Sagração da primavera

Sofrer vai ser a minha última obra – Paulo Leminski

A arte como florescimento da vida: desse modo abrimos o Festival de Artes de Macau em 2023, com o espetáculo de dança A Sagração da Primavera, coreografado e dirigido por Yang Liping. Uma peça comovente e forte para quem esteve recolhido ao longo de três longos anos de pandemia, reclusão e silêncio. Como se, ao fim dum rigoroso inverno, estivéssemos agora vivendo um novo momento: o de ver florescer as forças remanescentes, que podem eclodir num ciclo de renascimento.

Nessa versão oriental, concebida por entrelaçamentos de perspectivas conceituais hinduístas, budistas, taoistas e xintoístas, somos apresentados a uma profunda reflexão sobre o significado da vida e da morte, reposicionando nossa impressão sobre os ciclos da natureza e o sentido das nossas existências. Podemos afirmar, sem qualquer receio, que estamos nos limites duma arte sacra.

Na versão original do balé, coreografado em 1913 pelo russo Vaslav Nijinsky para o concerto de Igor Stravinsky, uma jovem é escolhida para um rito sacrificial de fecundação da terra, tendo como pano de fundo uma narrativa ficcional inspirada em ritos pagãos europeus e narrativas populares russas. A morte de um indivíduo – uma mulher, uma jovem – é o tributo sem o qual a vida coletiva não se realiza. Ainda que tenhamos elementos de uma espiritualidade, numa perspectiva ocidental pagã, trata-se de uma cosmologia completamente assentada na ideia de indivíduo – orientado por noções como raça, gênero e espécie – e na separação criada entre sujeito e mundo ou entre cultura e natureza.

Na versão chinesa, o sacrifício é vivido por todos nós, presos ao ciclo de nascimentos e mortes, para o qual o sofrimento é condição inerente e verdade incontornável para qualquer ser que viva em um corpo, independente de qual seja. Todos nós somos sacrifício e oferenda, todos somos beneficiadores e beneficiados. E não há mal externo a ser combatido: as coisas são como são. E nesse eterno refazer-se do mundo, há o domínio da vida como manutenção da repetição: a vida é treino em campo aberto. Há por isso, nessa coreografia, uma vocação para o butô, ainda que em sua expressão coreográfica sejam mais facilmente reconhecíveis, do ponto de vista visual, elementos de danças indianas e indonésias – ou até mesmo da ginástica artística.

Uma criança pequenina que assistia à peça em companhia de sua mãe portuguesa, que se entusiasmara com os saltos acrobáticos do solista, chegou mesmo a dizer que também sabia fazer aquilo na capoeira, gerando graça por sua percepção subjetiva, muito bem assentada em seu próprio repertório. Penso que temos de dar ouvidos aos miúdos. Parece muito pertinente pensar essa coreografia como uma luta, e muito significativo percebê-la como resistência. Só a noção do enfrentamento é que muda, porque o inimigo não está fora. Mas, afinal, a capoeira também não é uma luta que se dança em roda?

Para o budismo que sustenta toda a estrutura dramatúrgica, o trabalho de vigília que temos de fazer é sobre nós mesmos, e a vida é nossa única obra, sobre a qual devemos nos debruçar sem apego. Isso reforça a presença de um monge tibetano ao longo de todo o espetáculo. Anti-dançarino da música mais silenciosa.

Nesse terreiro, o monge também produz sua roda: uma mandala por entre, e por sobre, a qual irá dançar todo o corpo de baile. Essa mandala redonda – ovo, olho, universo – é feita por pequenas partes diminutas que formam uma delicada tessitura, como uma renda holandesa. Se as olhamos com atenção, vemos que cada uma delas expressa um caractere chinês próprio – 唵嘛呢叭咪吽 – que podem ser combinadas na revelação de mantras, em especial o mantra Om mani padme hum, enunciado como sentença de motivação para livrar do sofrimento a todos os seres sencientes. É, portanto, um mantra inscrito para fazer vibrar um bom carma, para gerar positivos méritos que não se acumulam apenas para si, mas se estendem a toda vida existente no cosmos. É na construção desse chão que se assentará todo o trabalho.

É curioso pensar como, do ponto de vista plástico, essa mandala significa o universo atomizado, feito de pequenas partículas que se combinam de modo infinito. No taoísmo, essa fusão de forças, que produz um articulado conjunto complexo, pode ser pensada como uma energia em constante movimento, intuito por meio de uma imagem também circular, e com a qual já estamos bem familiarizados graças a enorme difusão do símbolo do Yin Yang: um círculo dividido em duas partes, uma branca e outra preta, cada uma delas com uma bolinha redonda na cor oposta, representando a presença do “diferente” no lugar do “mesmo”. Se animássemos essa imagem, dando a sua materialidade o movimento que ela conceitualmente expressa – em outras palavras, se a fizéssemos dançar! – dissolveríamos a sua estrutura polar em um infinito espectro de cinzas. Se acrescentamos a essa realidade um conjunto de cores, que se combinam e recombinam na experiência da luz e da sombra, então seríamos capazes de nos aproximar plasticamente da estrutura de mundo preconizada por esse misticismo budista-taoísta. Parece-nos que revelar artisticamente essa cosmogonia tem sido um dos esforços de Yang Liping, como seu trabalho cotidiano.

Sísifo empurrando a pedra e dela se soltando a cada ciclo de escaladas… A qualquer momento em que decidamos assumir a tarefa repetitiva de ampliar a consciência dos seres sencientes para que se libertem do sofrimento gerado pela roda da vida, poderemos perceber que não há solidão. Nossa dança acontece num rito comunitário dos que dançam conosco em meio aos que se recusam à dança, numa rede de acolhimento que vai tecendo o suporte da vida para que os outros possam entrar. Na tarefa de produzir a auto-iluminação e compartilhá-la, contamos ainda com os mil braços de Avalokiteshvara, a divindade da suprema compaixão que, no espetáculo, se revela no corpo coletivo das bailarinas com seus belíssimos braços e mãos alinhados em fila, donde vemos emergir todos os milagres constitutivos da realidade viva, numa reconfiguração dessa que é uma das imagens mais potentes das danças espirituais do oriente.

Outro elemento da cultura chinesa que aparece no espetáculo é a face do dragão, signo da transmutação, da renovação e da fertilidade, muito presente nas danças de passagem do ano novo. O artista possui a energia do dragão. O que significa dizer que o artista transmuta o mundo. Recolhendo e configurando a realidade em face da morte, cuja imagem da caveira, um dos ícones do budismo, está colocada como avesso do princípio ativador da vida, nas costas do figurino do solista masculino. E é potente que a morte esteja agarrada na figura daquele corpo que é em cena o mais forte, o mais viril, o mais atlético, mostrando-se como expressão de nossa transitoriedade, como convite ao desapego e como alerta em relação às seduções do ego. O céu fecunda a terra, mas é a terra quem faz crescer a vida. A mesma terra que dá, é a terra que toma. O terreno em que tudo se aglutina é o mesmo onde tudo se dissolve. Atividade e passividade se confundem como dinâmicas ambíguas. Como é possível caminhar nesse terreno em tudo movediço? Como é possível salvaguardar-se entre as forças polares geradoras e destruidoras da experiência vivida?

Como o monge no chão, recolhemos e organizamos os elementos desse universo, criando nossa mandala efêmera, feita de repetição sem acúmulo, posto que será imediatamente desfeita tão logo nosso ciclo se complete. Estamos nesse círculo do samsara. Essa é a sabedoria de quem vive habitando a consciência absoluta da morte. Sabemos já que, na verdade, nada nunca se completa, não há princípio nem fim. Quando entramos no auditório, já lá está o monge: entre os trabalhos e horas há sempre um Outro anterior que permanece. A mandala está incompleta quando chegamos, e seguirá descompleta quando partirmos.

Lágrimas escorrendo por sobre a barba branca, depois que os bailarinos se retiraram, fiquei após o final do espetáculo observando o monge silenciosamento. Um segurança veio retirar-me do auditório. Era hora de evacuar o lugar. Mas o monge lá permanecia. Outros provavelmente virão quando ele se for para estruturar a continuidade desse trabalho mínimo, invisível, estruturante de toda a malha da vida. Se penso nesse caminho como um ‘do’, imagino cozinheiras, jardineiros, professoras, agricultores… cada qual repetindo seus gestos num universo sem sentido e nele produzindo estrutura.

Tudo é feito em movimento, ainda que não o percebamos, mesmo os agradecimentos são fluxo continuo: aproximação e dissolução, fazer-se e desfazer-se. Quando os bailarinos recebem flores e a querem entregar ao monge, ele completamente as ignora, nada o distraí do seu trabalho, nada pode elevá-lo para cima dos outros seres, não pode haver reconhecimento porque não há ego. É preciso compreender a radicalidade do conceito de igualdade, rebaixando-se – ou elevando-se – para o mesmo nível de todas as formas de vida, o que é o mesmo que entrar em sintonia com o cosmos. Fazer a mandala é participar da dança do universo. Desfazê-la também. Todo trabalho é em si mesmo absurdo, mas não devemos deixar de fazê-lo, porque viver é participar do chão da vida. Mas de que forma estamos pisando nela? E o que é que nela plantamos? Cada caracter depositado no chão dessa coreografia é uma semente que florescerá. Cada elemento desses mantras é signo de um auspício que alimentamos: generosidade, ética, paciência, diligência, renúncia, sabedoria. Ao dizer as palavras certas, ao executar os gestos apropriados, projetamos no mundo aquilo que queremos que nele floresça: fazemos nossos mantras e mudras e criamos fluxos de energia.

Não há outra matéria a ser modificada senão a nós mesmos, num mundo que é em si mesmo mudança. A única forma de ir é entregando-se ao fluir de tudo aquilo que flui. Da pequenez do nosso ego individual nos prostramos à imensidão dos mistérios do universo. Apenas sobre o chão fértil dessa entrega é que poderemos bailar a dança infinita da vida. Nós é que somos a primavera.

Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea.

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários