“Arte Macau” arranca com duas exposições a 12 de Abril

[dropcap]É[/dropcap]já em Abril que serão inauguradas duas exposições incluídas na iniciativa “Arte Macau”, e que terão o Renascimento em Itália, a implantação da República Popular da China e a transferência de soberania de Macau como pano de fundo.

A exposição “Desenhos da Renascença Italiana do British Museum” estará patente entre 12 de Abril e 30 de Junho e irá apresentar 52 desenhos originais de 42 mestres da Renascença italiana, como Mantegna, Correggio, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Titian, Raphael e Rosso Fiorentino, e explora a importância do desenho no processo criativo dos artistas entre 1470 e 1580.

Este ano assinala-se o 500.º aniversário da morte de Leonardo da Vinci e a exposição inaugura em Abril que coincide com o aniversário do nascimento do grande mestre renascentista (15 de Abril de 1452). Além disso, e pela primeira vez em Macau, a exposição proporcionará uma experiência táctil aos espectadores com deficiências visuais através da impressão 3D e tecnologia relevante, promovendo uma experiência cultural universal.

A política chinesa merece destaque com a exposição “Beleza na Nova Era”, que marca não só os 70 anos da RPC como os 20 anos do regresso de Macau à China.

Esta mostra estará patente entre os dias 4 de Maio e 28 de Julho, tendo sido seleccionadas cerca de 90 obras a partir do acervo do Museu Nacional de Arte da China. Será mostrado o trabalho de mestres modernos e contemporâneos como Qi Baishi, Zhang Daqian, Xu Beihong, Liu Haisu, Lin Fengmian, Fu Baoshi e Li Keran, entre outros, permitindo uma visão abrangente do desenvolvimento da arte chinesa nos últimos cem anos.

Evento transversal

A iniciativa “Arte Macau” irá decorrer durante cinco meses, entre Junho e Outubro, e conta com a participação de operadoras de estâncias turísticas, hotéis integrados e consulados estrangeiros que são convidados a acolher exposições de arte simultaneamente.

O objectivo deste evento, afirma o Instituto Cultural, é “criar uma atmosfera cultural por toda a cidade e transformá-la numa galeria de arte, espalhando um irresistível ambiente artístico em todos os seus cantos”. O principal local de exposições será o Museu de Arte de Macau, podendo decorrer eventos noutros locais.

“Arte Macau” também pretende levar ao público “concertos de grande escala” protagonizados pela Orquestra de Macau e pela Orquestra Chinesa de Macau, além de estar prevista a realização da Exposição de Artes Visuais das Instituições do Ensino Superior de Macau, do Festival Juvenil Internacional de Música, do Festival Juvenil Internacional de Dança e o Festival Juvenil Internacional de Teatro.

O objectivo destas iniciativas é o de “tornar a cidade numa plataforma de intercâmbio cultural e artístico de nível mundial e de partilhar com longo e memorável Verão artístico com todos os residentes e turistas”.

25 Mar 2019

FAM | Dança e teatro protagonizam primeiros espectáculos da 30ª edição

A trigésima edição do Festival de Artes de Macau acontece entre os dias 3 de Maio e 2 de Junho e já há alguns nomes em cartaz. De Portugal chega o Teatro do Eléctrico com a peça Karl Valentin Kabarett, enquanto que de Pequim a comédia ganha forma com o espectáculo O Sr. Ma e o Filho, da BJAMC Drama

 

[dropcap]N[/dropcap]o ano em que o Festival de Artes de Macau (FAM) celebra 30 anos de existência, o Instituto Cultural (IC) decidiu criar um cartaz que homenageia os clássicos. Com o tema “um tributo aos clássicos”, o programa pretende mostrar ao público um “leque de espectáculos de diferentes estilos e programa do Festival Extra e convidando o público a apreciar os clássicos”.

Os primeiros nomes já são conhecidos e trazem dança contemporânea e teatro. Vertikal é o espectáculo de dança que marca a abertura do FAM no dia 3 de Maio. Trata-se de uma co-produção de Mourad Merzouki, um conceituado coreógrafo francês, e da CCN Créteil & Val-de-Marne / Cie Käfig, considerada “uma das principais companhias de dança hip-hop de renome mundial”.

De acordo com o IC, podemos esperar uma performance em que “dez dançarinos deslizam no ar por cordas, libertando-se dos limites da gravidade para criar elementos coreográficos e produzir sequências de hip-hop únicas e contemporâneas”. O público poderá ver o espectáculo também no dia 4 de Maio, no grande auditório do Centro Cultural de Macau (CCM).

No dia 12 de Maio é apresentado Rain, um espectáculo de dança que resulta da colaboração entre o músico contemporâneo Steve Reich, a coreógrafa belga Anne Teresa De Keersmaeker e a sua companhia de dança Rosas.

Anne Teresa, considerada pioneira no mundo da dança, traz Rain novamente a palco 18 anos depois, mostrando ao público uma dança pura e música minimalista. “Impelidos pelos tons pulsantes de Steve Reich, nove bailarinos percorrem o palco com agilidade, dançando variações infinitas de liberdade física e precisão geométrica, com uma leveza de tirar o fôlego”, descreve o IC.

Rain é também composto por “figuras matemáticas, a repetição sustentada, a ocupação geométrica do espaço, a arte da variação contínua”. “Tudo o que gradualmente se tornou a assinatura da coreógrafa, é levado ao extremo em Rain”, acrescenta o IC.

Senta-te e ri

Além da dança estão também agendadas duas peças de teatro. Uma delas irá evocar aquele que foi considerado o “Charlie Chaplin da Alemanha”, Karl Valentin, e será levada a cena pela companhia portuguesa Teatro do Eléctrico. Karl Valentin Kabarett acontece a 24 de Maio no grande auditório do CCM e “cruza várias peças curtas por ele escritas com canções populares alemãs do início do século XX, cantadas ao vivo em alemão por 11 actores e um cantor lírico, acompanhados por uma orquestra de dez músicos”. Karl Valentin Kabarett revela o “constante complexo de inferioridade” das personagens de Karl Valentin e está carregado de ironia, música, dança e teatro. A encenação desta peça está a cargo de Ricardo Neves-Neves, também fundador do Teatro do Eléctrico.

De Pequim chega também outra comédia, intitulada “O Sr. Ma e o Filho”, da companhia BJAMC. Trata-se de uma adaptação do romance de Lao She para comemorar o 120º aniversário do seu nascimento, e é uma peça que revela o intercâmbio entre a cultura chinesa e a cultura ocidental, imbuída dos reflexos da sagacidade de Pequim e do humor inglês.

A história acontece à volta do Sr. Ma, que sonha um dia vir a ser mandarim. Devido à morte do seu irmão, o Sr. Ma vai para Londres com o seu filho para assumir a gerência de uma loja de antiguidades por ele deixada, tornando-se num modesto comerciante. Pai e filho ficam hospedados em casa da Sra. Wedderburn. Com o passar do tempo, vai-se desenrolando uma história de amor satírica e agridoce. O “Sr. Ma e o Filho” é apresentado nos dias 25 e 26 de Maio no grande auditório do CCM.

O cartaz provisório do FAM encerra com o espectáculo de ópera cantonense “A Alma de Macau”, que celebra o décimo aniversário da ópera cantonense inscrita na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Esta produção de ópera cantonense foi adaptada pelo dramaturgo Li Xinhua a partir de uma peça original de um autor de Macau e contará com a interpretação de actores de Macau e da Trupe de Ópera Cantonense de Foshan, dando vida à épica história de Macau.

25 Mar 2019

Rota das Letras | Rolling Puppets apresentam “Droga” de Lu Xun

“Droga” de Lu Xun está em cena hoje, amanhã e domingo, nas oficinas navais nº2, pelas mãos da companhia Rolling Puppets. O espectáculo fecha mais uma edição do festival literário Rota das Letras e insere-se nas comemorações dos 100 anos do movimento do 4 de Maio que revolucionou a escrita no continente colocando as palavras ao alcance de todos

[dropcap]”[/dropcap]A verdadeira acção não acontece quando se tem esperança de que se consiga alguma coisa com ela, a verdadeira acção acontece quando já não se espera”. Estas são as palavras de Tan Tan La, co-fundadora, com Kevin Chio, da companhia de teatro Rolling Puppets, para descrever o espírito de Lu Xun, autor de “Droga”, a peça que vai subir ao palco das oficinas navais, nº2, hoje, amanhã e domingo. Esta interpretação do trabalho de Lu Xun é também o mote para mais uma apresentação do espectáculo no território.

A ideia de pegar neste texto, “Droga”, que pode ainda ser traduzido por “Medicamento” da autoria de um dos escritores emblemáticos do Movimento literário do 4 de Maio, surgiu em 2013. Nesta altura os responsáveis da Rolling Puppets, assistiam em Macau àquilo que consideraram “um verdadeiro início de movimentação social”. “Vivia-se uma época de alguma esperança social”, conta Tan Tan. A responsável recorda a saída à rua dos moradores do edifício Sin Fong, reclamando contra as más condições em que viviam. A eles juntaram-se residentes, e tudo parecia apontar para “uma luta colectiva por direitos sociais”.

No entanto, esta “reivindicação”, foi de pouca duração. “Vimos a ocupação das ruas por parte de manifestantes, mas foi durante muito pouco tempo, nem chegou a uma noite, mas isso aconteceu”, recorda com satisfação. No entanto, de repente, “houve distribuição de dinheiro e deixou de ser necessário pedir que se fizesse justiça”, lamenta. “Quando começámos a ver as pessoas a saírem à rua, a pedir justiça, pensámos que finalmente estavam a acordar mas acabámos por perceber que afinal voltaram a adormecer muito rapidamente”, acrescenta a responsável.

Foi também nessa altura, que os artistas encontraram um texto de Lu Xun que falava de solidão, em que o autor classificava o ser revolucionário como sendo uma espécie de viver solitário. “Ele, como revolucionário falava de como se sentia sozinho no seio da sociedade”. A partir daqui, pegar num texto de Lu Xun tornou-se imperativo para Ten Ten La e Kevin Chio.

Por outro lado, trazer Lu Xun a cena pareceria ser também uma missão. Se os seus textos eram o reflexo de uma sociedade de há 100 anos, actualmente continuam a espelhar as necessidades de mudança. “Somos artistas e achamos que devemos ecoar alguma coisa no que fazemos que faça as pessoas pensar”, aponta Kevin Chio, “e este texto vai nesse sentido”, acrescenta.

Questão necessária

“Queremos que este espectáculo interrogue as pessoas acerca do que querem nesta vida confortável que aparentemente têm. Será que possuem alguma coisa que queiram proteger? Será que se sentem vivos?”, questiona Ten Ten. Mais, “será que a população agora é assim tão diferente daquela para quem escrevia Lu Xun, há exactamente 100 anos?”

O autor, famoso por ter revolucionado a forma de escrita na China, tornando-a acessível a todos e libertando-a das elites, “falava acerca das pessoas que o rodeavam, de como o olhavam, como viam este medicamento, esta droga. O sangue contaminado que representava o sangue de uma revolução, levantava a interrogação se se trata de um veneno ou de uma cura”, diz Ten Ten La.

Apesar das diferenças trazidas pela passagem do tempo, o responsável considera que ainda assim, as pessoas, agora, não diferem muito das do início do século. “Actualmente as pessoas continuam a ser como dantes. Continuamos a tentar protegermo-nos a nós próprios sem olhar para o mundo em geral e para o que nos rodeia. É o mesmo”, acrescenta. Lu Xun descreveu o que o rodeava, Ten Ten e Chio pretendem ser o seu “espelho”.

Em dois tempos

Para adaptar o texto do “mestre”, a Rolling Puppets reescreveu o conto de modo a que seja representado “a dois tempos” em paralelo. “Quando tentámos adaptar o texto, aproveitámos para preencher as lacunas que o autor deixou, propositadamente. Para isso alternamos a representação entre situações da história original, passada naquele restaurante de Pequim, em que um pai luta pela sobrevivência do filho doente através da dádiva de sangue, com situações actuais, em que adaptamos o espaço para um restaurante chique de Macau”, explica Tan Tan. Para o efeito, os artistas utilizam “o sangue que pode ser da cura ou da morte, que pode ser medicamento ou veneno, do conto original, e também o seu contraponto com os valores da actualidade que podem ser duplamente interpretados”, remata.

22 Mar 2019

Entrevista | Pedro Lamares, actor

Pedro Lamares teve um percurso que passou por múltiplas formas de expressão artística, até que Pessoa o encaminhou para dizer poesia, o que o levou à representação. Todas estas estradas trouxeram o actor até Macau numa viagem que culmina, sábado às 21h, no palco do Teatro D. Pedro V, onde vai recriar o poema “Ode Marítima”, de Álvaro de Campos

[dropcap]E[/dropcap]stá em Macau a recitar a “Ode Marítima” de Fernando Pessoa. Como é representar este texto emblemático do Pessoa?
A Ode Marítima é aquilo a que chamamos na gíria teatral “um bife”. É um grande naco, e não é pela quantidade de texto. Aliás, eu não o faço de cor, o espectáculo é uma leitura viva e encenada. É um desafio brutal, acho que é, eventualmente, a coisa mais difícil e mais exigente que já disse. O texto pede uma entrega absoluta, não vale a pena dizer aquilo se não estiver disponível a entrar naquela espiral e encontrar a determinada altura o vórtice e alguma linha de trabalho que não seja um desatino total, que não seja só a loucura. Não há outra forma de fazer este espectáculo, sem ser com entrega total. A “Ode Marítima dá cabo de mim, é porrada emocional. Na semana antes de ter este espectáculo normalmente adoeço, fico sem voz. É uma cena psicossomática. O texto tem uma estrutura perfeita, é completamente pessoano; temos todo o delírio do Álvaro de Campos, visceral, mas tens o cérebro do Pessoa permanentemente a actuar sobre aquilo. O texto é tripartido. O primeiro bloco é a instalação, em que ele se senta no cais de pedra numa manhã de Verão e começa a observar o que vai acontecendo, mas ainda numa zona muito pacífica. A segunda parte é a subida em espiral, o delírio absoluto e depois cai a pique de um momento para o outro. O terceiro momento é todo em baixo é toda a reflexão sobre o que aconteceu ali. A primeira vez que disse a Ode, ao trabalhar o texto em casa, há nove anos, sentei-me à noite na mesa da sala com um whisky, um cinzeiro e um maço de cigarros à frente. Comecei a tentar ler o texto para dentro e aquilo é ilegível. Entra-se nas onomatopeias e é impossível, não estava mesmo a conseguir. Quando ia para aí na quarta página, voltei atrás e resolvi começar a dizer o texto em voz alta. Descomprometidamente. Liguei um cronómetro. Percebi que o texto tem exactamente 60 minutos, divididos em três blocos de 20. Sem ter o texto na cabeça, comecei a dizê-lo e entrei naquela espiral. Aliás, como ele diz no texto “o volante começou a girar dentro de mim”. Quando dei por mim, eram duas da manhã e, de repente, tudo começou a surgir com essa lógica muito evidente.

Representou Fernando Pessoa no filme “ Filme do Desassossego” de João Botelho. Como foi essa experiência?
Morri de medo no início. A minha ligação ao Pessoa vem de muito pequeno. Com treze anos comecei a ler Alberto Caeiro, quando o meu padrasto me ofereceu “O guardador de rebanhos”. Aquilo mudou tudo. Acho que foi isso que me pôs a dizer poesia, foi o dizer poesia que me pôs a estudar teatro. Aquilo condicionou o caminho da minha vida de uma forma definitiva, sem charme e sem romantismos. Fazer o Pessoa no “Filme do Desassossego” era assustador para mim. Além da força que o Pessoa tem na minha vida e, portanto, a responsabilidade natural que isso já me traria, existe todo um imaginário. Toda a gente tem um Pessoa na cabeça, qualquer português tem uma imagem do Pessoa. É um ícone. Corremos o risco de rejeição, como se se tratasse de um corpo estranho. Na altura, tive uma conversa com muito importante com o João Botelho, em que lhe falei desses medos, e ele disse-me: “Não quero fazer um documentário histórico, para isso existe a BBC. Quero fazer um filme, isto é sobre arte. Portanto, tu não vais ser o Fernando Pessoa, vais ser o Sr. Pessoa do ‘Filme do Desassossego’. Constrói”. Aquilo libertou-me completamente, mas não me tirou a responsabilidade.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Tem um espectáculo intitulado “A poesia é uma arma carregada de futuro”. É isso que acha da poesia?
Acho, absolutamente. Na arte em geral, e como escolhi a poesia como ferramenta é dessa que vou falar. Não tenho interesse na arte que não desarrume. Não tenho interesse em nenhum movimento artístico que não esteja comprometido com alguma coisa. Uma coisa que é feita só para agradar ou para ser bonita não me interessa como arte. Atenção que eu adoro o belo, sou um esteta. Adoro o belo, adoro pilotar aviões e não há nada mais belo do que estar lá em cima, no cockpit a ver o pôr do sol no Saara. É lindíssimo, mas não é arte. O meu trabalho artístico tem quase sempre um comprometimento, pelo menos com uma ideia de mundo, de pensamento, com uma ideia social que me acompanha. Estas coisas estão juntas. Portanto, o poema do Gabriel Celaya, cujo título dá nome a esse espectáculo, tem exactamente que ver com aquilo em que acredito. Ele diz: “maldigo a arte que é concebida como luxo cultural para os neutrais”.

Estamos a falar da palavra. Acha que a palavra escrita está em vias de extinção nesta era digital?
Se pensarmos em escrita, como caligrafia, tinta e coisas feitas à mão, ou livros em papel, não sei se em vias de extinção, mas em vias de entrar numa zona residual quase museológica acho que sim, dentro do romantismo. Ainda existem máquinas de escrever, e penas e canetas de tinta permanente, mas ninguém as usa. Eu tenho em casa porque sou um romântico e acho bonito, mas não as uso também. Portanto, acho que, mais cedo ou mais tarde, o objecto livro estaria mais ou menos na mesma dimensão. Eu não leio em livro electrónicos porque não me dá jeito. Gosto de sublinhar e de riscar de dobrar folhas, porque sou arcaico. Mas não tenho nada contra. Não acho que isso seja o fim da escrita. Há ameaças muito mais sérias à escrita e ao pensamento crítico que não sei se os distingo um do outro.

Quais?
A banalização e o vício do excesso de estímulo. A lógica digital que começa a trabalhar em nós uma ideia de que se não estivermos a ser permanentemente estimulados e se uma coisa não nos agarrar desde o primeiro momento com imensa informação visual sonora etc., nós desistimos dela. Isso sim, acho que é uma coisa que nos vai afastando daquilo que precisamos para ler e que nos vai pondo mais à superfície. A leitura exige de nós outro tipo de exercício mental, outro tipo de contemplação, de atenção e de paciência, de pensamento, de tempo. É muito mais fácil ver um filme do que ler um livro, e por sua vez é muito mais fácil ver uma série do que ver um filme e por sua vez é muito mais fácil ver um vídeo de cinco minutos do que acompanhar uma temporada de uma série. E por aí vamos. Por isso, depois aparecem fenómenos de escrita como uma fotografia e uma frase inspiradora, algo que não demore mais de 30 segundos a ler. Isso para mim ameaça mais a escrita do que o formato digital em si. Não sou conservador, a escrita pode mudar de forma. Mas acho que estamos num processo social que pode pôr em risco, e aí a escrita e a leitura são só a ponta do iceberg. Isso está a pôr em risco a nossa capacidade de questionamento e isso sim, pode ser gravíssimo.

Quais são os livros da sua vida?
Antes de mais tenho que falar do “Guardador de Rebanhos” do Alberto Caeiro, porque é brutal. Esse estará seguramente entre os livros da minha vida. O “Medo” do Al Berto que foi um livro que literalmente desfiz, a capa já saiu, criou bolhas. O Herberto Hélder, não é um livro, é um autor, mas também tem uma importância brutal. Portanto, se tivesse que escolher um livro diria a “Poesia Completa” porque me reensinou a dizer poesia. Ensinou-me a não trabalhar pela parte racional a não trabalhar só pelo entendimento do texto e pela sua narrativa. Com ele tive de trabalhar com outro lado de mim, com uma sensação de pele e com imagens. Estes três ao nível da poesia terão sido os mais marcantes. Ao nível do romance, coisa bastante óbvias. Marcou-me imenso ler “Os Maias”. A primeira vez que chorei a ler um livro foi a ler “Os Maias”, acabei de o ler e voltei a ler passado um ano. Outro romance que li muitos anos mais tarde e que me marcou imenso, do Sándor Márai, “As velas ardem até ao fim”, é muito duro. Tchekov também me marcou-me muito. O Oscar Wilde também me marcou muito, deixa-me desarrumado. Mas é engraçado que nunca tinha pensado nos livros da minha vida. Acho que o “Ensaio sobre a Cegueira” também seria um dos livros da minha vida. Fala daquilo que pode ser a sociedade em estado de medo ou em estado de crise.

Começou nas artes plásticas, ainda andou pelo jazz e, a determinada altura, entrou numa licenciatura em música sacra.
Chama-se adolescência. Há aquelas pessoas que na adolescência vão fumar charros ou fazer coisas que os pais não deixam. Eu não tive uma educação católica, portanto, acho que o meu gesto de rebelião aos 18 anos foi estudar música sacra. Tive lá um ano e fui-me embora para estudar teatro. A literatura não faz partes das artes está em humanidades. É uma lógica estranha, deve ter sido escrita pelo Kafka. Depois vais para as tais artes e passas anos a estudar história de arte e algumas técnicas de desenho, pintura e escultura e gravura. Mas acabei por estudar teatro, a profissão dos esquizofrénicos. Como queria ser tanta coisa ao mesmo tempo, decidi fazer algo que me pagam para ser uma coisa diferente de cada vez.

Acabou de chegar a Macau. O que gostaria de levar daqui?
Na verdade, gostava de ter três experiências: sentir a cidade na sua memória histórica e no confronto entre passado e presente, sem saudosismos bacocos. Gostava de ver o que restou e como as pessoas vivem; tenho alguma curiosidade de ver a parte dos casinos, uma curiosidade exótica. Quero ver aquelas luzes e sentir-me num filme americano dos anos 90. Depois gostava muito de dar um salto ao continente. Passar a fronteira e ir à China de verdade.

22 Mar 2019

Entrevista | Hirondina Joshua, poetisa

Hirondina Joshua está em Macau a convite do festival literário Rota das Letras e no próximo sábado integra o painel “Pode ainda a Poesia revolucionar uma vida?”. A poetisa moçambicana começou a ler livros de filosofia aos 12 anos, e é na linguagem que considera estar o poder criativo do autor

[dropcap]C[/dropcap]omeçou a ler livros de filosofia aos 12 anos. Como é que isso aconteceu? 
Foi um acidente. O meu pai tem uma biblioteca com muitos livros e muitos eram de filosofia. Tínhamos os nossos livros infantis, eu e os meus irmãos, mas fiquei cansada deles e queria ler uma coisa diferente. Queria saber o que o meu pai lia. Acabei por achar muito interessante.

 O que é que absorvia dessas leituras, na altura?
Fascinava-me o facto daqueles livros me darem uma outra forma de ver as coisas. Coisas que nunca tinha sentido  que não sabia o que eram. Era uma descoberta. Falavam da vida, eu não sabia o que era a vida, não pensava nisso. Era uma coisa estranha para uma criança. As crianças não pensam nestas coisas. As crianças vão fluindo e são contaminadas pelos adultos. As crianças perguntam sobre sensações e vão vivendo isso despreocupadamente. Quem pergunta o que é a vida não está despreocupado.

Como apareceu a escrita? 
A escrita apareceu como uma experimentação. Eu via as pessoas, os autores que lia, e pensava que escreviam o que escreviam porque tiravam isso de algum lugar só deles. Depois pensava que se calhar também tinha um lugar assim e queria saber que lugar era esse em mim. Queria descobrir aquele lugar privado, queria encontrar o meu lugar para tirar os textos.

Encontrou?
Não. Não encontrei e acho interessante que não tenha encontrado. Ainda estou à procura desse lugar.

FOTO: Sofia Margarida Mota

O que é que a inspira para escrever?
As pessoas, o que me rodeia, a vida, a tragédia. Não quero dizer que na vida seja tudo muito mau, mas infelizmente também não é muito bom. Inspiro-me na vida e em particular na criança que acho que ainda sou. Na inocência.

Porquê a opção pela escrita de poesia?
Não sei. É natural. Não sei responder.

Escreveu os “Ângulos da casa”. Como foi o processo para chegar a este livro?
Publiquei o livro quando tinha 29 anos e a maior parte dos textos foram escritos antes disso. “Ângulos da casa” foi uma associação desses textos com sete poemas que dão efectivamente o título ao livro, Nunca tinha tido a intenção de publicar. Só escrevia. Não pensei nos textos como um livro. Foi um processo diferente daquele por que estou a passar no livro que estou a escrever agora. Agora penso no que faço como um livro

E em que é que está a trabalhar actualmente?
É mais uma experiência. É diferente do outro em termos de sensibilidade.

Gosta especialmente de escrever recorrendo a uma linguagem mais surrealista e simbolista. Porquê?
Sim. Gosto muito. Neste meu último trabalho estou a explorar muito mais o simbolismo por exemplo. Acho que todas as coisas já foram ditas, já foram vistas, já foram escritas. Qual é a graça da literatura se já conhecemos todas as histórias? Nos poemas é a mesma coisa. Não há novidade. A única novidade que pode existir na literatura é a linguagem. Acho que o simbolismo e o surrealismo, principalmente estas duas linguagens, trazem a vida à literatura. Se já está tudo escrito o que me levaria a escrever? É por isso que exploro a linguagem. A linguagem é uma coisa tão particular que pode prender qualquer pessoa. Se a linguagem fosse plana a literatura não tinha graça. A criatividade está na linguagem.

Veio de Moçambique para Macau. O que pode levar daqui?
É uma cidade fascinante. As pessoas são diferentes das de Moçambique, mas descobri uma coisa: o Homem é igual em todo o lado. Há pessoas simpáticas e antipáticas, boas e más, com qualidades e defeitos em todo o lado. É verdade que o povo de Moçambique e este são muito diferentes. Mas é interessante descobrir as pessoas. É interessante perceber como as culturas moldam os povos.

Como vê a literatura africana e especialmente a do seu país, Moçambique? 
Prefiro falar de Moçambique e da nova geração. Gosto muito do que os meus colegas estão a fazer incluindo as mulheres. Ficámos muito tempo escondidas e agora há muita mulheres a dinamizar a literatura. Em Moçambique há agora muitos movimentos literários. A cidade não fica parada como antes. Agora temos festivais, eventos e feiras. Os mais novos não estão à espera que os mais velhos avancem com iniciativas. Acho que a minha geração é muito forte e estou feliz por isso.

21 Mar 2019

Entrevista | Gisela Casimiro, poetisa

Natural da Guiné Bissau e a viver em Lisboa, a convidada do festival literário Rota das Letras, Gisela Casimiro vai fazer parte do painel de sábado dedicado ao tema “Pode ainda a Poesia revolucionar uma vida?” O seu livro “Erosão”, lançado em Novembro do ano passado, reúne um conjunto de poemas que falam da desconstrução

[dropcap]C[/dropcap]omo apareceu a poesia na sua vida?
Apareceu na adolescência. Leio desde criança mas ler poesia em particular, só comecei mesmo na adolescência, altura em que a descobri. Passei demasiado tempo sozinha na biblioteca a ler tudo o que podia. Lia sobretudo Sophia de Mello Breyner e Octávio Paz, entre outros. Mas, na altura, lia tudo. O plano era ler tanto quanto possível porque sabia que isso me ajudaria a escrever melhor, mas também porque gosto de contar histórias e também gosto que me contem histórias. Lembro-me de quando li o meu primeiro livro sozinha, era um livro de histórias dos irmãos Grimm. Entretanto, também fui muito influenciada por contos persas. A poesia foi talvez uma maturidade que tenha surgido. A poesia já não pressupõe ficção. Escrevi prosa durante muito anos, altura em que escrevia ficção. Depois deixei de o fazer.

Como é que foi o processo de criação de “Erosão”?
Antes de ser “Erosão”, tinha outros conjuntos de poemas. Erosão neste caso é quase como um livro do meio na cronologia poética. Tenho um primeiro volume do qual tirei algumas coisas que estão no “Erosão” e depois tenho outro que já é pós este livro mas que ainda não está publicado. Portanto ali – no livro – houve uma mistura de duas vozes diferentes, de momentos diferentes. Mas é um livro que tal como o próprio nome indica tece um processo muito longo de construção ou de destruição.

Porquê de destruição?
O “Erosão” fala das coisas que nos destroem enquanto seres humanos, mas também da destruição de preconceitos, de ideias. O desaparecer do sofrimento, o desaparecer da ilusão e o aparecer da minha forma mais real, mais verdadeira. Um filtro digamos assim.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Também escreve prosa. Que diferenças nota entre estes dois géneros?
Não vejo muita diferença porque penso que a minha prosa também tem o seu quê de poético. A diferença que vejo é que quando escrevo poesia é como estar ao espelho e quando escrevo prosa é como estar a uma janela. Tem sempre que ver com pessoas, mas a poesia permite-me ser um pouco mais egocêntrica. Quando se escreve prosa tem que ver com histórias dos outros. Não é que não tenha que ver comigo também, mas é diferente, Sinto que estou a contar mais as histórias dos outros e não propriamente a minha.

Nasceu na Guiné Bissau. O que traz das suas origens para o que escreve? 
Das minhas raízes não sei se já trago alguma coisa para a minha escrita. Não é uma escrita que seja conotada como sendo africana ou europeia. Eu conto histórias, e conto histórias que podem ser entendidas por qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. Para mim a linguagem também é simples mesmo quando falo de coisas complexas. São coisas complexas, mas são coisas que todos nós partilhamos enquanto pessoas e que não importa de onde viemos. Aquilo que abordo são coisas do quotidiano com que todos nós lidamos. Claro que quando regressar a África, certamente que me tocará profundamente e isso irá reflectir-se naquilo que escrevo. Não estamos num mundo estanque e as pessoas que têm acesso ao que escrevo, identificam-se com elas. Aliás, isso é o que me interessa, chegar a uma coisa mais universal mas sem esquecer a individualidade de cada um. Gosto muito da Chimamanda, uma autora nigeriana que escreve ficção mas em que sabemos que existem ali muitas situações que acontecem na realidade.  O “Americana” foi um livro que me marcou imenso porque senti que era o livro que tinha sido escrito para mim. No entanto é sobre uma nigeriana, e eu nasci na Guiné, e ela é uma nigeriana que emigra e vai para os Estados Unidos e o namorado vai para Inglaterra e eu não tive nenhuma dessas experiências. Quando fui para Portugal, era muito pequenina e foi uma decisão dos meus pais e não minha. Mas isso não me impede de me rever naquele livro. É isso que espero que aconteça quando as pessoas lerem a minha poesia.

Como está a ser a sua estadia em Macau?
Está a ser curiosa. Há alguns meses que escrevo crónicas para aqui e tinha curiosidade em estar neste lugar onde já estava presente sem ser de forma física. Estava curiosa por encontrar as pessoas. Ainda tenho que explorar muito mais e descobrir. Quem vem de Lisboa nota logo quando uma terra é muito plana (risos). Mas notamos logo as primeiras coisas que nos são familiares. Quando vinha no ferry de Hong Kong para cá estava a fazer piadas em que mencionava que estava num cacilheiro, depois vi a ponte e lembrei-me da ponte Vasco da Gama . Isto acontece em mais situações. Acho engraçado fazer primeiro estas comparações e depois começar a descobrir as coisas que são de cada lugar.

21 Mar 2019

Exposição | Aguarelas no MAM a partir de sexta-feira

[dropcap]O[/dropcap]Museu de Arte de Macau (MAM) acolhe, a partir de sexta-feira, a exposição “Deambular e Sentir”, que reúne um conjunto de 32 aguarelas paisagísticas do pintor contemporâneo de Macau Lai Ieng. A mostra, de entrada livre, a inaugurar pelas 18h30, vai estar patente no MAM até ao próximo dia 16 de Junho.

Em comunicado, o Instituto Cultural (IC) afirma esperar que, “seguindo os percursos do desenho do artista e das suas observações e pincelas subtis, os visitantes possam descobrir a beleza dos recônditos cénicos de Macau e o encanto da vida local”. Com cores vivas e quentes, as pinturas de Lai Ieng retratam edifícios característicos nas ruas e travessas do Centro Histórico de Macau, como a Calçada do Lilau, a Rua dos Mercadores, a Rua dos Ervanários e a Calçada do Monte, “apresentando paisagens diárias negligenciadas, mas indispensáveis, ​​nas suas aguarelas”, destaca o IC na mesma nota de imprensa.

Desde que foi introduzida em Macau, a aguarela ocidental tem sido um meio de expressão preferido pelos artistas locais. Pintores de diferentes períodos deixaram excelentes obras que influenciaram as gerações posteriores, com Lai Ieng a surgir entre os contemporâneos mais influentes de Macau.

Nascido em Macau em 1949, Lai Ieng começou a estudar aguarela na década de 1970 sob a influência dos artistas de Macau Lok Cheong, Tam Chi Sang e Cheong Io Sang, tendo estudado pintura com o aguarelista Wang Zhaomin nos anos 1980. Em 2008, Lai Ieng foi agraciado pelo Governo com a Medalha de Mérito da Cultura.

20 Mar 2019

Literatura | Obras sobre missionários de Macau lançadas no próximo dia 29

[dropcap]N[/dropcap]o próximo dia 29, o Instituto Internacional de Macau (IIM) vai lançar novas obras, em língua chinesa, sobre os missionários que trabalharam no território. A iniciativa está marcada para as 18h30 no auditório da Diocese.

A maior parte dos livros resulta de tradução de obras da colecção em português dos “Missionários para o Século XXI”, como é o caso do primeiro sobre o padre Áureo Nunes e Castro, da autoria de João Guedes. Já o segundo sobre Luiz Ruiz Suarez foi escrito por Ieong Chi Chau, antigo director de uma escola católica, que fará a apresentação da sua obra, cuja tradução para a língua portuguesa está em curso.

Esta série de edições pretende “aproximar as comunidades e promover o conhecimento dos obreiros e das legiões de servidores da Diocese de Macau, entre eles os padres, missionários, leigos e letrados, que fazem parte da identidade cultural de Macau”, realça o IIM, num comunicado enviado às redacções.

Durante a cerimónia de lançamento das obras, vai ter lugar uma actuação do coro de S. Tomás que irá interpretar canções do padre Áureo, em homenagem ao insigne compositor e músico. A iniciativa do IIM e da Diocese de Macau, conta com o apoio da Fundação Macau e com a colaboração da Associação dos Antigos Alunos do Seminário de S. José de Macau.

20 Mar 2019

Fotografia | Exposição de João Miguel Barros inaugura a 12 de Abril

[dropcap]“[/dropcap]Photo-metragens”, exposição de fotografias de João Miguel Barros, vai ser inaugurada no próximo dia 12 de Abril, pelas 18h30, anunciou ontem o Instituto Cultural em comunicado. A mostra, que reúne 12 ‘short stories’, todas elas independentes entre si, vai estar patente no Centro de Arte Contemporânea de Macau – Oficinas Navais n.º1, até 2 de Junho. A exposição “faz parte de um roteiro pré-concebido que assume o propósito de revelar estórias simples a partir do quase nada, às vezes de coisa pouca, numa lógica que contraria a ideia feita de que só os momentos decisivos têm a dignidade de serem contados”, realça o IC.

20 Mar 2019

Livro | Apresentado hoje Dicionário do Crioulo de Macau

É hoje lançado no âmbito do Rota das Letras o Dicionário do Crioulo de Macau. A apresentação da obra vai ficar a cargo do arquitecto Carlos Marreiros que fala de mais um “contributo para a fixação das memórias colectivas da cultura macaense”

[dropcap]“[/dropcap]Macau di nosso coraçam/Alma di nosso vida/Unde vós ta vai, quirida?” titula o painel que tem lugar hoje, pelas 18h30, no Albergue SCM, durante o qual vai ser apresentado o Dicionário do Crioulo de Macau. A obra, com a chancela da Praia Grande Edições, lançada no âmbito do Festival Literário – Rota das Letras, é da autoria de Raul Leal Gaião, investigador nas áreas da Lexicologia, Dialectologia e Crioulística.

“É mais um contributo fantástico e significativo e de grande vulto para a fixação das memórias colectivas da cultura macaense”, descreve Carlos Marreiros que, “com todo o gosto”, aceitou fazer a apresentação do livro. “É um trabalho de grande fôlego”, realça o arquitecto, para quem o dicionário, além de “exaustivo” e “erudito”, encontra-se “muito bem sistematizado”.

Durante o painel, Carlos Marreiros vai debruçar-se sobre a “componente prática” do patuá: “Vou tentar comunicar com a plateia no sentido de mostrar a alegria, a doce brejeirice muito própria que os macaenses herdaram”.

Ao longo de mais de mil páginas, o Dicionário do Crioulo de Macau introduz o significado de palavras em patuá, utilizando como base os escritos de José ‘Adé’ dos Santos Ferreira, ‘traduzindo-as’ depois para português. “O autor confronta muitas fontes. Penso que é uma peça de referência”, destaca Carlos Marreiros, a quem pertence a autoria do desenho patente na capa do livro.

O Dicionário do Crioulo de Macau figura, como observou Carlos Marreiros, como a terceira obra a versar sobre os significados e significantes do patuá. “Glossário do Dialecto Macaense”, da autoria de Graciete Batalha, marcou a estreia, com a primeira edição a remontar ao final da década de 1970. Seguiu-se (em 2004) “Maquista Chapado – vocabulário e expressões do crioulo português de Macau”, de Miguel Senna Fernandes e Alan Baxter, obra editada nas línguas portuguesa e em inglesa.

 

20 Mar 2019

Hong Kong | Macau tenta atrair indústria do cinema

[dropcap]M[/dropcap]acau está desde ontem representado no “Hong Kong International Film & TV Market” (FILMART) para atrair a indústria do cinema para o território e promover o seu festival internacional, anunciaram ontem as autoridades.

Com a presença no FILMART, que decorre até 21 de Março, pretende-se “divulgar Macau como um local ideal para filmagens, impulsionar o intercâmbio entre a indústria cinematográfica e televisiva de Macau e os seus congéneres internacionais”, bem como promover o quarto Festival Internacional de Cinema.

O Pavilhão de Macau no Centro de Convenções e Exposições de Honk Kong é uma iniciativa conjunta da Direcção dos Serviços de Turismo e Instituto Cultural.

Por outro lado, “a partir de hoje[ontem], e durante quatro dias consecutivos, no FILMART, quatro entidades de produção de filme e televisão de Macau vão realizar intercâmbios e encontros com os expositores e profissionais da indústria (…), para procurar oportunidades de cooperação, e elevar o prestígio internacional da indústria cinematográfica e televisiva de Macau”, pode ler-se no comunicado.

No ano em que se celebra, o 20.° aniversário do estabelecimento da região administrativa especial, o Pavilhão de Macau mostra vários locais do território que serviram de cenários de cinema ao longo dos últimos 20 anos e, em simultâneo, exibe ainda obras cinematográficas da promoção “Sentir Macau Ao Estilo de Cinema” para promover os locais de filmagem do território.

19 Mar 2019

Entrevista | António Falcão, o homem da maratona

António Falcão inicia hoje, pelas 15h, na Livraria Portuguesa, uma maratona de 24 horas de escrita. O autor tem uma ideia base, e a partir daí vai deixar a escrita falar desafiando a resistência física. Ao mesmo tempo, de hora a hora, publicará online um capítulo de cada uma das histórias que vão sendo escritas

[dropcap]E[/dropcap]m que consiste este evento?
Vai ser uma maratona com ponto de partida às 15h em que vou estar a escrever durante 24 horas na montra da Livraria Portuguesa. Será um processo sem plano concreto, apenas com alguns tópicos como guia. Vou ter um tema base, que irei explorar durante esse período, deixando a escrita fluir. Ao mesmo tempo vou publicar online, a cada hora, um capítulo de uma história, ou será mais correcto dizer uma trama, que será dividida, assim, em 24 capítulos. A ideia é escrever um bloco de texto completo, com um princípio e um fim, como quem entra para uma corrida de resistência e tenta chegar ao final incólume, sem acidentes, com o veículo inteiro. Muitas vezes, não é possível. Neste caso, a escrita ditará e arrancará sozinha por ali fora, sem um circuito por onde se delimitar. Tentarei estar presente o menos possível, deixando as mãos falarem por si, entre as teclas e o papel digital: as 24 Horas de Les Mains. Uma singularidade espacial. This is Major Tom to Ground Control.

Porque decidiu fazer este tipo de maratona escrita?
Não usaria o termo decisão. É certo que não foi um convite. Foi uma proposta da minha parte. Dada a coincidência de datas, em que consigo pela primeira vez estar em Macau durante o período do festival literário Rota das Letras, achei que fazia sentido ter uma participação no evento. Mas não me estava a ver incluído em algum painel, nem a falar, que é coisa para a qual não tenho vocação. Não sei bem de onde surgiu a ideia. Se calhar partiu da minha paixão por corridas de automóveis e de querer, todos os anos, estar presente nas 24 Horas de Le Mans. É um dia sagrado. Queria fazer algo parecido. O desafio em si, de estar enfiado numa cápsula com o tempo a contar lá fora, onde tudo é possível. Uma espécie de travessia, ir de uma ponta à outra, a caminhar numa corda bamba, com pouco equilíbrio. A ideia de estar um dia inteiro a escrever sem interrupções pareceu-me um bom acto de funambulismo. Digamos que neste caso será mais sonambulismo, parto um pouco sem a consciência da façanha em si. Mas o Houdini também teve de começar por algum lado. Meto a primeira e sigo prego a fundo.

Que dificuldades pensa encontrar durante o processo?
Creio que a principal dificuldade é de escrever algo que faça sentido do princípio ao fim, que conseguia erguer um bloco. Que exista um enredo linear, ou sequer um fio de escrita literário. Qualquer pessoa que tenha a escrita como profissão, consegue estar a escrever um dia inteiro sem parar, mas a grande dificuldade será fazê-lo com consistência e com alguma habilidade, para que não seja apenas um grande disparate. Confio na fluidez da escrita, e que a certo ponto entre num estado de hipnose tal que deixo de ali estar, e só retorne no final, numa viagem de ida e volta a outra galáxia. Na verdade, não sei bem o que vai acontecer, tentarei ser apenas espontâneo. Sinto um misto de receio e de confiança, de que vou sair ileso, e de que me safo melhor assim, com uma corda ao pescoço. A corda do ajuste imediato. De outra forma, poderia aborrecer-me e desistir, destruindo o empreendimento. Ou então é a paranoia com o perfeccionismo que deita tudo a perder. Do modo como vai acontecer hoje, com o fio da guilhotina a cair, safo-me melhor. Este ano tenho escrito todos os dias. Uma história por dia, na página de um caderno. Já vou em mais de setenta. Tem sido um bom exercício e essa experiência talvez seja um bom auxílio para me afundar neste pântano. Uma tábua de salvação.

Tem ideia sobre o que vai escrever?
Sim e não quero dizer o que é em concreto, mas vou escrever sobre um fim. Não direi que seja polémico, mas sim pertinente. Vivemos imiscuídos neste bolo comunicacional em que se perdeu a noção das certezas. As pessoas já não se questionam, embrulham-se. Deixam-se alienar pelos pacotes que lhes oferecem. Olhe-se para o panorama civilizacional de vários países, em que grandes traumas da nossa história voltam a ebulir. Qual a origem disto tudo? Baixámos os braços? Deixámos de ser exigentes? Ninguém lê? Olha-se para as televisões e só se vê lixo. A maioria dos jornais etiquetaram-se a um post-it, porque acham que os leitores perderam a paciência e já não conseguem prestar atenção e ler três frases, limitando-se ao superficial. É um mundo cão e só querem subsistir. Depois há a filosofia do isco, não interessa o conteúdo, só importa o fio a passar e o clique. Os cérebros deixam de ter neurónios e passam a ter isso: cliques de ansiedade. Estou a generalizar, é certo, mas o que graça por aí não é para meninos. Daí que pensem em colonizar outros planetas. Porque o nosso também está nas ruas da amargura. Mas o pior de tudo isto é que se somos inteligentes e temos as ferramentas para dar a volta, porque preferimos não o fazer? Será só o poder e o dinheiro? Vou escrever sobre sobrevivência. Outros dos aspectos deste desafio tem que ver com o facto da sobrevivência necessitar de sacrifício e esforço físico. Por isso, às últimas horas, a escrita que brotar virá muito dessa dificuldade acrescida, que se poderá equiparar ao que estiver a ser vivido por mim. Com a veia truncada. Em delírio puro.

Vai estar exposto. Acha que a presença de público vai interferir com a escrita?
A exposição, para além da manifestação lúdica, depreende uma certa interactividade. A vontade é de que o público, de certo modo, tanto porque a “classificação geral” da prova vai estar exposta de hora a hora, tenha alguma influência no processo. Terá, com certeza, dado que irei estar a captar e a assimilar sentidos de várias fontes. Não vou estar empalado, e tudo isso será inspiração. Pretendo inclusive que as pessoas apareçam na livraria e possam deixar bilhetinhos e comentários sobre todo este desastre à beira de acontecer. Vou respirar fundo.

19 Mar 2019

Música | Salvador Sobral esteve ontem no Teatro Broadway

O vencedor da edição de 2017 do Festival Eurovisão da Canção, Salvador Sobral, esteve em Macau para um concerto no Teatro Broadway. Horas antes do espectáculo, o artista apontou as primeiras impressões do território e falou do processo criativo do seu ultimo disco, “Paris-Lisboa”

[dropcap]O[/dropcap]tempo em Macau foi limitado mas, entre o concerto de ontem Teatro Brodway e os sound-checks, Salvador Sobral leva impressões de uma “Macau profunda”. “Macau tem duas faces, a da ostentação que acompanha os casinos, em que tudo não passa de uma fachada como a Torre Eiffel, o Casino Lisboa etc., e depois existe a verdadeira cidade, muito genuína e que gostei muito de ver”, aponta ao HM referindo-se ao passeio que deu pela zona antiga do território. “É uma cidade mais escura, melancólica, o reflexo desta sociedade”, acrescentou. Na memória leva um pequeno espectáculo que assistiu “por acaso numa casa de chá antiga”, acrescentou.

Entretanto, o convidado do festival literário Rota das Letras deu ontem um concerto de apresentação do álbum que vai ser lançado no final deste mês: “Paris, Lisboa”, título inspirado no filme “Paris Texas” de Wim Wenders. “Achei piada fazer uma referência ao “Paris, Texas”. É o meu filme preferido”, refere. As semelhanças entre o segundo álbum do artista e a obra de Wim Wenders não são perceptíveis num primeiro olhar, no entanto, tal como no filme, o disco trata da procura, “de alguém que está constantemente numa procura intensa e interior, de si próprio e daquilo que o rodeia”, diz. “A nossa música é isso. É também uma procura constante de alguma coisa que não vamos encontrar”, acrescenta.

Processo invertido

“Paris, Lisboa”, é mais um disco que começa muito antes do momento de gravar em estúdio. “Muitas vezes as canções, como “Presságio” que já tocamos desde 2016, não estão registadas em lado nenhum e só saem depois de terem sido cantadas ao vivo muitas vezes”. O artista prefere fazer o processo “inverso”, o de “tocar primeiro e depois gravar”. Desta forma é possível, na chegada ao estúdio, descobrir outros caminhos. “A música já está tão intrínseca que permite explorar outras coisas. Os discos para mim são uma constante procura de imitar o que vamos fazendo ao vivo”, diz.

A vida por um fio

O primeiro tema de “Paris, Lisboa”, é muito pessoal para Salvador Sobral e representa a “catarse” e o “renascimento” após ter sido submetido a um transplante de coração em Dezembro de 2017. “O coração é o órgão que desde a antiguidade está ligado às emoções, e à própria vida”, aponta o  músico. No entanto, e devido à proximidade temporal da intervenção, Sobral ainda não consegue “perceber que influência aquele transplante tem directamente” na sua vida. “Quando penso naquela situação ainda fico em pânico e ainda não consigo ir facilmente a hospitais apesar de ter que o fazer.” Talvez por isso, a canção que abre “Paris, Lisboa” é “um vómito de tudo o que aconteceu nessa altura para depois poder começar o disco já com paz e tranquilidade”.

Ter passado por uma situação limite que lhe revelou uma finitude eminente, fez com que o músico passasse “a viver de outra forma”. “Lembro-me que quando saí do hospital e  olhei para o trânsito achei-o fascinante e de ter pensado que nunca mais me iria chatear por causa do trânsito”, recorda. “Agora quando estou prestes a irritar-me com questões como esta, acabo por parar e pensar. Tenho mais é que agradecer por poder estar no meio do trânsito e não confinado a quatro paredes dentro de um hospital”, refere.

Em três minutos

Acerca da eurovisão, Salvador Sobral admite que que foi um momento de viragem na sua vida, até porque “de que outra forma é possível , de uma só vez e em três minutos ser visto por 200 milhões de pessoas?”. A vitória, teve outro sabor porque foi conseguida com um tema de que gosta muito, “Amar pelos dois”. “Há muita gente que vai ao festival e faz canções só para aquele evento. Eu acho que fiz uma coisa verdadeiramente boa e com uma mensagem muito forte, tanto melódica como lírica, o que me deixa muito orgulhoso”. Aliás, é com a música “verdadeira” que o artista quer continuar a trabalhar.

Este ano Portugal vai estar representado no evento musical europeu por Conan Osíris, artista que Salvador Sobral considera “muito particular”, sendo que “é esse o segredo, é a particularidade, a distinção e o impacto que podem vir a fazer de Conan Osíris o próximo vencedor do festival da canção”, aponta.

18 Mar 2019

Entrevista | “A Ásia é a grande interrogação” – José Luís Peixoto, escritor

O escritor José Luís Peixoto apresentou ontem, no festival literário Rota das Letras, a tradução para português do livro “Palavras de Fogo” do poeta chinês Jidi Majia. O autor falou ao HM dos desafios da tradução, da vontade de aprender mandarim, da intenção de escrever um livro sobre Macau e da possibilidade de cá viver

[dropcap]E[/dropcap]stá em Macau como convidado do festival literário Rota das Letras, este ano dedicado à poesia, género que marcou a sua estreia na escrita. O que acha desta iniciativa?
Faz todo o sentido. Hoje em dia, e um pouco por toda a parte, há vários festivais exclusivamente dedicados à poesia. Faz todo o sentido, até se olharmos para a nossa tradição a este nível não só na língua portuguesa, mas também no âmbito da China e este é um festival que faz o cruzamento integrando ainda o que se faz em Macau. A poesia é uma linguagem universal. Na verdade, acho que toda a literatura o é, mas a poesia é de uma forma ainda mais radical. A poesia tenta falar daquilo que é absolutamente humano, daquilo que não muda, daquilo que é verdade agora e que continuará a ser verdade daqui a muitos séculos. No nosso mundo, neste momento, precisamos também deste olhar, que é um olhar que muitas vezes não é tão favorecido pelo sistema. Aquilo que se tornou habitual foi avaliar o sucesso em termos de conta bancária e a poesia é um outro património, é um outro tipo de contabilidade. Creio que, enquanto seres humanos, enquanto pessoas vivas, vai haver um momento em que vamos fazer a nossa contabilidade pessoal. Aí, a poesia vai ter realmente o papel que efectivamente merece.

Falou de valores e já escreveu de forma crítica acerca do papel do individualismo na sociedade contemporânea.
Sinto que o individualismo não é mau em si próprio. Somos indivíduos e creio que a liberdade em absoluto é uma questão do indivíduo, do respeito pela sua especificidade. O indivíduo tem de reconhece-se a si e aos outros de modo a permitir-se ser livre. Sinto que aqui na Ásia, esta questão pode ser vista de uma forma relativamente diferente. Claro que existe um outro aspecto, e que é transversal no nosso tempo: o do egoísmo, do completo desprezo pelo outro. Por outro lado, sinto que aqui em Macau, ao lado deste país com mais de mil milhões de pessoas, o individualismo não seria uma questão negativa. Como português, vindo de outra cultura, às vezes sinto um certo choque quando me deparo, aqui, com um certo entendimento que anula o indivíduo. Existem duas dimensões desta questão: por um lado, o egoísmo que é um defeito, nunca é positivo, e por outro o facto de também não nos podermos anular. A própria escrita, e neste caso a poesia, também é muitas vezes um trabalho de auto-análise e de reconhecimento da nossa própria existência. O simples facto de acharmos que temos alguma coisa para dizer aos outros é um acto que demonstra uma certa crença no indivíduo.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Está cá para apresentar a tradução de “Palavras de Fogo” do poeta chinês Jidi Majia. Antes de mais, a poesia é traduzível?
Acho que a poesia é tão traduzível como qualquer outro texto. Claro que a poesia, leva até às últimas consequências uma série de características que também existem nos outros textos. Ou seja, pela própria proposta de condensação que existe no texto, há aspectos que são trabalhados de uma forma mais radical. Essa dificuldade da tradução e impossibilidade da fidelidade absoluta fica mais visível quando se traduz poesia. No entanto, não creio que haja muitas diferenças em relação à tradução de um texto em prosa. Depende do grau de exigência que tivermos em relação à comparação do original com a tradução. Pessoalmente, sinto que, desde que não se caia no equívoco de acreditar que o texto traduzido é exactamente o texto original, a tradução é um compromisso, uma tentativa de ponte. No caso dos textos portugueses e do seu conhecimento na China e dos textos chineses no âmbito da língua portuguesa, acho que há muitas pontes para abrir e para construir. Por outro lado, a questão da tradução não é só uma questão da linguagem. O texto não é só linguagem, o texto também é cultura. O tradutor competente é capaz de transmitir no seu texto, o valor cultural dos elementos presentes no texto original. Esse texto traduzido é da responsabilidade do tradutor, para o melhor e para o pior. É a ele que devem ser atribuídos os créditos e também ser pedidas responsabilidades.

Como foi traduzir um texto de poesia chinesa para português?
Traduzi “Palavras de Fogo” para português, mas não a partir do original porque ainda não sei mandarim – mas estou a pensar aprender sabendo que é uma missão para a vida inteira. Tive oportunidade de conhecer o poeta, Jidi Majia, num contexto privilegiado e que foi justamente na sua província natal, em Sichuan. O autor pertence a uma etnia chinesa que curiosamente tem, mais ou menos, o mesmo número pessoas que Portugal, à volta de 10 milhões. Achei isto muito curioso. No passado, já traduzi alguma poesia, mas só para revistas. Nunca tinha traduzido um livro inteiro. Eu sei, até pelos meus próprios livros, que a condição ideal da tradução é, em primeiro, lugar traduzir da própria língua. Ainda assim, sei que, neste caso em particular, essa circunstância era impossível. Acabei por fazer uma primeira versão daqueles poemas a partir do inglês, do francês, do castelhano e do galego e depois uma aluna de mestrado da Universidade de Macau, Yuo Yupin, que conheci em Pequim e que tinha traduzido uns poemas meus para uma revista de poesia chinesa, fez um trabalho de revisão e de comparação com o original. Muitos aspectos sobre os quais gosto de escrever têm relações interessantes com a poesia deste autor. Ele fala muito do seu contexto, da sua aldeia, das características daquele povo e daquela realidade que se afasta muito da imagem que a maioria dos portugueses têm da China.

Em que sentido?
Hoje em dia temos a visão de uma China que remete para as grandes metrópoles, Xangai ou Pequim, e para as grandes indústrias. A China é a fábrica do mundo. Mas aqui estamos a falar de algo muito concreto, que fica numa região que também não é muito conhecida. Jidi Majia ao mesmo tempo que fala sobre o seu lugar, também tem muita consciência do que se passa no resto do mundo. Ao longo do livro é interessante perceber que o autor faz muitas referências a outros poetas internacionais, demonstra ter uma visão da poesia contemporânea e de estar integrado nesse código, digamos assim. É curioso, estávamos a falar da poesia ser na sua natureza uma linguagem universal e, ainda assim, há especificidades importantes. A literatura, como disse, depende muito da cultura. Apesar de acreditar que a poesia é uma linguagem universal que aspira a falar dos problemas do ser humano em qualquer parte do mundo e em qualquer época, também sei que há diferentes entendimentos sobre o que é a poesia. A tradição é importantíssima na fixação daquilo que é a visão da poesia, seja onde for. Um outro aspecto fundamental é a própria língua e aqui estamos a falar de dois sistemas linguísticos que são muitíssimo diferentes. Enfim, sinto que um texto original em mandarim, vai ser um parente do texto traduzido, neste caso em português, mas isso não deve ser desmotivante para traduzir textos. Acredito profundamente na tradução. A própria escrita é também um acto de tradução, de outras linguagens que às vezes nem são palavras.

Outro género que tem desenvolvido na sua escrita é a literatura infantil. Como é escrever para crianças? 
Tenho muita vontade de escrever mais livros de literatura infantil. Tenho muitas ideias nessa área. Sinto que escrever literatura infantil não é tão diferente de escrever poesia. São áreas que precisam de uma dedicação muito particular e, por isso, já não publico poesia há algum tempo. Neste momento, estou cheio de boas intenções a esse nível porque terminei um romance há pouco mais de uma semana. A escrita de um romance tem que ser uma grande obsessão e é uma obsessão em que todas as outras tarefas são perturbadoras. Neste momento, tenho muita intenção de terminar um conjunto de poemas e construir um volume que gostaria de publicar no ano que vem. Tenho também a intenção de trabalhar numa quantidade de ideias que tenho para livros de crianças que como dizia não são tão diferentes de escrever para adultos. Acho que há alguns elementos que se podem ter mais em consideração quando se escreve para crianças: privilegiamos mais a imaginação e a liberdade criativa. Ao mesmo tempo temos de ter consciência do código que se está a criar. Não é que hajam temas que não possam ser tratados pelas crianças, mas acredito que há certas formas de tratar esses temas que devem ser tidas em consideração, como não infantilizar os textos ou o próprio público leitor.

Recentemente lançou “Caminho imperfeito”, onde fala da Tailândia e de Las Vegas. Já escreveu sobre a Coreia do Norte. Para quando um livro sobre Macau?
Um dia. Já escrevi sobre Macau, não em livro, mas não estou satisfeito com as coisas que escrevi. Sei que há uma diferença grande entre aquilo que publico em livro e o que publico noutras plataformas. São espaços com papéis diferentes. Não é que seja mais ou menos importante, mas é diferente. Os jornais, por exemplo, são do momento. Isso tem a sua importância, precisamos dessa informação, precisamos do relato daquele momento, de quem somos nesse momento. Mas os livros, a literatura, a meu ver, tem na sua natureza, esta proposta de eternidade, esta tentativa de atravessar o tempo, que a muitos níveis é uma intenção vã e que não se cumpre. O tempo e a efemeridade das coisas é imensa, é maior que tudo. Mas, é uma ambição nossa, enquanto seres humanos, a de nos confrontarmos com o impossível. É o amor absoluto, a liberdade absoluta, a eternidade. Em última análise, sabemos que não conseguimos nada disto, mas esse é o nosso horizonte. É isso que se passa nos textos que publico em livro. Já os textos que publico noutros lugares, não é que me arrependa deles, mas sei que foram daquele momento. Era o que eu conseguia naquele momento. Os livros têm outra abrangência, têm outra convicção. A convicção é muito importante. Não podemos ter constantemente uma convicção profunda em tudo o que fazemos. Como também não podemos viver sempre no amor absoluto e profundo. Temos diferentes necessidades, diferentes momentos. Em relação a Macau, é um tema irresistível, principalmente para quem tenha interesse por este continente imenso que é a Ásia.

O que é o seu caso.
Sim, e privilegio muito, dentro das possibilidades de contactos e de projectos, aqueles que dizem respeito à Ásia. Dizer só a Ásia é muito vasto, ainda assim, acho que a Ásia é a grande interrogação. É impressionante estar, por exemplo, numa cidade chinesa, quase como se estivesse noutro planeta. Ando sozinho nas ruas a pensar: o que é que estas pessoas pensam. É tão evidente que dispõem de outros valores, de outras formas de entender o mundo. Também acredito que somos todos humanos e partilhamos o mais elementar, mas sinto uma grande vontade de vir tantas vezes a Ásia até que deixe de ser exótica. Acho que é a sexta vez que venho a Macau e na primeira vez repara-se numa coisa, na segunda já se vê outra, e em cada vez que regresso deparo-me com realidades diferentes. Existem tantos mundos diferentes aqui e tão condensados. Sinto claramente que, quando ando nas ruas e me cruzo com certas pessoas, não tenho nenhum acesso à realidade delas apesar de estarmos ali no mesmo lugar. Acho que isso é um potencial de trabalho incrível. Acredito que um dia irei empenhar-me a escrever sobre isso, mas vai exigir mais que aquilo que fiz até aqui. Para isso tenho de pensar em vir viver aqui algum tempo.

18 Mar 2019

Cinemateca Paixão | Segundo aniversário celebrado com ciclo secreto de filmes

O segundo aniversário da Cinemateca Paixão será marcado pela exibição de um ciclo secreto composto por oito filmes. Entre os dias 30 de Março e 28 de Abril, o público apenas saberá, com certeza, que películas vão ser projectadas quando as luzes se apagarem

[dropcap]O[/dropcap]elemento surpresa é o trunfo para a celebração do segundo aniversário da Cinemateca Paixão. A festa da sétima arte, com datas marcadas entre 30 de Março a 28 de Abril, terá como prato principal um ciclo secreto composto por “oito notáveis clássicos do cinema”, afirma a organização em comunicado.

“Não fui curadora do programa, mas quando discutimos ideias para o segundo aniversário achámos que as projecções surpresas seriam uma boa ideia. São oito filmes de géneros diferentes, que serão exibidos duas vezes. Também vamos ter palestras e exposições para celebrar o aniversário”, conta Vivianna Cheong, chefe de programação e marketing da Cinemateca Paixão. Até às projecções, serão ainda dadas algumas pistas sobre os filmes que vão passar pelo ecrã da cinemateca.

O ciclo será composto por “promissores filmes de estreia, comoventes e nostálgicas histórias de amor, arrepiantes obras-primas do terror, comédias de época e cinema do mundo, até marcos do cinema de ficção científica”, lê-se no comunicado.

Em relação às sessões secretas, a directora de operações da Cinemateca, Rita Wong, explica que a noção de “nova perspectiva” tem um papel fundamental no programa de aniversário.

“O público entra na sala sem qualquer ideia prévia. Ao fazer a lista de obras, com a curadora convidada Penny Lam, decidimos escolher obras populares e de renome. Tal como o slogan do festival indica, tratam-se de narrativas que ‘transcendem o tempo’. Além disso, são apresentas em sessões secretas, o que acrescenta um sentido de aventura. Espero que o público nos acompanhe nesta aventura cinematográfica”, aponta Rita Wong.

 

Anos recheados

Desde que abriu portas, a Cinemateca Paixão tem mantido actividade constante. “Ao longo dos dois últimos anos, organizámos mais de 20 festivais de cinema, apresentámos estreias e exibimos filmes locais. O nosso objectivo é providenciar um ‘hub’ de cinema para os fãs da sétima arte e apresentar trabalhos de relevo a novas audiências. A conjugação destes dois tipos de público tem reflexo na nossa programação, que tanto pode ser peculiar e artística, como apresentar obras que metem a audiência bem-disposta”, refere Rita Wong.

À passagem de dois anos de actividade, a directora da Cinemateca Paixão mostra-se feliz com a aderência do público e acrescenta achar possível “ir ainda mais longe”.

Um dos outros rostos da casa que se dedica à paixão pela sétima arte é Albert Chu, director artístico da Cinemateca, que também aproveitou a ocasião para dirigir algumas palavras à audiência. “Gostaria de manifestar a minha profunda gratidão pelo apoio do público ao longo destes dois anos. É minha convicção que estamos a crescer juntos. Com a nossa curadoria de festivais de cinema aspiramos a mostrar grandes filmes que possam inspirar uma profunda reflexão. O que nos dá o cinema? Certamente a sua fascinante cinematografia, as suas histórias e contextos. Mas também, entre outras coisas, as memórias que suscita e o pensamento crítico que evoca. É muito encorajador ver caras novas entre o público. Espero que juntos cheguemos mais longe, público e Cinemateca.”

Os bilhetes para o ciclo secreto de cinema vão ser postos à venda a partir de amanhã e custam 60 patacas.

15 Mar 2019

Entrevista | “Sou um grande viajante” – Miguel Sousa Tavares, escritor e jornalista 

Miguel Sousa Tavares está em Macau para participar no festival literário Rota das Letras. Hoje fala sobre a obra da sua mãe, Sophia de Mello Breyner, e no domingo é a vez de discorrer sobre os livros que escreveu e as viagens que fez. O autor e jornalista apontou ao HM os desafios que enfrentam os escritores dos dias de hoje e comentou, à sua maneira, os temas que estão a marcar o mundo

[dropcap]E[/dropcap]stá em Macau para participar no Festival Literário Rota das Letras, que este ano é dedicado à poesia e destaca o trabalho da sua mãe, Sophia de Mello Breyner. Como é ser o filho da poetisa e falar do seu trabalho? 
Não sou filho da Sophia de Mello Breyner, sou filho da minha mãe, mas as pessoas acham sempre que é diferente, mas não é. Eu olho sempre para a minha mãe, embora sabendo que tive a sorte de ser filho de uma mãe diferente. As recordações que tenho não são da Sophia de Mello Breyner, mas da minha mãe Sophia. Continuo sempre a olhar para ela como filho e isso dá-me uma posição privilegiada para perceber a poesia dela, porque sei exactamente o que é que ela queria dizer quando escreveu o que escreveu. A maior parte dos leitores atentos dela, imaginam e julgam saber tudo, mas o tudo não é tudo e acho que sei tudo. Eu estava lá, eu vivi e vi-a viver as coisas e sei exactamente porque é que ela escrevia o que escrevia.

Que expectativas tem para este festival? 
Espero que tenha atravessado meio mundo para acrescentar alguma coisa ao festival e não desiludir as pessoas. Estou muito curioso. Quanto à mesa dedicada a Sophia de Mello Breyner, vou ensaiar uma coisa difícil: não falar da minha relação de filho e falar da relação da poesia da minha mãe com a de Fernando Pessoa. Isto é uma coisa que me intrigou muito durante muito tempo, o saber porque é que ela a certa altura teve uma obsessão pelo Fernando Pessoa. Quanto à mesa sobre mim, estou nas mãos de quem me for interrogar. Só sei que é à volta do tema viagens e escrita.

É a sua praia? 
Sim. Sou um grande viajante. Quando digo isto não me refiro a uma pessoa que acumula muitas viagens e muitos países. Basta-me ir a Cacilhas, que se for com espírito de viagem já estou a viajar. O grande viajante é aquele que está pronto a receber e que gosta do que é estranho, do que é alheio, do que é diferente e que aproveita isso mesmo. A minha mãe dizia sempre que eu era incapaz de viajar sem aproveitar. Sempre que viajava eu escrevia. Até em lua-de-mel aproveitava e depois escrevia. Como casei várias vezes tenho várias reportagens de viagem à conta das luas-de-mel.

Pode revelar alguns detalhes sobre o seu próximo livro? 
Já tenho uma parte escrita, mas para já está na gaveta. Vai ser um romance histórico que se passa no séc. XVII no Brasil.

FOTO: Sofia Margarida Mota

De onde vem esse gosto por romances históricos?
Primeiro, eu adoro história. Segundo, para quem escreve romances, a história é uma grande muleta. Temos um substracto que é a própria história e em cima disso criamos outra história. Sempre achei que o problema do romance português, muitas vezes, é não ter história. Há muito escritor que acha que escreve tão bem que não precisa de ter história nenhuma. Eu acho que o romance tem que ter uma história. O meu modelo absoluto de romance é o “Guerra e Paz” de Liev Tolstói. Acho que nunca na vida se escreverá nada como o “Guerra e Paz”. É o modelo do romance perfeito porque é uma história insertada em cima de uma outra história, a da invasão napoleónica da Rússia. O facto de existir uma muleta, não quer dizer que seja mais fácil. Há a parte toda de pesquisa, que é muito difícil e que gosto muito de fazer. Faço-o quer documentalmente, quer indo aos sítios. Para este romance já fui ao Brasil três vezes. Tenho o trabalho de campo feito.

Como vê o panorama actual da literatura portuguesa, quer na prosa quer na poesia?
Sou muito mais leitor de romance do que de poesia. Acho que o romance português está a atravessar uma fase muito boa. Temos vários estilos diferentes, com novos autores diferentes e muito ricos e que estão a conseguir chegar ao mercado. Isto, apesar das dificuldades que a língua portuguesa tem. É difícil, e falo por experiência própria, conseguir traduzir o português lá fora. Somos a sexta língua mais falada no mundo graças aos brasileiros. O facto é que nos países onde conta estar-se traduzido, ou seja, nos países anglo-saxónicos ou franceses, há muito poucos tradutores de língua portuguesa e é muito difícil conseguir-se a esses públicos. Mas esta nova geração tem conseguido, apesar das edições que se fazem lá fora serem pequenas. Estamos a viver uma crise que tem que ver com a crise económica e não só. A partir da crise de 2008, a primeira coisa que as pessoas sacrificaram foram os produtos culturais, tendo o livro à cabeça. Tivemos uma quebra nas edições em Portugal de cerca de 30 por cento que nunca se recuperou. Em cima disso, a força das redes sociais funcionou contra o livro, funcionou contra a imprensa escrita, jornais, revistas etc., e hoje em dia também contra a televisão. São públicos que se perderam. No mercado português perdemos 200 mil espectadores das televisões generalistas por ano. Isto aplicado ao mercado literário é terrível. Nunca mais se atingiu o número de vendas de livros que existia antes de 2008.  A nova geração lê muito pouco. Creio que em Portugal não deve haver um escritor que viva apenas da escrita.

Isso leva-nos a outra questão sobre o papel da internet e das redes sociais na informação e cultura da sociedade contemporânea.
Esta semana vou ter um artigo no Expresso sobre isso, sobre aquilo que acho que é um movimento de grande ignorância colectiva e que a internet está a proporcionar. Eu, como toda a gente, vivo da internet. A internet simplificou-me a vida, mas eu distingo a internet útil da inútil que é sobretudo a relacionada com as redes sociais. As redes sociais contribuem para a desinformação das pessoas, contribuem para a ignorância e contribuem para a preguiça que gera a mediocridade. As pessoas estão convencidas que estão informadas e não estão. Por exemplo, em termos de informação, há uma quantidade de miúdos que só sabem os títulos das notícias, não avançam para a leitura do artigo e estão convencidos que estão informados. Isto é terrível.

Qual a solução para este fenómeno?
Não sei. Não faço a mais pequena ideia. Desde o início que temi que isto fosse acontecer. Lembro-me de ter discussões com as pessoas que eram muito entusiastas das redes sociais e sempre achei que seria necessário existir uma intermediação. Não é uma questão de haver elites contra as massas, mas é, de facto, uma questão em que são precisas pessoas que pensaram, escreveram, leram e que transmitem esse saber e a sua criatividade a um destinatário. Ninguém nasce informado, sem ter lido, sem ter discutido, sem ter pensado. Hoje em dia, o comum das pessoas acha que sim, acha que não é preciso informação nem leituras e isso é terrível.

Falando de actualidade, qual a sua opinião sobre o Brexit e este impasse que se está a viver? 
Sempre tive uma grande admiração pela Inglaterra porque acho que em cada circunstância histórica foi um país que soube sempre encontrar os líderes. Agora olho para a elite política inglesa actual e a única pessoa que tem capacidade dirigente é a rainha, mas ela não tem poderes políticos. O resto, os tipos que promoveram o Brexit –  Boris Johnson, Nigel Farage – são nulidades e a Theresa May é uma nulidade total e absoluta. É uma pessoa que era contra o Brexit e está a tirar a Inglaterra da União Europeia (UE) através de uma quantidade de esquemas. Ela é a essência daquilo que eu mais odeio num político, que é quando um político está a fazer aquilo em que não acredita e que passou a acreditar apenas para se manter no poder. O Cameron é um idiota que se lembrou de perguntar aos ingleses se eles queriam votar na saída da UE. Depois aconteceu outra coisa absolutamente idiota: os que queriam ficar na UE ficaram em casa, não foram votar. A geração do futuro não foi votar e a geração mais velha foi votar no futuro da outra. E votou contra o futuro da geração mais nova. Acho que estamos todos fartos da Inglaterra, estamos todos fartos do Brexit. Aliás, isto vai acabar para a semana, de uma maneira ou de outra. Todos se estão a preparar para não haver acordo nenhum.

Que consequências podemos esperar da falta de acordo? 
É pior para a Inglaterra. Acho que vão descobrir rapidamente que já não existe Império Britânico e que tudo aquilo é um disparate. Para a Europa é grave porque a Inglaterra é essencial para a segurança e para a defesa da Europa – se é que a Europa algum dia vai ter um projecto de defesa, que acho que devia ter sobretudo agora que os Estados Unidos da América (EUA) são governados por um doido.

A Europa não tem andado muito “apagada” dentro da conjuntura internacional? 
Apesar de tudo, está-se a portar melhor. Com o que aconteceu nos EUA em que não sabem se a NATO é para existir ou não, com a Inglaterra a pensar se quer ou não ficar na Europa, acho que a Europa se tem mantido firme, por exemplo em relação ao Brexit. Ao mesmo tempo, a Europa tem enfrentado movimentos nacionalistas de extrema-direita e tem-se aguentado. Agora foi capaz de fazer frente à Hungria.

Como vê a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China?
Acho que a guerra comercial vai acabar bem, ou seja, apesar de tudo, o Trump tem alguma razão em relação à China. Os chineses estão a mudar algumas coisas, estão a reconhecer que não podiam continuar a fazer tudo como até aqui. Vão-se entender porque são dois grandes mercados que precisam um do outro.

E quanto ao crescimento da influência chinesa no mundo? 
Sou um mau conhecedor da China. Por exemplo, esta história da Huawei. Não sei até que ponto os americanos têm razão. Se de facto aquilo que os americanos suspeitam acerca dos telemóveis da nova geração, os 5G, for verdade, os chineses têm uma bomba atómica nas mãos. Se não for verdade, é uma grande jogada comercial.

No que respeita à actualidade portuguesa. O que podemos esperar das próximas eleições legislativas? 
O PS vai ganhar tranquilamente, a menos que haja uma catástrofe que envolva, por exemplo, incêndios monumentais. O único tipo preparado para ser oposição, o Rui Rio, tem o carisma de um cepo. Mas é o único que tem alguma ideia naquela cabeça. A Assunção Cristas tem zero de ideias, o CDS não tem uma única ideia. O PCP é igual a si mesmo e ainda não percebeu que o Muro de Berlim já caiu e o Bloco de esquerda quer ir para o Governo, mas parte do partido não quer. Portugal não tem interesse nenhum politicamente.

Como vê a situação da banca em Portugal e o facto de estar a ser constantemente salva por injecções de capital do Estado? 
Dizíamos que era muito importante ter uma banca portuguesa, que era uma questão de soberania. Hoje em dia, só quero que a banca seja chinesa, seja de Burquina Faso, seja da Polinésia, seja o que for desde que não seja portuguesa, nem privada nem pública, nem nada. Já gastámos 18 mil milhões de euros para acorrer à banca. Somos o segundo ou terceiro país da UE, a seguir à Islândia e à Irlanda que mais dinheiro gastou com a banca. É uma coisa inacreditável. E os outros já deram a volta e nós não. Basicamente, a justiça portuguesa é incompetente e não está preparada para estes casos. Está habituada a demorar anos com os processos. É inconcebível a leviandade com que a banca foi gerida em Portugal, antes e depois das intervenções.

15 Mar 2019

Rota das Letras | “Sophia” sobe ao palco amanhã pela companhia D´as Entranhas

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma abordagem de “um real” possível, tendo em conta que um poema é, para Sophia de Mello Breyner, “um círculo onde o pássaro do real fica preso”, é o que o espectáculo “Sophia” pretende levar ao palco, amanhã, pela mão da companhia D´as Entranhas, revela a actriz Vera Paz ao HM.

A peça marca a abertura oficial da oitava edição do Festival Literário Rota das Letras e vai ter lugar às 21h nas Oficinas Navais n.º2.

“Sophia” é um espectáculo que nasce a partir da viagem levada a cabo no livro “Contos exemplares”. “É a história de um homem e de uma mulher que vão fazendo um caminho, e à medida que vão andando vão perdendo tudo”, aponta a actriz.

Foi esta permissa, “a da procura”, que serviu de mote para o trabalho que viria a seguir. “Estamos sempre à procura de um lugar ideal e nunca vivemos o momento presente e ao perder o presente, perde-se tudo o que se vai vivendo pelo caminho”, refere. No fundo, trata-se de uma interpretação da vida, das encruzilhadas e das escolhas que se fazem, tendo em conta “o que fica quando se chega ao fim”.

A partir daqui, D´as Entranhas pôs mãos à obra e pegou nos textos da poetisa portuguesa para os poder trabalhar, até porque “é uma obra imensa, de uma dimensão quase intocável. A Sophia é um monstro sagrado da literatura”.

Mas o objectivo não é fazer a récita do trabalho de Sophia de Mello Breyner. Numa abordagem mais atrevida, D´as Entranhas construiu uma história, “a partir de poemas escritos em várias fases da vida da autora”.

 

Temas universais

Mais do que abordar a componente política do trabalho de Sophia de Mello Breyner, o enfâse agora é posto na sua “componente poética, do amor, da morte, da vida, de um homem e de uma mulher”, refere Vera Paz. “É uma voz masculina e feminina capazes de representar qualquer um”, explica.

A actriz recorda uma peça homónima encenada há doze anos, “uma primeira ‘Sophia’ em que a componente era muito política”. Mas, agora o objectivo foi mostrar um outro lado da autora – “ela tinha tantos lados que uma pessoa nem sabe por onde pegar”, aponta. “Aqui foi uma outra releitura, talvez porque as pessoas estão a viver outros momentos da vida”, justifica.

Por outro lado, o amor é sempre um tema a ser abordado, assim como a morte e a vida, “são temas universais”, remata.

 

Olho cinematográfico

Para produzir “Sophia” foram desconstruídos poemas, interpretadas ideias e produzida toda uma cenografia “quase cinematográfica” para acompanhar as palavras e os actores. “O espectáculo conta com uma importante componente plástica, da autoria de Bernardo Amorim,  que integra a projecção de vídeo e o acompanhamento músical”. O objectivo é criar interactividade  com uma encenação “mais visual”, diz.

A contracenar com Vera Paz vai estar o também director de D´as Entranhas, Ricardo Moura.

O espectáculo conta com entrada livre.

14 Mar 2019

Efeméride | Centro Cultural assinala 20º aniversário com três espectáculos

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Centro Cultural de Macau completa 20 anos e vai assinalar a efeméride com a apresentação de três espectáculos a realizar neste mês e no próximo. “Da música clássica e teatro de topo à dança contemporânea para toda a família, o CCM abre um novo ciclo com uma selecção internacional e regional de grandes produções e prestigiadas companhias”, aponta o organismo.

As festividades têm início no próximo dia 31 com um concerto levado a cabo pela Orquestra de Cleveland. Considerada “uma das melhores orquestras sinfónicas do mundo”, pela organização, o concerto no CCM vai contar com a direcção do maestro Franz Welser-Möst. Do repertório faz parte o Concerto para piano n.º 5 em Mi bemol maior, Op. 73 de Ludwig van Beethoven, popularmente conhecido como Concerto do Imperador, o último concerto para piano do compositor. Escrita entre 1809 e 1811 em Viena, a composição foi dedicada ao Arquiduque Rudolf, patrono de Beethoven. Além de Beethoven, o concerto integra ainda  a interpretação da Sinfonia N.º 3 de Prokofiev.

A orquestra vai contar com a colaboração de Daniil Trifonov como solista convidado, um pianista “prodígio formado no Instituto de Música de Cleveland e descrito como o mais espantoso pianista do nosso tempo”, aponta a organização.

 

Pinóquio em palco

Já nos dias 20 e 21 de Abril o Palco do Grande auditório do CCM vai dar lugar à marioneta mais famosa do mundo, o Pinóquio. O espectáculo homónimo junta dança e teatro e é concebido para ser apreciado por toda a família. O personagem da história clássica de Carlo Collodi volta a ganhar vida pela companhia britânica Jasmin Vardimon, através deste espectáculo “visualmente deslumbrante interpretado por um grande elenco de bailarinos” que vão dar vida à marioneta ao longo da sua metamorfose em que “o menino de madeira se transforma em humano”.

“O Pai” será a peça encenada pelo grupo de teatro “Repertório” oriundo da vizinha Hong Kong, que vai estar em palco de 26 a 28 de Abril. A peça que tem percorrido alguns dos mais prestigiados palcos internacionais traz a cena o humor negro do conto homónimo da autoria do francês Florian Zeller. “O Pai” é um homem de 80 anos que padece de Alzheimer e que vai perdendo gradualmente a memória e o contacto com a realidade. No principal papel vai estar o também director artístico da companhia, Fredric Mao.

13 Mar 2019

Entrevista | Vasco Morão, artista

“Remember Hong Kong” é o nome da exposição de Vasco Morão, artista português radicado em Barcelona, patente no Art & Culture Outreach, em Wan Chai, até 24 de Março. Em discurso directo, o desenhador explica o fascínio que sente por paisagens urbanas e a forma como transforma memórias de cidades em arte

[dropcap]A[/dropcap]ntes de mais, como é que Hong Kong surgiu no seu caminho enquanto artista?
Há cinco anos, durante uma viagem de seis meses pela Ásia (Indonésia, Singapura, Vietnam, Japão), decidi passar por Hong Kong antes de voar para o Japão. Estive apenas seis dias, mas foi o suficiente para ficar fascinado. Passei os dias percorrendo as ruas da cidade e recolhi imensas referências fotográficas que guardei durante algum tempo. Quando no final do ano passado surgiu a oportunidade de voltar em Março a Osaka e Tóquio, para uma série de residências artísticas, quis imediatamente colocar também Hong Kong na rota. Isso levou-me a revisitar as fotografias de Hong Kong e criar uma série de desenhos na minha experiência pessoal de locais específicos da cidade. Achei que faria todo o sentido expor estes trabalhos sobre Hong Kong numa galeria da cidade. Após alguns contactos foi-me sugerido a ACO (Art and Culture Outreach), uma galeria em Wan Chai. Será a minha primeira exposição aqui.

Porquê captar a paisagem urbanística de Hong Kong? O que lhe despertou mais interesse?
Para mim, Hong Kong é simplesmente fascinante. A densidade e sobretudo a variedade de escalas, tipologias, fachadas, materiais, janelas, neons, estruturas, caixas de ar condicionado, etc. O contraste e proximidade entre os edifícios mais recentes e os mais antigos resulta em perspectivas quase surreais. É uma paisagem urbana vibrante e particularmente intensa que intriga e atrai desde o primeiro momento.

Porque o nome “Remember”? Que memórias pretende transmitir, ou captar?
O nome da exposição remete para o facto do trabalho estar baseado nas minhas memórias destes locais específicos que guardei da minha primeira visita. Não é uma memória fotográfica, mas sim uma memória fragmentada, distorcida e pessoal, mas ainda assim reconhecível.

Fale-me um pouco das obras que vão estar expostas em Hong Kong e nos materiais que decidiu usar.
As obras falam de locais específicos com que tive uma relação emocional. Onde, por momentos, parei e olhei. Todas as peças têm o mesmo formato e técnica. Desenho à mão com caneta negra e aguarela em papel. Para desenhar memórias pensei que isso implica usar uma técnica que quebrasse com o controle absoluto que costumo ter com o meu trabalho. As manchas em aguarelas dão-me um ponto de partida muito mais fluído para ir entrelaçando os diferentes fragmentos da cidade que me vou recordando.

O que captou destes “fragmentos de cidade”?
Em “Leaving Kowloon station” tinha acabado de chegar do aeroporto e queria olhar para a cidade o mais rápido possível. Por isso, ao sair da estação de metro, subi logo até à praça superior e encontrei-me no centro destes edifícios como lanças que configuram e recortam o horizonte. No trabalho “Around Chunking Mansion” foquei-me na energia da Nathan, Moody e Middle Road, o contraste das fachadas, as diferentes escalas e tantos detalhes e pormenores que se misturam num turbilhão de fragmentos. “Walking through Hoi Ting Road” aconteceu quase por acidente. Cheguei a esta parte da cidade por acaso, à procura de uma casa de chás que me tinha sido recomendada. Nesta zona recente de Kowloon, o ritmo das diferentes torres marca diferentes cadências que os olhos seguem até ao céu. Para “Looking at Yick Cheong building”, local bastante referenciado online, achei muito interessante a repetição do mesmo elemento (varanda coberta de janelas) com pequenas variações de tamanho, caixilharias, caixas de ar condicionados que configuram o pátio interior.

O que mais o fascina nas paisagens urbanas? Quando percebeu que seria o urbanismo a área central do seu trabalho?
As paisagens urbanas fascinam-me pelo seu carácter infinito e que encaixa perfeitamente com o meu estilo obsessivo de desenho. Estudei e trabalhei como arquitecto antes de ter uma carreira artística. Isso foi importante para ter entendimento de como as cidades são criadas e apreço pelas diferentes morfologias da paisagem urbana. A partir desse momento, fiquei obcecado por esta coisa incrível que é uma cidade.

Reside actualmente em Barcelona, mas tem feito trabalhos sobre várias cidades. Qual o sítio que mais o fascinou e que mais o desafiou enquanto artista?
Até agora, o maior desafio foi desenhar a paisagem urbana da cidade japonesa porque é relativamente banal e genérica, mas ao mesmo tempo incrivelmente interessante. E tenho um fascínio especial pelo Japão. Para mim, é o mais parecido a viver numa realidade alternativa.

Gostaria de se embrenhar nas paisagens urbanas da China?
Claro que sim! Xangai e Pequim seriam óptimas referências.

Desenhar cidades noutras formas e moldes contribui para uma outra visão ou compreensão sobre elas?
Desenhar é para mim como olhar devagar, penso que é isso que tento comunicar. As minhas peças pedem tempo para serem decifradas. E, ao observar com cuidado, até a paisagem urbana mais monótona tem algo para dizer sobre quem ali vive, quem a desenhou ou construiu.

Já desenhou a paisagem urbana de Tóquio. Pondera explorar outros países do continente asiático?
Claro que sim. A Ásia é um continente onde regresso sempre com muito prazer. Actualmente, tento passar algum tempo nos sítios enquanto os desenho. Por exemplo, nos próximos três meses no Japão vou estar de novo a viver e desenhar Osaka e Tóquio, porque tenho residências artísticas em ambas cidades. O que me dá mais tempo e prazer para descobrir a cidade enquanto vou criando peças que falam dessas experiências. Com vantagem de no final ter a oportunidade de expor o trabalho no local onde foi criado.

Podemos esperar alguns trabalhos sobre Macau, um território tão perto de Hong Kong e com herança portuguesa?
Talvez numa outra oportunidade. Também visitei Macau há cinco anos, mas foi para rever um amigo. Não tive muito tempo para descobrir a cidade… Apenas uma tarde e noite. Precisava de passar algum tempo aí para absorver um pouco melhor toda a paisagem urbana, que conheço apenas de fotografias. Aceito sugestões e convites.

12 Mar 2019

Literatura | José Luís Peixoto entre hoje e quinta-feira na UM

[dropcap]O[/dropcap]escritor português José Luís Peixoto vai estar entre hoje e quinta-feira na Universidade de Macau para conduzir um oficina de escrita no Centro Bilingue Chinês-Português daquela instituição. A iniciativa é dirigida à promoção da escrita de ficção literária e está estruturada em quatro sessões a decorrer das 15h às 17h30. O objectivo é “divulgar a língua e cultura portuguesa” e “fazer com que cada um dos participantes produza um texto literário, percebendo a estrutura, criatividade e métodos envolvidos no processo de criação”, aponta a organização em comunicado. José Luís Peixoto, recebeu em 1997, aos 23 anos, o Prémio Jovens Criadores atribuído pelo Instituto Português da Juventude, com a obra de ficção “Morreste-me”, dedicada ao pai.

Em 2001, o autor começa a destacar-se no panorama da literatura portuguesa ao receber o Prémio Literário José Saramago, da Fundação Círculo de Leitores com o romance “Nenhum Olhar”. Da sua obra, que se encontra traduzida em mais de 25 línguas, fazem parte seis romances, seis livros de ficção, três séries de poesia e dois livros infantis.

 

11 Mar 2019

Literatura | Rota das Letras arranca quinta-feira com a poesia como tema

A oitava edição do festival literário, Rota das Letras, está à porta com datas marcadas entre 14 e 24 de Março. Este ano a programação será compactada em menos dias e pela primeira vez terá um tema: a poesia. Miguel Sousa Tavares e José Luís Peixoto são dois dos principais convidados portugueses, num ano em que se celebram Sophia de Mello Breyner, Adé dos Santos Ferreira, Herman Melville, Walt Whitman e Jorge de Sena

[dropcap]“A[/dropcap] poesia é o início de tudo, a primeira interpretação do mundo.” Foi assim que Carlos Morais José, director de programação do festival literário Rota das Letras apresentou a oitava edição subordinada ao tema da poesia. É para mostrar a universalidade desta arte que o Rota das Letras de 2019 propõe uma programação que trespassa o género literário na multiplicidade de formas que pode apresentar. “Queremos mostrar às pessoas que há muitas formas diferentes de apresentar poesia, podemos fazê-lo simplesmente através do recitar, podemos fazer através do teatro, do cinema ou através da pintura”, acrescenta o director de programação.

Um dos destaques do cartaz deste ano vai para a celebração do 100º aniversário de Sophia de Mello Breyner. A efeméride vai ser assinalada com a presença do jornalista e escritor Miguel de Sousa Tavares, filho da poetisa, no dia 15 pelas 19h, nas Oficinas Navais. Durante a palestra, intitulada “O percurso literário de Sophia”, o filho da poetisa irá recitar alguns poemas da mãe.

A Associação Cultural D´as Entranhas também vai assinalar o aniversário da autora portuguesa com a performance “Sophia”, no mesmo dia e local, às 21h. O grupo vai partir da poesia de Sophia de Mello Breyner, e reinterpreta-la, num formato que em nada se assemelha a um recital. “Pegar nos monstros é sempre complicado, ainda por cima tratando-se da Sophia”, revelou Vera Paz, responsável pela associação.

Também Jorge de Sena terá destaque nesta 8ª edição do festival literário. “Vamos apresentar um documentário sobre o Jorge de Sena realizado por um professor de uma universidade e South Lake City, nos Estados Unidos”, desvenda Ricardo Pinto. O director do festival explica que o académico, além de ter trabalhado com o poeta, fez também várias antologias poéticas de Angola e de Moçambique, destacando-se como um grande promotor da poesia em português.

Poemas de cá

Adé Ferreira dos Santos será outro dos destaques da edição deste ano do Rota das Letras. O poeta macaense vai ser recordado com um recital inteiramente feito em patuá. Será um raro momento de leitura de poesia, apontou ontem Carlos Morais José.

Durante o evento será ainda publicado um dicionário de Crioulo de Macau.

Também Camilo Pessanha vai ser recordado na 8.ª edição do festival literário de Macau, desta feita com a apresentação do filme “Pe San Ié” de Rosa Coutinho Cabral que tem Carlos Morais José como protagonista.

 

Clássicos de sempre

Os 200º aniversários de Herman Melville, autor de “Moby Dick” e de Walt Whitman vão ser assinalados na edição deste ano do Rota das Letras com a apresentação de dois documentários sobre a vida dos incontornáveis escritores norte-americanos.

Outra das datas assinaladas pelo Rota das Letras é o centenário do movimento do 4 de Maio, que marca a Nova Literatura na China. O festival vai trazer alguns dos escritos de autores que marcaram esta altura, entre eles, Lu Xun, Hu Shi e Zhu Ziqing. O grupo de teatro de Macau Rolling Puppets vai levar à cena, a peça de teatro de marionetas “Droga”, uma adaptação do romance homónimo de Lu Xun publicado em 1919. A peça será representada durante os últimos três dias do festival, nas antigas Oficinas Navais.

 

Ode nunca vista

O Rota das Letras apresentará ainda o espectáculo de Pedro Lamares “Ode Marítima”, baseado no poema de Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa. Vai ser a primeira vez que a “Ode Marítima” é declamada integralmente num palco de Macau.

“A forma dos sentimentos – quando a poesia inspira a arte” é o nome da exposição que vai estar patente nas Oficinas Navais, a partir de dia 23, e que reúne trabalhos de artistas locais baseados em excertos de poemas dos autores celebrados na edição 2019 do Rota das Letras. Rui Rasquinho, Carlos Marreiros, Fortes Pakeong Sequeira, Joaquim Franco, Konstantin Bessmertny, Cherry Tsang são alguns dos autores que aceitaram o desafio.

 

Sons da festa

Na música o destaque vai para o cantor português Salvador Sobral, vencedor do Festival Eurovisão da Canção em 2017, que fará a sua primeira visita a Macau para um concerto marcado para o dia 17 de Março no Teatro Broadway.

A festa de encerramento do festival vai estar a cargo da banda de Taiwan Wednesday & Bad to the Bone. O concerto está marcado para as 22h30, do dia 24 de Março, no LMA. Depois da performance da banda de Taiwan, a noite prossegue em festa.

Apesar de mais curta, a edição deste ano é mais condensada, apontou Carlos Morais José. “Esta edição encurtou-se mas concentrou-se no tempo que existe, em termos de quantidade é a mesma coisa. O tempo é que é mais curto, porque entendemos que duas semanas era muito tempo. Dez dias é uma coisa mais concentrada e permite uma acção mais eficaz”, disse.

O director do festival, Ricardo Pinto, salienta neste aspecto o “período de transição” que o Rota das Letras atravessa, mas confessou estar “muito feliz” com a programação final.

 

 

 

 

11 Mar 2019

Rota das Letras traz “Ode Marítima” ao Teatro D. Pedro V no próximo dia 23

A “Ode Marítima”, central na obra de Álvaro de Campos, vai ser declamada integralmente, pela primeira vez, num palco de Macau no âmbito do Festival Literário – Rota das Letras. O espectáculo de Pedro Lamares, baseado no extenso poema de um dos heterónimos de Fernando Pessoa, tem lugar no Teatro D. Pedro V, às 21h do próximo dia 23, véspera do encerramento do Festival Literário, anunciou ontem a organização, num comunicado enviado às redacções.

Nas palavras do filósofo José Gil, em “Ode Marítima” – considerado uma das obras-primas da poesia portuguesa – “exterior e interior são separados pela mesma ‘distância’ que vai do poeta no cais deserto ao navio que ele vê ao longe. É a distância entre a sensação e a coisa, entre a sensação como realidade interior e o paquete como realidade exterior. Ora, esta distância liga-se a uma sensação ‘primitiva’, como diz Pessoa, sensação que desempenha um papel essencial em toda a sua poesia: a sensação de mistério. Na ‘Ode Marítima’, o mistério é significado por toda a distância, tudo o que se separa, todo o movimento que cria uma separação”, realça a mesma nota.

Pedro Lamares desempenhou o papel de Fernando Pessoa em “O Filme do Desassossego”, de João Botelho e participou em filmes dos realizadores como Jorge Paixão da Costa, Vítor Goncalves, Joaquim Leitão e António Pedro Vasconcelos. Na televisão apresenta o programa “Literatura Aqui” (RTP2) com Filipa Leal, em que faz selecção e gravação de textos. Além disso, dirige espectáculos, lecciona em escolas de teatro e comunicação e é ainda director artístico da cooperativa “Casca de Noz”, ainda de acordo com a organização.

A oitava edição do Festival Literário – Rota das Letras vai decorrer entre os próximos dias 15 e 24. No próximo domingo, pelas 15h, a Livraria Portuguesa acolhe uma conferência de imprensa de apresentação do programa.

8 Mar 2019

Lançada agência para ligar o mundo literário lusófono ao asiático

Chama-se Capítulo Oriental, a nova agência literária dedicada a escritores lusófonos e asiáticos. Hélder Beja é o rosto por detrás do projecto, que incorpora também uma editora vocacionada para livros de e sobre Macau

[dropcap]F[/dropcap]oi oficialmente lançada ontem a Capítulo Oriental, descrita como a “primeira agência literária com o objectivo principal de trabalhar entre a Ásia e os países e territórios de língua portuguesa”. O novo projecto abraça também uma vertente editorial, vocacionada para obras de e sobre Macau, onde se encontra sediada. O primeiro título com a sua chancela vai ser lançado já em meados do mês, no âmbito do VIII Festival Literário – Rota das Letras, a ter lugar entre os próximos dias 15 e 24.

Hélder Beja, que, em 2018, deixou o cargo de director de programação do Rota das Letras, ao fim de sete anos, lidera a Capítulo Oriental realizando um sonho há muito almejado. “Este projecto surge muito no seguimento do que tem sido o meu trabalho ao longo da última década, dedicado e ligado à literatura dos países de língua portuguesa e também da Ásia. Era uma ideia que tinha há alguns anos, que foi preparada com calma”, explicou ao HM. Trabalhar entre “estes dois mundos enormes” figura como o principal intento da Capítulo Oriental, idealizada para dar a conhecer a “diferentes públicos” a carteira de mais de 60 autores, muitos deles premiados, de Macau, Hong Kong, Taiwan e China, Índia, Filipinas, Tailândia, Singapura, Malásia, Coreia do Sul ou Austrália, bem como de Portugal, Brasil, Moçambique, Cabo Verde ou Guiné Bissau, entre outros.

O projecto tem, na verdade, “quatro braços”, dado que, além da agência literária propriamente dita (o principal) e de editora, vai cobrir ainda as áreas de eventos e tradução. “A Capítulo Oriental pretende servir de ponte entre a Ásia e os países de língua portuguesa através do agenciamento de direitos autorais, incentivando traduções, promovendo a participação dos seus autores em festivais e feiras do livro, organizando eventos e publicando antologias multilingues em Macau”, diz um comunicado enviado às redacções pela recém-criada agência literária que, entretanto, assinou acordos com entidades congéneres, como a Bookoffice e a Storyspell (Portugal) e a MTS Agência (Brasil), bem como com editoras independentes.

O próximo passo será “trabalhar caso a caso, com os autores representados, tentando colocá-los em diferentes editoras de um lado e doutro, no sentido de tentar ter autores asiáticos traduzidos para a língua portuguesa e vice-versa”, indicou Hélder Beja, reconhecendo tratar-se de um “processo longo” que “não vai acontecer de um dia para o outro”.

Rampa de lançamento

Já a editora vai dar a conhecer-se ao público dentro de dias, com o lançamento dos primeiros dois títulos, ambos da autoria de escritores de Macau: “A Humidade dos Dias”, de Luís Mesquita de Melo, e “Vidro Imaculado”, livro trilingue de poesia, de Jenny-Lao Phillips. O primeiro vai ser lançado este mês, durante o Rota das Letras, enquanto o segundo tem publicação agendada para Abril. A “pequena” editora – como lhe chama Hélder Beja – “vai fazer um trabalho interessante”: “Além de autores de Macau, queremos publicar e traduzir autores que escrevem sobre Macau. Entre os autores que representamos há vários que têm obras sobre Macau ou relacionadas com Macau e, nesses casos, ponderamos mesmo vir nós a assumir a tradução e a edição dessas obras que têm ligação muito forte a Macau”. “Esses projectos estão já num ponto mais avançado e acredito que não demorará muito até que consigamos apresentar algo”, complementou.

A aventura dos cinco

Além do mentor e director, a Capítulo Oriental tem mais quatro elementos. Além de Helena Ramos (vocacionada para os países de língua portuguesa) e Annie Wang (vocacionada para os países asiáticos, em particular para a China), que trabalham directamente para o projecto, a agência literária tem outros dois sócios. Em causa “dois pequenos investidores” que Hélder Beja prefere não nomear.

À equipa ‘titular’ juntar-se-ão outras pessoas à medida que os projectos forem ganhando forma. “Há um grande grupo de pessoas que costumava trabalhar connosco – comigo acima de tudo – que trabalharão connosco sempre que haja projectos, sempre que for necessário”, explicou Hélder Beja, referindo-se a peças-chave como tradutores ou revisores de texto.

A Capítulo Oriental ganhou forma às expensas dos sócios, não contando, pelo menos na fase de arranque, com qualquer tipo de financiamento. “Neste momento, é o nosso trabalho e o nosso próprio investimento que está a levar a agência para a frente. Obviamente que, no futuro, a ideia é tentar encontrar os parceiros certos e os apoios necessários para os projectos”.

8 Mar 2019

Liu Sha, maestro e director musical da Orquestra Chinesa de Macau: “A música é emoção e paixão”

[dropcap]A[/dropcap]os 40 anos, Liu Sha assumiu pela primeira vez, o papel de director musical na Orquestra Chinesa de Macau, que também dirige como maestro. Aluno de topo do Conservatório Central de Música, em Pequim, Liu Sha já conduziu 43 orquestras com a visível paixão que o caracteriza. Com origens humildes e juventude marcada por amarguras, o propósito do maestro é levar ao público a beleza da música e o sentimento da melodia

 

 

Como começou a sua relação com a música?

O meu pai era músico e a minha mãe gostava muito de cantar. Durante a minha infância, visitava frequentemente salas de ensaio de teatro chinês. Via também muitos concertos. Nasci em Jinan, a capital da província de Shandong. Lembro-me do primeiro concerto que vi de uma orquestra sinfónica, originária dos Estados Unidos. Acho que devia ter cerca de 6 anos de idade e fiquei fascinando com o músico que tocava os címbalos. Impressionou-me muito. Apesar do gosto que ficou, o meu pai não queria que eu estudasse música, achava que a estrada da música era complicada, difícil de percorrer e não levava a muito dinheiro. Ainda assim, estudei piano com cerca de nove anos de idade, o que em termos de formação é muito tarde, mas gostei muito. Na altura, havia um pianista francês muito famoso, Richard Clayderman. Apesar de não ser clássico e ser mais pop, as suas composições eram muito boas. Portanto, quis aprender a tocar piano. Mas o concerto mais importante a que assisti, em 1993, foi o Concerto de Ano Novo, pela Filarmónica de Viena. O maestro era o italiano Riccardo Muti. Marcou-me imenso e apresentou-me à figura do maestro. Aquilo é que era ser maestro. Achei espectacular e poderoso. Outra coisa aspecto importante foi aperceber-me que são precisos dez dedos só para tocar piano, mas uma batuta consegue controlar tudo. Excelente!

 

Foi aí que decidiu seguir a carreira de maestro…

O problema é que nasci e cresci em Jinan. Não sabia por onde começar para estudar para ser maestro. Na altura, só havia dois locais onde podia seguir os estudos necessários: os conservatórios de Pequim e Xangai. Tinha apenas 13 ou 14 anos e ambas as cidades eram muito longe. Ainda assim, decidi que era isso que queria. O passo que dei foi escrever a muitos professores de música, aos que tinha ouvido falar. Até que um dia, um professor do Conservatório Central de Música, em Pequim, respondeu. Escreveu-me: “jovem rapaz, querer estudar é muito bom, mas tens de ter em mente que é um percurso extremamente difícil, um dos mais difíceis no mundo da música”. Na carta escreveu a morada de casa e telefone e disse-me que se eu queria mesmo estudar devia pedir aos meus pais para me levarem para Pequim.

 

 

Como disse aos seus pais que queria seguir estudos para maestro?

Uma noite, depois do jantar, falei com eles. “Mamã, papá, por favor, sentem-se. Preciso de falar convosco porque tenho uma decisão importante para tomar.” Então, mostrei-lhes a carta do professor. Não disseram uma única palavra. Este período da minha vida foi muito complicado, porque perdi os meus pais. Três anos depois de entrar no Conservatório Central de Música, a minha mãe morreu. Eles não tinham palavras porque estudar para maestro é uma área que necessita de muitos estudos, principalmente piano, audição, canto, teoria musical, harmonia. A minha família era pobre e a minha mãe teve de pedir muito dinheiro emprestado para me enviar para Pequim. Eles ficaram felizes com a carta, mas eram tempos difíceis. Três anos depois chegara a altura para fazer os exames de admissão ao conservatório, depois de completar o secundário. A minha mãe estava doente no hospital e o meu pai estava a tomar conta dela. Tinha 17 anos quando fui de comboio para Xangai, era a minha primeira vez em Xangai, não conhecia lá ninguém e não fazia ideia como chegar ao conservatório. Fiz o exame e fui o aluno melhor classificado. De repente, reparei que o segundo dia de exames era em Pequim. Como conseguiria chegar a Pequim? Não sabia comprar bilhetes de avião, nem como apanhar um avião, não sabia nada disto. Perguntei a muitas pessoas. Cerca da meia-noite desse dia, aterrei em Pequim. Na manhã seguinte fiz o exame e também fiquei em primeiro lugar. Quatro dias depois de receber a carta a dar-me os parabéns pela admissão no conservatório, a minha mãe morreu. Foi um período difícil. No entanto, estava a dar passos importantes para a realização do meu sonho.

 

 

Como foi realizar esse sonho e poder levá-lo ao público?

Para mim, a música é emoção e paixão. Amigos e professores dizem que quando estou a dirigir uma orquestra que sentem a minha paixão. Mas no início, os nervos tomavam conta de mim. Quando me formei, e era um jovem maestro apenas com um ou dois concertos no meu currículo, ficava muito tenso. Antes do primeiro concerto que dirigi queria morrer, a batuta tremia, as mãos estavam suadas, foram momentos de grande tensão. Começaram a surgir ideias estranhas na minha mente, como “e se em dirigir mal a orquestra, o que faço a seguir?” Isto aconteceu em 1999, estava prestes a conduzir a orquestra de estudantes do Conservatório Central de Música. A obra era uma composição para orquestra chinesa. Quando o concerto começou, entrei num estado mágico. Um músico disse-me depois que estava a cantar a música tão alto, quase ao nível de volume da orquestra. Foi um momento de muita excitação e intensidade. E o tempo da música, os compassos, cada vez mais rápidos. Não conseguia controlar-me, nem a velocidade da música.

 

 

Os dias de nervosismo ficaram para trás, mesmo antes da estreia de um espectáculo?

Hoje em dia não sinto tensão, apenas esperança e excitação. Mesmo que seja o primeiro concerto de uma nova composição já não entro nervoso em palco, porque há 14 anos que conduzo orquestras e já dirigi cerca de 300 novas obras. Nove anos depois de me formar, estudei orquestra sinfónica e ópera no conservatório de São Petersburgo. Estudei técnicas e estilo russo, uma aprendizagem que incidiu sobre obras antigas. As composições para orquestra chinesa não param de ser escritas e existem apenas no papel, em pauta, sem um CD, ou gravação. Se quiser conduzir Mozart, Brahms, Beethoven, posso ouvir um CD.

 

 

Quais os passos necessários para preparar um concerto?

Ser maestro é muito difícil, antes dos ensaios é necessária muita preparação. Preciso, talvez entre um mês ou um ano, para conhecer o repertório da peça que vou conduzir. Preciso tirar a melodia do papel para o piano. Quando não me sinto muito confortável com a música vejo-me obrigado a falar com o compositor, encontrar-me com ele para saber como ele “canta” a obra. O segundo passo é saber como posso transportar para a orquestra a minha paixão, as minhas ideias e a minha arte. Em casa, penso estes aspectos ao mais ínfimo detalhe. O terceiro passo é na sala de ensaio. Uso os meus braços para conduzir, uso a língua e a emoção para explicar do que se trata a obra, o seu significado.

 

 

Como tem sido a experiência como maestro e director musical da Orquestra Chinesa de Macau?

É a primeira vez que trabalho numa posição de gestão. Planear a próxima temporada e a temporada a seguir em termos de direcção musical é um novo desafio. Estou a gostar bastante e isso transparece para os músicos. Quando cheguei encontrei-os muitos fechados, quase sem emoção, apenas a tocar como um trabalho para ganhar um salário. Hoje em dia, acho que estão mais felizes a tocar. Esse aspecto é muito importante para mim. Em termos musicais, antes o som da orquestra soava um pouco rígido. Agora, parece mais relaxado, tranquilo.

 

 

Quando chegou a Macau disse que gostaria que os músicos tocassem com paixão. Como se consegue arrancar essa emoção dos músicos?

Primeiro, tive de inspirar e encorajá-lo, explicar a obra e o que precisamos fazer em termos técnicos. Depois, é importante deixar claro que eu é que mando. Peço-lhes e eles têm de fazer. Muitas vezes recordo aos instrumentistas das minhas orquestras que somos músicos e que temos a grande responsabilidade de levar a beleza da música ao público. Algo que é muito importante.

 

 

 

Que tipo de música ouve em casa?

Ouço, em primeiro lugar, música clássica. Também gosto muito de Jazz, Louis Armstrong e Charlie Parker. Como preciso fazer muita pesquisa na área da música chinesa, esse género também é uma constante.

 

 

Como prepara concertos que fundem géneros diferentes de música, como o fado?

Tivemos um concerto com uma artista de fado. É uma realidade separada, uma cultura diferente com um pano de fundo diferente, mas a minha orquestra cobre muitos estilos musicais, em termos técnicos. Em Macau, o fado é apreciado por uma grande parte do público devido à ligação com Portugal. Eu também gosto muito de fado, gosto muito da Katia Guerreiro, por exemplo. Quando ouço as suas músicas, parece que ela consegue capturar a minha alma. Para preparar um concerto que mistura dois géneros, preciso conhecer a cantora e o seu repertório. Depois são necessários arranjos para transportar as melodias tocadas só por duas pessoas para uma orquestra com muitos elementos. Como maestro, preciso das pautas e de ter tudo detalhado. Mas por vezes o trabalho é facilitado pela compatibilidade de estilos. O Fado é muito movido pela melodia, assim como a música chinesa.

 

 

Enquanto maestro, o que é importante passar para os músicos?

Paixão e entendimento mútuo. Falamos muito. Para um maestro, comunicação é muito importante. Já dirigi 43 orquestras diferentes, orquestras chinesas, teatro, sinfónicas, ballet, dirigi, por exemplo, “O Lago dos Cisnes”. A comunicação é muito importante. O olhar, a expressão facial e, claro, a linguagem são as formas para transmitir exactamente o que quero e para nos encontrarmos.

8 Mar 2019