O Jogo das Escondidas – Capítulos 51 ao 60

51

Ouviu a voz de Benedito:
– Foi em Singapura que tive a oportunidade de ler, pela primeira vez, os livros de Homero, a “Odisseia” e a “Ilíada”. Identifiquei-me com Ulisses, não sei porquê. Talvez pelas duas fases da vida que ali são retratadas. Fazem sentido para mim. Sabes, quando penso nos espiões lembro-me de um episódio que é contado nesses livros. É uma lição de vida. Nele, Ulisses encontra um espião troiano, Dólon, que ia espiar os gregos. Convence-o que a sua vida pode ser poupada se cooperar e revelar tudo o que sabe sobre as tropas troianas. Quando as dá, Diomedes diz que tem de matar Dólon. Porque se o libertar ele regressará, ou para espiar os gregos ou para os combater. Dólon pede clemência, mas a espada de Diomedes mata-o.
Benedito susteve a respiração, antes de continuar:
– Que lição podemos tirar daqui, meu caro tenente? Não podemos confiar em ninguém. Nem nos que nos prometem o que quer que seja. E na espionagem há sempre a hipótese de não escaparmos com vida.
– Eu sei, padre. O fundamental de qualquer actividade clandestina é poder escapar ao olhar alheio. E eu isso não consegui fazer.
– Aprendi uma coisa com um agente meu. Um chinês do interior. Dizia-me ele que quando um espião deixa de saber qual o seu caminho no meio da escuridão, deve sentar-se, observar o céu e ver as estrelas entre as nuvens. Talvez seja agora uma boa lição. Para ti e para mim.
– Sim, essa talvez seja a melhor estratégia. E também, como me ensinou Ding Ling, converter-me no inimigo. Colocar-me no lugar de quem me pode fazer mal e sondar o seu coração e as suas razões. Preciso de conhecer as suas ambições e intenções. E então saberei quem me quis matar.
– Sim mas tens de ter muito cuidado. Eles estão dispostos a calar-te. Quando se caminha de noite por caminhos iluminados pela lua, deve utilizar-se as zonas de sombra.
Continuaram a falar, enquanto não muito longe dali, a batalha fora rápida. Bei Li desviou o olhar dos corpos estropiados por balas e facadas e que estavam caídos no chão. Eram quase todos homens de Fu Xian, mas este não se contava entre os mortos. Tinha conseguido fugir.

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O edifício de pedra esverdeada estava conquistado. Ding Ling, com olhar decidido, passou com a mão pelos contentores de madeira que continham sacos de heroína. Os seus homens esperavam, ansiosamente, ordens. Por fim ela disse:
– Queimem tudo!
Eles assim fizeram. Os contentores foram-se transformando em fogueiras enormes. Saíram rapidamente do local. O fumo começou a sair pelas janelas e pela porta. Ding Ling olhou para o céu. A lua estava com uma luz poderosíssima. Era uma visão maravilhosa. Por momentos julgou ver a sua face reflectida naquele círculo que iluminava Macau e que, em conjunto com as chamas que agora saíam do prédio, lhe davam um aspecto demoníaco. Ding Ling disse, enquanto começava a caminhar:
– Nesta guerra a melhor arma é o medo que provocamos nos nossos inimigos.
Bei Li não disse nada, mas seguiu os passos de Ding Ling, como se fosse a sua sombra.

13.

A ventoinha rodava lentamente no tecto. Fazia um ruído estranho, o que poderia ser um sinal de que estava quase a deixar de funcionar. O governador Rodrigo Rodrigues, sentado no seu cadeirão, olhou para lá, enquanto soprava o fumo do cigarro para o ar. No seu olhar havia algo de resignado, como se finalmente percebesse que nem sempre era fácil mudar o que fosse em Macau. O Palácio do Governador, onde estava, era um local onde os silêncios, muitas vezes, diziam muito mais do que as frases e os sussurros se impunham às vozes mais audíveis.
– Com este calor é fácil perder o hábito de agir.
As palavras do governador soavam a indiferença, mas Félix Amoroso sabia que ele tinha muitas ideias para a cidade. Circulava em voz baixa no Grémio Militar, que estava a tentar colocar, pela primeira vez, representantes da comunidade chinesa local no Conselho do Governo, algo que não era do agrado das entidades mais conservadoras. Por outro lado tinha convidado o bispo de Macau, D. José da Costa Nunes, a fazer parte do mesmo Conselho. Parecia uma forma de ele, um maçon, mostrar que a República era a casa de todos e de tentar gerir interesses contraditórios. Era como construir um castelo de cartas. Bastava um sopro mais forte e tudo caía.


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Ainda assim, sabia a sua força, porque o poder estava formalmente concentrado nas mãos do Governador, representante de Lisboa. Mas, na prática, isso era um equívoco. O governador tinha sempre de gerir os interesses dos senhores locais mais influentes e, por isso, muitas vezes as suas ideias diluíam-se numa sopa sem sabor ou aroma. Na Taipa, era o comandante militar, que mandava em Amoroso, que fazia as suas próprias leis. Não que a sua força fosse muita. Recentemente o general Gomes da Costa tinha passado por Macau para ver como se encontrava a situação militar e partira desolado.
Em Macau tudo se sabia. Não era uma cidade muito grande para ser possível guardar segredos. Rodrigo Rodrigues insinuou:
– Nunca se deve tentar agradar a todos, porque no fundo estamos apenas a transferir para o futuro o verdadeiro duelo.
– Quem tem paciência acaba por vir a governar o mundo, senhor governador.
– Isso não sei. Mas tenho a convicção de que não estarei muito tempo em Macau.
Amoroso sondou a face do governador, mas esta manteve-se impassível e serena. Rodrigues tinha a virtude de saber esperar. E de não ter esperanças infundadas sobre o futuro. A voz do governador voltou a soar:
– Estou a pensar reforçar o patriotismo em Macau. Apelar aos sentimentos nacionais, mostrando o que nos une e não o que nos divide. Que acha da ideia, tenente?
– Parece-me boa. E como quer fazer isso?
– Penso que Luís de Camões diz muito às pessoas de Macau. E a Portugal. Foi o homem que serviu para juntar os portugueses em redor dos republicanos e contra a Monarquia, quando os ingleses nos humilharam com o Mapa Cor-de-Rosa. Os republicanos souberam recuperar Camões e “Os Lusíadas” para vincar o nosso patriotismo e fazer renascer o nosso sentido de honra. Estou a pensar instituir uma romagem à gruta de Camões no Dia de Portugal.
Amoroso acenou com a cabeça. Notara que, pouco depois de ter chegado a Macau, Rodrigo José Rodrigues deixara de andar fardado, apesar de ser miltar. Usava roupas civis. Dizia-se que era uma pessoa sociável, que gostava de se sentar debaixo de uma árvore quando estava calor e de ver os chineses mais velhos a jogar mahjong nas ruas. Às vezes, à noite, percorria as ruas da cidade, sem escolta.

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O governador bateu com um dedo no tampo da mesa, quebrando o silêncio.
– Tem de ter cuidado, tenente. Penso que não seria o primeiro português a apaixonar-se por uma chinesa e por causa disso nunca mais regressar a casa.
– Porque diz isso?
– Sei que a menina Ding Ling é a sua, como direi, protectora? Se não fosse a sua acção, poderia ter perecido na tentativa de assassínio. Ou estou enganado?
– Não está, senhor governador. Como diz uma outra amiga minha chinesa, “como um pássaro no rio, como um peixe no ar, um estrangeiro é um homem com problemas na noite de Macau.”
O governador deu uma pequena gargalhada.
– E ela, com essa frase, também se refere aos portugueses?
– A alguns. Não a todos. Muitos portugueses conhecem Macau e amam esta cidade. É a sua casa. Tenho aprendido isso.
– Não duvido. A minha mulher está a encontrar muita inspiração aqui para a sua poesia. Quando me for embora será um problema.
Seguiu-se um novo silêncio, antes de Amoroso questionar:
– Como está a vida política em Lisboa?
– Um pântano, como sempre, segundo o que vou lendo no “Diário de Notícias”. Vão desaparecendo os melhores, como o Carlos da Maia, que foi aqui governador. Assassinados ou afastados. E nascem, como cogumelos venenosos, os arrivistas, os lambe-botas e os que desejam apenas o poder. É difícil respirar ali. Não tenho muitas saudades. Isto pode parecer um exílio, mas aprecio-o. As intrigas demoraram algum tempo a chegar aqui e a ter um efeito nefasto.
O tenente puxou de um cigarro e acendeu-o antes de responder:
– Parece evidente que Portugal não vai vender Macau à Alemanha. Os chineses também não gostariam da ideia, porque a primeira coisa que a Alemanha faria era pôr aqui uma base militar a sério. Já lhes basta terem de aguentar os interesses de franceses, ingleses e americanos em Xangai e noutras cidades.
– Também me parece o caso. Sabe, em Lisboa, passam a vida a discutir a questão das colónias. Sobre Macau, só se faz isso em momentos de fúria nacionalista. De resto ninguém olha para aqui. Nem, diga-se, para lado nenhum.

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O governador continuou:
– Estive a reler o dossier que tenho sobre o assunto e já em 1896, foi muito comentado um boato sobre a cedência da Lapa à Alemanha pelo governo chinês. Um escândalo que durou dois ou três dias até as atenções se focarem na nova marca de charutos disponível na Havaneza. Mais tarde um deputado, Franco Frazão, quis delimitar o que achava que devia pertencer a Macau, e isso ia do forte do Passaleão às ilhas da Lapa e D. João e mesmo à de Hian-Chan. Queria aproveitar-se de um daqueles momentos em que a China foi submetida pelas potências ocidentais. Queria uma fatia do bolo. Depois discutiu-se o porto franco e a alfândega chinesa. Mais foguetes políticos. E ninguém apanhou as canas. Sabe como é. E há quem esteja sempre a dizer para vendermos esta fonte de problemas, tal como Timor ou Goa. Só se houver vantagens económicas para alguém é que se discute o assunto com um pouco de seriedade.
O tenente esticou as pernas. Sentia-se confortável, apesar da ligeira dor que ainda tinha no braço. E o governador estava numa daquelas tardes em que, sem compromissos, podia e queria falar. Porque, ao mesmo tempo, encaixava os seus pensamentos dispersos.
– E o governador, permita-me a pergunta, nunca teve ambições políticas?
Rodrigo Rodrigues sorriu e olhou para o tecto. Continuava fascinado pela ventoinha. Nela via a vida política portuguesa. Ia rodando, apesar do ruído incomodativo. Um dia cairia do tecto. Apontou para ela:
– Acha que um dia me pode cair na cabeça?
– Não sei. Isso poderia e deveria ser evitado.
– É como a vida política. Nunca se sabe se não nos pode acontecer o mesmo. Tive sonhos. E depois chegaram os pesadelos. Não sou propriamente amigo de Afonso Costa. Nem aliado. E ele, com a sua longa mão, que tudo toca, não esquece isso. Por isso afastei-me. E, confesso, acho que eles não se importaram muito com isso. Assim não têm de se preocupar comigo nem com o que faço. Sabe, Macau fica suficientemente longe do Terreiro do Paço e do Chiado.

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– Sabe, tenente, quando alguém deseja mesmo ser imperador precisa de traçar um círculo no solo, fechado à sua volta, para que ninguém mais entre ali. Mais tarde deve fazer outro círculo concêntrico onde está a sua guarda pretoriana, um punhado de conselheiros que não lhe dêem conselhos e que cumpram a sua função de recipientes vazios onde vertem a sopa das suas próprias convicções. Soldados obedientes, que não leais, e só fiéis à luz que irradia sobre eles a partir da liderança. Outro círculo mais amplo se pode criar, com uma boa quantidade de súbditos complacentes, sem ânimo para questionar as coisas e que não tenham memória ou sequer confiem muito nela e que a reescrevam em função da versão preferida do imperador. Não ganham nada, ou muito pouco, mas lutam entre si para caminhar à sombra do seu senhor.
– E o governador não é assim.
– Desejo não ser assim. Tal como o tenente. Se assim não fosse porque é que o teriam enviado para Macau?
– Não sei mas um dia regressaremos a Portugal. O que faremos?
– Não sei. Portugal disse adeus ao passado.
Amoroso sorriu. Como se não fosse o passado a dizer-nos adeus a cada instante. Mas talvez o governador quisesse dizer outra coisa. Mais complexa e terrível. Talvez: Portugal disse adeus ao futuro.
– E Macau? Podemos mudar esta cidade, tenente?
– Eu penso que o governador acha que é possível tornal reais algumas ideias. Tem a convicção que esta cidade pode ser transformada, para ser lucrativa para todos e ser redimida aos olhos de Lisboa. Mas está a pensar fazê-lo só com os interesses locais e sem ter qualquer ajuda de Lisboa. Seria um milagre. Mas é possível para que algum dia, no futuro, alguém aqui acenda o seu cachimbo e conte aos filhos a história de um sucesso. De que ninguém estava à espera. E começarão a história com o nome de um homem com coragem. Seria um motivo de orgulho para si.
Rodrigo Rodrigues sorriu enquanto apreciava as palavras do tenente. Depois disse:
– Eu acho que temos uma oportunidade única para que os habitantes de Macau controlem o seu futuro. Talvez depois pudesse chegar a Lisboa, aos corredores onde se manobram as decisões, e mostrasse que em Portugal se poderia seguir o exemplo de Macau. Só que o futuro não são apenas palavras. É preciso fazer e não estarmos apenas a pensar na nossa sobrevivência política.

Rodrigo Rodrigues calou-se. E voltou a olhar para o tecto. A ventoinha continuava a fazer o seu estranho ruído. Mas não caíra.

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14.

Quem diabo sou eu? Não sou padre, nem nunca fui. Não sou espião, apesar de o parecer. Gosto de mulheres, apesar de o esconder. O dinheiro seduz-me, mas finjo odiá-lo. Passei anos a esconder-me de todos, mesmo que eles me vejam. Por isso cada um tem a sua ideia sobre o que sou. E eu, quando me olho ao espelho, já não me reconheço. As dúvidas tropeçavam umas nas outras e Benedito Augusto sentia-se estranhamente perdido num mundo que entendia, nas suas complexidades e contradições. Mas talvez fosse por isso que tinha tantas dúvidas e receios. Nem o álcool ou as drogas conseguiam afogar esta sensação de estar numa terra de ninguém, num mar imenso sem ilhas à vista, sem um porto seguro onde sentisse firmeza por debaixo dos pés. Navegava à bolina, como sempre acontecera. E quando parecia ter tudo controlado, os alemães e os portugueses faziam ruir o seu castelo. Apetecia-lhe seguir para Singapura e desaparecer com Mariana da Conceição, uma malaia de remotas origens portuguesas e holandesas. Poupara quase o dinheiro suficiente para desaparecer nos confins da Ásia ou, talvez, em Zanzibar ou em Madagáscar. Longe do longo braço das tríades. Via-se numa cama de rede a olhar para o horizonte, junto a uma tabanca onde vendia álcool e sonhos aos perdidos da vida. Faltava-lhe o último golpe. Mas esse agora era perigoso.
Olhou à volta. Aquela hora da tarde a taberna estava estava quase vazia. O que era bom para conseguir estar atento aos seus pensamentos. Quando Félix Amoroso chegou ele folheava uns papéis encardidos. Repletos de manchas de vinho. Tocava-os com cuidado. Amoroso reparou no estanho fascínio com que o padre olhava para eles, como se fossem ouro reluzente.
– Que tens entre mãos, meu caro Benedito?
Este não levantou o olhar dos papéis.
– Há coisas que nos surgem por acaso. E que podem mudar uma vida.
– Um mapa do tesouro?
– É quase isso. Amanhã parto para Hong Kong. E depois para Singapura e para a Malásia. Tenho vários negócios a tratar lá.

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– Para Fu Xian?
– Alguns. Ele sofreu uma derrota. Mas não morreu. Voltará mais forte, não tenhas dúvidas. Agora está desconfiado de todos. E o alemão quer a sua heroína. Ou o valor dela. Não sei o que poderá acontecer, pelo que o melhor é afastar-me uns tempos. Tenho uma boa desculpa. Fu Xian quer que eu lhe faça um serviço.
– Vais ver a tua amada?
Benedito levantou a cabeça e fulminou o tenente com o olhar:
– De que estás a falar?
– Da menina Mariana da Conceição. De Singapura, ou da Malásia. Não sei. Dizem-me apenas que é muito bela.
Benedito piscou os olhos. O seu rosto pareceu, de repente, ter mais linhas a marcá-lo. Perdeu alguma da flexibilidade que o caracterizava.
– Nada temas, Benedito. Sei que não acreditas em mim, mas eu prometo silêncio.
– Porque não acreditaria em ti?
– Porque as pessoas não têm fé.
Benedito fitou-o severamente. Como se tivesse sido ameaçado com uma faca.
– Eu tenho fé.
– Tens? Alguma vez tiveste?
– Sou jesuíta. Padre.
– Achas que, se acreditarmos em tudo o que dizes, ainda és padre e tens fé? Não irás para o inferno?
– Não estamos todos no inferno?
Amoroso fez um sorriso velado e misterioso.
– Estamos. Mas nem tudo tem de ser sofrimento e culpa. Benedito sussurrou:
– Estou cansado. Até demasiado cansado para responder a essa pergunta.
Esfregou os olhos antes de continuar:
– Tenho muitas notícias sobre João Carlos da Silva. A sua vida. Foi-me contada por alguém que passou por aqui, e no meio da bebida, foi-me abrindo as portas para conhecer um homem que parecia transparente. Que aparentava ser apenas um secretário do Governo e que tinha tido um desgosto de amor depois da mulher não se ter adaptado a Macau e ter rumado a Portugal.
– Quem te contou?
– Um homem de Macau. Que foi amigo do senhor Silva. E, sobretudo, seu credor.
– E então?
– Então, a vida do senhor Silva é mais complexa. Veio efectivamenre para aqui, casado com a senhora Gertrudes de Albuquerque. Uma católica muito piedosa, que passava a vida na Igreja. Os primeiros meses foram suportáveis, até que o senhor Silva começou a jogar e a perder. Com isso destruiu o património da mulher. Esta, incapaz de o conter, desapareceu.

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A voz de Benedito transformou-se num sussurro:
– Diz-se que partir um barco, às escondidas, para Moçambique. Onde tinha família. Este homem que o conhecia diz-me que ela nunca chegou a Moçambique. E que as tentativas da família para saberem o que acontecera a Gertrudes tinham sempre esbarrado no silêncio das autoridades de Macau.
– Talvez a mão do senhor Silva estivesse por detrás desse silêncio…
– Talvez. Como talvez a senhora Gertrudes não tenha saído daqui viva. Não se sabe e talvez nunca se venha a saber. Mas o certo é que ele continuou a jogar. E a perder o que tinha e o que não tinha. Foi quando conheceu a família Palha. Sofia viu nele o que não encontrava no seu Joaquim. Ou, talvez, segundo este meu informador, que emprestou muito dinheiro a Silva com bons juros, porque queria saber os segredos da administração. Quem deve muito está susceptível de trocar as dívidas por informação. Segundo parece, Silva passou a ter dinheiro. Chegou mesmo o momento em que pagou as dívidas e os juros. E isso coincidiu com a chegada de Max Wolf a Macau. Não é difícil ver a conexão. Sofia, ou mesmo o senhor Palha, colocaram Silva e Max Wolf em contacto. As suas amigas chinesas devem saber mais sobre isso.
– O mundo é gerido pela fraqueza dos outros.
– Ou do próprio. As fraquezas às vezes conduzem a respostas muito fortes. E impensadas.
O tenente passou a mão pelo queixo, bebeu um pouco de cerveja, e disse:
– Esse teu amigo de bebida sabe quem matou o Silva?
– Ele não sabe. Mas desconfia. Ele era útil para o alemão. Este tinha-o na mão. Restam o Joaquim Palha ou a Sofia. Porquê, não sei, mas o Silva e a Sofia acabaram na cama. Não sei o que ela viu nele. Ou se foi uma simples forma de ela se vingar do marido. Este tem uma amante em Hong Kong. Vai lá muitas vezes em negócios…
Deu um gargalhada. Soou a cinismo puro.
– Estava há pouco a falar-me de fé, tenente? Que acha? O universo é o caos. Talvez um dia a ordem consiga emergir do caos e prevalecer. Talvez deixe a escuridão e traga a luz.
Escutou um ruído. Alguém arrastava uma cadeira para um dos cantos da taberna. Tinha uma boina preta e, sem dizer nada, sentou-se, começou a tocar uma guitarra portuguesa e ouviu-se a sua voz.

(continua)

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