que os outros jornais não o são; se dissermos que a nossa escola é uma escola patriótica, isso implica que as outras escolas não o são… Como tal, o patriotismo passa a ser exclusivamente nosso; o patriotismo passa a ser algo que exclui os outros, o que lhes irá provocar renitências”. O Presidente Xi Jinping disse certa vez, “O grafismo do caracter chinês “人” (povo), revela o apoio que damos uns aos outros”. Excluir os outros e criar conflitos leva sem qualquer dúvida à perda de apoio. Por isso, quer sejamos jogadores ou observadores, é indispensável que nos apoiemos uns aos outros para evitar cairmos na armadilha ou para nos libertarmos dela.
André Namora Ai Portugal VozesA igreja quer esconder os abusos sexuais Na semana passada Portugal assisti a um acontecimento histórico que decorreu pela primeira vez através da estação televisiva SIC. Em toda a nossa história contemporânea nunca tínhamos visto a imensa coragem que três vítimas de abusos sexuais, por parte de sacerdotes católicos ou freiras, darem a cara publicamente e contar os pormenores dos abusos sexuais de que foram alvo em criança. É do conhecimento popular, onde me incluo como testemunha, que há muitas décadas que existem abusos sexuais em seminários, em sacristias de igrejas, em casas paroquiais, em confessionários, em colégios internos dirigidos por clérigos, em instituições de acolhimento de menores e em casas alugadas ou da propriedade da Igreja Católica portuguesa. Foram milhares de crianças e jovens que sofreram os maiores desmandos sexuais e que ficaram traumatizados para toda a vida. Em alguns casos, o trauma foi de tão elevada dimensão que levou as vítimas ao suicídio. As vítimas que vieram dar o seu testemunho sem máscara são hoje adultos. Contaram aos portugueses que os abusos de padres e freiras ultrapassaram o inimaginável. No seminário de Santarém, uma das vítimas com apenas 12 anos era abusada por um sacerdote todas as noites. A este propósito, a Igreja deu luz verde à criação de uma comissão “independente” que apresentou um relatório que brada aos céus e onde mais de 400 vítimas de abusos sexuais prestaram os seus depoimentos. Esse relatório final foi entregue à Conferência Episcopal, presidida pelo bispo José Ornelas, o qual tal como o patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, diminuíram a importância de tudo o que foi descrito pelos amargurados que sofreram e sofrem os males que lhes foram feitos. Chegaram mesmo a afirmar que a justiça trataria de investigar e que os responsáveis pela Igreja portuguesa nada podiam fazer sem provas. Mas, quereriam esses senhores mais provas do que foi dado a conhecer por parte das vítimas? Quereriam filmes, fotografias ou as feridas com que tantas mulheres ficaram? Esses responsáveis sabem bem tudo sobre as queixas que inúmeras vítimas realizaram ao longo de anos junto dos chefes das dioceses onde tinham acontecido os abusos e nem respostas obtiveram. Soube-se apenas que mudaram os sacerdotes abusadores para outra paróquia e nunca foram expulsos da sua função sacerdotal ou presos por decisão de tribunais. O testemunho na televisão deixou os portugueses de lágrimas nos olhos. Uma das declarantes afirmou que não optou por ter um filho com receio que esse nado viesse a sofrer o que ela sofreu. Algumas das vítimas gastaram ao longo da vida rios de dinheiro em medicamentos, psiquiatras e psicólogos. E mesmo assim, quando se abordou o tema de as vítimas serem indemnizadas, a resposta que nos foi dada a conhecer por parte da Igreja é que não teriam o dinheiro suficiente para tal. Acontece que em Portugal nem se cumpre a palavra contundente do Papa Francisco que tem demonstrado a sua repulsa pelos abusadores e tem manifestado que todos têm de ser afastados da Igreja Católica. O Papa Francisco tem apoiado também a ideia de que as vítimas têm de ser ressarcidas do sofrimento que as atingiu. Em vários países já foram pagas às vítimas de abusos sexuais quantias avultadas e até já se verificou que em alguns países a Igreja vendeu património para poder pagar às vítimas. A Igreja portuguesa não tem dinheiro? Como é possível defender essa tese se a Igreja portuguesa é possuidora de uma riqueza incalculável, é proprietária de um vasto património de quintas e de imóveis. Tem em Fátima um recipiente na Capela das Aparições que enche diariamente de ouro e notas incontáveis. Fátima proporciona uma riqueza anual de milhares de milhões de euros à Igreja portuguesa. Sabemos de centenas de idosas e idosos que deixam em testemunho todo o seu riquíssimo espólio de propriedades e de dinheiro em contas bancárias à ordem da Igreja. Como é que se atrevem a afirmar que não têm dinheiro se, mesmo ao pé da rua onde resido existe uma vivenda enorme de luxo com um jardim de grande dimensão e onde as freiras que lá residem possuem automóvel topo de gama e ainda alugam quartos a estudantes? E este facto acontece por todo o país. A Igreja portuguesa perde mensalmente fiéis, crentes que deixam de frequentar as igrejas desde que vieram a lume as notícias de factos concretos de abusos sexuais por parte de sacerdotes ou freiras. As vítimas são o cerne da questão. São hoje mulheres e homens cujo sono não existe no seu organismo. Choram sempre que recordam o que lhes foi feito e alguns vivem com as maiores dificuldades ou estão desempregados com reformas de miséria. E nesta situação a Igreja portuguesa ainda põe em causa se vai ou não contemplar as vítimas com as indemnizações que viessem a ser declaradas como justas? Infelizmente, os abusos sexuais a crianças e jovens continuam no nosso país e recordemos que o caso Casa Pia foi de uma gravidade extrema, mas apenas dois ou três dos muitos meliantes foram justiçados. Casos como o da Casa Pia de Lisboa aconteceram por várias cidades, incluindo na Casa Pia de Évora e os dirigentes da Igreja continuam a tentar esconder o óbvio. Para vergonha máxima da Igreja foi criada recentemente uma comissão com elementos escolhidos pelos responsáveis da Igreja, cuja comissão teve o desplante de dizer que a mesma se destinava a apoiar as vítimas e os abusadores. Os abusadores? Total surrealismo e revolta absoluta de quem não pode ouvir tal desiderato vergonhoso.
Tânia dos Santos SexanáliseOrgasmos não-genitais Um artigo científico de 2018 publicado no International Journal of Sexual Health analisou uma série de publicações online sobre orgasmos não-genitais que ocorrem em situações inesperadas. Foram analisados 919 comentários anónimos para identificar as circunstâncias não sexuais em que as pessoas experimentaram orgasmos que não exigiram estimulação directa dos genitais e que não ocorreram num contexto sexual habitual. Os exemplos mais comuns referiam-se a orgasmos durante exercícios físicos que envolvem as pernas ou a musculatura abdominal. Isso incluiu actividades como andar a cavalo ou de bicicleta. Algumas pessoas relataram ter orgasmos ao andar de bicicleta em pavimentos calcetados que produzia uma vibração prazerosa. Embora esses orgasmos sejam considerados não-genitais, uma vez que não há manipulação intencional dos genitais, parece evidente que eles surgem devido à sua fricção e estimulação. O mesmo ocorre com a subida aos postes, que alguns comentadores afirmaram ter sido uma fonte de prazer durante a infância ou juventude, embora só tenham compreendido a razão mais tarde. Outros mencionaram uma associação entre a vontade de urinar ou defecar e o orgasmo, especialmente quando essa vontade é suprimida. Novamente, mesmo que os genitais não sejam estimulados nesses casos, as conexões nervosas que envolvem toda a região pélvica parecem ser responsáveis. Algumas relataram ter orgasmos durante o parto, o que confirma essa associação. Existem também orgasmos mais inesperados, desafiando tudo o que sabemos sobre as vias neuronais do orgasmo. Algumas pessoas têm orgasmos com a estimulação de outras partes do corpo, sendo os mamilos uma das áreas mais comuns, inclusive durante a amamentação. Além disso, outras partes do corpo, como orelhas, ombros, pés, pescoço, cabeça, costas, tornozelos e boca, também podem levar algumas pessoas à loucura quando estimuladas. Li o relato de alguém que teve um orgasmo ao vibrar a ponta do nariz, áreas que não são especialmente erógenas. A associação entre orgasmo e dor ou desconforto também é sugerida. De facto, estudos com pessoas que sofreram lesões na coluna vertebral e perderam a capacidade de sentir dor mostram que também podem perder a capacidade de ter orgasmos. Há algo nessa ligação entre a dor e o prazer que também explica como algumas pessoas atingem o clímax ao fazer uma tatuagem. Além disso, o alívio após uma experiência dolorosa pode levar alguém a uma descarga prazerosa, como alguém descreveu após a extracção de um dente. Também foram relatados orgasmos em momentos de extrema ansiedade ou em estados meditativos. O nosso estado emocional pode contribuir para moldar este potencial. Estímulos visuais, como imagens, e alguns sons, como ouvir uma música especial, também foram relatados como desencadeadores do clímax. A experiência sensorial de comer também foi referida. Há quem tenha dito que o atum é a fórmula para o orgasmo, pois “há qualquer coisa na sua textura”. Cada pessoa conhecerá as comidas mais “orgásmicas” no seu repertório de experiências. Estes são exemplos relatados por pessoas comuns que sugerem muitos caminhos ainda a serem explorados no estudo do orgasmo. Ter uma visão sofisticada do orgasmo também contribui para uma compreensão mais refinada do prazer, que pode surgir nos momentos mais inconvenientes. Promove uma visão mais abrangente do sexo, que inclui todos os corpos e as muitas formas de desejo, para além do ato sexual em si. Saber que o orgasmo está associado a tantas dinâmicas diferentes também é um incentivo para o auto-conhecimento. Onde estão os nossos orgasmos? Até que ponto sabemos se nosso orgasmo está na ponta do nariz, atrás do joelho ou nos mamilos? Abrir espaço para criar oportunidades de descoberta é a lição a ser aprendida com a normalização de que o orgasmo pode estar em muitos lugares diferentes.
Flávio Tonnetti VozesXiao Ke: a história do grande país no corpo da pequena bailarina O espetáculo de Xiao Ke, cujo título da obra é seu próprio nome, não pode ser definido de outra forma senão como uma performance autobiográfica. Sozinha, coloca-se de pé no centro do palco, próxima ao público que aguarda uma dança. Ela efetivamente dançará, mas somente após ter dado início a narração de sua história. Sua dança vai, então, se colocando como intervalos que ilustram os acontecimentos descritos no curso de sua palestra testemunhal. Numa espécie de lecture performance, ela nos dá uma aula sobre a dança chinesa contemporânea, que se manifesta a partir da experiência pessoal acumulada na memória de seu corpo. É uma ode ao corpo da bailarina como testemunho da história. Sua silhueta escreve no ar, por meio de gestos, aquilo que ela verbaliza por palavras. Trata-se de um espetáculo com dramaturgia textual e direção cênica, em que a dança e o teatro se combinam, gerando uma experiência diferente e hiper pessoal em que as fronteiras da imaginação e da realidade se desarmam: vemos uma performer interpretando a si mesma. Portanto, não vemos uma atuação, mas uma ação de quem coloca o próprio corpo – a própria vida – em cena, para que a sagração do viver seja comungada pelo público. Por isso, é que não podemos dizer que assistimos a uma representação e, sim, a uma apresentação. Tampouco se trata de ficção, mas de documentação. Esse modo de compor, do monólogo autobiográfico, reforça a noção de retrato proposta pelo coreógrafo francês Jérôme Bel, idealizador do projeto em que Xiao Ke se vê inserida. Usando a biografia como matéria dramatúrgica, Jérôme Bel desafia coreógrafos a dançarem suas próprias carreiras – a exemplo do que já havia feito com a francesa Véronique Doisneau, do Ballet da Ópera de Paris, com o artista tailandês Pichet Klunchun, especializado em dança tradicional siamesa, e com o também francês Cédric Andrieux, da Companhia de Dança Merce Cunningham. Se apresentando de forma singela e radicalmente crua, Xiao Ke nos conta como a dança lhe tocou ainda na tenra infância, quando vivia com sua família numa vila militar, graças à carreira do pai. Nessa realidade em que os tempos de acordar, almoçar e descansar eram regidos coletivamente, na disciplina dos corpos, havia a presença das músicas, hinos e sinais que marcavam os ritos da caserna. Ela recorda a marcante memória de ter se apresentado aos 4 anos num enorme palco do batalhão, dançando sozinha num evento para soldados que mal podiam enxergá-la de tão pequenina. Enquanto vai nos contando essa memória, vamos ouvindo as músicas que compõem a paisagem sonora desse tempo histórico em que uma criança se desenvolve. É na infância que ela passa a integrar um grupo de danças folclóricas e tradicionais de Yunnan, orientando para as danças étnicas chinesas. Nos contando sobre as viagens que fazia com esse grupo, recorda de uma apresentação realizada em Beijing no ano de 1989, estando próxima à praça Tiananmen. Sua biografia pessoal, portanto, toca a história da China – ou é tocada por ela? Temos aqui a clara perspectiva do materialismo histórico estruturado como ciência: a sociedade é produzida por fatos objetivos que afetam a vida de quem participa dela. Conhecer a história é, portanto, fator determinante para que possamos conhecer a nossa própria vida, e para projetarmos um futuro melhor, tanto individual quanto coletivamente. Não há ser sem história. Do mesmo modo que não há indivíduo fora do tempo e do espaço que lhe deram origem. A existência só pode ser pensada socialmente. Numa sociedade de múltiplas faces, Xiao Ke nos fala da importância do rosto como elemento cênico nas danças chinesas, nos dando exemplos de como diferentes expressões faciais podem sugerir diferentes emoções. Na dança, a face é um recurso. A face é nossa máscara mais imediata. Xiao Ke também conta que aprendeu balé chinês, descrito por ela como uma mistura de ballet russo, ópera chinesa e artes marciais, nos dando novamente um excepcional exemplo do conjunto de suas técnicas, acumuladas em um corpo extremamente disciplinado. Olhando para o corpo diminuto de Xiao Ke, que vai, a partir dessas memórias, se acionando como uma versátil e plural máquina de guerra, somos facilmente conduzidos à pergunta dos deleuzianos: o que pode um corpo? No período universitário Xiao tenta dar um tempo em relação à dança como ofício, dizendo ter se cansado da dança tradicional, partilhando o desejo de querer experimentar a possibilidade de mover-se livremente, algo que para ela se dá nas festas juvenis pelo encontro com a disco music e a break dance. Novos horizontes de uma cultura que passa a entrar em contato com outras. Ouvimos uma música pop chinesa – exemplo de disco music chinesa dessa época – que nesse momento é performada com humor por Xiao Ke. No palco, apenas uma prancheta com anotações e uma garrafa de água – nos mesmos moldes mínimos de encenação proposto por Bel a Véronique Doisneau muitos anos antes. Mas não sentimos falta de mais nada. A vida, como potência que se realiza, é suficiente para ocupar todos os espaços. Ela volta então à dança para experimentar novas formas. Que ela nos demonstra – agora sem som. A liberdade é silenciosa. Descobre a Dança Moderna ocidental e pensa, aos 20 anos, em abrir sua própria escola. Seu estúdio fica popular, mas perde um apoio que tinha da universidade em razão de uma performance polêmica. Curiosamente, esse cancelamento oficial a torna cool e a insere num outro circuito artístico. Move-se para o underground. Busca trabalhar como jornalista, mas tem desilusões com essa carreira, acabando por arrumar um bom emprego na multinacional Johnson & Johnson que lhe paga o suficiente para poder, paralelamente, financiar sua carreira artística. Mas o dinheiro nunca lhe parece o suficiente e ela parte para uma atuação em uma dança mais comercial, aprendendo gêneros de sapateado e danças ocidentais que aumentem sua empregabilidade nesse mercado de produtos e eventos publicitários. Prospera, então, como bailarina e coreógrafa comercial, alcançando os meios para sobreviver apenas da dança: finalmente ganha a vida dançando. Com recursos que lhe permitem investir também em seus projetos de caráter mais artístico, e não comerciais, fala de sua parceria com o vídeo artista Zi Han e da experiência de criar um grupo experimental de teatro físico com artistas de diferentes vertentes e linguagens. Também divide connosco algo sobre seus relacionamentos amorosos, seus gatos e a intimidade de sua vida doméstica. Há frustrações e há alegrias. E tudo é tão tocante, porque, afinal, somos muito parecidos em nossas coreografias: a vida é uma repetição do nosso tempo. O que parece ser significativamente bonito é que possamos habitar o mesmo tempo presente dessa artista, cuja vida orientou-se para a expressão de um sentimento que sempre a ultrapassa. Por mais que desejemos driblar a vida, somos e sempre seremos a expressão de nosso tempo e de nossa cultura. Vivemos a vida como testemunho da vida maior: passamos pela vida e a vida passa por nós. Embora também seja certo que as grandes narrativas não existem sem as pequenas. Não há a grande história sem as micro-histórias. Não há nem a França, nem a China. O que há são pessoas francesas e chinesas, construindo a enorme teia dessas culturas. E por isso mesmo é que cada vida nos importa. Espelho multifacetado de nós mesmos, a composição de Xiao Ke, cujo retrato não é apenas de si mesma, mas de toda a Terra do Meio, nos importa muitíssimo.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPilotar devagarinho (I) A semana passada, os jornais de Hong Kong noticiaram que uma conhecida companhia aérea foi alvo de queixas por parte de vários aeroportos, porque nos últimos meses os seus aviões andaram mais devagar do que deviam. Geralmente, o avião leva 10 minutos para se dirigir da porta de embarque para a pista, mas estes aviões estavam a levar 40 minutos para fazer o percurso. A companhia aérea reconheceu a situação e deu instruções aos pilotos para se deslocarem na pista a uma velocidade entre os 30 e os 40 quilómetros/hora. Os pilotos que agora estão em funções não são culpados pelos erros passados, mas a companhia aérea vai reforçar a sua supervisão. Se o mesmo problema voltar a ocorrer, o piloto responsável ficará sujeito a uma acção disciplinar e pode ser castigado. É habitual ouvirmos falar de greves de condutores de camiões de mercadorias, de maquinistas, ou de motoristas de autocarros e de taxistas que passam a conduzir mais devagar. No entanto, é raro ouvirmos falar de aviões que circulam mais lentamente, por isso não é de admirar que, quando este caso veio à luz do dia, tenha captado a atenção da comunicação social. Os jornais fizeram saber que alguns destes pilotos também trabalham para outras companhias aéreas e acredita-se que existem várias razões que provocam esta situação. No caso de o piloto estar a conduzir de forma mais lenta intencionalmente, põe-se a hipótese de o estar a fazer para aumentar as suas horas de voo e, naturalmente, os seus honorários. Afectada pela epidemia, a companhia aérea renovou os contratos dos pilotos recentemente. À luz do antigo contrato, os pilotos eram pagos com base nas horas de voo estimadas. Mesmo que o avião chegasse mais cedo ao seu destino, o salário do piloto não era alterado. Com o novo contrato, o salário dos pilotos é calculado com base nas horas de viagem efectivamente cumpridas e, na realidade, se o avião chegar mais cedo do que o previsto o piloto recebe menos. Actualmente, os pilotos recebem por cada hora de voo entre 1.500 e 3.000 dólares de Hong Kong (HKD). Se o piloto conduzir o avião muito lentamente na pista e, em vez de fazer o percurso em 10 minutos o fizer em 40, ganha 30 minutos, o que corresponde a receber mais 1.500 HKD. Mas não se trata só de receber mais 1.500 HKD, trata-se também de acumular 30 minutos às horas de voo, e quem não está por dentro deste assunto pode não compreender de imediato, mas estes 30 minutos são particularmente importantes para o piloto. Pensemos um momento sobre o assunto. A indústria da aviação usa o critério de horas de voo para demonstrar a experiência e capacidade dos pilotos para garantir a segurança dos passageiros. Assim que o avião está no ar, as vidas dos passageiros estão nas mãos do piloto. Um piloto com muitas horas de voo, já teve de lidar com muitas situações e tem experiência suficiente para vir a lidar com outras tantas. Este critério também é usado para a promoção dos pilotos. Portanto, o número de horas voadas é um atestado de “antiguidade” neste ramo. Quanto mais sénior, mais experiente, o que é um indicador de fiabilidade. Actualmente, existem pilotos que deliberadamente conduzem o avião da porta de embarque para a pista muito lentamente para ganharem horas de voo e fazerem avançar as suas carreiras. Este procedimento é aceite pela indústria da aviação? Enquanto passageiros, gostaríamos de apanhar um avião pilotado por alguém que o conduzisse devagar? Mas para além da questão das horas de voo, o cálculo dos salários dos pilotos também merece alguma atenção. Independentemente de o piloto conduzir o avião mais depressa ou mais devagar, enquanto está na cabine, o piloto está a trabalhar e a companhia aérea tem de lhe pagar o ordenado a tempo e horas. Se conduzir devagar, o piloto tem, naturalmente, mais vantagens. Embora a companhia aérea tenha instruído os pilotos para que dirijam a uma velocidade de 30 a 40 quilómetros por hora na pista, é impossível obedecer a esta indicação à risca, porque a condução do avião está sujeita a várias condicionantes, por isso esta directriz tem sobretudo uma natureza informativa. É como quando um hospital marca uma consulta com um médico, a consulta é marcada pela administração, mas esta não tem poder para determinar como é que ele vai conduzir a consulta ao paciente, porque isso envolve uma série de decisões de ordem médica. Se houver um pequeno descuido, o hospital tem de assumir a responsabilidade e indemnizar o doente, e o médico pode ver a sua licença revogada. Não vai poder continuar a exercer medicina. Por conseguinte, a eficácia da indicação para os pilotos conduzirem o avião entre 30 e 40 quilómetros por hora na pista, varia conforme a situação. Se os critérios subjacentes ao pagamento dos salários dos pilotos não forem alterados, a condução lenta nas pistas pode não vir a mudar significativamente. Continua na próxima semana.
André Namora Ai Portugal VozesSecretas obedecem a uma chefe de gabinete A semana passada na política portuguesa assemelhou-se a um circo, incluindo com a actuação de palhaços porque na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à TAP ouviram-se gargalhadas. O surrealismo e a incredulidade reinaram nas audições que foram realizadas com a audição do ministro das Infraestruturas, João Galamba, – já denominado como Sócrates Júnior -, com a sua chefe de Gabinete, Eugénia Correia, – que começou a trabalhar na esfera governamental com José Sócrates -, e com o ex-adjunto do ministro das Infraestruturas, Frederico Pinheiro. A primeira maratona de cinco horas decorreu na Assembleia da República com a presença de Frederico Pinheiro, que tinha sido acusado ilegalmente de ladrão pelo primeiro-ministro e pelo ministro das Infraestruturas. E aqui começa a “telenovela mexicana” quando António Costa prevaricou ofendendo Frederico Pinheiro de ladrão, sem cumprir a presunção de inocência e desrespeitando a separação dos poderes políticos e judiciais. António Costa é o principal responsável de tudo o que se passou quando não aceitou a demissão do ministro João Galamba, apenas com a intenção de atirar uma “pedrada” ao Presidente da República, dando a entender à classe política que pretendia eleições antecipadas e não se candidatar a primeiro-ministro com o fito de viajar para um cargo na Comissão Europeia. Esta, é a principal razão de tudo o que aconteceu durante a semana passada na Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP. Um cidadão doutorado, com vários anos de experiência em gabinetes ministeriais de diferentes governos, competente e sempre leal aos superiores interesses do país passa de um momento para o outro de fiel funcionário a simples ladrão, despedido pelo telefone com ameaças físicas por parte do ministro Galamba. Este, viria a dizer o contrário na CPI sublinhando que foi Frederico Pinheiro que o ameaçou. O que se passou nas audições de Eugénia Correia e de João Galamba ultrapassou o limite do surrealismo: contradições, invenções, mentiras e ilegalidades ficaram bem patentes. Os deputados da CPI ficaram de boca aberta quando ouviram Galamba mencionar que contactou o primeiro-ministro e este não atendeu, depois ligou ao secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro que estava acompanhado de outro secretário de Estado Adjunto do Gabinete do chefe do Executivo, com a ministra da Justiça e com o ministro da Administração Interna, algo que nunca tinha referido. Acrescentou que o contacto com o ministro da Administração Interna foi com o intuito de este o colocar em contacto com a Polícia de Segurança Pública. Gargalhadas. Então, um ministro e a sua chefe de Gabinete não têm o número telefónico da PSP? E o mais grave viria quase no fim da audição a deixar toda a gente perplexa, quando Galamba informou que tinha dito ao primeiro-ministro que o SIS (Secretas) tinham sido contactado… tanta mentira de tanta gente com responsabilidades era impossível. O primeiro-ministro tinha dito que não fora informado sobre se o SIS tinha sido contactado e depois Galamba coloca o chefe do Governo como mentiroso ao anunciar que informou António Costa. Por outro lado, a triste figura que fez a chefe de Gabinete de João Galamba deixou o país atónito quando se ficou a saber que no interior de um Ministério passam-se, segundo a senhora afirmou, cenas de pugilato, gritos, encerramento de funcionárias na casa de banho, roubo de computador, sequestro do ex-adjunto Frederico Pinheiro e a ilegalidade de contactar as Secretas, quando esta instituição nada tem a ver com factos do foro criminal ou policial. O Governo dá ordens ao SIS? Uma chefe de Gabinete tem poderes para colocar as Secretas a deslocarem-se de noite a casa de um cidadão para reaver um computador? Desculpem, mas eu que sofri na pele as agruras da PIDE (polícia política da ditadura salazarista) penso que a actuação do agente do SIS, que inclusivamente ameaçou Frederico Pinheiro – o qual já anunciou que vai avançar com queixas-crime contra António Costa e João Galamba -, é digna de se assemelhar ao que a PIDE levava a efeito. Tudo foi vergonhoso em directo, através da televisão, para todos os portugueses. Os partidos políticos, excepto o Socialista, já manifestaram que Galamba é um elemento tóxico no Governo e que deve ser demitido o mais depressa possível. Deputados da CPI chegaram ao ponto de pedir já a audição do primeiro-ministro, porque as trapalhadas e mentiras são mais que muitas. O próprio Presidente da República afirmou aos jornalistas que nada diz por enquanto, mas sublinhou que mantém tudo o que disse há 15 dias. Naturalmente, podemos deduzir que o Presidente Marcelo mantém a ideia que João Galamba não pode ser membro do Executivo, especialmente, pela sua tutela conter casos de elevada importância, como a TAP, a rede ferroviária e a construção do novo aeroporto de Lisboa. A política governamental, com António Costa, a assobiar para o lado e a presenciar o concerto dos Coldplay, ao mesmo tempo em que o seu ministro era ouvido na CPI, demonstra que o pântano em que o país se encontra resulta de não se resolverem os graves problemas sociais do povo e andar-se com palhaçadas circenses em plena plataforma governamental.
Flávio Tonnetti VozesElectra: um tragédia grega em chinês No Festival de Artes de Macau, a tragédia grega antiga escrita por Sófocles ganha novos contornos na montagem chinesa proposta pelo Centro de Artes Dramáticas de Xangai, dirigida pelo grego Michail Marmarinos. Ainda que dirigida por um grego, a peça parte de uma abordagem cultural completamente diferente da do berço civilizacional do Ocidente, nos permitindo, pela via do Oriente chinês, iluminar alguns aspectos da peça grega, que ficam mais evidentes devido ao contraste intercultural. A tragédia grega conta a história de Electra, filha do meio do rei Agamenon, que está empenhada em buscar a vingança contra sua mãe, Clitemnestra, e seu padrasto, Egisto, responsáveis pelo assassinato de seu pai, Agamenon. Com a ajuda de seu irmão mais novo, Orestes, que retorna disfarçado para vingar a morte do pai, Electra planeja o assassinato de Clitemnestra e Egisto. A complexidade aumenta quando lembramos que a mãe Clitemnestra também tinha motivações legítimas para assassinar seu marido, que na condição de rei havia sacrificado a filha primogênita Ifigênia em busca de boa fortuna no curso da guerra. A partir desse enredo privado e familiar, a história alcança discutir questões universais, como o conflito entre justiça e vingança, a complexidade das relações entre pais e filhos, e a crise no amor e na lealdade que se instaura após um ato criminoso. Estamos diante de uma das peças teatrais mais significativas no que diz respeito a expressão de dilemas éticos, representado por conflitos para sempre irresolutos, que constituem a marca da condição humana. Sobretudo no que diz respeito às tensões entre indivíduo e sociedade, a peça nos faz refletir sobre como uma tragédia pode conduzir qualquer um à irracionalidade, conduzindo nosso estado de ser a transbordamento excessivo e descontrolado, que se caracteriza na língua grega pela palavra hybris. Em relação à experiência da tragédia, podemos nos perguntar de que modo a cultura chinesa poderia acrescentar camadas de sentido à dramaturgia grega. Da montagem da companhia de Xangai, gostaria de examinar alguns elementos que nos permitiriam situar melhor os níveis de complexidade da obra, numa perspectiva cultural comparada. Inicialmente, podemos retomar a importância que a família tem na cultura chinesa. Honrar pai e mãe – mandamento que conhecemos pela via cristã – é um valor que segue sendo absolutamente central mesmo na vida dos chineses mais jovens. Tensões e rupturas no seio familiar significam a negação da ancestralidade e a perda completa do chão existencial. Fazer parte de um clã, como signo de um poder maior e anterior que ultrapassa o indivíduo e o supera, segue sendo algo extremamente importante. Tendo isso em vista, podemos dimensionar o peso que essa tragédia grega assume no seio da cultura chinesa. Nada pode ser mais terrível do que desejar – mais do que isso, precisar – matar a mãe, no caso de Electra, ou ao marido, no caso de Clitemnestra. Nenhuma maldição pode ser maior do que a de pertencer a uma família em que a crimes contra o próprio sangue foram cometidos em nome do poder ou da glória. Os crimes paterno e materno, como um pecado original, geram uma mácula sobre toda a linhagem, que passa a ser condenada a uma eterna repetição da atitude criminosa, como efetivamente se dará. O genitor que sacrifica a própria filha, e a mãe, assassina do pai, condenam o futuro de seus descendentes, jogando-os num círculo vicioso de vingança. A tragédia, na Grécia como na China, ultrapassa a dimensão da existência individual, projetando uma sombra de infortúnio sobre o tempo expandido das gerações. A tragédia grega ganha um sentido adicional ao incorporar a forma de sentir chinesa. Aqui se sente um arrebatamento que talvez já não se sinta na Europa ou na América atuais, em culturas nas quais a família tem menor valor que o indivíduo. Na língua chinesa, os substantivos usados no cotidiano para designar irmão e irmã, diferenciam a ordem de nascimento dos filhos. Não se usa um termo geral para irmão ou irmã, mas sempre um termo que especifica irmãos e irmãs como sendo mais velhos ou mais novos. A palavra que usamos, portanto, informa nossa ordem hierárquica no interior da nossa família. Nesse sentido, a tragédia encenada em chinês nos ajuda a iluminar uma das dimensões presentes na tragédia de Sófocles: a percepção mais clara de que Electra é a filha do meio – numa encenação que se passa na Terra do Meio. Isso significa que ela não está nem tão próxima da defesa cega e absoluta do clã, como sua irmã mais velha Chrysothemis, nem tão distante da tradição como seu irmão Orestes, criado em outra cidade. É justamente esse distanciamento que conferirá a Orestes as condições morais para que seja ele o executor da vingança dos filhos contra a própria mãe. A hybris de Electra, portanto, não é nem o sentimento da passividade inerte, nem o da agressividade assassina, embora precise ser invadida por estes dois sentimentos extremos na elaboração da sua tragédia, que longe de ser uma tragédia meramente pessoal, busca expressar uma condição social mais ampla, como signo de uma sociedade que se degenerou. É como se no centro do Tao, ela se equilibrasse por entre violentas forças contraditórias, buscando elaborar um sentido de paz e libertação que não sirvam apenas de si, mas que possam restaurar toda uma sociedade, atualmente corrompida pelos mal feitos da nobreza. Neste ponto podemos, certamente, fazer uma leitura confuciana, a partir da qual podemos debater de que modo a conduta moral dos mais poderosos produz impacto sobre quem está hierarquicamente abaixo. Nos permitindo derivar um complexo conjunto de reflexões políticas sobre o significado da política na vida contemporânea, que é o tempo e o espaço representados pela cenografia: estamos em uma grande cidade com características metropolitanas. Como expressão do povo da cidade, o coro desempenha um papel importante nessa montagem. Na tragédia grega, o coro inflama a hybris e modula os humores, criando camadas de tensão. Na encenação de Xangai, o coro faz com que todos os sentimentos de tensão permaneçam contidos. Além disso, os personagens do coro, como signo da sociedade, dão suporte a Electra. Toda vez que seu corpo ameaça tombar ao chão, o coro vem socorrê-la, impedindo que desfaleça, oferecendo apoio para que suporte sua pena sem sucumbir à desgraça. O povo está com Electra. E sua busca por justiçamento é socialmente legítima. O sentido estrutural e de contenção afirmado pelo coro é possível graças a uma encenação que reelabora, em linguagem contemporânea, elementos provavelmente oriundos da ópera de Beijing e do teatro kabuki. Da ópera chinesa, a movimentação dos pés e a forma de disparar as ações; do kabuki, o modo de dizer e a forma de entoar as palavras. Na montagem chinesa, a tragédia está orientada para a interioridade, já que nenhuma manifestação de afetação exterior é capaz de comunicar uma dor que se experimenta em silêncio, na intimidade do ser. O que torna por exigir do espectador um grande nível de recolhimento e atenção, trazendo um grande desconforto para a audiência. O coro, com os rostos levemente caiados de pó branco, retoma a estética da máscara grega, mas também a das máscaras dos teatros orientais tradicionais ou a face branca do butô. Ocultar a face é a única forma de não perdê-la. Mostrando que tanto no Ocidente quanto no Oriente, o sentimento pertence a uma ordem mais obscura, a das emoções que nem sempre o rosto revela. Os sentidos de fusão entre a Antiguidade Grega e a Antiguidade Chinesa também aparecem na escolha dos instrumentos executados ao vivo, que criam sua trilha espectral: a flauta dupla grega – o duplo aulo – junto ao sheng – instrumento tubular de sopro. Os dois instrumentos, igualmente antigos, dão um sentido arqueológico comum a essas sensações, reforçam a experiência imemorial de uma sensibilidade partilhada. A cenografia também busca ressaltar essa dimensão temporal, estabelecendo camadas e níveis que nos permitem viajar por grandes tempos e espaços. Colocando em perspectiva a vida individual, finita, em relação à dimensão social, que a tudo conecta em escala expandida. Há um interessante recurso – que certamente poderia ser mais bem articulado do ponto de vista dramatúrgico – de projeção de vídeo ao vivo sobre o cenário, revelando a presença de elementos minúsculos no espaço da cena. Através da projeção, nos damos conta de que existem pequeníssimos bonecos dispostos na borda do palco, modificando nossa percepção de escala, produzindo reverberações que nos fazem oscilar entre o micro e o macro, entre o privado e o público, transitando do individual ao social, do material ao espiritual. O que contribui para o desenvolvimento sutil de nossa percepção, chamando a atenção para pequenas coisas presentes que talvez não percebamos muito bem, como os micro-sinais emergindo na face inexpressiva de quem dissimula os próprios sentimentos. Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.
Flávio Tonnetti VozesClube da Solidão: ou sobre como ser solitário em grupo Festa, meu Mocinho, é o contrário da saudade – Guimarães Rosa No contexto do Festival de Artes de Macau, o espetáculo de dança Clube Solidão – Loneliness Club, em inglês – coreografado pelo israelense Nir de Volff, a partir das criações colaborativas propostas por um elenco de bailarinos de diferentes nacionalidades, apresenta uma imagem bastante cruel dos tempos contemporâneos. Com uma linguagem que se constrói nas fronteiras da instalação, da performance e do teatro, apresenta uma coreografia como imagens críticas de um momento em que nossa vida, no que diz respeito à constituição dos afetos, é atravessada pelo uso das tecnologias. Escancarando um mundo digital que tem produzido corpos adaptados a um único dispositivo mediador das relações, e que passamos a tratar como uma parte universal de nossas naturezas corporais: o telemóvel. Nesse sentido, a imagem de abertura é muito significativa. Os bailarinos se apresentam um a um em uma espécie de fila evolutiva, retomando aquele desenho clássico em que temos numa ponta o australopithecus e na outra o homosapiens, e que em muitos memes da internet já ganharam versões com uma pessoa usando computador ou outros dispositivos tecnológicos. Na coreografia de Loneliness Club, a fila vai ser acrescida de um ser de nova espécie que poderíamos chamar aqui de homoselfies, representado pela presença de um bailarino que faz caretas e bate autorretratos com a câmera de seu celular. Num momento posterior, os indivíduos da fila evolutiva se movimentam, com os bailarinos nas posições mais ancestrais passando a formar pares, de modo que se tocam e se abraçam – eles se cruzam. Mas o homosapiens e o homoselfies não chegam a se relacionar de verdade: sua vida é mediada pela imagem, fazem pose e posam para retratos, mas não se cruzam. O corpo é abstraído na dimensão do avatar digital e o entrelaçamento físico-existencial já não é mais possível. O vazio deixa de ser um campo aberto à experimentação com o outro, e se converte na inerte repetição de si mesmo. Ainda que habitemos o mesmo espaço, nos convertemos em ilhas – mas sem um mar em que nos naveguem. Nesse caso, o vazio deixa de ser um espaço relacional a partir do qual podemos criar pontes ou rotas de fuga, e se converte na solidão definhadora de um náufrago que sequer experimentou a deriva. Contra todo um ruído que há em volta, temos um tempo sem tempo, em que as singularidades se deformaram nesse um silêncio insular. Já não há contraste. O conjunto de corpos iguais, representados pelo figurino completamente branco, um collant que encapa o corpo dos bailarinos, aprofunda essa dimensão planificadora – produtos numa linha de produção. Nenhuma cicatriz, nenhuma marca, nenhuma memória, como os corpos imberbes, lisos e pueris produzidos pela Brazilian wax. A neutralidade das vestes nivela as pessoas – as padroniza – como que submetendo-as a uma espécie de “filtro”, planificando as aparências na vida mediada pelas telas. Não é à toa que a música a encerrar o espetáculo seja In this shirt do grupo inglês The Irrepressibles. A despeito dos enormes “vazios que se apresentam” na cenografia deste clube dos solitários, temos a presença do plástico como material de destaque, estamos no mundo dos inorgânicos e dos sintéticos. Na cena principal, temos a representação de uma festa, com esses jovens – já não tão jovens – sentados em suas cadeiras industriais baratas de plástico rosa, cada um olhando para o próprio telefone, absorvidos pela pequenas telas, enquanto no ambiente, do lado de fora das suas cabeças, toca uma música alta. De modo voluntário, vivemos o transe do alienamento. No meio do salão, um grande coração inflável funciona como uma espécie de signo do amor artificial, encapsulado e sem carne, vazio e oco, que sobrevive bombeado por ar à custa de aparelhos: emocionalmente, estamos em coma. O espetáculo nos remete muito à obra Alone Together da psicóloga norte-americana Sherry Turkle, uma intelectual que tem discutido já há bastante tempo a reconfiguração dos afetos e das relações num mundo permeado por tecnologias digitais. Em determinado momento do espetáculo, alguém perde o celular e entra em pânico. Vemos, nessa hora, a expressão da “no mobile phobia”, doença contemporânea já incluída nos manuais de psiquiatria. Também temos um momento em que pensamos sobre o estatuto da fotografia e do ato de fotografar, representado como uma busca por algo que nos falta, como gesto ansioso de caça. E nos deparamos com o clique da fotografia como um gesto de atirar – um snapshot, como propôs uma vez a teórica Susan Sontag. Se no passado fotografar significava caçar ao outro, àquele que nos é diferente, hoje, entretanto, dar um disparo no clic da selfie pode apenas significar dar um tiro contra si mesmo, ou seja, cometer um suicídio. Pelo excesso da “repetição de si”, a profusão da autoimagem opera a morte do “eu mesmo”. Estamos frente ao suicídio da interioridade face ao triunfo da exterioridade. Somos um coração vazio de plástico no meio da festa de nossas vidas. Mas há de haver esperança: é possível animar esses encontros. Há um movimento muito lírico em que um pequeno globo desce do teto e reflete, com suas centenas de espelhinhos, as luzes que atravessam o espaço, criando linhas conectoras entre as dimensões do vazio. No cerne da solidão, pequenos brilhos espocam: horizonte possível de uma nova festa. Enquanto habitarmos um corpo, poderemos sempre celebrar a vida. Reorganizando o espaço, trocando o estilo da música, vamos permitindo que outras coisas aconteçam. Contra a repetição, o acontecimento. Aos poucos os figurinos brancos vão deixando revelar pernas e braços, pedaços de intimidade, e novas identidades vão se abrindo e se mostrando. Entra em cena uma mistura queer, conduzindo a diversidade para novas derivas. Rompemos a bolha e nos lançamos para experimentações além do previsível da própria ilha. A presença do corpo é que nos identifica, mas nós também somos produtores desses nossos corpos múltiplos e prenhes de identidade. Mais do que experimentar identidades, queremos que nossos corpos se toquem e se cruzem em nome de toda e qualquer possibilidade. Rumo ao arco-íris, há um caminho onde podemos nos encontrar. Love Me Tender, imortalizada na voz de Elvis Presley, se faz ouvir em algum ponto dessa trama: nosso desejo de ser amado com o corpo ainda vai nos mover em direção ao outro. Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesAumento do tecto da dívida americana A semana passada, a actualidade internacional foi marcada pela discussão do tecto da dívida nacional americana. O Governo prevê que será difícil que o Congresso chegue a um consenso sobre o novo tecto da dívida antes de 1 de Junho, e por isso volta a enfrentar uma crise no que respeita a esta matéria. O Governo salientou que o Partido Democrata e o Partido Republicano não conseguiram chegar a um acordo atempadamente, que permitisse que o país continuasse a contrair empréstimos. A partir de 1 de Junho, o Governo pode já não vir a ter capacidade de pagar os juros dos empréstimos anteriores o que vai provocar uma reacção em cadeia. As agências de notação de crédito baixarão o valor da dívida nacional americana, o que levará a um aumento dos custos dos empréstimos futuros e afectará mesmo o estatuto do dólar americano como moeda internacional. Além disso, o Governo fica impossibilitado de pagar os prémios anuais dos seguros de saúde, as pensões, os salários dos funcionários públicos, e assim por diante. A falta de dinheiro para fazer face a várias despesas afecta todos os sectores da sociedade. Para citar a Secretária do Tesouro, Janet Yellen, “o desastre económico e financeiro será da nossa inteira responsabilidade”. O tecto da dívida nacional é uma questão com uma longa história nos Estados Unidos. Actualmente está fixado nos 31.4 mil biliões de dólares. Em 1917, o Congresso estabeleceu um limite agregado, ou “tecto”, para o montante total de novos títulos que poderiam ser emitidos. Quando o Governo emite títulos, o Congresso não tem de os aprovar a todos. Quando deflagrou a Segunda Guerra Mundial, o Congresso criou o primeiro tecto da dívida nacional da História americana. Antes de 1953, o Congresso não debatia o aumento do tecto da dívida nacional. Em 1953, o Senado discutiu aprofundadamente a questão, o que deu início ao debate bipartidário que então foi instituído. Em 2011, ocorreu um impasse semelhante, o que levou a uma descida da notação de crédito do país. Embora o Congresso tenha chegado a um acordo para aumentar o tecto da dívida nacional, o Governo viu-se forçado a cortar nos gastos domésticos e militares na década seguinte. Existem algumas discussões na Internet sobre este assunto. Nestas discussões, houve alguém que disse que a situação é semelhante à de um alcoólico que se vê confrontado com um limite da quantidade que pode beber. Quando o limite é atingido, tem direito a pedir que possa ser prorrogado. Se o pedido for aceite, pode continuar a beber sem parar. Assim sendo, que sentido faz a imposição de limites? Também foi dito que o Governo pode invocar o Artigo 14 da Constituição para abolir o tecto da dívida. O Artigo 14 da Constituição afirma que a validade da dívida pública dos EUA “não deve ser questionada”. Como não pode ser questionada, significa que, por maior que seja, os Estados Unidos continuam a poder endividar-se. Nesse caso, fixar o tecto da dívida nacional não faz sentido, e o Congresso não precisa de o aprovar. Naturalmente, trata-se apenas de considerar o limite máximo da dívida nacional do ponto de vista jurídico. Partindo do princípio de que o Governo americano ganhasse este processo, o Congresso não iria precisar de aprovar nunca mais o tecto da dívida nacional, mas ainda iria precisar de tomar em linha de conta as respostas dos mercados e outras questões. Não seria definitivamente um método eficaz de governação partir do princípio de que os problemas se resolvem quando se ganha um processo judicial. Os Democratas e os Republicanos devem entender que se não chegarem a um acordo provocam um impacto tremendo nos EUA e nos mercados internacionais. Como disse Janet Yellen, serão certamente os Estados Unidos a sofrer as consequências mais graves. Por conseguinte, a probabilidade deste acordo não ser alcançado é muito baixa. Quando o acordo sobre o novo tecto da dívida for atingido, os Estados Unidos vão continuar a poder contrair dívidas e a aumentar o seu endividamento, o que nos traz de novo à ideia aquela analogia dos alcoólicos e do limite de álcool que podem ingerir. Esta política não gera segurança a longo prazo. Se os EUA não conseguirem aumentar as receitas e simultaneamente reduzir as despesas, vão deparar-se com o problema do tecto da dívida vezes sem conta. Quando os Estados Unidos chegarem à conclusão de que não podem pagar o enorme montante da sua dívida nacional, o mundo inteiro vai assistir a uma nova crise. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal VozesAinda há deputados sérios A Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso TAP continua a dar água pela barba. As sessões sucedem-se e as personalidades que vão ser inquiridas pelos deputados da referida Comissão são de um número elevado, incluindo, já esta semana, o ministro João Galamba, tal como o seu adjunto a quem ofenderam dizendo que tinha “roubado” o seu computador de trabalho e a chefe de gabinete de Galamba que tratou de tudo nos contactos ilegais com o SIS (Secretas). Entretanto, à porta fechada, foram inquiridos por outras comissões do parlamento, os dirigentes do SIRP e do SIS, bem como Constança Urbano de Sousa, presidente do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa. Se estiverem lembrados, esta senhora foi a tal ministra da Administração Interna, do Partido Socialista, que o Presidente Marcelo moveu a sua influência para que fosse demitida devido à sua incompetência nos fogos trágicos que mataram dezenas de pessoas. E é a mesma senhora que agora, segundo as nossas fontes, foi dizer, na reunião à porta fechada, que o pedido feito pelo gabinete do ministro Galamba ao SIS para ir recolher o computador do adjunto do ministro Galamba foi um acto “legal”. Imaginem bem, como o partidarismo destrói as instituições. O SIS não tem qualquer atribuição para actos policiais, nunca poderia ir recolher um computador, mesmo que o gabinete de Galamba justificasse que existiam documentos confidenciais no aparelho informático, e esta senhora tem o desplante de afirmar que a acção do SIS foi legal. Obviamente, que toda a oposição está contra Constança Urbano de Sousa por se ter comportado como uma funcionária superior de uma instituição independente e que cumpriu logo ordens emanadas dos seus camaradas socialistas. Este caso vai fazer correr muita tinta quando o ministro for prestar declarações à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a TAP, onde Galamba se encontrar na sala algum buraco enfiar-se-á por ele abaixo… Mas, tudo isto vem a propósito da seriedade, profissionalismo e dignidade dos deputados que foram eleitos pelo povo. No hemiciclo sentam-se os mais diversos seres humanos que se dizem políticos, mas cujo cargo que ocupam serve para as mais diversas funções. Certos deputados, muitos, trabalham mais nos escritórios de advogados e a mover influência em tribunais do que no parlamento. Outros, possuem empresas em nome das esposas e com a influência de serem deputados conseguem que essas empresas ganhem os concursos “públicos” nas mais diversas autarquias do país. Há ainda outros deputados que passam a maioria do seu tempo em consultorias, onde os seus conselhos valem ouro. Na referida Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a TAP os deputados têm tido um comportamento indevido e em alguns casos, de autêntica falta de educação. Deve ser por estarem ali fechados numa sala horas e horas. Discutem uns com os outros, insultam-se, não obedecem ao presidente da Comissão e neste ponto posso adiantar-vos que na semana passada deu-se o inimaginável. O presidente da Comissão, o socialista Jorge Seguro Sanches, apresentou a demissão porque os deputados passaram mais de uma hora a questionar os tempos das audições. Foi a gota de água para que um dos poucos deputados sérios, dignos, trabalhadores e competentes pegasse na pasta e virasse as costas à bandalheira. Há muito que a gestão dos trabalhos por parte de Seguro Sanches incomodava os representantes dos partidos presentes nas reuniões, acusando o presidente de se comportar como a maioria absoluta governamental. Uma ofensa que nunca devia ter sido comparada com a maioria absoluta porque Seguro Sanches sempre mostrou uma imparcialidade exemplar na direcção dos trabalhos da Comissão. Foi uma postura que o socialista considerou inaceitável, e a que que se juntaram pressões para alterar o calendário da Comissão, atrasando os trabalhos e as suas conclusões. A Comissão deveria terminar no próximo dia 23, o que só acontecerá lá para aas calendas. Nesta mesma Comissão um deputado socialista já tinha pedido para sair, mas esse, pelas piores razões, pois, participou numa reunião secreta com a CEO da TAP para combinarem as perguntas e respostas para quando a senhora francesa fosse à Comissão prestar declarações. Ou seja, existem deputados quem nunca deviam ter entrado pela porta da Assembleia da República. Servem-se e não servem o povo. Alguns, passam-se anos e nem uma vez usaram da palavra, nem que fosse para defenderem os baldios lá na sua terra que vão sendo vendidos escandalosamente com o conluio dos autarcas. Temos deputados que passam o tempo das sessões ao telemóvel enviando e recebendo mensagens de negociatas onde estão metidos. E temos aqueles que devido à posição financeira que usufruem só sabem convidar as colegas mais bonitas para jantar e oferecerem-lhes prendas. Como, valha-nos isso, ainda temos deputados sérios e dignos, era essencial reduzir o número de deputados. Em Portugal é um exagero para um país tão pequeno. 230 deputados é um desperdício de dinheiro que podia servir para os mais desprotegidos. O parlamento português trabalhava excelentemente com 120 deputados que se dedicassem com paixão à sua função, e só isso.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesDia da Vitória na Rússia e na Europa No dia 8 de Maio de 1945, a Alemanha assinou a rendição em Berlim, e a paz foi declarada às 0:00 horas de 9 de Maio. A rendição da Alemanha pôs fim à II Guerra Mundial na Europa. Assinalado a 8 de Maio na Europa e a 9 de Maio na Rússia, o “Dia da Vitória” celebra o anseio dos povos por uma paz duradora e a paixão com que defendem as suas pátrias. Antes do desmembramento da União Soviética, Moscovo e Kiev celebravam o “Dia da Vitória” a 9 de Maio, porque inúmeras vidas humanas se perderam durante a invasão Nazi nestas duas cidades. Em Fevereiro de 2022, a Rússia enviou tropas para a Ucrânia para levar a cabo operações militares especiais para, alegadamente, salvaguardar a segurança nacional, enquanto a Ucrânia afirma fazer face à invasão russa para defender a sua soberania territorial. Embora a China e as Nações Unidas tenham dado o seu melhor para promover as conversações de paz entre os dois países, infelizmente a guerra ainda continua. Lamentavelmente, ambos os países alegam que combatem para defender a segurança nacional. Se a guerra continuar, acredito que acabará por provocar cada vez mais danos à segurança nacional dos dois países. Entre a guerra e a paz, os líderes sensatos sabem por qual optar. Haverá inevitavelmente fricções, e mesmo guerras, entre países. Tomemos como exemplo a China e o Vietname. A China lançou um “contra-ataque defensivo” ao Vietname do Norte em 1979. O exército chinês entrou no Vietname e ocupou a cidade de Lang Son, uma importante base militar vietnamita. Mas o exército chinês não avançou para invadir Hanói (capital do Vietname), mas, em vez disso, retirou após a missão estar cumprida. A guerra entre estes dois países começou a 17 de Janeiro e terminou basicamente a 16 de Março, pelo que durou apenas dois meses. O conflito de curta duração entre a China e o Vietname não destruiu as economias dos dois países, nem abalou gravemente a sua relação. Fazer uso da sabedoria política na guerra é muitas vezes mais compensador do que a confrontação militar. No entanto, devemos respeitar as questões remanescentes de incidentes ocorridos entre países ao longo da história, relacionadas com a defesa da integridade territorial e da soberania. O Departamento de Educação da História da Imprensa Popular da China fez as seguintes explicações sobre o “Tratado de Nerchinsk” (o primeiro tratado assinado entre a China e a Rússia) mencionado nos materiais didácticos para alunos do ensino secundário que produziu em 1994: em primeiro lugar, o “Tratado de Nerchinsk” é um tratado equalitário (foedus aequum), que colocou ambas as partes em pé de igualdade. Em segundo lugar, diz respeito à fronteira oriental entre a China e a Rússia, e refere que as vastas áreas ao sul da Cordilheira Stanovoy, os rios Amur e Ussuri, incluindo a Ilha Sacalina, são todas zonas territoriais chinesas. Hoje em dia, se disséssemos que o acordo fronteiriço sino-russo referente ao “Tratado de Nerchinsk” ainda era válido, deixaria de haver paz entre a China e a Rússia. O Império Romano, o Sacro Império Romano-Germânico, o Império Mongol, o Império Otomano, o Império Russo e a Dinastia Qing tornaram-se parte da história. Não devemos aspirar à glória do passado, mas sim a trabalhar em conjunto para criar um futuro melhor para a humanidade. Ao comemorar o Dia da Vitória, os russos não se devem esquecer que o propósito de obter a vitória é manter a paz. O falecido primeiro-ministro israelita Rabin foi um bom chefe militar, mas acabou por procurar a paz através de negociações. Este líder que enveredou pelo caminho da paz merece ser homenageado na Praça de Telavive.
Flávio Tonnetti VozesNa Substância do Tempo – dança, corpo e linguagem O programa de dança apresentado pela Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo no Festival de Artes de Macau, concebido para a comemoração dos 100 anos de nascimento da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, foi particularmente tocante. Primeiro, porque a escolha de uma companhia portuguesa que homenageia uma de suas maiores poetisas permite retomar as conexões históricas existentes entre Portugal e Macau em planos estéticos e simbólicos, mobilizando afetos e sensibilidades que nos tocam não no passado, mas na emergência do presente. Depois, porque o poema “Quando” de Sophia, que dá o mote à primeira peça do programa intitulada “Em Redor da Suspensão – e seguida por “Outono para Graça” e “Requiem” – fala justamente de transformação e transcendência, conectando imediatamente esse espetáculo europeu à versão chinesa da Sagração da Primavera de Yang Liping, cumprindo com a promessa de oferecer um Festival de Artes que nos permita, refletindo sobre vida no tempo expandido das longas jornadas, olhar para o futuro com afeto. No caso da coreografia portuguesa, também é sensível que o espetáculo tenha ocorrido na mesma data em que se comemora o dia da Língua Portuguesa, uma língua pluricêntrica cuja variedade de sotaques e modos de ser encontra em Macau uma vida própria. Que se homenageie, em Macau, essa língua com uma dança dedicada a Sophia, não me parece uma questão trivial por parte dos programadores dos eventos, tendo em vista, sobretudo, o cuidado com as escolhas e as articulações que percebemos emergir ao longo de toda a programação do Festival. O que temos, nesse caso, é o corpo do bailado como oferenda à língua feminina, que tudo gera e tudo conecta – que tudo transforma. A língua que cria realidades para além da realidade dada. Se a poesia, por ser ancorada na palavra, necessita de grande esforço tradutório, o mesmo não ocorre com a dança, mais universalmente acessível como linguagem. A caligrafia dos corpos que cruzam o ar em movimento é capaz de cruzar quaisquer fronteiras da sensibilidade. A dança, como linguagem, realiza aquilo que a nação portuguesa um dia pretendeu: lançar-se para além dos limites do próprio confinamento. Contra todos que um dia quiseram conquistar e dominar, impondo uma cultura sobre as outras, vemos no corpo da língua de Sophia uma mátria imensa acolhedora que, na coreografia de Vasco Wellenkamp, nos convida, em tons gentis, a girar em suas calhas de roda. E nossos corações sentimos vir se revelando: a leveza mais que a gravidade, a brisa mais que a umidade, o voo mais do que a ave. A dança da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, com sua gramática delicada de gestos, mostra uma Sophia como expressão máxima de uma cultura que sabe ser sedutora, que domina ao ser dominada, que vence ao ser vencida, que faz acender a luz na noite da madrugada. Dessa cultura ninguém deseja fugir, a ela queremos nos entregar na transcendência além do amor – e de toda morte. Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta Continuará o jardim, o céu e o mar, E como hoje igualmente hão-de bailar As quatro estações à minha porta. Outros em Abril passarão no pomar Em que eu tantas vezes passei, Haverá longos poentes sobre o mar, Outros amarão as coisas que eu amei. Será o mesmo brilho, a mesma festa, Será o mesmo jardim à minha porta, E os cabelos doirados da floresta, Como se eu não estivesse morta. Sophia de Mello Breyner Andresen Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesMDMA na terapia de casal Leram bem. MDMA, como quem diz, a droga do amor, molly, ou ecstasy, a droga recreativa, pode ser uma poderosa aliada na terapia de casal. Não se trata de uma proposta sem fundamento de tendências new age, como os mais críticos e conservadores poderão julgar à primeira vista. É dentro das ciências psicológicas que se tem assistido ao renascimento dos psicadélicos. Um renovado interesse sobre o que alguns grupos de investigação já diziam há décadas, e que as comunidades indígenas já praticam há milhares de anos: as substâncias psicadélicas têm um grande potencial de transformação, e para os mais puristas da linguagem médica, um grande potencial para a cura. Neste renascimento, recupera-se a investigação realizada com psicadélicos, de onde fazem parte outras substâncias como o LSD, psilocibina ou ketamina. O que estes psicadélicos fazem é a dissolução do ser e a expansão da mente para que toque tudo o resto à nossa volta. Estas “trips” levam as pessoas para outros lugares mentais, lugares incomuns do cérebro. Como que um exercício de ginástica e flexibilidade cerebral, processam-se e recriam-se os padrões neuronais, resultando em novas formas de se estar. A ciência tem percebido o potencial transformador destas substâncias em stress pós-traumático e depressões resistentes. Na sociedade contemporânea que padece de doenças mentais e que força modelos (irrealistas) de se ser e estar, os psicadélicos – especialmente, se tomados em contextos terapêuticos – podem revolucionar a forma tradicional de experienciar. A investigação sugere, também, o potencial dessa revolução na terapia de casal. A droga do amor, que nos torna mais amorosos, ajudando na produção de hormonas de prazer e bem-estar, teoriza-se útil para os casais desencontrados. Digo teoriza-se por que não se tem testado o uso de MDMA nestes contextos por razões óbvias. Os poucos estudos que existem aplicaram MDMA em casos de stress pós-traumático que então mostrou resultados promissores na satisfação conjugal. Há quem foque a sua investigação no uso “naturalista” desta substância, ou seja, perceber as transformações nas pessoas que tomam MDMA de forma regular – muitas vezes em microdosing, ie., doses que não levam a viagens, mas ajudam a estarem mais ágeis mentalmente – e de como é que sentem que impacta a vida em casal ou a sua sexualidade. As vantagens reportadas são muitas. De acordo com os participantes ajuda a reduzir o stress e reduz também a ansiedade associada à performance sexual. Isto então ajuda no aumento do desejo, bem como a intensidade da exploração sensorial. Claro que o crepitar destas sensações ajuda na ligação emocional entre os envolvidos. O papel das substâncias psicadélicas nas relações amorosas e sexuais ainda é um terreno por desbravar, mas extremamente promissor. Se a investigação associada a doenças mentais mais graves ainda é insipiente, em relação a estas coisas do amor e do sexo ainda mais insipiente é. Não considerem, por isso, este um convite para tomar psicadélicos sem noção dos riscos, muito menos sem noção das condições necessárias para uma experiência terapêutica. Depois de muitos anos em que os psicadélicos foram demonizados, entramos agora numa fase promissora de desconstrução do seu significado. Um processo que será lento. Ainda assim, este palavreado tenta contribuir para esse processo. Urge olhar com nuance e complexidade a forma como os psicadélicos podem ser absorvidos pela sociedade – e refletir sobre os resultados maravilhosos, coloridos e psicadélicos que podem trazer.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesAumento de contribuições (II) A semana passada, assinalámos que a Mandatory Provident Fund Schemes Authority (Autoridade para o Regime do Fundo de Previdência Obrigatório) tinha apresentado um relatório ao Governo de Hong Kong, onde propunha aumentar o tecto contributivo para o Hong Kong Mandatory Provident Fund (MPF) (Fundo de Previdência Obrigatório de Hong Kong) de 1.500 dólares de Hong Kong (HKD) mensais para 2.750. Alguns dos residentes de Hong Kong têm na generalidade reservas em relação a esta proposta, porque acreditam que a pandemia não terminou por completo e que a economia ainda não recuperou, por isso pensam que este aumento contributivo não é adequado. Há também quem pense que esta medida só vai aumentar os custos das empresas e que muitas não os vão conseguir suportar. Outras pessoas defendem que o MPF só beneficia as empresas de investimentos e falha quando se trata de apoiar os residentes de Hong Kong. Estas críticas reflectem os problemas deste sistema. Actualmente, em Hong Kong, foi sugerida uma medida que raramente é mencionada: o aumento da idade da reforma. Esta sugestão implica um adiamento voluntário da reforma. Os problemas sociais dos idosos, as questões relacionadas com o MPF e os problemas com que lida a Segurança Social poderiam ser naturalmente e efectivamente resolvidos de forma gradual e as pessoas poderiam continuar a trabalhar, a receber salários e a ter autonomia financeira depois dos 65 anos. O aumento da idade da reforma deve ser voluntário e abordado com cuidado, como ficou demonstrado em França. A França alterou recentemente os termos do regime de pensões, estabelecendo um período mínimo de 40 anos de trabalho para que o trabalhador possa ter acesso à reforma por inteiro. Além disso, a idade da reforma foi aumentada dos 62 para os 64 anos. Estas medidas deram origem a uma onda de protestos em todo o país. Não temos ideia do número de pessoas envolvidas nos protestos, nem do número daqueles que apoiam estas medidas, por isso é que o prolongamento voluntário da vida activa pode evitar estes conflitos. Quem quiser continuar a trabalhar para lá da idade da reforma pode fazê-lo, quem não quiser desfruta do merecido descanso. Como é que pode haver conflitos quando a decisão cabe à própria pessoa? Em primeiro lugar, no quadro actual, o aumento voluntário da idade da reforma deve ser regulado pela legislação, que todos devem respeitar, para evitar situações em que os empregadores não querem contratar trabalhadores com mais de 65 anos. Em segundo lugar, para além do aumento da idade de reforma, o funcionamento existente não pode ser alterado, caso contrário o aumento da idade de reforma não seria voluntário. Em terceiro lugar, se o Governo permitir que se faça primeiro o aumento voluntário da idade da reforma nos seus departamentos, as pessoas podiam verificar a sua eficácia, e depois considerar o seu aperfeiçoamento e implementação. A situação em Macau e Hong Kong é semelhante, o salário médio é de 20.000 patacas, mas Macau só será uma sociedade envelhecida em 2026. Por conseguinte, Macau ainda tem tempo para se preparar. Desde que a pandemia esteja sob controlo e deixe de constituir uma ameaça à sociedade, a economia de Macau pode definitivamente recuperar antes de 2026. Além disso, o Governo de Macau recebeu um relatório, que sugere que deve ser implementado o Fundo de Previdência Obrigatório em 2026. Este regime implica que tanto os empregadores como os empregados têm de contribuir mensalmente, com uma verba correspondente a 5 por cento dos salários. Se este regime for implementado, o sistema de pensões de Macau continuará a desenvolver-se. Além disso, é preciso notar que, de acordo com o actual sistema de benefícios socias de Macau, as pessoas já recebem cerca de 6.000 patacas mensais depois dos 65 anos. É este o sistema de apoio aos reformados na cidade. A longo prazo, o valor que os reformados auferem deriva da protecção que lhes é assegurada pela segurança social e pelos seus próprios preparativos pessoais. A segurança social é garantida pelo Governo. Devido aos recursos limitados do Executivo, é necessário alocar mais meios para continuar a desenvolver o apoio aos reformados, que poderão ser gerados pelo aumento dos impostos. Mas esta medida não vai agradar a todos. Os preparativos pessoais para a reforma podem ser feitos de várias formas, e uma delas é a criação de um fundo de reforma pessoal. Quanto mais cedo se der início a estes preparativos, melhor será o resultado. O Fundo de reforma dos trabalhadores vai depender da contribuição das empresas, e a contribuição que fizerem para os trabalhadores será uma manifestação de responsabilidade social. Será injusto, quer para as empresas quer para os trabalhadores, pedir um aumento de contribuições se não vier a haver um aumento de segurança na reforma, mas apenas aumento das despesas mensais para ambos os lados. Seja qual for o país em que vivemos, o aumento voluntário da idade da reforma parece ser uma forma rápida, simples, directa e eficaz de resolver o problema da segurança na aposentadoria. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal VozesEu bem vos disse… Que as polémicas na governação de Portugal não iam cessar. A passada semana foi de loucuras. De polémicas inacreditáveis. De mais “casos e casinhos”. De incompetência, ilegalidade e de mais aldrabices, desta vez com o pior ministro do governo, o das Infraestruturas, João Galamba. A polémica principal foi acerca das mentiras de Galamba. Este, tinha dito que a CEO francesa da TAP lhe tinha pedido uma reunião, quando afinal, foi Galamba que convocou a senhora para uma reunião secreta e até lhe entregou um guião sobre as respostas que a CEO da TAP haveria de pronunciar quando fosse chamada à Comissão de Inquérito da Assembleia da República sobre a TAP. E Galamba fez mais: convidou a CEO da TAP a estar presente numa outra reunião secreta com deputados socialistas para serem combinadas as perguntas e as respostas na Comissão de Inquérito. Quando parecia que as polémicas se ficavam por aí, eis que rebenta um escândalo inacreditável: Galamba que tinha ido a Singapura – ninguém sabe o que lá foi fazer – chega a Lisboa e é alertado pela sua chefe de Gabinete que decorre no interior do Ministério uma “deplorável” cena em que um assessor de larga experiência governamental, que tinha transitado da equipa do anterior ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, para a confiança total de Galamba como ministro, que era o assessor que dirigia as reuniões com a TAP, que estava por dentro de toda a reestruturação da empresa, que sabia tudo sobre aeroportos e de outras estruturas, é acusado de “ladrão” por querer levar o seu computador de trabalho para fora do Ministério. De imediato, Galamba tenta falar com o primeiro-ministro e este não lhe atende o telefone. Dá indicações à chefe de gabinete para efectuar contactos com secretários de Estado ligados a António Costa, com a ministra da Justiça, com o SIS (imagine-se, com as Secretas) e posteriormente com a Polícia Judiciária. Tudo isto, alegando-se que o computador do assessor tinha material confidencial, como se o assessor não tivesse extraído cópias de todas as matérias em segredo de Estado ou não tivesse entregado já um ficheiro com toda a confidencialidade ao seu ministro. Mais uma polémica, esta gravíssima: o SIS não tem funções policiais e alguém deu ordens para que um funcionário do SIS fosse a casa do assessor ministerial reaver o computador. Quando o assessor foi contactado pelo SIS disponibilizou-se de imediato a entregar o computador, o que veio a acontecer junto da sua porta de casa. O SIS posteriormente entregou o computador à Polícia Judiciária. A ministra da Justiça confrontada pelos jornalistas fez uma figura triste e essa sim “deplorável, não respondendo a nada. Estava instalada uma trapalhada digna de telenovela mexicana e António Costa e João Galamba, dois políticos inteligentes, logo viram que podiam ter ganho o Euromilhões, combinando um esquema maquiavélico que bradou aos céus. Costa combina com Galamba que irá ao Palácio de Belém reunir com o Presidente da República, que daria a ideia ao Presidente que demitiria Galamba, tal como toda a gente pensava que aconteceria, que, entretanto, Galamba desse uma conferência de imprensa e anunciasse a sua demissão quando já sabia que Costa não aceitaria. Costa esteve reunido duas horas com o Presidente Marcelo e deu a entender que já tinha substituto para Galamba. Terminada a reunião e quando o primeiro-ministro chega ao Palácio de S. Bento e reúne com o seu círculo duro de ministros, decide telefonar ao Presidente Marcelo para lhe transmitir que vai anunciar ao país que não aceita a demissão de Galamba. Obviamente, que o Presidente viria a sentir-se enxovalhado e traído por Costa. De seguida, Marcelo deu a conhecer ao público uma nota inédita e peculiar, onde dizia que “discordava” de Costa. O povinho, as televisões e os jornais passaram o tempo a falar numa possível dissolução da Assembleia da República. Isso, era impossível, porque o Presidente é um dos melhores constitucionalistas portugueses e sabe perfeitamente se lançasse a “bomba atómica” que a Comissão de Inquérito à TAP terminava. Ora, nessa Comissão ainda vamos saber mais escândalos sobre a TAP e o controlo que os governantes têm exercido na sua gestão, vamos ter conhecimento de mais assuntos graves que provocarão mais polémicas. A procissão ainda vai no adro. Entretanto, o primeiro-ministro deslocou-se na quinta-feira passada para Braga e Barcelos, a fim de dar um ar de normalidade governamental, quando de repente, recebe um telefonema do Presidente para se apresentar em Belém às 18.30 horas. Costa tinha apenas duas horas para se deslocar e conseguiu (não se sabe como) – se por avião ou em excesso de velocidade – chegar a Belém apenas com quatro minutos de atraso. O Presidente Marcelo apenas lhe transmitiu que iria falar aos portugueses e que o seu discurso seria arrasador para o Governo e que iria estar atento diariamente sobre a actividade governamental. E realmente, Marcelo perdeu a cabeça e afirmou que o Governo não tem “confiabilidade, credibilidade, respeitabilidade e autoridade”. A lua de mel de sete anos entre Marcelo e Costa tinha terminado. O futuro deste país poderá ser uma tragédia e tudo o que de mau Galamba faça em processos importantíssimos como a privatização infeliz da TAP, o novo aeroporto, a estrutura ferroviária e outras, serão única e exclusivamente da responsabilidade de António Costa que decidiu ficar com Galamba ao colo. Num país de polémicas, posso garantir-vos que mais aí virão…
Flávio Tonnetti VozesSagração da primavera Sofrer vai ser a minha última obra – Paulo Leminski A arte como florescimento da vida: desse modo abrimos o Festival de Artes de Macau em 2023, com o espetáculo de dança A Sagração da Primavera, coreografado e dirigido por Yang Liping. Uma peça comovente e forte para quem esteve recolhido ao longo de três longos anos de pandemia, reclusão e silêncio. Como se, ao fim dum rigoroso inverno, estivéssemos agora vivendo um novo momento: o de ver florescer as forças remanescentes, que podem eclodir num ciclo de renascimento. Nessa versão oriental, concebida por entrelaçamentos de perspectivas conceituais hinduístas, budistas, taoistas e xintoístas, somos apresentados a uma profunda reflexão sobre o significado da vida e da morte, reposicionando nossa impressão sobre os ciclos da natureza e o sentido das nossas existências. Podemos afirmar, sem qualquer receio, que estamos nos limites duma arte sacra. Na versão original do balé, coreografado em 1913 pelo russo Vaslav Nijinsky para o concerto de Igor Stravinsky, uma jovem é escolhida para um rito sacrificial de fecundação da terra, tendo como pano de fundo uma narrativa ficcional inspirada em ritos pagãos europeus e narrativas populares russas. A morte de um indivíduo – uma mulher, uma jovem – é o tributo sem o qual a vida coletiva não se realiza. Ainda que tenhamos elementos de uma espiritualidade, numa perspectiva ocidental pagã, trata-se de uma cosmologia completamente assentada na ideia de indivíduo – orientado por noções como raça, gênero e espécie – e na separação criada entre sujeito e mundo ou entre cultura e natureza. Na versão chinesa, o sacrifício é vivido por todos nós, presos ao ciclo de nascimentos e mortes, para o qual o sofrimento é condição inerente e verdade incontornável para qualquer ser que viva em um corpo, independente de qual seja. Todos nós somos sacrifício e oferenda, todos somos beneficiadores e beneficiados. E não há mal externo a ser combatido: as coisas são como são. E nesse eterno refazer-se do mundo, há o domínio da vida como manutenção da repetição: a vida é treino em campo aberto. Há por isso, nessa coreografia, uma vocação para o butô, ainda que em sua expressão coreográfica sejam mais facilmente reconhecíveis, do ponto de vista visual, elementos de danças indianas e indonésias – ou até mesmo da ginástica artística. Uma criança pequenina que assistia à peça em companhia de sua mãe portuguesa, que se entusiasmara com os saltos acrobáticos do solista, chegou mesmo a dizer que também sabia fazer aquilo na capoeira, gerando graça por sua percepção subjetiva, muito bem assentada em seu próprio repertório. Penso que temos de dar ouvidos aos miúdos. Parece muito pertinente pensar essa coreografia como uma luta, e muito significativo percebê-la como resistência. Só a noção do enfrentamento é que muda, porque o inimigo não está fora. Mas, afinal, a capoeira também não é uma luta que se dança em roda? Para o budismo que sustenta toda a estrutura dramatúrgica, o trabalho de vigília que temos de fazer é sobre nós mesmos, e a vida é nossa única obra, sobre a qual devemos nos debruçar sem apego. Isso reforça a presença de um monge tibetano ao longo de todo o espetáculo. Anti-dançarino da música mais silenciosa. Nesse terreiro, o monge também produz sua roda: uma mandala por entre, e por sobre, a qual irá dançar todo o corpo de baile. Essa mandala redonda – ovo, olho, universo – é feita por pequenas partes diminutas que formam uma delicada tessitura, como uma renda holandesa. Se as olhamos com atenção, vemos que cada uma delas expressa um caractere chinês próprio – 唵嘛呢叭咪吽 – que podem ser combinadas na revelação de mantras, em especial o mantra Om mani padme hum, enunciado como sentença de motivação para livrar do sofrimento a todos os seres sencientes. É, portanto, um mantra inscrito para fazer vibrar um bom carma, para gerar positivos méritos que não se acumulam apenas para si, mas se estendem a toda vida existente no cosmos. É na construção desse chão que se assentará todo o trabalho. É curioso pensar como, do ponto de vista plástico, essa mandala significa o universo atomizado, feito de pequenas partículas que se combinam de modo infinito. No taoísmo, essa fusão de forças, que produz um articulado conjunto complexo, pode ser pensada como uma energia em constante movimento, intuito por meio de uma imagem também circular, e com a qual já estamos bem familiarizados graças a enorme difusão do símbolo do Yin Yang: um círculo dividido em duas partes, uma branca e outra preta, cada uma delas com uma bolinha redonda na cor oposta, representando a presença do “diferente” no lugar do “mesmo”. Se animássemos essa imagem, dando a sua materialidade o movimento que ela conceitualmente expressa – em outras palavras, se a fizéssemos dançar! – dissolveríamos a sua estrutura polar em um infinito espectro de cinzas. Se acrescentamos a essa realidade um conjunto de cores, que se combinam e recombinam na experiência da luz e da sombra, então seríamos capazes de nos aproximar plasticamente da estrutura de mundo preconizada por esse misticismo budista-taoísta. Parece-nos que revelar artisticamente essa cosmogonia tem sido um dos esforços de Yang Liping, como seu trabalho cotidiano. Sísifo empurrando a pedra e dela se soltando a cada ciclo de escaladas… A qualquer momento em que decidamos assumir a tarefa repetitiva de ampliar a consciência dos seres sencientes para que se libertem do sofrimento gerado pela roda da vida, poderemos perceber que não há solidão. Nossa dança acontece num rito comunitário dos que dançam conosco em meio aos que se recusam à dança, numa rede de acolhimento que vai tecendo o suporte da vida para que os outros possam entrar. Na tarefa de produzir a auto-iluminação e compartilhá-la, contamos ainda com os mil braços de Avalokiteshvara, a divindade da suprema compaixão que, no espetáculo, se revela no corpo coletivo das bailarinas com seus belíssimos braços e mãos alinhados em fila, donde vemos emergir todos os milagres constitutivos da realidade viva, numa reconfiguração dessa que é uma das imagens mais potentes das danças espirituais do oriente. Outro elemento da cultura chinesa que aparece no espetáculo é a face do dragão, signo da transmutação, da renovação e da fertilidade, muito presente nas danças de passagem do ano novo. O artista possui a energia do dragão. O que significa dizer que o artista transmuta o mundo. Recolhendo e configurando a realidade em face da morte, cuja imagem da caveira, um dos ícones do budismo, está colocada como avesso do princípio ativador da vida, nas costas do figurino do solista masculino. E é potente que a morte esteja agarrada na figura daquele corpo que é em cena o mais forte, o mais viril, o mais atlético, mostrando-se como expressão de nossa transitoriedade, como convite ao desapego e como alerta em relação às seduções do ego. O céu fecunda a terra, mas é a terra quem faz crescer a vida. A mesma terra que dá, é a terra que toma. O terreno em que tudo se aglutina é o mesmo onde tudo se dissolve. Atividade e passividade se confundem como dinâmicas ambíguas. Como é possível caminhar nesse terreno em tudo movediço? Como é possível salvaguardar-se entre as forças polares geradoras e destruidoras da experiência vivida? Como o monge no chão, recolhemos e organizamos os elementos desse universo, criando nossa mandala efêmera, feita de repetição sem acúmulo, posto que será imediatamente desfeita tão logo nosso ciclo se complete. Estamos nesse círculo do samsara. Essa é a sabedoria de quem vive habitando a consciência absoluta da morte. Sabemos já que, na verdade, nada nunca se completa, não há princípio nem fim. Quando entramos no auditório, já lá está o monge: entre os trabalhos e horas há sempre um Outro anterior que permanece. A mandala está incompleta quando chegamos, e seguirá descompleta quando partirmos. Lágrimas escorrendo por sobre a barba branca, depois que os bailarinos se retiraram, fiquei após o final do espetáculo observando o monge silenciosamento. Um segurança veio retirar-me do auditório. Era hora de evacuar o lugar. Mas o monge lá permanecia. Outros provavelmente virão quando ele se for para estruturar a continuidade desse trabalho mínimo, invisível, estruturante de toda a malha da vida. Se penso nesse caminho como um ‘do’, imagino cozinheiras, jardineiros, professoras, agricultores… cada qual repetindo seus gestos num universo sem sentido e nele produzindo estrutura. Tudo é feito em movimento, ainda que não o percebamos, mesmo os agradecimentos são fluxo continuo: aproximação e dissolução, fazer-se e desfazer-se. Quando os bailarinos recebem flores e a querem entregar ao monge, ele completamente as ignora, nada o distraí do seu trabalho, nada pode elevá-lo para cima dos outros seres, não pode haver reconhecimento porque não há ego. É preciso compreender a radicalidade do conceito de igualdade, rebaixando-se – ou elevando-se – para o mesmo nível de todas as formas de vida, o que é o mesmo que entrar em sintonia com o cosmos. Fazer a mandala é participar da dança do universo. Desfazê-la também. Todo trabalho é em si mesmo absurdo, mas não devemos deixar de fazê-lo, porque viver é participar do chão da vida. Mas de que forma estamos pisando nela? E o que é que nela plantamos? Cada caracter depositado no chão dessa coreografia é uma semente que florescerá. Cada elemento desses mantras é signo de um auspício que alimentamos: generosidade, ética, paciência, diligência, renúncia, sabedoria. Ao dizer as palavras certas, ao executar os gestos apropriados, projetamos no mundo aquilo que queremos que nele floresça: fazemos nossos mantras e mudras e criamos fluxos de energia. Não há outra matéria a ser modificada senão a nós mesmos, num mundo que é em si mesmo mudança. A única forma de ir é entregando-se ao fluir de tudo aquilo que flui. Da pequenez do nosso ego individual nos prostramos à imensidão dos mistérios do universo. Apenas sobre o chão fértil dessa entrega é que poderemos bailar a dança infinita da vida. Nós é que somos a primavera. Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.
Olavo Rasquinho VozesSíntese do sexto relatório de avaliação do IPCC sobre as alterações climáticas António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, no seu discurso na conferência de imprensa para apresentação da Síntese do Sexto Relatório da Avaliação das Alterações Climáticas, em 20 de março de 2023, recorreu à seguinte metáfora: “… a humanidade está sobre uma fina camada de gelo e este gelo está a derreter rapidamente…(Humanity is on thin ice and this ice is melting fast…”). Para evitar o desastre a que esta figura de linguagem se refere, é imprescindível que a humanidade tome consciência do risco que corre na sua corrida desenfreada para melhorar o Produto Interno Bruto dos Estados ignorando as devidas precauções no que se refere à sustentabilidade da Terra. Como é do conhecimento do público que acompanha o evoluir dos assuntos relacionados com a sustentabilidade do nosso planeta, nomeadamente no que se refere às alterações climáticas, o acrónimo IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) refere-se ao órgão das Nações Unidas incumbido de monitorizar as alterações climáticas, os impactos inerentes a essas alterações, e fornecer aos governos avaliações regulares sobre a evolução do clima. Durante os seus 35 anos de atividade foram elaborados 6 Relatórios de Avaliação (Assessment Reports – AR) da evolução do clima, com a periodicidade aproximada de 6 anos. Além destes foram também publicados 14 relatórios sobre temas específicos. De acordo com o Relatório Síntese do AR6, as atividades antropogénicas desde há mais de 150 anos, ou seja, desde o início da era industrial, são a principal causa do aquecimento global de cerca de 1,1 ºC acima dos níveis pré-industriais, o que implicou a ocorrência de eventos meteorológicos extremos mais frequentes e violentos, que têm sido a causa de elevadas perdas de vidas e bens. Como o título indica, este Relatório Síntese consta do resumo das conclusões e recomendações que compõem as três primeiras partes do AR6, já publicadas previamente em 2021 e 2022. Tem como objetivo disponibilizar importante informação e linhas mestras de atuação tendo em vista a mitigação das alterações climáticas e a adaptação da sociedade a essas alterações. Apesar de ser uma síntese, este relatório, na sua versão para os decisores políticos, consta de 36 páginas (versão em inglês). Vejamos algumas das principais conclusões expressas neste documento, segundo o World Resources Institute: O aquecimento global de 1,1 ºC, induzido pelas atividades antropogénicas, estimulou alterações no clima sem precedentes na história recente da humanidade. Os impactos das alterações climáticas sobre a humanidade e ecossistemas são mais generalizados e graves do que o previsto, e os riscos futuros aumentarão rapidamente sempre que haja um aumento de uma fração de grau da temperatura média global. Para ilustrar esta constatação, pode-se mencionar o facto de cerca de metade da população mundial enfrentar atualmente forte escassez de água, e que o aumento da temperatura é favorável à propagação de doenças transmitidas através de vetores (p. ex. mosquitos, carraças, etc.), como malária, vírus do Nilo Ocidental e doença de Lyme. As medidas de adaptação às alterações climáticas podem efetivamente contribuir para o aumento da resiliência, mas, para esse efeito, será necessário um maior apoio financeiro. O IPCC estima que os países em desenvolvimento precisarão de US$ 127 mil milhões por ano até 2030 e US$ 295 mil milhões por ano até 2050 para se adaptarem às alterações climáticas. Alguns impactos das alterações climáticas são já de tal maneira severos que não podem ser atenuados com recurso a medidas de adaptação, o que implica aumento de perdas de vidas e danos materiais. Por exemplo, algumas comunidades costeiras viram as suas vidas dificultadas devido à extinção de recifes de corais que lhes garantiam meios de subsistência e segurança alimentar, enquanto outras comunidades foram obrigadas a abandonar os seus terrenos de cultura devido à subida do nível do mar. As emissões globais de gases de efeito de estufa (GEE) atingirão um pico antes de 2025, se o ritmo de emissões atual não abrandar. Segundo o IPCC, há uma probabilidade superior a 50% de que a subida da temperatura global atinja 1,5 ºC até 2040, com base em vários cenários e, num cenário de emissões mais intensas, poder-se-á atingir este valor mais cedo, até 2037. Nestas condições o aumento global da temperatura poderá subir para valores entre 3,3 ºC e 5,7 ºC até 2100. A queima de combustíveis fósseis, causa número um da crise climática, deve ser abandonada rapidamente. Embora centrais elétricas movidas a carvão estejam a ser desmanteladas na Europa e nos EUA, alguns bancos multilaterais de desenvolvimento continuam a financiar a instalação de centrais deste tipo. Para garantir um futuro resiliente e com neutralidade carbónica é necessário proceder a transformações urgentes em todo o sistema. Embora os combustíveis fósseis sejam a principal causa das emissões de GEE, além de se ter de deixar de recorrer à sua utilização, terá de se proceder a cortes drásticos das emissões noutras áreas da atividade humana, como por exemplo a agricultura e a exploração pecuária. A remoção de carbono da atmosfera é essencial para limitar o aumento da temperatura global a 1,5 ºC. Para se atingir a neutralidade carbónica não é suficiente desistir da utilização dos combustíveis fósseis e outras medidas de redução das emissões de GEE. Terá também de se recorrer à remoção do carbono da atmosfera, o que implica, além da intensificação da florestação e outros métodos naturais, o recurso a novas tecnologias para extrair o dióxido de carbono diretamente da atmosfera para o subsolo. As medidas de adaptação podem efetivamente contribuir para uma maior resiliência, mas é necessário mais financiamento para melhorar as soluções. De acordo com o IPCC, o financiamento público e privado para produção de combustíveis fósseis tem sido superior ao dirigido para a mitigação das alterações climáticas e a adaptação a essas alterações. Se tudo continuar assim, não serão atingidas as metas globais preconizadas no Acordo de Paris. As alterações climáticas, assim como os nossos esforços coletivos para a adaptação e mitigação, contribuirão para aumentar a desigualdade, caso não se consiga garantir uma transição justa. Os efeitos das alterações climáticas atingem mais duramente os países menos desenvolvidos, apesar de terem sido os que historicamente menos GEE emitiram. De acordo com Relatório Síntese da AR6, ainda é possível limitar o aquecimento global a 1,5 ºC até ao fim do século, conforme o preconizado pelo Acordo de Paris, mas apenas se houver empenho dos governos, setor privado, sociedade civil e todos nós individualmente. A janela de oportunidade ainda está aberta, mas não há tempo a perder. *Meteorologista
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesAumento de contribuições (I) A Autoridade para o Regime do Fundo de Previdência Obrigatório apresentou um relatório ao Governo de Hong Kong, propondo o aumento da contribuição máxima para o Fundo de Previdência Obrigatório (Hong Kong Mandatory Provident Fund – MPF) de 1.500 dólares de Hong Kong (HKD) mensais para 2.750. O Governo de Hong Kong vai rever o relatório e fazer recomendações ao Conselho Legislativo, no sentido de proceder às alterações. Esta revisão é realizada de acordo com o sistema existente. O Governo de Hong Kong reavalia os limites superior e inferior das contribuições ao MPF a cada quatro anos para garantir que as contribuições estão em conformidade com o desenvolvimento económico. Depois do anúncio desta medida, alguns residentes de Hong Kong manifestaram reservas em relação à proposta. Alguns órgãos de comunicação social salientaram que algumas pessoas acreditam que a pandemia ainda não acabou por completo e que a economia ainda não totalmente recuperada e, por isso, não será adequado aumentar o tecto das contribuições nesta altura. Há também quem pense que esta medida só vai agravar os custos operacionais das empresas, e que muitas delas não os conseguirão suportar. Segundo a opinião de outras pessoas, o MPF capitaliza com os investimentos das empresas, mas falha no apoio aos residentes de Hong Kong. Com base no salário médio da cidade, 20.000 HKD mensais, o valor acumulado no MPF após 40 anos de trabalho é de 1 milhão de dólares, sem calcular os juros do investimento. No entanto, a esperança média de vida dos homens em Hong Kong é actualmente de 83 anos e das mulheres de 85. Isto significa que, depois da reforma, as pessoas precisam de acumular neste Fundo uma quantia que lhes permita viver por mais 20 ou 30 anos. Com o sistema em vigor, o milhão acumulado em média é manifestamente insuficiente. As críticas apontadas reflectem os problemas do regime do MPF. Desde a criação do Fundo de Previdência Obrigatório pelo Governo de Hong Kong, os trabalhadores têm de fazer contribuições mensais, bem como os empregadores. As contribuições representam 5 por cento do salário dos trabalhadores, para cada uma das partes. Os custos operacionais dos empregadores aumentaram significativamente. Se o tecto das contribuições para o MPF aumentar, estes custos voltam a subir. Como as outras prestações de reforma não são aumentadas, mas apenas as prestações para o MPF, significa que a protecção à reforma dos trabalhadores recai mais uma vez sobre os ombros dos empregadores. Não é justo para a entidade patronal. A injustiça para a entidade patronal é um problema, mas se ao fim de 40 anos de trabalho uma pessoa só acumula 1 milhão de dólares de HK, fica muito aquém de vir a poder suprir as suas necessidades durante o período da reforma. Por conseguinte, o Governo de Hong Kong tem de enfrentar o problema e resolvê-lo. Os dados estatísticos mostram que Hong Kong já é uma sociedade envelhecida, de acordo com os critérios das Nações Unidas. Mais de 14 por cento da população está acima dos 65 anos, e o número de pessoas em idade activa diminui todos os anos. É urgente resolver o problema da protecção na reforma. Assim sendo, embora a epidemia não tenha desaparecido completamente em Hong Kong e a economia ainda não esteja completamente recuperada, isso não deve ser motivo para impedir o Governo de Hong Kong de aumentar o limite máximo das contribuições ao MPF. Os investimentos envolvem riscos e é inevitável que haja ganhos e perdas. No regime do MPF de Hong Kong, empregados e empregadores fazem contribuições mensais num sistema de investimento obrigatório. As pessoas são obrigadas a descontar e ficam naturalmente insatisfeitas. Se este investimento trouxer lucros as pessoas consideram-no uma boa ideia, mas se trouxer prejuízos vão pensar que é uma medida negativa. Além disso, as empresas responsáveis polos investimentos cobram taxas. Os comentários que os investimentos obrigatórios beneficiam estas empresas não podem ser evitados. O investimento obrigatório tem sido criticado porque o MPF de Hong Kong tem uma única finalidade e só pode ser usado em benefício do trabalhador depois da reforma. Algumas pessoas em Hong Kong sugeriram seguir o exemplo de Singapura e expandir o uso do MPF. Por exemplo, o MPF poderia ser usado como garantia para comprar casa. Infelizmente, esta sugestão acabou por ser rejeitada. Outra proposta foi ainda sugerida. Consistia na possibilidade de os trabalhadores comprarem anuidades de Hong Kong usando o MPF depois da reforma, para criarem rendimentos mensais a longo prazo. É uma pena que esta proposta tenha sido criticada e que não tenha podido seguir em frente. As propostas acima mencionadas foram rejeitadas, por isso, como é que se pode resolver o problema da protecção na idade da reforma? Vamos continuar esta discussão na próxima semana e também abordaremos a melhor forma de Macau lidar com esta mesma questão. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal VozesA festa de Lula Na semana passada, Portugal viveu mais uma polémica: a visita oficial de Lula da Silva, Presidente do Brasil. Infelizmente, a festa de Lula foi transformada em discussão, protesto e vergonha. O metalúrgico que chegou a Presidente da República pela segunda vez foi convidado oficialmente pelo seu homólogo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. A maioria dos brasileiros que vivem em Portugal regozijaram-se com a presença de Lula da Silva e logo manifestaram a sua alegria nos mais diversos locais por onde passou. No entanto, a polémica atingiu o convite que foi feito ao visitante para ser recebido solenemente na Assembleia da República. Dois partidos políticos, o Iniciativa Liberal e o Chega contestaram a presença de Lula da Silva no parlamento e demonstraram que de democratas têm muito pouco. Os deputados do Iniciativa Liberal não estiveram presentes na sessão oficial parlamentar, excepto o seu líder Rui Rocha e o Chega envergonhou todos os portugueses que não são neofascistas. O Chega, contra todas as regras da ética parlamentar, levantou os braços com cartazes insultuosos contra Lula da Silva, chamando-lhe corrupto. O Chega até se esqueceu que Portugal é um dos países da Europa onde mais impera a corrupção a todos os níveis. Este acto de um partido que é essencialmente antidemocrata recebeu de imediato o protesto do presidente da Assembleia Legislativa, onde Santos Solva protestou veementemente contra a atitude dos deputados neofascistas. Lula da Silva é um ser humano como todos nós, mas soube disfarçar o sentimento de tristeza pelo que assistiu e manifestou o seu contentamento pela forma como foi recebido em Portugal. Os brasileiros apoiantes de Lula da Silva saíram à rua para gritar palavras de apoio a um homem que conseguiu derrotar em eleições livres um ex-presidente fascista que provocou durante o seu mandato a morte de milhares de brasileiros. Bolsonaro tudo fez para que Lula da Silva não fosse eleito, inclusivamente deu instruções, ao estilo de Donald Trump, para que as sedes do governo e do tribunal, em Brasília, fossem ocupadas e vandalizadas. Nas ruas de Lisboa ainda apareceram alguns apoiantes de Bolsonaro que de um momento para o outro foram expulsos dos locais onde apareceram a dar vivas a Bolsonaro. A propósito, lembrar que o Chega, de André Ventura, vai realizar uma conferência e convidou Bolsonaro a estar presente e este aceitou. Neste particular, dizer-vos que os portugueses deixaram de ser um povo lutador pelos valores democráticos e que passivamente assistem à ingerência política cada vez maior dos neofascistas. E é por essa razão, que alguns analistas, já se pronunciaram que a democracia está em perigo. Os portugueses que se sentem democratas tinham a obrigação de se organizarem para contestar veementemente a presença de Bolsonaro em Portugal. Todos os partidos democráticos tinham a obrigação, juntamente com todos os sindicatos, de se dirigiram ao local onde estivesse Bolsonaro e não permitir que a sua presença fosse pacífica. O local onde o Chega vai receber Bolsonaro podia mesmo ser invadido pelos democratas portugueses e não permitir que o fascista brasileiro usasse da palavra. Lembremo-nos de que este mesmo Bolsonaro nunca visitou Portugal enquanto foi presidente da República do Brasil e foi malcriado e insolente para com o Presidente Marcelo, quando este se deslocou ao Brasil. Lula da Silva pode ter tido um passado com erros políticos, acusado de corrupção, preso injustamente, pronunciando-se contra a União Europeia, da qual Portugal faz parte, tomando posição a favor da Rússia, mas, o povo brasileiro é soberano e elegeu-o novamente Presidente. Não pode ser esse passado a desrespeitar uma visita oficial do Presidente Lula da Silva a Portugal, até porque o próprio manifestou que pretende as melhores relações económicas com Portugal no futuro e nesta visita já foram assinados vários acordos de índole económica. Há um facto que me deixou satisfeito na eleição de Lula da Silva: a Amazónia já não será destruída e os seus indígenas irão ser apoiados significativamente pelo governo de Lula da Silva. O importante é que o Brasil não volte a cair nas mãos de verdadeiros corruptos, fascistas e de um governo que deixe os pobres ainda mais pobres.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesNormalidade anormal Em matemática, quando multiplicamos dois números negativos, o resultado é sempre positivo, ao passo que se multiplicarmos um número negativo por um positivo, o resultado será sempre negativo. Os princípios éticos ensinam-nos que as más intenções nunca podem produzir bons resultados. Em situações que saem da norma, tudo é razoavelmente anormal. Se considerarmos que algo é “normal”, em situações anormais, estamos apenas a racionalizar e a normalizar a anormalidade. É lamentável que o hábito de racionalizar fenómenos anormais esteja a ser cada vez mais bem aceite nas nossas sociedades. De acordo com os jornais de Hong Kong, Ingrid Yeung Ho Poi-yan, Secretária da Administração Pública de Hong Kong, respondeu recentemente a questões relacionadas com a demissão de funcionários públicos, durante a sessão do Comité de Finanças do Conselho Legislativo. Ingrid Yeung Ho Poi-yan declarou que estas demissões eram “normais dentro de uma situação irregular e que toda a Hong Kong está a viver um período anormal”. Admiro a coragem que Mrs. Yeung precisou de ter para dizer a verdade. Mas se a situação anormal não for resolvida, mesmo que o processo de recrutamento de funcionários públicos seja acelerado, ou se for seguido o exemplo da Polícia de Hong Kong, que flexibilizou os requisitos de admissão dos novos recrutas, mesmo assim não se resolve o problema da saída de Hong Kong de pessoal altamente especializado. Desde a implementação da Lei de Segurança Nacional para Hong Kong em Junho de 2020, a frase “do caos à ordem, da estabilidade à prosperidade” tornou-se um jargão político muito popular. Passados quase três anos, e de acordo com o Relatório de Situação da População Mundial divulgado pelo Fundo de População das Nações Unidas em Abril deste ano, Hong Kong tem a taxa de natalidade mais baixa do mundo, nascendo apenas 0,8 crianças por cada mulher, seguido de perto pela Coreia do Sul com uma taxa de 0,9. Nos últimos anos, as relações entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul têm sido tensas, com a existência de tempos a tempos de conflitos militares e de ameaças nucleares, conduzindo assim a uma taxa de natalidade sistematicamente baixa, e isto pode ser considerado um fenómeno natural. Mas em Hong Kong, após quase três anos de transição “do caos à ordem, da estabilidade à prosperidade”, de acordo com o princípio orientador de “Hong Kong governado por patriotas”, a taxa de natalidade não só não cresceu como diminuiu. As autoridades de Hong Kong deviam reflectir profundamente sobre as causas deste problema e encontrar formas de permitir Hong Kong volte verdadeiramente à normalidade! Há uma expressão chinesa que diz “quem recuou 50 passos ri-se de quem recuou 100. Fala sobre dois desertores que abandonaram o campo de batalha, o que recuou 50 passos ri-se do que recuou 100 e chama-lhe cobarde, e o último responde que todos têm medo da morte. Macau e Hong Kong são ambas Regiões Administrativas Especiais e passaram por vários problemas nos últimos anos, embora a situação em Macau seja aparentemente menos grave do que em Hong Kong. Tomemos como exemplo a obra de construção do novo estabelecimento prisional de Macau (Fase III). Em Fevereiro deste ano, a Comissão de Acompanhamento para os Assuntos de Finanças Públicas da Assembleia Legislativa declarou num dos seus pareceres que se fariam todos os esforços para que a Fase III estivesse concluída em Fevereiro ou Março de 2023. Mas num anúncio da Direcção dos Serviços de Obras Públicas, feito em Abril, o empreiteiro da Fase III declarou que o seu progresso tinha sido afectado pela pandemia e que a conclusão estava prevista para o fim deste mês, O progresso e as custas da obra de construção do novo estabelecimento prisional de Macau (Fase III) deveriam ser eficazmente monitorizadas pela Comissão de Acompanhamento para os Assuntos de Finanças Públicas. No entanto, em Macau, não é surpreendente encontrar atrasos e derrapagens de custos nos projectos governamentais devido diversas causas, incluindo tanto as catástrofes naturais como os factores humanos. Infelizmente, a sociedade de Macau habituou-se a aceitar em silêncio certos fenómenos anormais como sendo normais. Para restaurar verdadeiramente a normalidade na sociedade de Macau, é crucial eliminar os elementos anormais.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesEra uma vez na América A semana passada, uma notícia correu mundo. Ralph Yarl, um adolescente afro-americano, foi baleado por um homem branco de 84 anos quando ia buscar os irmãos gémeos. O autor dos disparos, Andrew Lester, alvejou Ralph na testa e no braço porque este tocou à sua campainha por engano. Lester foi libertado sem ter sido acusado, depois de estar detido durante 24 horas. Estes acontecimentos geraram grande revolta popular. Foram organizadas várias manifestações e as pessoas alegam que a polícia favorece os brancos. Andrew Lester acabou por se entregar à polícia e foi acusado de agressão de primeiro grau e de posse de arma de fogo. Na primeira audiência, negou as acusações e foi libertado sob fiança, mas foi obrigado a entregar as armas, e a não contactar com a vítima nem a sua família e a ser monitorizado através do telemóvel. Se for condenado por agressão de primeiro grau, Lester enfrenta uma pena de prisão perpétua. Mas como Ralph sobreviveu, esta condenação é muito improvável. Ralph é um jovem negro que foi alvejado por um homem branco quendo estava desarmado. Não é difícil encontrar nesta história um elemento de racismo. Um dos casos de racismo que ficou tristemente famoso, foi o de George Floyd, um homem afro-americano. George foi detido por um polícia branco sob suspeita de ter usado uma nota falsa. O polícia pressionou o pescoço de George com um joelho até este morrer sufocado. Este acontecimento deu origem a muitos protestos. Finalmente, vários agentes envolvidos no caso foram acusados de assassínio e de homicídio involuntário e foram condenados. O caso de Ralph, além de mais uma vez trazer à tona a questão da discriminação racial nos Estados Unidos, também nos volta a alertar para a questão do controlo de armas. No artigo que escrevi sobre o caso de George em 2020, era claramente salientado que o 16.º Presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, libertou os escravos negros e que Martin Luther King, encabeçou o movimento que ficou conhecido por Montgomery Bus Boycott, entre Dezembro de 1955 e Dezembro de 1956. Este movimento levou à aprovação da Lei dos Direitos Civis em 1964, que estipula claramente que não pode haver discriminação racial nos Estados Unidos. Toda a discriminação feita contra negros, minorias, ou mulheres é ilegal. Em 2009, Barack Obama foi eleito, tornando-se no primeiro Presidente negro dos Estados Unidos, uma prova de que este país reconhece o direito dos negros ao mais alto cargo da nação, e também demonstra que não pode haver discriminação racial no sistema e na lei. As acções discriminatórias que se registaram são da responsabilidade de certos indivíduos. Então perguntamo-nos, quanto tempo levará até que os Estados Unidos eliminem este tipo de discriminação? Sobre a questão do controlo de armas, o caso de Ralph é um “remake” do caso de Takejo Hattori, ocorrido em 1992. Takejo Hattori era um jovem japonês que estudava no Louisiana. Takejo e seu amigo Webb Haymaker iam a uma festa de Halloween. Como tinham apontado mal a morada, foram dar à casa errada. Quando tocaram à campainha, assustaram a dona da casa, uma mulher chamada Bonnie Peairs, que estava na garagem. Por causa disso, o marido, Rodney Peairs, pegou numa arma e veio tentar perceber o que tinha assustado a mulher. Nessa altura, Takejo dirigiu-se a Rodney e acenou-lhe. Rodney não falava japonês e pensou que Takejo estava a tentar agredi-lo. Avisou Takejo para que ficasse quieto. Takejo, que não teve noção do perigo, continuou a avançar e a dizer que vinha para uma festa, mas acabou por ser atingido no pulmão esquerdo e morreu devido a uma hemorragia. Rodney foi acusado de homicídio, mas os 12 jurados consideraram que não era culpado, ao abrigo da “fortress doctrine” (doutrina da fortaleza). O “fortress principle” é um princípio jurídico, que estipula que, para manter a segurança da sua casa, o proprietário pode usar de força contra pessoas que a queiram invadir. Esta acção é considerada legítima defesa e não é criminalizada. Mais tarde, os pais de Takejo levantaram uma ação civil contra Rodney. O tribunal considerou que Rodney tinha reagido de forma exagerada à presença de um adolescente e que não tinha tomado as medidas de segurança mais eficazes, como ficar dentro de casa até à chegada da polícia. Por isso, Rodney foi acusado de negligência e condenado ao pagamento de uma indeminização de 650.000 dólares. O acusado declarou falência de imediato e os pais de Takejo acabaram por só receber 100.000 dólares. Depois de deduzir as taxas legais, os pais de Takejo criaram o “Yoshi’s Gift” com os 55.000 dólares restantes para apoiar grupos que defendem o controlo de armas nos Estados Unidos. Também usaram a compensação do seguro de vida do filho para criar o “Fundo YOSHI” para apoiar os estudantes do ensino médio dos Estados Unidos que visitam o Japão, promover intercâmbios e melhorar a compreensão mútua. Nos 30 anos que se seguiram, os pais de Takejo apresentaram várias petições ao Governo dos Estados Unidos, e à opinião pública, para que fosse revista a questão das armas de fogo. O ex-Presidente Bill Clinton promulgou a Brady Law em 1993 para que fossem verificados os antecedentes de pessoas que querem comprar armas de fogo. Os pais de Takejo afirmaram: “O mundo pode ser mudado.” “Se apenas ficarmos à espera, nada muda. Mas se dermos um passo em frente, o cenário vai mudar. Mesmo que não aconteça nesta geração, acontecerá na próxima.” Thompson, o promotor do caso de Ralph, prometeu lidar com o caso de forma objectiva e justa e afirmou “A minha mensagem para a comunidade é que, na cidade de Kanas, aplicamos e obedecemos à lei. Não importam as origens, a aparência, ou os bens pessoais, todos têm de respeitar as mesmas regras.” O Presidente Biden condenou o incidente, afirmando que mais uma vez reflecte o problema do uso de armas; disse também que tinha falado com Ralph e com família ao telefone e que o tinha convidado a visitá-lo na Casa Branca, depois de estar recuperado. Este procedimento é exactamente igual ao que ocorreu no caso de George Floyd. Biden mostrou que se preocupa com as vítimas, mas como é que pode ajudar no controlo de armas? Os pais de Takejo têm lutado para mudar a política de armas de fogo nos Estados Unidos. O seu contributo é ainda maior do que o de muitos americanos. No entanto, se os casos que envolvem armas de fogo continuarem a acontecer, não sabemos quando é que Takejo pode vir a descansar em paz no céu. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal VozesPaís maravilhoso Portugal é um país maravilhoso. Alguns dizem o contrário. Que os portugueses estão nas ruas da amargura. Que existem dois milhões ao nível da pobreza e que a classe média está a passar pela maior crise económico-financeira de sempre. A classe média? Não consigo compreender como é que a classe média se queixa em qualquer situação, que não consegue pagar a prestação da casa, mas não prescinde de carro para o marido e outro para a mulher, que os preços dos produtos essenciais estão cada vez mais caros e que já não vão jantar fora. Pois é, mas essa mesma classe média o que nos demonstra é que vive num país maravilhoso que por ter este ano o mês de Abril com calor e praia decide ter 10 dias de férias, do pé para a mão. 10 dias de férias? É verdade, no passado sábado iniciaram um ripanço formidável com uma ponte até amanhã que é o feriado do 25 de Abril, depois metem quarta, quinta e sexta como dias de férias, vem mais um sábado e domingo e segunda-feira seguinte é feriado novamente por ser o dia 1º de Maio. 10 dias em beleza, partindo para o Algarve ou para as margens do Douro, onde o turismo rural em quintas aprazíveis lhe proporciona 10 dias sem trabalho em plena altura do ano em que não é costume haver férias para ninguém. Quando encontramos alguém que tem um emprego razoável e que pertence à chamada classe média, logo ouvimos que a vida está mal, que isto em Portugal está impossível de se sobreviver e a lamentação não tem fim. Esquecem-se daqueles que vivem com uma reforma de 200 ou 300 euros, esquecem-se dos sem-abrigo, esquecem-se dos jovens estudantes que deixam as universidades por não poderem pagar as propinas, esquecem-se dos que vivem em bairros da lata, esquecem-se das mulheres que trabalham nas limpezas e que começam às sete da manhã e correm escritórios e casas de famílias até às oito da noite, esquecem-se daqueles que já têm de escolher entre comprar carne ou peixe e medicamentos, esquecem-se dos que estão há um ano a aguardar por uma cirurgia, esquecem-se dos que nas urgências dos hospitais esperam 20 horas para ser atendidos, esquecem-se das mulheres grávidas que têm de andar numa ambulância cerca de 100 quilómetros para ter um filho. Enfim, a chamada classe média tem de andar mais caladinha porque em Portugal há quem sofra profundamente e que até passe fome. Em Portugal, a vida está difícil, isso não tem discussão, mas felizardos não faltam. O que tem chocado a maioria são as greves constantes de professores, trabalhadores dos transportes públicos, oficiais de justiça, enfermeiros e outras profissões que têm sido alvo da incompreensão governamental, que soube colocar na TAP mais de 3 mil milhões de euros – dinheiro do povo – e depois aumentam os reformados miseravelmente, governo que não chega a acordo com os trabalhadores que protestam por melhores salários. Neste país, ultimamente, têm acontecido factos que entristecem e que deixam as pessoas perturbadas. Referimo-nos aos abusos sexuais dos padres da Igreja Católica e de doutos professores que nas universidades não podem ver uma aluna bonita, de seios grandes que não a convidem logo para jantar ou que façam chantagem no sentido se as estudantes não condescendem ao abuso sexual, o seu ano lectivo será a reprovação. Na semana passada, ficámos desolados com a notícia que atingiu o professor doutor Boaventura Sousa Santos acusado de abuso sexual a várias alunas, algumas que até se pronunciaram na televisão. Boaventura, um homem que sempre se pronunciou como grande democrata, defendendo a moralidade, a solidariedade e a igualdade. Amanhã, festeja-se o dia 25 de Abril, data histórica em que um grupo de militares levou a cabo um golpe de Estado e terminou com a ditadura que subjugou e matou vários antifascistas. No entanto, esse mesmo 25 de Abril em 2023 é comemorado na praia e a maioria dos jovens nem sabe o que se passou no chamado dia da liberdade, mas, que infelizmente, liberdade de vária ordem tem havido muito pouca ao longo de 50 anos em determinados actos da vida, nomeadamente na comunicação social, onde criaram uma lei de imprensa que é uma autêntica limitação da liberdade expressão. Já não falando de um caso passado com um familiar meu, comunista, e que à semelhança de tantos cidadãos, tem o seu telefone debaixo de escuta há mais de cinco anos. Sobre o 25 de Abril muito teríamos a escrever, mas todos sabemos que Portugal tem tido personalidades políticas de grande gabarito, honestidade e solidariedade e outras, especialmente nos governos, que só se preocuparam em exercer a corrupção, o compadrio e a desonestidade. É assim, é o país maravilhoso que temos.
Hoje Macau VozesMacau é fundamental nas relações entre Portugal e a China Rui Lourido * O chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), Ho Iat Seng, realiza uma visita a Portugal, entre 18 e 22 de abril. O facto de ser a sua 1ª visita ao estrangeiro, pós-pandemia, e de na sua agenda constar “a importância da língua e da cultura portuguesa como fator diferenciador é uma vantagem competitiva de Macau em relação a outras regiões da China”, assume uma relevância especial para a comunidade de Língua Portuguesa de Macau. A visita representa mais um passo no aprofundamento das relações não só entre Macau e Portugal, mas também com a China em geral, pelo que será recebido pelas principais autoridades portuguesas, Presidente da República, Primeiro-ministro, Presidente da Assembleia da República e Ministro dos Negócios Estrangeiros. A comitiva integra 50 empresários de Macau e têm agendadas várias visitas a parceiros portugueses, com destaque para os setores alimentar e farmacêutico. Com o apoio do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau, a comitiva tem visitas agendadas para Lisboa e Porto. Para dar maior visibilidade à visita, a Direção dos Serviços de Macau (DST) apresenta, diariamente, um espetáculo de projeção de imagens evocativas de Macau, no Terreiro do Paço, entre 15 e 22 de abril. Macau é uma cidade fundamental no relacionamento multisecular da China com o Ocidente, com a Europa e com Portugal em particular. O respeito do governo central da China pelo processo de transição de Um País, Dois Sistemas tem permitido à RAEM modernizar-se e desenvolver-se de forma extraordinariamente rápida. A reintegração da RAEM na estrutura administrativa da China respeita o sistema jurídico e a autonomia política, com governo próprio, e o respeito pela diversidade multicultural, multiétnica e linguística da sua população, com o reconhecimento do português como Língua Oficial da região por pelo menos 50 anos. O governo da RAEM tem preservado e dignificado o património histórico material e imaterial de origem portuguesa. A RAEM tem incentivado o intercâmbio com os países que se expressam em língua portuguesa. São exemplo disso o apoio à organização de encontros artísticos literários e científicos, e o apoio financeiro à edição em língua portuguesa de vários jornais de Macau, bem como uma Biblioteca Digital com todas as obras sobre Macau e a parte continental da China entre os séculos 16 ao 19, iniciativa do Observatório da China (disponível para leitura gratuita na Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/26918/1/PT/index.html), que assim preserva para o futuro uma parte importante da História e Cultura de Macau. No âmbito da política de Um País, Dois Sistemas, a RAEM foi convidada a integrar o mais promissor e ambicioso projeto do governo central da China, de expansão económica e de desenvolvimento social do sul da China – a Grande Área da Baía de Guangdong-Hong Kong-Macau, que congrega a Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK) e outras nove cidades da província de Guangdong, em especial no desenvolvimento da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau, em Hengqin, da cidade de Zhuhai. Assim, pela primeira vez na história de Macau, a RAEM ultrapassa as limitações decorrentes da reduzida dimensão do seu território, através de várias ações estruturais, nomeadamente, através da construção de um parque habitacional, para dar melhores condições de habitação aos jovens e restante população local. A Grande Área da Baía Guangdong-Hong Kong-Macau é uma das áreas para a qual Macau pretende atrair investimento português e europeu para indústrias de valor acrescentado e de alto desempenho tecnológico e financeiro. Hengqin tem permitido a Macau a expansão do seu sistema educativo, onde se destaca a formação profissional e a Universidade de Macau. Esta estratégia global da RAEM cria as condições objetivas favoráveis para Macau escapar à dependência da indústria do Jogo/Turismo e melhorar as condições para atrair e interligar o extenso mercado interior do Sul da China com os mercados internacionais e, em especial, o dos países de língua portuguesa, sendo este um dos grandes objetivos desta visita de Ho Iat Seng a Portugal. A China tem vindo a valorizar as suas relações políticas e económicas com a globalidade dos países de língua portuguesa, de tal forma que em 2003 estabeleceu em Macau o Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, mais conhecido por Fórum Macau. Através, nomeadamente, do Fórum Macau, a China aprofundará a colaboração com os países de língua portuguesa em setores da inteligência artificial, como conectividade, energia e infraestruturas, desenvolvimento industrial, proteção ambiental e na construção de uma comunidade global de saúde para todos. O próprio 20º Congresso do Partido Comunista da China (PCCh) consagrou o apoio ao desenvolvimento atual de Macau e Hong Kong e respetivas estratégias de maior integração ao desenvolvimento do país. No caso específico de Macau, a China reafirmou o seu compromisso de incremento da cooperação com o Fórum Macau, envolvendo os países africanos e o Brasil. O Brasil reforçou as suas relações políticas e económicas com a China e com os BRICS, com os acordos assinados entre os presidentes Lula e Xi, durante a sua visita à China (12-15 de abril 2023). Com os países de língua portuguesa, segundo os dados do Ministério do Comércio da China, as trocas comerciais de 2022 foram de US$214,829 mil milhões (US$214,829 bilhões), registando um aumento homólogo de 6.27%. De acordo com dados divulgados no site da Agência Portuguesa de Estatística, o comércio bilateral de bens entre a China e Portugal de janeiro a junho de 2022 foi de 2,793 mil milhões de euros (2,793 bilhões de euros), um aumento homólogo de 39,37%. A visita a Portugal do chefe do executivo da RAEM é um importante contributo para o aprofundamento da importante relação de Portugal com Macau e a parte continental da China. Por outro lado, Portugal e a União Europeia necessitam de reafirmar a autonomia dos seus interesses estratégicos, tal como reafirmaram Scholz e Macron, recusando o clima da Guerra Fria e de clivagem entre blocos geopolíticos, neste mundo multipolar, para poderem contribuir determinantemente para a paz da comunidade de futuro compartilhado da humanidade. *Historiador, presidente da União de Associações de Cooperação e Amizade Portugal-China e presidente do Observatório da China