A democracia não nos prepara para a ditadura

Era uma menina bem comportada, como as meninas têm tendência a ser. Uma longa tradição de família em ter-se orgulho na demonstração de competências cognitivas, sobretudo femininas. Menos mal, não me educaram para ser a melhor, apenas para nunca atingir um nível de vergonha própria e alheia. É verdade, por vezes até anexava um bocadinho o meu sentido de valor próprio aos números que iam surgindo. Nada de grave, há casos bem piores. Se fazia mal as contas levava reguada (ainda bem que entretanto nos fomos livrando destas técnicas pedagógicas do paleolítico) e quando levava reguada, sabia que professora não estava a olhar para a aluna dedicada e algo talentosa, estava a olhar para as contas mal feitas. Não é como se doesse menos, mas havia um princípio democrático – o castigo era aplicável a todos devido ao resultado de uma ação. Em democracia, queremos igualdade de tratamento e, acima de tudo, objetividade. Havia razões para o castigo – e não vou entrar aqui na discussão da noção de castigo como método porque esse não é o meu objetivo. Se tivesse um bom desempenho nas aulas mas os testes corriam-me mal, a minha nota ia ser uma conta feita através dessa balança. Os critérios de avaliação eram transparentes e isso era importante. Ninguém me dava uma nota com base naquilo que fazia no recreio ou por me vestir toda de preto com pentágonos, nem pela forma como questionava os professores. Eram sempre questões que provinham da lógica argumentativa e, mesmo que alguns professores tivessem um pouco mais de dificuldades em lidar com o confronto, ele saia do campo da avaliação de minha performance. A forma como me vestia, a forma como confrontava os professores com alguma injustiça na avaliação ou com matérias fora do programa, não interferiam com a minha avaliação que se regia por imparcialidade, racionalidade e não por emotividade. Justiça e democracia em todo o processo. Ninguém me tinha dito que o mundo do trabalho privado seria uma ditadura! Ok, provavelmente alertaram-me para isso constantemente de outras formas como “vais ver quando começares a trabalhar” ou outro tipo de premonições demoníacas. O certo é que ter começado com uma carreira académica não me tinha preparado para tudo o que me esperava no trabalho em empresas. Se nos formam para acreditar na justiça e no mérito, não nos formam para ter que lidar com estruturas que pouco têm de meritocrático porque a sua atribuição de estatuto depende exclusivamente da relação ao capital e, consequentemente, do poder inquestionável que este lhes confere.

Trabalhei em sítios onde me exigiam que andasse de saltos altos. Fui despedida por ter confrontado a minha chefe mesmo que os números do meu trabalho fossem os mais altos entre pares. Fui guiada em áreas do meu domínio por pessoas sem o menor conhecimento da área. Tal como na escola, tinha tarefas para executar e tentava executá-las.

Contudo, o desempenho de funções numa empresa nem sempre depende da transparência e da objetividade de critérios como numa escola. “É o mundo real” dizem. Talvez. Mas por vezes gostaria que me deixassem a um canto a sonhar com utopias.

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Bernard Fong
Bernard Fong
1 Ago 2021 10:21

Sim a Sara, a situação laboral não corresponde à versão idealizada na escola e na universidade. Ainda algumos eruditos não podem reconciliar-se ao mundo fora delas aulas onde uma igualdade, o professor excepto, prevalece. Bom domingo do lar em Hong Kong e desesperado para regressar-me ao Canadá.

António Graça de Abreu
António Graça de Abreu
2 Ago 2021 20:22

Poi9s é, Sara, a realidade é o cemitério das utopias. Infelizmente.