Dia da Vitória na Rússia e na Europa

No dia 8 de Maio de 1945, a Alemanha assinou a rendição em Berlim, e a paz foi declarada às 0:00 horas de 9 de Maio. A rendição da Alemanha pôs fim à II Guerra Mundial na Europa. Assinalado a 8 de Maio na Europa e a 9 de Maio na Rússia, o “Dia da Vitória” celebra o anseio dos povos por uma paz duradora e a paixão com que defendem as suas pátrias.

Antes do desmembramento da União Soviética, Moscovo e Kiev celebravam o “Dia da Vitória” a 9 de Maio, porque inúmeras vidas humanas se perderam durante a invasão Nazi nestas duas cidades. Em Fevereiro de 2022, a Rússia enviou tropas para a Ucrânia para levar a cabo operações militares especiais para, alegadamente, salvaguardar a segurança nacional, enquanto a Ucrânia afirma fazer face à invasão russa para defender a sua soberania territorial. Embora a China e as Nações Unidas tenham dado o seu melhor para promover as conversações de paz entre os dois países, infelizmente a guerra ainda continua. Lamentavelmente, ambos os países alegam que combatem para defender a segurança nacional. Se a guerra continuar, acredito que acabará por provocar cada vez mais danos à segurança nacional dos dois países. Entre a guerra e a paz, os líderes sensatos sabem por qual optar.

Haverá inevitavelmente fricções, e mesmo guerras, entre países. Tomemos como exemplo a China e o Vietname. A China lançou um “contra-ataque defensivo” ao Vietname do Norte em 1979. O exército chinês entrou no Vietname e ocupou a cidade de Lang Son, uma importante base militar vietnamita. Mas o exército chinês não avançou para invadir Hanói (capital do Vietname), mas, em vez disso, retirou após a missão estar cumprida. A guerra entre estes dois países começou a 17 de Janeiro e terminou basicamente a 16 de Março, pelo que durou apenas dois meses. O conflito de curta duração entre a China e o Vietname não destruiu as economias dos dois países, nem abalou gravemente a sua relação.

Fazer uso da sabedoria política na guerra é muitas vezes mais compensador do que a confrontação militar. No entanto, devemos respeitar as questões remanescentes de incidentes ocorridos entre países ao longo da história, relacionadas com a defesa da integridade territorial e da soberania. O Departamento de Educação da História da Imprensa Popular da China fez as seguintes explicações sobre o “Tratado de Nerchinsk” (o primeiro tratado assinado entre a China e a Rússia) mencionado nos materiais didácticos para alunos do ensino secundário que produziu em 1994: em primeiro lugar, o “Tratado de Nerchinsk” é um tratado equalitário (foedus aequum), que colocou ambas as partes em pé de igualdade. Em segundo lugar, diz respeito à fronteira oriental entre a China e a Rússia, e refere que as vastas áreas ao sul da Cordilheira Stanovoy, os rios Amur e Ussuri, incluindo a Ilha Sacalina, são todas zonas territoriais chinesas.

Hoje em dia, se disséssemos que o acordo fronteiriço sino-russo referente ao “Tratado de Nerchinsk” ainda era válido, deixaria de haver paz entre a China e a Rússia. O Império Romano, o Sacro Império Romano-Germânico, o Império Mongol, o Império Otomano, o Império Russo e a Dinastia Qing tornaram-se parte da história. Não devemos aspirar à glória do passado, mas sim a trabalhar em conjunto para criar um futuro melhor para a humanidade. Ao comemorar o Dia da Vitória, os russos não se devem esquecer que o propósito de obter a vitória é manter a paz. O falecido primeiro-ministro israelita Rabin foi um bom chefe militar, mas acabou por procurar a paz através de negociações. Este líder que enveredou pelo caminho da paz merece ser homenageado na Praça de Telavive.

11 Mai 2023

Na Substância do Tempo – dança, corpo e linguagem

O programa de dança apresentado pela Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo no Festival de Artes de Macau, concebido para a comemoração dos 100 anos de nascimento da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, foi particularmente tocante.

Primeiro, porque a escolha de uma companhia portuguesa que homenageia uma de suas maiores poetisas permite retomar as conexões históricas existentes entre Portugal e Macau em planos estéticos e simbólicos, mobilizando afetos e sensibilidades que nos tocam não no passado, mas na emergência do presente.

Depois, porque o poema “Quando” de Sophia, que dá o mote à primeira peça do programa intitulada “Em Redor da Suspensão – e seguida por “Outono para Graça” e “Requiem” – fala justamente de transformação e transcendência, conectando imediatamente esse espetáculo europeu à versão chinesa da Sagração da Primavera de Yang Liping, cumprindo com a promessa de oferecer um Festival de Artes que nos permita, refletindo sobre vida no tempo expandido das longas jornadas, olhar para o futuro com afeto.

No caso da coreografia portuguesa, também é sensível que o espetáculo tenha ocorrido na mesma data em que se comemora o dia da Língua Portuguesa, uma língua pluricêntrica cuja variedade de sotaques e modos de ser encontra em Macau uma vida própria. Que se homenageie, em Macau, essa língua com uma dança dedicada a Sophia, não me parece uma questão trivial por parte dos programadores dos eventos, tendo em vista, sobretudo, o cuidado com as escolhas e as articulações que percebemos emergir ao longo de toda a programação do Festival. O que temos, nesse caso, é o corpo do bailado como oferenda à língua feminina, que tudo gera e tudo conecta – que tudo transforma. A língua que cria realidades para além da realidade dada.

Se a poesia, por ser ancorada na palavra, necessita de grande esforço tradutório, o mesmo não ocorre com a dança, mais universalmente acessível como linguagem. A caligrafia dos corpos que cruzam o ar em movimento é capaz de cruzar quaisquer fronteiras da sensibilidade. A dança, como linguagem, realiza aquilo que a nação portuguesa um dia pretendeu: lançar-se para além dos limites do próprio confinamento.

Contra todos que um dia quiseram conquistar e dominar, impondo uma cultura sobre as outras, vemos no corpo da língua de Sophia uma mátria imensa acolhedora que, na coreografia de Vasco Wellenkamp, nos convida, em tons gentis, a girar em suas calhas de roda. E nossos corações sentimos vir se revelando: a leveza mais que a gravidade, a brisa mais que a umidade, o voo mais do que a ave. A dança da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, com sua gramática delicada de gestos, mostra uma Sophia como expressão máxima de uma cultura que sabe ser sedutora, que domina ao ser dominada, que vence ao ser vencida, que faz acender a luz na noite da madrugada. Dessa cultura ninguém deseja fugir, a ela queremos nos entregar na transcendência além do amor – e de toda morte.

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta

Continuará o jardim, o céu e o mar,

E como hoje igualmente hão-de bailar

As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar

Em que eu tantas vezes passei,

Haverá longos poentes sobre o mar,

Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,

Será o mesmo jardim à minha porta,

E os cabelos doirados da floresta,

Como se eu não estivesse morta.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.

11 Mai 2023

MDMA na terapia de casal

Leram bem. MDMA, como quem diz, a droga do amor, molly, ou ecstasy, a droga recreativa, pode ser uma poderosa aliada na terapia de casal. Não se trata de uma proposta sem fundamento de tendências new age, como os mais críticos e conservadores poderão julgar à primeira vista.

É dentro das ciências psicológicas que se tem assistido ao renascimento dos psicadélicos. Um renovado interesse sobre o que alguns grupos de investigação já diziam há décadas, e que as comunidades indígenas já praticam há milhares de anos: as substâncias psicadélicas têm um grande potencial de transformação, e para os mais puristas da linguagem médica, um grande potencial para a cura. Neste renascimento, recupera-se a investigação realizada com psicadélicos, de onde fazem parte outras substâncias como o LSD, psilocibina ou ketamina. O que estes psicadélicos fazem é a dissolução do ser e a expansão da mente para que toque tudo o resto à nossa volta. Estas “trips” levam as pessoas para outros lugares mentais, lugares incomuns do cérebro. Como que um exercício de ginástica e flexibilidade cerebral, processam-se e recriam-se os padrões neuronais, resultando em novas formas de se estar.

A ciência tem percebido o potencial transformador destas substâncias em stress pós-traumático e depressões resistentes. Na sociedade contemporânea que padece de doenças mentais e que força modelos (irrealistas) de se ser e estar, os psicadélicos – especialmente, se tomados em contextos terapêuticos – podem revolucionar a forma tradicional de experienciar.

A investigação sugere, também, o potencial dessa revolução na terapia de casal. A droga do amor, que nos torna mais amorosos, ajudando na produção de hormonas de prazer e bem-estar, teoriza-se útil para os casais desencontrados. Digo teoriza-se por que não se tem testado o uso de MDMA nestes contextos por razões óbvias.

Os poucos estudos que existem aplicaram MDMA em casos de stress pós-traumático que então mostrou resultados promissores na satisfação conjugal. Há quem foque a sua investigação no uso “naturalista” desta substância, ou seja, perceber as transformações nas pessoas que tomam MDMA de forma regular – muitas vezes em microdosing, ie., doses que não levam a viagens, mas ajudam a estarem mais ágeis mentalmente – e de como é que sentem que impacta a vida em casal ou a sua sexualidade.

As vantagens reportadas são muitas. De acordo com os participantes ajuda a reduzir o stress e reduz também a ansiedade associada à performance sexual. Isto então ajuda no aumento do desejo, bem como a intensidade da exploração sensorial. Claro que o crepitar destas sensações ajuda na ligação emocional entre os envolvidos.

O papel das substâncias psicadélicas nas relações amorosas e sexuais ainda é um terreno por desbravar, mas extremamente promissor. Se a investigação associada a doenças mentais mais graves ainda é insipiente, em relação a estas coisas do amor e do sexo ainda mais insipiente é. Não considerem, por isso, este um convite para tomar psicadélicos sem noção dos riscos, muito menos sem noção das condições necessárias para uma experiência terapêutica. Depois de muitos anos em que os psicadélicos foram demonizados, entramos agora numa fase promissora de desconstrução do seu significado. Um processo que será lento.

Ainda assim, este palavreado tenta contribuir para esse processo. Urge olhar com nuance e complexidade a forma como os psicadélicos podem ser absorvidos pela sociedade – e refletir sobre os resultados maravilhosos, coloridos e psicadélicos que podem trazer.

9 Mai 2023

Aumento de contribuições (II)

A semana passada, assinalámos que a Mandatory Provident Fund Schemes Authority (Autoridade para o Regime do Fundo de Previdência Obrigatório) tinha apresentado um relatório ao Governo de Hong Kong, onde propunha aumentar o tecto contributivo para o Hong Kong Mandatory Provident Fund (MPF) (Fundo de Previdência Obrigatório de Hong Kong) de 1.500 dólares de Hong Kong (HKD) mensais para 2.750.

Alguns dos residentes de Hong Kong têm na generalidade reservas em relação a esta proposta, porque acreditam que a pandemia não terminou por completo e que a economia ainda não recuperou, por isso pensam que este aumento contributivo não é adequado. Há também quem pense que esta medida só vai aumentar os custos das empresas e que muitas não os vão conseguir suportar. Outras pessoas defendem que o MPF só beneficia as empresas de investimentos e falha quando se trata de apoiar os residentes de Hong Kong. Estas críticas reflectem os problemas deste sistema.

Actualmente, em Hong Kong, foi sugerida uma medida que raramente é mencionada: o aumento da idade da reforma. Esta sugestão implica um adiamento voluntário da reforma. Os problemas sociais dos idosos, as questões relacionadas com o MPF e os problemas com que lida a Segurança Social poderiam ser naturalmente e efectivamente resolvidos de forma gradual e as pessoas poderiam continuar a trabalhar, a receber salários e a ter autonomia financeira depois dos 65 anos.

O aumento da idade da reforma deve ser voluntário e abordado com cuidado, como ficou demonstrado em França. A França alterou recentemente os termos do regime de pensões, estabelecendo um período mínimo de 40 anos de trabalho para que o trabalhador possa ter acesso à reforma por inteiro. Além disso, a idade da reforma foi aumentada dos 62 para os 64 anos. Estas medidas deram origem a uma onda de protestos em todo o país. Não temos ideia do número de pessoas envolvidas nos protestos, nem do número daqueles que apoiam estas medidas, por isso é que o prolongamento voluntário da vida activa pode evitar estes conflitos. Quem quiser continuar a trabalhar para lá da idade da reforma pode fazê-lo, quem não quiser desfruta do merecido descanso. Como é que pode haver conflitos quando a decisão cabe à própria pessoa?

Em primeiro lugar, no quadro actual, o aumento voluntário da idade da reforma deve ser regulado pela legislação, que todos devem respeitar, para evitar situações em que os empregadores não querem contratar trabalhadores com mais de 65 anos.

Em segundo lugar, para além do aumento da idade de reforma, o funcionamento existente não pode ser alterado, caso contrário o aumento da idade de reforma não seria voluntário. Em terceiro lugar, se o Governo permitir que se faça primeiro o aumento voluntário da idade da reforma nos seus departamentos, as pessoas podiam verificar a sua eficácia, e depois considerar o seu aperfeiçoamento e implementação.

A situação em Macau e Hong Kong é semelhante, o salário médio é de 20.000 patacas, mas Macau só será uma sociedade envelhecida em 2026. Por conseguinte, Macau ainda tem tempo para se preparar. Desde que a pandemia esteja sob controlo e deixe de constituir uma ameaça à sociedade, a economia de Macau pode definitivamente recuperar antes de 2026. Além disso, o Governo de Macau recebeu um relatório, que sugere que deve ser implementado o Fundo de Previdência Obrigatório em 2026. Este regime implica que tanto os empregadores como os empregados têm de contribuir mensalmente, com uma verba correspondente a 5 por cento dos salários. Se este regime for implementado, o sistema de pensões de Macau continuará a desenvolver-se. Além disso, é preciso notar que, de acordo com o actual sistema de benefícios socias de Macau, as pessoas já recebem cerca de 6.000 patacas mensais depois dos 65 anos. É este o sistema de apoio aos reformados na cidade.

A longo prazo, o valor que os reformados auferem deriva da protecção que lhes é assegurada pela segurança social e pelos seus próprios preparativos pessoais. A segurança social é garantida pelo Governo. Devido aos recursos limitados do Executivo, é necessário alocar mais meios para continuar a desenvolver o apoio aos reformados, que poderão ser gerados pelo aumento dos impostos.

Mas esta medida não vai agradar a todos. Os preparativos pessoais para a reforma podem ser feitos de várias formas, e uma delas é a criação de um fundo de reforma pessoal. Quanto mais cedo se der início a estes preparativos, melhor será o resultado. O Fundo de reforma dos trabalhadores vai depender da contribuição das empresas, e a contribuição que fizerem para os trabalhadores será uma manifestação de responsabilidade social. Será injusto, quer para as empresas quer para os trabalhadores, pedir um aumento de contribuições se não vier a haver um aumento de segurança na reforma, mas apenas aumento das despesas mensais para ambos os lados. Seja qual for o país em que vivemos, o aumento voluntário da idade da reforma parece ser uma forma rápida, simples, directa e eficaz de resolver o problema da segurança na aposentadoria.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

9 Mai 2023

Eu bem vos disse…

Que as polémicas na governação de Portugal não iam cessar. A passada semana foi de loucuras. De polémicas inacreditáveis. De mais “casos e casinhos”. De incompetência, ilegalidade e de mais aldrabices, desta vez com o pior ministro do governo, o das Infraestruturas, João Galamba. A polémica principal foi acerca das mentiras de Galamba.

Este, tinha dito que a CEO francesa da TAP lhe tinha pedido uma reunião, quando afinal, foi Galamba que convocou a senhora para uma reunião secreta e até lhe entregou um guião sobre as respostas que a CEO da TAP haveria de pronunciar quando fosse chamada à Comissão de Inquérito da Assembleia da República sobre a TAP. E Galamba fez mais: convidou a CEO da TAP a estar presente numa outra reunião secreta com deputados socialistas para serem combinadas as perguntas e as respostas na Comissão de Inquérito.

Quando parecia que as polémicas se ficavam por aí, eis que rebenta um escândalo inacreditável: Galamba que tinha ido a Singapura – ninguém sabe o que lá foi fazer – chega a Lisboa e é alertado pela sua chefe de Gabinete que decorre no interior do Ministério uma “deplorável” cena em que um assessor de larga experiência governamental, que tinha transitado da equipa do anterior ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, para a confiança total de Galamba como ministro, que era o assessor que dirigia as reuniões com a TAP, que estava por dentro de toda a reestruturação da empresa, que sabia tudo sobre aeroportos e de outras estruturas, é acusado de “ladrão” por querer levar o seu computador de trabalho para fora do Ministério.

De imediato, Galamba tenta falar com o primeiro-ministro e este não lhe atende o telefone. Dá indicações à chefe de gabinete para efectuar contactos com secretários de Estado ligados a António Costa, com a ministra da Justiça, com o SIS (imagine-se, com as Secretas) e posteriormente com a Polícia Judiciária. Tudo isto, alegando-se que o computador do assessor tinha material confidencial, como se o assessor não tivesse extraído cópias de todas as matérias em segredo de Estado ou não tivesse entregado já um ficheiro com toda a confidencialidade ao seu ministro.

Mais uma polémica, esta gravíssima: o SIS não tem funções policiais e alguém deu ordens para que um funcionário do SIS fosse a casa do assessor ministerial reaver o computador. Quando o assessor foi contactado pelo SIS disponibilizou-se de imediato a entregar o computador, o que veio a acontecer junto da sua porta de casa. O SIS posteriormente entregou o computador à Polícia Judiciária. A ministra da Justiça confrontada pelos jornalistas fez uma figura triste e essa sim “deplorável, não respondendo a nada.

Estava instalada uma trapalhada digna de telenovela mexicana e António Costa e João Galamba, dois políticos inteligentes, logo viram que podiam ter ganho o Euromilhões, combinando um esquema maquiavélico que bradou aos céus. Costa combina com Galamba que irá ao Palácio de Belém reunir com o Presidente da República, que daria a ideia ao Presidente que demitiria Galamba, tal como toda a gente pensava que aconteceria, que, entretanto, Galamba desse uma conferência de imprensa e anunciasse a sua demissão quando já sabia que Costa não aceitaria. Costa esteve reunido duas horas com o Presidente Marcelo e deu a entender que já tinha substituto para Galamba.

Terminada a reunião e quando o primeiro-ministro chega ao Palácio de S. Bento e reúne com o seu círculo duro de ministros, decide telefonar ao Presidente Marcelo para lhe transmitir que vai anunciar ao país que não aceita a demissão de Galamba. Obviamente, que o Presidente viria a sentir-se enxovalhado e traído por Costa. De seguida, Marcelo deu a conhecer ao público uma nota inédita e peculiar, onde dizia que “discordava” de Costa.

O povinho, as televisões e os jornais passaram o tempo a falar numa possível dissolução da Assembleia da República. Isso, era impossível, porque o Presidente é um dos melhores constitucionalistas portugueses e sabe perfeitamente se lançasse a “bomba atómica” que a Comissão de Inquérito à TAP terminava. Ora, nessa Comissão ainda vamos saber mais escândalos sobre a TAP e o controlo que os governantes têm exercido na sua gestão, vamos ter conhecimento de mais assuntos graves que provocarão mais polémicas. A procissão ainda vai no adro.

Entretanto, o primeiro-ministro deslocou-se na quinta-feira passada para Braga e Barcelos, a fim de dar um ar de normalidade governamental, quando de repente, recebe um telefonema do Presidente para se apresentar em Belém às 18.30 horas. Costa tinha apenas duas horas para se deslocar e conseguiu (não se sabe como) – se por avião ou em excesso de velocidade – chegar a Belém apenas com quatro minutos de atraso. O Presidente Marcelo apenas lhe transmitiu que iria falar aos portugueses e que o seu discurso seria arrasador para o Governo e que iria estar atento diariamente sobre a actividade governamental. E realmente, Marcelo perdeu a cabeça e afirmou que o Governo não tem “confiabilidade, credibilidade, respeitabilidade e autoridade”. A lua de mel de sete anos entre Marcelo e Costa tinha terminado.

O futuro deste país poderá ser uma tragédia e tudo o que de mau Galamba faça em processos importantíssimos como a privatização infeliz da TAP, o novo aeroporto, a estrutura ferroviária e outras, serão única e exclusivamente da responsabilidade de António Costa que decidiu ficar com Galamba ao colo. Num país de polémicas, posso garantir-vos que mais aí virão…

7 Mai 2023

Sagração da primavera

Sofrer vai ser a minha última obra – Paulo Leminski

A arte como florescimento da vida: desse modo abrimos o Festival de Artes de Macau em 2023, com o espetáculo de dança A Sagração da Primavera, coreografado e dirigido por Yang Liping. Uma peça comovente e forte para quem esteve recolhido ao longo de três longos anos de pandemia, reclusão e silêncio. Como se, ao fim dum rigoroso inverno, estivéssemos agora vivendo um novo momento: o de ver florescer as forças remanescentes, que podem eclodir num ciclo de renascimento.

Nessa versão oriental, concebida por entrelaçamentos de perspectivas conceituais hinduístas, budistas, taoistas e xintoístas, somos apresentados a uma profunda reflexão sobre o significado da vida e da morte, reposicionando nossa impressão sobre os ciclos da natureza e o sentido das nossas existências. Podemos afirmar, sem qualquer receio, que estamos nos limites duma arte sacra.

Na versão original do balé, coreografado em 1913 pelo russo Vaslav Nijinsky para o concerto de Igor Stravinsky, uma jovem é escolhida para um rito sacrificial de fecundação da terra, tendo como pano de fundo uma narrativa ficcional inspirada em ritos pagãos europeus e narrativas populares russas. A morte de um indivíduo – uma mulher, uma jovem – é o tributo sem o qual a vida coletiva não se realiza. Ainda que tenhamos elementos de uma espiritualidade, numa perspectiva ocidental pagã, trata-se de uma cosmologia completamente assentada na ideia de indivíduo – orientado por noções como raça, gênero e espécie – e na separação criada entre sujeito e mundo ou entre cultura e natureza.

Na versão chinesa, o sacrifício é vivido por todos nós, presos ao ciclo de nascimentos e mortes, para o qual o sofrimento é condição inerente e verdade incontornável para qualquer ser que viva em um corpo, independente de qual seja. Todos nós somos sacrifício e oferenda, todos somos beneficiadores e beneficiados. E não há mal externo a ser combatido: as coisas são como são. E nesse eterno refazer-se do mundo, há o domínio da vida como manutenção da repetição: a vida é treino em campo aberto. Há por isso, nessa coreografia, uma vocação para o butô, ainda que em sua expressão coreográfica sejam mais facilmente reconhecíveis, do ponto de vista visual, elementos de danças indianas e indonésias – ou até mesmo da ginástica artística.

Uma criança pequenina que assistia à peça em companhia de sua mãe portuguesa, que se entusiasmara com os saltos acrobáticos do solista, chegou mesmo a dizer que também sabia fazer aquilo na capoeira, gerando graça por sua percepção subjetiva, muito bem assentada em seu próprio repertório. Penso que temos de dar ouvidos aos miúdos. Parece muito pertinente pensar essa coreografia como uma luta, e muito significativo percebê-la como resistência. Só a noção do enfrentamento é que muda, porque o inimigo não está fora. Mas, afinal, a capoeira também não é uma luta que se dança em roda?

Para o budismo que sustenta toda a estrutura dramatúrgica, o trabalho de vigília que temos de fazer é sobre nós mesmos, e a vida é nossa única obra, sobre a qual devemos nos debruçar sem apego. Isso reforça a presença de um monge tibetano ao longo de todo o espetáculo. Anti-dançarino da música mais silenciosa.

Nesse terreiro, o monge também produz sua roda: uma mandala por entre, e por sobre, a qual irá dançar todo o corpo de baile. Essa mandala redonda – ovo, olho, universo – é feita por pequenas partes diminutas que formam uma delicada tessitura, como uma renda holandesa. Se as olhamos com atenção, vemos que cada uma delas expressa um caractere chinês próprio – 唵嘛呢叭咪吽 – que podem ser combinadas na revelação de mantras, em especial o mantra Om mani padme hum, enunciado como sentença de motivação para livrar do sofrimento a todos os seres sencientes. É, portanto, um mantra inscrito para fazer vibrar um bom carma, para gerar positivos méritos que não se acumulam apenas para si, mas se estendem a toda vida existente no cosmos. É na construção desse chão que se assentará todo o trabalho.

É curioso pensar como, do ponto de vista plástico, essa mandala significa o universo atomizado, feito de pequenas partículas que se combinam de modo infinito. No taoísmo, essa fusão de forças, que produz um articulado conjunto complexo, pode ser pensada como uma energia em constante movimento, intuito por meio de uma imagem também circular, e com a qual já estamos bem familiarizados graças a enorme difusão do símbolo do Yin Yang: um círculo dividido em duas partes, uma branca e outra preta, cada uma delas com uma bolinha redonda na cor oposta, representando a presença do “diferente” no lugar do “mesmo”. Se animássemos essa imagem, dando a sua materialidade o movimento que ela conceitualmente expressa – em outras palavras, se a fizéssemos dançar! – dissolveríamos a sua estrutura polar em um infinito espectro de cinzas. Se acrescentamos a essa realidade um conjunto de cores, que se combinam e recombinam na experiência da luz e da sombra, então seríamos capazes de nos aproximar plasticamente da estrutura de mundo preconizada por esse misticismo budista-taoísta. Parece-nos que revelar artisticamente essa cosmogonia tem sido um dos esforços de Yang Liping, como seu trabalho cotidiano.

Sísifo empurrando a pedra e dela se soltando a cada ciclo de escaladas… A qualquer momento em que decidamos assumir a tarefa repetitiva de ampliar a consciência dos seres sencientes para que se libertem do sofrimento gerado pela roda da vida, poderemos perceber que não há solidão. Nossa dança acontece num rito comunitário dos que dançam conosco em meio aos que se recusam à dança, numa rede de acolhimento que vai tecendo o suporte da vida para que os outros possam entrar. Na tarefa de produzir a auto-iluminação e compartilhá-la, contamos ainda com os mil braços de Avalokiteshvara, a divindade da suprema compaixão que, no espetáculo, se revela no corpo coletivo das bailarinas com seus belíssimos braços e mãos alinhados em fila, donde vemos emergir todos os milagres constitutivos da realidade viva, numa reconfiguração dessa que é uma das imagens mais potentes das danças espirituais do oriente.

Outro elemento da cultura chinesa que aparece no espetáculo é a face do dragão, signo da transmutação, da renovação e da fertilidade, muito presente nas danças de passagem do ano novo. O artista possui a energia do dragão. O que significa dizer que o artista transmuta o mundo. Recolhendo e configurando a realidade em face da morte, cuja imagem da caveira, um dos ícones do budismo, está colocada como avesso do princípio ativador da vida, nas costas do figurino do solista masculino. E é potente que a morte esteja agarrada na figura daquele corpo que é em cena o mais forte, o mais viril, o mais atlético, mostrando-se como expressão de nossa transitoriedade, como convite ao desapego e como alerta em relação às seduções do ego. O céu fecunda a terra, mas é a terra quem faz crescer a vida. A mesma terra que dá, é a terra que toma. O terreno em que tudo se aglutina é o mesmo onde tudo se dissolve. Atividade e passividade se confundem como dinâmicas ambíguas. Como é possível caminhar nesse terreno em tudo movediço? Como é possível salvaguardar-se entre as forças polares geradoras e destruidoras da experiência vivida?

Como o monge no chão, recolhemos e organizamos os elementos desse universo, criando nossa mandala efêmera, feita de repetição sem acúmulo, posto que será imediatamente desfeita tão logo nosso ciclo se complete. Estamos nesse círculo do samsara. Essa é a sabedoria de quem vive habitando a consciência absoluta da morte. Sabemos já que, na verdade, nada nunca se completa, não há princípio nem fim. Quando entramos no auditório, já lá está o monge: entre os trabalhos e horas há sempre um Outro anterior que permanece. A mandala está incompleta quando chegamos, e seguirá descompleta quando partirmos.

Lágrimas escorrendo por sobre a barba branca, depois que os bailarinos se retiraram, fiquei após o final do espetáculo observando o monge silenciosamento. Um segurança veio retirar-me do auditório. Era hora de evacuar o lugar. Mas o monge lá permanecia. Outros provavelmente virão quando ele se for para estruturar a continuidade desse trabalho mínimo, invisível, estruturante de toda a malha da vida. Se penso nesse caminho como um ‘do’, imagino cozinheiras, jardineiros, professoras, agricultores… cada qual repetindo seus gestos num universo sem sentido e nele produzindo estrutura.

Tudo é feito em movimento, ainda que não o percebamos, mesmo os agradecimentos são fluxo continuo: aproximação e dissolução, fazer-se e desfazer-se. Quando os bailarinos recebem flores e a querem entregar ao monge, ele completamente as ignora, nada o distraí do seu trabalho, nada pode elevá-lo para cima dos outros seres, não pode haver reconhecimento porque não há ego. É preciso compreender a radicalidade do conceito de igualdade, rebaixando-se – ou elevando-se – para o mesmo nível de todas as formas de vida, o que é o mesmo que entrar em sintonia com o cosmos. Fazer a mandala é participar da dança do universo. Desfazê-la também. Todo trabalho é em si mesmo absurdo, mas não devemos deixar de fazê-lo, porque viver é participar do chão da vida. Mas de que forma estamos pisando nela? E o que é que nela plantamos? Cada caracter depositado no chão dessa coreografia é uma semente que florescerá. Cada elemento desses mantras é signo de um auspício que alimentamos: generosidade, ética, paciência, diligência, renúncia, sabedoria. Ao dizer as palavras certas, ao executar os gestos apropriados, projetamos no mundo aquilo que queremos que nele floresça: fazemos nossos mantras e mudras e criamos fluxos de energia.

Não há outra matéria a ser modificada senão a nós mesmos, num mundo que é em si mesmo mudança. A única forma de ir é entregando-se ao fluir de tudo aquilo que flui. Da pequenez do nosso ego individual nos prostramos à imensidão dos mistérios do universo. Apenas sobre o chão fértil dessa entrega é que poderemos bailar a dança infinita da vida. Nós é que somos a primavera.

Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.

5 Mai 2023

Síntese do sexto relatório de avaliação do IPCC sobre as alterações climáticas

António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, no seu discurso na conferência de imprensa para apresentação da Síntese do Sexto Relatório da Avaliação das Alterações Climáticas, em 20 de março de 2023, recorreu à seguinte metáfora: “… a humanidade está sobre uma fina camada de gelo e este gelo está a derreter rapidamente…(Humanity is on thin ice and this ice is melting fast…”).

Para evitar o desastre a que esta figura de linguagem se refere, é imprescindível que a humanidade tome consciência do risco que corre na sua corrida desenfreada para melhorar o Produto Interno Bruto dos Estados ignorando as devidas precauções no que se refere à sustentabilidade da Terra.

Como é do conhecimento do público que acompanha o evoluir dos assuntos relacionados com a sustentabilidade do nosso planeta, nomeadamente no que se refere às alterações climáticas, o acrónimo IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) refere-se ao órgão das Nações Unidas incumbido de monitorizar as alterações climáticas, os impactos inerentes a essas alterações, e fornecer aos governos avaliações regulares sobre a evolução do clima. Durante os seus 35 anos de atividade foram elaborados 6 Relatórios de Avaliação (Assessment Reports – AR) da evolução do clima, com a periodicidade aproximada de 6 anos. Além destes foram também publicados 14 relatórios sobre temas específicos.

De acordo com o Relatório Síntese do AR6, as atividades antropogénicas desde há mais de 150 anos, ou seja, desde o início da era industrial, são a principal causa do aquecimento global de cerca de 1,1 ºC acima dos níveis pré-industriais, o que implicou a ocorrência de eventos meteorológicos extremos mais frequentes e violentos, que têm sido a causa de elevadas perdas de vidas e bens.

Como o título indica, este Relatório Síntese consta do resumo das conclusões e recomendações que compõem as três primeiras partes do AR6, já publicadas previamente em 2021 e 2022. Tem como objetivo disponibilizar importante informação e linhas mestras de atuação tendo em vista a mitigação das alterações climáticas e a adaptação da sociedade a essas alterações.

Apesar de ser uma síntese, este relatório, na sua versão para os decisores políticos, consta de 36 páginas (versão em inglês). Vejamos algumas das principais conclusões expressas neste documento, segundo o World Resources Institute:

O aquecimento global de 1,1 ºC, induzido pelas atividades antropogénicas, estimulou alterações no clima sem precedentes na história recente da humanidade.

Os impactos das alterações climáticas sobre a humanidade e ecossistemas são mais generalizados e graves do que o previsto, e os riscos futuros aumentarão rapidamente sempre que haja um aumento de uma fração de grau da temperatura média global.

Para ilustrar esta constatação, pode-se mencionar o facto de cerca de metade da população mundial enfrentar atualmente forte escassez de água, e que o aumento da temperatura é favorável à propagação de doenças transmitidas através de vetores (p. ex. mosquitos, carraças, etc.), como malária, vírus do Nilo Ocidental e doença de Lyme.

As medidas de adaptação às alterações climáticas podem efetivamente contribuir para o aumento da resiliência, mas, para esse efeito, será necessário um maior apoio financeiro.

O IPCC estima que os países em desenvolvimento precisarão de US$ 127 mil milhões por ano até 2030 e US$ 295 mil milhões por ano até 2050 para se adaptarem às alterações climáticas.

Alguns impactos das alterações climáticas são já de tal maneira severos que não podem ser atenuados com recurso a medidas de adaptação, o que implica aumento de perdas de vidas e danos materiais.

Por exemplo, algumas comunidades costeiras viram as suas vidas dificultadas devido à extinção de recifes de corais que lhes garantiam meios de subsistência e segurança alimentar, enquanto outras comunidades foram obrigadas a abandonar os seus terrenos de cultura devido à subida do nível do mar.

As emissões globais de gases de efeito de estufa (GEE) atingirão um pico antes de 2025, se o ritmo de emissões atual não abrandar.

Segundo o IPCC, há uma probabilidade superior a 50% de que a subida da temperatura global atinja 1,5 ºC até 2040, com base em vários cenários e, num cenário de emissões mais intensas, poder-se-á atingir este valor mais cedo, até 2037. Nestas condições o aumento global da temperatura poderá subir para valores entre 3,3 ºC e 5,7 ºC até 2100.

A queima de combustíveis fósseis, causa número um da crise climática, deve ser abandonada rapidamente.

Embora centrais elétricas movidas a carvão estejam a ser desmanteladas na Europa e nos EUA, alguns bancos multilaterais de desenvolvimento continuam a financiar a instalação de centrais deste tipo.

Para garantir um futuro resiliente e com neutralidade carbónica é necessário proceder a transformações urgentes em todo o sistema.

Embora os combustíveis fósseis sejam a principal causa das emissões de GEE, além de se ter de deixar de recorrer à sua utilização, terá de se proceder a cortes drásticos das emissões noutras áreas da atividade humana, como por exemplo a agricultura e a exploração pecuária.

A remoção de carbono da atmosfera é essencial para limitar o aumento da temperatura global a 1,5 ºC.

Para se atingir a neutralidade carbónica não é suficiente desistir da utilização dos combustíveis fósseis e outras medidas de redução das emissões de GEE. Terá também de se recorrer à remoção do carbono da atmosfera, o que implica, além da intensificação da florestação e outros métodos naturais, o recurso a novas tecnologias para extrair o dióxido de carbono diretamente da atmosfera para o subsolo.

As medidas de adaptação podem efetivamente contribuir para uma maior resiliência, mas é necessário mais financiamento para melhorar as soluções.

De acordo com o IPCC, o financiamento público e privado para produção de combustíveis fósseis tem sido superior ao dirigido para a mitigação das alterações climáticas e a adaptação a essas alterações. Se tudo continuar assim, não serão atingidas as metas globais preconizadas no Acordo de Paris.

As alterações climáticas, assim como os nossos esforços coletivos para a adaptação e mitigação, contribuirão para aumentar a desigualdade, caso não se consiga garantir uma transição justa.

Os efeitos das alterações climáticas atingem mais duramente os países menos desenvolvidos, apesar de terem sido os que historicamente menos GEE emitiram.

De acordo com Relatório Síntese da AR6, ainda é possível limitar o aquecimento global a 1,5 ºC até ao fim do século, conforme o preconizado pelo Acordo de Paris, mas apenas se houver empenho dos governos, setor privado, sociedade civil e todos nós individualmente. A janela de oportunidade ainda está aberta, mas não há tempo a perder.

*Meteorologista

3 Mai 2023

Aumento de contribuições (I)

A Autoridade para o Regime do Fundo de Previdência Obrigatório apresentou um relatório ao Governo de Hong Kong, propondo o aumento da contribuição máxima para o Fundo de Previdência Obrigatório (Hong Kong Mandatory Provident Fund – MPF) de 1.500 dólares de Hong Kong (HKD) mensais para 2.750. O Governo de Hong Kong vai rever o relatório e fazer recomendações ao Conselho Legislativo, no sentido de proceder às alterações.

Esta revisão é realizada de acordo com o sistema existente. O Governo de Hong Kong reavalia os limites superior e inferior das contribuições ao MPF a cada quatro anos para garantir que as contribuições estão em conformidade com o desenvolvimento económico.

Depois do anúncio desta medida, alguns residentes de Hong Kong manifestaram reservas em relação à proposta. Alguns órgãos de comunicação social salientaram que algumas pessoas acreditam que a pandemia ainda não acabou por completo e que a economia ainda não totalmente recuperada e, por isso, não será adequado aumentar o tecto das contribuições nesta altura. Há também quem pense que esta medida só vai agravar os custos operacionais das empresas, e que muitas delas não os conseguirão suportar. Segundo a opinião de outras pessoas, o MPF capitaliza com os investimentos das empresas, mas falha no apoio aos residentes de Hong Kong. Com base no salário médio da cidade, 20.000 HKD mensais, o valor acumulado no MPF após 40 anos de trabalho é de 1 milhão de dólares, sem calcular os juros do investimento. No entanto, a esperança média de vida dos homens em Hong Kong é actualmente de 83 anos e das mulheres de 85. Isto significa que, depois da reforma, as pessoas precisam de acumular neste Fundo uma quantia que lhes permita viver por mais 20 ou 30 anos. Com o sistema em vigor, o milhão acumulado em média é manifestamente insuficiente.

As críticas apontadas reflectem os problemas do regime do MPF. Desde a criação do Fundo de Previdência Obrigatório pelo Governo de Hong Kong, os trabalhadores têm de fazer contribuições mensais, bem como os empregadores. As contribuições representam 5 por cento do salário dos trabalhadores, para cada uma das partes. Os custos operacionais dos empregadores aumentaram significativamente. Se o tecto das contribuições para o MPF aumentar, estes custos voltam a subir. Como as outras prestações de reforma não são aumentadas, mas apenas as prestações para o MPF, significa que a protecção à reforma dos trabalhadores recai mais uma vez sobre os ombros dos empregadores. Não é justo para a entidade patronal.

A injustiça para a entidade patronal é um problema, mas se ao fim de 40 anos de trabalho uma pessoa só acumula 1 milhão de dólares de HK, fica muito aquém de vir a poder suprir as suas necessidades durante o período da reforma. Por conseguinte, o Governo de Hong Kong tem de enfrentar o problema e resolvê-lo. Os dados estatísticos mostram que Hong Kong já é uma sociedade envelhecida, de acordo com os critérios das Nações Unidas. Mais de 14 por cento da população está acima dos 65 anos, e o número de pessoas em idade activa diminui todos os anos. É urgente resolver o problema da protecção na reforma. Assim sendo, embora a epidemia não tenha desaparecido completamente em Hong Kong e a economia ainda não esteja completamente recuperada, isso não deve ser motivo para impedir o Governo de Hong Kong de aumentar o limite máximo das contribuições ao MPF.

Os investimentos envolvem riscos e é inevitável que haja ganhos e perdas. No regime do MPF de Hong Kong, empregados e empregadores fazem contribuições mensais num sistema de investimento obrigatório. As pessoas são obrigadas a descontar e ficam naturalmente insatisfeitas. Se este investimento trouxer lucros as pessoas consideram-no uma boa ideia, mas se trouxer prejuízos vão pensar que é uma medida negativa. Além disso, as empresas responsáveis polos investimentos cobram taxas. Os comentários que os investimentos obrigatórios beneficiam estas empresas não podem ser evitados.

O investimento obrigatório tem sido criticado porque o MPF de Hong Kong tem uma única finalidade e só pode ser usado em benefício do trabalhador depois da reforma. Algumas pessoas em Hong Kong sugeriram seguir o exemplo de Singapura e expandir o uso do MPF. Por exemplo, o MPF poderia ser usado como garantia para comprar casa. Infelizmente, esta sugestão acabou por ser rejeitada. Outra proposta foi ainda sugerida. Consistia na possibilidade de os trabalhadores comprarem anuidades de Hong Kong usando o MPF depois da reforma, para criarem rendimentos mensais a longo prazo. É uma pena que esta proposta tenha sido criticada e que não tenha podido seguir em frente.

As propostas acima mencionadas foram rejeitadas, por isso, como é que se pode resolver o problema da protecção na idade da reforma? Vamos continuar esta discussão na próxima semana e também abordaremos a melhor forma de Macau lidar com esta mesma questão.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

2 Mai 2023

A festa de Lula

Na semana passada, Portugal viveu mais uma polémica: a visita oficial de Lula da Silva, Presidente do Brasil. Infelizmente, a festa de Lula foi transformada em discussão, protesto e vergonha. O metalúrgico que chegou a Presidente da República pela segunda vez foi convidado oficialmente pelo seu homólogo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

A maioria dos brasileiros que vivem em Portugal regozijaram-se com a presença de Lula da Silva e logo manifestaram a sua alegria nos mais diversos locais por onde passou. No entanto, a polémica atingiu o convite que foi feito ao visitante para ser recebido solenemente na Assembleia da República. Dois partidos políticos, o Iniciativa Liberal e o Chega contestaram a presença de Lula da Silva no parlamento e demonstraram que de democratas têm muito pouco. Os deputados do Iniciativa Liberal não estiveram presentes na sessão oficial parlamentar, excepto o seu líder Rui Rocha e o Chega envergonhou todos os portugueses que não são neofascistas.

O Chega, contra todas as regras da ética parlamentar, levantou os braços com cartazes insultuosos contra Lula da Silva, chamando-lhe corrupto. O Chega até se esqueceu que Portugal é um dos países da Europa onde mais impera a corrupção a todos os níveis. Este acto de um partido que é essencialmente antidemocrata recebeu de imediato o protesto do presidente da Assembleia Legislativa, onde Santos Solva protestou veementemente contra a atitude dos deputados neofascistas.

Lula da Silva é um ser humano como todos nós, mas soube disfarçar o sentimento de tristeza pelo que assistiu e manifestou o seu contentamento pela forma como foi recebido em Portugal. Os brasileiros apoiantes de Lula da Silva saíram à rua para gritar palavras de apoio a um homem que conseguiu derrotar em eleições livres um ex-presidente fascista que provocou durante o seu mandato a morte de milhares de brasileiros.

Bolsonaro tudo fez para que Lula da Silva não fosse eleito, inclusivamente deu instruções, ao estilo de Donald Trump, para que as sedes do governo e do tribunal, em Brasília, fossem ocupadas e vandalizadas. Nas ruas de Lisboa ainda apareceram alguns apoiantes de Bolsonaro que de um momento para o outro foram expulsos dos locais onde apareceram a dar vivas a Bolsonaro. A propósito, lembrar que o Chega, de André Ventura, vai realizar uma conferência e convidou Bolsonaro a estar presente e este aceitou.

Neste particular, dizer-vos que os portugueses deixaram de ser um povo lutador pelos valores democráticos e que passivamente assistem à ingerência política cada vez maior dos neofascistas. E é por essa razão, que alguns analistas, já se pronunciaram que a democracia está em perigo. Os portugueses que se sentem democratas tinham a obrigação de se organizarem para contestar veementemente a presença de Bolsonaro em Portugal.

Todos os partidos democráticos tinham a obrigação, juntamente com todos os sindicatos, de se dirigiram ao local onde estivesse Bolsonaro e não permitir que a sua presença fosse pacífica. O local onde o Chega vai receber Bolsonaro podia mesmo ser invadido pelos democratas portugueses e não permitir que o fascista brasileiro usasse da palavra. Lembremo-nos de que este mesmo Bolsonaro nunca visitou Portugal enquanto foi presidente da República do Brasil e foi malcriado e insolente para com o Presidente Marcelo, quando este se deslocou ao Brasil.

Lula da Silva pode ter tido um passado com erros políticos, acusado de corrupção, preso injustamente, pronunciando-se contra a União Europeia, da qual Portugal faz parte, tomando posição a favor da Rússia, mas, o povo brasileiro é soberano e elegeu-o novamente Presidente. Não pode ser esse passado a desrespeitar uma visita oficial do Presidente Lula da Silva a Portugal, até porque o próprio manifestou que pretende as melhores relações económicas com Portugal no futuro e nesta visita já foram assinados vários acordos de índole económica.

Há um facto que me deixou satisfeito na eleição de Lula da Silva: a Amazónia já não será destruída e os seus indígenas irão ser apoiados significativamente pelo governo de Lula da Silva. O importante é que o Brasil não volte a cair nas mãos de verdadeiros corruptos, fascistas e de um governo que deixe os pobres ainda mais pobres.

2 Mai 2023

Normalidade anormal

Em matemática, quando multiplicamos dois números negativos, o resultado é sempre positivo, ao passo que se multiplicarmos um número negativo por um positivo, o resultado será sempre negativo. Os princípios éticos ensinam-nos que as más intenções nunca podem produzir bons resultados. Em situações que saem da norma, tudo é razoavelmente anormal. Se considerarmos que algo é “normal”, em situações anormais, estamos apenas a racionalizar e a normalizar a anormalidade. É lamentável que o hábito de racionalizar fenómenos anormais esteja a ser cada vez mais bem aceite nas nossas sociedades.

De acordo com os jornais de Hong Kong, Ingrid Yeung Ho Poi-yan, Secretária da Administração Pública de Hong Kong, respondeu recentemente a questões relacionadas com a demissão de funcionários públicos, durante a sessão do Comité de Finanças do Conselho Legislativo. Ingrid Yeung Ho Poi-yan declarou que estas demissões eram “normais dentro de uma situação irregular e que toda a Hong Kong está a viver um período anormal”. Admiro a coragem que Mrs. Yeung precisou de ter para dizer a verdade. Mas se a situação anormal não for resolvida, mesmo que o processo de recrutamento de funcionários públicos seja acelerado, ou se for seguido o exemplo da Polícia de Hong Kong, que flexibilizou os requisitos de admissão dos novos recrutas, mesmo assim não se resolve o problema da saída de Hong Kong de pessoal altamente especializado.

Desde a implementação da Lei de Segurança Nacional para Hong Kong em Junho de 2020, a frase “do caos à ordem, da estabilidade à prosperidade” tornou-se um jargão político muito popular. Passados quase três anos, e de acordo com o Relatório de Situação da População Mundial divulgado pelo Fundo de População das Nações Unidas em Abril deste ano, Hong Kong tem a taxa de natalidade mais baixa do mundo, nascendo apenas 0,8 crianças por cada mulher, seguido de perto pela Coreia do Sul com uma taxa de 0,9. Nos últimos anos, as relações entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul têm sido tensas, com a existência de tempos a tempos de conflitos militares e de ameaças nucleares, conduzindo assim a uma taxa de natalidade sistematicamente baixa, e isto pode ser considerado um fenómeno natural. Mas em Hong Kong, após quase três anos de transição “do caos à ordem, da estabilidade à prosperidade”, de acordo com o princípio orientador de “Hong Kong governado por patriotas”, a taxa de natalidade não só não cresceu como diminuiu. As autoridades de Hong Kong deviam reflectir profundamente sobre as causas deste problema e encontrar formas de permitir Hong Kong volte verdadeiramente à normalidade!

Há uma expressão chinesa que diz “quem recuou 50 passos ri-se de quem recuou 100. Fala sobre dois desertores que abandonaram o campo de batalha, o que recuou 50 passos ri-se do que recuou 100 e chama-lhe cobarde, e o último responde que todos têm medo da morte.

Macau e Hong Kong são ambas Regiões Administrativas Especiais e passaram por vários problemas nos últimos anos, embora a situação em Macau seja aparentemente menos grave do que em Hong Kong. Tomemos como exemplo a obra de construção do novo estabelecimento prisional de Macau (Fase III). Em Fevereiro deste ano, a Comissão de Acompanhamento para os Assuntos de Finanças Públicas da Assembleia Legislativa declarou num dos seus pareceres que se fariam todos os esforços para que a Fase III estivesse concluída em Fevereiro ou Março de 2023. Mas num anúncio da Direcção dos Serviços de Obras Públicas, feito em Abril, o empreiteiro da Fase III declarou que o seu progresso tinha sido afectado pela pandemia e que a conclusão estava prevista para o fim deste mês,

O progresso e as custas da obra de construção do novo estabelecimento prisional de Macau (Fase III) deveriam ser eficazmente monitorizadas pela Comissão de Acompanhamento para os Assuntos de Finanças Públicas. No entanto, em Macau, não é surpreendente encontrar atrasos e derrapagens de custos nos projectos governamentais devido diversas causas, incluindo tanto as catástrofes naturais como os factores humanos. Infelizmente, a sociedade de Macau habituou-se a aceitar em silêncio certos fenómenos anormais como sendo normais. Para restaurar verdadeiramente a normalidade na sociedade de Macau, é crucial eliminar os elementos anormais.

28 Abr 2023

Era uma vez na América

A semana passada, uma notícia correu mundo. Ralph Yarl, um adolescente afro-americano, foi baleado por um homem branco de 84 anos quando ia buscar os irmãos gémeos. O autor dos disparos, Andrew Lester, alvejou Ralph na testa e no braço porque este tocou à sua campainha por engano. Lester foi libertado sem ter sido acusado, depois de estar detido durante 24 horas. Estes acontecimentos geraram grande revolta popular. Foram organizadas várias manifestações e as pessoas alegam que a polícia favorece os brancos.

Andrew Lester acabou por se entregar à polícia e foi acusado de agressão de primeiro grau e de posse de arma de fogo. Na primeira audiência, negou as acusações e foi libertado sob fiança, mas foi obrigado a entregar as armas, e a não contactar com a vítima nem a sua família e a ser monitorizado através do telemóvel. Se for condenado por agressão de primeiro grau, Lester enfrenta uma pena de prisão perpétua. Mas como Ralph sobreviveu, esta condenação é muito improvável.

Ralph é um jovem negro que foi alvejado por um homem branco quendo estava desarmado. Não é difícil encontrar nesta história um elemento de racismo. Um dos casos de racismo que ficou tristemente famoso, foi o de George Floyd, um homem afro-americano. George foi detido por um polícia branco sob suspeita de ter usado uma nota falsa.

O polícia pressionou o pescoço de George com um joelho até este morrer sufocado. Este acontecimento deu origem a muitos protestos. Finalmente, vários agentes envolvidos no caso foram acusados de assassínio e de homicídio involuntário e foram condenados.

O caso de Ralph, além de mais uma vez trazer à tona a questão da discriminação racial nos Estados Unidos, também nos volta a alertar para a questão do controlo de armas. No artigo que escrevi sobre o caso de George em 2020, era claramente salientado que o 16.º Presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, libertou os escravos negros e que Martin Luther King, encabeçou o movimento que ficou conhecido por Montgomery Bus Boycott, entre Dezembro de 1955 e Dezembro de 1956.

Este movimento levou à aprovação da Lei dos Direitos Civis em 1964, que estipula claramente que não pode haver discriminação racial nos Estados Unidos. Toda a discriminação feita contra negros, minorias, ou mulheres é ilegal.

Em 2009, Barack Obama foi eleito, tornando-se no primeiro Presidente negro dos Estados Unidos, uma prova de que este país reconhece o direito dos negros ao mais alto cargo da nação, e também demonstra que não pode haver discriminação racial no sistema e na lei. As acções discriminatórias que se registaram são da responsabilidade de certos indivíduos. Então perguntamo-nos, quanto tempo levará até que os Estados Unidos eliminem este tipo de discriminação?

Sobre a questão do controlo de armas, o caso de Ralph é um “remake” do caso de Takejo Hattori, ocorrido em 1992. Takejo Hattori era um jovem japonês que estudava no Louisiana. Takejo e seu amigo Webb Haymaker iam a uma festa de Halloween. Como tinham apontado mal a morada, foram dar à casa errada. Quando tocaram à campainha, assustaram a dona da casa, uma mulher chamada Bonnie Peairs, que estava na garagem.

Por causa disso, o marido, Rodney Peairs, pegou numa arma e veio tentar perceber o que tinha assustado a mulher. Nessa altura, Takejo dirigiu-se a Rodney e acenou-lhe. Rodney não falava japonês e pensou que Takejo estava a tentar agredi-lo. Avisou Takejo para que ficasse quieto. Takejo, que não teve noção do perigo, continuou a avançar e a dizer que vinha para uma festa, mas acabou por ser atingido no pulmão esquerdo e morreu devido a uma hemorragia.

Rodney foi acusado de homicídio, mas os 12 jurados consideraram que não era culpado, ao abrigo da “fortress doctrine” (doutrina da fortaleza). O “fortress principle” é um princípio jurídico, que estipula que, para manter a segurança da sua casa, o proprietário pode usar de força contra pessoas que a queiram invadir. Esta acção é considerada legítima defesa e não é criminalizada. Mais tarde, os pais de Takejo levantaram uma ação civil contra Rodney.

O tribunal considerou que Rodney tinha reagido de forma exagerada à presença de um adolescente e que não tinha tomado as medidas de segurança mais eficazes, como ficar dentro de casa até à chegada da polícia. Por isso, Rodney foi acusado de negligência e condenado ao pagamento de uma indeminização de 650.000 dólares.

O acusado declarou falência de imediato e os pais de Takejo acabaram por só receber 100.000 dólares. Depois de deduzir as taxas legais, os pais de Takejo criaram o “Yoshi’s Gift” com os 55.000 dólares restantes para apoiar grupos que defendem o controlo de armas nos Estados Unidos. Também usaram a compensação do seguro de vida do filho para criar o “Fundo YOSHI” para apoiar os estudantes do ensino médio dos Estados Unidos que visitam o Japão, promover intercâmbios e melhorar a compreensão mútua.

Nos 30 anos que se seguiram, os pais de Takejo apresentaram várias petições ao Governo dos Estados Unidos, e à opinião pública, para que fosse revista a questão das armas de fogo. O ex-Presidente Bill Clinton promulgou a Brady Law em 1993 para que fossem verificados os antecedentes de pessoas que querem comprar armas de fogo. Os pais de Takejo afirmaram: “O mundo pode ser mudado.” “Se apenas ficarmos à espera, nada muda. Mas se dermos um passo em frente, o cenário vai mudar. Mesmo que não aconteça nesta geração, acontecerá na próxima.”

Thompson, o promotor do caso de Ralph, prometeu lidar com o caso de forma objectiva e justa e afirmou “A minha mensagem para a comunidade é que, na cidade de Kanas, aplicamos e obedecemos à lei. Não importam as origens, a aparência, ou os bens pessoais, todos têm de respeitar as mesmas regras.” O Presidente Biden condenou o incidente, afirmando que mais uma vez reflecte o problema do uso de armas; disse também que tinha falado com Ralph e com família ao telefone e que o tinha convidado a visitá-lo na Casa Branca, depois de estar recuperado. Este procedimento é exactamente igual ao que ocorreu no caso de George Floyd. Biden mostrou que se preocupa com as vítimas, mas como é que pode ajudar no controlo de armas?

Os pais de Takejo têm lutado para mudar a política de armas de fogo nos Estados Unidos. O seu contributo é ainda maior do que o de muitos americanos. No entanto, se os casos que envolvem armas de fogo continuarem a acontecer, não sabemos quando é que Takejo pode vir a descansar em paz no céu.

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau
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Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

24 Abr 2023

País maravilhoso

Portugal é um país maravilhoso. Alguns dizem o contrário. Que os portugueses estão nas ruas da amargura. Que existem dois milhões ao nível da pobreza e que a classe média está a passar pela maior crise económico-financeira de sempre. A classe média? Não consigo compreender como é que a classe média se queixa em qualquer situação, que não consegue pagar a prestação da casa, mas não prescinde de carro para o marido e outro para a mulher, que os preços dos produtos essenciais estão cada vez mais caros e que já não vão jantar fora.

Pois é, mas essa mesma classe média o que nos demonstra é que vive num país maravilhoso que por ter este ano o mês de Abril com calor e praia decide ter 10 dias de férias, do pé para a mão. 10 dias de férias? É verdade, no passado sábado iniciaram um ripanço formidável com uma ponte até amanhã que é o feriado do 25 de Abril, depois metem quarta, quinta e sexta como dias de férias, vem mais um sábado e domingo e segunda-feira seguinte é feriado novamente por ser o dia 1º de Maio. 10 dias em beleza, partindo para o Algarve ou para as margens do Douro, onde o turismo rural em quintas aprazíveis lhe proporciona 10 dias sem trabalho em plena altura do ano em que não é costume haver férias para ninguém.

Quando encontramos alguém que tem um emprego razoável e que pertence à chamada classe média, logo ouvimos que a vida está mal, que isto em Portugal está impossível de se sobreviver e a lamentação não tem fim. Esquecem-se daqueles que vivem com uma reforma de 200 ou 300 euros, esquecem-se dos sem-abrigo, esquecem-se dos jovens estudantes que deixam as universidades por não poderem pagar as propinas, esquecem-se dos que vivem em bairros da lata, esquecem-se das mulheres que trabalham nas limpezas e que começam às sete da manhã e correm escritórios e casas de famílias até às oito da noite, esquecem-se daqueles que já têm de escolher entre comprar carne ou peixe e medicamentos, esquecem-se dos que estão há um ano a aguardar por uma cirurgia, esquecem-se dos que nas urgências dos hospitais esperam 20 horas para ser atendidos, esquecem-se das mulheres grávidas que têm de andar numa ambulância cerca de 100 quilómetros para ter um filho. Enfim, a chamada classe média tem de andar mais caladinha porque em Portugal há quem sofra profundamente e que até passe fome.

Em Portugal, a vida está difícil, isso não tem discussão, mas felizardos não faltam. O que tem chocado a maioria são as greves constantes de professores, trabalhadores dos transportes públicos, oficiais de justiça, enfermeiros e outras profissões que têm sido alvo da incompreensão governamental, que soube colocar na TAP mais de 3 mil milhões de euros – dinheiro do povo – e depois aumentam os reformados miseravelmente, governo que não chega a acordo com os trabalhadores que protestam por melhores salários.

Neste país, ultimamente, têm acontecido factos que entristecem e que deixam as pessoas perturbadas. Referimo-nos aos abusos sexuais dos padres da Igreja Católica e de doutos professores que nas universidades não podem ver uma aluna bonita, de seios grandes que não a convidem logo para jantar ou que façam chantagem no sentido se as estudantes não condescendem ao abuso sexual, o seu ano lectivo será a reprovação. Na semana passada, ficámos desolados com a notícia que atingiu o professor doutor Boaventura Sousa Santos acusado de abuso sexual a várias alunas, algumas que até se pronunciaram na televisão. Boaventura, um homem que sempre se pronunciou como grande democrata, defendendo a moralidade, a solidariedade e a igualdade.

Amanhã, festeja-se o dia 25 de Abril, data histórica em que um grupo de militares levou a cabo um golpe de Estado e terminou com a ditadura que subjugou e matou vários antifascistas. No entanto, esse mesmo 25 de Abril em 2023 é comemorado na praia e a maioria dos jovens nem sabe o que se passou no chamado dia da liberdade, mas, que infelizmente, liberdade de vária ordem tem havido muito pouca ao longo de 50 anos em determinados actos da vida, nomeadamente na comunicação social, onde criaram uma lei de imprensa que é uma autêntica limitação da liberdade expressão. Já não falando de um caso passado com um familiar meu, comunista, e que à semelhança de tantos cidadãos, tem o seu telefone debaixo de escuta há mais de cinco anos.

Sobre o 25 de Abril muito teríamos a escrever, mas todos sabemos que Portugal tem tido personalidades políticas de grande gabarito, honestidade e solidariedade e outras, especialmente nos governos, que só se preocuparam em exercer a corrupção, o compadrio e a desonestidade. É assim, é o país maravilhoso que temos.

24 Abr 2023

Macau é fundamental nas relações entre Portugal e a China

Rui Lourido *

 

O chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), Ho Iat Seng, realiza uma visita a Portugal, entre 18 e 22 de abril. O facto de ser a sua 1ª visita ao estrangeiro, pós-pandemia, e de na sua agenda constar “a importância da língua e da cultura portuguesa como fator diferenciador é uma vantagem competitiva de Macau em relação a outras regiões da China”, assume uma relevância especial para a comunidade de Língua Portuguesa de Macau.

A visita representa mais um passo no aprofundamento das relações não só entre Macau e Portugal, mas também com a China em geral, pelo que será recebido pelas principais autoridades portuguesas, Presidente da República, Primeiro-ministro, Presidente da Assembleia da República e Ministro dos Negócios Estrangeiros. A comitiva integra 50 empresários de Macau e têm agendadas várias visitas a parceiros portugueses, com destaque para os setores alimentar e farmacêutico.

Com o apoio do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau, a comitiva tem visitas agendadas para Lisboa e Porto. Para dar maior visibilidade à visita, a Direção dos Serviços de Macau (DST) apresenta, diariamente, um espetáculo de projeção de imagens evocativas de Macau, no Terreiro do Paço, entre 15 e 22 de abril.

Macau é uma cidade fundamental no relacionamento multisecular da China com o Ocidente, com a Europa e com Portugal em particular. O respeito do governo central da China pelo processo de transição de Um País, Dois Sistemas tem permitido à RAEM modernizar-se e desenvolver-se de forma extraordinariamente rápida. A reintegração da RAEM na estrutura administrativa da China respeita o sistema jurídico e a autonomia política, com governo próprio, e o respeito pela diversidade multicultural, multiétnica e linguística da sua população, com o reconhecimento do português como Língua Oficial da região por pelo menos 50 anos.

O governo da RAEM tem preservado e dignificado o património histórico material e imaterial de origem portuguesa. A RAEM tem incentivado o intercâmbio com os países que se expressam em língua portuguesa. São exemplo disso o apoio à organização de encontros artísticos literários e científicos, e o apoio financeiro à edição em língua portuguesa de vários jornais de Macau, bem como uma Biblioteca Digital com todas as obras sobre Macau e a parte continental da China entre os séculos 16 ao 19, iniciativa do Observatório da China (disponível para leitura gratuita na Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/26918/1/PT/index.html), que assim preserva para o futuro uma parte importante da História e Cultura de Macau.

No âmbito da política de Um País, Dois Sistemas, a RAEM foi convidada a integrar o mais promissor e ambicioso projeto do governo central da China, de expansão económica e de desenvolvimento social do sul da China – a Grande Área da Baía de Guangdong-Hong Kong-Macau, que congrega a Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK) e outras nove cidades da província de Guangdong, em especial no desenvolvimento da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau, em Hengqin, da cidade de Zhuhai.

Assim, pela primeira vez na história de Macau, a RAEM ultrapassa as limitações decorrentes da reduzida dimensão do seu território, através de várias ações estruturais, nomeadamente, através da construção de um parque habitacional, para dar melhores condições de habitação aos jovens e restante população local. A Grande Área da Baía Guangdong-Hong Kong-Macau é uma das áreas para a qual Macau pretende atrair investimento português e europeu para indústrias de valor acrescentado e de alto desempenho tecnológico e financeiro. Hengqin tem permitido a Macau a expansão do seu sistema educativo, onde se destaca a formação profissional e a Universidade de Macau.

Esta estratégia global da RAEM cria as condições objetivas favoráveis para Macau escapar à dependência da indústria do Jogo/Turismo e melhorar as condições para atrair e interligar o extenso mercado interior do Sul da China com os mercados internacionais e, em especial, o dos países de língua portuguesa, sendo este um dos grandes objetivos desta visita de Ho Iat Seng a Portugal.

A China tem vindo a valorizar as suas relações políticas e económicas com a globalidade dos países de língua portuguesa, de tal forma que em 2003 estabeleceu em Macau o Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, mais conhecido por Fórum Macau.

Através, nomeadamente, do Fórum Macau, a China aprofundará a colaboração com os países de língua portuguesa em setores da inteligência artificial, como conectividade, energia e infraestruturas, desenvolvimento industrial, proteção ambiental e na construção de uma comunidade global de saúde para todos.

O próprio 20º Congresso do Partido Comunista da China (PCCh) consagrou o apoio ao desenvolvimento atual de Macau e Hong Kong e respetivas estratégias de maior integração ao desenvolvimento do país. No caso específico de Macau, a China reafirmou o seu compromisso de incremento da cooperação com o Fórum Macau, envolvendo os países africanos e o Brasil. O Brasil reforçou as suas relações políticas e económicas com a China e com os BRICS, com os acordos assinados entre os presidentes Lula e Xi, durante a sua visita à China (12-15 de abril 2023).

Com os países de língua portuguesa, segundo os dados do Ministério do Comércio da China, as trocas comerciais de 2022 foram de US$214,829 mil milhões (US$214,829 bilhões), registando um aumento homólogo de 6.27%. De acordo com dados divulgados no site da Agência Portuguesa de Estatística, o comércio bilateral de bens entre a China e Portugal de janeiro a junho de 2022 foi de 2,793 mil milhões de euros (2,793 bilhões de euros), um aumento homólogo de 39,37%.

A visita a Portugal do chefe do executivo da RAEM é um importante contributo para o aprofundamento da importante relação de Portugal com Macau e a parte continental da China. Por outro lado, Portugal e a União Europeia necessitam de reafirmar a autonomia dos seus interesses estratégicos, tal como reafirmaram Scholz e Macron, recusando o clima da Guerra Fria e de clivagem entre blocos geopolíticos, neste mundo multipolar, para poderem contribuir determinantemente para a paz da comunidade de futuro compartilhado da humanidade.


*Historiador, presidente da União de Associações de Cooperação e Amizade Portugal-China e presidente do Observatório da China

20 Abr 2023

Bibliotecas de Macau: A biblioteca do Mercado de São Lourenço

Por Flávio Tonnetti

Venho de um lugar com poucas bibliotecas, onde estudar é um luxo, ainda. No meu contexto de origem, as bibliotecas são espaços distantes do cotidiano da maioria das pessoas. Por isso me surpreendo com a quantidade de bibliotecas de Macau, e com o número de pessoas que as frequentam, cada uma com um interesse específico, não necessariamente o de ler livros. Em algumas delas chega mesmo a haver um horário de pico, quando encontrar um bom lugar para se sentar torna-se um desafio similar ao de achar vagas nos autossilos: é preciso girar um bocado até que se possa estacionar.

De todas as bibliotecas de Macau, a do Mercado de São Lourenço é a mais próxima aqui de casa. Chego até aqui caminhando, subindo pelas escadarias das vielas da velha Macau até baixar ao centro médico que faz esquina com o Mercado. Acho inusitada essa encruzilhada: quando a medicina, a nutrição e a erudição se encontram. Habito essa fronteira em busca do que me nutra. Saindo por todas as portas do mercado, me incomoda o cheiro de peixe na altura da rua.

A primeira vez que cá estive, atravessei os odores reparando com atenção nas cores de sangue, nas texturas das carnes, no brilho das escamas. E no barulho que os mercados de peixes invariavelmente tem, e que os distinguem de todos os outros mercados. Nada seria mais antagônico ao espaço silencioso e inodoro de uma biblioteca moderna.

Cruzando o salão, subi ao segundo andar em busca de frutas e verduras, onde os perfumes nos atravessam de um jeito manso e gentil, podendo encontrar, no andar seguinte, uma praça de alimentação com enorme diversidade de cozinheiros vendendo pratos prontos, onde os cheiros do mercado se misturam totalmente, elaborando a síntese completa dos odores e sabores. Comparando com os mercados das minhas terras natais — ou com outros mercados asiáticos e latinos-americanos — me chamou a atenção o silêncio e o decoro dos senhores e senhoras que trabalhavam nos andares de cima do mercado. Um clima em tudo diferente ao das animadas e ruidosas feiras brasileiras.

Nessa altura, já tínhamos, no São Lourenço, um mercado com sensação de biblioteca. Nessa primeira vez, subi por um dos elevadores e me atrapalhei um pouco até que eu pudesse encontrar as escadas que iriam por fim dar na altura da biblioteca. O que fez com que eu ficasse rodando pelo mercado até que achasse o caminho certo, um giro propício para que fizesse algumas compras. Já com a feira feita, com bananas, pêssegos, um pedaço de gengibre, uma cenoura graúda e algumas couves enfiadas na bolsa junto com o computador e meus cadernos, subi finalmente até o andar dos livros.

Gosto de sentar próximo às janelas, me alimentar dessa luz que vem do exterior. Não observo somente os livros: gosto de perceber as pessoas. Nessa biblioteca, os pertences dos frequentadores são diferentes de todas as outras.

Compondo a paisagem, há sempre sacolas de frutas aos pés das mesas. Pessoas que fazem a feira antes de subirem para ler o jornal. Homens que aproveitam a solidão da biblioteca para usarem a internet com privacidade antes de voltar com as compras para casa. Senhoras trabalhadoras que ali vão descansar depois do almoço. Mocinhas colegiais e suas mochilas com maçãs, nabos e pés de alface.

Nessa biblioteca, o saber tem um sabor. E há um perfume, quase imperceptível, herdado dos campos, que emana sutilmente dos gêneros hortifrúti. Esses cheiros, bem diferentes dos das carnes do rés do chão, refrescam a nossa percepção. Aí passo as horas do meu dia. O tempo é relativo quando nos recolhemos no esquecimento da leitura. A noite cai e logo estou, à meia-noite, entre os últimos, a fechar a biblioteca. Entre uma couve-flor e uma berinjela, edito textos sobre cinema chinês e escrevo, minhas impressões sobre a cidade, ao editor de um jornal macaense.

• Artigo escrito em português do Brasil

• Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea

18 Abr 2023

Uma visita histórica

O Chefe do Executivo de Macau inicia hoje uma visita a Portugal, a primeira ao estrangeiro do seu consulado tolhido pela pandemia. Este facto reveste-se de especial significado: indica o grau de importância que a China atribui às relações de Macau com o nosso país e com o mundo lusófono. É, claramente, um grau elevado. Mais do que nunca, Pequim deposita na RAEM a responsabilidade de aprofundar relações com a lusofonia em geral e, especialmente, com Portugal. Trata-se, por isso, de uma visita histórica a que convém reconhecer o simbólico significado.

Ora esta importância dada ao incremento das relações com os países lusófonos, que por desígnio nacional fatalmente assombrará Macau nas próximas décadas, só pode ser uma notícia positiva para a comunidade lusófona residente. Assistimos, nos últimos três anos, a um regredir da nossa presença, como assistimos a um regredir de tudo, por via das restrições impostas pela pandemia. Contudo, acreditamos que entrámos numa fase de recuperação, que não será imediata ou instantânea, na qual veremos alguns regressos e novas chegadas.

A visita de Ho Iat Seng a Portugal, com a carga simbólica que carrega, reafirma claramente o desejo de manutenção de boas relações e da presença em Macau da comunidade portuguesa, sem criação de conflitos e tentando evitar mal-entendidos.

Repare-se também que decorreu, recentemente, a visita do presidente do Brasil à China. A mensagem parece ser clara: o papel de Macau não abrangerá o domínio das trocas económicas entre os dois gigantes, mas deverá estimular sobretudo as relações com Portugal, Timor e os países lusófonos africanos. (Reconhecendo esta situação, há duas semanas nas páginas do Hoje Macau, o professor Flávio Tonnetti, defendia que, no entanto, a RAEM poderia desempenhar um papel relevante nas trocas culturais entre Brasil e China, posição que obviamente partilhamos.)

Mas a visita de Ho Iat Seng é também muito importante para o Governo de Macau. E é-o porque chegou o momento de mostrar capacidade de diálogo, de acção e, sobretudo, de eficácia. O modo como correr este périplo contará e muito para avaliação que posteriormente será feita por Pequim do modo como Macau cumpre ou não um dos mais importantes dos desígnios que lhe foram destinados pelo Governo Central: as relações com os países lusófonos.

Ho Iat Seng e a sua delegação terão de demonstrar capacidade para estabelecer pontes e relações com Portugal, saber evitar escolhos e dificuldades e compreender que Portugal é uma importante porta para a Europa e para África, muito mais aberta que a de outros países membros da União Europeia. Se não o fizer ou souber fazer, desapontará os líderes chineses. O difícil momento que o mundo atravessa é mais um desafio que dificulta o caminho a ser percorrido nesta visita histórica. Ho Iat Seng e os seus conselheiros terão de saber palmilhar. Assim se tenham preparado para isso. Afinal, “uma batalha é ganha antes de ser travada”.

17 Abr 2023

Governo de polémicas

Portugal tem sido governado por uma maioria absoluta do Partido Socialista. O povo votou cheio de esperança de que muito iria mudar na estrutura do Estado. O povo pensou que essa maioria absoluta política teria entre mãos todas as formas de valorizar a credibilidade política. Uma política que deveria ser praticada por dirigentes governamentais competentes e sérios. O povo admitiu que o actual primeiro-ministro, António Costa, tinha todo o poder de modificar uma situação degradada no tecido social nacional.

No entanto, temos estado perante as mais diversas polémicas derivadas de casos e “casinhos” que só têm colocado o panorama político em discussões, divergências, ilegalidades e críticas, algumas do próprio Presidente da República.

A situação governamental tem sido de uma tristeza atroz e desde que a ministra da Saúde, Marta Temido, se demitiu, de madrugada, sem que ninguém tivesse sabido as verdadeiras razões da sua saída do Governo, nunca mais pararam os factos que têm levado ao descrédito do Governo. As últimas sondagens apresentam um empate técnico entre o PSD e o PS. Não foi o PSD que subiu, já que tem sido um partido com uma prática absolutamente negativa. O que tem acontecido é que o povo está a perder a confiança num Governo socialista que apenas vai deixando andar a governação ao “Deus dará”.

As demissões no Governo têm-se sucedido. O caso mais vergonhoso prendeu-se com o ex-ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos e o seu secretário de Estado Hugo Mendes. Demitiram-se os dois por falta de seriedade. O ex-ministro Santos – no caso da TAP, onde a CEO francesa entrou em litígio com a administradora Alexandra Reis e que levou ao seu despedimento com uma indemnização de 500 mil euros, afirmou primeiramente que nada sabia e que tudo era tratado com a TAP pelo seu secretário de Estado. Mais tarde, veio a público confirmar que o seu secretário de Estado lhe tinha dado conhecimento do andamento litigioso na administração da TAP.

No Partido Socialista nota-se que existem as mais diversas facções, o PS de António Costa, o PS de Pedro Nuno Santos, o PS de Fernando Medina, o PS de Carlos César, o PS de Francisco Assis e a divisão é de tal gravidade que na semana passada o grupo parlamentar do PS, sem conhecimento do seu secretário-geral António Costa, promoveu uma reunião secreta com a CEO da TAP a fim de preparar as perguntas e respostas que a CEO da TAP deveria pronunciar na existente Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso TAP. Sobre este propósito, as audiências na referida Comissão de Inquérito, foram um escândalo quando os inquiridos, nomeadamente, a CEO da TAP, Alexandra Reis e o ex-presidente do Conselho de Administração da TAP, Manuel Beja, anunciaram o contrário uns dos outros e chegou-se à pouca vergonha de ficarmos a saber que o Governo interferia na gestão da TAP e que inclusivamente os comunicados emanados pela TAP eram redigidos pela tutela governamental.

A comissão de Inquérito tem sido um “buraco” difícil de poder ser tapado porque até um dos deputados socialistas, Carlos Pereira, que mais atacava os inquiridos, acabou por se demitir da Comissão de Inquérito, por suspeição de irregularidades e fraudes financeiras. A TAP tem estado na berlinda depois de os portugueses terem injectado na empresa 3,2 mil milhões de euros. Ora, este cenário na TAP onde têm ocorrido os mais variados casos de discussão, nomeadamente, a pretensão de adquirir uma nova frota automóvel, de despedir milhares de trabalhadores, de se ter privatizado a empresa o que veio a demonstrar ter sido um fiasco e o Governo de seguida ter nacionalizado a empresa, para agora querer novamente privatizar.

As polémicas sucedem-se. A CEO da TAP foi demitida em directo na televisão pelo novo ministro das Infraestruturas, João Galamba, o qual nunca devia ter entrado para o Governo devido à sua total incompetência política. Polémicas que chegam ao ponto de se saber que a mulher de João Galamba trabalha no Ministério das Finanças como coordenadora de um departamento e cujo contrato não foi publicado em Diário da República como a lei nacional assim o exige, mas, entretanto, possivelmente por vergonha já pediu a demissão. Algumas das polémicas têm trazido a lume trapalhadas e cambalachos que quase diariamente a imprensa dá à estampa.

Outra das grandes polémicas é a decisão sobre o novo aeroporto de Lisboa. Parece que andam a brincar aos aeroportos. Agora, já foram considerados nove locais para a construção do novo aeroporto de Lisboa, incluindo Monte Real e Santarém, que em nada se podem comparar com a estrutura já existente em Beja. O primeiro-ministro anunciou aos jornalistas que até ao fim do ano nada deve estar decidido, porque a pressa é má companheira. O que não é boa companhia é a inércia governamental que está a deixar o povo em polvorosa e a desacreditar, cada vez mais, na maioria absoluta socialista. A inflacção desceu um pouco, mas os preços dos bens essenciais continuam a subir. As famílias pobres já não aguentam a sobrevivência triste e degradada que lhes caiu em sorte. Os portugueses desanimam constantemente, basta referir que pagam o passe para os transportes públicos e estes estão assiduamente em greve, verificando-se que milhares de trabalhadores não conseguem chegar ao local de trabalho.

Polémica atrás de polémica, veio a lume a possibilidade da dissolução da Assembleia da República, mas o Presidente Marcelo logo respondeu que isso não está no seu horizonte porque a oposição não tem condições alternativas ao novo Governo. De imediato, o líder do PSD, Luís Montenegro, veio contrariar o Presidente dizendo que o PSD está preparado para governar já hoje. Um líder social-democrata sem qualquer credibilidade e que está à frente de um partido, que além de exercer uma oposição péssima, ainda tem mais facções internas que o Partido Socialista. No meio disto tudo, as sondagens indicam que os neofascistas do Chega continuam a ter cada vez mais apoiantes. Um caso grave para a democracia que não está a ser entendido pelo Governo, quando não se preocupa em governar alterando muitas das estruturas nacionais, nomeadamente, a ferrovia e o fim das portagens nas autoestradas. As polémicas têm sido de tal gravidade que até proporcionaram ao ex-Presidente da República, Cavaco Silva, dar-se ao desplante de comentar a má prática governamental e afirmar que Portugal está a degradar-se.

Neste particular, estamos perante um político que devia estar calado, à semelhança de Ramalho Eanes, com a agravante de nos lembrarmos o mal que Cavaco Silva fez aos portugueses nos mais diversos parâmetros da governação enquanto ocupou 10 anos o cargo de Chefe do Executivo. Uma coisa é certa: as polémicas não vão terminar.

17 Abr 2023

Quando a borboleta desaparece

Numa passagem da Bíblia podemos ler, “quando vemos uma nuvem a vir de oeste, dizemos imediatamente, ‘vai chover…. Quando o vento sopra do Sul, dizemos, vai fazer calor”. Por isso quando as borboletas, que são muito sensíveis ao ambiente começam a desaparecer, deve ser um sinal revelador de mudanças climáticas. No caso de Macau, as garças que habitavam as zonas alagadas em redor da Avenida da Praia na Taipa já não se vêem actualmente.

Depois da pandemia, os turistas voltaram a Macau. Muitos grupos usando chapéus e vestidos da mesma maneira apareceram não só nas zonas turísticas de Macau, mas também nos “outlets”.

Depois de ter lido um artigo num jornal local sobre um grupo de turistas do continente que ficaram “presos” numa joalharia durante duas horas, lembrei-me imediatamente que as excursões de baixo custo tinham regressado. A única coisa de que não estava seguro é se a loja seria um “outlet” e como se chamaria.

Acabei por perceber que o nome da joalharia é semelhante ao de uma loja muito conhecida. Bem, duas questões foram identificadas através do artigo do jornal local. Em primeiro lugar, pergunto se os departamentos competentes do Governo da RAEM tomaram medidas eficazes, em conjunto com as forças da autoridade da China continental contra quem organiza estas excursões de “baixo custo”, que já existiam antes da pandemia?

Em segundo lugar, porque é que o relato dos jornais da China continental é muito mais detalhado do que o dos jornais locais? A resposta é dada pelo seguinte incidente. Quando passamos pelo Edifício do Antigo Restaurante Lok Kok (classificado como edifício de interesse arquitectónico) localizado na Rua de Cinco de Outubro, ficamos a perceber que apesar da Lei de Salvaguarda do Património Cultural estar em vigor, as coisas que não deviam acontecer, na realidade acontecem. E apesar da investigação sobre o trabalho de salvaguarda do património cultural relativo ao Restaurante Lok Kok, o destino do Edifício do Antigo Restaurante Lok Kok não vai ser alterado e vai desaparecer gradualmente no meio do silêncio, deixando para trás apenas memórias.

Quem tiver sido militar sabe que é muito assustador entrar numa floresta silenciosa, porque não sabemos onde é que o inimigo ou os animais selvagens se escondem. A sociedade de Macau é actualmente aparentemente pacífica. No entanto, com os frequentes suicidas a atirarem-se de janelas, a taxa de desemprego a subir para os 4 por cento, a queda da taxa de natalidade e o número de estudantes do ensino primário e secundário a descer, o emprego e a existência dos professores graduados ao abrigo do programa de formação pedagógica serão necessariamente afectados.

Nem todos os cidadãos de Macau têm a oportunidade de encontrar emprego na Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau, em Hengqin. Contudo, o Governo da RAEM vai gastar mais de 16 milhões de patacas nos próximos dois anos para subsidiar certo número de funcionários públicos de Macau para irem trabalhar para a Zona de Cooperação Aprofundada. Mas será que isso vai ajudar a aumentar a taxa de natalidade e baixar a taxa de desemprego?

A falta de discussão das questões sociais só prestará um “não serviço” à sociedade. Na China, quatro jovens suicidaram-se por ingestão de veneno, tendo saltado a seguir de um penhasco no cenário idílico do Zhangjiajie National Forest Park. Embora estes suicídios tenham ocorrido longe de Macau, a mensagem escondida nesta tragédia não deve ser ignorada. Quando passamos pela Avenida de Vale das Borboletas, na zona de Seac Pai Van de Coloane, podemos reflectir sobre se terá havido ali borboletas e porque é que elas desapareceram.

14 Abr 2023

Da santidade ao abusivo vai uma língua

Vou assumir que tiveram acesso a conteúdos da mesma forma que eu tive. Fui bombardeada pelo vídeo do Dalai Lama a querer beijar na boca uma criança onde depois lhe pede que chupe a língua. Ele, ou a sua equipa, pediram desculpa pelo incidente nas redes sociais. “A sua santidade” pede desculpa dizendo que gosta de brincar com as pessoas.

No vídeo só se ouvem pessoas a rir, que confirma a tese de comédia que a sua santidade quer impingir. Também vos garanto que rir é o mecanismo mais natural para lidar com situações inesperadas. Muitos que assistiram ao vídeo pedem que seja avaliado como abuso sexual de menores, em vez de um incidente engraçado que não caiu muito bem. Ninguém deve estar isento destas críticas, nem a sua santidade, defendem os cidadãos por essa internet fora.

Este vídeo caiu-me numa altura curiosa, quando andava a refletir sobre o abuso sexual de menores e a igreja católica. Tive uma incursão católica recente numa missa de Páscoa de duas horas – a minha primeira e última – onde passaram muitas coisas pela minha cabeça: umas boas e outras más. Pensei inevitavelmente no inquérito realizado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, e da forma como a igreja tem reagido a isso.

A comissão publicou um relatório em Fevereiro deste ano que dá conta de 4415 menores vítimas de abuso ao longo de 70 anos. Ainda que com dados concretos, a igreja em Portugal não se comprometeu a afastar abusadores da sua prática paroquial. Disseram-me os frequentadores assíduos da paróquia onde assisti à missa que a publicação do relatório teve impacto na forma como alguns crentes vêem as suas práticas religiosas. Não é para menos.

Tentei perceber um pouco melhor de que forma é que se fala da religião e do abuso sexual de menores, como a minha orientação construtivista me obriga. Reparei muito num discurso que justifica as causas dos abusos. Por um lado, incutem-nos a teoria da “maçã podre”, ou seja, os abusadores são pessoas que se desviam do normal, como casos isolados ou simples outliers. Por outro lado, há quem defenda uma teoria sistémica, olhando para a inevitável repressão sexual dos membros do clero com base nas visões católicas da sexualidade. Mas para além das possíveis causas, urge discutir como gerir abusos, de qualquer tipo, dentro de uma instituição milenar.

Foi o Papa Francisco que em 2019 proibiu o sigilo em relação a estas temáticas. A igreja parecia querer controlar os abusos por meio de uma cura espiritual sem vir a público, e sem manchar a fé dos crentes. No fundo, como qualquer estratégia de marketing que se preze, quiseram defender o produto para o consumo não cair. Em tempos de grande descrença, escândalos como este fazem abalar a fé de qualquer um.

Mas esta é a oportunidade de avaliar a honestidade dos espaços sagrados. Os membros e líderes espirituais não deixam de ser pessoas que cometem erros e podem ser abusadores. Devem ser julgados não só aos olhos da sua religião, mas aos olhos da justiça instituída.

Ao invés, as religiões usam santidade para proteger a santidade. É dessa forma tautológica que nos obrigam a olhar para a incapacidade reflexiva de resolver e mitigar problemas sérios como o abuso sexual de menores. Como um mito que coloca uns quantos num pedestal e deixando os outros a obedecer a tal organização estratificada. É neste equilíbrio de forças, e na sua naturalização, que se vai da santidade a uma postura abusiva muito mais rápido do que se gostaria. Às vezes, basta uma língua.

13 Abr 2023

Trump acusado de crimes de falsificação

Na semana passada a comunicação social anunciou que o ex-Presidente dos Estados Unidos Donald Trump foi acusado de falsificação de documentos relacionados com a sua actividade empresarial, aquando da campanha para as presidenciais de 2016, ocultando informação que não lhe era favorável e comprometendo a integridade das eleições. Trump negou todas as 34 acusações e foi libertado sob fiança. O processo será retomado no início do próximo mês de Dezembro. Esta é a primeira vez que um ex-Presidente dos Estados Unidos é acusado da prática de crimes.

O procurador de Manhattan, Alvin Bragg, escreveu uma acusação de 13 páginas descrevendo três incidentes. O primeiro refere-se a uma “empresa de média americana” que tem uma relação próxima com Trump. O ex-Presidente terá pagado a um porteiro do Trump Building 30.000 US dólares para que não vendesse aos jornais uma história sobre um filho que alegadamente teria tido fora do casamento. Mais tarde, veio a provar-se que a história era falsa.

Os outros dois incidentes referem-se a alegados pagamentos de 150.000 e 130.000 dólares que Trump terá feito, respectivamente, a Karen McDougall, uma modelo da Playboy, e a Stormy Daniels, actriz de fimes pornográficos. Daniels, conhecida como “Storm Woman”, afirma que o ex-advogado de Trump, Michael Cohen, lhe pagou 130.000 dólares para que não divulgasse a sua relação com Trump, através de uma empresa fantasma em 2016. Trump negou o pagamento desta quantia e também o relacionamento sexual com Daniels.

A acusação alega que em 2017, Trump passou cheques a Cohen do seu fundo fiduciário e da sua conta bancária para pagar “honorários de jurista”, mas Cohen afirma que se tratou de um reembolso do dinheiro que terá adiantado para “silenciar testemunhas”. Como não houve o pagamento de uma taxa de contratação inicial, estas verbas não podem ser consideradas como liquidação de serviços jurídicos.

Segundo a legislação de Nova Iorque, não é ilegal pagar para silenciar testemunhas, mas se o dinheiro for dado a um advogado, fazendo-o passar pelo pagamento de serviços jurídicos, pode violar a “Lei Federal de Financiamento de Campanhas” e, neste caso, o arguido também fica sob suspeita de ter cometido o crime de “falsificação de documentação comercial”.

Especialistas americanos em jurisprudência assinalam que, em Nova Iorque, falsificar documentação comercial é uma contravenção, mas se puder ser provado que o objectivo da falsificação é encobrir outros crimes, a contravenção pode tornar-se crime ficando o réu sujeito a uma pena que pode ir até quatro anos de prisão.

“Trinta e quatro acusações de falsas alegações para encobrir outros crimes são crime no Estado de Nova Iorque e, seja o réu quem for, não podemos e não vamos normalizar essas infracções graves”, afirmou Bragg.

A acusação também apresentou postagens anteriores de Trump nas redes sociais em que ele ameaça a cidade de Nova Iorque e os procuradores e critica o juiz Juan Merchan alegando que o odeia. O advogado de Trump respondeu que ele tem direito à liberdade de expressão, enfatizando que a postagem não é ameaçadora.

Do lado de fora do tribunal, reuniu-se um grande número de manifestantes pró e anti Trump e a polícia rompeu os bloqueios para separar os dois grupos.

Trump deixou bem claro que se vai candidatar às eleições presidenciais de 2024. Do ponto de vista legal, a candidatura nestas circunstâncias levanta várias questões que merecem ser analisadas.

Em primeiro lugar, a lei americana estipula claramente que pagamentos para silenciar testemunhas que pudessem divulgar informação prejudicial a Trump durante a campanha não são ilegais, mas podem violar a “Lei Federal de Financiamento de Campanhas” dos EUA”. O objectivo desta lei é manter a equidade da eleição. Toda a informação sobre os candidatos, que inclui os factos positivos e os negativos, deve estar acessível ao público antes da votação para que possa eleger quem considerada mais qualificado para vir a ser Presidente. Os Estados Unidos têm muita experiência em eleições presidenciais, e a legislação que as regula está amadurecida.

Em segundo lugar, se puder ser provado que Trump pagou 130.000 dólares a Daniels para a silenciar, através de Cohen e de uma empresa fantasma, Cohen pode estar envolvido com Trump na violação da Lei Federal de Financiamento de Campanhas, e ser considerado seu cúmplice. Portanto, Cohen também pode ter infringido a ética profissional enquanto advogado e vir a ser ouvido pela Law Society. Se for condenado, a sua licença pode ser revogada.

Em terceiro lugar, segundo a acusação, não houve lugar entre Trump e Cohen ao pagamento “inicial de contratação de jurista” pelo que não pode haver pagamento de “serviços jurídicos”. Se os registos demonstrarem que estes pagamentos foram feitos por serviços jurídicos, a acusação não será sustentada. Portanto, Trump é suspeito de ter cometido o crime de “falsificação de documentos comerciais”. Se o arguido for condenado, o tribunal tem maior probabilidade de admitir que os 130.000 dólares entregues a Cohen se destinavam a reembolsar o pagamento feito pelo silêncio de Daniels. Se assim for, Trump pode ser acusado de infracção da “Lei Federal de Financiamento de Campanhas.”

Em quarto lugar, durante a audiência, um grande número de pessoas reuniu-se no exterior, uns para apoiar Trump, outros para o combater. Isto equivale a exercer uma enorme pressão sobre o tribunal. Além disso, no post, Trump questionava os motivos do procurador para o acusar e escreveu que o juiz o odiava, o que representa outra forma de pressão que pode afectar a justiça. A lei deve ser suficientemente imparcial, e nem o Ministério Público nem os tribunais podem ser sujeitos a interferências externas, quando estão a instruir e a julgar um caso. Bragg deixou tudo bem claro, “seja quem for que esteja em causa, não podemos normalizar os crimes”. O Ministério Público não pode retirar a acusação porque o réu tem um estatuto proeminente ou porque está a ser pressionado, e essa condição é indispensável ao exercício do estado de direito.

Uma vez que não conseguimos ver as provas apresentadas pela acusação ao tribunal, nem ouvimos a defesa de Trump, tudo o que até aqui foi dito não passa de especulação, e não podemos afirmar que Trump tenha cometido um crime, nem que o comportamento de Cohen tenha sido problemático, só porque houve uma enorme cobertura deste caso pela imprensa. Mas uma coisa é certa, nem a acusação nem o tribunal querem adiar o processo até 2024, porque se for eleito nas próximas eleições, Trump passará a gozar de imunidade e o caso pode ficar suspenso, algo que a Justiça não quer que venha a acontecer.

A Constituição dos EUA não exige que o Presidente não tenha antecedentes criminais. Portanto, embora Trump possa ser condenado, mantem o direito de se candidatar à Presidência. A acusação de Trump mostra que nos Estados Unidos, ninguém pode estar acima da lei e isso é uma manifestação concreta do estado de direito. Como é que o povo americano encara os pagamentos para silenciar testemunhas, as mentiras, os casos extra-conjugais e as transacções imorais? As respostas vão ser dadas nas eleições presidenciais de 2024.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

11 Abr 2023

É a cultura, génios da lâmpada!

A vista de Macron teve também uma forte componente cultural. Em Cantão, o presidente francês provou chá de Lingnan e assistiu a um espectáculo musical, no qual foi utilizado um guqin com 1267 anos. As trocas culturais foram um dos aspectos mais importantes da visita, já a pensar no ano seguinte que marca o 60º aniversário do estabelecimento de laços diplomáticos entre a China e a França.

“Qual era o nome da música?”, perguntou o presidente francês perguntou depois de ouvir uma peça musical guqin chamada “Gao Shan Liu Shui” (High Mountains and Flowing Water) durante uma reunião com Xi Jinping, na sexta-feira.

Feito da madeira de uma árvore guarda-sol chinesa (firminiana simplex), o guqin utilizado na actuação é um tesouro nacional da China. O instrumento chama-se Jiuxiao Huanpei (Pendente de Jade do Supremo Céu), e foi feito durante a dinastia Tang (618-907), com um valor estimado de 400 milhões de yuan (58,22 milhões de dólares).  Na parte de trás do guqin está gravada uma caligrafia de Su Shi, um dos maiores literatos chineses da dinastia Song (960-1279).

Xue Liyang, uma perita em instrumentos musicais, disse que o guqin é a “encarnação da antiga filosofia chinesa”, que está entrelaçada com os “valores chineses de elegância, verdade, benevolência e beleza”. “A actuação deu a pessoas de diferentes origens culturais um sabor da estética ideológica da China antiga”, observou Xue.

“Altas Montanhas e Águas Correntes” tem um forte significado simbólico na cultura chinesa, uma vez que a melodia está intimamente ligada à história do guqinista Bo Ya e do lenhador Zhong Ziqi. Representa a “compreensão tácita e apreciação mútua entre duas pessoas na arte”, disse Xiao Shuming, um investigador cultural, ao Global Times.

De acordo com a história, Bo Ya estava a tocar música quando foi ouvido por um lenhador que passava. Enquanto Bo Ya tocava uma peça para capturar a grandiosidade das altas montanhas, o lenhador comentou “Tão alto como o Monte Tai!” Bo Ya tocou então uma música no espírito da água corrente e Zhong exclamou: “Quão vastos são os rios e oceanos!” Bo Ya percebeu então que tinha conhecido alguém que o compreendia verdadeiramente. Diz-se que quando Zhong faleceu, Bo Ya partiu o seu instrumento, uma vez que sabia que nunca ninguém iria compreender a sua música como o seu amigo tinha entendido.

A própria melodia foi dividida em duas partes, “High Mountains” e “Flowing Water”, após a dinastia Tang. Embora o presidente francês só tenha conseguido ouvir “Flowing Water” durante a actuação, isto mostra que “a China vê a França como um amigo com objectivos mútuos”, observou Xiao.

A Macron foram também oferecidos dois tipos de chá Oolong e chá preto chinês durante a sua visita a Guangzhou. O sociólogo Chu Xin disse que os produtos culturais locais têm sido vistos há muito tempo como um meio “suave mas eficaz” de “estratégia diplomática” utilizada para aproximar os países.

“As emoções e memórias dos seres humanos estão intimamente relacionadas com os seus gostos. Tais gostos locais mostram a imagem cultural autêntica e especial de um país”, observou Chu.

Em 2019, Macron ofereceu à China uma garrafa de vinho Romanee Conti 1978 como presente para assinalar o aniversário do início da reforma da China e da sua abertura em 1978. “A China e a França são dois países que respeitam o desenvolvimento das humanidades e ambos somos bons a usar ‘empréstimos líricos’ para transmitir as esperanças nos nossos corações”, observou Xiao.

O presidente francês também visitou a Universidade Sun Yat-sen em Cantão. Utilizando o cantonês local para cumprimentar estudantes, Macron acolheu uma sessão universitária para revelar as suas esperanças no intercâmbio China-França em campos como as humanidades, ciência e tecnologia.

A ligação entre a Universidade chinesa de Yat-sen e a França foi estabelecida na década de 1920. Apoiado por pioneiros como Sun Yat-sen, o Institut Franco-Chinois de Lyon foi a única instituição de ensino superior da China estabelecida no estrangeiro. Funcionou de 1921 a 1950. Devido a esta ligação histórica, a universidade chinesa tornou-se a mais antiga no Sul da China a estabelecer a língua francesa como licenciatura. Realizou também programas de investigação em colaboração com mais de 30 universidades francesas. Macron disse esperar que mais jovens estudantes chineses aprendam francês e que os jovens franceses partilhem a mesma paixão pela civilização, cultura e língua chinesas.

Acompanhado por figuras francesas como o director Jean-Jacques Annaud e Catherine Pégard, a presidente do Palácio de Versalhes, Macron encorajou um “diálogo intercultural de artes” mais forte entre a China e a França na cerimónia, afirmando que os dois países caminharão “de mãos dadas” para continuar diversas colaborações culturais em vários campos, tais como museus, arte e cinema para assinalar a “ocasião significativa” do 60º aniversário do estabelecimento de laços diplomáticos entre a China e a França em 2024.

Para agradecer à China o seu caloroso acolhimento, o presidente francês apresentou como presentes duas fotografias de Marc Riboud, o pioneiro das artes francesas, que foi o primeiro fotógrafo ocidental a documentar a República Popular da China durante a década de 1950.

“Historicamente, a civilização chinesa forneceu sabedoria asiática à Europa, especialmente durante o Iluminismo francês no século XVIII. A Revolução Francesa e a cultura francesa também tiveram um profundo impacto no processo de modernização da China”, disse Wang Xuebin, professor na Escola do Partido do Comité Central do CPC.

11 Abr 2023

As futuras gerações perante as alterações climáticas

É interessante constatar que a juventude tem vindo a demonstrar grande preocupação pelo futuro, no que se refere à sustentabilidade do nosso planeta. Essa preocupação reflete-se nas iniciativas que os jovens têm vindo a adotar à escala mundial, em prole de um futuro sem combustíveis fósseis, os quais são considerados como a principal causa do aumento da concentração de gases de efeito de estufa (GEE) na atmosfera, e consequentemente das alterações climáticas. É incontestável a consequente degradação progressiva do meio-ambiente, a perda de ecossistemas e a diminuição drástica da biodiversidade, o que se reflete na sustentabilidade do nosso planeta e na deterioração das condições de vida.

Das organizações e programas das Nações Unidas que mais ações têm levado a cabo para alterar esta situação, sobressaem a Organização Meteorológica Mundial (OMM) e o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA), sob os auspícios dos quais foi criado o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, órgão que procede à monitorização das transformações a que o clima tem estado sujeito devido às atividades antropogénicas.

A OMM é a agência especializada das Nações Unidas que tem como missão a cooperação internacional e a coordenação de atividades que envolvem o estado e o comportamento da atmosfera do nosso planeta, a sua interação com a terra e os oceanos, o tempo, o clima e os recursos hídricos.

Por outro lado, o Programa das Nações Unidas para o Ambiente, criado em 1972, tem como missão informar e aconselhar os Estados sobre como melhorar a qualidade de vida das suas populações e das gerações futuras, através da implementação de uma agenda ambiental que entra em consideração com o desenvolvimento sustentável.

Apesar dos esforços da OMM, do PNUA e de outras organizações e programas das Nações Unidas, que se têm refletido no estabelecimento do Protocolo de Quioto e na realização das 27 Conferências das Partes (Conferences of the Parties – COP), onde têm sido estabelecidos compromissos para reverter o aumento da concentração dos GEE, parece estar comprometido o almejado objetivo do Acordo de Paris, que consiste em que o aumento da temperatura média do ar , à escala global, não ultrapasse os 2 ºC, de preferência inferior a 1,5 ºC, até ao fim do corrente século.

Na realidade, esse aumento já ultrapassou 1,1 ºC em relação ao início da era industrial, há aproximadamente 150 anos. A passividade com que os governos dos países e as diferentes partes envolvidas têm vindo a atuar tem sido confrangedora, na medida em que não põem em prática, ou o fazem-no com grande lentidão, as recomendações acordadas nos vários fóruns onde estes assuntos são tratados.

A preocupação com as gerações futuras sobre a sustentabilidade da vida no nosso planeta perante o que pode acontecer ao clima está expressa no tema que a OMM escolheu para celebrar este ano o Dia Meteorológico Mundial (DMM) de 2023: “O Futuro do Tempo, do Clima e da Água através das Gerações” .

O dia 23 de março, data do aniversário da entrada em vigor da Convenção da OMM, é normalmente celebrado pelos serviços meteorológicos nacionais, realizando palestras, visitas de estudo, artigos nos órgãos de comunicação social, emissão de selos comemorativos, etc. A decisão oficial da criação da OMM foi há 150 anos, em 1873, no Congresso Internacional de Meteorologia, que teve lugar em Viena, nessa altura capital do Império Austro-Húngaro.

Neste encontro foi tomada a decisão de criar uma organização que tivesse como funções a coordenação das atividades relacionadas com o intercâmbio de informação meteorológica entre países, a Organização Internacional de Meteorologia , que incumbiu um comité de redigir as regras e os estatutos de uma organização mais vasta, que veio a designar-se por Organização Meteorológica Mundial.

A OMM tem sede em Genebra e conta com 193 membros entre Estados (187) e Territórios Membros (6). Portugal aderiu à OMM em 1951 e, na sequência de diligências conjuntas entre o nosso país e a China, Macau foi aceite como Território Membro em 1996, ainda sob administração portuguesa.

Segundo a Convenção da OMM – Artigo 3(d) – os territórios, desde que tenham serviços meteorológicos próprios, podem tornar-se Territórios Membros, passando a ter os mesmos direitos que os Estados em algumas questões relacionadas com o funcionamento da organização. É o caso da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), que possui os Serviços Meteorológicos e Geofísicos (SMG) desde 1952, e da Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK), cujo serviço meteorológico (Hong Kong Observatory), foi criado em 1883. Os respetivos delegados podem votar para a eleição do Secretário-Geral em pé de igualdade com os Estados Membros, o que faz com que a China tenha direito a três votos nessa eleição. Os votos, em princípio, são independentes, mas ninguém acreditaria que os Territórios Membros votariam de modo divergente ao da potência administrante.

Perante esta situação, no 14.º Congresso da OMM (Genebra, 5–24 de maio, 2003), o delegado do México manifestou a sua estranheza por esse facto, tendo o Secretariado esclarecido que a China e o Reino Unido haviam submetido o pedido de admissão de Hong Kong, China, no 12.º Congresso (1995), e que analogamente, a China e Portugal submeteram um pedido semelhante ao 13.º Congresso (1999), em relação a Macau, China. Em ambos os casos, o Congresso aceitou os pedidos, conforme o estabelecido na Convenção da OMM.

Esta situação, no entanto, não é caso único, na medida em que outros países que administram Territórios Membros, como a França, os Países Baixos e o Reino Unido, também têm direito a mais do que um voto. Tal deve-se ao facto de administrarem, respetivamente, a Polinésia Francesa e a Nova Caledónia, Curaçau e São Martinho, e Territórios Britânicos das Caraíbas. Portugal esteve em situação análoga no XIII congresso da OMM (4-26 maio 1999), devido ao facto de Macau ainda estar sob administração portuguesa.

Portugal e os restantes países de língua portuguesa têm-se batido, nos congressos da OMM, pela adoção do português como língua oficial desta organização. O argumento defendido pelos países lusófonos baseia-se na realidade de o português ser uma das línguas mais faladas no mundo. Com cerca de 280 milhões de falantes, mais do que os de língua russa, é a quinta língua à escala mundial e a mais falada no hemisfério sul.

Acontece, porém, que essa medida implicaria um forte acréscimo nas despesas com a tradução de documentos, e no recurso a intérpretes durante as sessões. Segundo aqueles que se opõem às pretensões dos países lusófonos, o facto de haver seis línguas oficiais (árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo) já implica um grande esforço financeiro por parte da OMM. Conseguiu-se, no entanto, que o português alcançasse o estatuto de língua de trabalho, com recurso a um fundo para o qual contribuem alguns membros, nomeadamente Angola, Brasil, Portugal e Região Administrativa Especial de Macau.

Os temas selecionados para as celebrações anuais do DMM refletem frequentemente as preocupações relacionadas com a evolução do clima. Por exemplo, nos últimos dez anos, o conceito “clima” é referido seis vezes: “The Future of Weather, Climate and Water across Generations, 2023”; “The Ocean, Our Climate and Weather, 2021”; “Climate and Water, 2020”; “Weather-ready, climate-smart, 2018”; “Climate knowledge for Climate Action, 2015”; “Weather and Climate: Engaging youth, 2014”.

Perante a realidade do facto de se constatar um aumento da frequência de fenómenos meteorológicos extremos, da subida do nível do mar em consequência do degelo de glaciares e calotas polares, dos oceanos estarem mais quentes e com maior grau de acidez, é natural a preocupação sobre as condições de vida das novas gerações. Neste contexto, a OMM está a trabalhar no sentido de desenvolver uma infraestrutura à escala mundial para monitorização da concentração dos GEE, com o intuito de apoiar a implementação do Acordo de Paris.

Atendendo a que o tempo, o clima e os recursos hídricos não conhecem fronteiras, é importante que as Nações Unidas, como instituição transnacional, e outras instituições internacionais, continuem a zelar pelas gerações futuras, e a reunir esforços para que estas tenham a possibilidade herdar um planeta mais sustentável. Todos nós, a título individual e coletivo, somos também responsáveis pela concretização desse objetivo.

*Meteorologista

5 Abr 2023

Hong Kong altera a “Portaria de Registo dos Dentistas”

Na semana passada, alguns órgãos de comunicação social de Hong Kong divulgaram que está em preparação por parte do Governo de Hong Kong a emenda à “Portaria de Registo dos Dentista”, de forma que os licenciados em medicina dentária não possam registar-se e exercer logo após a graduação. Precisam primeiro de praticar numa instituição pública, ou numa outra instituição credenciada, durante um ano antes de poderem ingressar no activo.

A Dental Association afirmou que o currículo odontológico actual exige que os alunos pratiquem todos os anos, e que as aulas práticas têm uma duração maior do que as aulas teóricas. Além disso, existem actualmente cerca de 40 clínicas dentárias públicas em Hong Kong, das quais 11 servem os residentes de Hong Kong e as restantes atendem apenas os funcionários públicos. Por conseguinte, a extensão dos benefícios que esta medida pode trazer aos residentes de Hong Kong é assunto do maior interesse para a população.

De acordo com o Secretário do Departamento Médico e de Saúde de Hong Kong, existem 371 postos de odontologia, dos quais 50 estão disponíveis. Contando com a taxa de rotatividade anual de cerca de 11,1%, pode vir a haver 90 a 100 vagas. Além disso, o Governo de Hong Kong precisa de investir cerca de 500.000 HK dólares por ano na formação de dentistas, sendo que a formação em medicina dentária tem uma duração de 6 anos, pelo que o Governo investe na formação de cada um deles um total de cerca de 3 milhões de HK dólares.

De acordo com os noticiários, os estudantes de medicina dentária não foram consultados sobre a proposta de alteração da lei, mas como podem vir a ser os mais afectados, alguns ficaram desconfortáveis com a situação. Há também quem se questione se o objectivo desta alteração da lei é atender às necessidades do mercado, ou alterar o currículo odontológico que está em vigor há muitos anos.

A questão que se coloca está sobretudo relacionada com a formação dos dentistas e com os direitos e o interesse dos residentes de Hong Kong. Formalmente, trata-se de alterar uma lei de Hong Kong. Do ponto de vista formal, o primeiro passo a dar quando se pretende alterar uma lei é realizar consultas, nas quais se incluem, naturalmente, as partes interessadas.

Esta alteração à Portaria de Registo dos Dentistas, sem a consulta a uma das partes interessadas, os estudantes de odontologia, é certamente inadequada. Simultaneamente, estes estudantes serão os mais prejudicados pela alteração da legislação. Um grupo de pessoas que será muito afectado não pode expressar a sua opinião. O seu mal-estar é compreensível. Quando se vierem a fazer alterações a outras leis de Hong Kong, devem ser feitas consultas mais abrangentes para evitar que algo semelhante volte a acontecer.

É sabido que o currículo actual de odontologia em Hong Kong inclui muitas horas de aulas práticas em todos os anos da formação. No entanto, o Governo de Hong Kong propõe um ano de prática antes de se poder exercer. Quer se trate de uma prática segmentada ou de uma prática unificada que se concentra na conclusão das aulas teóricas, são apenas questões técnicas que não fazem muita diferença.

A questão central é se existe alguma diferença significativa entre as aulas práticas incluídas no currículo e a prática pós-formação proposta pelo Governo. As mudanças propostas só fazem tentido se se apontar especificamente as diferenças entre as duas e se puder demonstrar que essas diferenças aumentarão o profissionalismo dos dentistas e melhorarão as suas capacidades de tratamento dos pacientes.

Actualmente, todas as Universidades de Hong Kong têm propinas fixas, ou seja, as taxas de matrícula de cada curso são iguais às dos cursos universitários financiados pelo Governo. Há alguns anos, o Governo de Hong Kong debateu a possibilidade da instituição de “propinas diferentes para os diferentes cursos universitários”. Os custos de formação dos estudantes de direito são os mais baixos.

O curso de direito dura quatro anos. Além disso, os alunos só precisam de ter acesso a aulas teóricas, às bibliotecas e a tribunais simulados. Se compararmos com os cursos de medicina, nos quais se incluí a odontologia, que precisam de estudar durante seis anos, de laboratórios e de muitas outras ferramentas, o curso de direito representa uma despesa muito menor. Os estudantes de medicina precisam do apoio do Governo para a sua formação num grau muito mais elevado do que outros estudantes. Porque o Governo de Hong Kong não implementou a prática das “propinas diferentes para os diferentes cursos universitários”, a maior parte dos subsídios governamentais para formação universitária recaem nos cursos mais dispendiosos.

A odontologia é um exemplo típico. Se estes estudantes podem registar-se e praticar assim que terminam os cursos, e ver a sua actividade muito bem remunerada, isso fica a dever-se ao investimento de 3 milhões de HK dólares que o Governo fez em cada um deles. Mal compreendemos esta questão, percebemos, naturalmente, porque é que o Executivo de Hong Kong quer alterar a lei.

Claro que existem problemas no planeamento governamental para a odontologia pública, Existem actualmente cerca de 40 clínicas dentárias públicas, das quais apenas 11 servem residentes de Hong Kong e as restantes apenas funcionários públicos. Esta disposição põe inevitavelmente em causa o objectivo da alteração da lei. Só quando o Governo de Hong Kong fornecer mais serviços dentários públicos para beneficiar mais residentes é que a população pode desvanecer as suas dúvidas.

Quando se escolhe uma profissão, o mais provável é vir a exercê-la a vida inteira, e claro que esta assumpção se aplica aos dentistas. No que se refere à proposta de alteração da lei, não há dúvida que dentistas e estudantes de medicina dentária deveriam ter sido consultados. Uma mudança no programa curricular de um curso universitário só deve ser feita quando é necessária, especialmente se se tratar de um curso de medicina. As alterações curriculares não afectam apenas os estudantes e as universidades, mas milhões de pacientes, e devem ser efectuadas com cuidado.

Na realidade, é impossível que as universidades cobrem a cada estudante de medicina dentária 500.000 HK dólares por ano. Por conseguinte, é inevitável que o Governo de Hong Kong os subsidie. Mas o financiamento do Governo de Hong Kong vem do dinheiro dos contribuintes, ou seja, o dinheiro dos residentes de Hong Kong. Assim, os estudantes de odontologia devem retribuir à sociedade depois de receberem o financiamento para concluírem os seus cursos. A forma de retribuir é por vezes problemática. Idealmente, as partes interessadas poderão chegar a um acordo que a todos beneficie.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau

4 Abr 2023

A habitação é uma barraca

Na semana passada a discussão política em Portugal teve como tema a habitação. Passaram anos e anos em que os governos pouco se preocuparam com os pobres que habitaram centenas de bairros de barracas. A habitação ainda é uma barraca.

Milhares de portugueses e imigrantes vivem em condições imensamente precárias em autênticos bairros da lata. Vivem da forma que podem. Com muito calor, frio intenso ou chuvas para o interior das barracas. Visitámos recentemente um bairro social onde a degradação das casas é o ponto forte, junto do aeroporto de Lisboa, o bairro da Quinta do Mocho, onde a maioria dos habitantes é oriunda de São Tomé e Príncipe.

Acreditem que aquela gente pobre conseguiu construir com restos de madeiras um “restaurante” onde em parte alguma comi melhor peixe grelhado na brasa. Uma delícia que esgota os lugares existentes todos os sábados e domingos.

O braseiro de carvão, com uma grelha artesanal de ferro, ao ar livre, faz com que um cozinheiro exímio apresente o tal peixe grelhado inigualável. Uma construção que apresentamos aqui a sua imagem e que todos vós dirão que não é um restaurante. No entanto, toda aquela gente pensa no dia em que as autoridades camarárias chegam e trazem ordens de demolição.

Tal como o referido “restaurante” existem milhares de casas em perigo de serem demolidas. Contudo, tivemos o primeiro-ministro, António Costa, acompanhado dos ministros das Finanças e da Habitação, a anunciar o projecto do Governo que titulou de Mais Habitação. Caiu o Carmo e a Trindade nas hostes da oposição. Foi a discordância total quando o Governo anunciou que as regras no licenciamento e no investimento de novas casas iriam mudar radicalmente.

O Governo pretende essencialmente que as casas que estejam vazias sejam arrendadas a famílias necessitadas, que não sejam concedidas mais licenças para o chamado ‘alojamento local’ e que as famílias mais pobres terão um subsídio de apoio ao arrendamento. Especialmente em Lisboa e no Porto existem milhares de casas e terrenos devolutos e os proprietários nunca se preocuparam em alterar a situação. A verdade, é que já é tarde que se veja a habitação e a sua obrigatoriedade constitucional como uma solução para os jovens e idosos que não conseguem ter uma casa.

No âmbito do programa Mais Habitação, o Conselho de Ministros aprovou duas propostas de Lei a submeter à Assembleia da República e um decreto lei que visa promover o investimento em arrendamento acessível, reforçar a confiança no mercado de arrendamento e mobilizar património disponível para o afectar à habitação.

A ministra da Habitação, Marina Gonçalves, sublinhou que a primeira linha de intervenção é estimular novos projectos privados de arrendamento acessível, o que será feito através da cedência de terrenos ou edifícios devolutos do Estado, complementado com uma linha de financiamento bonificado, com previsibilidade das rendas, assentes no programa de rendas acessíveis, e com incentivos fiscais.

Tudo isto é muito lindo e seria bom para os mais pobres que os projectos avançassem o mais rápido possível. Mas, como é possível ter boas intenções se em pleno bairro de Alvalade foi construído um prédio de grande dimensão pertencente à edilidade, que está pronto há mais de um ano e que foi anunciado que se destinava a rendas acessíveis.

O prédio está vazio e a Câmara de Lisboa informou-nos que as fracções já tinham destinatários desde que se iniciaram as obras dos alicerces.

A ministra referiu que a segunda intervenção seria o reforço do sector cooperativo, através da cedência de terrenos e edifícios do Estado, com financiamento bonificado, tendo o Estado como parte desses projectos. Mas, como poderá essa intenção avançar se o Estado nunca contabilizou o número de imóveis devolutos pertencentes ao Estado? O Governo nem sabe quantos imóveis devolutos existem.

Uma terceira medida anunciada pela ministra tem a ver com o apoio ao arrendamento. É fácil de politicamente anunciar medidas que mais parecem de propaganda, porque centenas de cidadãos já manifestaram às autoridades que vivem com imensa dificuldade e com três e quatro meses de renda por pagar e não tiveram qualquer resposta?

O Governo anunciou o combate à especulação na venda e no arrendamento. Combate de que forma se as imobiliárias fazem o que bem entendem e os preços das casas estão cada vez mais caros? O Governo pode estar cheio de boas intenções, mas como poderá mudar o paradigma nacional onde pululam os bairros de lata? Todas as medidas podem ser da maior importância e de enorme benefício para as populações, mas lendo com atenção o que o primeiro-ministro anunciou e que tem de passar pelo parlamento e pela aprovação do Presidente da República, concluímos que o tempo em aprovar os projectos, terminar as obras e cumprir a nova regulação não acontece em menos de cinco a 10 anos.

Porque não começar pela construção imediata de residências para estudantes e de bairros sociais com a dignidade eclética possuindo centros de saúde, correios, parques infantis e jardins para os idosos jogarem às cartas?

A habitação, ou a falta dela, é um mal nacional e se os governantes não actuarem com rapidez e eficiência ficaremos na mesma com uma habitação que é uma barraca.

3 Abr 2023

Brasil e Macau: é possível pensar parcerias em termos culturais e de soft power?

O ADIAMENTO da visita do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, à China, por motivos de saúde, abre uma oportunidade para que Macau possa tentar atrair Lula para uma visita a seu território, inserindo Macau em seu cronograma de atividades diplomáticas. Esta seria uma excelente oportunidade de chamar a atenção do mandatário brasileiro para a importância do fortalecimento de Macau como lugar relevante para o estabelecimento de relações internacionais qualificadas no interior da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) na Ásia.
Talvez desse modo se consiga atrair a diplomacia brasileira para que dedique maior atenção ao Fórum de Macau como lugar estratégico para o desenvolvimento de soft power, visando, sobretudo, o estabelecimento de uma mais bem azeitada política de cooperação cultural, através da criação de pontes mais efetivas no campo dos negócios de turismo e cultura, aproveitando-se da especificidade lusófona que Macau possui. Historicamente, a atenção que se tem dado ao Fórum de Macau por parte do Brasil soa tímida. Isso talvez se deva ao fato de que o Brasil, que tem a China como seu principal parceiro comercial, possua acesso direto a Pequim, diferentemente de outros membros da CPLP, que efetivamente usam Macau como plataforma para o estabelecimento de redes e parcerias com o continente.
Ocorre que esse tipo de relação comercial, que é quase sempre pensada como uma relação de trocas financeiras para a transferência de bens materiais, desconsidera o enorme mercado representado pelos bens culturais e simbólicos. Uma prova disso é que a comitiva de empresários brasileiros que acompanha o presidente Lula à China está composta basicamente por gente do agronegócio, ou seja, gente que sabe muito de agricultura e pouco de cultura. Se obrigado a apostar, eu diria que são pessoas mais interessadas em assinar contratos de compra e venda do que em estabelecer vínculos sociais mais duradouros e relevantes. Gente de muito negócio e pouco ócio. Parece-nos que o presidente Lula ganharia muito se pudesse ter em sua comitiva a Ministra da Cultura, Margareth Menezes, um dos nomes centrais da economia criativa e de turismo dessa que é uma dos maiores festas do planeta: o Carnaval da Bahia, um evento de massa que atrai ao Brasil turistas do mundo inteiro, que chegam à cidade de Salvador unicamente motivados pela cultura que ali se vive.
Isso indica que tanto o Brasil quanto a China têm muito a aprender em relação ao lugar ocupado pelas artes e pela cultura na mediação entre os países. A fim de aprofundarem o entendimento de que cultura é um negócio poderoso, que interfere não apenas no futuro econômico, mas também político de uma nação – inclusive impedindo ou desarticulando golpes e guerras. Ambos os países poderiam observar com atenção o trabalho de relações internacionais e política cultural desempenhado atualmente pela Coreia do Sul, que transformou o imaginário cultural de seu país num gigantesco negócio de escala global, exportando desde bandas pop até cursos de idiomas, e atraindo para seu país uma legião de turistas unicamente interessados em seus bens culturais e estilo de vida.
Para Macau, o fortalecimento de uma indústria cultural internacionalizada em novas direções, com o apoio de um gigante como o Brasil, detentor de uma indústria com artistas de renome internacional e muito celebrados não apenas no interior da lusofonia, poderia ajudar a projetar Macau como destino turístico entre pessoas de outros países fora do circuito Ásia-China. Sobretudo tendo em vista os países da América Latina, com os quais o Brasil possui interface, pegando carona e se expandindo em direção ao imaginário das culturas hispano-falantes, atraindo não apenas os turistas que falam português como porto de entrada para a China, mas também os que falam espanhol como língua materna e que, seguramente, se sentiriam mais bem acolhidos em uma primeira cidade que lhes oferecesse uma realidade linguística mais amigável às suas culturas de origem.
Além disso, um trânsito maior com o Brasil poderia ser estratégico para Macau na perspectiva de contribuir para a continuidade da língua portuguesa como parte das línguas efetivamente faladas no cotidiano desta RAE. Sem a presença e circulação de bens culturais em língua portuguesa, vai ficando cada vez mais difícil para as novas gerações acreditarem na importância de manter viva a língua portuguesa como língua oficial macaense.
Por sua vez, Macau poderia ajudar o Brasil a projetar seus bens culturais pela Ásia, alavancando outras manifestações além da telenovela, do samba e da capoeira, que representam apenas uma pequena parte do que o Brasil possui como bens culturais de exportação. O que poderia se dar, inclusive, utilizando a rede de cassinos para a concepção de uma rota de circulação de artistas em programações anuais consistentes e permanentes, com regularidade e agendas fixas, permitindo a estruturação de uma indústria cultural perene no território expandido de Cantão. Isso tudo, tendo em vista a possibilidade de pensar estratégias para negócios no campo do turismo cultural com grandes nomes da indústria cultural brasileira e latino-americana, apoiada na agenda ibero-americana e lusófona.
No que toca aos interesses vindos da política continental, numa realidade dominada por algoritmos e fakenews, a China vem perdendo a corrida cultural contra EUA e Europa, sítios nos quais a sinofobia vem crescendo de forma espantosa. Isso tem significado um entrave simbólico para que a cultura chinesa possa ser melhor absorvida e compreendida no Ocidente. Macau, via língua portuguesa, pode cumprir uma missão de tradução intercultural que ajudaria em muito a China a virar esse jogo, utilizando as parcerias da CPLP, sobretudo as de Brasil e Portugal, para gerar uma imagem cada vez mais positiva sobre si nos continentes americano e europeu.

Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea. Escreve em Português do Brasil.

1 Abr 2023