Prova de vida

Horta Seca, Lisboa, quarta, 11 Agosto

Vai alto o Verão e depositámos em lugar de Raúl Brandão o catálogo correspondente à terceira Bienal de Ilustração de Guimarães, com os escolhidos e premiados, além do mais, belo texto de Luís Miguel Cintra dedicado ao discretíssimo trabalho de Cristina Reis, além de rico conjunto de ensaios, resultantes de conferências. (Sim, entregámos um exacto mês antes do evento). Isto logo depois da edição dos «Ilustradores Portugueses na Biblioteca de Viana do Castelo (2014-2021)», selecção e organização do Tiago Manuel de quinze autores contemporâneos, aqui com antologias mínimas e ensaios de enquadramento. Dois sinais da vitalidade de uma disciplina que ainda procura influenciar os modos como vai sendo vista e arrumada. Temos por onde nos alegrar com o hábito feito de festivais e exposições e cursos e outros esmeros e brios. Além do que a prática da ilustração, mais política e radical, mais reflexiva e poética, de projecto e encomenda, pulsa e relumbra. Assombra.

Oculta-se, em tais incumbências, um labor editorial não desprezável e pouco notado. Assim deve ser, aliás. Há mais lugares além do palco, da montra, das primeiras páginas, dos tops de plataformas. A compilação dos elementos díspares que vão compondo o livro, cada escolha em debate com os fazedores de formas, inventores de papel, com os faróis de minudências, enfim, a ordem que resulta da massa informe assenta no gesto criador do editor. Um gesto para sempre inacabado, imperfeito, em movimento. Raros são os encomendadores que entendem as subtilezas e complexidades, as variáveis e o peso das circunstâncias. Pouco mais importa que um prazo. O livro pode até ser produto, mas contém uma transcendência que merece respeito. Aceitemos com bonomia a ignorância. E quem sabe um dia oferecer a bondade de uma explicação. A capa BIG (algures na página), assinada pelo João [Silva], da DDLX, a partir de desenho do André [Letria], serve de oportuna ilustração desse movimento entre verdejantes selvajarias.

Horta Seca, Lisboa, quarta, 25 Agosto

Fui puto de Legos. Poucos, que a vida de então não dava para mais. Meia dúzia de peças davam me pôr na Lua, abrir velocidades, disparar sobre o Mal, erguer alturas desmedidas, construir castelos e absurdos. Tenho no céu da boca a recordação da aterragem dos primeiros paralelepípedos de pinos e encaixes na minha mão. Agora, não passa um dia em que uma peça, já não de plástico, não me aparece a ferir o pé descalço. Isto e aquilo, mais isto que aquilo, atitudes, um gesto, brutal esquecimento, humilhações, um incumprimento, um mau trabalho, friezas, avisos, pressões, desilusões, a notícia de que afinal. Para que não me esqueça: em certas vidas, as peças teimam em não encaixar. Como se não pertencessem.

Eduardo VII, Lisboa, quinta, 26 Agosto

Ei-la que chega, impante, a Feira do Livro. Muito por culpa do comunicado da APEL, que nos atribui estatuto de novedio, o Público (https://www.publico.pt/2021/08/26/culturaipsilon/noticia/feira-prova-vida-editoras-1975265) abre a sua peça connosco e dá azo a um sem número de mensagens, sinceras e fingidas e mais um leque de matizes onde se exercita o humano. Que importância ganham estes detalhes, o de ser a primeira vez que erguemos barraca a solo em evento que nos desgosta e de um jornal apontar lanternas a isso? Pouca. As autoridades alegram-se com a dimensão, atiram números, muitos números, sempre a somar, enchendo bocas e cabeças com o cultural, mas é de comércio que se trata. Vem daí mal ao mundo, que se venda livros? Nem por isso, mas quando toda a estratégia assenta no preço, nos descontos, nos saldos, nos livros do dia, na Hora H, esse convite à especulação, e outras invenções do demónio, acabamos por deixar claro que o interesse não será exactamente a promoção da leitura.

Atraímos passeantes, muitos, muitos, com pipocas e hamburguesas e saladas saudáveis e cerveja artesanal em versão bem-pensante de feira popular. Onde se assinala aqui o movimento emergente das novíssimas pequenas ou nem tanto editoras, nadas e criadas por estes dias de fim do mundo? Por que raio continuam a chamar espaço dos pequenos editores a uma tenda de saldos? Pormenores, de novo, ainda que simbólicos. E nem nos devíamos queixar, pois somos associado silencioso e nada participante, mas não deixamos de reflectir. Enfim, entrámos aos 10 anos de idade, no comunicado e na Feira, graças à crise que baixou a níveis razoáveis o alugar do pavilhão que forrámos com títulos desafiantes.

Diz o fraque e a cartola, façamos montra, cais de vidro, ponto de encontro, partidas e chegadas sem horários, livros-mala-de-viagem, livros-abrigo, livros-navio. Soubera eu como, filmava cada reacção: ao acontecer dos volumes por junto, tantos e tão poucos, as colecções que só se adivinhavam, a riqueza das capas, as que parecem tão antigas quanto as vanguardas, dos ziguezagues e piscadelas de olho ao leitor, sem o estupidificar, convites a entrar no jogo, com «buracos», sem capa, sem letra alguma a não ser na lombada, cores e formatos, volumes irmanados por folha, imagens de um lado e do outro poemas, os que se desdobram, recolhidos em caixa. Leitores das muitas identidades, é entrar, entrar, que temos ainda temas ocultos na voragem, o agreste e o difícil, o melancólico e o resto, imenso e movediço.

Uma década a dizer nas entrelinhas: bons títulos – assim diz o cartão instagramático. Não está acontecendo, mas esta celebração desejava-se menos prova de vida, mais atirada para o renascer do que o soprar das cinzas, mais árvore e, portanto, vergôntea. Quem sabe, se com as chuvas.

1 Set 2021

Da discrição

Visitei o Brasil em 2014. Enfim, visitei o Brasil é manifestamente exagerado; estive lá quinze dias e vi um pouco do Rio de Janeiro e um pouco de São Paulo. O Brasil é um continente, é uma escala a que não estamos de todo habituados – resta saber se é possível uma pessoa habituar-se a uma experiência de território como o Brasil, a China ou a Rússia.

Como todos os portugueses que visitam o Brasil pela primeira vez, eu ia carregadinho de preconceitos e de medo. A América do Sul é geralmente bastante mais violenta do que Portugal. Uma pessoa que veja um par de documentários sobre o Rio de Janeiro fica imediatamente em alerta. Os meus amigos brasileiros, em chegando a Lisboa, levavam umas boas três semanas a perder os hábitos de segurança do Rio. Queria muito conhecer «a cidade maravilhosa», mas ia cheio de miúfa.

Levei roupa velha, discreta. Uns calções horríveis que nunca uso a não ser nas poucas vezes que vou à praia. Umas t-shirts rotas para as quais ninguém olharia duas vezes. Umas sapatilhas de boca aberta para calçar à noite e umas havaianas para usar de dia. Nota: eu odeio chinelos e calções de qualquer espécie. Custa-me disfarçar o desprezo e o asco que sinto quando os meus amigos aparecerem nesses preparos. Um homem não usa chinelos e/ou calções. É indigno.

Passadas poucas horas de estarmos no Rio, as minhas havaianas deram de si. Foram provavelmente vítimas da secura acumulada no bas-fond do meu roupeiro e da minha inépcia a andar com elas. Tinha de comprar outras; a ideia que me tinha sido veiculada pelos meus amigos brasileiros era a de passar o mais incógnito possível; nunca parecer um gringo endinheirado. Blend in. E isso implicava usar uma t-shirt discreta, uns calções de banho e umas havaianas.

Muito a contragosto, fui a uma daquelas lojas gigantes de havaianas. Era tão grande e tinha tantos chinelos à mostra que mais parecia um museu ou o guarda-fato do Quaresma. Era daqueles sítios onde não me apetecia passar mais de dois minutos, mas que, por ter as paredes repletas de coisas, dificultava tanto a escolha que acabei por me decidir por um par de chinelos relativamente brancos e sóbrios apenas meia hora depois de lá ter entrado. Felizmente o sítio tinha ar condicionado. Era fevereiro no Rio e estava muito calor.

As havaianas são umas coisas horríveis de se enfiar no pé. Além de grotescamente feias, são desconfortáveis, sobretudo para quem ainda não ganhou um calo interdigital que amorteça as agressões daquele plástico cheio de fome de carne humana. Turistar longas distâncias com aquilo é uma provação a que só um idiota se submete. De cada vez que parava para me sentar num banquinho via a cara dos meus amigos brasileiros, muito compadecidos, a repetirem como num coro grego o quão necessário era aquele sofrimento por este afastar outros, esses sim muito mais fundos e prolongados.

Chegada a noite, nem tive coragem de trocar de calçado. Embora nunca o fosse admitir, estava demasiado calor para usar sapatos fechados. Além disso, aqueles chinelos eram bastante mais discretos que os meus ténis Adidas amarelos. Ou assim pensava eu.

Quando o sol se pôs dei por mim a ser mais mirado na rua do que era previsto. As crianças apontavam para mim, falavam com o adulto que as levava pela mão e riam-se. Os adultos por sua vez, miravam-me e abanavam a cabeça em jeito de desaprovação. As havaianas baratas e «discretas» que tinha adquirido umas horas antes tinham um revestimento de tinta fluorescente que, de dia, as tornava bastante sóbrias, de facto, mas que, de noite, as fazia brilhar num tom amarelo-esverdeado visível a uma distância considerável.

Eu pensava que ninguém lhes pegava na loja por serem brancas e relativamente inócuas. Afinal a razão era outra. Mas, como o corno, o turista é sempre o último a saber.

31 Ago 2021

电话 Telefones em Macau

Os telefones, existentes em Macau desde 1887, nem sempre funcionavam bem, principalmente em tempo de humidade, havendo quarenta anos depois ainda muitas queixas dos Serviços Telefónicos como refere o jornal O Combate de 28 de Janeiro de 1926: “A comunicação telefónica é em toda a parte uma das coisas mais importantes sobretudo para a população comercial. Times is money – dizem os ingleses. E quanto tempo se não perde em consequência não só das péssimas condições em que funcionam os telefones, mas também da insuficiência deles em relação às exigências locais? Até aqui o sistema adoptado tem sido dos piores e pouquíssimos são os indivíduos que podem ter um telefone em suas casas ou nos seus estabelecimentos. E a maior parte desses poucos telefones são reservados para as repartições públicas.

Já em Junho do ano passado circulava a notícia da encomenda de um novo aparelho com 400 números. Parece que o aparelho já aí está, mas até ao presente nenhuma comunicação ao público, nem mesmo àqueles que há tanto tempo necessitam de uma instalação telefónica e que nem um despacho tem obtido aos requerimentos que fizeram! (…) Até parece indiscrição perguntar-se à Repartição dos Serviços Telefónicos qual o número dos assinantes e quem são eles! A resposta é que ‘se não pode dizer’!…

Em toda a parte, ao instalar-se o telefone em qualquer morada ou estabelecimento, fornece-se logo ao assinante um livro com a relação de todos os assinantes e os respectivos números, e para se obter a ligação basta dizer para a estação central o número do assinante, e pronto. Em Macau é mister dizer-se para lá: -Poderia fazer-me o favor de ligar para a casa do sr. Fulano de tal? E fica-se à espera de que o sr. Fulano dê tal toque para cá; torna-se a tocar para lá; de lá toca-se para cá segunda vez, e então é que se fala… quando se fala, porque não é rara a vez em que se não ouve senão um zumbido ou uma mistura de muitas vozes. E tem que se repetir o toque de campainha de cá para lá e de lá para cá! (…) Aqui ainda é preciso, às vezes, inquirir previamente da estação se o sr. Fulano tem telefone em sua casa, ou no seu escritório, ou na sua loja; o que não seria preciso se, como lá fora, onde o serviço é bem organizado, cada assinante possuísse o tal livro, em que encontrasse, num relance, o nome e o número da pessoa ou estabelecimento com quem desejasse falar.

E não poucas vezes se dá também o caso de que, quando A está a falar para B, este não ouve senão aquele zumbido desagradável, e quem tudo ouve é C, com quem D pretende falar! É porque , explicam lá da central. Pois que tenham o cuidado de as conservar sempre desligadas e em boa ordem. Assim é que não pode continuar. Oxalá que o Governo se digne providenciar para que esse ramo de serviço se reorganize de tal modo que dele resulte benefício para o comércio e comodidade para o público em geral”.

Lista telefónica

Apesar da queixa do jornal e assunto de muitos artigos em diferentes datas noutros periódicos, a lista telefónica fora de novo divulgada no Boletim Oficial de 1913, com muitos acrescentos e algumas modificações como a ocorrida a 1 de Junho de 1910 a pedido da casa de fantan Sze-vo, que mandara desligar da rede telefónica a estação de serviço particular n.º 69, número em 1913 da residência do Dr. Camilo A. Pessanha.

Em 1913, a Rede de Macau na Estação de S. Domingos (central) tinha cem números no quadro das estações de serviço, a Rede da Taipa, com a central no Quartel do destacamento e apenas dois números: 1 – Fortaleza da Taipa e 2 – Administração do Concelho. Já a Rede de Coloane, com Estação múltipla, tinha uma sediada no Quartel do destacamento, onde constava 1 – Administração do Concelho e 2 – Posto de Hac-sá e a Estação múltipla de Hac-sá no Quartel do Destacamento com 1 – Posto de Coloane, 2 – Posto de Ká-hó, 3 – Posto de Seac-Pae-Van.
Seguiam as instruções para uso dos aparelhos: A) Estações simples, para expedir um despacho: – Quando qualquer estação quiser comunicar com outra faz soar a campainha, tira o auditor do seu lugar, coloca-o ao ouvido e logo que da central ouvir diz com qual das estações deseja comunicar, citando de preferência o seu número na tabela. Em seguida coloca o auditor no seu lugar, espera novo sinal na campainha, coloca o auditor no ouvido e fala. Acabada a conversação depõe o auditor no seu lugar e por duas voltas rápidas na manivela faz cortar a comunicação.

A) Estações simples, para receber um despacho: -Assim que qualquer estação ouvir tocar a campainha do seu aparelho responde imediatamente fazendo soar a mesma e aplica em seguida o auditor respondendo . Acabada a conversação coloca o auditor no seu lugar sem tocar a campainha.

B) Estações múltiplas. Para expedir um despacho: -Introduz-se a chave do aparelho no orifício da fileira superior do número correspondente à estação com que se deseja falar: faz-se girar a manivela esperando sinal da estação chamada; tira-se o auditor e fala-se. Para receber um despacho: – Logo que soar a campainha eléctrica, introduz-se a chave no orifício da fileira superior correspondente ao número do disco que cai; faz-se girar a manivela e tira-se o auditor e atende-se. Para dar comunicação: -Quando lhe for pedida comunicação duma estação para outra, chama esta fazendo girar a manivela e liga logo as duas estações por meio dum par de chaves que estão colocadas por baixo do comutador introduzindo-as nos orifícios dos números que correspondem a essas estações. Por sinal rápido é indicada o fim da conversação. N.B. Para se fazer uso das chaves deve observar-se o seguinte: A da estação que chama usa-se no orifício de baixo e a outra no de cima, não aplicando nunca chaves com cordões de cores diferentes.

C) – Ligação com terra: -Em ocasião de trovoada iminente coloca-se a chave metálica suspensa do aparelho no orifício do pequeno disco onde passa o fio da terra; aperta-se bem a fim de ser assegurada a ligação. É perigoso não atender a esta indicação. Observação. Aos aparelhos deve falar-se sempre em voz natural.

Observações: a) Para uma estação conseguir arranjo do seu aparelho basta comunicar este desejo, pelo seu ou outro aparelho, à Estação Central de S. Domingos. b) Aos particulares subscritores assiste o direito de reclamação, que sempre será devidamente atendida, de quaisquer desatenções ou irregularidades no serviço de chamadas e comunicação por intermédio da Estação Central em S. Domingos.

Anexa a Tabela das Tarifas do serviço: Estações de uso particular, quota mensal – $5,00. Redução nos termos do art.º 23.º: Leal Senado, funcionários e subscritores antigos – $3,00. Redução nos termos do art.º 24.º: até cinco estações – $4,00; além de cinco estações – $3,00. Conversação nas estações públicas: pelos primeiros cinco minutos ou fracção – $0,20 e por cada um dos cinco minutos ou fracção que se seguir, até final da conversação – $0,10. Era chefe do serviço telefónico José Agostinho de Sequeira.

30 Ago 2021

A memória de Yokohama – I

Lembrava-se do labirinto de veredas e caminhos, dos vales profundos e das sombras avermelhadas da poeira que se iam instilando nos chapéus quase brancos dos músicos da banda. A paisagem era pele macia de mulher vivida, cheia de sulcos e sedas, cheia de vestígios e volúpia de noites intemporais. A paisagem era música ágil e ondulante que tanto soava e calava cada despique mais impetuoso como fazia delirar o mais bizarro dezedor de versos e pragas. Enfim, a paisagem era de grão puro, luzidio, uma verdadeira obra de glaciares.

Lembrava-se das árvores do terreiro da antiga fundição, uma alfarrobeira deitada ao vento, uma folhagem de feição talhada pelo esquecimento, uma copa desenhada pelos anjos a pensar na futura melancolia dos guindastes e de outros corpos de aço. E ao pé do poço de águas férreas havia ainda o cedro gigante, uma ramagem de estiletes densos, uma vassoura de bruxas a acenar na direcção das nuvens, um lamento de invernias envolto por trepadeiras selvagens e pelo uivo sem eco dos lobos.

Lembrava-se de ver, há muitos anos, a imensa calote de betão a crescer entre penhascos e a massa húmida dos pinheiros. Parecia uma esfera de luz apoiada sobre ogivas metálicas com a magia daqueles arco-íris de trezentos e sessenta graus que se formam nos desfiladeiros da serra. À volta havia bandos de jovens vestidos de gabardina amarela, ramos de flor na mão, letras inflamadas e violas adormecidas nas mochilas que faziam coro grego de protesto face a este soberbo leviatã onde, um dia, os núcleos dos átomos haviam de ser cotejados. A imensa construção projectava-se para além da barragem e dava à região um raro vigor de alma material, um rosto porventura excessivo e uma panóplia variadíssima de habitações pré-fabricadas onde centenas de operários vindos de muito longe entravam e saíam do formigueiro da terra.

Lembrava-se da falésia de xisto escuro que descia a pique entre nascentes e juncos. Era um precipício criado por blocos de granito tão soltos quanto a velada gaguez da mulher que o avistara, há dias, no check-in do aeroporto. Tinha sobrancelhas grossas, o rosto esguio, cabelos encaracolados, os dedos finos e não deixava de evocar estas fragas desenhadas pelo abismo onde luziam os sinais mais simples dos deuses.

Lembrava-se de ouvir os sinos ao vento, eram campainhas que estavam presas aos ramos da indolente alfarrobeira e do espesso cedro libanês e que ressoavam ante a presença da lua nova e dos vendavais que redemoinhavam entre os muros do átrio onde havia argolas para burros, restos de um torno metálico coberto por uma camada de ferrugem esverdeada e uns tantos vasos esvaziados, embora pejados pela memória dos gerânios e das folhas enroscadas dos gladíolos.

Lembrava-se das águas escurecidas da barragem, desse verde vago de correntes brevíssimas onde o ofício dos remos e os braços abertos dos remadores limavam a sede do tempo. Visto do alto do precipício, era um movimento lento, vagaroso, bastante sincopado. Era como a miniatura de um limbo que progredia do paraíso esquecido até à sombria mansidão que rodeava o pequeno cais da aldeia. Aí, sobre o que sobrava do velho coreto, estava perfilada a banda de uniformes brancos como se fosse um insecto minúsculo cheio de tentáculos esponjosos e envolvido pela espessa poeira avermelhada do fundo da terra.

Lembrava-se ainda da história que a mulher lhe contara. Era um homem que tinha mandado matar o próprio filho, depois de ter feito o mesmo à mãe, uma médica ruiva que pouco exercera e que vivia há alguns anos numa ilha meio despovoada do Fleuve Saint Laurent. Parece que a amante desse homem sem nome sobreviveu a toda esta mortandade mitológica e acabou por se isolar no sul de Marrocos onde inventou, talvez por expiação, uma novíssima vida. E parece que o homem sem nome ainda continua a monte no planeta, talvez em Kandaar, algures no Golfo Pérsico ou no Sudão. Talvez mesmo no inferno. Talvez, quem sabe, diluído nas letras secretas de uma cartilha que terá no altíssimo um presumido autor de luxo.

Lembrava-se tão bem da mulher de sobrancelhas grossas, rosto esguio, cabelos muito encaracolados e dedos tingidos pelo sigilo dos antigos gelos. Depois do avião levantar, a mulher sentou-se a seu lado por mero acaso e contou-lhe a história toda, porque, dizia, não era capaz de calar o que a vida nela decidira guardar. Eram coisas a mais e, desse por onde desse, alguém teria que as ouvir. E Laurentino foi à casa de banho e pensou que estava nos fogos do Arsenal veneziano onde Dante sonhou o seu abnegado inferno, mas viu-se foi quase acossado pela perseguição da amazona que entrou no cubículo e trancou a porta por dentro atrás de si. Garantiu-lhe que era tudo verdade verdadinha e que estivera mesmo com a amante do homem sem nome, no sul de Marrocos, num antigo hotel colonial onde se preparavam coisas muito estranhas. E que, logo que o avião aterrasse, ela mesmo seria alvejada.

Lembrava-se tão bem de ver a mulher a beber uísque e mais uísque no resto das horas da viagem e de alguma santa turbulência aeronáutica. De vez em quando, interrompia o olhar de Nefertiti alheada e tensa para repetir ao ouvido de Laurentino que teria já poucas horas de vida, a não ser que alguém, fosse quem fosse, se dispusesse a ajudá-la. A agitação aumentou, logo que a aterragem foi anunciada e as luzinhas de emergência obrigaram a recolocar os cintos de segurança.

26 Ago 2021

Tropeçar parado

Foto de João Francisco Vilhena

Horta Seca, sexta, 6 Agosto

 

São que nem moscas, as coincidências. De pouco serve sacudi-las (saudades dos verões em que me perdia a vê-las em nuvem no centro das assoalhadas). No exacto momento do reencontro com o Mário [Gomes], o frigorífico que me acompanha desde o século passado resolve resolver-se, como quem diz, desistir. Ora na sequência de uma das conversas com que atravessamos densas planícies e afastadas geografias, lamentando-me eu de não ter atingido a compreensão leitora com o alemão escolar, impedindo-me, portanto, de mergulhar nos seus romances e outras experiências, o Mário propôs-me primeiríssima e prometedora versão de uma «Elegia do Frigorífico». Cruzando ensaio a mostrar costuras e autobiografia a escondê-las, com mestria e ritmo alucinante, interroga-se sobre «o coração da casa», o mais importante dos electrodomésticos da vida moderna (estou confuso, com tanta treva: moderno é hoje?). Será ficção, mas o real exige-nos que os planos se cruzem. São que nem abelhas, as metáforas.

Úteis e quase sempre amistosas. Ou me engano muito ou estará bem conservada em «no frost» esta do frigorífico enquanto modernidade, extensão da habitação, a técnica que conserva a natureza, elemento unificador, termómetro de muitas saúdes. O texto pensa e transpira, o texto ri e dá prazer. O texto desmultiplica-se em micro-histórias, pequenos cubos refrescantes, sonhos. «(Sonho muitas vezes com textos, mas nunca é fácil reconstituí-los depois de acordar. Se me treinasse em sonhos lúcidos, talvez pudesse escrever livros inteiros plagiando os autores imaginários e menos imaginários que escrevem os livros que leio nos sonhos. Seria o crime perfeito.)» A língua resistirá aos ataques de links e hiperlinks? E que uso dá a arte aos móveis do gelo? De que modo vivemos o que habitamos?

«Argumentos contra o frigorífico há muitos, embora não me venha à cabeça nenhum que seja estritamente de ordem estética. Achar que o frigorífico é um objecto pouco bonito, afirmar que não há drama humano no frigorífico, ou suster que antes do frigorífico também nunca houve nenhuma grande obra de arte em que o protagonista fosse um baú ou um lavatório: nada disso são argumentos estéticos, mas apenas o reflexo de falta de sensibilidade. Objecto estético pode ser tudo. Deve ser tudo. Se não andamos sempre às voltas com as mesmas coisas.»

Dei-me por mim, uma noite destas, a lamentar não me ter despedido devidamente – o que quer que isso pudesse ter sido – do Zanussi antes da chegada deste Samsung, redondo a roçar o sensual e sem precisar de produzir massas de gelo para manter o fresco essencial.

Europa, Lisboa, terça, 17 Agosto

O projecto que me riscou o segundo fechamento, o «Diário das Nuvens» (https://abysmo.pt/diario-das-nuvens-de-joao-francisco-vilhena-e-joao-paulo-cotrim/), se por um lado me obrigou a um exercício nunca antes praticado de escrita diária, acabou sendo álibi para o crime exemplar de adiar as tarefas que, apesar do fim do mundo, floresciam assim ervas daninhas. No final daquelas voltas aos 80 dias, sobravam malas por desfazer e roupa para arejar, pdf para carregar e filmes por terminar, de modo a fazer a ligação ao que se seguiria: livro e exposição. A abertura foi depois fissura na barragem e não pararam mais de fluir afazeres em cima da apatia que se erguia montanha rochosa.

Passaram-se meses sem me atrever a voltar ao assunto, aliás, os meses passaram pelos assuntos todos expondo-os em ferida. Até que. Os braços dos moradores de quintos andares estreitaram-se ali a Campo de Ourique, sem batalha nem milagre. Resolvemos resistir à tentação de redefinir o conjunto, limpando arestas, mas com isso perdendo espontaneidade. Dobra aqui, dobra ali, logo o livro e depois a exposição – com primeira e entusiasmante paragem na Livraria de Santiago, em pleno Fólio – ganharam as formas de origami. Para não variar com o João [Francisco Vilhena], lançou-se sobre a mesa cubo de ideias capazes de quebrarem o quebranto, ainda que os planos não parem de brotar em pantagruélico excesso. São mais os olhos que a barriga.

Tomei balanço e fui, então, saltar de nenúfar em nenúfar a ver até onde me mantinha em andamento e para dedicar, já agora, leituras aos objectos capturados e ao que continham de olhar do artista, pois o propósito foi sempre o de entrar na pele e perspectiva das nuvens (estranho não se terem queixado do atrevimento em horas de «cancel culture»). O telefone vibra em descontrolo, ignoro-o com assustadora facilidade e teimo em fixar-me no retrato #70 (algures na página). Que dizer?

«Continua sem prazo de validade a ideia peregrina de que a fotografia se limita a mostrar a bruta realidade, mais real que o real. Tanto nos dá acesso ao que não descortinávamos, no caso do instante pertencer à própria substância do movimento, aquele entre-gestos de que o olho preguiçoso não carece para interpretar a coreografia. E ainda aquela fixidez marmórea permitirá doravante detectar em autópsia os detalhes que nos abrem acesso de corpo inteiro ao que acontece. Pois finge tão completamente que chega a fingir a realidade que deveras vai sendo. Estes tons outonais de souto a celebrar a luz parecem indicar aquele precioso momento do pôr-do-sol. Um dia de cada vez, outra vez. A luz que tomba esvai-se, não indo no real que se esconde no real. Não deixa de conter artimanhas de começos que sobem da raiz do negro aos azuis, os quais, por sua vez, parecem querer dobrar-se sobre andrajos amarelos que fogem, que se soltam, que se desfazem. Que esconde tal comércio das cores entre si e com a luz?

Depois os confins surgem líquidos, indefinidos, insistindo na imaterialidade do conjunto. Alguma vez a pintura se acaba? Se fosse quadro tinha fronteira. Há metafísica bastante e portanto nenhuma em sacrificar a agitação dos afazeres à réstia sublime do desperdício.”

25 Ago 2021

O Jogo das Escondidas – Capítulos 61 ao 70

61

15.

Nas histórias chinesas de amor muitas vezes um ou ambos os amantes morrem ou nunca se juntam. Mesmo assim consideramos isso um final feliz, porque o que conta é a grande paixão que os uniu, algo que a sorte e o destino permitiram, disse calmamente Ding Ling, apesar dos seus olhos estarem estranhamente incandescentes. As suas mãos tremiam um pouco quando passaram pelo corpo deitado à sua frente. A bela Wei Zi ali estava imóvel. No cheongsam que vestia notava-se, à altura do coração, um orifício, sinal visível do punhal que rompera a sua pele e penetrara no coração. Bei Li estava de pé, com os olhos fechados, aparentando uma serenidade que não tinha naquele momento. O tenente Félix Amoroso sentiu um amargo na boca e a sua mão direita cerrou-se. O assassinato de Wei Zi acertara também no coração de Ding Ling. Não sabia como ela iria reagir. Quem a matara? Porquê? O choque emocional ia-se desvanecendo e Amoroso via surgir a visão mais lúcida do facto, mais fria, lógica e racional.
A sua própria vida também estava em jogo.

Wei Zi fora morta dentro da “Noite Tranquila” por um cliente que a acompanhara até aos lugares mais reservados. Ele saíra tranquilamente e, só depois, tinham dado com o corpo dela. O eficaz golpe, que a matara imediatamente, fora obra de um profissional. Era uma vingança. Para pagar o que ela descobrira. Para mostrar a Ding Ling que Max Wolf ou Fu Xian utilizariam todos os meios para espalhar o medo. Para a assustarem, porque sabiam que fora ela que incendiara o armazém onde tinham os seus pacotes de heroína. Perderam muito dinheiro. E a face. E homens como aqueles não tinham duas caras.

– Esta é uma terra em disputa. A partir de agora muita coisa pode acontecer.
As palavras de Ding Ling eram firmes.
– Eu sou boa para aqueles que são bons.

Mulheres como ela têm o poder da persuasão, pensou Amoroso. Os olhos dela estavam cravados nos seus. Ele não baixou os seus. Ela ficou com a convicção que esta não seria ma luta dela. Nem de Bei Li. Seria também dele.

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– Há um tempo para guardar o silêncio. E outro, bem diferente, para actuar. Mesmo o silêncio pode ser uma arma. Importa saber ver, quando mais ninguém o consegue. Isso é que nos traz a vitória. Wei Zi nunca esperou morrer de velha. Dormir com um olho aberto e saber que cada dia pode ser o último, era uma das condições para trabalhar comigo. Ela sabia-o. E não se importou. Os homens podiam atraiçoá-la por um punhado de patacas, os inimigos poderiam seguir os seus passos, mas ela seguiu sempre em frente. Mas não esperava que o seu fim fosse assim. Aqui, na minha própria casa. Com ela cercada de amigos.
Não há intocáveis, pensou Amoroso. Gota a gota enche-e um copo, até que ele transborda. Era o caso. A paciência desaparecera dos olhos de Dng Ling. Mas isso não queria dizer que ela iria deixar-se atraiçoar pelas emoções. Os seus inimigos tentavam-na, mas ela não cairia no seu jogo. Esperaria o momento certo. Ding Ling roçou o seu corpo pelo de Amoroso e começou a andar. Ele seguiu-a até a um local discreto de onde podia ver grande parte do “Noite Tranquila”. Nada parecia estar diferente mas, na realidade, tudo mudara.
– Sabes que a palavra Qing significa claridade ou pureza? E o certo é que aquele que foi o último reinado imperial andes da República nunca foi nada disso. É por isso que sigo Sun Yat-sen. Quero conhecer a pureza que há nas pessoas. Há quem diga que a morte é um mistério. Mas, na realidade, o que é verdadeiramente misterioso é a vida, não achas, querido tenente? Quem somos? O que fazemos aqui? A única certeza que temos é que morreremos. Como é que dizem os católicos? Pó eras, em pó te converterás?
Amoroso via homens a jogar, sem pensar no pó em que se tornariam. Via-os a beber, sem procurarem, no fundo do copo, uma resposta para as suas atitudes. Cobiçavam raparigas que cirandavam entre eles, sem terem remorsos. Ding Ling passou-lhe os dedos pelo pescoço e, depois, tocaram-lhe na orelha. Ficaram ali durante segundos, os suficientes para ele sentir um arrepio de desejo. Olhou-a e ela agarrou-lhe na mão e puxou-o.

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Caminharam os dois até ao pequeno quarto que ele tão bem conhecia. Aí, na escuridão quase completa, Ding Ling abriu o seu cheongsam e deixou-o cair. Ficou completamene nua e aproximou-se dele. Foi-o despindo e quando acabou de lhe tirar as roupas encostou-se a ele. Sentiu o desejo de Amoroso. Afastou-o e ficou a olhar para ele, até ue se deitou na cama e lhe fez sinal para que ele se colocasse em cma dela. Ding Ling entregou o seu corpo, vibrante, mas os seus olhos estavam molhados. O prazer misturava-se com a dor, num daqueles mometos em que a bondade e a maldade travam um duelo final. Naquele momento Amoroso percebeu que entre ele e ela não havia absolutamente nada, excepto a obstinada independência dela. O laço forjado no passado deve amarrar-nos mais do que um juramento, sussurrou ela. E ele tinha a certeza disso.

16.

O mundo está cheio de ciladas. Aprendemos a viver com elas e a utilizá-las. Sabe-nos bem, quando os outros caem nelas. Clamamos contra a injustiça, quando elas nos fazem tropeçar. Joaquim Palha sentia-se atraiçoado pelo destino. A estratégia fora cuidadosamente montada, desde há muitos anos. Tudo corria bem, dentro da ambiguidade onde se movia como um dançarino. Saber dançar como poucos ajudara-o no mundo dos negócios e da política. Conhecia os ritmos todos, os compassos de espera, a força de fazer bailar o seu par. Mas há sempre algo que não se controla. E isso só poderia ser devido a uma traição. Alguém o traíra, ele que estava habituado a enganar os outros. Não era justo, pensou Joaquim José Palha. Os dedos contorceram-se e as unhas, bem tratadas, cravaram-se na carne. Para doer. Para perceber que tudo o que estava a acontecer era real. Traídos. Joaquim Palha amaldiçoou o mundo por ser assim. Esqueceu-se, claro, de pensar que ele era construído por pessoas como ele. Max Wolf andava na sala, de um lado para o outro. A sua face estava vermelha e a respiração parecia indicar alguém que estava prestes a deixar sair os pulmões pela boca. Por fim, explodiu:
– Tem a noção real do que aconteceu?

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Os olhares dos dois cruzaram-se, como num duelo. Nenhum deu parte de fraco. No escritório de Palha fez-se um silêncio ensurdecedor. Este mudou de posição na cadeira, num esforço inútil pra ficar confortável depois de ouvir as notícias que Wolf lhe trouxera e que confirmavam os rumores que que se escutavam junto ao edifício do Leal Senado. Todo o castelo de cartas que tinham construído nos últimos meses desmoronava-se defronte dos seus olhos. Primeiro, tinham ficado sem a heroína, que se desintegrara em cinzas. Agora o assalto ao vapor correra mal. Tudo correra ao contrário do planeado. Quando Wolf lhe começou a dizer o que se passara, Palha arregalara os olhos, como se estivesse diante de um fantasma:
– Não pode ser!
Mas era. Wolf, fora de si, só abanava a cabeça e cerrou os lábios. Não havia muito a dizer. E o melhor era não tentar dizê-lo, apesar dos esforços de Palha para o fazer falar. Por fim, foi dizendo:
– O que sei foi que se fez o assalto ao vapor Sui-An, como estava planeado. Este partiu de Macau e dirigia-se a Hong Kong. Não era a primeira vez que os piratas o tomavam e roubavam o que havia de valor a bordo. A tripulação estava habituada as estes infortúnios e, para salvar a pele, deixava-se ficar tranquila. Mas, desta vez, como sabíamosmos, o barco levava algo especial: o cofre com dinheiro e ouro que tinha como destino o Hong Kong Shanghai Banking Corporation. Era uma verba considerável que alguns comrerciantes de Macau queriam transferir para Hong Kong e por isso a sua segurança revestiu-se de cuidados especiais. Iam vários guardas armados a vigiá-lo. Sabíamos tudo isso. Como estava planeado, as lorchas de Fu Xian surgiram de repente e cercaram o vapor. O funcionário do Banco Nacional Ultramarino, que seguia a bordo, estava confiante no poder de fogo dos seguranças, mas, para espanto deste, estes nada fizeram e os nossos homens ocuparam o navio.
– Até aí nada de novo. Era essa a nossa estratégia delineada com Fu Xian. Os homens da segurança tinham sido substituídos por fiéis nossos ou subornados. Mas o que é que sucedeu a seguir?


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Wolf encolheu os ombros.
– Só há relatos contraditórios de alguns passageiros e do funcionário do BNU. Mas o que se percebe é que uma série de passageiros tiraram as armas que tinham escondidas na roupa e os seguranças que eram homens de Fu Xian viraram as suas espingardas e pistolas contra os piratas deste e cmeçaram a disparar. Mataram-nos todos. Não queriam testemunhas. Quem podia contar algo, morreu. A polícia portuguesa está no Porto Interior a ouvir os passageiros. Mas a maioria está confusa ou, então, cala-se. Quem lá está também é aquele teu amigo, o tenente Amoroso.
Palha não acusou a indirecta e questionou:
– Isso não faz qualquer sentido. E Fu Xian?
– Pelo que consegui saber também foi morto. Os piratas e os seguranças levaram o seu corpo para as lorchas deste, assim como o cofre, e desapareceram rumo a uma das ilhas que há por ali.
Palha perdera, naquele momento, a serenidade:
– Quem são estes homens? São de Ding Ling?
– Ninguém sabe. A polícia está a investigar. Mas é como te digo, deveriam ser. Ou de outra tríade. Sei lá. Quem sabe ou está morto ou desapareceu.
Palha rosnou:
– Deve ser uma vingança dela. Puxámos demasiado a corda. E matar a miúda chinesa também não ajudou. Mas foi ideia de Fu Xian. E não podíamos dizer que não. Foi demasiado sangue. Mas como é que ela conseguiu subornar os homens de Fu Xian? Em caso de sarilhos aqui é fácil subornar a polícia. Mas comprar os homens de Xian…
Tentou fazer um sorriso conspirativo, mas estava demasiado nervoso para isso. E tudo resultou num esgar rancoroso.
– E agora?
– Tenha calma, doutor Palha.
Este revolveu o corpo na cadeira. Wolf continuou:
– Eu vou voltar para Xangai. Preciso de falar com os meus sócios. Explicar-lhes o desapaecimento da heroína. E também não tenho dinheiro para lhes levar. Contava com os valores que estavam no cofre.
– E eu?
Max Wolf fez um olhar sórdido:
– Tu? Que achas? Não há-de faltar muito tempo para o teu querido tenente aparecer aí para te prender. Se ainda aqui estiveres. Essa, de resto, foi uma bela ideia tua. Suborná-lo…
– Ele parecia estar convencido.
– Parecia. Deve ter sabido o que planeávamos. E deve estar conluiado com aquela bruxa chinesa.

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Palha estava embaraçado. Wolf não confiava nele. Nunca confiara. Agora largava-o como caça, enquanto ele fugia. O alemão talvez tisse certezas. Daquelas que resolvia com uma pistola. Não lhe era conveniente confrontá-lo.
– A guerra é a guerra. Alguma vez combateu, doutor Palha?
– Eu? Nunca.
– Eu estive na guerra. Combati em França. Nas trincheiras. Escondia-me enquanto os obuses passavam por cima de mim ou explodiam ao meu lado. Vi morrer muita gente. Hoje não me faz confusão. Temos é de manter os olhos abertos e saber sobreviver. É isso que planeio fazer. Voltarei.
Palha franziu a testa.
– Desaparecer é a melhor opção. Vou deixá-lo, doutor Palha. Tenha um resto de bom dia.
Ao dizer isto, piscou um olho. E desapareceu. Palha ficou atónito. Tinha de tomar uma decisão rápida. O tempo corria depressa. Demasiado, para o seu gosto.

17.

O sol ainda não se tinha posto quando Félix Amoroso chegou ao “Noite Tranquila”. Li Bei esperava-o. Ele sabia porquê. Os seus espiões eram mais rápidos do que ele. A luz, à entrada, era melancólica, como se aquela fosse uma noite como as outras. Não era. Lutar e não ceder, era o que transmitiam os olhos dela por detrás do seu ar enigmático e doçura meditativa. Parecia ter o sorriso de uma estátua em jade de um Buda khmer que lhe tinham trazido da Indochina. E que ele guardava no seu quarto. Ela aproximou-se dele e disse:
– A vida é amoral. E é sempre violenta. Por vezes temos de atacar não apenas as forças do inimigo, mas a sua força moral. É aí que verdadeiramente vencemos.
Não esperava resposta. Fez-lhe sinal para que o seguisse até à sala onde estava Ding Ling. Também ali a luz era mortiça, e não deixava ver bem os contornos da face dela. Mas Amoroso não duvidava que a serenidade, a sensualidade e a sensação de dever cumprido se uniam no seu olhar. Ela aproximou-se e finalmente Amoroso conseguiu ter uma imagem mais nítida da cara dela. Nunca lhe parecera tão bela e radiante. Ele tocou-lhe, como se ela fosse irreal. Não era. Sentia o calor do corpo de Ding Ling, a milímetros do seu. Dela imanava uma força que o invadia e conquistava.
Ding Ling, naquele momento, era a civilização chinesa no seu esplendor: a harmonia pura. Tentou afastar a magia que o deixava inerte:

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– Como boa deusa, a Fortuna, esteve do lado dos deuses.
– Esteve. Tal como nas melhores óperas de Cantão, as máscaras que usámos representaram diferentes emoções até atingirmos o nosso objectivo. Encenámos da melhor maneira a nobre arte da paciência e do engano. Quando julgavam vencer, os traidores foram vencidos. E com eles desmoronou-se o sonho de Max Wolf e dos alemães. Não há ouro e dinheiro para subornar, nem heroína para corromper. Os portugueses ficariam felizes se algum dia soubessem o que fizémos. Com a heroína Wolf teria conquistado o submundo de Macau e o poder ruiria sem disparar um tiro. Quem controla a escuridão, domina a luz que os outros julgam ser sua. Os alemães teriam Macau, mesmo que em Santa Sancha existisse uma bandeira portuguesa.
Ding Ling aproximou os seus lábios dos de Amoroso. Bei Li observava, muito perto. Os seus corpos pareciam sombras inertes, mas repletas de vida por dentro.
– Sem ti, querido tenente, não teríamos conseguido uma vitória justa. O inimigo não se teria distraído o suficiente. Não teria achado que, por matarem os que nos são queridos, quebraríamos como um tronco de madeira. Somos feitos de bambu. Vergamos. Não quebramos.
A voz de Bei Li não quebrou o encantamento:
– Muitas das histórias que terás escutado talvez tenham ofuscado as tuas ideias, tenente Amoroso. Agora que a luta terminou, não tens de ter receio de nenhuma de nós. Apesar de ela também ser a tua batalha. Era a escolha do nosso verdadeiro inimigo. Do teu verdadeiro inimigo.
O seus olhos fecharam-se, como se a ténue luz lhe ferisse a visão. Continuou:
– Tinham fraquezas. Os homens de Fu Xian sempre estiveram à venda. São mercenários, que escutavam promessas de riqueza. E, até agora, viam poucas recompensas. Não confiamos neles. E eles não confiam em ninguém. Só no dinheiro que lhes pagámos.
– Todos temos as nossas dúvidas, gentil Bei Li. Duvidamos de nós. Da justiça. Dos outros. Do bondade do mundo.
Bei Li sorriu. A sua missão agora tinha terminado. Disse apenas:
– Pensas em espiões, não é, querido tenente? Nós não precisamos de espiões, enquanto a verdadeira China existir. É melhor ter amigos.


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Fechou os olhos e rodou o corpo, confundindo-se com a penumbra. Amoroso, que voltara a olhar para Ding Ling, não a ouviu sair da sala. Esta disse:
– Quem vem da escuridão tem mais resistência ao sofrimento. E nós voamos lado a lado. Não o esqueças.
– As deusas quebram promessas?
– Nunca o fiz e nunca o farei, seja por força do Bem ou do Mal. Sabes que a minha missão é ajudar Sun Yat-sen. Contra as potências que retalham a China. Contra os seus inimigos internos. Só isso. Estou serena. As sombras podem agora dançar à volta da alma de Zu Wei.
Os seus lábios tocaram os de Amoroso. As suas mãos percorreram o corpo deste. Muitos minutos depois, estavam juntos na cama. A luz deixava ver os bilhantes olhos dela e os lábios cerrados. Parecia estar prestes a chorar mas isso, claro, não aconteceu. Ele passou a mão pelas costas dela e foi descendo até encontrar o início das pernas. Mas Ding Ling agarrou-lhe na mão e levou-a até junto ao seu seio, não o deixando mexer-se. Ficaram assim a olhar um para o outro, pensando no que queriam fazer a seguir. Tudo ou nada? Troca os meus desejos pelos teus, parecia dizer ela. O desafio era intolerável e o seu corpo sabia. Afastou a mão e comprimiu o seu corpo contra o dele. O sol passava entre duas nuvens e mostrava o seu esplendor. Era uma metáfora queDing Ling muitas vezes partilhava com ele, quando, após um momento de tristeza e incerteza, a energia renascia e a tentação do sexo estava viva. Era o que estava a acontecer, enquanto os seus corpos chocavam e ambos murmuravam coisas que ninguém percebia. Naquele momento o rosto de Ding Ling era meigo e simples, como se não tivesse nada a esconder. E, no entanto, ambos sabiam o segredo que compartilhavam. E de que nunca mais tinham falado.

18.

Sofia Palha conhecia a versão mais tortuosa de Joaquim José. Se dissesse que mentira, não estava a mentir. Se dissesse que não mentira, estaria a mentir. Não importava agora. Os seus sonhos estavam comprometidos, pelo menos em Macau. Ela poderia dizer que não sabia de nada. O seu único ponto fraco era a relação com João Carlos da Silva. Tudo o resto eram suposições, teorias, imaginação. Não existiam provas. Enquanto se dirigia para o escritório do seu marido, arquitectava um plano.

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Para Joaquim Palha a derrota de Fu Xian e de Max Wolf deixara-o num beco sem saída. Tinha agora a certeza que o tenente Amoroso fizera o jogo dos seus inimigos, o Governador e Ding Ling. Como conseguira ele ser tão dúplice? Max avisara-o para não confiar nele. E Sofia, que sabia ler os homens como ninguém, também. Mas ele confiara nas suas capacidades de persuasão, testadas durante anos em Macau com os melhores resultados. Sabia que nada contara a Félix Amoroso sobre o que planeavam fazer. Como teria ele descoberto?
O seu caminho estava agora bloqueado. A discussão com Max Wolf mostrara-lhe que lhe restava pouco espaço de manobra: ou o ódio dos governantes ou o desprezo dos seus opositores. Ou se fazia invisível ou seria erradicado. Que fazer? Fugir de Macau? Meios não lhe faltavam para fazer isso, mas seria era a vida que coroaria todos os seus sonhos? Poderia sobreviver a tudo mas não ao gozo dos seus antigos amigos, que se rapidamente tornariam inimigos. Poderia voltar a Portugal e recomeçar de novo. Mas as notícias chegariam a qualquer parte. Renegar o amor à pátria onde nascera e aliar-se a um alemão para conseguir benefícios contra os interesses de Portugal, quaisquer que estes fossem, não tinham forma de ser apagados. Os mexericos venceriam o que dissesse para se defender. Regressar a Portugal era impossível. Restava-lhe fugir para uma cidade qualquer da Ásia. Ou então tomar a decisão final.
Quando Sofia Palha chegou ao escritório de Joaquim este estava deitado de forma grotesca na cadeira. A pistola caíra para o chão. A cabeça tinha sofrido o impacto da bala que o matara. Nada a impressionava. Quando soube o que acontecera no vapor, Sofia sabia que se tinha despoletado o início de um caminho trágico. Não havia remédio. Ficara em casa e abrira uma garrafa de vinho tinto Periquita e fora bebendo e olhando pela janela, de onde se viam as águas calmas do mar. Assim esteve até ao momento em que recebeu a mensagem da secretária de Joaquim a dizer-lhe o que tinha acontecido. Foi como um relâmpago que interrompeu a sua letargia.

70

Tinha construído uma ficção de vida. Até aí pensava habitar num mundo ordenado, estável, que ela própria ajudara a construir com precisão matemática. Tinha um fim previsto. Os meios para lá chegar poderiam ser pouco morais, mas o poder ou o dinheiro nunca se tinham preocupado com pormenores dispensáveis. Todos, conhecidos, amigos, aliados, eram peões de um jogo mais vasto. A sua fria ambição permitira-lhe guiar as ideias e as acções de Joaquim José. Mas a tempestade regressara forte, como sempre acontecia em Macau. Devia ter antecipado possíveis acontecimentos futuros que pudessem fugir às suas rédeas. Só que era impossível suster o vento com as mãos e os furacões surgiam do nada, indomáveis. Em Macau deixavam sempre um rasto de destruição.
Vasculhou as gavetas da secretária de Joaquim, mas nada de incriminatório encontrou. Depois ordenou que informassem a polícia do que se passara e voltou a casa. Sentou-se defronte do espelho e vislumbrou-se demoradamente. Continuava bonita e atraente. Era ainda capaz de conquistar qualquer homem. Talvez o seu futuro não estivesse completamente traçado. Estranhamente não sentira nada perante o corpo de Joaquim. Reagira como se se tivesse libertado de um fardo. Agora só tinha a certeza que o mundo de amáveis monotonias tinha-se esfumado. Sentia isso, mas não chorava. Só quando o amor não existe é que se costuma sentir a sua ausência, pensou. Só lhe interessara, até aí, o luxo do domínio e do poder. Odiava o tenente Amoroso, o Governador e a sua mulher, Max e as suas promessas, a sinuosa chinesa Ding Ling. Odiava Macau. Suportara aquela cidade porque queria voltar a Lisboa como uma senhora rica e poderosa. Franziu a testa. Talvez ainda fosse possível. Afinal, para ela, o adversário de hoje poderia ser o correligionário de amanhã. O amigo de amanhã podia ser o inimigo de hoje. Seguiria o ritmo do vento, conforme soprassem as circunstâncias e as conveniências. Um dia Joaquim dissera-lhe que ela tinha menos luzes do que um barco pirata. Sorriu com o pensamento.

(continua)

20 Ago 2021

O que nos distingue dos animais?

Como transmite o anjo? As formas de comunicação angélica distinguem-se dos modos de ver e de apreensão sensíveis, e o anjo testemunha o mistério na sua forma mistérica, transmite o invisível enquanto invisível, não o atraiçoa com os sentidos.

Resiste o infinito, aos olhos do anjo, a ser desonerado. O anjo actua como um espelho, certamente, mas da pureza do silêncio e do mistério de Deus.

E mesmo que o homem se encontre num estado de não-dualidade, num estado de “enosis” (de fusão entre o sujeito e o objecto), a contemplação da Verdade, impossível de alcançar discursivamente, segundo o místico Angelus Silesius, só se produz por contágio: «Deus habita uma luz a que nenhuma estrada conduz; quem não se converte em luz, não o vê em toda a eternidade».

O que o poeta Holderlin corroborou ao escrever: «creem no divino/ só aqueles que o são».
Mas gostaria de associar a isto uma ideia atrevida do filósofo Rafael Argullol: «A ideia mais audaz que pode conceber-se é a de um infinito que, enamorado da nossa vida, só através desta tenha a sua razão de ser.»

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Do alto da sua pureza, lastimava Breton a Voznessenski que o Cocteau desse cabo da sua poesia, e exemplificava, horrorizado: «La guitare, bidet qui chante.»

Entretanto, leio no controverso Richard Millet: «O poder literário da América reside menos nas virtudes da língua inglesa ou nas qualidades de seus escritores do que no engenho destes em apoiar-se numa paisagem natural ou urbana das quais o cinema (primeiro, e agora também a televisão) definiu o cenário e que não existiria mais sem a sétima arte. Portanto, trata-se antes de evocar um regime literário audiovisual ao invés de uma verdadeira literatura – com excepção, é claro, daqueles escritores que consideramos como tal e não como americanos» E acho que ele tem razão: «La télé, bidet qui chante».

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Um escritor amigo propôs a uma editora um romance de sua autoria. Enviou por e-mail. Passados 3 (três) minutos, obteve a sua resposta:

“Boa tarde, Obrigado pelo seu contacto. Não estamos a aceitar originais. Cumprimentos, JM” (sic)»
“Ao menos foram rápidos”, observou o meu amigo.

Nunca houve despacho maior. Parece uma ficção: um gajo leva um ano a empobrecer a si e aos seus até à quarta geração da sua genealogia para escrever em letras duradouras a sua noveleta, mete no prego o último ourito da mulher para irem comemorar o triunfo da palavra FIM, e, antes de se banquetearem com um rodízio brasileiro, a família em meia-lua assiste ao envio do e-mail para a editora com o futuro estampado a ouro no anexo.

E quando regressam do jantar, onde gastaram a massa de uma semana, a editora já tinha respondido: não estamos a aceitar originais.
É caso para perguntar: as editoras vivem de quê, afinal?

Mudou muito, desde que o Garcia Marquez, sem dinheiro para enviar o manuscrito de Cem Anos de Solidão, meteu nos correios só metade do manuscrito.

Como é que uma editora responde à cabeça: não estamos a aceitar originais? Uma mercearia pode não aceitar batatas, legumes, pêssegos carecas? Um clube de futebol pode não aceitar golos?
Antes o erro humano de Camus que rejeitou a edição de Pessoa na Gallimard.

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A palavra crivada de caroços, a palavra quarto-minguante, a palavra que desincha o nevoeiro; a palavra que adoça os citrinos, a que revela corredores, patamares, lances de escada quando se desdobra numa algazarra, a palavra que nunca se confessa, a palavra de inúmeros pedúnculos, a extensa palavra… perdão!; a que o meu pai não disse antes de morrer, a palavra que só entre aspas desaperta o colarinho, a que vive no sobrolho da raposa; a palavra que não se enxerga, nem quando mete a mão no lume, a palavra que seca num átimo e que sorveu um lago na Suíça, a palavra que ilumina por dntro o mel, a palavra que suicida os cemitérios, a palavra chuva, que quanto mais se adensa mais azula as nuvens, a palavra nítido nulo, a palavra martelada por presságios e a palavra lesionada: dez músculos estirados contra os onze do atrito; a palavra que surripia os arrepios e nunca se sabe para onde os carrega, a palavra que deseduca os figos, fazendo-os cair; a palavra que rói as unhas até ao sabugo; a palavra que croma o vento e se aposenta em bolinhas de cânfora, a palavra assobiada por dois incisivos separados, a palavra cunhada e amante do cunhado, a palavra que ventila a narina do ácaro e a narina das mariposas, a palavra de hulha que tossiu o mês inteiro e a que desafinou junto à campa de minha mãe; a palavra que pesquei em Esmirna, na Turquia, com quatro quilos e meio; a palavra que nunca viu o mar e alucina com a pacatez dos legumes; a
palavra que abre a China ao meio como os polegares a laranja; a palavra desaustinadamente terna; palavra com duas gemas por pão, a palavra que amo e por decoro nunca pronunciei, a palavra convertida em confetti e a palavra que lavra Rá

seguem de perto o meu silêncio.

//
O que nos distingue dos animais?
Antes da invenção dos nomes, para Adão dizer a Eva, És tola como um jumento, ele teria de agarrar na sua cara-metade e de perambular pelo Éden à cata de jumento para apontar a criatura e pôr-se a grunhir, aos pulos, enquanto mimava caretas idiotas, para que ela entendesse e então decidisse se o escoiceava nas partes ou não. Agora é mais simples, ele regozija-se, com ironia, “Sou um homem de sorte… em relação ao jumento és muito mais bonita!”, e ela replica, “E se fosses levar nos entrefolhos!?”. E em cima passa o urubu, soberano.

19 Ago 2021

Abrir corações

Paredes de Coura, quarta, 10 Agosto

Calhou que a primeira saída de Lisboa – e quem diz Lisboa, diz casa – em mais de um ano tenha sido a esta terra no coração do Norte (E do palavrão: pontuar cada frase com um sonoro caralho ajuda a mudar a cor de algumas faces e o alinhamento dos pensamentos de risco ao meio.) Integrado em Ciclo de Polinização, o concerto que fechou o dia da terra esteve na boca e gesto dos «No Precipício Era o Verbo». Não sei se alguma vez se aplicará à polinização, mas estou em crer que exactamente ali, no límpido lugar inicial e a pretexto do «Realizar: Poesia», se fechou um ciclo. O que começou por ser dança entre o contrabaixo do Carlos [Barretto] e as palavras, sobretudo do Zé [Anjos], mas também do António [de Castro Caeiro] e do André [Gago], foi ganhando complexidades, convocou as interpretações do André [da Loba] e tornou-se objecto-livro com cd, que recolhe o mistério de um redondo conceito. Na viagem pusemos a rodar também o disco, que há muito não ouvia. E surpreendi-me com a maturidade sobrante, na evocação de várias infâncias e fragilidades, no prenúncio de dias difíceis, de múltiplas doenças correndo a urbe.

Apraz-me bastante este acompanhamento dos ensaios, a mecânica dos bastidores, a tentativa e erro, a fragilidade de cada recomeço, um estar por dentro, mas perto da porta, talvez à janela. Desta matéria intermitente se faz a carne do editor: está e não está. Sempre na dúvida se traz com ele algum pólen. (Algures na página, foto da Graça [Ezequiel] que acende e apaga as luzes dos poscénios).

Apesar do sólido espectáculo no coração da cidade-campo que é o coração do Norte, ficou claro que está na altura de semear e logo colher novo repertório, fazendo evoluir o conceito, integrando a imagem enquanto instrumento em diálogo, multiplicando, ainda e sempre, as possibilidades. Nestes cinco anos, foram muitos os projectos de palavra dita em palco em diálogo de muitos modos com a música e este verbo em partilha contribuiu sonoramente para abrir precipícios. Há agora que ouvir o pulsar dos caminhos de cada um dos por aqui andam nas cordas (vocais, do contrabaixo, cabos de navio, arames de funâmbulo). Paira por aqui uma alma, talvez penada, que seria pena deixar desvanecer, tal a neblina das madrugadas semeadoras.

Este caloroso lugar rima bem com ideias tocadas assim, pela naturalidade com que cruza cultura com território, o relâmpago com o quotidiano. Não outro lugar onde as culturas várias se polinizem deste modo inspirado. Há sempre novo projecto a fervilhar e oiço agora o da «Orelha», centro que partirá do som para criar educação. Tenho para mim que o Vítor [Paulo Pereira] cultivou a presidência da Câmara como se um carvalho na serra se tratasse. Passam estações e fogos, secas e tempestades, e continua emitindo aqueles magníficos tons vermelho vivo da sua folhagem, mudando ao sabor e saber do dia. E a erguer-se na paisagem, acolhendo quem perto habita. Ou os bichos que passam.

Horta Seca, Lisboa, sexta, 13 Agosto

Cheguei a gostar das sextas-treze, por trazerem à nascença arrepio de uma qualquer possibilidade, um desarrumo no tráfego da rotina. Volto a não gostar desta sexta-treze por vir prenha da morte do Gaspar. Na mania das arrumações perguntamos a raça do animal crendo que tal basta para encerrar a diferença, ficando a saber o que esperar. Um perdigueiro gosta de correr, faz-se família e cheira no ar promessas e vítimas. Dura pouco mais que uma década.

Nada mais falso, a cada bicho a sua personalidade, a cada mão no lombo um distinto comportamento. O Gaspar gastou várias vidas, uma de cada vez que mudou de casa, outras esquecidas nas planícies corridas em mar e terra.

Foi um companheiro que deu assistência cuidada às jam sessions, aos improvisos, às discussões, poemas de imprevisto e aos preparados, que celebrou golos e roubou petiscos, sabia pousar o focinho no joelho e o olhar nos olhos, ladrou aos astros e lambeu os tristes, aconchegou autores adormecidos e calcorreou as noites e as festas.

Alegria da bruta, reservava-ma só para quando nos encontrávamos em contexto doméstico. Na rua, havia mais que fazer, bastava educada mas rasgada saudação com o chicote da cauda. Depois, respeitava melhor quem dele cuidava. Para variar, comigo partilhou as cervejas e as liberdades. Quando os exageros se alinhavam andávamos com menos patas no chão. Fizemos uma praia inteira a grande velocidade em noite memorável quando o mar ardeu em ardências. Perdemo-nos no obscuro. Não era cão, era o Gaspar. Saravá, Gaspar!

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 15 Agosto

Semeando metáforas à toa, enquanto vou rasgando pele nas silvas o que colho por ora são amoras, páro gastando a vista na leitura da mais enigmática das imagens: recebo em bêbada alegria ecografias, dadas como cartas de jogar, ases de copas pulsando no escuro os nomes, tanta menina e um puto que vem anunciando já coração. Coincidem nas horas, mas contêm tempos diferentes, e nem por instantes apagam a bossa nova que anunciam. Vai de arrastar pé e lançar braços ao céu. Brilham as grávidas de tal modo que os semáforos hesitam na função, Vénus despiu as lantejoulas, só a sábia Lua insiste em ser espelho das muitas fases que se anunciam. Arrastem-se os pés, afinem-se os instrumentos, encham-se os copos. Que sejam curtas as horas, tratem agora de dar a volta para assumir posição.

Mil olhos postos e entretidos nos entretons das massas pulsantes de branco e negro, um nó de horizontes a definir as formas deste alguém. Estamos de esperanças, enfim um contra-ciclo de polinização.

18 Ago 2021

As Viagens de Gulliver – sexta parte

A despeito de haver momentos em que Swift parece afunilar a sua apresentação, isto é, parece reconduzir os habitantes de Laputa não à imagem de todos os humanos de um modo de ser de alguns humanos – como quando escreve «É verdade que muitas vezes notei esta característica nos matemáticos europeus» (154) ou «Ignoram completamente o que seja imaginação, fantasia e invenção, a ponto de não existirem no seu idioma que definam aquelas ideias.» (154) –, a verdade é que se trata de um mapeamento do humano nas suas diversas apresentações, não apenas no sentido ontológico, como na denúncia da curiosidade, da ambiguidade, do falatório, do esquecermo-nos de nós mesmos, mas também na fragmentação comportamental do humano, isto é, os humanos nos seus diversos afazeres e grupos. Nesta terceira parte, além de encetar esta apresentação do humano por dentro, isto é, do humano enquanto ser humano, quer em sentido ontológico quer em sentido comportamental, Swift prepara-nos também para a desmontagem da maior das nossas ilusões: a de que somos animais racionais. E ser esta a definição que nos distingue de todos os demais seres vivos. Para além de não ser verdade, Swift ironicamente ainda nos apresenta isto através de uma inversão completa do nosso ponto de vista, a saber, mostra que existem seres que são realmente racionais, contrariamente a nós, e que têm a forma de cavalo. Swift traça uma completa inversão no ponto de vista. Leia-se como termina o capítulo III desta quarta parte: «Disse-lhe [ao príncipe] ainda que, se a sorte me levasse de volta ao meu país, a fim de relatar as minhas viagens – como era minha intenção –, todos pensariam que eu dissera uma coisa que não existia; que eu inventara toda a história; e que, com todo o respeito que lhe devia, assim como à sua família e amigos, e sob a sua promessa de que não se ofenderia, os meus compatriotas dificilmente acreditariam na existência de um país em que um houyhnhnm fosse um ser superior e um yahoo uma besta.» (224-5)

Ao conduzir-nos por esta inversão, aquilo que Swift nos diz e mostra com muito rigor é uma diferença absoluta entre ser racional e ter razão. Nós temos razão como alguém tem um carro. Mas ter um carro, por um lado não faz dele um ser automóvel e, por outro, também não faz com que ele use sempre o carro. É assim com a razão. Se fôssemos realmente seres racionais nunca faríamos ou diríamos algo que contrariasse esse modo de ser, isto é, nunca sairíamos da razão. Mas não é isso que acontece com o humano. Nós somos muito mais parecidos com os yahoos, da quarta parte do livro, e com os habitantes de Laputa, da terceira parte, do que com aqueles cavalos racionais.

Comecemos por ver duas passagens. A primeira é quando Gulliver fala ao príncipe acerca da natureza das guerras, tão comuns no mundo de onde vem, e das suas atrocidades, lemos: «Mas quando uma criatura com pretensões a racional era capaz de tantas enormidades, assaltava-o o terror de que a corrupção desta faculdade [razão] fosse pior do que a própria brutalidade. Por conseguinte, deu-me a impressão de estar convencido de que, em vez de raciocínio, nós tínhamos somente qualquer qualidade apropriada para aumentar os nossos vícios naturais, assim como o reflexo dado por um rio de corrente agitada nos dá a imagem de um corpo disforme, não só de maiores dimensões como também profundamente alterado.» (234) A segunda passagem tem a ver com a incapacidade do príncipe em compreender as inúmeras doenças que causamos a nós mesmos. Leia-se: «Disse-lhe que nos alimentávamos de mil coisas que operavam de maneira contraditória, que comíamos quando não estávamos com fome, e bebíamos sem a menor provocação da sede, que nos sentávamos noites inteiras ingerindo licores fortes, tendo o estômago vazio, o que nos predispunha para a indolência, inflamava os nossos corpos e precipitava ou impedia a digestão.» (239)

O que está aqui em causa é a incapacidade de o humano ser coerente com a razão, isto é, de ser racional. A despeito de alguma coisa nos fazer mal, e nós sabermos disso, ou que nos possa vir a fazer mal, nós não a deixamos de fazer ou de ingerir. Ora, segundo o ponto de vista da razão isso é absurdo, uma contradição inaceitável. No fundo, estamos perante aquilo que era o projecto dos estóicos, em que o humano se propunha a agir em concordância com o que pensava. O estóico é aquilo que pensa. Ou seja, contrariamente à maioria das pessoas, o estóico sabe que o tabaco faz mal e não fuma, sabe que não se deve enganar os outros e não engana, sabe que não deve entregar-se às paixões e não se entrega. Para o estóico o conhecimento faz sentido, isto é, o conhecimento que tem do mundo e da mecânica do humano fá-lo agir em concordância com esse conhecimento. Ou seja, o estóico diz «assim devo agir e assim vou agir». Pensamento e vontade unem-se. É o que mais se aproxima de uma filosofia ética racional.

Evidentemente, também poderíamos falar dos epicuristas. Tanto epicurismo quanto estoicismo são filosofias de ascese. Mas estas filosofias ascéticas e racionais advinham, contudo, do conhecimento da mecânica da alma humana. Mais os epicuristas, evidentemente. Será com Kant, na sua Crítica da Razão Prática que a razão se torna um mandamento, isto é, um a priori transcendental, a priori do humano, e não uma consequência do conhecimento da mecânica da alma humana. Ou seja, do mesmo modo que para houyhnhnms ir contra a razão é uma auto-contradição, assim aparece em Kant. O filósofo que mais nos mostra o ponto de vista deste povo de cavalos é precisamente o filósofo alemão de Könisgberg. Aquilo que faz com que não sejamos auto-contraditórios é o que Kant chama imperativo categórico. O imperativo categórico exige que cada um de nós aja apenas segundo uma máxima que possa ser uma lei universal. Exercer uma acção contrária a uma máxima universal, isto é, a uma máxima que seja boa para todos, que não prejudique ninguém, conduz ao absurdo. O exemplo mais conhecido de Kant é também aquele que podemos encontrar ao longo de toda a quarta parte do livro de Swift. Pergunta Kant: «Poderia alguém mentir em seu benefício ou de um ente querido ou em favor de toda a humanidade sem cair em contradição?» A resposta é: «Não, pois a mentira não pode ser uma máxima universal.» O imperativo categórico em Kant é uma forma a priori, pura, independente do útil ou do prejudicial. É uma escolha voluntária racional, por finalidade e não por causalidade. A razão é a condição a priori da vontade. O humano enquanto ser racional que é não pode ir contra o imperativo categórico sem que deixe de ser racional. No fundo, Kant descreve o mundo dos houyhnhnms e não o nosso mundo, que é muito mais próximo dos laputaneanos e dos yahoos.

Veja-se esta célebre passagem de Swift: «Como estes nobres houyhnhnms são dotados pela Natureza de uma tendência geral para as virtudes, e não fazem a menor ideia do que seja o mal numa criatura racional, a sua máxima principal é o cultivo da razão, que deve governá-los inteiramente. Não obstante, a razão não constitui, entre eles, uma questão problemática, como entre nós, onde os homens podem arguir com plausibilidade ambos os lados de uma questão; entre eles a razão é uma convicção imediata, como deveria sempre ser quando não é deturpada, obscurecida ou descolorida pela paixão e pelo interesse. Lembro-me que tive a maior dificuldade de explicar ao meu amo o significado da palavra “opinião”, ou como é que um determinado ponto pode ser discutido, uma vez que a razão nos ensina a afirmar ou negar somente as coisas de que estamos absolutamente certos, e não nos é possível tomar quaisquer atitudes nas questões que ficam além dos nossos conhecimentos.» (252) Esta passagem mostra claramente esta distinção entre os seres racionais que são os houyhnhnms, tal como na filosofia prática de Kant, e nós. Por incrível que pareça, há uma passagem ainda mais pertinente e mais próxima da filosofia de Kant. Leia-se já no capítulo X: «[…] eles não concebem que uma criatura racional possa ser obrigada, mas sim aconselhada ou exortada, porque ninguém pode desobedecer à razão sem renunciar ao direito de ser considerado uma criatura racional.» (265) Ser racional e ter razão não só não são uma e a mesma coisa como estão a anos-luz de distância.

Ainda nesta senda, leia-se no início do capítulo VII: «Talvez o leitor se admire do retrato livre que me decidi a fazer da minha própria espécie junto de uma raça de mortais já predisposta a conceber a mais baixa opinião do género humano, dada a total identidade entre mim e os seus yahoos. Mas devo francamente confessar que as inúmeras virtudes daqueles excelentes quadrúpedes – colocados em posição oposta à das corrupções humanas – me tinham aberto de tal maneira os olhos e esclarecido o meu entendimento que principiei a analisar, sob uma luz muito diferente, as ações e paixões do homem, e a pensar que a honra daqueles que pertenciam à minha própria espécie não merecia muita defesa.» (243)

Quando parece que Swift não pode aumentar mais a parada, que por um lado não consegue arrasar mais o nosso ponto ilusório e, por outro, abrir-nos mais os olhos, de modo a vermos as coisas com uma luz muito diferente, como Gulliver escreve, eis que se dá uma aproximação gritante à Alegoria da Caverna de Platão. Que já vinha sendo anunciada, aqui e ali. Principalmente quando na quarta parte fica clara a oposição entre opinião e razão. Mas isto ficará para a próxima e última semana.

(Continua na próxima semana)

17 Ago 2021

Aviso de incêndio por telefone

Durante muitos anos fomos colectando pelos jornais as notícias sobre os incêndios em Macau, mas nunca apareceram outros avisos senão os dos sinos e os dos dois tiros seguidos de pólvora seca provenientes da Fortaleza do Monte.

Assim acreditámos serem estes os únicos meios de alerta da população até que, a 12 de Novembro de 1916 n’ O Progresso, um artigo com o título “O Sinal de Incêndio” escrito por um assinante deste jornal nos alertou para a existência de outro aviso, mas como esse não ecoava pela cidade nunca era referido. Ainda a 10 de Setembro esse jornal referia: o telefone do subúrbio da Areia Preta não funciona como reclamam os habitantes daquele subúrbio. Se um dia acontecer alguma desgraça, por falta de comunicações rápidas…; não entendemos onde queria chegar.

Mas ao ler “O Sinal de Incêndio”: “Como se sabe, a maior parte da população de Macau é chinesa e entre ela lavra grande descontentamento por não se fazer na Fortaleza do Monte o sinal de incêndio como era costume. Eles querem saber quando há incêndio e qual o local, a fim de ali correr e observar, pois estão convencidos de que, pelo actual sistema, os incêndios não têm pronto socorro e as casas ardem com grande prejuízo dos haveres dos seus proprietários. Dizem eles e com razão, que os telefones nem sempre funcionam bem, principalmente em tempo de humidade, havendo mesmo ocasiões em que não respondem ao aviso nem à pergunta e por isso, a notícia do incêndio não pode ser tão rápida como os tiros na Fortaleza do Monte, que estando no centro da cidade e em ponto elevado domina toda a cidade e dá por isso, com maior rapidez conhecimento a todos do incêndio e do local; desta falta resulta a convicção de que ardem muitas casas sem o devido socorro. Quem restabelecer, pois, o antigo sinal de incêndios, conquistará a simpatia da população chinesa e de parte do resto dos seus habitantes, por saberem que a notícia é mais rápida não só do incêndio como da sua localização, com o sinal de tiros no Monte.” Ainda a 12 de Novembro, o jornal referia um estudo para o estabelecimento de uma rede telefónica em Macau destinada apenas aos estabelecimentos militares e das estações policiais e de incêndios, mas para as repartições públicas continua tudo como dantes.

“O Progresso”, a 26 de Novembro congratulava-se: “Consta-nos que foi restabelecido o antigo costume de dar sinal de incêndio por meio de tiros na fortaleza do Monte”, terminando assim o conflito entre Governo e população chinesa.

TARDIO SINAL

O telefone (电话, electricidade – falar, Tin-vá em cantonense) foi inventado por volta de 1860 por António Meucci, e usado apenas dentro de sua casa. Mais tarde, em 1870 vendeu o aparelho a Alexander Graham Bell, que o patenteou a 14 de Janeiro de 1876 nos Estados Unidos da América. Um ano depois aparecia já em Portugal e a primeira rede de telefones pública foi inaugurada em Lisboa a 26 de Abril de 1882, data em que na China a Great Northern Telegrafh Company da Dinamarca criou para Xangai a primeira rede de telefones manuais.

Em Macau é publicado o Regulamento geral para o serviço da linha telefónica a 2 de Outubro de 1887 assinado pelo Governador Firmino José da Costa e logo no Boletim da Província de Macau e Timor de 10 de Novembro de 1887 o bacharel António Marques de Oliveira, procurador dos negócios sínicos e administrador da comunidade chinesa, referia em Edital: “Tendo S. Exa. o Governador da província adoptado convenientes providências, para que os sinais de incêndio, sejam feitos com prontidão, aproveitando-se para os avisos o vantajoso serviço da rede telefónica; e convindo que todos os habitantes da cidade tenham conhecimento dos locais em que há estações telefónicas, a fim de poderem, logo que tenham notícia de se manifestar qualquer incêndio ir aí dar parte, como é de esperar que não deixe de fazer todo o indivíduo dotado de sentimentos benfazejos, ao menos, quando não encontre guarda, patrulha, oficial de diligências administrativo, ou china de quarto, para os quais este serviço é obrigatório: por isso faço público que as estações telefónicas são as seguintes: Quartel de Santo Agostinho (estação central), Palácio do Governo, Quartel dos Mouros, Quartel da Flora, Quartel de S. Francisco, Portas do Cerco (no quartel do destacamento), Monte (na fortaleza desse nome), fortalezas da Guia, Bomparto e Barra e Capitania do Porto. Macau, 2/11/1887”.

Na mesma página aparecia o Edital de Leôncio Alfredo Ferreira, administrador do concelho de Macau, a referir: “Por ordem superior, faço saber: Que tendo sido sempre tardio o sinal dado pela fortaleza do Monte, por ocasião de incêndios na cidade e seus subúrbios, são por isso avisados todos os moradores deste concelho, que, logo que tenham conhecimento de qualquer incêndio, o comuniquem à primeira patrulha que encontrarem, ou o participem à estação policial, ou telefónica mais próxima”.

No Boletim da Província de 8 de Dezembro de 1887 lê-se, vir a Inspecção de Incêndios de Macau Ainda antes da chegada a Macau de Abreu Nunes, registou-se a 15 de Novembro de 1893 um incêndio que deflagrou no Bairro de S. Domingos; as casas queimadas foram 17, além de quatro alpendres com 99 divisões, que serviam de açougue, ardendo o Mercado de S. Domingos. Era inspector dos incêndios o Sr. Pessoa e provou-se não estarem os serviços de incêndio devidamente organizados e o material muito deteriorado pois, as mangueiras deitavam esguichos por vários pontos, perdendo-se muita água.

Sobre os primórdios dos Bombeiros em Macau, assunto aqui tratado há já alguns artigos, muito fica por escrever, restando por agora prestar homenagem a estes beneméritos lutadores que, nas palavras de Carvalho e Rego, “para salvar os seus semelhantes se sacrificam heroicamente expondo por vezes a própria vida contra a força e violência dos terríveis elementos.” Não só no combate aos incêndios, como no socorro em casos de sinistro “o bombeiro acode; lá o vemos na derrocada, nas ruínas que o desmoronamento produziu soterrando em seus escombros pobres vítimas.”

Percebíamos agora o silêncio nos jornais sobre o aviso de incêndio feito por telefone desde 1887, pois apenas por via interna era comunicado e assim, não escutado pela população e jornalistas em Macau e daí ficar sem ser noticiado a existência deste silencioso meio.

16 Ago 2021

Um SG Ventil, se faz favor

Das coisas que melhor me lembro do meu pai é de vê-lo fumar na varanda, olhos postos no mar (que entretanto perdemos por interposição predial especulativa), provavelmente a pensar no coelho ou na perdiz descomunais que lhe escaparam na última caçada. Pensar no meu pai é pensar em SG Gigante e em SG Ventil, os cigarros da sua vida.

Começou a fumar SG Ventil quando deu conta que o tabaco lhe estava a acrescentar degraus à escadaria do prédio. Pensando que um cigarro mais curto não lhe fazia tanto mal, desistiu com relutância do SG Gigante.

Eu vivi rodeado de fumadores. O meu pai e os seus amigos fumavam em casa, para desespero da minha mãe e dos meus pulmões asmáticos. Fumava-se dentro do carro. Fumava-se nos escritórios. Não se fumava já nos hospitais por conta do oxigénio e dos perigos que comporta acender um isqueiro na sua presença. Como estávamos em Clermont-Ferrand da França, uma terra ali mais ou menos no umbigo do hexágono, rodeada de montanhas e vulcões extintos, fria ao ponto de nevar copiosamente no inverno, as janelas estavam sempre fechadas. As do carro ou as de casa.

Tirando aquela primavera serôdia e pálida em que nos era permitido dois dedos de corrente de ar, o ambiente onde quer que fosse confundia-se amiúde com o cenário de um filme noir.

Em criança abominava o cheiro a cigarros e como nos anos oitenta, em França, já se faziam algumas campanhas antitabagismo, eu, tentando juntar o útil ao agradável, massacrava o meu pai até ao ponto de ele preferir fumar no alpendre, ao frio e à chuva. Quando trazia uns amigos para casa, nada a fazer: juntavam-se na sala e dali só saiam quando tivessem prodigalizado o mais perfeito nevoeiro dickensiano.

Eu afirmava, naturalmente, que nunca fumaria um cigarro na vida. Como todas as crianças, tinha absoluta confiança nas minhas convicções. Fumar era coisa de velhos. Um hábito pouco salutar adquirido na errância e na pobreza. O meu pai começou a fumar muito cedo. Nunca lhe foi dito que os cigarros o iriam matar – como o fizeram. Fumar estava na moda. Era – senão saudável – perfeitamente inofensivo. As pessoas fumavam em todo o lado. As celebridades fumavam. Se o tabaco fizesse mal, elas não o fariam. A lógica era inatacável.

Comecei a fumar com quinze anos. Roubava tabaco ao meu pai, à noite, e fumava na escola. Toda a gente que aspirava a não ser olimpicamente ignorada fumava. E, nas matinés de domingo à tarde, bebia. Eu não gostava de beber. Não gostava do sabor da cerveja. Não conseguia perceber como é que alguém podia suportar aquele sabor só para, passado apenas meia hora, rir-se do ziguezaguear de uma mosca para, no momento seguinte, descambar num choro freudiano. Eu pedia uma imperial e ficava ali hora e meia a fingir beberricá-la. Quando tinha sede, ia à casa de banho beber água da torneira.

O meu pai morreu quando eu tinha dezasseis anos. Numa noite de quarta-feira de cinzas, não resistiu a um enfarte, consequência de uma angina de peito diagnosticada há um par de anos. Ficar sem pai aos dezasseis anos é tremendo. É precisamente a idade em que eles começam a nos achar alguma piada e, quiçá, a nos compreender – e vice-versa. É como finalmente entabular conversa com um vizinho com o qual um sujeito se cruzou nas escadas anos a fio apenas para saber que ele se vai mudar para a semana.

Não devia ter continuado a fumar. Não com este exemplo tão próximo e tão trágico. Mas as coisas que fazemos raramente se definem pelos seus contornos racionais, por mais que tentemos traçar uma orla precisa à amálgama difusa a que chamamos desejo ou decisão. Nunca fumei um cigarro com o meu pai. Até nisso não nos cruzámos.

13 Ago 2021

A caixa dos morcegos

Viaja sobre um dos dezasseis decks do navio e tem a impressão de que a vista lhe treme ao jeito dos ritmos secretos que empurram as velas dos barcos pintados por Seurat. 
A máquina gigante, espécie de maquete em miniatura de Manhattan, flutua dentro de uma esmeralda: é essa a sensação de poder aspirar o ar todo do oceano que logo se encrespa nas vagas e nos redemoinhos do horizonte. O mesmo torvelim se passa no fundo do bule cheio de chá de valeriana e nos dedos que avançam sobre o tampo da mesa. Ela segue-lhe as falanges com a astúcia das felinas dengosas que farejam as sardinheiras saídas dos vasos. Até que as mãos se encontraram, simulando o rasto das diligências que se cruzam nos westerns. O pó é uma parte da memória que se abate sobre a clarividência, é verdade. Mas aconteceu. 
 Antes ele falara-lhe longamente dos Novos Aerólitos, um livro seu publicado em 1996 pela Elsafira Lusitana. Era estranho voltar a ouvir a sua própria voz a soletrar o que sempre repetira nas aulas. Mas “o que eram afinal os aerólitos?” – perguntava ela. “Corpos sólidos, sim, atraídos pela gravidade, sim, e que ficam incandescentes devido ao atrito do ar, originando fenómenos luminosos curiosos”. Na altura, ele escolheu este termo, o aerólito, para tentar traduzir “uma das ideias centrais do nosso tempo” – e dizia-o com ar grave – “a ideia de instantaneidade”. 
Tinha passado férias em Saint-Nazaire, na foz do Loire, quando a ideia lhe sorriu. Diz que se lembrou de uma promessa em jeito de brincadeira que um amigo lhe fizera (“quando for agora à Dinamarca, trago-te uma dessas cervejas da Páscoa de que tanto gostas”) e, de repente, fez-se luz. Tinha na sua frente uma ponte suspensa e uma mão cheia de passadiços normalmente usados para a pesca. Atravessavam-no homens de boné com iscos, canastras, canas telescópicas e uma solidão de fazer cintilar a maresia (dando a impressão das miragens que imitam os foles no ir e vir dos seus assombros). E foi deste modo que aquela memória, vinda do nada, lhe bateu à porta. Ali, a uns quantos quilómetros de Nantes, recostado nas traves do ancoradouro.
 E aconteceu. Os dedos tocaram-se com o calafrio a disfarçar as linhas da mão que resvalam em desfolhada: espigas para um lado e o rosto para o outro lado a corar, embora, logo a seguir, ele tenha regressado ao livro para atear as lembranças que ligavam a foz do Loire a uma viagem à Dinamarca que nunca se chegara se realizar. 
 Lembra-se de tudo isso como se fosse hoje. Com andar de pinguim, continua a explorar o deck, caminhando em estibordo na direcção da popa. Um cruzeiro é uma excomunhão voluntária, mas sem qualquer dor: a vida é embrulhada, durante uma série de dias, por um grande ginásio e toda a gente sorri a fingir que levita e que é eterno. 
 
E de quando em quando, lá vinha de novo o chá de valeriana e o bule com os tons azulados de Delft e as mãos que se estavam agora a tocar. O que se passa e o que passou são um único instante a instigar e a hipnotizar a duração. Ela tinha o rosto geométrico tipo sacerdotisa de Baco e umas sobrancelhas com a inflorescência de cicatriz antiga. A ligeireza vinha-lhe do queixo fino que mantinha coloração roxa (como se habitasse sempre numa manhã seca e fria de inverno). 
 
Enquanto sua colega na universidade, raramente lhe dera atenção ao longo daqueles corredores percorridos por azulejos cheios de jograis e de céus barrocos (amamentados pelas dorsais das funcionárias que eram gárgulas de mau olhado). Foi de facto em Saint-Nazaire que a ideia do livro apareceu. Surgiu todo escrito, como numa revelação, e, talvez por isso, ele tivesse abandonado rapidamente o ancoradouro, percebendo que, entre a encenação do mundo e as pegadas que ia deixando no areal, sobrava pouco, muito pouco (via o mar, e o mar era sempre o mar, independentemente do que lhe iria na cabeça). 
 
“A instantaneidade e a promessa?”. “Sim”. “E qual é a relação, afinal?” – perguntava ela. A ideia era simples, mas o livro não lhe conseguiu dar forma como devia ser. Uma década mais tarde, ele sentiu necessidade de escrever um artigo que tentou sintetizar tudo de um modo mais claro. Intitulou-o Genuflexão diante de um deus sem divindade e foi publicado em Inglês numa revista de Albany. Depois virou-se, meio alarmado, para ela e repetiu com lentidão: “Ilusões, ilusões, meras ilusões”. Conversa lacreada.
 

 
Foi há quase trinta anos que passei as férias em Saint-Nazaire, na foz do Loire, e lembro-me de que me sentia agitado. O mais fidedigno dos cansaços pertence àquela família de ócios que se arma em complacente: a liberdade reduzida apenas a ser livre sem que os limites (que afinal a definem) se tornem claros. A bruma a recobrir o fim do dia. Ao entrar no autocarro, no início da viagem de regresso, relembrei o meu corpo em câmara lenta a percorrer as salas de aulas e eu sabia que, naquele momento, as mais diversas substâncias orgânicas, além dos iões e da água, passavam de célula para célula, rasgando fronteiras. Passavam através de pontes ditas citoplasmáticas.
 
E ela logo me encostou o pé debaixo da mesa e sorria bem menos corada do que há uma hora. O caminho para a velhice é um cruzeiro de gladiadores no meio de um oceano furioso e eu, pelo meu lado, sentia-me estranhamente tranquilo, quando comecei, a pouco e pouco, a tentar explicar: “No mundo das religiões do livro, da tradição hebraica à cristã e depois à islâmica, desde o segundo milénio a.C. que a vida é explicada em função de uma promessa que visa um mundo perfeito (redenção religiosa para uns, redenção ideológica para outros, conforme as épocas e os lugares). E sempre houve dois tipos de postura nestas culturas: uma postura de paciência (aguardar o cumprimento da promessa com a devida resignação) e uma postura de impaciência, baseada na exigência do cumprimento instantâneo (hoje, agora e aqui) do prometido mundo perfeito. A história está cheia deste tipo de movimentos. Radicalismos religiosos e ideológicos já no mundo moderno”. 
 
No dia em que abri a caixa de cartolina e larguei os morcegos no ar em pleno conselho científico – foi na altura um verdadeiro escândalo -, ela foi a única colega a abordar-me para me felicitar pelo boicote simbólico. O que não pôde compreender é que o meu gesto fora tudo menos simbólico. Eu já deitava a universidade pela boca e nem me dava conta disso. Estava a lembrar-me desta fase recente da minha vida, quando vi terra ao longe. 
 
De repente, o deck encheu-se de gente eufórica, fora de si: corpos de popelina a tornarem-se esguios numa voragem com as cores de El Greco, braços no ar sob a forma de mastros que se esfumavam numa farinha colorida, mastigável. Fiquei estático no meio desta humanidade de manequins e, ao mesmo tempo, a insinuar-me cada vez mais ao corpo dela que encostara, entretanto, as suas pernas às minhas. Respondi-lhe que sim: os radicalismos desejam que as visões prometidas aconteçam na realidade e no imediato. Terra à vista, terra a conquistar. E o mais curioso é que a tecnologia ofereceu tudo isso como presente ao mundo. Pelo menos, fê-lo através de simulações. Pergunto eu: para que interessam as religiões e as ideologias, se os aparelhos tecnológicos nos dão hoje instantaneamente (e com prazer imediato) o que mais desejamos? Não, não nos dão o paraíso, mas dão-nos a sensação de que tudo está ao nosso alcance. Deste modo, a velha promessa cumpre-se, ainda que não se cumpra o que ela prometia. 
 
Regressámos ao mundo dos místicos, ainda que o nosso deus seja um simples botão que separa o ‘on’ do ‘off’. Lentamente, a instantaneidade – que dantes era uma trave mestra reivindicativa – passou, no nosso tempo, a ser a grande divindade oculta. O aerólito por excelência. E foi após esta divagação que tudo aconteceu, sem que eu alguma vez chegasse a entender o quer dizer “tudo aconteceu”. À minha frente, já distinguia os contornos de Chipre. Tremiam por dentro como eu, isto é: tremiam com a mesma cadência que incita o movimento das velas pintadas por Seurat.

12 Ago 2021

Sansão na Vingança!

Nomeado secretário do novo Governador, Francisco Maria Bordalo (1821-1861) chegou a Macau em 1850, ainda a tempo de encontrar os restos calcinados do seu irmão, ao que parece melhor poeta do que ele: “Onde Camões desterrado/ Seu tão triste amor carpira/ Vivo eu pobre, eu deslembrado,//Sem ter como elle uma lyra:/ Oh! Quem china antes nascêra,/ Na minha Lorcha eu vivera/ Com velas de esteira fina;/ Que lhe importa ao china a terra,/ Se tudo qu´elle ama, encerra/A Lorcha dum pobre china?”. Escrevera a atestá-lo Luís Maria Bordalo, pouco antes de morrer na explosão da fragata D. Maria II, ao largo da Taipa.

Movido por esse inesperado desastre, o irmão vai escrever uma noveleta em que o ficciona; ou semi-ficciona na verdade, pois não esconde os nomes dos protagonistas históricos, o que lhe dá um registo cronístico do qual os seus textos nunca saem inteiramente. Ambientada em Macau, onde o autor esteve uns magros 18 meses, Sansão na Vingança! (1854) – assim mesmo, com ponto de exclamação –, lê-se numa assentada. E ainda tem um arremedo de amor ultrarromântico entre o marujo poeta defunto e uma italiana fatal, que a explosão salva do adultério a tempo.

Quem sabe o leitor, cansado de curtir o seu longo recesso em Macau – que nestes tempos tem voltado a ser o acantonamento para os europeus que era de início –, não dá um passeio até à Biblioteca Municipal, ao Tap Siac, onde encontrará a edição de 1980, publicada em Macau e prefaciada por Pedro da Silveira? O florentino confirma-lhe a qualidade de iniciador da ficção portuguesa de temas marítimos e ultramarinos, coisas que nessa altura se confundiam. Mas apesar de tal pioneirismo os seus livros, diz Silveira, vendiam pouco. Ocupados com os últimos fogachos das pugnas liberais, poucos ouvidos davam os seus contemporâneos a assuntos coloniais e a aventuras de bordo. Ainda não soara a hora do império, estavam longe ainda os mapas de Berlim e sua conferência.

Prosador com o seu quê de naïf, faz sorrir a forma como em Sansão cede às fantasias mais absurdas do orientalismo europeu sobre a China, em particular ao famigerado “perigo amarelo”. Bordalo levanta, por exemplo, suspeitas em torno de supostas sociedades secretas chineses, que existiriam há mais de quatro mil anos, para repor ao poder a dinastia Ming e colocar os cristãos uns contra os outros. Teriam feito parte de um conluio para a destruição das naves portuguesas. Certamente que o clima anti-chinês, bem vivo nesta novela, estava ao rubro com a morte recente de Ferreira do Amaral, o que se nota ainda, de forma menos folclórica e mais sopesada, no capítulo VI, em que descreve o funcionamento de um tribunal sínico. Recorda o famigerado prefácio que Camilo Pessanha irá escrever anos mais tarde, e que tantos enganos tem gerado.

Pedro da Silveira, simpático açoriano que também passou por Macau para ver como era, com muita generosidade e audácia o compara a uma “espécie de Blaise Cendras antecipado, mas sem os ousios ou a imaginação do autêntico” (Prefácio, p. vi). Um Cendras ultrarromântico é obra! Mais facilmente pensaríamos no cearense Adolfo Caminha e no seu mais conseguido Bom Crioulo (1895), de tema amoroso e talvez mais conveniente a climas náuticos. De qualquer forma, fora a marinhagem, que hoje temos como datada e algo fastidiosa, interessa mais em Bordalo as viagens que ela permitiu e que surgem descritas em várias obras, uma mina para os que estão atentos. Não é pela marinha, seu pitoresco vocabulário e quadros semi-heróicos, que me perdoe Silveira, que Bordalo deve ser recuperado, mas por uma escrita clara e despretensiosa, que se abre a muitas geografias.

11 Ago 2021

Passado a ferro

Algures entre o Carmo e a Trindade, Lisboa, segunda, 2 Agosto

Entra o homem com uma aranha na cabeça no transporte e o sinal civilizado do desejo de um dia bom desdobra-se em conversa acerca da meditação, da tristeza intrínseca do português passado a ferro, isto é, passada a fado, ida à desobediência civil a partir de Thoreau em diálogo com La Boétie, antes de aterrarmos na conversão e no destino final. A conversa vai ecoar, quase o diz, fechando a porta com mais aranhas na cabeça. Sente-se Forte. «Sai de novo para o mundo./ Fechada à chave a humanidade janta./ Livre, vagabundo/ dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.»

Horta Seca, Lisboa, sexta, 6 Agosto

O veneno da indecisão não resulta de cálculo algum das probabilidades, de sombra de avaliação com conta, peso e medida. Nem mesmo uma espera, esperançosa ou derrotista, tanto faz, de que um acontecimento se apresente, chegue e empurre, expluda e resolva. Pura e simples paralisia, disso falo: o viandante perdido em pleno cruzamento sem que a razão encontre migalhas, pistas, evidências – assim se diz agora a torto e a direito – que sustentem a escolha de rumo. Nevoeiro, portanto, e não noite, que mesmo no breu mais cerrado se distinguem formas.

Em setembro próximo, cumprir-se-á uma década sobre o momento chão em se imprimiu por primeira vez a palavra abysmo na qualidade de marca e nome. Não era ainda editora, antes brincadeira. (Uma vida inteira a brincar com coisas sérias e depois ainda te admiras, digo eu de mim para mim.) Demorou mais do que um ano para o projecto se impor com a lâmina da pergunta: e por que não? Confesso que por estes dias o fio da navalha diz: para quê?

Chegámos a pensar em escrever isso mesmo para dar cobertura ao esforço que significará abrir um pavilhão na Feira do Livro de Lisboa. Preferimos aniversários que abram para o futuro, ainda que lhe oferecendo as costas, como mandam os antigos, por estarem os olhos no percurso feito. A dúvida venenosa cresce, agravada pelo facto de não ser tempo de festa. Como assinalar a data sem nos deixarmos tragar pelo comemorativismo, invariavelmente rotineiro e bacoco?

Ainda esteve em cima da mesa com o Jorge [Silva], uma frase de cada livro em cadáver esquisito, entre o divertido e o simbólico. Afinal, os muros daquela assoalhada no Parque dirão com singeleza e grito tão só alguns dos títulos que foram sendo experimentados neste longo período, muito longe da totalidade, nem mesmo com o esforço da abrangência. Terão que me perdoar os autores, por instantes e ali sem-título, mas o critério foi quase só a sonoridade, o despertar de um espanto, a estranheza. Há dez anos que andamos a dizer, a fazer nas entrelinhas, sem sair da encruzilhada, em carrossel. Mas cada nome possui voz e luz, que por aí circulam, dando sinal de vida discreta, mas pulsante. Mesmo os esgotados não se esgotaram. Resultam de inquietações, experiências, ânsias, gozos. Nenhum se renega, cada qual mantendo a força de um sentido, ainda que esquecido, sumido ou extraviado.

Cada um erguido pelo somatório dos esforços, misto de laboratório e sapataria.
Adiante veremos se o nevoeiro dispersa para mais passos e outra conversa.

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 7 Agosto

Espero que as ilustrações do Tiago [Albuquerque], paginadas com sentido do drama e a rasgar a dupla página, salvem este nosso «Jean Moulin: a sombra não apaga a cor», com o qual a Associação para a Promoção Cultural da Criança, do Paulo [Caramujo], se associa à Quinzena Jean Moulin. (Curioso que estes dias tenho sido pontuados pela vida de alguém que não esperou acontecer, que disse não! ao quietismo entrevado…) Tinha tido experiência anterior com constrangimentos prévios ao como contar vida concreta para crianças (abstractas), mas esta foi bastante mais desafiante uma vez que nela moravam como personagens a violência, o medo, em carne viva. A guerra tem, só para quem a não viveu, desconfio, um lado aventuroso e fascinante, que foi para sucessivas gerações alimento de imaginário voando abaixo do radar das culturas instaladas. Mas o quotidiano de um cenário de conflito armado, mais ainda no contexto de então, não se pode ficar pela epiderme de um jogo. Queria contar do que significa um herói, longe de ser super, alguém capaz de ler as circunstâncias e perante elas se afirmar como humano.

Contra o mal absoluto. Apesar do seu próprio medo. E acrescentar a ideia de que uma comunidade ferida pode encontrar consolo, reconhecer-se em um rosto (concreto), parafraseando Malraux, no memorável discurso aquando da «canonização» no Panteão. Muito ficou por contar daqueles efeitos que a Segunda Guerra Mundial infligiu a França, tão profundamente que está ainda longe de ter exorcizado os fantasmas postos então à solta. Mais fácil foi incluir a passagem por Lisboa do mais jovem prefeito ou pormenores saborosos tais a sua paixão pelo desenho e o facto de nunca ter usado uma arma. Acabei fugindo pela metáfora, um verdadeiro porto de abrigo, onde ganhar forças antes de regressar à tempestade. A metáfora é o bom meio de transporte para escapar aos becos sem saída.

O Tiago optou por realismo surpreendente, mais ainda no panorama actual da literatura para a infância e juventude, com um uso cirúrgico das cores, sem se preocupar em seguir de perto o fluir do texto e, sobretudo, sem traduzir para imagens desenhadas – estou certo que seriam mais belas – as visões espalhadas pelo texto. (Algures na página está uma das raras excepções, mas o resultado não podia ser mais poético: alguém que se desmultiplica na sombra). Cada plano oferece o impacto de um cartaz, sem com isso esquecer o chamamento da curiosidade.

A infantilização tombou sobre os nossos dias, donde não se estranha que tenha chegado a esta vigiadíssima «literatura» para as crianças e os jovens. (Aliás, nunca os nossos dias foram tão vigiados e aqui se apresenta bom tema de livro para putos). Não sei se não deveríamos imprimir faixa avisando: «Cuidado! Livro difícil.» «Tant pis!».

Talvez a dificuldade possa ser sexy, agora que tal sabor de boca é exigido a tudo. Contas feitas, estou sem saber se teremos conseguido atrair os leitores, que terão de ser competentes; atraí-los para a figura de Moulin e para o resto. Em caso de dúvida, há muito nas redes onde procurar lanternas.

11 Ago 2021

O lugar vago dos segundos

Enormes e estridentes no curto espaço entre aqui e ali, onde normalmente os pombos. Estes volumes inquietos, avantajados como se fora de escala no telhado ali em frente, como uma natureza a invadir, exacerbada. Parecem desenhos, depois, mais longe e já a sossegar. Planos, negros, recortados, anedóticos pequenos pardais. Mas são assustadoras nos gritos e no volume atabalhoado dos movimentos. Gritos animais. Ontem e hoje. Como um sinal de ecossistema a falhar. Aqui em cima, tão longe, como se à beira rio, mesmo. São duas. Talvez a mudar de casa compulsivamente. Um desassossego inquietante – passe a redundância. Dizem-nas, quando em terra, sinal de tempestade no mar. Mas quem viu para dentro?

De minha casa oiço sinos e o apito fundo e grave de navios. Quando a aragem sopra do rio. Esqueço onde estou, a partir das coisas intemporais. Esqueço e custo a relembrar.

Os dias de domingo amanhecem. As estações virão sempre sentar-se no lugar reservado. A vida alterna fantasia e desespero. Tudo se cumpre como se estivesse escrito. Mas não estando. Antes.
Coisas assim.

Folheio outas páginas. Paro junto à parede e em cada pestanejar. Viro-me e retrocedo. Outra página.
Conto as flores e é como se a vida se reproduzisse inteira. Conto-as e conto-as para que fiquem. Conto e duplicam.

Mesmo depois. Mesmo as que não foram. Em geral conto-as como se fossem e as que forem.
Verónica limpa o rosto de Jesus. Há uma oração a entrar-me pela janela, depois. Antes, acudi a um rufar de tambor compassado, redobrado, compassado, redobrado. Mas isto é já um outro dia. Um outro domingo. Também.

As contas. Adições. Seremos seres que somam, que multiplicam, ou seres que subtraem, ou mesmo dividem. O mistério da multiplicidade de sentir de gostar de pensar. Muitas coisas que não nos fragmentam. Quanto muito, enriquecem, complexificadas relações entre as partes, muito para além do preto e branco do cheio e vazio e do 0 e 1.

Eu gosto do centro das cidades. Das cidades com história e muitos registos do passado. Habitar um canto camuflado no centro e como um ninho encavalitado numa chaminé. Também de todas as margens naturais das cidades e da lonjura das cidades de toda a naturalidade da natureza distante e dura. A assustadora tormenta dos elementos, mais sentida aí. Gosto do natural como do que é construído. Mesmo as pessoas que se constroem numa imagem se genuína a paixão. Como quem actua num papel que é seu. E daquelas que são naturais uma vida inteira.

Simplesmente paro na obscuridade da casa, à espreita de um contorno, de uma tonalidade firme. Se está. Tudo precário como o sei. Mas há uma luz bruxuleante na casa que me diz que está o que sinto, impresso numa forma. Táctil. Existo. E assim o que sinto. Como uma prova. Noves fora. Fora a memória. E assim um estado puro. De pura devastação, mesmo. Ou de puro estar.

Nada chega à voz de um violoncelo. Cordas directamente premidas no coração. Humanas com dor. Um choro que dificilmente ecoa feliz com lágrimas. Fico a ouvir a voz conhecida e de cordas vocais embargadas de um sentir que é amargo. Que sentir é este que perpassa destas cordas e por mais diferente, sempre moldado a elas, a esta voz que transforma qualquer sequência de notas num lamento nobre. Por não ser violino, algo mais grave. Em que as pessoas deveriam cair em si e música adentro. E centrar-se numa única infelicidade, um único pensamento a adejar calmamente e sem ansiedade. Um único, de cada vez.

Vaguear pela casa. Estar e ao mesmo tempo, não. O lugar vago dos segundos, vivido e abandonado. E repete. As águas enormes de oceanos vastos a arrefecer emoções. Pequenas, aluadas e inconsistentes queixas. Pequenos sentimentos recorrentes e que escorrem em ligação directa à gaveta da mesa, no subterrâneo das teclas. Que podiam escrever vida onde escrevem suspiros. Segredos guardados para aliviar a cabeça como um corte de cabelo em fim de estação de amor. A rouquidão da voz que se queria límpida e a dureza das teclas que se queriam doces.
Sussurros. No vazio da noite branca da folha. Como sol que não desceu.

11 Ago 2021

As Viagens de Gulliver – Quinta parte

Na continuação do que acabámos de ver na semana passada, de se tornar acentuadamente claro que estas viagens de Gulliver mais do que viagens a terras exóticas são viagens ao humano, às estruturas do humano, que nós somos para nós mesmos mais desconhecidos do que as terras longínquas que descobríamos com embarcações, veja-se mais duas passagens que interligamos numa só: «É um povo sempre inquieto, que nunca goza um só minuto de tranquilidade de espírito, e a sua inquietação provém de causas que pouco afetam o resto dos mortais. As apreensões que os preocupam são criadas pelo terror que sentem pelos corpos celestes. […] Estão continuamente tão alarmados com o temor destas e de outras catástrofes semelhantes que não conseguem dormir tranquilamente nos seus leitos nem conseguem ter o menor gosto nos prazeres e diversões comuns da vida.» (155) Este estar deposto em medos infundados ou, pelo menos, que não podemos ter a certeza de que se deva ter medo, como o caso da morte, é aquilo que determina o comportamento humano. Nós não tememos os corpos celestes, mas tememos a morte, ainda que não saibamos o que isso é, a não ser que deixamos de ser, como antes de virmos à existência também não éramos. Se nas primeiras duas partes do livro Swift nos conduzia para uma apresentação da configuração da nossa apreensão, isto é, do modo como nos damos conta das coisas e de nós do ponto de vista exterior, agora começa a fazer a configuração do modo como nos vemos a nós mesmos do ponto de vista do comportamento.

Quanto ao sentido comportamental e não ontológico podemos ver o modo como Swift nos mostra o desprezo com que os habitantes de Laputa olham Gulliver, por este não ter bom ouvido musical. Leia-se: «Ainda que não me seja possível dizer que me trataram mal nesta ilha, devo confessar que me sentia muito abandonado e, de certo modo, olhado com desprezo. Nem o príncipe nem o povo se mostraram curiosos em relação a qualquer tipo de conhecimento, além da matemática e da música, no que eu me encontrava muito abaixo deles, e era por isso olhado com muita indiferença.» (163) Swift mostra-nos assim algo muito comum no comportamento humano através dos habitantes de Laputa: nós tendemos a desprezar aqueles que não partilham os nossos conhecimentos ou os nossos interesses, ainda que possam até ser mais sábios do que nós. Mesmo julgar que a sabedoria é melhor do que a ignorância, pode ser visto como um modo viciado de nos vermos uns aos outros. Não digo que seja, não estou a afirmar que a ignorância seja melhor ou tão benéfica para a comunidade quanto o conhecimento, estou apenas a afirmar que pode ser visto como um modo viciado, um modo estritamente humano de ver, tal como os habitantes de Laputa em relação a Gulliver. Veja-se esta passagem maravilhosa: «Havia na corte um grande senhor, parente próximo do rei, e por essa razão tratado com muito respeito pelos demais. Era opinião universal que se tratava da pessoa mais ignorante e estúpida que ali vivia. Tinha prestado à coroa serviços eminentes, tinha grandes dotes naturais e adquiridos, realçados pela integridade e pela honra, mas tinha tão mau ouvido para a música que os seus detratores contavam que muitas vezes o haviam visto bater o compasso errado;» (163-4) A despeito do senhor ter grandes dotes naturais e adquiridos, realçados pela integridade e honra, não deixava de ser criticado e alvo de chacota devido ao seu mau ouvido para a música, que era fundamental para os habitantes de Laputa. Quantas vezes não vemos pessoas íntegras e honradas serem alvo de troça devido a não configurarem o ponto de vista da comunidade? O que está aqui em causa nesta apresentação de Swift é o modo como os preconceitos, isto é, aquilo que tomamos por certo e necessário, a despeito de nenhuma prova a favor ou contra, nos impedem de ver o outro com justeza. Mais: podem ser razão para fazer uso da troça em relação a alguém, como era o caso do senhor parente próximo do rei de Laputa. Vou contar-vos, de memória, uma passagem do primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Uma amiga do senhor Swan, que era um homem muito culto e muito rico, tinha-se apaixonado por uma senhora muito inferior a ele, devemos ler inferior aqui, em Proust, no sentido de interessar-se apenas pelas coisas sensuais, sem qualquer interesse pela cultura. Devido a isto, uma amiga do senhor Swan tenta várias vezes que ele conheça uma amiga sua, que diz ser pessoa muito inteligente e de muita cultura. Cansado disso, e de modo a acabar de vez com a questão, o senhor Swan responde, como justificação para não a conhecer: «Não me pareça que essa senhora tenha aprofundado a Crítica da Razão Pura de Kant.» E arruma a questão. Para o senhor Swan a filosofia aparecia como não ter ouvido para os laputianos. E regressando ao livro que aqui nos traz, escreve Swift no início do capítulo VI da terceira parte, referindo-se às teses loucas que alguns pensadores de Laputa tentaram instituir, como o caso de ao invés de palavras, as pessoas mostrarem as coisas: «Resumindo: uma série de quimeras loucas e impossíveis jamais concebidas pelo cérebro humano, o que veio confirmar no meu espírito a velha observação de que nada existe de extravagante e irracional que os filósofos não tenham mantido como expressão de pura verdade.» É o modo de vermos as nossas próprias verdades como irracionais. Nós tendemos a tornar verdade tudo o que pensamos. Não é na natureza, ou pelo menos não é só na natureza que nada se perde, tudo se transforma, o pensamento tende a não desperdiçar nada, tende a transformar o que pensa em verdade. «Pensar faz com que tudo possa ser verdade», escreve o narrador do romance Vício.

(Continua na próxima semana)

10 Ago 2021

O Jogo das Escondidas – Capítulos 51 ao 60

51

Ouviu a voz de Benedito:
– Foi em Singapura que tive a oportunidade de ler, pela primeira vez, os livros de Homero, a “Odisseia” e a “Ilíada”. Identifiquei-me com Ulisses, não sei porquê. Talvez pelas duas fases da vida que ali são retratadas. Fazem sentido para mim. Sabes, quando penso nos espiões lembro-me de um episódio que é contado nesses livros. É uma lição de vida. Nele, Ulisses encontra um espião troiano, Dólon, que ia espiar os gregos. Convence-o que a sua vida pode ser poupada se cooperar e revelar tudo o que sabe sobre as tropas troianas. Quando as dá, Diomedes diz que tem de matar Dólon. Porque se o libertar ele regressará, ou para espiar os gregos ou para os combater. Dólon pede clemência, mas a espada de Diomedes mata-o.
Benedito susteve a respiração, antes de continuar:
– Que lição podemos tirar daqui, meu caro tenente? Não podemos confiar em ninguém. Nem nos que nos prometem o que quer que seja. E na espionagem há sempre a hipótese de não escaparmos com vida.
– Eu sei, padre. O fundamental de qualquer actividade clandestina é poder escapar ao olhar alheio. E eu isso não consegui fazer.
– Aprendi uma coisa com um agente meu. Um chinês do interior. Dizia-me ele que quando um espião deixa de saber qual o seu caminho no meio da escuridão, deve sentar-se, observar o céu e ver as estrelas entre as nuvens. Talvez seja agora uma boa lição. Para ti e para mim.
– Sim, essa talvez seja a melhor estratégia. E também, como me ensinou Ding Ling, converter-me no inimigo. Colocar-me no lugar de quem me pode fazer mal e sondar o seu coração e as suas razões. Preciso de conhecer as suas ambições e intenções. E então saberei quem me quis matar.
– Sim mas tens de ter muito cuidado. Eles estão dispostos a calar-te. Quando se caminha de noite por caminhos iluminados pela lua, deve utilizar-se as zonas de sombra.
Continuaram a falar, enquanto não muito longe dali, a batalha fora rápida. Bei Li desviou o olhar dos corpos estropiados por balas e facadas e que estavam caídos no chão. Eram quase todos homens de Fu Xian, mas este não se contava entre os mortos. Tinha conseguido fugir.

52

O edifício de pedra esverdeada estava conquistado. Ding Ling, com olhar decidido, passou com a mão pelos contentores de madeira que continham sacos de heroína. Os seus homens esperavam, ansiosamente, ordens. Por fim ela disse:
– Queimem tudo!
Eles assim fizeram. Os contentores foram-se transformando em fogueiras enormes. Saíram rapidamente do local. O fumo começou a sair pelas janelas e pela porta. Ding Ling olhou para o céu. A lua estava com uma luz poderosíssima. Era uma visão maravilhosa. Por momentos julgou ver a sua face reflectida naquele círculo que iluminava Macau e que, em conjunto com as chamas que agora saíam do prédio, lhe davam um aspecto demoníaco. Ding Ling disse, enquanto começava a caminhar:
– Nesta guerra a melhor arma é o medo que provocamos nos nossos inimigos.
Bei Li não disse nada, mas seguiu os passos de Ding Ling, como se fosse a sua sombra.

13.

A ventoinha rodava lentamente no tecto. Fazia um ruído estranho, o que poderia ser um sinal de que estava quase a deixar de funcionar. O governador Rodrigo Rodrigues, sentado no seu cadeirão, olhou para lá, enquanto soprava o fumo do cigarro para o ar. No seu olhar havia algo de resignado, como se finalmente percebesse que nem sempre era fácil mudar o que fosse em Macau. O Palácio do Governador, onde estava, era um local onde os silêncios, muitas vezes, diziam muito mais do que as frases e os sussurros se impunham às vozes mais audíveis.
– Com este calor é fácil perder o hábito de agir.
As palavras do governador soavam a indiferença, mas Félix Amoroso sabia que ele tinha muitas ideias para a cidade. Circulava em voz baixa no Grémio Militar, que estava a tentar colocar, pela primeira vez, representantes da comunidade chinesa local no Conselho do Governo, algo que não era do agrado das entidades mais conservadoras. Por outro lado tinha convidado o bispo de Macau, D. José da Costa Nunes, a fazer parte do mesmo Conselho. Parecia uma forma de ele, um maçon, mostrar que a República era a casa de todos e de tentar gerir interesses contraditórios. Era como construir um castelo de cartas. Bastava um sopro mais forte e tudo caía.


53

Ainda assim, sabia a sua força, porque o poder estava formalmente concentrado nas mãos do Governador, representante de Lisboa. Mas, na prática, isso era um equívoco. O governador tinha sempre de gerir os interesses dos senhores locais mais influentes e, por isso, muitas vezes as suas ideias diluíam-se numa sopa sem sabor ou aroma. Na Taipa, era o comandante militar, que mandava em Amoroso, que fazia as suas próprias leis. Não que a sua força fosse muita. Recentemente o general Gomes da Costa tinha passado por Macau para ver como se encontrava a situação militar e partira desolado.
Em Macau tudo se sabia. Não era uma cidade muito grande para ser possível guardar segredos. Rodrigo Rodrigues insinuou:
– Nunca se deve tentar agradar a todos, porque no fundo estamos apenas a transferir para o futuro o verdadeiro duelo.
– Quem tem paciência acaba por vir a governar o mundo, senhor governador.
– Isso não sei. Mas tenho a convicção de que não estarei muito tempo em Macau.
Amoroso sondou a face do governador, mas esta manteve-se impassível e serena. Rodrigues tinha a virtude de saber esperar. E de não ter esperanças infundadas sobre o futuro. A voz do governador voltou a soar:
– Estou a pensar reforçar o patriotismo em Macau. Apelar aos sentimentos nacionais, mostrando o que nos une e não o que nos divide. Que acha da ideia, tenente?
– Parece-me boa. E como quer fazer isso?
– Penso que Luís de Camões diz muito às pessoas de Macau. E a Portugal. Foi o homem que serviu para juntar os portugueses em redor dos republicanos e contra a Monarquia, quando os ingleses nos humilharam com o Mapa Cor-de-Rosa. Os republicanos souberam recuperar Camões e “Os Lusíadas” para vincar o nosso patriotismo e fazer renascer o nosso sentido de honra. Estou a pensar instituir uma romagem à gruta de Camões no Dia de Portugal.
Amoroso acenou com a cabeça. Notara que, pouco depois de ter chegado a Macau, Rodrigo José Rodrigues deixara de andar fardado, apesar de ser miltar. Usava roupas civis. Dizia-se que era uma pessoa sociável, que gostava de se sentar debaixo de uma árvore quando estava calor e de ver os chineses mais velhos a jogar mahjong nas ruas. Às vezes, à noite, percorria as ruas da cidade, sem escolta.

54

O governador bateu com um dedo no tampo da mesa, quebrando o silêncio.
– Tem de ter cuidado, tenente. Penso que não seria o primeiro português a apaixonar-se por uma chinesa e por causa disso nunca mais regressar a casa.
– Porque diz isso?
– Sei que a menina Ding Ling é a sua, como direi, protectora? Se não fosse a sua acção, poderia ter perecido na tentativa de assassínio. Ou estou enganado?
– Não está, senhor governador. Como diz uma outra amiga minha chinesa, “como um pássaro no rio, como um peixe no ar, um estrangeiro é um homem com problemas na noite de Macau.”
O governador deu uma pequena gargalhada.
– E ela, com essa frase, também se refere aos portugueses?
– A alguns. Não a todos. Muitos portugueses conhecem Macau e amam esta cidade. É a sua casa. Tenho aprendido isso.
– Não duvido. A minha mulher está a encontrar muita inspiração aqui para a sua poesia. Quando me for embora será um problema.
Seguiu-se um novo silêncio, antes de Amoroso questionar:
– Como está a vida política em Lisboa?
– Um pântano, como sempre, segundo o que vou lendo no “Diário de Notícias”. Vão desaparecendo os melhores, como o Carlos da Maia, que foi aqui governador. Assassinados ou afastados. E nascem, como cogumelos venenosos, os arrivistas, os lambe-botas e os que desejam apenas o poder. É difícil respirar ali. Não tenho muitas saudades. Isto pode parecer um exílio, mas aprecio-o. As intrigas demoraram algum tempo a chegar aqui e a ter um efeito nefasto.
O tenente puxou de um cigarro e acendeu-o antes de responder:
– Parece evidente que Portugal não vai vender Macau à Alemanha. Os chineses também não gostariam da ideia, porque a primeira coisa que a Alemanha faria era pôr aqui uma base militar a sério. Já lhes basta terem de aguentar os interesses de franceses, ingleses e americanos em Xangai e noutras cidades.
– Também me parece o caso. Sabe, em Lisboa, passam a vida a discutir a questão das colónias. Sobre Macau, só se faz isso em momentos de fúria nacionalista. De resto ninguém olha para aqui. Nem, diga-se, para lado nenhum.

55

O governador continuou:
– Estive a reler o dossier que tenho sobre o assunto e já em 1896, foi muito comentado um boato sobre a cedência da Lapa à Alemanha pelo governo chinês. Um escândalo que durou dois ou três dias até as atenções se focarem na nova marca de charutos disponível na Havaneza. Mais tarde um deputado, Franco Frazão, quis delimitar o que achava que devia pertencer a Macau, e isso ia do forte do Passaleão às ilhas da Lapa e D. João e mesmo à de Hian-Chan. Queria aproveitar-se de um daqueles momentos em que a China foi submetida pelas potências ocidentais. Queria uma fatia do bolo. Depois discutiu-se o porto franco e a alfândega chinesa. Mais foguetes políticos. E ninguém apanhou as canas. Sabe como é. E há quem esteja sempre a dizer para vendermos esta fonte de problemas, tal como Timor ou Goa. Só se houver vantagens económicas para alguém é que se discute o assunto com um pouco de seriedade.
O tenente esticou as pernas. Sentia-se confortável, apesar da ligeira dor que ainda tinha no braço. E o governador estava numa daquelas tardes em que, sem compromissos, podia e queria falar. Porque, ao mesmo tempo, encaixava os seus pensamentos dispersos.
– E o governador, permita-me a pergunta, nunca teve ambições políticas?
Rodrigo Rodrigues sorriu e olhou para o tecto. Continuava fascinado pela ventoinha. Nela via a vida política portuguesa. Ia rodando, apesar do ruído incomodativo. Um dia cairia do tecto. Apontou para ela:
– Acha que um dia me pode cair na cabeça?
– Não sei. Isso poderia e deveria ser evitado.
– É como a vida política. Nunca se sabe se não nos pode acontecer o mesmo. Tive sonhos. E depois chegaram os pesadelos. Não sou propriamente amigo de Afonso Costa. Nem aliado. E ele, com a sua longa mão, que tudo toca, não esquece isso. Por isso afastei-me. E, confesso, acho que eles não se importaram muito com isso. Assim não têm de se preocupar comigo nem com o que faço. Sabe, Macau fica suficientemente longe do Terreiro do Paço e do Chiado.

56

– Sabe, tenente, quando alguém deseja mesmo ser imperador precisa de traçar um círculo no solo, fechado à sua volta, para que ninguém mais entre ali. Mais tarde deve fazer outro círculo concêntrico onde está a sua guarda pretoriana, um punhado de conselheiros que não lhe dêem conselhos e que cumpram a sua função de recipientes vazios onde vertem a sopa das suas próprias convicções. Soldados obedientes, que não leais, e só fiéis à luz que irradia sobre eles a partir da liderança. Outro círculo mais amplo se pode criar, com uma boa quantidade de súbditos complacentes, sem ânimo para questionar as coisas e que não tenham memória ou sequer confiem muito nela e que a reescrevam em função da versão preferida do imperador. Não ganham nada, ou muito pouco, mas lutam entre si para caminhar à sombra do seu senhor.
– E o governador não é assim.
– Desejo não ser assim. Tal como o tenente. Se assim não fosse porque é que o teriam enviado para Macau?
– Não sei mas um dia regressaremos a Portugal. O que faremos?
– Não sei. Portugal disse adeus ao passado.
Amoroso sorriu. Como se não fosse o passado a dizer-nos adeus a cada instante. Mas talvez o governador quisesse dizer outra coisa. Mais complexa e terrível. Talvez: Portugal disse adeus ao futuro.
– E Macau? Podemos mudar esta cidade, tenente?
– Eu penso que o governador acha que é possível tornal reais algumas ideias. Tem a convicção que esta cidade pode ser transformada, para ser lucrativa para todos e ser redimida aos olhos de Lisboa. Mas está a pensar fazê-lo só com os interesses locais e sem ter qualquer ajuda de Lisboa. Seria um milagre. Mas é possível para que algum dia, no futuro, alguém aqui acenda o seu cachimbo e conte aos filhos a história de um sucesso. De que ninguém estava à espera. E começarão a história com o nome de um homem com coragem. Seria um motivo de orgulho para si.
Rodrigo Rodrigues sorriu enquanto apreciava as palavras do tenente. Depois disse:
– Eu acho que temos uma oportunidade única para que os habitantes de Macau controlem o seu futuro. Talvez depois pudesse chegar a Lisboa, aos corredores onde se manobram as decisões, e mostrasse que em Portugal se poderia seguir o exemplo de Macau. Só que o futuro não são apenas palavras. É preciso fazer e não estarmos apenas a pensar na nossa sobrevivência política.

Rodrigo Rodrigues calou-se. E voltou a olhar para o tecto. A ventoinha continuava a fazer o seu estranho ruído. Mas não caíra.

57

14.

Quem diabo sou eu? Não sou padre, nem nunca fui. Não sou espião, apesar de o parecer. Gosto de mulheres, apesar de o esconder. O dinheiro seduz-me, mas finjo odiá-lo. Passei anos a esconder-me de todos, mesmo que eles me vejam. Por isso cada um tem a sua ideia sobre o que sou. E eu, quando me olho ao espelho, já não me reconheço. As dúvidas tropeçavam umas nas outras e Benedito Augusto sentia-se estranhamente perdido num mundo que entendia, nas suas complexidades e contradições. Mas talvez fosse por isso que tinha tantas dúvidas e receios. Nem o álcool ou as drogas conseguiam afogar esta sensação de estar numa terra de ninguém, num mar imenso sem ilhas à vista, sem um porto seguro onde sentisse firmeza por debaixo dos pés. Navegava à bolina, como sempre acontecera. E quando parecia ter tudo controlado, os alemães e os portugueses faziam ruir o seu castelo. Apetecia-lhe seguir para Singapura e desaparecer com Mariana da Conceição, uma malaia de remotas origens portuguesas e holandesas. Poupara quase o dinheiro suficiente para desaparecer nos confins da Ásia ou, talvez, em Zanzibar ou em Madagáscar. Longe do longo braço das tríades. Via-se numa cama de rede a olhar para o horizonte, junto a uma tabanca onde vendia álcool e sonhos aos perdidos da vida. Faltava-lhe o último golpe. Mas esse agora era perigoso.
Olhou à volta. Aquela hora da tarde a taberna estava estava quase vazia. O que era bom para conseguir estar atento aos seus pensamentos. Quando Félix Amoroso chegou ele folheava uns papéis encardidos. Repletos de manchas de vinho. Tocava-os com cuidado. Amoroso reparou no estanho fascínio com que o padre olhava para eles, como se fossem ouro reluzente.
– Que tens entre mãos, meu caro Benedito?
Este não levantou o olhar dos papéis.
– Há coisas que nos surgem por acaso. E que podem mudar uma vida.
– Um mapa do tesouro?
– É quase isso. Amanhã parto para Hong Kong. E depois para Singapura e para a Malásia. Tenho vários negócios a tratar lá.

58

– Para Fu Xian?
– Alguns. Ele sofreu uma derrota. Mas não morreu. Voltará mais forte, não tenhas dúvidas. Agora está desconfiado de todos. E o alemão quer a sua heroína. Ou o valor dela. Não sei o que poderá acontecer, pelo que o melhor é afastar-me uns tempos. Tenho uma boa desculpa. Fu Xian quer que eu lhe faça um serviço.
– Vais ver a tua amada?
Benedito levantou a cabeça e fulminou o tenente com o olhar:
– De que estás a falar?
– Da menina Mariana da Conceição. De Singapura, ou da Malásia. Não sei. Dizem-me apenas que é muito bela.
Benedito piscou os olhos. O seu rosto pareceu, de repente, ter mais linhas a marcá-lo. Perdeu alguma da flexibilidade que o caracterizava.
– Nada temas, Benedito. Sei que não acreditas em mim, mas eu prometo silêncio.
– Porque não acreditaria em ti?
– Porque as pessoas não têm fé.
Benedito fitou-o severamente. Como se tivesse sido ameaçado com uma faca.
– Eu tenho fé.
– Tens? Alguma vez tiveste?
– Sou jesuíta. Padre.
– Achas que, se acreditarmos em tudo o que dizes, ainda és padre e tens fé? Não irás para o inferno?
– Não estamos todos no inferno?
Amoroso fez um sorriso velado e misterioso.
– Estamos. Mas nem tudo tem de ser sofrimento e culpa. Benedito sussurrou:
– Estou cansado. Até demasiado cansado para responder a essa pergunta.
Esfregou os olhos antes de continuar:
– Tenho muitas notícias sobre João Carlos da Silva. A sua vida. Foi-me contada por alguém que passou por aqui, e no meio da bebida, foi-me abrindo as portas para conhecer um homem que parecia transparente. Que aparentava ser apenas um secretário do Governo e que tinha tido um desgosto de amor depois da mulher não se ter adaptado a Macau e ter rumado a Portugal.
– Quem te contou?
– Um homem de Macau. Que foi amigo do senhor Silva. E, sobretudo, seu credor.
– E então?
– Então, a vida do senhor Silva é mais complexa. Veio efectivamenre para aqui, casado com a senhora Gertrudes de Albuquerque. Uma católica muito piedosa, que passava a vida na Igreja. Os primeiros meses foram suportáveis, até que o senhor Silva começou a jogar e a perder. Com isso destruiu o património da mulher. Esta, incapaz de o conter, desapareceu.

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A voz de Benedito transformou-se num sussurro:
– Diz-se que partir um barco, às escondidas, para Moçambique. Onde tinha família. Este homem que o conhecia diz-me que ela nunca chegou a Moçambique. E que as tentativas da família para saberem o que acontecera a Gertrudes tinham sempre esbarrado no silêncio das autoridades de Macau.
– Talvez a mão do senhor Silva estivesse por detrás desse silêncio…
– Talvez. Como talvez a senhora Gertrudes não tenha saído daqui viva. Não se sabe e talvez nunca se venha a saber. Mas o certo é que ele continuou a jogar. E a perder o que tinha e o que não tinha. Foi quando conheceu a família Palha. Sofia viu nele o que não encontrava no seu Joaquim. Ou, talvez, segundo este meu informador, que emprestou muito dinheiro a Silva com bons juros, porque queria saber os segredos da administração. Quem deve muito está susceptível de trocar as dívidas por informação. Segundo parece, Silva passou a ter dinheiro. Chegou mesmo o momento em que pagou as dívidas e os juros. E isso coincidiu com a chegada de Max Wolf a Macau. Não é difícil ver a conexão. Sofia, ou mesmo o senhor Palha, colocaram Silva e Max Wolf em contacto. As suas amigas chinesas devem saber mais sobre isso.
– O mundo é gerido pela fraqueza dos outros.
– Ou do próprio. As fraquezas às vezes conduzem a respostas muito fortes. E impensadas.
O tenente passou a mão pelo queixo, bebeu um pouco de cerveja, e disse:
– Esse teu amigo de bebida sabe quem matou o Silva?
– Ele não sabe. Mas desconfia. Ele era útil para o alemão. Este tinha-o na mão. Restam o Joaquim Palha ou a Sofia. Porquê, não sei, mas o Silva e a Sofia acabaram na cama. Não sei o que ela viu nele. Ou se foi uma simples forma de ela se vingar do marido. Este tem uma amante em Hong Kong. Vai lá muitas vezes em negócios…
Deu um gargalhada. Soou a cinismo puro.
– Estava há pouco a falar-me de fé, tenente? Que acha? O universo é o caos. Talvez um dia a ordem consiga emergir do caos e prevalecer. Talvez deixe a escuridão e traga a luz.
Escutou um ruído. Alguém arrastava uma cadeira para um dos cantos da taberna. Tinha uma boina preta e, sem dizer nada, sentou-se, começou a tocar uma guitarra portuguesa e ouviu-se a sua voz.

(continua)

8 Ago 2021

Proezas a não repetir

Quando uma pessoa tem dezasseis anos é geralmente muito estúpida. É uma espécie de efeito Dunning-Kruger geracional: quando mais um tipo desconhece da vida mais assertivas são as suas certezas acerca da mesma. Há obviamente honrosas excepções, adolescentes cuja invulgar maturidade os previne de fazerem os mais diversos disparates. Infelizmente, esses sábios prematuros pouco ou nada retiram de positivo dessa santidade temporã – a não ser, claro está, a manutenção da integridade física. Os outros, do alto das suas pirâmides de desastres coleccionáveis, apoucam-nos sempre que podem. Estes passam ao lado de quase tudo que é inseguro e divertido; não se entopem de drogas numa festa com desconhecidos, não conduzem como se tivessem tido aulas no poço da morte de uma qualquer feira popular, não partem a cremalheira em volteios de skate ou bicicleta. São uma seca.

Eu, que sempre fora bom aluno e, por isso, relativamente solitário, queria muito ser adoptado. Pelos tipos das motas, das bandas de garagem ou pelos noctívagos profissionais. Não queria era estar sozinho. Sendo bastante tonto à altura, não me custava embarcar em todo o tipo de aventuras. Tudo quanto não comportasse perigo era insonso. Por isso todos os dias, a seguir às aulas, ia para um baldio atrás de casa fazer cavalinhos com a minha Target. Assim, quando estivesse com a malta a que eu aspirava a ser, poderia eventualmente fazê-los olhar, pelo menos uma vez que fosse, para mim. Ser bom aluno é suficiente até às hormonas começarem a falar. A partir desse momento, a conversa passa a ser outra.

Houve um dia em que nos lembrámos de empinar papagaios. Eu e mais dois amigos, na rua da minha irmã, em Albufeira. O Benjamin, o mais velho, teve uma ideia: «isto com mais vento até funcionava, e se o fizéssemos de mota?» Claro que a ideia me pareceu genial. Lamentei apenas não ter sido eu a tê-la.

A mota era do Benjamin, pelo que o mais expectável era ser ele a conduzi-la. Mas o papagaio também era do Benjamin, e era natural que quisesse ser ele a guiá-lo. Como não podia fazer ambas as coisas – os adolescentes podem ser malucos, mas até eles têm alguma noção dos limites – ficou combinado que eu conduziria a mota do Benjamin e ele, no banco de trás, empinaria o papagaio.

Durante uns quinze minutos, a coisa correu bastante bem. O papagaio lá esvoaçava com aquele vento forçado, rodopiando atrás de nós como um cão aéreo. Só não era sucesso absoluto porque o papagaio era baratucho e difícil de controlar. Mas já estávamos a pensar em comprar um papagaio mais robusto e mostrar a proeza perto da praia, onde decerto alguma gaiata mais curiosa apreciaria o nosso engenho.

Tudo estava a correr de feição até eu decidir que também merecia ver o que se estava a passar atrás de mim e não só ouvir os berros de satisfação do Benjamin mesmo à porta do tímpano. Passavam poucos carros naquela rua e, sendo uma recta, tinha mais que tempo para espreitar o que se estava a pensar sem nos colocar em perigo. Assim o fiz. Rapidamente percebi que a proeza só se tornaria matéria de conversa se o papagaio fosse capaz de nos seguir com alguma elegância e não com aqueles trejeitos de enguia epiléptica pela trela.

Feito o diagnóstico, voltei-me para a frente. A mota descaíra ligeiramente para a direita (o lado para que me tinha virado). Mesmo diante de mim, a parte de trás de um carro estacionado. Não dava para travar a tempo de não bater. Ainda assim, travei a fundo. Gritei. O Benjamin, ocupado com o papagaio, foi o último a perceber. Saltou por cima de mim, batendo-me com o joelho na nuca no processo. Escusado dizer que a queda foi bastante mais espectacular do que a proeza em si.

Acorreram as pessoas da rua, os vizinhos da minha irmã, o dono do carro. Chamaram-nos uma ambulância e sublinharam a nossa inconsciência. «Estes miúdos só estão bem fazendo asneiras», ouvi dizer a um velhote, do passeio. Verdade. Mas quando se lhes sobrevive, que belas histórias dão.

8 Ago 2021

Posturas

Quando tive de ir para o hospital consegui levar alguns livros (bom, escolhas que tinha de fazer de modo sonâmbulo, febril, e em cinco minutos).

Peguei ainda no tomo completo do Herberto Helder mas folheei cinco páginas e esbarrei em palavras abstractamente líricas, vazias, uma luxúria que vem do raciocínio, como uma máquina, que produz ideias ou metáforas segregadas por outras ideias e que, por terem abandonado o contacto com a vida nua, resistiam agora menos à violência, à prova do cateter.

A poesia tem de voltar a uma dimensão humana, de superar a prova do cateter (esse embate com a dor e a violenta drenagem de fluidos num vaso sanguíneo), ter o seu quê de mancha humana e de grito. Quantos poetas chegarão lá acima para a pergunta fatal do S. Pedro: eh tu onde meteste as tuas tripas?

Estou a ser injusto com o velho vate e aliás ao contrário de muitos adorei os seus últimos livros porque precisamente havia aí uma nova porosidade com a vida que prescindia de volutas e da gratituidade do engenho para ir direito ao osso, à humílima presença do ar que se partilha. Mas, pelo meio, a provação da doença destapara os brilhos de alguma talha dourada naquele húmus, algum apego ao adorno. Embora não esqueça que quanto mais uma coisa tem profundidade mais deva ser refinado o espírito que a pode entender.

E havia o problema do peso. Com quantos tomos completos me deixariam entrar no isolamento?

Mais tarde, já no hospital, optei por baixar na net uma antologia de Gullar. E logo ao quarto poema apanhei, AS PERAS: «As peras, no prato,/ apodrecem./ O relógio, sobre elas,/ mede/ a sua morte?/ Paremos a pêndula. Deteríamos,/ assim, a/ morte das frutas?/ Oh as peras cansaram-se/ de suas formas e de/ sua doçura! As peras,/ concluídas, gastam-se no/ fulgor de estarem prontas/ para nada./ O relógio/ não mede. Trabalha/ no vazio: sua voz desliza/

fora dos corpos./ Tudo é o cansaço/ de si. As peras se consomem/ no seu doirado/ sossego./ As flores, no canteiro/ diário, ardem,/ ardem, em vermelhos e azuis. Tudo/ desliza e está só.(…)», um poema magnífico, que naquela cama abismada pela espectralidade dos sudários, me levava a identificar-me com as peras, com a fugacidade que lhes dá e rouba a doçura e com essa voz que desliza para fora dos eixos do tempo.

Li entretanto, outras coisas com alguma densidade paliativa, que me desviaram de pensamentos tétricos, “A Tempestade”, de Vladimir Sorokin, que à partida me parecia e se confirmou como um pastiche do romance russo do século XIX mas que vai enlouquecendo à medida que progride e o absurdo se torna toda a medida, e o esplêndido segundo tomo da biografia de Doris Lessing, “Andando na Sombra”, que não deixa nada em pé dos mitos do século xx (da derrocada dos mitos políticos da esquerda, à figura do escritor como pêndulo de certos valores, em retratos onde esta pose é esgarçada pelas garras da autocondescendência, do paradoxo quanto à frequência com que se encontram em desacordo com a sua consciência, ou a da inveja) mas é de uma coragem na exposição da intimidade e duma honestidade que retempera e recupera, ainda que sob a sombra perpéta da possibilidade do erro, uma certa força moral.

E reli sobretudo um ensaio com um prazer redobrado: “Experience Esthetique et Spirituelle chez Henri Michaux /la quete d’un savoir et d’une posture”, de Claude Fintz.

É um livro que me é vital pois separa o trigo do joio e aqui é menos a estética do que o espiritualidade que me interessa, nessa vertente heterodoxa mas tão sériamente vivida por Michaux e onde também sinto ser o meu sulco – não falo dos conseguimentos mas do lugar onde me posiciono -, tal como na Catalunha o sinto na obra de Chantal Maillard, que já traduzi e espero vir a apresentar com outro fôlego.

Transcrevo dois excertos do Fintz, onde me sinto totalmente identificado: «Escrever permite, a um tempo, mudar-se a si mesmo, apaziguar as desordens individuais, mas também mudar o mundo e regular-lhe o mal. Michaux sonha com uma escritura sem traço, transfigurada em força radiosa. Ele crê na eficácia mágica duma escrita que desembocará no bem e cuja “crueldade” se metamorfosearia em poder de cura».

A segunda: «A escritura em Michaux é explicitamente pensada como empreitada de conhecimento de si (…) a escritura é certamente espelho das inquietações,  esperanças, hesitações, impasses da via experimental, mas ela é em si mesmo o caminho perdido e reencontrado de si; ela permite “percorrer-se” sobre diferentes modos – compreendendo-se aí  o ficcional e o imaginário – mas ela é em última instância una ascese que leva à maturação, quase à mutação interior».

Portanto, naquele umbral em que me encontrava confirmei as minhas convicções: merda para o cinismo, para o realismo, para o niilismo. Nós somos melhores do que isso – é o que vos digo.

E para alguém como eu, a quem interessa mais a espiritualidade do que a infusão num Deus nomeável, não deixo de encontrar sentido na questão levantada por Karlfried Durckheim: «Vocês serão melhores pintores, sapateiros ou carpinteiros, se sentirem que a vossa responsabilidade é para com Deus e não somente para com o vosso cliente.» Sim, é preciso que a sensibilidade da poesia testemunhe o seu tempo (é o fragor existencial de que não devemos abdicar) e ao mesmo tempo, numa dobra, como algo que difere ou se bifurca, desperte uma instância “anónima” e mais profunda, enraizada num outro plano onde o pequeno ego se reconcilia e dissolve – é isso que nos mede e reconstitui. É também o que nos dá uma dimensão crítica, um sentido da proporcionalidade dos valores que emudece o encantamento das sereias.

5 Ago 2021

Fios invisíveis

Biblioteca, Grândola, sexta, 16 Julho

O Luís [Cardoso] lá foi contar ainda uma vez das mulheres da sua vida – a mãe que se desdobrou em mais mãe de onze além dos onze iniciais, a namorada que foi ao encontro das balas assassinas – afirmando assim e sem quebrar o mistério a força das vozes femininas no seu romance-poema, romance-rio. Omnipresentes, quase invisíveis, comme d’habitude. Acabo de saber que quem lhe lança a pergunta, em acto de apresentação, e há muito o lê daquele modo íntimo como só a tradução, a Catherine Dumas assinará recensão para a Colóquio Letras.

Dá-se a reunião bem acompanhada em dia quente, neste espaço novo, que contém rios no coração dos muros, por haver ali uma belamente desarrumada exposição da Ana [Jacinto Nunes], na qual se incluem as ilustrações que abrem aquela «sonata para uma neblina». Esquecendo as salas, exemplo de uma arquitectura fechada sobre si, ignorante de funções e destinos, ali se encontram dezenas de rostos em pose. Gosto do jornal que diz ao que se pode ir, sujando as mãos, com singeleza, sem contar em demasia. A pintura da Ana, para captar a vida, surge sempre irrequieta, como que inacabada, a caminho de outra coisa, o gesto do pincel em busca da forma exacta das suas personagens, esculpidas na cor e respectivos movimento e temperatura, mulheres e animais, abraçando-se, quebrando fronteiras, celebrando nevoeiros. Um jazz no qual o tecido pode ser instrumento. Invariavelmente, os rostos olham-nos, desafiam-nos para diálogo em fluxo, fonte brotando da fronte. Oiço dos vários quadrantes que só somos na mistura com o natural. Nasceste da cor e a ela voltarás. Aqui e ali, as peças de cerâmica sublinham isso mesmo pois abrigam raízes, fazendo nascer do barro cortinas de verde, bambus onde se escondem os ventos, outros verdes esguios que podem bem dar pássaros. «Entre nuvens e papiros», assim se chama a mostra e no nome se (des)arruma o assunto.

 

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 17 Julho

A propósito: a SOS Racismo lançou um «Dicionário da Invisibilidade» contendo, além de belos retratos do André [Carrilho], uns bons milhares de entradas, com proveniências e autorias diversas, para «abrir uma brecha para a discussão e alargamento de horizontes sobre a questão da invisibilidade». Podem discutir-se os critérios, talvez demasiado abrangentes, e em qualquer lista sobra (não digo) ou falta sempre alguém (aqui sim, Natália Correia, exemplo exemplar). De qualquer modo, fica apresentada uma multidão de ladrões de fogo, que nas várias áreas e geografias, se entregaram, se entregam a uma causa, alargando horizontes. Seiscentas e tal páginas que dão bom princípio de conversa. Gosto de encontrar, logo abaixo de Tina Modotti, uma entrada para o Maçarico (1960-2014), nome que vestia o Vitor Ribeiro de nascimento. Era, fica escrito, traficante de sonhos.

 

Paço da Rainha, Lisboa, terça, 27 Julho

No diário fingido, que o são todos, esfregam-se mãos cuspidas para decidir caminhos nesta «rua da estrada»: enfrentar os mortos que nos interrompem os dias ou fugir pelo não. Folgo em ter amigos entre os que escavam obituários nos jornais e entre os que possuem as chaves dos portões de cemitério. Acabaremos todos por sair impressos naquelas páginas, em certo sentido, uma folha vibrante do quotidiano, a outra lençol de amargura na bainha da cidade.

Assim de atraso levo meses, mas que fique escrito que não pode passar sem lágrima o Vasco, o Otelo [Saraiva de Carvalho], o [Roberto] Calasso e o Pedro Tamen, assim por junto e sem sentido. Começando pelo fim, o poeta que foi, sem deixar de o ser, tradutor, editor e até administrador, vai faltar-me como orquídea cuja morte não apagará a culpa. Deixar de regar, de puxar o sol, talvez de soletrar em direcção da suprema elegância merece castigo. Falhei por não o ler mais, apesar do inevitável. Ergo mão que nem pelo gesto atingirá o leitor dos mitos e assim. Calasso contém o movimento das rochas, também no lugar de boas vistas do editor. Celebrando sem parar o movimento líquido do pensamento que se ergue das linhas correndo para o mar. Levantar a mão não arranca raiz. E nisto me encontro no dizer em desenho do Vasco, que compunha corpos explodindo. Dizer pelo nariz é bufar e por aí vai o comentador de ideias despenteadas, a quererem deixar a invisibilidade. Vai onde? Vai de encontro. Lá longe, pá, ergue-se o Otelo. Eu que sou das margens, apesar dos geómetras-vigilantes de algibeira se enganarem nas medições míopes, vou directamente ancorar no destruidor das âncoras. O que nos aproxima de casa não impede o voo. Ele foi quem apontou, por momentos, maneira de fazer do cais uma nuvem. Ou melhor, disse apenas que, para lá do aparente, o impossível estava ali: tomai e comei. Os quatro que partiram agora ajudariam a explicar. Ou a perguntar, que não há melhor maneira. Apontador de mitos, um, a desfazer a lápis no minuto pelo outro, se fosse caso disso, enquanto aquele gizava a logística do golpe e o poeta consertava sapatos e a luz. «Por cave deserta/ entram hábitos e ruídos/ verdes montanhosos, cascata/ um rio de água de Verão.// Estou só eu e o martelo/ e a minha mão opressa/ ou estará não sei que mundo/ com a palavra ou sem ela?// E eis-me então adivinho/ dos mistérios que atravessam/ a janela onde perpassa/ a luz que mal me ilumina/ e é o sal do meu pão.»

 

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 31 Agosto

A Patrícia Mamona voando fecha de boa maneira este dia pontado de intensidades. Resolvi entrar em «Pústula», outro perturbador filme de filmes da Bárbara [Fonte], exposto na Galeria da Casa Molder. Pendurado na parede velha, que a Bárbara pinta com a câmara, dando a ver sucessivos nascimentos, na ligação com a figuração clássica, a da dor sobretudo e à volta do religioso, essa encenação do essencial. A artista desenvolve uma liturgia em torno da natureza, da natureza das coisas. Nos interstícios do que passa e do que fica, do que se fixa e do que mexe, no corpo, na paisagem, na mescla líquida de um e outra. Vem depois o peso e as maneiras de o vencer. O vento que contém os fios que erguem o volúvel, o insustentável. A mulher voa («paralítico» do filme, algures na página e a sair dela). Vai acontecendo o arfar denso da lentidão ao limite, que cose os fragmentos da quase narrativa. Cada livro contendo pinturas faz-se espaço do sagrado. São momentos duros, rasgados e agrestes, beleza em carne viva, imagens fortes que ecoam em nós, por muito tempo e nos vários tempos do desperto e do sonhado. A cada um importa voltar e revoltar, como missal para nos explicar as cicatrizes de cada dia, o tule que se faz fumo, um fio de sangue branco leitoso que se puxa das chagas, dos mamilos antes de correr pelo negro, desperdiçando alimento, talvez vida. A casa é ruína, lugar de repouso das próteses, arrumo das naturezas mortas, o deitado que pode ser morte, raiz, mas também antena procurando céus. As lágrimas que foram areia, são agora fitas, fitas que não escorrem, para sempre brilhando esvoaçantes. E depois, ainda prolongamento de si, um enxoval de vestidos-prisão, a banheira e a água feita roupagem. A vida é crosta na nossa pele. A terra, lá fora, enxovalha. Há que a sentir com o corpo todo. Só com o corpo todo se penetra neste fascinante trabalho de inquietações. Daqui ninguém sai vivo. Da mesma maneira.

4 Ago 2021

As Viagens de Gulliver – Quarta Parte

Se nas primeiras duas partes Swift reconfigura o nosso ponto de vista, isto é, coloca-nos na posição de vermos o nosso ponto de vista, fixo, nas terceira e quarta partes de As Viagens de Gulliver o autor vai realizar um outro movimento: o de mostrar aquela que é a nossa ilusão maior, a de pensarmos que somos animais racionais, de pensarmos que somos seres de razão. Há uma diferença radical entre ter razão e ser um ser de razão. Ser um ser de razão implicaria nunca ser fora dela, nunca agirmos contra ela. Isto seria ser um ser de razão, um ser racional ou, se preferirmos, um animal racional. Mas como isso não se passa, nós não somos animais racionais, mas animais que têm razão, assim como temos instinto.

De qualquer modo, para que o leitor consiga seguir convenientemente os seus passos até esse movimento derradeiro levado a cabo na quarta parte, foi preciso existir uma terceira, que prepara o terreno. Assim, veja-se primeiro o que acontece na terceira parte do livro. Aqui, e depois da embarcação de Gulliver ter sido capturada por piratas e de o terem abandonado numa canoa com remos e vela em alto mar e provisões para quatro dias, o nosso herói consegue navegar até uma ilha completamente rochosa, que fazia parte de um grupo de ilhas. Gulliver foi viajando de ilha em ilha até que alcança a última destas ilhas. E é aqui que no dia seguinte a ter aportado, surge a ilha voadora. Uma ilha igual a todas as outras, com habitantes e terra, mas que voava. Esta ilha voadora ou flutuante chamava-se Laputa, que é onde a próxima aventura de Gulliver acontece, e que é toda a terceira parte do livro de As Viagens de Gulliver. Gulliver dá-se conta de quão estranhos são os seus habitantes. Mas do mesmo modo que eles eram estranhos a Gulliver, também este era estranho a eles. Para além da questão física, que nos é descrita pormenorizadamente, aquilo que mais importa é o comportamento. O mais extraordinário era que os habitantes traziam consigo um criado e todos eles carregavam consigo, segundo a descrição de Swift, e passo a citar: «bexigas, cheias de ar, presas, como um mangual, a um bastão curto que empunhavam. Cada bexiga tinha uma pequena quantidade de ervilhas secas ou seixos (como depois me informaram). De quando em quando, batiam com essas bexigas na boca e nas orelhas das pessoas que estavam perto, prática que então não compreendi. Segundo parece, o espírito destas pessoas está de tal maneira absorvido por especulações intensas que não podem falar nem ouvem os discursos alheios se não lhes chamarem a atenção por meio de algum contacto externo nos órgãos da fala e da audição. Por esta razão, as pessoas que podem têm sempre ao serviço da família um criado, que poderíamos designar por batedor (a palavra exacta é climenole), e nunca saem de casa nem fazem visitas sem a companhia deste empregado. O dever deste consiste, quando duas ou mais pessoas estão reunidas, em bater com a bexiga na boca do que tem de falar e na orelha direita daquele ou daqueles a quem se dirige o orador.» (pp. 150-1)

De modo a que a nossa apresentação se torne mais fácil, imaginemos que se trata de uma fina vara. O professor Nuno Ferro, num texto acerca de Kierkegaard, escreve que «Sócrates é para Kierkegaard aquilo que ele foi, um moscardo incómodo, que funciona como os flappers, que Gulliver encontrou, que tinham por função bater com varinhas nos ouvidos dos pensadores absortos no pensamento, para que não esquecessem de ouvir quando os outros falam, e na boca, quando chegava a altura de falar. […] Curiosamente, nós precisamos de quem nos recorde que existimos.» (p. 64)

Sim, nós vivemos como se não existíssemos. Vivemos como se tivéssemos de seguir determinadas normas e comportamentos, como se a nossa existência não tivesse nada a ver connosco. Na verdade, de modo geral, nós não existimos, seguimos os outros. Não apenas o que vemos e o que ouvimos, mas também o que achamos que deve ser, sem qualquer investigação acerca do assunto. De modo geral, vivemos naquilo a que Kierkegaard chama de estádio estético da existência. Mas isto não é análise que caiba aqui. O que cabe aqui é que estes estranhos seres viviam num mundo à parte, e precisavam de alguém exterior a eles que os fizesse reparar ou darem-se conta do mundo e, concomitantemente, dos outros ao seu redor. Esta descrição deste estranho povo, se pensarmos bem, não nos é assim tão estranha quanto parece. É bem verdade que não andamos com batedores com varinhas ao nosso lado, a lembrarem-nos de quando temos de falar e de quando temos de ouvir. Mas bem que podíamos ter. Pois na verdade, e é isso que Swift percebe bem, de modo geral o humano está fechado em si mesmo sem prestar real atenção aos outros ou até a si mesmo. Nós na verdade não prestamos atenção a nada. A nossa atenção está continuamente a ser diluída em outra atenção à frente e assim por diante sem que nos detenhamos no que quer que seja. E se isto ao tempo de Swift era completamente claro para ele, nos nossos dias de smartphones e de computadores é escandalosamente visível para todos nós. Este povo somos nós, na verdade, povo esse, que só mais tarde entendemos, é o oposto do povo dos cavalos, na quarta parte do livro.
Nós não somos apenas os yahoos da quarta parte do livro – como se verá nas próximas semanas –, nós somos também e muito claramente este povo que precisa de um criado a bater em cada um dos habitantes, para que eles ouçam e falem apropriadamente, isto é, quando devem fazer uma ou outra coisa. Veja-se como Swift descreve este povo de Laputa: «[A despeito de se expressarem matemática e musicalmente, através de números, linhas e sons] São pouco racionais, entregando-se com veemência à contradição – a não ser quando estão certos das suas opiniões, o que é raro.» (154) Mas veja-se mais duas passagens. A primeira acerca daquilo que mais tarde irá aparecer em Kierkegaard como «tagarelice» e «loquacidade» e em Heidegger como «falatório» e «ambiguidade». Leia-se: «[Este povo analisava] constantemente os negócios públicos, fazendo críticas a problemas do Estado e discutindo apaixonadamente todos os pormenores dos programas dos partidos políticos.» (154) Depois de uma aproximação a alguns matemáticos europeus, a que voltaremos, Swift remata: «Mas inclino-me mais para a ideia de que esta condição nasce de um mal muito comum na natureza humana, que nos leva a sentirmo-nos sempre curiosos e vaidosos em assuntos de que nada percebemos e para os quais estamos menos preparados, quer pelo estudo, quer pela nossa própria natureza.» (154-5) Esta contraposição entre Gulliver e os habitantes de Laputa acaba por ter em nós um efeito de espelho, pois aquilo que Switf descreve – e que agora Gulliver vê fora de si – é aquilo que é descrito como «um mal muito comum na natureza humana», a saber, a curiosidade, que contrariamente ao que se julga não é uma estrutura boa, mas má, pois conduz-nos a saltar de uma coisa para outra continuamente, sem nos determos em nada. Entregues à curiosidade somos levados a nunca aprofundar nada, a estarmos continuamente na superfície das matérias que nos despertam a atenção. O que conduz a maioria das vezes a julgarmos que sabemos na verdade acerca daquilo que falamos, quando não passa de completa superficialidade. É aqui que reside a ambiguidade, julgamos saber o que não sabemos. Hoje, com as redes sociais, isto ficou muito mais claro que nunca. E é isto precisamente que Gulliver nos relata. Ao ver fora de si aquele comportamento pelos habitantes de Laputa, fora do humano ou do modo como usualmente se é humano, Gulliver vê-se a si mesmo como se estivesse face a um espelho. Antes do encontro com os habitantes de Laputa, Gulliver não se dera conta de que a natureza humana funciona assim na maioria do tempo, mas vendo agora fora de nós, em outros, aquilo que somos, isso tornou-se claro. Como ele mesmo escreve «um mal muito comum na natureza humana». Torna-se cada vez mais claro que estas viagens de Gulliver mais do que viagens a terras exóticas, são viagens ao humano, às estruturas do humano. Swift está a dizer-nos claramente que nós somos para nós mesmos mais desconhecidos do que as terras longínquas que descobríamos com embarcações.
(Continua na próxima semana)

3 Ago 2021

Criação oficial do Corpo de Bombeiros

O Governador Carlos Eugénio Corrêa da Silva (1876-1879) referia na Portaria N.º 18 publicada no Boletim da Província de Macau e Timor de 25 de Janeiro de 1879: Tendo vagado o lugar de inspector da repartição dos incêndios desta cidade, pela exoneração pedida pelo major Augusto César Supico, [Portaria N.º17 de 20 de Janeiro de 1879], hei por conveniente nomear para exercer o mesmo cargo, o major do corpo do estado-maior do exército Raymundo José de Quintanilha, director das obras públicas desta província, que tomará conta hoje mesmo.

Vindo de Lisboa, chegara no dia 19 de Janeiro no transporte de guerra África e logo a 24 foi mandado tomar conta da respectiva repartição das obras públicas para a qual fora nomeado por decreto de 27 de Setembro de 1878. Ainda em 1879 o Major Quintanilha tentou submeter um regulamento à aprovação do Governador Correia da Silva, segundo refere Beatriz Basto da Silva.

Seria ele, por decreto de 23 de Março de 1881, exonerado do lugar de director das obras públicas de Macau pelo Governador Joaquim José da Graça, Visconde de S. Januário, que nomeou para o referido lugar o capitão do estado-maior de engenharia do exército de Portugal, Constantino José de Brito. Este, já promovido a Major, foi nomeado inspector da repartição dos incêndios por Portaria N.º 84 de 14 de Novembro de 1881.

Com esta nomeação, o Governo da província achou “conveniente ordenar, que o sub-inspector da mesma repartição o alferes António d’ Azevedo e Cunha Júnior [desligado das obras públicas como condutor em 1879] faça dela entrega hoje mesmo, ficando eu satisfeito pela maneira porque o referido sub-inspector desempenhou o serviço da inspecção durante o tempo que esteve interinamente a seu cargo.” Assim agradecia o Governador Graça ao alferes Azevedo e Cunha Jr., que interinamente exercera o cargo na Inspecção de Incêndios (Kao-fô Kúng Kun).

“À medida que os serviços de incêndio se tornaram cada vez mais complexos, em 2 de Maio de 1883, o governador assina o Regulamento do Serviço dos Incêndios em Macau, apresentado pelo então director das Obras Públicas e inspector de incêndios, major de engenharia do Estado Maior Constantino José de Brito, que foi aprovado por portaria de 10 de Agosto do mesmo ano. Com a promulgação do Regulamento, os bombeiros de Macau seguem os caminhos normalizados e marca a criação do Corpo de Bombeiros de Macau”, segundo o excelente livro Corpo de Bombeiros, edição comemorativa do 130.º Aniversário do Estabelecimento do Corpo de Bombeiros da RAEM.

REGULAMENTO DO SERVIÇO DE INCÊNDIOS

Publicado no Boletim da Província de Macau e Timor de 9 de Agosto de 1883, o Regulamento do Serviço de Incêndios datado de 2 de Maio desse ano foi elaborado por Constantino José de Brito e mandado executar por Portaria n.º 93 de 10 de Agosto refere: . Ainda a 10 de Agosto, o Governador Thomaz de Souza Roza por Portaria n.º 94 exonerou o major do estado-maior de engenharia Constantino José de Brito do cargo de inspector dos incêndios, para que fora nomeado a 14 de Novembro de 1881.

Regulamento do Serviço dos incêndios em Macau a que se refere a portaria supra. Capítulo I – Organização e pessoal – Artigo 1.º A inspecção dos incêndios tem por fim superintender o serviço dos incêndios e prover a tudo quanto lhe diga respeito. Artigo 2.º – A inspecção dos incêndios forma um corpo activo de bombeiros que terá o seguinte pessoal [com vencimento anual]: um inspector (216$000 réis); um patrão-chefe (102$000); três primeiros-patrões (71$400 réis cada); 2 segundos-patrões (61$200 cada); 2 sotas (51$000 cada); 20 condutores e 34 moços (recebem gratificações anuais de 51$000). Artigo 3.º -O fornecimento da água nos casos de incêndio será feito pelos indivíduos pertencentes às companhias de carregadores desta cidade, nos termos das posturas e regulamentos policiais e pela forma designada nos artigos 27.º e 48.º deste regulamento. (Quando o número dos carregadores das companhias for insuficiente para o fornecimento da água, o inspector poderá contratar outros dentro da respectiva verba do orçamento). Artigo 4.º -A inspecção deverá ter pelo menos 4 bombas, sendo duas em Macau, uma na Taipa e outra em Colovan. Artigo 5.º -O inspector é o chefe da repartição dos incêndios e incumbe-lhe toda a direcção do serviço… Artigo 6.º -O inspector deve acudir com a possível rapidez a todos os incêndios, e tomar a direcção suprema e exclusiva dos trabalhos, obrigando todos os seus empregados a cumprir pontualmente as suas ordens, e não consentindo que pessoas estranhas intervenham num serviço cuja responsabilidade é toda sua, devendo por isso também tomar a direcção das bombas particulares que concorram nos incêndios. Artigo 7.º -De todos os incêndios o inspector remeterá ao governo da província uma parte em que mencione a causa do incêndio, o local, a hora, quais as duas bombas que primeiro se apresentaram no incêndio para serem premiadas (…) esta comunicação será publicada no Boletim da província.

Os artigos de 8.º a 14.º referem-se aos deveres do inspector, responsável pela conservação de todo o material dos incêndios, pela disciplina do corpo de bombeiros, que será por ele escolhido e a quem deverá dar instrução. A nomeação do patrão-chefe e dos primeiros patrões será feita pelo governo sob proposta do inspector e remeter ao governo o mapa das despesas anuais da sua repartição.

Sobre o patrão-chefe, nos artigos 15.º a 19.º, refere-se ter por obrigação fiscalizar e vigiar todo o pessoal seu subordinado e o estado do material que está sob a sua responsabilidade na estação em que estiver aquartelado.

Antes do inspector estar presente no local de incêndio é ele que toma a direcção dos trabalhos. Para chegar a patrão-chefe é preciso ser homem experimentado no serviço dos incêndios, ter servido pelo menos um ano como patrão, ter bom comportamento, idade apropriada e disposição física para o serviço.

Nos artigos 20.º a 23.º refere-se sobre os primeiros patrões, que terão a seu cargo as bombas da estação em que residirem. Terão a seu cargo a bomba da vila da Taipa e outra da vila de Colovan e para ser primeiro patrão terá de ter servido pelo menos durante três anos como segundo patrão e conhecer os poços, cisternas e quaisquer outros depósitos da água.

Sobre os segundos patrões os artigos 24.º e 25.º referem, ter servido pelo menos durante dois anos como sota e coadjuvarão os primeiros patrões na direcção e serviço das suas bombas e os substituirão em todas as suas faltas ou impedimentos. Assim, a 2 de Maio de 1883 nasceu oficialmente o Corpo de Bombeiros.

2 Ago 2021

Quando a emel lá no estrangeiro me deu um gato

Quando descobri, em Clermont-Ferrand, que os parquímetros da cidade tinham sido arrombados todos na mesma noite mas que, ainda assim, davam a aparência de estarem fechados e a funcionar, vi-me de repente em tio Patinhas, banheira cheia de moedas para trocar por livrinhos de banda desenhada, gelados de seis andares no Verão e saquetas de cromos para acabar todas as cadernetas a que faltavam apenas meia dúzia em cada uma.

Os meus pais davam-me dinheiro, como é óbvio. Uma espécie de mesada que tinha de dividir com cuidado para ir comprando um lanche aqui e ali na escola e umas canetas. Mas pouco sobrava. Ou, na minha opinião, pelo menos, não o suficiente. Pelo que quando me apercebi de que todos os parquímetros da cidade se tinham transformado no meu mealheiro, não só passei a demorar cada vez mais tempo da escola para casa como passei a chegar cada vez mais pesado. Os mealheiros que me tinham oferecido ficaram a abarrotar em menos de nada. Comecei então a depositar o fruto das minhas passeatas pós-lectivas num vaso de plástico a que a minha mãe não tinha ainda atribuído morador. Guardava-o debaixo da cama e, a seguir ao jantar, com os meus pais ainda à mesa, refugiava-me no quarto e contava as moedas, com medo de que entretanto alguém me tivesse surripiado umas quantas (o dinheiro vem de mão dada com uma série de coisas pouco simpáticas que eu, à altura, desconhecia).

Certo dia aproveitei o bom humor do meu pai para lhe confessar que preferia gatos a cães. Ele, nascido e criado no campo, na serra algarvia, não percebia porquê. Os animais, para o meu pai, ou tinham uma serventia ou não tinham lugar no círculo doméstico mais alargado. Era-lhe absolutamente estranha a ideia de «animal de estimação». Isso era coisa de gente a quem o dinheiro a mais espoletava a adopção de toda a sorte de comportamentos excêntricos pouco desejáveis. «Um gato para quê?», perguntou-me? «O que vais fazer com um gato?» Na verdade, nem eu próprio sabia. Sentia-me sozinho, tinha pouquíssimo amigos e imaginava que um gato pudesse de alguma forma suprir ou pelo menos minorar essa carência. «Para brincar com ele», respondi, timidamente. «Um gato sai caro», asseverou. «Já temos dois cães, já gastamos tudo quanto podemos gastar em comida para os bichos». Tinha esperança de que ele me tentasse dissuadir sacando do trunfo do dinheiro. «Eu pago», repliquei. «Eu tenho dinheiro». Ele riu-se. «Então mostra lá esse dinheiro», gracejou, «a ver quantos dias consegues dar de comida ao animal, que tu não tens noção do preço das rações». Eu fui buscar um dos mealheiros, atulhado até à boca de moedas e despejei-o em cima da mesa da cozinha. Ele olhou para as moedas, para mim, para as moedas novamente e logo para mim. Não fez perguntas. Eu mantive-me estrategicamente em silêncio. «Quando aparecer aí nas redondezas uma gata que tenha uma ninhada, a gente conversa».

Acabei por ter um gato, um mês e pouco depois. O meu pai, pensando que eu era a criança mais poupada da história das crianças poupadas, não só mo trouxe a casa como me acompanhou orgulhoso ao supermercado para comprar um areão e comida para ele. A senhora da caixa, impermeável à vaidade paterna, reclamava da quantidade de moedas que tinha de contar. O meu pai, impassível, repetia: «algum problema? É dinheiro, não é?».

Certa vez, vínhamos para Portugal em Agosto, cumprir a romaria de imigrantes a que estávamos votados na altura, o carro avariou, perto de Bordéus. Tivemos de ficar dois dias num hotel. Eu, o meu pai e a minha mãe num quarto e os dois cães e o gato num anexo no último andar. Na hora de pagar o arranjo e as diárias, o meu pai viu-se curto de massas. Discutiu o assunto com a minha mãe; que ali não havia uma dependência do banco dele, que o melhor seria pedir emprestado a alguém, que pudesse mandar um vale postal, e pagar depois. Mas teríamos de ficar mais dois ou três dias, o que encarecia bastante a situação.

Eu ofereci-me para cobrir a parte que faltava. «Afinal, também vou no carro», atirei. «E assim não perdemos tantos dias de férias». O meu pai riu-se. Quando depositei sobre a colcha da cama o dinheiro em falta, o sorriso transformou-se num esgar de perplexidade. Tive de lhe explicar tudo, obviamente. Nem a mais poupada formiga das histórias infantis era capaz de reunir aquela maquia.

Ele riu-se e acho que entredentes resmoeu «filho da puta», mas na altura não percebi bem. Pagámos e passado dia e meio estávamos em Portugal. Nós e os bichos.

30 Jul 2021

A democracia não nos prepara para a ditadura

Era uma menina bem comportada, como as meninas têm tendência a ser. Uma longa tradição de família em ter-se orgulho na demonstração de competências cognitivas, sobretudo femininas. Menos mal, não me educaram para ser a melhor, apenas para nunca atingir um nível de vergonha própria e alheia. É verdade, por vezes até anexava um bocadinho o meu sentido de valor próprio aos números que iam surgindo. Nada de grave, há casos bem piores. Se fazia mal as contas levava reguada (ainda bem que entretanto nos fomos livrando destas técnicas pedagógicas do paleolítico) e quando levava reguada, sabia que professora não estava a olhar para a aluna dedicada e algo talentosa, estava a olhar para as contas mal feitas. Não é como se doesse menos, mas havia um princípio democrático – o castigo era aplicável a todos devido ao resultado de uma ação. Em democracia, queremos igualdade de tratamento e, acima de tudo, objetividade. Havia razões para o castigo – e não vou entrar aqui na discussão da noção de castigo como método porque esse não é o meu objetivo. Se tivesse um bom desempenho nas aulas mas os testes corriam-me mal, a minha nota ia ser uma conta feita através dessa balança. Os critérios de avaliação eram transparentes e isso era importante. Ninguém me dava uma nota com base naquilo que fazia no recreio ou por me vestir toda de preto com pentágonos, nem pela forma como questionava os professores. Eram sempre questões que provinham da lógica argumentativa e, mesmo que alguns professores tivessem um pouco mais de dificuldades em lidar com o confronto, ele saia do campo da avaliação de minha performance. A forma como me vestia, a forma como confrontava os professores com alguma injustiça na avaliação ou com matérias fora do programa, não interferiam com a minha avaliação que se regia por imparcialidade, racionalidade e não por emotividade. Justiça e democracia em todo o processo. Ninguém me tinha dito que o mundo do trabalho privado seria uma ditadura! Ok, provavelmente alertaram-me para isso constantemente de outras formas como “vais ver quando começares a trabalhar” ou outro tipo de premonições demoníacas. O certo é que ter começado com uma carreira académica não me tinha preparado para tudo o que me esperava no trabalho em empresas. Se nos formam para acreditar na justiça e no mérito, não nos formam para ter que lidar com estruturas que pouco têm de meritocrático porque a sua atribuição de estatuto depende exclusivamente da relação ao capital e, consequentemente, do poder inquestionável que este lhes confere.

Trabalhei em sítios onde me exigiam que andasse de saltos altos. Fui despedida por ter confrontado a minha chefe mesmo que os números do meu trabalho fossem os mais altos entre pares. Fui guiada em áreas do meu domínio por pessoas sem o menor conhecimento da área. Tal como na escola, tinha tarefas para executar e tentava executá-las.

Contudo, o desempenho de funções numa empresa nem sempre depende da transparência e da objetividade de critérios como numa escola. “É o mundo real” dizem. Talvez. Mas por vezes gostaria que me deixassem a um canto a sonhar com utopias.

30 Jul 2021