José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasEmigração de menores chineses [dropcap]O[/dropcap] Procurador Júlio Ferreira Pinto Basto enviou o seguinte ofício ao secretário-geral do governo de Macau, Sr. Henrique de Castro: Até essa data estava estabelecido deixá-los emigrar, quando nos exames a que aqui se procedia, mostravam espontaneidade e prestando a pessoa que os apresentava fiança idónea para qualquer reclamação, a haver sobre os menores depois de embarcados. Era também anteriormente à citada data esta emigração quase diminuta. Começou a aumentar este ano e com esse aumento, como era natural, tentaram-se os abusos que motivaram a minha informação no já citado ofício. Desde essa data regularizou-se este serviço merecendo sempre a minha vigilante atenção, e parece-me poder asseverar a V. S.a que algum abuso, que por ventura tivesse havido, anteriormente, ficou completamente extirpado. Só se aceitam emigrar menores depois de cabalmente averiguada a sua espontaneidade, e que a pessoa que os apresenta é seu pai ou mãe, e no caso de orfandade a pessoa que os representa, devendo esta ser tio ou irmão maior. Para se chegar a este conhecimento empregam-se os meios seguintes, que me parecem profícuos. Isolado o menor em casa separada da pessoa que o apresenta é-lhe perguntado o seu nome, idade, naturalidade, profissão, o modo por que veio a Macau, o nome da pessoa que o apresenta, o seu modo de vida, a terra em que vivia e muitas outras coisas neste sentido. São escritas as respostas que o menor dá a cada pergunta. Em seguida fazem-se à pessoa que o apresenta as mesmas perguntas que a este e devem as respostas combinar exactamente, sem que o que se não aceita o menor a emigrar. Tanto a pessoa que apresenta o menor como a que o contrata prestam fianças idóneas. A primeira responsabilizando-se por alguma reclamação que por ventura possa ainda haver por parte de algum outro parente do menor, e a segunda por que as estipulações do contrato sejam fielmente observadas pelo patrão do menor. Os contratos são em triplicado sendo entregues um ao menor, outro à pessoa que o engaja e o terceiro remetido à essa secretaria para ser enviado ao cônsul português no país onde o menor se destina, para tomá-lo debaixo da sua protecção e vigiar que sejam observadas as cláusulas ali estipuladas. O contrato garante ao menor um salário mensal de $4 durante 8 anos, uma educação moral e religiosa, assistência médica e ser empregado apenas como criado de casa. Desde o 1.º de Janeiro até ao último de Julho do corrente ano tem emigrado por esta repartição 97 menores. Sendo 15 para Havana e 82 para o Perú, contando neste último número 11 raparigas. Por informações colhidas nesta repartição de chineses vindos do Perú e Havana consta que estes menores são ali muito bem tratados, sendo-o alguns como filhos dos seus patrões. É costume entre os chineses venderem e mesmo darem os seus filhos, quando se vêem sem meios: e por isso não deve admirar que os próprios pais os venham apresentar a emigrar. Debaixo deste ponto de vista a emigração dos menores bem fiscalizada e regulada, como se acha actualmente, é altamente moral e civilizadora. O pai, que iria sacrificar o filho a uma escravidão perpétua vendendo-o, dá-lhe a liberdade e a fortuna contratando o seu serviço sob condições vantajosas. Geralmente são admitidos a emigrar a terça parte dos menores, que aqui são apresentados, e que se propõem emigrar. Os que deixam de emigrar são rejeitados geralmente porque a incoerência ou contradição das respostas dadas pelo menor e pela pessoa que o apresenta, faz suspeitar que ela seja um falso parente e um embusteiro. A pessoa que vem contratar os menores apenas paga pelo serviço que se faz nesta repartição cinquenta avos ao escrivão, que faz o termo de fiança, além do selo de duzentos réis por cada contrato que é pago na fazenda e o respectivo registo.” Como o serviço fora montado na Procuratura dos Negócios Sínicos de Macau exclusivamente pelo Procurador Pinto Basto, pergunta este se merece aprovação. Pelo secretário do Governo, o Governador respondeu no dia seguinte dizendo aprovar provisoriamente o modo como é regulado esta emigração limitada e excepcional. Receitas da emigração “Se um navio estrangeiro vem à China buscar trabalhadores, o número que cada navio há-de transportar é fixado de um modo determinado, e o aliciador de culis faz um contrato, marcando-se dia certo para a saída do navio, devendo nesse dia estar preenchido o número. Quando o aliciador tem já celebrado o seu contrato, vai procurar em cada aldeia e cada distrito um aliciador subalterno, e faz com ele outro contrato. Cada aliciador subordinado deve fornecer um número certo de culis, segundo o tempo fixado no seu contrato. Se no dia designado se passar sem que o aliciador apresente o número de culis a que se comprometeu, exige-se do principal aliciador o pagamento do dinheiro pela carta de fretamento do navio, pelas despesas feitas com arroz e mais alimentos, e por qualquer dinheiro que adiantadamente possa haver recebido, bem como os competentes juros por cada parcela das despesas. Então o principal aliciador vai ter com o seu subordinado para que o indemnize.” Exige ser ressarcido, obrigando-o “a desfazer a sua casa e a dissipar o seu património, vendendo mulheres e filhos, e além disso a suprimir a diferença que faltar.” Assim quando o tempo urge, inventa ardis, “Ou emprega drogas que os tornam insensíveis, ou usa de dolo, ou à força rouba os culis. Põe em prática toda a sorte de malefícios e repete-os indefinidamente. Tem pressa de completar o número e de acabar com a sua responsabilidade. É levado a isso pela força das circunstâncias”, segundo Andrade Corvo no seu Relatório e Documentos, a fonte de grande parte do que apareceu escrito nos artigos anteriores. Os documentos consulares de 1872 referem terem partido de Macau 33 navios com 13.476 colonos, morrendo na viagem 625 e em 1873, 24 barcos transportaram 13.918, chegando menos 645. As receitas do governo de Macau resultantes da emigração eram entre outras, por cada colono $1 por passaporte e meia pataca por contrato. A 24/10/1872, o Rei aceitou o acordo feito pelo Governador com os agentes da emigração, a substituir por um só imposto (3,5 patacas) algumas das verbas das licenças pagas por estes. Da Superintendência da emigração chinesa de Macau, em 1872 foram enviados 21.854 chineses às autoridades de Cantão a fim de serem repatriados para as suas terras de origem. Pelas ruas de Macau, só em 1873 foram encontrados 292 mortos, sendo a maioria culis inválidos provenientes dos depósitos, que eram abandonados em vez de serem repatriados.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasDissimulada escravatura [dropcap]A[/dropcap]s medidas até então tomadas sobre a emigração por Macau apenas se ocupavam da “fiscalização dos colonos enquanto se conservam nos estabelecimentos e na superintendência, mas não previnem ou castigam os abusos dos corretores no acto da aliciação no território chinês nem alteram as suas condições fundamentais nos contratos dos emigrantes. A administração buscava não perturbar um comércio que considerava como origem da prosperidade de Macau”, segundo Andrade Corvo. “Em 1871, foram tomadas disposições contra os contratos entre agentes e cules. A partir daí, os cules eram registados e, depois da habitual inspecção a bordo, exigia-se uma declaração do capitão em como o barco não levava cules enganados, nem suspeitos de serem piratas”, segundo Montalto de Jesus (MJ). Um novo regulamento foi promulgado em 1872 pelo Governador Januário Correia de Almeida (Visconde de S. Januário) e “englobavam todas as anteriores disposições cuja eficácia tinha sido posta à prova pela experiência”, MJ. A partir de meados desse ano, “as autoridades de Cantão começaram a actuar no sentido de impedir a emigração de cules por Macau”, segundo Liu Cong e Leonor Seabra, [Revista Cultura n.º 55 de 2017], que aditam, ter o vice-rei de Cantão, por ofício ao Zongli Yamen de 15 da 5.ª lua do 12.º ano do reinado de Tongzhi (1873), informado “quão difícil era vigiar e impedir o tráfico de cules em Macau. Por um lado, os portugueses em Macau não tinham outro comércio lucrativo senão o tráfico de cules. As receitas anuais do governo de Macau, resultantes do tráfico de cules, ascendiam a mais de 200 mil dólares de prata. Não só o governador de Macau, mas também o rei de Portugal, estavam relutantes em abolir a emigração por Macau.” Ofício do cônsul em Havana José Maria d’ Eça de Queiroz, nomeado pelo Rei D. Luís cônsul de 1.ª classe em 16 de Março de 1872, é colocado em Cuba nas Antilhas Espanholas onde chegou a 20 de Dezembro, segundo António Aresta [Revista Cultura n.º 52 de 2016], que refere, “A três dias do fim do ano [1872], com base nas informações que lhe terão sido fornecidas pelo anterior cônsul, Fernando de Gaver, [Eça] rapidamente envia um ofício ao ministro João Andrade Corvo”: <Existem, Ilmo. Sr., nesta ilha mais de cem mil asiáticos que o Regulamento de Emigração pelo porto de Macau põe hoje explicitamente sob a protecção do Consulado Português. (…) V. Exa. compreenderá a importância deste consulado que pode abrir a cem mil almas o registo de nacionalidade portuguesa: é portanto urgente que o Governo de S. M. atenda às condições em que vive aqui esta população colona>. (…) <A legislação cubana dividiu artificialmente a emigração asiática em duas espécies de colonos: os chegados a Cuba antes de 15 de Fevereiro de 1861, e os que vieram depois desta data arbitrária. Os primeiros tendo findado já o prazo de 8 anos – porque vêm contratados todos os colonos que saem de Macau – são livres no seu trabalho e podem requisitar deste consulado a cédula de estrangeiro; os outros – os que chegaram depois de 61 e estão chegando – são obrigados, findos os seus 8 anos de contrato, a sair da Ilha dentro de dois meses, ou a recontratar-se novamente>. Mas <a prática é extremamente diferente – e autoriza a opinião Europeia de que a emigração chinesa é a dissimulação traidora da escravatura. A lei permite aos asiáticos que chegarem antes de 61 que solicitem a sua cédula de estrangeiro – mas por todos os modos se impede que ele a obtenha: e o meio é explícito: formou-se na Havana, sem estatutos e sem autorização do Governo de Madrid, uma comissão arbitrária que se intitula Comissão Central de Colonização; esta comissão pretende ter o pleno domínio da emigração; formada dos proprietários mais ricos impôs-se, naturalmente às autoridades superiores da Ilha, e conseguiu que se determinasse – que nenhum asiático tire do Consulado a sua cédula de estrangeiro sem que a Comissão Central informe sobre ele e o autorize a requerê-la: ora sucede que a Comissão Central, para cada asiático, prolonga indefinidamente esta informação – e durante este tempo o colono está numa situação anormal e inclassificável – não é colono porque terminou o seu contrato – e não é livre porque não tem a sua cédula; esta situação faz a conveniência de todos – da polícia que à mais efémera infracção (encontrar, por ex. o china, fumando ópio) o sobrecarrega de multas enormes, do Governo, que o aproveita, sem salário, para as obras públicas, e dos fazendeiros que terminam por o recontratar>. Segundo A. Aresta, “O problema de base está na divisão artificial com que distinguiam os colonos.” E continuando com o que Eça de Queiroz escreve no Ofício de 29/12/1872: <Em quanto aos que vieram depois de 1861 – uma legislação opressiva obriga-os a saírem findo o seu contrato, da Ilha, em dois meses ou tornarem a contratar-se; e como naturalmente o colono não tem meios de regressar à China – a polícia recolhe-os nos depósitos – é obrigado a servir mais 8 anos>. Cônsul no Peru A galera peruana Fray-Bentos de 561 toneladas deixou Macau a 6 de Janeiro de 1871 e o Cônsul Geral de Portugal no Peru, Narciso Velarde certificou que esta fundeou neste porto de Callao no dia 12 de Abril, trazendo 369 passageiros chineses dos 375 que tinham embarcaram, havendo morrido durante a viagem ‘apenas’ 6. Das informações tomadas por este consulado resulta que os ditos passageiros foram bem tratados durante o transporte, em fé do qual se expede o presente certificado em Lima aos 17 dias do mês de Abril de 1871. No ano seguinte a galera estava de novo em Macau pois em 1/8/1872 o tesoureiro da junta da fazenda, Carlos Vicente da Rocha informava ter recebido $366 patacas pelos emolumentos dos passaportes dos 366 colonos para o Perú nesse navio. A 7 de Agosto o capitão do porto de Macau, João Eduardo Scarnichia certificava a Fray-Bentos, cujo capitão era Ramon Mota, pois mediu 732 metros cúbicos de capacidade no alojamento destinado aos colonos. Sai do porto de Macau para o de Callao de Lima conduzindo 366 passageiros chineses contratados para servirem como colonos, e todos sabem o lugar do seu destino e vão por sua vontade do que me informei devidamente, bem como, que os contratos que levam foram registados na repartição competente. Certifico mais, que a dita galera se acha em estado de navegar na vistoria que lhe passei e leva a tripulação suficiente para a manobra, que tem os mantimentos e aguada determinada no regulamento da emigração, bem como há a bordo cirurgião, botica e intérprete chinês e que a embarcação tem acomodações para os passageiros que conduz, e os necessários meios de ventilação aprovados pelo facultativo do quadro de saúde que foi a bordo. Está conforme. Capitania do porto de Macau. E assim partiu nesse dia a galera Frey-Bentos para o Peru, onde a esperava um novo cônsul, Sant’anna Vasconcelos. O regulamento da emigração chinesa publicado a 28 de Maio de 1872, no artigo 67.º referia ser necessário 2 m³ para cada colono transportado.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasAliciadores e barracões de cules [dropcap]”D[/dropcap]esde 1856 partiram de Macau 414 navios com colonos, e só 5 deixaram de chegar ao seu destino por terem sido saqueados pelos emigrantes. Esta proporção, considerada como diminuta, de cinco catástrofes por pouco mais de quatrocentos navios é, quando se considera com a devida ponderação, tão extraordinária como pavorosa. As violências e revoltas de culis foram, quase sempre, provocadas ou pelo tratamento bárbaro que nos navios recebiam, ou pela introdução a bordo de criminosos a título de emigrantes; cada uma daquelas catástrofes descobre as angústias, as misérias, a opressão, a fome, a tirania, que padeceram centos de homens ou revela o vício profundo de uma emigração em que se ocultam facínoras dispostos a cometer os crimes mais atrozes”, segundo Andrade Corvo. Montalto de Jesus (MJ) refere, “Em Macau, ninguém abominava mais o tráfico do que muitos respeitáveis macaenses. Não queriam de modo algum envolver-se nisso, considerando-o uma desgraça completa para a colónia. Os traficantes de escravos eram de várias nacionalidades, tendo alguns portugueses por ajudantes. Em todos os distritos adjacentes, o engodo continuava sem impedimentos, apesar das queixas oficiais enviadas por Macau. Milhares de engajadores nativos engodavam à rédea solta os camponeses com saborosos repastos e enganavam-nos com a promessa de um EI Dourado, emprestando-lhes o dinheiro que, invariavelmente perdido no jogo, em breve colocava as pobres vítimas na obrigação de se entregarem como forma de pagamento. Quando não havia camponeses para enganar, atraiam-se aos barracões vendilhões, artesãos e criados de Macau, que eram obrigados, com maus tratos, a embarcar como emigrantes”. Abolir o tráfico “O primeiro passo na liquidação do tráfico de cules foi dado pelos Estados Unidos, que, importa salientar, precedeu de mais de dez anos as medidas idênticas adoptadas pelo governo de Hong Kong. Assim, em princípios de 1862 uma lei interditava a todos os cidadãos dos Estados Unidos ou estrangeiros residentes, por si ou por interpostas pessoas, de construir, equipar ou, por qualquer forma preparar, quer como capitão, proprietário ou outro título, navios destinados a receber da China ou de qualquer outra localidade, habitantes ou súbditos chineses, denominados cules, para os transportar a um país estrangeiro com o fim de serem vendidos ou contratados por determinado número de anos, para serviços. Os navios contraventores seriam sujeitos a confisco, perseguidos e julgados em tribunais dos Estados Unidos. Ficavam fora da alçada desta lei os casos de emigração voluntária”, segundo Lourenço Maria da Conceição. Os proprietários dos navios americanos, dando a volta ao problema, venderam-nos e assim com bandeiras de outras nacionalidades continuaram o transporte de cules, sendo o exemplo seguido pelos ingleses. “Outras medidas tendentes a proteger e dificultar o tráfico foram estipuladas em 5 de Março de 1866, no regulamento acordado entre os representantes de Inglaterra e França e o Príncipe Kung (Gong). Este regulamento tinha sido prometido nas Convenções de Pequim, em 1860, celebradas entre a Inglaterra e França, por um lado, e o Império Chinês, por outro”, segundo Lourenço Maria da Conceição, que complementa, “Na convenção suplementar aos Tratados de Tien-Tsin, de 24 a 25 de Outubro de 1860, os aliados fizeram inserir a obrigação de o Imperador, por decreto, ordenar às autoridades superiores de cada jurisdição que dessem aos chineses que quisessem servir nas colónias inglesas ou outros países de além-mar, inteira liberdade de contratar nesse sentido e embarcar em navios, ingleses ou franceses, em todos os portos da China abertos ao comércio.” Depósito de cules Em Macau, além de muitos barracões clandestinos, “Dos dezassete estabelecimentos de emigração chinesa, dez achavam-se na cidade cristã, seis no Bazar e um fora das portas de S. António”, segundo o B.O. de 1867, que refere, a 14 de Junho haver 319 corretores de colonos e 163 empregados nos estabelecimentos de emigração chinesa. “A emigração no ano de 1867 foi diminuta, em quanto que em 1871, segundo o que conta dos livros da extinta Superintendência e dos Boletins do Governo, saíram por Macau 23.882 colonos contratados e 458 livres, e havia 24 estabelecimentos de culis, dos quais somente um, denominado do Carneiro, em 1871 contava 1754 corretores ao seu serviço. Por tanto, deduzidos os indivíduos de Macau, que eram relativamente poucos [5463 portugueses e 66.267 chineses], pois que corretores, agentes, subagentes eram, com poucas excepções, estrangeiros, não será erro calcular que aquele número de indivíduos inerentes à emigração, principalmente os colonos, fosse muitíssimo maior em 1871”, segundo Almerindo Lessa. Liu Cong e Leonor Seabra referem, “Em Macau [1873] havia mais de 300 barracões portugueses, espanhóis e peruanos, não tendo em conta os de outras nacionalidades.” Tráfico de Cules Desmentia o Governo de Macau as acusações, dizendo ser voluntária a emigração pelo porto de Macau. Certa vez, na visita a um depósito, “O capitão de um barco de cules recusou-se a transportar alguns anamitas, comovido pelas suas lágrimas e súplicas. Com os braços no ar, um deles mostrou uma cruz ao dono do barracão que, bondosamente, os libertou, entregando o grupo inteiro aos jesuítas, recentemente restabelecidos no Colégio de São José. Com gestos e esboços os pobres infelizes tentaram explicar como tinham sido raptados. Alguns missionários franceses de Hong-Kong forneceram então um intérprete anamita”, segundo Montalto de Jesus que esclarece, “esses anamitas eram parte de uma escolta enviada pelo governador de Nandhin, com um tributo para o imperador de Annam (Aname, um reino entre a Cochinchina, na mão dos franceses desde 1859, e Tonquim). Partiram em cinco juncos e, atacados por piratas em dez juncos bem armados, alguns renderam-se depois de uma breve luta e os outros saltaram para o mar.” (…) “Depois de decapitarem dois mandarins feridos, e de fazerem à pressa o transbordo dos homens e do saque, os piratas zarparam e em Bah-choi passaram os cativos e um grande saco de prata para duas lorchas.” À chegada a Macau, os cativos foram coagidos a embarcar como emigrantes, sendo “fechados no porão de uma das lorchas com um pouco de arroz e muito pouca água. Mortos de sede, suplicaram por mais água; só lha davam com a condição de aceitarem emigrar. Acedendo, foram transferidos para os barracões e ai eram açoitados sempre que choravam ou se recusavam a embarcar”, história no Echo do Povo, de 14/5/1867. O intérprete foi à procura de outros cativos anamitas, sendo-lhe negada a entrada nos barracões. Certo dia andava o intérprete pela rua quando se cruzou com um grupo de seus conterrâneos vestidos à chinesa e seguindo-os até ao serviço de emigração, descobriu como os cativos eram passados por emigrantes. Falando-lhes na sua própria língua, todos declararam não querer emigrar. O superintendente ordenou imediatamente a sua soltura.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasProtecção da China aos seus emigrantes [dropcap]E[/dropcap]m 10 de Fevereiro de 1856, “a galera portuguesa Resolução largou de Macau com destino a Havana, levando a bordo 350 passageiros chineses e 29 tripulantes. No dia 16, à vista de Pulo Sapato, pelas 10 horas da noite, a gente que estava de quarto foi atacada pelos chineses armados com facas de cozinha, que lhes tinham sido fornecidas por um servente do cozinheiro. A luta durou até à meia-noite, ficando mortos alguns chineses e feridos todos os oficiais e grande parte da tripulação que teve de abandonar o navio em botes, os quais chegaram ao Cabo S. James, na noite de 18, onde encontraram o navio que fora encalhar na baía do mesmo nome. Não julgaram prudente aproximar-se do mesmo e continuaram a navegar para o sul, com destino a Singapura, perdendo-se um bote, nessa noite, com nove pessoas. No dia seguinte, os botes foram cair sobre os parcéis de Camboja, onde se viraram, morrendo dez pessoas, entre as quais os dois pilotos e o contra-mestre. O capitão e os restantes marinheiros alcançaram as ilhas de Camboja, onde foram presos e maltratados pela gente de terra, e, 25 dias depois, conseguiram embarcar numa soma, que os transportou a Singapura, onde chegaram no dia 5 de Maio. Supôs-se que parte dos chineses que iam a bordo eram piratas que, tendo pertencido ao partido rebelde e vendo-se perseguidos pelos mandarins, se resolveram alistar como colonos, aliciando outros para cometerem o atentado, a fim de passarem a algumas terras dos estreitos, onde se encontravam refugiados os seus partidários e correligionários das sociedades secretas”, segundo narra Luís Gonzaga Gomes. Tratado não rectificado Após a Segunda Guerra do Ópio (1856-60), os ingleses forçaram o governo Qing a permitir e regular por contrato a emigração dos cules chineses em todos os portos abertos pelos tratados. Em 1860, pelas Convenções de Pequim, sob a ameaça militar anglo-francesa, o governo chinês “permitiu o recrutamento dos trabalhadores chineses por ingleses e franceses para fora da China e o direito dos chineses a fazerem contratos com os ocidentais e emigrarem, sozinhos ou acompanhados pelas famílias”, segundo Liu Cong e Leonor Diaz de Seabra. Foi esta depois estendida a outras potências. Pela Convenção da Emigração de 1866, só aplicável aos países dos tratados, “estabeleceu-se a cláusula de que os emigrantes chineses teriam direito a repatriamento gratuito e automático no fim de cumprir cinco anos de contrato”, segundo Beatriz Basto da Silva (BBS). “A implementação da Convenção de 1866 parece ter sido somente desejo do Zhongli Yamen, do inspector-geral Robert Hart e, durante algum tempo, também do embaixador americano na China”, segundo Liu Cong e Leonor Diaz de Seabra. BBS refere, a 15 de Novembro de 1866 “Os representantes da Inglaterra e França, em Pequim, assinam com o governo chinês uma convenção para regular a emigração chinesa mas os governos britânicos e francês, não a ratificam [pois não reconheciam alguns dos regulamentos]. Na verdade trata-se de uma jogada para asfixiar o comércio em Macau, mas os países envolvidos sairiam prejudicados também.” Assim, em vez de acabar com as irregularidades da emigração e terminar com o tráfico em Macau, para aí se transferiu quase totalmente a emigração por contrato. Tal se devia a não estar ainda rectificado o Tratado de Daxiyangguo de 1862, entre Portugal e a China, pois o governo chinês pretendia voltar a ter em Macau um seu oficial (e não um cônsul), que fora expulso em 1849 pelo Governador Ferreira do Amaral, quando este aí fechara as Alfândegas chinesas. “Embora Portugal tenha conseguido, de facto e unilateralmente, a soberania de Macau, mediante a força, carecia do formal reconhecimento chinês da situação, de modo que o estatuto político-jurídico de Macau (…) continuava por ser esclarecido, o que não permitia aos portugueses exercer com eficácia os direitos soberanos em Macau”, segundo Wu Zhiliang, que refere, “Nesta conjuntura, tornava-se urgente entabular negociações com a Corte Celestial manchu para deixar definido o estatuto político-jurídico e comercial, além de conseguir as mesmas vantagens e interesses comerciais de outras potências com presença na China.” A 14 de Abril de 1863, o Governo em Portugal aprovara o primeiro Tratado de Amizade e Comércio luso-chinês, Tratado de Daxiyangguo assinado na China a 13 de Agosto de 1862 pelo Ministro Plenipotenciário Isidoro Francisco de Guimarães, então Governador de Macau, e com a proposta de ser rectificado dois anos depois em Tianjin. A 20 de Maio de 1864, aí chegou como Ministro Plenipotenciário de Portugal José Rodrigues Coelho do Amaral, Governador de Macau desde 22/6/1863, mas sem a cláusula do estabelecimento duma alfândega chinesa em Macau, o Governo Qing não aceitou rectificar o Tratado e por isso, após um mês em Tianjin o Governador Coelho do Amaral regressou a Macau. Venda de Macau “Desde a não rectificação do tratado luso-chinês de 1862 que as relações diplomáticas bilaterais estavam praticamente interrompidas entre Lisboa e Beijing”, segundo Fernando Correia de Oliveira. O inglês Sir Robert Hart, inspector-geral das alfândegas chinesas de 1863 a 1911, “tinha um problema a resolver com Macau. As alfândegas do território, portuguesas ou chinesas, não estavam sob o seu controlo, e o contrabando de ópio ou o tráfico de escravos (cules) para as Américas irritavam este zeloso defensor dos interesses de Beijing. Primeiro, e sabendo dos apertos financeiros do governo de Lisboa, e dos boatos que circulavam em toda a Europa sobre a intenção de Portugal vender as suas colónias para ganhar a solvência das contas públicas, Hart tentou, com o chamado projecto Emily [1867], que a China comprasse Macau. O príncipe Gong convenceu-se dos argumentos de Hart e conseguiu do governo chinês o assentimento para o processo. Hart usaria, para isso, o antigo embaixador espanhol em Beijing, D. Sinibaldo de Mas (autorizado, para iniciar o negócio, a dar um milhão de taéis a Portugal, a ficar com 100 mil para si e a gastar 200 mil na ‘compra’ de alguns portugueses influentes; morria em Madrid quando se preparava para a última etapa), e o seu enviado à corte de Londres, Duncan Campbell (que não chegaria a visitar Lisboa nessa altura, porque o Zongliyamen desistiu, entretanto, da ideia de comprar Macau)”, salienta Correia de Oliveira. O Regulamento de 5 de Março de 1866, conhecido também por Convenção de 1866, visava dificultar a emigração dos cules contratados por Macau. “Os ingleses – a parte forte em confronto com os chineses, neste regulamento – procuravam chamar a si todo o controlo do tráfico, a fim de satisfazer as suas necessidades de mão-de-obra. E os franceses, seus aliados de então, secundaram-nos com a proibição aos seus súbditos de se ocuparem do comércio de cules no porto de Macau”, refere Lourenço Maria da Conceição. Em 1866, o Governador de Macau, Conselheiro Ponte Horta, recebia instruções para anunciar a resolução de Portugal de aderir à Convenção.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Tráfico de Cules via Macau [dropcap]”A[/dropcap]ntes da Guerra do Ópio, os ingleses e os portugueses recrutavam os trabalhadores chineses através de Macau para as suas colónias, nas diversas partes do mundo. A proibição da emigração não foi cumprida pelos oficiais chineses em Macau antes de 1849″, segundo Liu Cong e Leonor Diaz de Seabra, que referem, “Com o desenvolvimento da emigração de cules chineses neste porto, desde 1851, o governo chinês permaneceu ignorante e indiferente ao tráfico humano em Macau, durante um longo período.” Já desde 1844 agentes provenientes da Guiana Inglesa, Cuba e Peru chegavam aos portos chineses e recrutavam cules para ir lá trabalhar. Muitas vezes raptados e contratados à força pelos angariadores, eram mal tratados durante a viagem de barco e quando chegavam ao destino, muitos caíam nas redes de traficantes de escravos. Assim se dá início ao tráfico de cules. Segundo as estatísticas recolhidas por Arnold J. Meagher, “Entre 1851 e 1874 [período em que decorreu o tráfico de cules chineses em Macau], mais de 210.054 cules chineses emigraram através de Macau para vários destinos, como Cuba, Peru, Guiana Britânica, Suriname, Costa Rica, Ásia do Sudeste, Moçambique, Califórnia e Austrália”, sendo a maioria destes para Cuba (122.454) e para o Peru (81.552). Os corretores (angariadores) andavam pelo interior da China a aliciar pessoas para emigrar e em Macau entregavam-nos aos contratantes (agentes), que determinavam as condições laborais e de viagem, sem haver até 1851 conhecimento oficial das autoridades de Macau. “A emigração de trabalhadores chineses para a América – originariamente de Hong-Kong para a Califórnia – realizou-se também em Macau a partir de 1851, principalmente para Cuba. Para restringir os muitos abusos que caracterizavam esse tráfico, o governo de Macau adoptou medidas que, levadas correctamente a cabo, satisfariam os mais caprichosos legisladores e filantropos. Pelas ordenanças de 1853, o governo controlou os barracões ou casas de cules; e tratou das acomodações e requisitos sanitários adequados aos emigrantes, tanto em terra como durante a viagem. Para evitar o transporte clandestino de cules enganados, tornou-se obrigatório, em 1855, o registo dos contratos e o interrogatório dos cules em terra pelo procurador e a bordo pelo capitão do porto. Outra regulamentação de 1856 exigia que os agentes de cules tivessem licenças e caução, além de os sujeitar a sanções por enganar e coagir emigrantes, ou por não custear a passagem de regresso e as despesas dos cules rejeitados pelo governo ou pelos agentes de emigração em Macau; os menores de dezoito anos não podiam emigrar excepto se acompanhados dos pais; e, mesmo depois de terem assinado o contrato, os cules podiam cancelá-lo se o desejassem, pagando as despesas legais custeadas, por sua causa, pelos agentes”, segundo Montalto de Jesus (MJ). A venda de leitões O Governador Guimarães, Visconde da Praia Grande, publicou um edital em Março de 1859 condenando os abusos dos corretores e mandava encerrar os depósitos ilegais. “Para evitar trocas de identidade, passou a ser exigido, dali em diante, que os emigrantes assinassem o contrato perante duas testemunhas”, MJ. Em Abril, os magistrados de Nanhai e Puanyo publicaram uma proclamação contra os corretores da emigração, referindo haver “vagabundos que iam por essas terras enganar os pobres chineses com promessas de chorudos salários no estrangeiro; traziam-nos para Macau e outros portos e vendiam-nos para países estrangeiros. A isto chamavam eles chu-chai (leitões, ou seja, venda de leitões)”, como refere o Padre Manuel Teixeira, “Os culpados deviam ser punidos, os depósitos encerrados e publicado um regulamento claro e firme. Todos deviam indagar se as promessas haviam sido feitas de boa-fé; o contrato devia determinar o salário do trabalho, a duração deste, o local onde eram destinados e se podiam escrever à família e amigos e remeter-lhes dinheiro. Uma vez que se assentasse em tudo isto, não havia objecções contra a emigração”, segundo os magistrados. Mas os abusos continuaram e levaram ainda “o Governador Isidoro Guimarães a nomear por port. de 30 de Abril de 1860, um superintendente da emigração Chinesa, coadjuvado por um intérprete. A prática era a seguinte. Os corretores iam convidar os chineses às suas terras; os que aceitassem tinham transporte gratuito para Macau. Uma vez entrado no depósito, o emigrante declarava a sua idade; tendo menos de 18 anos e não tendo pai ou mãe que o acompanhassem, era rejeitado. Quem não tivesse 25 anos de idade, devia apresentar o consentimento dos pais, tendo-os”, segundo o Padre Manuel Teixeira. Emigração por contrato Pelo Act for the regulation of Chinese Passengers de 30 de Junho de 1855, o governo britânico de HK regulava o transporte de chineses a bordo dos seus navios. Ano em que os franceses contrataram 900 cules chineses para trabalhar em Guadalupe e Martinica. Com a II Guerra do Ópio (1856-60) “Por Hong Kong, só nos três primeiros anos considerados (1856, 1857 e 1858), saíam 56.256 colonos (mais do dobro do que em Macau [20.610 colonos])”, refere Fernando Figueiredo. “A Segunda Guerra do Ópio proporcionou aos ingleses uma oportunidade de forçar o governo Qing a permitir e regular a emigração dos cules chineses. Em 1859, durante a ocupação anglo-francesa da cidade de Cantão, o governador Bo Gui (柏贵) e mais tarde, o vice-rei Lao Chongguang (劳崇光), por requerimento dos ingleses, permitiram a emigração chinesa por contrato. Em 1860, ainda sob a ameaça militar anglo-francesa, o governo central chinês, pelas Convenções de Pequim, permitiu o recrutamento dos trabalhadores chineses por ingleses e franceses para fora da China e o direito dos chineses a fazerem contratos com os ocidentais e emigrarem, sozinhos ou acompanhados pelas famílias. O abandono da lei secular da proibição à emigração, pelo governo chinês, fez parte das mutações que a China teve de enfrentar, perante as novas circunstâncias internacionais sem precedentes. Depois de admitir a emigração por contrato, o próximo passo foi regular e uniformizar esta actividade em todos os portos abertos (dos tratados)”, segundo Liu Cong e Leonor Seabra. Beatriz Basto da Silva refere, “A Convenção Anglo-Chinesa de 1860, pretendendo regulamentar o tráfego através de contratos legais, foi estendida a outras potências, como a Espanha, e em 1866 aos representantes da França, estabelecendo-se nesta altura a cláusula de que os emigrantes chineses teriam direito a repatriamento gratuito e automático no fim de cumprir cinco anos de contrato. A Inglaterra e a França não ratificaram a posição dos seus representantes e a China recusou-se a consentir a emigração noutros termos. Praticamente com as ‘mãos vazias’, as nações intervenientes resolveram contornar a questão e o fluxo de saídas passou a fazer-se mais intensamente em Macau, que não tinha entrado nas negociações”, pois a China não tinha rectificado com Portugal o Tratado de Daxiyangguo de 1862.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasEmigração via Macau e Hong Kong [dropcap]M[/dropcap]acau vivia um longo período de estagnação já desde os anos 40 do século XVII devido à perda do comércio com o Japão, o que originou um declínio económico, de miséria e com períodos esporádicos de maior abastança, até meados do século XIX, segundo Ana Maria Amaro, que refere, “De 1851 a 1874, Macau registou, novamente, um notável surto económico com o tráfico dos cules, que levou certas famílias a reatar os antigos hábitos de luxo e de ostentação. Este surto económico, embora de curta duração, aliado à afluência e refugiados chineses, deram lugar a forte pressão demográfica, que levou à urbanização de parte da área do Campo.” Victor F. S. Sit adita, “Só entre 1847 e 1874 embarcaram mais de 200 mil cules através de Macau. O número de agências estrangeiras sediadas em Macau envolvidas no tráfico de cules aumentou de uma meia dúzia que existiam em 1850 para mais de 300 em 1873. Nesta data, 30 a 40 mil homens, ou seja metade da população de Macau, estava directa ou indirectamente envolvida neste comércio. Dos cules embarcados em Macau 95% foram enviados para Cuba [sob domínio espanhol] e Peru [já independente]. Uma vez que o preço médio de um cule era de 70 patacas, estima-se que Macau terá ganho cerca de 200 mil patacas por ano no tráfico de cules, cinco vezes mais que o rendimento anual das taxas alfandegárias, antes de 1845. Nos locais de destino, os cules eram simplesmente tratados como escravos. A taxa de mortalidade dos cules a caminho de Cuba ou do Peru era cerca de 35%. Os locais de acolhimento dos cules concentravam-se no Beco da Felicidade, Pátio dos Cules, Rua de Santo António e Rua de Pedro Nolasco da Silva. Só em 1895 foi definitivamente encerrada a maior casa de acolhimento de cules (Heshengji).” Emigração por contrato “Em Macau foram os próprios chineses – conhecidos localmente por corretores – que descobriram a lucrativa actividade de contratar os seus irmãos do continente, atraindo-os ao entreposto português. Era comum virem por gosto, mas o problema do voluntariado era secundário, porque surgiram logo inúmeras formas de o contornar, combinando a credulidade de uns com a astúcia e a violência de outros. Redes de intermediários (…) diluíam-se entre a numerosa população da cidade de modo que, apesar de crescer a imoralidade, não estavam criadas estruturas específicas capazes de a reprimir. O ambiente cerrava-se, feio, à volta deste tráfego, cada vez menos defensável, mais distante da contratação de colonos e mais próximo da escravatura”, segundo Beatriz Basto da Silva (BBS). Em Macau, a primeira emigração por contrato ocorreu em 1851 e os primeiros engajadores desses colonos chineses foram dois franceses, Guillon e Durand. Aí embarcaram os 813 cules com destina a Cuba em dois barcos ingleses. “Seguiu-lhes o exemplo o negociante macaísta José Vicente Caetano Jorge, que transportou no seu navio 250 cules para Callao de Lima, sendo contratados para trabalhar por 8 anos com o soldo mensal de 4 patacas”, segundo Manuel Teixeira (MT). Legislar contra os abusos “Até 1851, esta emigração continuou sem conhecimento oficial das autoridades e segundo a maneira determinada pelo contratante. O Governador Isidoro Francisco Guimarães [Visconde da Praia Grande] julgou seu dever intervir, determinando, por portaria de 12 de Setembro de 1853, que os engajadores declarassem o local dos barracões ou depósitos onde recebiam os cules antes de os embarcar e o seu número, devendo os regulamentos desses depósitos ser de antemão submetidos à aprovação do Governo: a inspecção sanitária ficava a cargo do cirurgião-mor, devendo os doentes ser tratados em lugar separado; ao capitão do porto de Macau cumpria visitar os navios para examinar as acomodações, os mantimentos e a aguada. Dados os enormes lucros deste tráfico, surgiu a competição entre os agentes, que se rodearam de corretores, ou seja, chineses que se internavam pelo interior do império a aliciar emigrantes. Os corretores, na ânsia de aumentar a sua remuneração, iludiam frequentemente os pobres chineses com promessas falazes, forçando-os moralmente a emigrar”, segundo MT. Em Novembro de 1855, o Governador Guimarães publicou uma portaria onde “determinava que todos os contratos entre esses emigrantes e os agentes da emigração fossem registados na Procuratura dos Negócios Sínicos” e o procurador até à véspera dos embarques ficava obrigado a visitar os depósitos (barracões) dos colonos, para se informar, se algum chinês fora iludido ou forçado a embarcar contra a sua vontade. Caso deparasse com algum relutante, devia mandá-lo repatriar imediatamente. Como este regulamento guardava silêncio sobre os corretores, estes continuaram a aliciar impunemente os chineses e por isso, segundo BBS em “Junho de 1856, apareceu novo regulamento procurando refrear os corretores: estes deveriam obter da Procuratura uma licença anual, depositando 200 patacas de fiança; pagariam 100 patacas de multa quando se tornassem criminosos de coação ou engano para com os emigrantes ou quando recusassem repatriar os que fossem rejeitados pela autoridade ou pelos agentes.” Em 1856, de Macau saíram 2473 cules. Em HK até à II Guerra do Ópio “O Governo de Hong Kong proíbe [em 1854] gente e navios seus no transporte para as Ilhas Chincha (Peru), porque houve queixas. Mas consente para a Califórnia uma emigração pseudo-livre de corretores”, segundo BBS, que refere, “Não deixa de ser curiosa a cautelosa referência a acompanhar correspondência de John Browing, mencionando que a emigração via Hong Kong, de 1854 a 1855, era livre, não contratada!”. Com a proclamação pelos ingleses do Chinese Passengers Act em 30 de Junho de 1855, procurava-se assegurar o bem-estar e a liberdade dos emigrantes chineses. “A despeito deste decreto não ser estritamente cumprido pelos oficiais de Hong Kong, os mercadores de cules, sobretudo os agentes que recrutavam emigrantes para a América Latina, começaram a mudar-se de Hong Kong para Macau”, segundo Liu Cong e Leonor Seabra. “Em documentos apresentados ao Parlamento inglês em 1855 encontra-se uma estatística da emigração para o Peru, nos anos de 1843 a 1855, onde se vê que de 7356 emigrantes embarcados só 4754 chegaram ao seu destino, sendo mortos a bordo 349”, refere Andrade Corvo, mas BBS indica, de “1849 a 1854, foram embarcados de Cantão para o Peru 7356 cules e morreram 549 em viagem”. O negócio do tráfico de cules em HK ocorreu até 1856, quando o governo inglês, perante os protestos, criou leis e transferiu o problema para fora da sua jurisdição, proibindo o embarque desse porto. “Estas proibições eram levantadas em certas circunstâncias, desde que o capitão da viagem cumprisse com algumas regras severas, excepção que não deixou de ser largamente aproveitada. Na verdade, nunca houve respeito pelas proibições”, segundo Beatriz Basto da Silva que refere, “Em 1860 estimou-se que dos 4 mil cules desviados fraudulentamente, nenhum sobreviveu, tendo muitos procurado no suicídio a morte libertadora.”
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasOs esforços amargos e o seu tráfico [dropcap]E[/dropcap]m 1533, o Governador da Índia Nuno da Cunha criou o cargo de Pai dos Cristãos, para cuidar dos libertados da escravidão por se terem convertido ao Cristianismo. Influenciado de forma decisiva pelos jesuítas, o Rei de Portugal D. Sebastião em 1570 decretou a abolição da escravatura de ameríndios sob o domínio português, aceitando-se a sua servidão e em Março do ano seguinte, proibia “a aquisição de escravos japoneses, sob pena de confiscação dos bens dos culpados”, segundo o Padre Manuel Teixeira. No período filipino, em 1595 o Vice-Rei de Goa aboliu o tráfico de escravos chineses. “Havia legislação portuguesa de 1625, comunicada ao Ouvidor de Macau e recordada pelo Vice-Rei da Índia, Conde da Ega (1758-1765), proibindo a escravatura chinesa”, como lembra Beatriz Basto da Silva. Em 1761, o Marquês do Pombal, no reinado de D. José, decretou o fim da importação de escravos das colónias para a metrópole e terminou com a escravidão de indianos tanto na Índia, como em Portugal. Beatriz Basto da Silva refere ter sido abolida a escravatura em Portugal em 1836 por Sá da Bandeira, mas só entrou em vigor em Macau em 1856. A abolição da escravidão está directamente relacionada com a Revolução Industrial, iniciada na segunda metade do século XVIII na Inglaterra, segundo Ana Luíza Mello S. de Andrade. A Dinamarca foi o primeiro país em 1792 a criar uma lei para terminar com a escravatura, mas esta só entrou em vigor em 1803. Em 1833, o Parlamento do Reino Unido pôs fim à escravidão para os africanos nas colónias do Império Britânico e a França em 1848 para os negros, com a Proclamação da II República. Nos Estados Unidos da América foi abolida a escravatura em Dezembro de 1865, na XIII Emenda à Constituição. Entre 1807 e 1808, sete Estados do Norte libertaram os escravos, tornando-os homens livres. O Congresso em 1808 proibira a importação de escravos e para libertar 4 milhões de escravos negros entrou em vigor a 1 de Janeiro de 1863 a Proclamação de Emancipação assinado pelo Presidente Abraham Lincoln. Sobre este tema, aflorado superficialmente, quase tudo fica por dizer e as datas, que não são as definitivas, escondem histórias, muitas não propriamente de teor humanitário. Tráfico de cules Em cantonense, os cules têm o nome de fu-lek, que significa esforço amargo. Os chineses sentiam-se “atraídos por promessas de trabalho, como colonos, por esse mundo fora, sonhando voltar ao torrão natal com um bom pé-de-meia. Ingénuos, pacientes e trabalhadores como ninguém (quando motivados) concentraram-se e ofereceram-se, como ‘ovelhas para o sacrifício’, no porto de Amoy (que foi o primeiro) e depois em Cantão, Wampu, Caminh e Swatow, dos laboriosos agricultores Hakkas …”, segundo Beatriz Basto da Silva, que cita o “Conde Earl Gray. De início nem eram precisos engajadores. Os aspirantes a colonos entregavam-se directamente aos especuladores que os esperavam a bordo, com um contrato que aumentava em ganância e desonestidade à medida que a oferta crescia.” Após a I Guerra do Ópio, a emigração chinesa iniciada desde Amoy (Xiamen) foi feita abertamente, com a conivência de corruptos oficiais chineses locais e oficiais consulares britânicos, através de agências da Companhia de Londres. Era francês o primeiro barco que partiu de Amoy (actual Xiamen) em 1845 levando 180 emigrantes chineses para a Ilha de Bourbon (Reunião, ilha francesa a Leste de Madagáscar). Beatriz Basto da Silva refere, “Em 1850 a Firma inglesa Tait y Company enviava de Amoy para Havana os primeiros cules contratados.” De Amoy, até Agosto de 1852, saiu a maioria dos emigrantes chineses e desses 6255, embarcaram em barcos britânicos 73% e os restantes partiram em embarcações espanholas, francesas, americanas e peruanas, segundo Ng Chin-Keong. Muitos raptados nas suas terras pelos corretores chineses, eram entregues aos agentes britânicos, sendo vítimas de um tratamento desumano durante a espera do transporte, na viagem e no destino, quantos escravizados. Os culis, sabendo da sinistra situação dos seus conterrâneos emigrados, revoltaram-se em Amoy a 21 de Novembro de 1852. Segundo o Taotai (Intendente) Chao Lin, o mais alto oficial civil em Amoy, tudo ocorreu quando três ingleses (sendo um, o escrivão da Firma Tait) embriagados caminhavam pelas ruas da cidade à noite e em frente a uma esquadra da polícia entraram numa discussão com alguns soldados e com a multidão de culis, adquiridos pelos ingleses, que no exterior se encontrava. Iniciada com o arremesso de pedras, essa revolta durou uma semana e os ingleses pediram a protecção dos seus marinheiros, que aí desembarcaram. Com medo da sua segurança e dos seus hongs, os mercadores britânicos mudaram esse negócio para outras paragens. De referir estar a China de novo a viver em guerra, desta vez civil, devido à Revolta Taiping (1850-64). Depósitos para os contratados Segundo Arnold J. Meagher, citado por Liu Cong e Leonor Diaz de Seabra, “a emigração através de Macau para as Américas desenvolveu-se lentamente, numa fase inicial, visto que os carregadores preferiam os portos de Xiamen, Shantou, Jinxingmen (Cumsingmoon) e Cantão, que ficavam mais perto das fontes de provisão. E, quando se tornou cada vez mais difícil operar o tráfico nesses portos, a emigração chinesa para a Califórnia e a Austrália foi confinada a Hong Kong, e o tráfico para a América Latina concentrou-se em Macau.” Segundo Fernando Figueiredo, “A saída de trabalhadores chineses para a América a partir de Macau tivera início em 1851 e destinava-se sobretudo a Cuba. Nela passavam a estar envolvidos agentes nacionais e estrangeiros (europeus e chineses).” Em “1852, Hong Kong começa a sua própria emigração, embora já anteriormente canalizasse essa actividade desencadeada de portos da China, onde a Inglaterra tinha interesses, assim como a França”, segundo Beatriz Basto da Silva. O Padre Manuel Teixeira salienta, “O agente da emigração chinesa Mr. White sugeriu ao Governo de Hong Kong e este concordou que se abrisse nessa colónia um depósito para recolha de emigrantes; o mesmo se fez em Macau.” Os cules, trazidos pelos corretores das terras chinesas, eram também transportados nos vapores das companhias de navegação, recentemente criadas a ligar Hong Kong, Macau, Cantão e seus arredores, para do porto de Macau embarcarem e enquanto isso não acontecia, ficavam albergados em barracões, que em 1851 eram cinco e em 1866 chegavam aos trinta depósitos.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasHistória da emigração chinesa [dropcap]N[/dropcap]a História da China, o primeiro episódio a reportar uma emigração, não propriamente planeada, ocorreu cerca de 2500 a.n.E. durante a guerra entre as tribos de Huang Di e de Chi You, quando alguns barcos no Oceano Pacífico se perderam no nevoeiro e foram parar ao continente americano. Crê-se serem estes os antepassados dos índios americanos, tanto pelas feições como pelo calendário por eles usado corresponder ao antigo calendário chinês, cujo ciclo era de 52 anos. Também Xu Fu, nascido em 255 a.n.E. no Reino Qi, foi enviado por duas vezes pelo primeiro Imperador Qin Shihuang ao Mar do Leste à procura do elixir da imortalidade. Na segunda vez, em 210 a.n.E., com ele partiram cinco mil pessoas, levando três mil rapazes e raparigas virgens, mas esta missão nunca regressou. Séculos depois, o monge Yichu escreveu sobre essa expedição referindo ter chegado ao Japão. Já na dinastia Han, os chineses com Chi You como Antepassado, os integrados no povo han foram enviados para a Península da Coreia e os que não aceitaram miscigenar-se colocados no Sul e Oeste das fronteiras do país. Se desde então a emigração se tornou normal para o Nordeste e Sudeste da Ásia, já na dinastia Tang e Song houve chineses a irem trabalhar e viver para a Ásia Central e Sul da Índia e no século XIII para a Birmânia, quando o Imperador mongol Kublai Khan a trouxe para a sua soberania. Esse fluxo pela Ásia ganhou um novo incremento com a dinastia Ming e durante as viagens do Almirante Zheng He as colónias espalharam-se pelos portos onde se fizeram feitorias. Desde 1405 tal ocorreu em Semarang, Java, em Malaca, Malásia e nas Filipinas, quando o terceiro imperador da dinastia Ming, Yong Le, despachou um alto dignitário da corte para aí governar. “Não admira, por isso, que, em 1571, os Espanhóis encontrassem já, em Manila, uma colónia chinesa, bem organizada e composta de várias dezenas de milhar”, segundo o Padre Benjamim Videira Pires, que refere, “Quando os holandeses fundaram Batávia (a Jacarta de hoje) em 1619, os chineses eram velhos residentes da Indonésia. As Molucas ou ilhas das Especiarias tinham-nas eles demandado no século IX ou antes.” As sete viagens de Zheng He, de 1405 a 1433, pela política expansionista do Imperador YongLe, em continuidade com o que ocorrera já durante a dinastia Song, levaram os chineses pelo Pacífico e Índico até ao continente africano. Após a sétima e última viagem marítima, a China optou por uma política isolacionista, proibindo os chineses de viajar para fora do país e os desobedientes mercadores, impedidos de regressar, estabeleceram-se pelo estrangeiro, tendo muitos casado com mulheres desses países. A China fechada “Em 1450 os isolacionistas conseguem impor ao Imperador o seu ponto de vista e a política externa da China sofre uma transformação radical que vai modificar o curso da História. A marinha chinesa que em 1420 era tão importante que justificava um ministério especial, é raiada da superfície dos oceanos com um simples traço de pena; as esquadras imponentes, de dezenas ou centenas de navios e de dezenas de milhares de homens de equipagem, serão varridas dos mares pela força de um decreto; os navios de maior tonelagem que existiam na época em qualquer parte do mundo serão afundados ou desmantelados, os estaleiros queimados, os marinheiros dispersos. A China que dispunha de todos os trunfos para se tornar a maior potência naval do Mundo, capitães experimentados e boas equipagens, tonelagem, número de navios, canhões e pólvora, recursos financeiros enormes, soldados e recursos populacionais em número mais do que suficiente para suportar uma ocupação militar e um êxodo colonizador intenso, fecha-se na sua concha, isola-se numa torre de marfim e adormece num sono continental de que só a hão-de acordar os canhões europeus, já no século XIX”, segundo Benjamim Videira Pires. Com a China fechada ao comércio externo, houve grupos privilegiados de comerciantes, a quem era permitido aventurar-se até aos mares do sul em busca de negócio. Os de Cantão iam até à feitoria chinesa de Malaca, o mais distante porto onde faziam Trato e os de Amoy e Ningpo para as ilhas das Filipinas e Japão. “Os comerciantes e conquistadores da Europa empregaram os bons ofícios destes emigrantes chineses na sua expansão ultramarina pela Ásia, mas, às vezes, quando lesados nos seus interesses, os homens da cabeleira negra revoltaram-se contra os bárbaros do Ocidente. Assim, em 1603, os Espanhóis massacraram, em Manila, 20 mil chineses amotinados. Em Batávia, os Holandeses mataram igualmente, no ano de 1740, vários milhares de chineses que resistiram a uma ordem de deportação”, refere Videira Pires. Segue Beatriz Basto da Silva, “Sempre houve nos chineses meridionais, uma natural tendência para a emigração: o povoamento da Formosa e de Ainão, as densas colónias chinesas do Sião e portos do Estreito, o verdadeiro prolongamento da Província de Fukien em Manila, onde já em 1643 o seu número exigia a presença de três procuradores chineses! Para não mencionar a diáspora na Oceânia, Java, Malásia, Polinésia, enfim, um pouco por todo o Sudeste Asiático, onde se mostram empreendedores, infatigáveis e hábeis para tudo o que toque o comércio.” Assim se estabeleceram ao longo dos séculos as livres colónias de chineses ultramarinos. Clandestina emigração A dinastia Ming proibira a emigração de chineses e tal continuou com a dinastia Qing. Penang, desde 1786 colónia da Companhia das Índias Orientais (EIC), além de receber um grande número de emigrantes chineses, tornou-se um entreposto para a distribuição desses expatriados. Para evitar conflitos com o governo chinês, a EIC usou Macau como local de reunião desses cules e daí eram enviados em navios portugueses para as colónias inglesas, como referem Liu Cong e Leonor Diaz de Seabra, que aditam terem os portugueses também aproveitado para enviar mão-de-obra para as suas colónias. Após a I Guerra do Ópio ocorreu um imenso êxodo de chineses, que inicialmente e ingenuamente se entregavam voluntariamente para ir trabalhar no estrangeiro. Encontravam-se eles por essa altura em extrema pobreza, por razões de catástrofes naturais e dos impostos que o governo mongol dos Qing lhes impunha para pagar as inúmeras e pesadas indemnizações das guerras que os ocidentais fizeram à China. Os ingleses, sem nada de interesse para trocar com os chineses, traziam ópio e a guerra a este pacífico país, conseguindo assim roubar o pecúlio acumulado durante 5000 anos de excelentes governações e ter moeda de troca para adquirir os eruditos trabalhos como a seda, porcelana, laca e o chá. O excedente demográfico e a sua fácil adaptação aos mais diversos climas levaram os chineses a ser preferidos para irem trabalhar nas colónias inglesas e na América, com falta de mão-de-obra devido à abolição da escravatura. Dos portos abertos pelo Tratado de Nanjing de 1842 continuou o esforço amargo a emigrar, apesar das leis da China não aceitarem essa expatriação.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasEmigração chinesa para o Brasil [dropcap]O[/dropcap]s monopólios dos bens essenciais encontram-se na ordem do dia quando em 1894 Camilo Pessanha chega a Macau, mas o negócio de Ópio e dos Cules anda ainda pelas páginas dos jornais. O assunto da emigração de trabalhadores chineses, conhecidos por cules, reaparecera nas páginas dos jornais da cidade pois, Mr. Hippisley, comissário da alfândega da Lapa, no seu relatório respeitante ao ano de 1893 refere o envio de emigrantes chineses de Macau para o Brasil e insinua a má-fé do agente da Companhia Metropolitana do Rio de Janeiro, promotora dessa expatriação. Tal devia-se ao Sr. Hippisley “entender que Macau não tem o direito de deixar embarcar colonos chineses para o Brasil, porque esta república não tem tratado com a China a esse respeito. É verdade que um tratado negociado entre a China e o Brasil em 1881, nada estipular sobre a emigração”, segundo o Echo Macaense, que prossegue, essa “insuficiência e a necessidade de uma especial convenção suplementar a fim de obter os trabalhadores que se desejam, foram reconhecidas pelo Brasil, que enviou à China para este fim um Enviado especial, que se achava em caminho. O Brasil não tinha representante na China, nem a China tinha algum agente acreditado junto ao Brasil, para velar pelos interesses dos emigrantes.” (…) “O facto da companhia se recusar a esperar pela vinda do Enviado e pela conclusão das negociações que o seu governo julgou necessárias, naturalmente despertou a suspeita sobre a boa-fé.” A 17 de Outubro de 1893 partiram de Macau para o Rio de Janeiro 475 emigrantes chineses, mandados ir pelo presidente do Estado do Rio de Janeiro, Dr. Porciuncula, para no Brasil trabalharem na agricultura. Transportados no fretado vapor alemão Tetartos, desembarcaram no porto de Imbetiba em Macahe no dia 5, ou 11 de Dezembro de 1893 e com eles veio um carregamento de arroz. De Macahe, divididos em dois grupos, seguiram pela estrada de ferro Macahe e Campos, ramal de Frade e passaram para o estabelecimento de emigração em Cabiunas, de onde foram distribuídos aos agricultores. O Echo Macaense, rebatendo o relatório do Sr. Hippisley, argumenta, “Estamos certos que melhor tratamento não teriam eles recebido se tivessem emigrado para Singapura, ou outras possessões inglesas, onde têm de trabalhar muito arduamente até reunir o preço das suas passagens.” Clandestina emigração O Governo da dinastia Qing proibia a emigração de trabalhadores chineses, mas quando a Companhia das Índias Orientais (EIC) em 1786 fez de Penang uma sua colónia, o governador dessa ilha pediu “ao representante da EIC, em Cantão, para recrutar artesãos e lavradores chineses e transportá-los para Penang através dos navios da companhia”, segundo Liu Cong e Leonor Diaz de Seabra, que referem, “Em 1805, o governador de Penang, informava o representante da Companhia das Índias Orientais (EIC) de que o governador da Índia Britânica planeava recrutar trabalhadores chineses para a colónia britânica de Trinidad. Foi proposto que os trabalhadores chineses se juntassem primeiro em Macau e, depois, fossem transportados para Penang por um navio português, a fim de evitar conflitos com o governo chinês.” (…) “Além dos ingleses, os próprios portugueses, em Macau, também recrutavam emigrantes chineses para as colónias portuguesas (Brasil, Timor, entre outras), através de Macau. Em 1812, chegaram ao Rio de Janeiro 300 chineses cultivadores de chá.” Benjamim Videira Pires refere que “o povoamento do Brasil, no tempo de D. João VI, e por iniciativa do Conde de Linhares, se fez por meio dos chineses. Eles introduziram, no Jardim Botânico e na ex-fazenda dos Jesuítas Santa Cruz, do Rio de Janeiro, a cultura do chá. As plantações ocupavam muitos acres de um morro cheio de pedras, semelhante ao habitar da planta na China.” Adita Leonor Seabra e Liu Cong, “Numa carta enviada, em 1815, para o ouvidor de Macau, Miguel de Arriaga Brum da Silveira, o ‘cabeça’ dos trabalhadores chineses no Brasil lamentava-se da vida dura no Brasil, que não estava de acordo com o que se estipulara no contrato.” Emigração para o Brasil Sobre a emigração chinesa para o Brasil, o Echo Macaense de 29 de Agosto de 1893 começa por dizer, “noutros tempos, quando havia guerras, o excesso da população chinesa era tal que podiam emigrar milhões de chineses, com mais razão deve haver agora muita gente para emigrar, porque tem havido vinte anos de paz e não tem havido iniciativa da parte dos capitalistas para dar impulso a empresas agrícolas, o que é devido talvez a ter havido ultimamente tantos abusos e tantas companhias malogradas. Nestas circunstâncias o Brasil convida os trabalhadores chineses para irem arrotear os campos daquele imenso país, que ocupa mais de metade da América do Sul, onde o solo é fertilíssimo, e rico em ouro e diamantes, arroz, trigo, madeiras, café, açúcar, etc.. Foi em 1531 que começou a colonização portuguesa no Brasil, mas até hoje existem numerosos terrenos incultos, e para os cultivar os capitalistas daquela república resolveram convidar trabalhadores chineses, tendo para esse fim primeiramente pedido ao Presidente da República que fizesse uma convenção com o governo chinês sobre este assunto. O Tsung-Li-Yamen já deu a sua anuência, e por isso vai haver uma legação brasileira em Peking e cônsules em Cantão, Amoy e Shanghae. O artigo 13.º do tratado de Brasil com a China, celebrado em 1881, estipula que os chineses no Brasil gozarão dos mesmos direitos e privilégios que os brasileiros e os súbditos da nação mais favorecida, por isso a nova convenção servirá só para garantir ainda mais o bom tratamento dos chineses. Se esta emigração for feita pelo porto de Macau, onde já se acha um agente do Brasil, as autoridades portuguesas serão muito vigilantes para evitar todos os abusos, pois que em Macau os emigrantes são primeiramente examinados na Procuratura dos Negócios Sínicos, e só depois de verificada a sua espontaneidade é que se lhes concede o passaporte. Nas vésperas da partida do vapor, são de novo interrogados a bordo pelo capitão do porto, que faz desembarcar aqueles que não quiserem seguir viagem, donde se vê a imparcialidade e a justiça que presidem à fiscalização deste ramo de serviço; portanto poderão os mandarins ficar bem descansados a este respeito.” (…) “Seguem-se depois umas breves referências à Historia do Brasil, e a sua transformação moderna de império em república, faz ponderações sobre as garantias que oferece esta emigração feita com protecção do governo chinês, sobre a plena liberdade com que ela é feita, e sobre a conveniência de se aproveitar desta emigração para dar ocupação a tanta gente que não tem meios de subsistência, e para a qual os outros países estão fechados; e conclui por assegurar que o jornal advogará sempre os interesses dos oprimidos se alguém for violentado ou maltratado.” Estão memórias de uma triste História, escondida por detrás destas palavras.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasSun Yat-sen como médico em Macau [dropcap]S[/dropcap]un Wen (Sun Yat-sen) nascera um ano antes de Manuel da Silva Mendes e Camilo de Almeida Pessanha. Já com o Imperador Guang Xu (1875-1908) no trono do Celeste Império, veio o Dr. Sun para Macau como médico em Setembro de 1892, onde ficou um ano, enquanto como professores do Liceu, os bacharéis formados em Direito pela Universidade de Coimbra, Camilo Pessanha chega um ano e meio depois e Manuel da Silva Mendes só em 1901. Ambos vieram ao mundo no ano de 1867, Silva Mendes a 23 de Outubro em S. Miguel das Aves, Famalicão e Camilo Pessanha em Coimbra a 7 de Setembro. Como médico, Sun Yat-sen serviu no Hospital Kiang Wu em regime de voluntariado entre Setembro de 1892 e Setembro de 1893 e aí criou uma secção de Medicina Ocidental. A comunidade chinesa de Macau fizera a Associação do Hospital Kiang Wu com a finalidade de ajudar os chineses mais desfavorecidos e tinha projectos de abrir escolas gratuitas, socorrer os necessitados e enterrar os mortos cujas famílias eram pobres ou, sem ninguém para deles cuidar. O Hospital foi instalado em San Kiu, um dos locais mais doentios de Macau, onde os mortos mal enterrados, muitas vezes com partes do corpo a descoberto e sem sepulturas, encontravam-se espalhados pela encosta do monte. A arquitectura do Hospital Kiang Wu, semelhante à do Templo de Kun Iam Tong, tem três pavilhões centrais, servindo o da entrada para as reuniões da Associação e o terceiro, um templo com altares aos deuses, Hua Tuo, Guang Gong, Bao Gong, Liu Zu e Hong Sheng. Na casa situada no lado direito dos três pavilhões realizam-se os cuidados médicos. Conta o Hospital com um total de 60 quartos, localizados ao redor do terreno, prestando gratuitamente serviços clínicos aos doentes, servindo de asilo e casa mortuária. Assim se apresenta a Camilo Pessanha o Hospital chinês, dirigido então por uma Comissão Administrativa com quatro directores. Macau não lhe reconhece diploma Apoiante e amigo do Dr. Sun desde o tempo de Hong Kong, era então Francisco Hermenegildo Fernandes (1863-1923) funcionário tradutor da Justiça britânica e a sua família proprietária em Macau da tipografia N. T. Fernandes e Filhos, com sede na Rua da Casa Forte n.º 3. Encontrava-se o Dr. Sun a exercer medicina em Macau quando a 18 de Julho de 1893 Francisco Fernandes aqui fundou o Echo Macaense, semanário bilingue luso-chinês. Era Director da tipografia e do jornal e contou com Sun Yat-sen para criar a edição chinesa. O Ching Hai Tsung Pao (JingHaiCongbao), a edição chinesa do jornal Echo Macaense, a 26 de Setembro de 1893 referia: . “Através de Francisco Fernandes, Sun Yat-sen seria apresentado a António Joaquim Bastos, figura que de facto desbloquearia o acesso de Sun aos círculos sociais macaenses, avalizando-o na sua vida profissional e defendendo-o nos processos judiciais que lhe foram movidos por rivais e inimigos políticos em Macau. António Joaquim Bastos era, tal como Francisco Fernandes, jornalista e integrava igualmente a redacção do Echo Macaense. (…) Para além de político era também um destacado causídico do foro local. (…) Foi diversas vezes vereador e presidente do Leal Senado e provedor da Santa Casa da Misericórdia. Foi graças a esta última qualidade do seu protector macaense que Sun conseguiu estabelecer-se como médico na cidade, já que António Joaquim Bastos, como provedor da Santa Casa, não teve dificuldades em convencer a mesa directora da instituição a conceder-lhe os empréstimos necessários para montar não só consultório, mas também uma farmácia anexa”, segundo João Guedes, (Revista Macau 52, Outubro 2016) que segue, “Os bons ofícios de Bastos contribuíram também para que a Misericórdia arrendasse a Sun a casa que seria a sua residência nos anos de Macau, situada precisamente na Travessa da Misericórdia, a poucos passos da Praça do Leal Senado. No seu novo domicílio, Sun atendeu alguns dos seus primeiros pacientes, que além de serem seus vizinhos eram portugueses, como os filhos do escritor Venceslau de Morais…” Formado em Hong Kong, Sun Yat-sen, sem diploma português de médico, segundo as leis do território não poderia exercer legalmente medicina em Macau e nem o poder e influência de António Joaquim Bastos o conseguiram ajudar. Assim, o Dr. Sun teve em 1893 de abandonar Macau e mudou-se com a sua farmácia para Cantão, mas como refere o Dr. Cantlie, «as actividades do Partido Regenerador tomaram tal vulto e ele tornou-se tão proeminente entre os seus colegas que dispunha de pouco tempo para qualquer outra actividade que não fosse a política». Caçada aos caçadores Era habitual os portugueses de Macau atravessarem as Portas do Cerco e irem fazer caçadas em território do interior da China. Assim foi na madrugada de 26 de Agosto de 1893, quando o Sr. Firmino Cândido Pereira e quatro amigos seguiram para Goiaveira, povoação pouco distante da Porta do Cerco, com o fim de caçar martinhos-brancos. Sem problemas passaram a estação aduaneira e casa de guarda e levavam já uma hora de caça quando às 7 horas, na maior afluência de caça, depois de ter o Sr. Pereira descarregado sua espingarda sobre um bando de martinhos, no momento de a colher foi bruscamente assaltado por uns quinze chineses, que o desarmaram à força, tendo os outros entregado sem resistência as armas. Asseveraram algumas pessoas que os assaltantes eram meirinhos do mandarim Ngai, sub-prefeito de Chin-san (Casa Branca) e este, numa carta deu a sua versão: . O Mandarim de Chin-san mandou publicar um edital em que narrava o ocorrido e suscitava a observância do anterior edital proibitivo da caça. O Governador da província de Macau e Timor, Custódio Miguel de Borja fez um protesto perante Tsung-Li-Yamen contra o procedimento abusivo do sub-prefeito de Chin-san. Para haver paz e harmonia, pedia-se que o governo encarregasse um funcionário português a se entender com o mandarim de Chin-san sobre a determinação dos lugares onde devia ser permitido caçar e sobre as formalidades a observar quem quisesse obter uma licença para ir à caça. Pouco tempo depois, tal ficou resolvido, continuando os caçadores de Macau a fazer as incursões em território do interior da China até 100 lis de Macau, onde não faltavam tigres e martinhos-brancos.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasUm ano entre Sun Wen e Camilo Pessanha [dropcap]D[/dropcap]escritos alguns dos mais importantes acontecimentos históricos do século XIX na China, anteriores à chegada de Camilo Pessanha a Macau, e que influenciaram Sun Wen para o combate revolucionário contra a dinastia Qing, falta agora apresentar estas duas personagens. Sun Wen, conhecido pelos estrangeiros por Sun Yat-sen, antecedeu um ano Camilo Pessanha, tanto no nascer como a deixar esta vida. Assim, Sun Zhongshan, nome dado a Sun Wen após a morte e que virá a ser o primeiro Presidente da República da China, nasceu a 12 de Novembro de 1866 numa família de camponeses na pequena aldeia de Choy Heng (Cuiheng em mandarim), no distrito de Heong-Sán (Xiangshan, actual Zhongshan), província de Liangguan (Guangdong e Guangxi), situada a cerca de 50 quilómetros a Norte de Macau. No trono do Celeste Império encontrava-se então o oitavo Imperador Qing, Tong Zhi (Mu Zong, 1862-1874). Refere o Padre Manuel Teixeira, “O pai de Sun Wen foi alfaiate em Macau, regressando à sua aldeia antes do nascimento do filho”. Dez meses depois, no ano da abolição da pena de morte em Portugal, onde reinava D. Luís (1861-89), nasceu Camilo de Almeida Pessanha na freguesia da Sé Nova, em Coimbra, pelas onze da noite do dia 7 de Setembro de 1867. Segundo Daniel Pires, era filho de um estudante do 3º ano de Direito, Francisco de Almeida Pessanha e da sua governanta Maria do Espírito Santo Duarte Nunes Pereira. Fora baptizado a 30 de Outubro de 1867, mas só a 9 de Outubro de 1884 seria perfilhado pelo pai, estava Camilo no primeiro ano da Faculdade de Direito na Universidade de Coimbra. Na aldeia de Cuiheng, Sun Wen nasceu e viveu em criança com o nome de Dixiang, onde na escola primária escuta as memórias do tempo das Guerras do Ópio (1839-60) e da Revolta Taiping (1850-64). Sun Wen chamado ao Havai pelo irmão mais velho Sun Mei, em 1878 passou por Macau a caminho das ilhas Sandwich (onde o Capitão Cook chegara em 1778, um século antes de Sun Wen), arquipélago da Polinésia, a meio do Oceano Pacífico entre a China e os EUA. A viver em Maui, uma das oito ilhas do Havai, para continuar os estudos iniciados na aldeia natal foi matriculado na escola primária e ajudava o irmão como empregado de balcão. Em Agosto, dois meses após a sua chegada, vai estudar inglês para Honolulu, na escola primária americana Iolani, onde terminou os estudos em 1882. No ano seguinte, já no Iolani College em Honolulu, foi chamado a regressar à terra natal por outro dos seus irmãos. Tendo em Cuiheng destruído a imagem de um deus, o que desagradou à população local, os pais acharam melhor enviá-lo para estudar na Escola Diocesana da Igreja Anglicana em Hong Kong, onde baptizado pelo missionário protestante americano Dr. Charles R. Hager foi-lhe dado o nome de Sun Yat-sen. Em 1884 frequentava o Queen’s College, ainda em HK, quando se casou com Lu Mu-zhen (Lou Mou Cheng, aliás Cheng-ling song), de quem virá a ter duas filhas e em 1891, o filho Sun Fó. Já Camilo Pessanha completou em 1884 os estudos secundários no Liceu Central de Coimbra e nesse ano entrou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, formando-se em Junho de 1891. Dr. Sun Na China reinava o nono Imperador Qing, Guang Xu (De Zong, 1875-1908) quando em 1886 Sun Yat-sen, com vinte anos, vai para Cantão estudar medicina tradicional chinesa. Por andar a difundir a revolta contra a dinastia Imperial manchu dos Qing e as ideias de República importadas do Ocidente, em Janeiro de 1887 passou a frequentar o Colégio Britânico de Medicina para chineses em Hong Kong, orientado pelo Prof. James Cantlie. Licenciou-se em medicina ocidental a 22 de Julho de 1892, mas como não havia vagas para médicos em Hong Kong, após uma breve passagem por Beijing, vai em Setembro exercer clínica em Macau, convidado para criar um departamento de Medicina Ocidental por Chen Xi Ru, na altura um dos maiores accionistas do Hospital Kiang Wu. Chen Xi Ru com Lou Cau e He Sui Tian (Ho Lin Vong) colocaram um anúncio no JingHaiCongBao a dizer ser Sun Yat-sen um muito bom médico de medicina ocidental. A instalação do Hospital Kiang Wu, aprovada a 21 de Junho de 1870 pelo Governo de Macau, fora requerida pela comunidade local chinesa, representada pelos senhores Sam Wong, Chou Iao, Tak Fong e Wong Lok, estipulando o foro anual de uma pataca e autorizando a angariação de fundos necessários para a sua construção. Fundado em 28 de Outubro de 1871, no início apenas aí se preparava e cozinhava os medicamentos, distribuídos gratuitamente e só em 1874 foi no local criado o departamento de Medicina Tradicional Chinesa. O Dr. Sun trabalhava no Hospital Kiang-Wu e na Associação de Beneficência Tong Sin Tong, fundada em Julho de 1892, e em ambos os locais, onde as pessoas sem posses se tratavam gratuitamente pela medicina tradicional chinesa, ele introduziu medicamentos ocidentais. Já para abrir uma farmácia sino-europeia (Tchong-Sai Yeok-Ko, em cantonense e em mandarim, Zhong Xi Yao Jü) na Rua das Estalagens n.º 80, Sun Wen contraiu com o Hospital Kiang Wu uma dívida de 2000 patacas, “sendo fiador o conhecido e abastado comerciante Ung Tchit Mei”, como refere o Padre Manuel Teixeira. A farmácia tornou-se fachada de um local de conspiração para derrubar a monarquia e o empréstimo, que tinha um prazo de cinco anos, só foi totalmente liquidado por Sun Yat-sen ao Hospital Kiang Wu em 1919. Fok Kai Cheong refere ter encontrado o contrato de arrendamento relativo à propriedade sita no Largo do Senado n.º 14 feito pelo arrendatário Dr. Sun com a Santa Casa da Misericórdia a 26 de Agosto de 1893. Luís Gonzaga Gomes dá essa referência, no “prédio n.° 14, que ficava numa fileira de casas que ia da Travessa do Roquete à Rua do Gonçalo…” era o domicílio de Sun Wen. Na acta de 4-9-1895 da Mesa da SCM, publicada no Echo Macaense a 9-11-1895, refere-se que . Assim, quando Camilo Pessanha chega a Macau, o Dr. Sun tem ainda alugada a casa no Largo do Senado, apesar de já não se encontrar na cidade. Aqui devemos aos nossos leitores uma rectificação, pois no último artigo referimos encontrar-se os Correios no edifício do Senado, o que só ocorrerá em 1915, estando este então ainda na Praia Grande, no edifício contíguo ao Hotel Hing Kee.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasFestejos em Shanghai e as estampilhas [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os dias em que a comunidade portuguesa de Shanghai festeja o IV Centenário da Viagem Marítima para a Índia, a chuva fustiga a cidade. No artigo anterior demos nota das celebrações do dia 17 de Maio de 1898, onde na Igreja de S. José, na concessão francesa, se realizou um Te Deum e no Club de Recreio foram recebidos todos os cidadãos que desejaram por telegrama transmitir saudações a El-Rei e à família real, à nação e à comissão central executiva de Lisboa. “No dia 18 a chuva continuou a incomodar-nos; não obstante, a subcomissão encarregada dos festejos no Jardim Chang-su-wo foi continuando com os seus arranjos e conseguiu fazer uma esplêndida festa”, n’ O Porvir. Para esse arraial festivo, o programa prevê danças e outros divertimentos, fogo de vista e iluminações, no Jardim Chang-Su-ho, segundo o Echo. “Às 9 horas [da noite] começaram a vir os convidados. Eram mil e quinhentas pessoas, pouco mais ou menos, entre nacionais e estrangeiros, incluindo crianças. O salão de baile estava bem ornado, sobressaindo uma pintura alegórica de Vasco da Gama com o estandarte real e bandeiras nacionais nos lados. O salão de baile era bem vasto, pois estando 95 pares a valsar, ainda restava grande espaço para os espectadores e passeantes. Houve bonitos fogos de vistas no imenso jardim; e por não se poderem fazer outros divertimentos fora das portas por causa das lamaceiras, os da comissão arranjaram uma companhia de actores chineses que foram representar numa casa contígua, o que divertiu muita gente. Às nove da manhã, depois de uma lauta ceia, os convidados começaram a chamar pelas suas carruagens e foram deixando o jardim com mostras de saudade. Na noite de 19, apesar de chover bastante realizou-se no Astor Hall o sarau literário e musical” e segundo o Echo, “se a parte musical é desempenhado por amadores portugueses, os trabalhos literários de nacionais e estrangeiros são avaliados pela comissão executiva, sendo os aceites reunidos num livro.” Continuando n’ O Porvir, “O Hall estava ornado com o maior brilhantismo e bom gosto. Tanto a parte literária como musical agradou à grande multidão que se achava presente. A banda dos nossos amadores achava-se também presente e tocou hinos da Carta e Vasco da Gama com maior entusiasmo, antes de começar a festa e na conclusão da mesma.” “As iluminações atingiram, porém, todo o seu brilhantismo só na noite do dia 20, em que o vento, prestando talvez também a sua homenagem a Vasco da Gama, houve por bem respeitá-las”. Já o Echo Macaense diz, “Além das residências dos portugueses, os consulados de Inglaterra e Alemanha e vários outros estrangeiros e alfândega e o Mixed Court tomaram parte. Os bunds da concessão francesa e do foreign settlement estavam ambos embandeirados e iluminados, apresentando uma iluminaria de duas milhas de comprimento. A banda dos nossos amadores percorreu as ruas tocando várias marchas”. “Grande era o número de chineses na Bund, notando-se em todos os rostos grande e geral entusiasmo. Congratulando-nos com os nossos estimados compatriotas pela brilhante prova que mais uma vez souberam dar do seu acrisolado patriotismo, daqui os saudamos e lhes significamos e nosso júbilo pela forma com que se estão honrando a si e estão estremecendo a pátria”, O Porvir. Conclui o Echo Macaense, “Enfim, saiu tudo o mais esplêndido possível, devido à força de vontade dos nacionais e à boa táctica de andar em boa camaradagem entre os cosmopolitas. Houve mais uma coisa que não estava incluída no programa e que no meu entender [C.C.C.] veio coroar a nossa festa. Devido à muita amizade que os bons padres desta missão têm para com a gente portuguesa, espontaneamente anunciaram no dia da Ascensão de N.S.J.C. que a missa de dia no Domingo, às 10 horas, havia de ser em honra e memória de Vasco da Gama, e em acção de Graças e para pedir pelo reino de Portugal, e convidou a comissão executiva a assistir a ela oficialmente. Escusado é dizer que o amável convite foi aceite com grande entusiasmo. A nossa igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde se disse a missa, estava bem ornamentada, sobressaindo muitas nossas bandeiras. O reverendo padre Paris, superior geral da missão que tinha chegado da missão no dia antecedente, foi celebrante e ao Evangelho o reverendo padre Alves fez, com muita eloquência e entusiasmo, o panegírico de Vasco da Gama. Sua Reverência mostrou ser um bom orador, e como vai para Macau daqui a algum tempo, o meu amigo e toda a gente lá terão o gosto de o ouvir.” Estas comemorações deram um novo ânimo à comunidade portuguesa, maioritariamente residente no Model Setllement. Estampilhas para o Centenário Um leitor, no Echo Macaense de 13 de Setembro de 1896, dá como sugestão mandar-se fazer selos especiais para o Correio de Macau a comemorar o IV Centenário e a ideia de uma série de imagens para os selos. Ideia usada em Lisboa para serem distribuídos por Portugal Continental e Ultramarino e assim, em Macau começaram a ser vendidas as estampilhas a 15 de Abril de 1898, referindo O Independente de 6 de Março terem já sido recebidas na Repartição da Fazenda Provincial e terão curso desde 1 de Abril a 30 de Junho. A 24 de Abril o Echo Macaense dá conta, “Vieram novamente do reino em grande quantidade estampilhas do centenário e por ordem superior foi determinado que não se vendessem a cada indivíduo mais do que seis estampilhas por cada vez, sendo elas de 1/2 avo até 8 avos, isto com o fim de evitar que os grandes coleccionadores as absorvam rapidamente e o público fique privado delas para as suas colecçõezinhas e para o uso ordinário. Não há limites para venda de estampilhas cujo valor suba acima de oito avos, e também podem comprar-se quantas colecções completas se queiram. Já não há para venda bilhetes-postais impressos em Macau com a resposta paga, e também já se esgotaram as duas qualidades de bilhetes que vieram desta última vez”. O mesmo jornal, a 1 de Maio, com o título ‘Mais valores postais expedidos para as nossas colónias – Nova encomenda feita à casa fabricadora dos mesmos valores em Londres’ refere, “Foram reclamadas por algumas das nossas colónias novas remessas de valores postais da comemoração indiana e a prova disto é que há poucos dias foram enviados para o ultramar mais os seguintes valores: Para a Índia 24 mil bilhetes da taxa de ¼ de tanga no valor de 150$ réis. Para Macau 212.500 estampilhas das taxas de ½, 1, 2, 4, 8, 12, 16 e 24 avos e dois mil bilhetes da taxa de 2 avos, tudo no valor de 6185$000 réis; e para Timor, três mil bilhetes da taxa de 2 avos, no valor de 30$000 réis. O valor total de todos os valores, acima especificados, 6465$000 réis da metrópole. Foi já expedida ordem competente para se aprontarem na casa londrina mais 5000$00 dos aludidos papelinhos de posta”. O Correio, então situado no edifício do Leal Senado, tem desde Dezembro de 1897 como Director de nomeação definitiva Francisco Maria Xavier de Souza, filho de Ricardo de Souza, o anterior Director.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO IV Centenário celebrado em Shanghai [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] colónia portuguesa de Shanghai em 1898 conta para cima de oitocentos portugueses e prepara-se para realizar a sua primeira festa. Seria bom todos estarem de mãos dadas para a festa se realizar com o maior esplendor possível. “São dirigidos convites para se fazerem representar nos festejos, aos diplomatas que na ocasião se acharem em Shanghai, bem como aos representantes das diferentes colónias. Também às autoridades locais, aos conselhos municipais e forças de terra e mar, à imprensa local, a várias associações de comércio, indústria, ciência, instrução, religião, etc. e a diferentes escolas”. Com uma colorida descrição da festa o correspondente do Echo Macaense relata: “Muito antes de alvorecer o dia 17 de Maio de 1898, a maior parte dos portugueses já se achavam levantados. Uma grande multidão de senhoras e cavalheiros encheu a rua onde se acha actualmente o Consulado de Portugal, não obstante a grande chuva e muita trovoada que se fazia. Às 5 horas, uma banda de amadores nossos rompeu a sinfónica música de alvorada, subindo nessa ocasião girândolas de foguetes. Após pequena pausa tocaram o Hino da Carta [executado obrigatoriamente desde 1834 nas solenidades públicas, está ligado com a Carta Constitucional outorgada por D. Pedro IV]; a bandeira das sagradas quinas, devidamente encimada da flâmula, foi arvorada majestosamente entre hurras dos espectadores e confusão dos panchões. Depois os nossos músicos foram tomar café, oferecido pelo nosso digníssimo cônsul”. O Porvir refere ter sido “a bandeira portuguesa hasteada no consulado à alvorada, percorrendo em seguida uma banda de música de amadores portugueses as principais ruas de Hongkew [onde habitam portugueses] até ao Club de Recreio, tocando o hino nacional e o hino do centenário. A maior parte dos navios surtos no porto içaram a bandeira portuguesa, que se viu também flutuar nos estabelecimentos e casas dos principais negociantes e residentes”. “Não obstante as bátegas de água que caíram constantemente, as diferentes subcomissões não desanimaram, foram continuando com os diversos trabalhos e conseguiram assim cumprir à risca, e com muito brilhantismo, o programa. Só o Te Deum, se verificou às 4 horas do dia marcado, em vez de 5 horas e meia, como estava anunciado”, menciona o Echo. Está a Diocese de Shanghai nas mãos da Propaganda Fide. Continuando n’ O Porvir, “Na tarde do mesmo dia houve um solene Te Deum na igreja de St. Joseph na Concessão francesa, oficiando o reverendíssimo bispo Garnier e assistindo àquele acto religiosos muitas pessoas de todas as nacionalidades, notando-se entre elas sua Exa. Tsai Tantai e o seu secretário, o Sr. Cheng, magistrado do tribunal misto, todo o corpo diplomático e consular, os oficiais dos diferentes vasos de guerra surtos no porto, os voluntários e os bombeiros. Em seguida ao ofício divino, o reverendíssimo bispo Garnier tomou a palavra e usou dela enaltecendo a brilhante história de Portugal no passado, em termos eloquentíssimos e altamente penhorantes para nós. Embora esse passado já se tenha ido, é-nos todavia grato vermos um grande vulto eclesiástico da França, dessa França que é nossa irmã, e que deve ser sempre nossa amiga, prestar-lhe homenagem pública, reconhecer-lhe a primazia na espinhosa vereda da civilização. Isto chega a convencer-nos, a nós os portugueses, de que ainda não somos pequenos de todo, e que a grandeza do nosso glorioso passado histórico ainda se reflecte sobre nós. Trabalhamos para a civilização, buscamos o bem de todos, como podemos, e se um dia tivermos de morrer, a Humanidade nos faça o epitáfio que merecemos, e que pode ser, pouco mais ou menos o seguinte: “Aqui jaz Portugal, que, depois de ter dado ao Mundo novos mundos, só pequeno quinhão deles guardou para si. ETERNA GLÓRIA LHE SEJA FEITA.” Ao “bispo Garnier brindaram os nossos compatriotas luso-shanghaenses com um magnífico prie-Dieu, como amostra do seu reconhecimento”. Diz o Echo: “A Igreja de S. José, onde se celebrou o Te Deum, estava ricamente ornada, sobressaindo em vários pontos apropriados, as bandeiras das quinas. A bando dos amadores nossos estava presente, tocando os hinos da carta e de Vasco da Gama, entre e depois da função”. No Club de Recreio Após a cerimónia religiosa na Igreja de St. Joseph, todos foram para o Club de Recreio, onde houve uma recepção pelo “nosso ilustre e queridíssimo amigo Sr. Joaquim M. Travassos Valdez, digno e estimadíssimo cônsul-geral de Portugal em Shanghai”, segundo O Porvir. No Club de Recreio, reuniu-se “a nossa comunidade para se congratular com ele pelo fausto acontecimento que a pátria comemorava naquele dia. Usou da palavra o nosso distinto compatriota Sr. Adelino Diniz, fazendo uma primorosa resenha da História de Portugal, desde Afonso Henriques até quase aos nossos dias, evidenciando e apoteosando, com brilhante colorido os feitos dos nossos heróicos antepassados, e terminando com as seguintes palavras felizes: <Portugueses! Curvemo-nos perante a gigantesca figura da nossa histórica nacional! Honra e glória a Vasco da Gama! Viva Portugal! Viva El-Rei! Viva a família real! Viva o digníssimo representante de Portugal em Shanghai!>”. Segue o Echo Macaense, “O Sr. Adelino Diniz fez nesta ocasião um discurso apropriado, concluindo por pedir ao nosso digníssimo representante para transmitir o seguinte telegrama de congratulação”. Segundo O Porvir, “Depois disso foi entregue a sua Exa. para lhe dar o devido destino, o seguinte telegrama congratulatório da comunidade luso-shanghaense: <Ferreira d’ Amaral Comissão Vasco da Gama – Lisboa. Comissão de Shanghai congratula o Rei e a Nação pelo grande feito marítimo que tanto brilhantismo deu a Portugal>. O ilustre cônsul, possuído do ardor desse patriotismo que de há muitos anos lhe conhecemos, respondeu ao Sr. Diniz em termos adequados e dignos da ocasião”. Terminou o Sr. Valdez com calorosos vivas feitos aos conselhos municipais de Shanghai, à comunidade portuguesa e aos residentes de Shanghae, ao corpo diplomático e “ao exército e armada nacionais, se bem que só aquele, o exército no Model Settlement, o próprio sr. cônsul, o próprio Sr. Valdez, brioso oficial de cavalaria do exército do reino.” Continuando n’ O Porvir, “O edifício do consulado esteve iluminado com bonitos lampiões de cores, e lindamente decorado, tocando primeiramente a banda de música na sua frente, e depois nas frentes das casas de todos os portugueses que iluminaram as fachadas das suas residências em honra da ocasião”. Segundo o Echo Macaense “a municipalidade da Concessão francesa, pela sua parte, ornamentou e iluminou a avenida marginal. O resto da avenida até Hongkew também foi ornada e iluminada”. Iluminação que permanecerá nas noites seguintes de 18, 19 e 20 de Maio, e tal como no reino e colónias, os três primeiros desses dias de gala serão feriados depois do meio-dia e completo feriado no dia 20 de Maio. Apesar da chuva, o primeiro dia de festejos corre conforme o programa.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA primeira festa dos portugueses de Shanghai [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]elas grandes potencialidades de trabalho e comércio, Shanghai atrai muita gente e não é de estranhar a rápida progressão da comunidade portuguesa proveniente de Macau a aqui se estabelecer, tornando-se a segunda mais numerosa da cidade. Segundo Jack Braga, “Para o fim do século XIX, havia comunidades portuguesas em todos os centros comerciais do Extremo Oriente. Muitos dos seus membros preferiam apregoar a cidadania britânica, por terem nascido em Hong Kong, mas têm sido, geralmente, classificados de portugueses, por motivo da sua ascendência, em vez da sua nacionalidade”. Shanghai em 1898 conta para cima de oitocentos portugueses, incluindo homens, senhoras e crianças, e como cônsul geral de Portugal continua o Sr. Joaquim Maria Travassos Valdez, que a 7 de Maio de 1897 resume as actividades a que se dedica a comunidade: . Já segundo Alfredo Gomes Dias, os membros da comunidade portuguesa de Xangai eram na sua maioria empregados de comércio, “os gooser que desempenhavam funções subalternas nas casas comerciais estrangeiras” nas concessões internacionais, assim como “os negociantes/proprietários (onde podem ser incluídos os compradores – mai-pan) e os funcionários a trabalhar no sistema financeiro”. Como segundo grupo mais numeroso os funcionários consulares e a trabalhar nas alfândegas e depois vinham os religiosos cristãos, protestantes e católicos, professores e o dos artistas. Seguiam-se os médicos e enfermeiros, assim como engenheiros e arquitectos e por fim os jornalistas e os ligados às actividades relacionadas com a navegação. Informações provenientes de Alfredo Gomes Dias e retiradas do livro, Diáspora Macaense – Macau, Hong Kong, Xangai (1850-1952), Lisboa 2014. Para ter um retrato social dessa comunidade recomenda-se a leitura das páginas 374 e seguintes onde se referem os membros da elite. Comissão para os festejos A colónia portuguesa da cidade reúne-se no dia 27 de Fevereiro de 1898 no Club de Recreio, sob a presidência do Cônsul Sr. Joaquim Valdez para nomear uma comissão a fim de tratar dos festejos que se projectam fazer em Shanghai. Dá conta dessa reunião o jornal L’ Echo da Chine, que se publica nessa cidade e a 6 de Março o Echo Macaense faz também referência. O nosso Cônsul, “Em vista dum ofício recebido do Sr. Ministro Plenipotenciário, enviando o programa das festas que a comissão central em Lisboa propôs levar a efeito por ocasião da comemoração do quarto centenário do descobrimento do caminho para a Índia, envidou os nossos nacionais aqui residentes para uma assembleia pública a fim de nomear uma comissão para promover os festejos. A assembleia teve lugar ontem, às 5 1/2 da tarde, nas salas do Club Recreativo”. “Apesar do mau tempo que fazia, a sala estava cheia, e todos os que se achavam presentes estavam bem entusiasmados”. “Creio que não será fora de propósito dizer-lhe aqui, [refere o correspondente do Echo] que, se fizermos a festa, há-de ser a nossa primeira festa pública em Shanghai. Todas as outras nações já fizeram e continuam a fazer festas, logo que se ofereça qualquer ocasião, só nós ainda não fizemos coisa alguma, e isto devido talvez à nossa indiferença, frieza ou medo, e por causa disto deixamos correr tudo à revelia. Portanto, avante senhores! Não deixemos passar a ocasião e vamos mostrar que apreciamos e veneramos os nossos valentes antepassados.” Assim, nesse dia fica constituída a Comissão Executiva de Shanghai, composta pelo Presidente, Joaquim Maria Travassos Valdez, tendo como tesoureiro Francisco S. Oliveira e secretário o Sr. Hermenegildo A. Pereira. Os outros elementos são, Adelino Dinis, António J. Diniz, Chong Tsong-poo, Cheng Chi-pio, Fernando J. de Almeida, Filomeno V. da Fonseca, Francisco F. da Silva, Honorato Jorge, José F. Pereira, Lino F. Tavares, Luiz Barreto, Marcos de Souza e Luiz Adolfo Lubeck. Os nomeados irão reunir-se num destes dias para tratar dos preparativos dos festejos para comemorar o IV Centenário, cujo programa estará de acordo com a Régia Portaria de 9 de Abril de 1897 e formulado dentro dos limites da quantia subscrita pelos portugueses residentes de Shanghai. É consagrado à memória dos navegadores portugueses que, movidos pelo desejo de servirem a Deus e a Pátria, primeiramente descobriram as terras e mares de África, Ásia, América e Oceânia. Para esse grande jubileu contribuiu também o Conselho Municipal inglês com mil taéis, que em moeda portuguesa, segundo o câmbio oficial estabelecido para a pataca, correspondem a 888$890 réis. Visita real “O príncipe Henrique da Prússia, irmão do Imperador da Alemanha, chega a Shanghai no Domingo 17 de Abril de 1898, antes do meio-dia. Desde sábado de manhã já estava o Bund parcialmente coberto de gente a esperá-lo, mas infelizmente sua Alteza ficou detido lá fora, por um forte nevoeiro e só chegou no dia seguinte; feriado, e tendo já todos acabado de ouvir missa, muita gente teve a chance de ver sua alteza desembarcar e ir até ao consulado geral d’ Alemanha, onde se hospedou.” Nessa tarde, S. Exa. Kuei chiun, Governador da província de Kiang-su (Jiangsu), vem expressamente de Suchau (Suzhou) por ordem do seu governo para receber sua alteza, acompanhado do tesoureiro da mesma província e do tao-tao de Shanghae, vem cumprimentá-lo. Na segunda-feira, retribui a visita do governador Kuei-chiun e recebe as visitas do corpo consular e de mais gente. À noite, depois do jantar, assiste a um baile oferecido pelo governador Kuei-chiun no palácio dos negócios estrangeiros, com muita gente e deve ter custado muito dinheiro. “Ainda não se sabe ao certo quando é que sua alteza vai para Kiaochao (Qingdao), a nova colónia alemã, mas enquanto se demora por cá, entretém-se todos os dias com jantares, pic-nics, revista de tropas, etc.”, refere o Echo Macaense. “À imitação dos alemães em Kiaochao, o general russo manda afixar proclamações dizendo que a Rússia é amiga da China, que o aforamento de Port Arthur, [onde os russos já têm uma guarnição de quase oito mil homens de terra, as fortalezas estão armadas e uma esquadra de oito grandes barcos, entre couraçados e cruzadores, além dos inevitáveis torpedeiros, na entrada do porto e noutros lugares], têm por fim proteger a China de uma maneira duradoura, por isso que os habitantes devem ter toda a confiança na administração russa a fim de granjear paz e prosperidade. É possível que a Inglaterra também há-de vir com a mesma cantiga com respeito a Wei hai wei”, porto de Shandong, em frente a Port Arthur, onde em 1895 os japoneses destruíram a armada chinesa.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasConcessões estrangeiras em Shanghai [dropcap style≠‘circle’]X[/dropcap]angai, como os portugueses escrevem o nome da cidade de Shanghai, é atravessada pelo Rio Huangpu e situa-se a meio da costa chinesa, banhada pelo Mar Leste da China (Oceano Pacífico), entre as baías do Yangtzé e de Hangzhou, na foz do Rio Qiantang. Porto que substituiu Yangzhou após a destruição do Grande Canal, durante a guerra entre o exército imperial Qing e os revoltosos Taiping, passando o transporte do arroz e sal a ser feito via marítima e ferroviária por Shanghai. Conquistavam assim os britânicos nesse porto a importância estratégica e comercial, que até então ainda não tinham conseguido fazer dele. “Nos tempos da dinastia Yuan (1276-1368) começou como centro de comércio com o exterior” e “em meados do século XVII, Xangai afirmou-se como uma cidade portuária e comercial, desenvolvendo algumas indústrias locais como, por exemplo, os têxteis de algodão”, segundo Alfredo Gomes Dias, “Em 1842, Xangai era já uma cidade comercialmente relevante, com uma população que rondava as 270 mil pessoas.” Ano em que Marques Pereira dá como a tomada de Shanghai pelas forças inglesas, a 19 de Junho. Com a assinatura do Tratado de Nanquim a 29 de Agosto de 1842, o Capitão de artilharia George Balfour a 8 de Novembro de 1843 estacionou um pequeno vapor britânico na margem do Rio Huangpu, com o objectivo de abrir a cidade e o seu porto ao mercado internacional. Em 1845 foi cedida uma pequena área de 56 hectares, expandida para 199 hectares em 1848, onde se instalou a comunidade britânica. Já em 1847, Charles de Montigny criara o primeiro consulado francês na zona onde viria a ser a Concessão Francesa. Governação de Xangai Sobre as concessões estrangeiras e o sistema de governação de Xangai recorremos às informações de Alfredo Gomes Dias, no seu livro Diáspora Macaense – Macau, Hong Kong, Xangai (1850-1952), Lisboa 2014, de onde retiro passagens e informações. “Até 1864, esta cidade conheceu a chegada dos representantes ocidentais e a ocupação das primeiras áreas do que passaram a ser as concessões estrangeiras britânica, americana e francesa. No domínio comercial, logo nestes primeiros anos, Xangai passou a liderar o comércio externo da China, ultrapassando [em 1850] a cidade de Cantão. Depois, na segunda fase que se prolongou até 1894, a cidade deu continuidade a este processo de afirmação no mundo urbano chinês, construindo uma intensa rede comercial que ligava as relações comerciais externas aos canais de comunicação com o mercado interno”. Ainda segundo Alfredo Gomes Dias, estava-se agora na terceira fase, com a cidade e o seu porto a constituírem-se como o verdadeiro centro económico da Ásia Oriental. Após 1895, devido à mão-de-obra barata os estrangeiros tornam-na num grande centro industrial. “Xangai, cidade governada por três poderes com características diferentes em três territórios dentro de uma só cidade”. A Concessão Internacional (CI) entregue a um poder autónomo, o Shanghai Municipal Council eleito pela elite económica dos proprietários estrangeiros, com um Doyen a presidir. A Concessão Francesa (CF), a ocupar o maior espaço da cidade, fora transformado numa “área residencial por excelência, encheu-se de restaurantes, cafés boutiques da moda, com a Avenue Joffre a apresentar-se como a mais elegante da Cidade, era um verdadeiro enclave colonial” entregue à administração do cônsul francês. A Cidade Chinesa, cuja origem remonta ao terceiro século a.n.E., no local murado do primitivo povoado de Shanghai, era gerida pelo poder mandarínico, segundo Alfredo Gomes Dias que diz, “Até 1900, a comunidade dos portugueses de Xangai manteve-se como a segunda comunidade mais numerosa da cidade, depois da britânica.” Novo porto de Woosung O olhar pelo que se passa na China é feito no Echo Macaense de 6 de Março de 1898 onde se refere o empréstimo de 16 milhões de libras, contraído pela China ao Hong Kong and Shanghai Bank e ao banco asiático alemão, garantido pela parte do rendimento das alfândegas chinesas que não está onerada e por uma parte do rendimento da taxa likin (lijin, imposto comercial cobrado nos meios de transporte). Um dos efeitos deste empréstimo foi fazer subir o preço das acções do Banco Hongkong and Shanghai, que estava a 173 por cento de prémio; deu um pulo para 183 a 186 por cento, e, sendo a prazo, chegou a 188 por cento. Um telegrama de Londres diz que a parte inglesa do empréstimo já foi coberta a 90%”. Refere este jornal que, “O empréstimo nacional que a China tentou levantar, na importância de 100 milhões de taéis, foi um verdadeiro fiasco. Diz o Daily News de Shanghai, que os príncipes e ministros de Tsung li-yamen só subscreveram 20 mil taéis. O povo chinês por enquanto não mostra nenhum entusiasmo. Há muitos capitais na China, mas os chineses não têm confiança no seu governo; não querem subscrever para empréstimo, nem para caminhos-de-ferro, porém se os ingleses se puserem à testa, ver-se-á a soma imensa de capitais e que há-de concorrer para tudo isto.” O mesmo jornal refere ter sido nomeado Governador de Kiaochao (Qingdao) o capitão alemão Truppel e ter este hospedado na sua residência o artista do Illustrated London News, Mr. Melton. Para se perceber tal cuidado das autoridades alemãs, basta ler ainda na mesma página que, “A Rússia, segundo diz Mr. Curzon, Ministro inglês, assegurou à Inglaterra que qualquer porto da China que ela ocupasse continuaria aberto para o comércio do mundo, com o que se procura acalmar a apreensão da Inglaterra que não quer que os seus interesses comerciais fiquem lesados e por isso, só há-de intervir quando houver perigo de se fecharem ao seu comércio os portos chineses ocupados por outras nações”. Em Abril de 1898, o porto de Woosung na entrada de Shanghai foi declarado aberto ao comércio, o que dispensará os grandes vapores de navegar no rio de Shanghai. As fortalezas que havia em Woosung vão ser desmanteladas e arrasadas para dar lugar à construção de concessões estrangeiras e os oficiais alemães que aí instruíam as tropas aquarteladas foram despedidas e as tropas licenciadas. A primeira linha-férrea a existir na China, fora construída por capital estrangeiro entre Shanghai e Woosung, sendo inaugurada a 30 de Junho de 1876. Logo desde o início sofreu muita contestação, acabando por encerrar em 1878, com todo o material deitado ao mar. Só vinte anos depois, em 1 de Setembro de 1898 abriu de novo o caminho-de-ferro entre Woosung e Xangai, fazendo o comboio quatro viagens, duas de manhã e duas à tarde, não circulando à noite. Para uma distância de 18 km o bilhete custava em primeira classe 80 avos, 60 em segunda e 30 avos em terceira classe e na volta outro tanto. Está planeada a sua extensão até Soochow (Suzhou) e Hangchou (Hangzhou). Fala-se já do desassossego que reina nas aldeias e cidades do vale de Yangtzé (Rio Longo, Changjiang); os habitantes vão-se armando preocupados de que alguma eventualidade grave está iminente. A China está a passar uma crise, não se sabe o que virá!”
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Tratado de Shimonoseki [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o dia em que Camilo Pessanha preside à primeira mesa do júri examinador da instrução primária para a entrada no curso geral do Liceu de Macau, a 17 de Abril 1895 assina-se o Tratado de Shimonoseki entre o Japão e a dinastia Qing, referente à Guerra na Coreia. A dinastia Qing é obrigada a pagar 75,6 mil toneladas de prata, ceder o território chinês de Taiwan e a península de Liaodong aos japoneses, e abrir ao comércio estrangeiro Shashi, Chongqing, Suzhou e Hangzhou. No entanto, a Rússia, apoiada pela França e Alemanha, força o Japão a entregar a Península de Liaodong (no Nordeste da China, de onde provem a dinastia reinante manchu) ao Governo Qing, mas terá de pagar mais 11 mil toneladas de prata. Em Taiwan, os habitantes reagem mal à chegada das tropas japonesas à ilha em Maio de 1895, começando ferozes combates que em cinco meses fazem 30 mil baixas no exército inimigo, mas de nada vale e a resistência continuará até 1945. A construção pelo Japão de um império na Ásia fora encorajado pelos americanos, que cobiçavam Taiwan e em 1867 tinham sido expulsos pelos nativos Gaoshan após invadirem pelo Sudoeste a ilha, com o pretexto de a tripulação de um dos seus barcos ter sido atacada e morta. Em 1874, os americanos apoiaram a invasão japonesa de Taiwan, que com três mil soldados pouco conseguiu avançar devido à resistência das populações locais. No entanto, sobre a mediação dos EUA e dos britânicos, a dinastia Qing foi obrigada a pagar 18,9 toneladas em prata aos japoneses para estes daí saírem. Em 1884, foi a vez da França tentar invadir a ilha mas, também sofreu uma derrota às mãos dos locais. Um ano depois, Taiwan tornou-se uma província chinesa e agora, em 1895 passa para as mãos dos japoneses até ao fim da II Guerra Mundial. Os britânicos aproveitam e a 9 de Junho de 1898 arrendam território à China, tal o sufoco económico para pagar as indemnizações de guerra. A 1 de Julho começa “a concessão dos Novos Territórios por 99 anos de uma área dez vezes maior às anteriores juntas, Hong Kong e Kowloon, incluindo o resto da península e cerca de duzentas ilhotas”. O Tratado de Shimonoseki dá início a um novo estado de agressão à China pelas oito potências invasoras estrangeiras, Inglaterra, França, EUA, Rússia, Japão, Alemanha, Áustria e Itália, que esperam novas oportunidades para ganhar mais concessões na China, levando à completa miséria os chineses, que sem meios, têm de se entregar às mãos dos que os espoliam até nada haver e assim, partem para ir trabalhar nos projectos coloniais dos agressores. Muitos desses chineses são apanhados por redes e transformados em escravos. Encontros na Casa do Mandarim Tal como acontecera em 1856 em Xangai, os estrangeiros criaram concessões que foram aumentando à medida que chegavam outros países e assim entre 1895 a 1900 em Tianjin estabeleceram-se as zonas dos japoneses, belgas, italianos, austro-húngaros e alemães e num pulo a cidade cresceu imenso. Zheng Guan Ying (1842-1921), nascido no distrito de Xiangshan, fora agente nas companhias comerciais inglesas, mas após o golpe da crise económica em Xangai e a sua detenção e litígio em Hong Kong, vai residir para Macau em 1886. Na Casa do Mandarim dedicou-se a redigir Advertências em Tempos de Prosperidade (Sheng shi wei yan), marco na história da filosofia chinesa contemporânea, onde combina as suas vivências e as ideias de um fortalecer nacional. O pensador reformista do Movimento de Ocidentalização recebe Sun Yat Sen, a estudar Medicina em Hong Kong, nas viagens de e para a sua terra natal, Cuiheng, também em Xiangshan. Segundo Choi San diz: “vinha por Macau para trocar com Zheng Guan Ying ideias sobre a situação política e a aprendizagem do Ocidente. Desenvolver a produção agrícola transformando a agricultura com a avançada tecnologia científica do Ocidente e com os métodos administrativos capitalistas constituiu também uma questão que chamou a atenção de Sun Yat Sen. Por volta de 1891, o Dr. Sun Yat Sen escreveu um artigo comentando exclusivamente a agricultura. Após algumas alterações feitas por Zheng Guan Ying, este artigo foi incluído, sob o título de Nong gong (Sobre a Agricultura), no livro Advertências severas na época próspera. Nele, o Dr. Sun Yat Sen diz: “Após o Dr. Sun Yat Sen se formar pela Universidade de Hong Kong, vem para Macau como médico e em 1893 ajudou o amigo português Francisco Fernandes a criar a edição chinesa do jornal Echo Macaense (JingHaiCongbao). Segundo Segredos da Sobrevivência de Wu Zhiliang. Em 1894 Zheng Guan Ying escreveu “uma carta a Sheng Xuan Huai, mandarim pertencente à escola promotora do comércio exterior e negócios estrangeiros, pedindo-lhe que apresentasse Sun Yat Sen a Li Hong Zheng, chefe da escola promotora de comércio exterior e assuntos estrangeiros.” Na carta faz referência à aspiração e ambição de Sun Yat Sen no sentido de revigorar a agricultura chinesa. Do artigo Influência de Zheng Guan Ying Sobre Sun Yat Sen e Mao Tse Tung’ escrito por Choi San e publicado na Revista Cultura. Opiniões da situação Pela ajuda dos russos aos chineses e para garantirem a protecção do território contra as agressões estrangeiras é dado aos russos a concessão do caminho-de-ferro Transmanchúria, a partir de Harbin, Manchúria do Norte, linha aberta a 3 de Junho de 1896 entre a China e a Rússia. A 26 de Janeiro de 1897 é aprovado pelo Rei D. Carlos para ser rectificado, o Tratado de Comércio e Navegação assinados em Lisboa entre Portugal e o Japão. Já O Porvir de Maio de 1898 refere ser “curiosa e não deixa de ser algum tanto verdadeira a opinião que os franceses formam sobre a situação política no Extremo Oriente e, para amostra, aí vai isso, que eles dizem: Entretanto, ela recua visivelmente e circunscreve de mais em mais o terreno que proclama intangível. Comentando o caso, diz o nosso colega inglês: . É escusado esperar, porque a Inglaterra já apanhou também um óptimo quinhão da China, e não tem, portanto, necessidade de mostrar já a dentuça arreganhada, além do que, se a arreganhasse com a bondosa intenção de morder na China, seria requintada tolice, porque ela, a miséria, está-se assemelhando ao leão velho da fábula. Podem todos escoiceá-la que ela não reagirá. Quanto a arreganhar os dentes à Rússia, França e Alemanha, não seria a Inglaterra tola em tal fazer, porque quando pensasse em dar uma dentada em tais meninas, decerto apanharia em troco duas ou mais para o seu tabaco.” Será?
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA Coreia na Guerra do Japão à China [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]e todos os consulados de Portugal na China, o de Shanghai é indubitavelmente o que tem mais elevado grau de importância, e quer porque revista os seus titulares de carácter e funções de juízes, quer pela numerosa comunidade que está sob a sua jurisdição e pelos magnos interesses que naquele tribunal se debatem e ventilam, exige que só seja confiado a um cônsul de carreira, ou a um homem suficientemente habilitado e que dê todas as garantias do bom desempenho de tão transcendente missão”, segundo O Independente de 1 de Agosto de 1891. De 1891 a 1893 os capitalistas europeus e sobretudo os de Londres retiraram uma imensa quantia de dinheiro do giro comercial da China por eles empregado em Hong Kong, pois estava em curso a desvalorização do preço da prata. Regressado a Shanghai vindo da Metrópole, o cônsul geral de Portugal e Sénior cônsul, Joaquim Maria Travassos Valdez, de 1893 a 1895 como Doyen (decano do corpo consular) geriu as questões de Shanghai, “muitas, importantes como, a proibição da importação de máquinas, a de medidas preventivas por ocasião da peste bubónica, a do jubileu de Shanghae, a da dragagem de Vonsung, a da supressão da loteria e outros jogos, a queima e destruição de pagodes, e finalmente a da neutralidade de Shanghae por ocasião da guerra entre a China e o Japão.” No início o Daily Press de Shanghae mostrara-se contra o Sr. Valdez para decano do corpo consular, mas escolhido pelos seus colegas, o facto desmentia as asserções desse jornal. Como Doyen da Concessão Internacional, o Sr. Valdez presidia ao Shanghai Municipal Council, eleito pela elite económica dos proprietários estrangeiros e nesse cargo conviveu com três tao-taes e com esses governadores da cidade chinesa manteve cordiais relações de amizade. Quando rebenta a guerra entre a China e o Japão, o tao-tae de Shanghae procura amiudadas vezes o Sr. Valdez para ouvir a sua autorizada opinião sobre várias questões, algumas delas estranhas ao seu cargo, mostrando não só confiança no Sr. Valdez, como lhe reconhece competência. Informações do jornal O Provir de Hong Kong. Parecer do Doyen Camilo Pessanha ainda viaja para Macau quando a 28 de Março de 1894 em Shanghai ocorre o assassinato de um refugiado político da Coreia, Kim Ok Kiun, a residir no Japão, morto por Hung, também coreano. “Como a Coreia não é uma potência que tivesse tratado com a China, pois considerada como um seu Estado tributário, é difícil decidir qual deve ser a lei, e qual o juiz para julgar o caso” e aqui entra o Sr. Travassos Valdez, cônsul geral de Portugal e Sénior cônsul, na sua qualidade de Doyen do corpo consular em Shanghae. “Mostra que os cônsules e o conselho municipal reunidos possuem os poderes legislativo, executivo e judicial – tudo quanto constitui uma verdadeira soberania. Prova que o pagamento de um pequeno foro ao imperador da China, (que, pela lei chinesa, é proprietário de todo o terreno no Império e só o afora aos seus súbditos) não afecta a questão de soberania dentro dos Estabelecimentos, do mesmo modo como o pagamento de um tributo, feito por um Estado tributário, não diminui os seus direitos de soberania dentro das suas fronteiras. Demonstra ser a autoridade do magistrado chinês pelos regulamentos do tribunal misto quem tem a menor alçada e é limitada pela presença de um assessor estrangeiro. Conclui que o caso deve ser julgado por um membro do corpo consular, e conforme as leis de seu país. A oposição que houve no corpo consular impediu a adopção dessa conclusão e Hung foi entregue às autoridades chinesas e libertado na Coreia. Para o Sr. Valdez um ultraje às bandeiras estrangeiras que defendiam os Estabelecimentos, como uma violação dos sagrados direitos de asilo, e com um perigoso precedente que poderia conduzir a crimes sem fim. Guerra da Coreia Quatro meses em Macau e Camilo Pessanha toma conhecimento ter o Japão, incitado pelos britânicos e com ajuda americana, a 1 de Agosto de 1894 invadido a Coreia, país ainda tributário da China e por isso sobre sua protecção. “Tudo começa na Primavera de 1894 com uma revolta de camponeses, tendo os senhores feudais coreanos pedido ajuda ao Governo Qing para enviar tropas. Quando em Junho chegam as 1500 tropas chinesas a Asan, está já a revolta controlada, encontrando-se quase toda a força naval e dez mil soldados da infantaria japonesa em Seul e ao redor de Inchun. A China propõe ao Japão deixarem ambos os países de ter tropas na Península da Coreia. O Japão recusa, dizendo ser para ajudar a Coreia nas suas internas reformas”, segundo Bai Shouyi, em Outline History of China. E nesse livro em tradução livre continuamos, “Nos finais de Julho, os vasos de guerra chineses encontram-se em Asan, quando de repente uma frota japonesa os ataca, causando a morte a mais de 700 soldados, levando a armada chinesa a retirar para Pyongyang, onde a 15 de Setembro ocorre a batalha, que as tropas chinesas ajudadas pelos coreanos conseguem repelir. Dois dias depois da Batalha de Pyongyang, a armada chinesa Beiyang comandada pelo Almirante Ding Ruchang, inexperiente em batalhas navais, encontra-se no Mar Amarelo quando é cercada pela japonesa. A batalha dura cinco horas e os chineses perdem cinco navios. Em finais de Outubro, as tropas japonesas invadem o Nordeste da China, capturando a Península de Liaodong e no Rio Yalu, Jiulian e Andong (hoje Dandong, Liaoning). Em meados de Janeiro de 1895, os japoneses vão à Província de Shandong e assaltam o porto Weihaiwei, onde o que restara da frota Beiyang é completamente destruída em Fevereiro. Passam as tropas japonesas à península coreana e rapidamente ocupam muito território, levando o Governo Qing a pedir a paz. A astuciosa inteligência comercial estimula atritos que sabe levarem à guerra e assim mais uma vez resulta. A Inglaterra apoia o Japão e não a Rússia, sua oponente em Xinjiang, no Oeste da China, onde os britânicos para Norte e os russos para Sul tentam expandir os seus impérios, levando entre ambos à assinatura de um tratado em 1895. A Guerra da Coreia (1894-95) dá ao Japão asas no sonho de construir um império na Ásia. Guerra que marca um novo estado de agressão estrangeira à China, a ter de permitir aos poderes ocidentais investir aí em fábricas a satisfazer as suas necessidades urgentes para exportar capital. O status da China como semi-colónia fica confirmadíssimo, segundo Bai Shouyi. Ainda em 1893 começara um movimento reformista de chineses ricos ligados aos Qing a investirem largas somas de dinheiro na modernização tecnológica das suas fábricas. A maioria dos negócios desses milionários acaba em bancarrota devido à competição dos comerciantes estrangeiros, já na Era do capitalismo industrial. Controlam os transportes, as matérias-primas e a produção, e sem rivais no comércio entram por todos os países. O mercado tem que ser livre, nem que seja pela força. Ou ocorre como com a planta do chá. A Rainha Vitória impera no mundo, cujo jubileu de diamante será em 1897.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasRestauração Meiji e a Missão Educacional Chinesa [dropcap style=’circle’]T[/dropcap]endo a civilização do Ocidente dentro do Império do Sol Nascente, voltar ao passado era impossível, tal como derrotar as potências Ocidentais. Aceitar a civilização do Ocidente passivamente, em apática expectativa, era suicídio. Impunha-se então adoptar no Japão a civilização ocidental e abrir de novo o país para o mundo>, este o parecer dos hábeis conselheiros do novo Imperador Mutsuhito, filho do Imperador Komei falecido a 30 de Janeiro de 1867. Para o Japão começar uma nova organização do Estado, era necessário acabar com o shogunato (governo pelos senhores da terra) e iniciar a Restauração Imperial. Do clã Tokugawa, o shogun Iemochi morreu e sucedeu-lhe Yoshinobu a 29 de Agosto de 1866. Sobre esse shogun o Boletim do Governo de Macau e Timor de 1867 refere: “Do Japão, sabemos pelos jornais que Stotsbashi, o novo taicun, assumiu efectivamente no dia 10 de Janeiro a gerência dos negócios públicos. O seu irmão mais velho, vai para Paris, com grande séquito, assistir à exposição, tencionando correr mais alguns portos da Europa, para estudar os seus usos e costumes. Corre como certo que efectivamente vão ser enviados ministros residentes às cortes das nações com as quais o Japão tem tratados. Foi concluído a 12 de Janeiro de 1867 um tratado de amizade, comércio e navegação, entre a Dinamarca e o Japão.” O shogun Yoshinobu renunciou ao poder em Novembro de 1867, ou terá sido deposto por uma coligação de senhores feudais submetida ao novo Imperador Mutsuhito, que com 15 anos ascendeu ao trono imperial e transferindo-se de Quioto para Yedo, passou a viver no Palácio do Shogun, onde Yoshinobu nunca habitou. O Japão fora governado entre 1185 e 1868 por shogunatos com poderes políticos e militares, sendo no século XV-XVI dominado pelos senhores feudais (dáimios), enquanto o Imperador do Japão, fechado na capital Quioto (cidade de estilo chinês fundada em 794) e afastado da vida real do país, era figura simbólica descendente da deusa do Sol Amaterasu. A 4 de Janeiro de 1868 o poder passou das mãos dos shoguns para o Imperador Mutsuhito, no trono imperial desde os inícios de 1867 e já como Meiji Tennô mudou o nome da capital, Yedo para Tóquio. Com hábeis conselheiros iniciou-se uma nova Era no Japão. Investiu-se fortemente na industrialização, na agricultura e no comércio, numa frota naval, tanto para fins militares, como de transporte, e na modernização da educação, administração civil e militar. Em 1889, o Imperador promulgou uma nova Constituição a permitir a formação de um Parlamento eleito, com poderes legislativos. O Imperador Meiji tinha ministros, que só a ele respondiam e desde 1895, estes passaram a ser altas patentes militares da Marinha e do Exército. Missão Educacional Chinesa Derrotado pelas potências estrangeiras na II Guerra do Ópio, o Governo Qing percebeu a inutilidade da sua obsoleta marinha, tal como teve de criar um Gabinete dos Negócios Estrangeiros (Zongliyamen), aberto em Janeiro de 1861, sendo escolhido para o chefiar o Príncipe Gong, Yi Xin, irmão do Imperador Xianfeng. Até então a China não tivera necessidade de um ‘Gabinete para a gestão geral dos assuntos comerciais com as nações’, pois como potência na erudição tinha como vassalos os países tributários, a partir daí vê-se forçada ao comércio em diferente posição. Quando o Zongliyamen foi fundado, na sua alçada ficou o Departamento das Inspecções-Gerais das Alfândegas Marítimas do Império criado na China em 1858, mas pouco tempo depois estavam já nas mãos de britânicos. Em 28 de Julho de 1868 a China Imperial enviou um americano como Ministro Plenipotenciário da China aos EUA para assinar em Washington o Tratado Burlingame, a emendar o Tratado de Tianjin (de 1858) entre os dois países e estabelecer relações formais de amizade, garantindo os EUA à China o estatuto de nação mais favorecida no comércio. O americano Anson Burlingame assinou pela China, para onde fora em 1861 como ministro apontado por Lincoln e em Beijing foi o Tratado rectificado em 1869. Rong Hong (1828-1912) ficou chocado ao ver um americano como Ministro Plenipotenciário da China. Rong Hong, nascido a 17 Novembro de 1828 em Nanping, Zhuhai e tratado pelos estrangeiros por Yung Wing, em 1854 tornou-se o primeiro estudante chinês a graduar-se numa universidade dos EUA, para onde viera estudar no College Yale em 1850 sobre patrocínio de Samuel Robbins Brow (1810-1880). A 30 de Outubro de 1852, já se naturalizara americano e pertenceu à fraternidade Delta Kappa Epsilon (Sociedade Secreta com o lema <Amigos de coração, para sempre> criada em 1844 na Universidade de Yale). Regressado à China, como intérprete servia os missionários e procurou dar apoio ao Grande Reino da Paz Celestial (Taiping Tianguo). Em 1863 foi enviado aos EUA pelo General Zheng Guofan, afim de comprar máquinas capazes de produzir armas pesadas, iguais às dos ocidentais. Arsenal fundado em Xangai no ano de 1865. Indignado, Rong Hong escreveu uma carta a Zheng Guofan e no Inverno de 1870 foi a Nanjing falar com ele, já de novo Vice-Rei de Liangjiang, de modo a organizar um grupo de 120 alunos para ir estudar nos EUA, no College Yale. Em 1871, o Governo Qing fez uma escola em Xangai para preparar o primeiro grupo de 30 chineses e Rong Hong ficou encarregue de encontrar estudantes; mas partindo de Shandong até Guangdong só conseguiu 17 para estudar no estrangeiro e foi na sua terra natal, aldeia de Nanping em Xiangshan onde encontrou os outros 13 em apenas dois dias. O plano do governo Qing era enviar quatro grupos de 30 elementos cada, mas conseguir os primeiros trinta tinha sido tão difícil que levou Rong Hong, afim de preparar alunos para irem estudar no estrangeiro, a usar o seu dinheiro e abrir a escola em Nanping, Nanping ZhenXianSheXue (甄贤社学), de onde saíram mais 25 para os EUA e assim dos 120 estudantes, um terço era proveniente de Xiangshan. Em Julho de 1872 Rong Hong partia sozinho para S. Francisco a preparar a chegada do grupo e acolheu Chen Long, filho de Chen Fang, que viera do Havai para estudar na Universidade de Yale. A 17 Agosto seguiu de Xangai o primeiro grupo num barco japonês, chegando em 12 Setembro a S. Francisco e em dez dias estão em Connecticut, sendo os 30 alunos separados por 15 famílias para com elas, vivendo, praticar o inglês. Com esses chineses começou a funcionar em 1872 a Missão Educacional Chinesa. Enviado em 1875, outra figura do distrito de Xiangshan, província de Guangdong, Lew Yuk Lin (1862-1942) em 1886 iniciou a carreira diplomática, sendo nomeado Cônsul Geral da Dinastia Qing na Inglaterra e serviu várias vezes como Ministro dos Negócios Estrangeiros. Em Março de 1876, Tony Chen Xi Ru, outro filho de Chen Fang, foi estudar em Yale, ano em que Rong Hong aí se doutorou em Direito e casou com a americana Mary Kellong. Em 1881 fechou a Missão Educacional Chinesa no College Yale nos EUA, onde estudantes chineses contactaram via Pacífico o científico pensamento Ocidental.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasTurbulento período na China [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]China confrontada desde 1850 com a Revolta dos Taiping (da inspiração cristã de um chinês e que durou até 1864), levou a meio com a II Guerra do Ópio (1856-60) entre as potências estrangeiras e o Governo Qing. Já em 1854, as forças invasoras apoiavam as do sétimo Imperador Qing, Xianfeng (Wen Zong, 1851-1861), contra os Taiping, que em 1856 se encontravam no máximo de poder militar. Sucesso a empurrar muitos grupos étnicos a seguir o exemplo, aparecendo novos corpos de combatentes por todo o país, mas começaram também as disputas entre os comandantes no interior dos Taiping e tal desconfiança levou a deserções. Em 1858, o governo imperial viu-se seriamente embaraçado para reprimir a insurreição Taiping. “Quando Nankin já se achava em poder dos revoltosos e Shang-hai ameaçado da sua invasão, enviou o governo local, o táo-tai de Sahng-hai, os seus juncos de guerra para aquela cidade, acompanhados de treze lorchas mercantes pertencentes à praça de Macao, embarcações que lhe mereciam mais confiança que os seus navios; o resultado desta empresa foi o que era de esperar: os inúmeros juncos dos rebeldes, tripulados por alguns europeus e americanos, logo que avistaram a esquadra do governo, desceram o rio, e aquela retirou, evitando assim a sua destruição. Continuando o pânico em Shang-hai, comprou o táo-tai, quatro navios, uns ingleses, outros americanos, tripulando-os com marinheiros europeus, para o que teve de oferecer salários elevadíssimos. Achavam-se nesta ocasião fundeados defronte desta cidade, dois navios ingleses, com o representante da Grã-Bretanha em Hongkong, Sir G. Bonham, que se transportou, no Hermes, a Nankin, a fim de indagar em que disposições estavam os insurrectos a respeito dos europeus residentes em Shang-hai. Por seu turno, os insurrectos, pertencentes à sociedade secreta a , e já senhores de Shang hai, incorporaram entre os seus barcos, um navio europeu, o Glenlyon, que foi capturado por dois juncos pertencentes à esquadrilha imperial. Era de supor que os rebeldes, costumados às manobras dos navios indígenas, dificilmente evitariam a abordagem das embarcações do governo.” Factura do auxílio não pedido Os chineses consideram o catolicismo e o protestantismo, na China desde 1807, como diferentes religiões devido à diferença como traduzem conceitos bíblicos e a palavra Deus, percebendo haver entre ambas, uma profunda clivagem e rivalidade. Com o fim da II Guerra do Ópio, desde 1860 chegavam em grande número à China padres cristãos protestantes trazendo uma forma mais competitiva de missionar, propiciando empregos nas firmas das potências estrangeiras e outros benefícios aos chineses convertidos ao Cristianismo. Privilégios a criarem grande ressentimento, traduzido mais tarde na destruição de igrejas, muitas construídas sem obedecer aos costumes e regras de geomância, por isso consideradas como criadoras de má energia. Mas patrocinaram também a ida para o estrangeiro de estudantes, aprender e adoptar o pensamento Ocidental e no regresso servirem de intérpretes. Foram enviados para a Europa e Estados Unidas da América, mas a burocracia e a confusão que grassava na dinastia Qing boicotou o processo, já sem interesse desses países cristãos pois contavam, para o estilo comercial de modernização, com as escolas dentro da China. O apoio das forças estrangeiras ao Governo Qing desequilibrou, começando os Taiping a perder controlo das regiões. Segundo Marques Pereira, a 24 de Outubro de 1862 foi “tomada pela segunda vez aos rebeldes Tai-ping a cidade de Kah-ding, na província de Kiang-su, pelas tropas anglo-francesas, em número de 4550 combatentes. Não é decerto uma página brilhante para a história das relações dos povos europeus com a China essa aliança de 1862 e 63, imposta ao governo imperial pelas tropas que ficaram da guerra de 1860, esperando o pagamento integral das indemnizações. O pretexto fora a princípio justo. Estando Shanghai e outros portos ameaçados com a temível proximidade da célebre insurreição, cujas hordas devastadores tão depressa se encarregaram de desmentir os intentos elevadamente políticos que primeiro lhe atribuíram, os aliados tomaram por motivo da intervenção a defesa dos portos abertos ao comércio estrangeiro. Como porém não bastava para conservar a importância comercial destas cidades, circunscrever a defesa aos subúrbios, e convinha para a fácil troca das mercadorias desafrontar os pontos próximos, oprimidos pela vizinhança dos rebeldes; – as forças europeias, animadas pelos pingues despojos de uma guerra fácil, foram pouco a pouco alargando a área do auxílio prestado aos imperiais, e todos os dias se preparava uma nova expedição a algum ponto mais distante do que o último que se vencera. Com escandalosa contradição do pretexto, deu-se então uma guerra singular, que só feria os inofensivos. Saqueavam-se quase inteiramente as cidades e povoações de onde eram expulsos os rebeldes, de sorte que os habitantes entregavam aos seus libertadores supostos o resto de fazenda que por ventura lhes ficara da invasão.” Em Maio de 1862, “presenciei (Marques Pereira) em Shanghai, durante cinco dias, a entrada dos despojos da primeira libertação de Kah-ding (vendidos em hasta pública, nos consulados inglês e francês); e contudo havia poucas semanas que os rebeldes tinham tomado essa cidade, sem lhe levarem mais do que o seu ânimo feroz e devastador. Assim foi que, em breve tempo, longe de ter mais seguro o seu comércio e prosperidade, Shanghai ficou solitária em um raio de dezenas de léguas. Pode dizer-se que, para essas povoações que desapareceram, o patrocínio dos aliados foi tão desastroso como a própria insurreição dos Taiping.” No trono chinês encontrava-se já o Imperador Tongzhi (Mu Zong, 1862-1874), quando em 1863 a milícia Xiang de Hunan, criada pelo General Zheng Guofan, cercou Tianjin, na posse dos Taiping. Seis meses de cerco e a 1 de Junho de 1864, Hong Xiuquan doente, morreu. Em Agosto a milícia da província de Hunan dinamitou a muralha da cidade e após combates de rua, onde a morte se espalhou por Tianjin, saqueada e incendiada, voltou de novo esta para o Governo Qing. Refere Beatriz Basto da Silva, “Nos quinze anos (1850-1864) em que ocorreu a revolta dos T’ai-Pings, «Reino pacificado do céu», destruiu 600 vilas e cidades e deixou a China semelhante a um deserto, com perdas de milhões de vidas e prejuízos irreparáveis para as artes e literatura. Trata-se de um levantamento popular de descontentes, com uma conotação religiosa distorcida, pervertida.” Hong Xiuquan, um “anti-manchu, fortemente influenciado por valores ocidentais, subverteu o sudeste da China, de Cantão a Nanquim. O igualitarismo e a modernização social apresentaram-se contra os conservadores confucianos e os aristocratas.” Pela imposição do auxílio não pedido, teve o Governo chinês de pagar as despesas das tropas europeias, até que lhes aprouve a elas retirar-se, em 1864, o que importou em mais de um milhão de patacas. Destaque Os chineses consideram o catolicismo e o protestantismo como diferentes religiões devido à diferença como traduzem conceitos bíblicos e a palavra Deus, percebendo haver entre ambas, uma profunda clivagem e rivalidade.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasPaís em ruínas e a saque [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Ópio na China levou à Primeira Grande Guerra Mundial dos tempos modernos pois, a nossa primeira, a Grande Guerra (1914-18) ocorreu sobretudo na Europa e apenas com intuitos políticos e militares, sem visar no imediato o comércio. Após a Primeira Guerra do Ópio (1839-42), quando em 1851 se sentou no trono da China o Imp. Xianfeng, no Sul, Hong Xiuquan fundou o Grande Reino da Paz Celestial (Taiping Tianguo) e iniciou a Revolta Taiping contra o governo Qing e os senhores feudais. Uma verdadeira Guerra Civil, trespassada a meio pela II Guerra do Ópio (1856-60). Hong Xiuquan (1814-64) começou por se juntar a pequenas rebeliões contra os senhores locais e após contactos com missionários protestantes, que depois dessa I Guerra andavam já por toda a China, ao ler um livro que propagava a fé cristã, nele se sentiu inspirado. Intitulando-se o irmão mais novo de Cristo, em 1844 criou a organização religiosa “Bai Shang Di Hui” (Sociedade de Adoração de Deus), que propagava a igualdade e fraternidade entre as pessoas e sexos e opunha-se à opressão feita pelos demónios (oficiais, senhores da terra e o feudal imperador Qing), encontrando terreno fértil em 1850 na revolta dos agricultores da província de Guangxi, devido à grande fome que então ocorria. Em Macau, “No Verão de 1850, o intérprete oficial, João Rodrigues Gonçalves, foi abordado por um chinês bem vestido, que com grande discrição e mistério lhe fez uma proposta: sendo o governador de Macau (Pedro Alexandrino da Cunha) conhecido como um homem justo e humanitário, oferecia-se-lhe o comando de muitos milhares de apoiantes chineses, fortes, bem armados e suficientemente preparados, para o propósito de tomar o império. Pedia-se-lhe que tomasse esse assunto em consideração e que fizesse o favor de dar uma resposta. O intérprete mandou embora o homem, bruscamente, tomando-o por um louco, um brincalhão ou um intriguista. Pouco depois deste estranho incidente, a Revolta dos Taiping estava em pleno auge; e foi então que o intérprete chegou ao significado da proposta.” Montalto de Jesus Em 11 de Janeiro de 1851 Hong Xiuquan fundou o Grande Reino da Paz Celestial, estabelecendo um poder político e militar. Começava a Revolta Taiping, que rapidamente ganhava aderentes entre os camponeses e artesãos devido ao utópico ideal de uma sociedade que sem distinções, em comunhão compartilhava a terra, comida e dinheiro. Em Março de 1853, o exército Taiping entrava em Nanjing e matando os manchus, aí fez a capital do Grande Reino da Paz Celestial, com o nome de Tianjing. Durante um ano chegaram à capital delegações estrangeiras, como a britânica, francesa e americana, a fim de conseguirem um acordo com o novo governo revoltoso Taiping, para que este aceitasse os tratados assinados após a Guerra do Ópio. Mas tal não aconteceu e em meados de 1854, as forças estrangeiras invasoras juntavam-se às do Imperador contra os Taiping. Estes, de vitória em vitória, ocuparam inúmeras províncias e em 1856 estão no máximo do seu poder militar. As potências estrangeiras, percebendo poder aproveitar a guerra civil como uma nova grande oportunidade para aumentar ainda mais o conseguido com a I Guerra do Ópio, arranjaram um pretexto. II Guerra do Ópio Provocada quando a dinastia Qing estava a braços com a Revolta Taiping (1850-64), a Segunda Guerra do Ópio tem início em 1856 após um barco britânico, ao navegar nas águas territoriais chinesas, próximo de Tianjin, ser abordado pelos militares chineses. Pretexto para os ingleses e os franceses bombardearem Tianjin, obrigando a China a abrir mais um porto, a juntar aos cinco conquistados pela I Guerra do Ópio. Assim, pelo Tratado de Tientsin de 1858, Tianjin tornou-se um porto estrangeiro e o ópio na China legalizado, apesar de contrário ao querer dos governantes chineses. Já no Sul da China, a lembrar a partida de Lord Saltoun a 30 de Janeiro de 1846 de Cantão para Inglaterra levando a soma de três milhões de patacas paga pelos chineses em resgate da mesma cidade, a “12 de Fevereiro de 1858 é tomada a cidade de Cantão e enviado prisioneiro a Calcuttá o comissário imperial Yeh; os embaixadores e ministros de Inglaterra, França, Rússia e Estados Unidos dirigem nesse dia cartas a Yu, primeiro secretário de estado em Pequim, mostrando a urgência de ser nomeado pelo imperador um plenipotenciário e de se dar começo, em Shang-hai, às negociações sobre os vários assuntos que nas mesmas cartas se mencionavam. No caso em que o comissário imperial não chegasse a Shang-hai até ao fim de Março seguinte, os embaixadores aliados anunciavam o intento de se transportarem a um lugar mais vizinho da capital, para mais directamente se corresponderem com os primeiros funcionários do governo. Foram portadores destas comunicações Laurence Oliphant e o visconde de Contades, que saíram de Cantão nessa mesma data (12 de Fevereiro de 1858), e as entregaram, no dia 26, na cidade de Su-chau (Suzhou), ao vice-rei da província de Kiang-su (Jiangsu), que as enviou a Pequim.” BO. Ainda em 1858, a Companhia Inglesa das Índias Orientais entregava o governo de todas as suas terras à Coroa Britânica. Pequim ocupada O Tratado de Tientsin tardava em chegar e em Junho de 1859, sob o pretexto de serem trocadas as rectificações dos tratados, vieram os ministros ingleses e franceses em navios de guerra até Dagu, tendo o governo Qing notificado que deveriam desembarcar em Beiting. Ignorada a ordem, estes, com o suporte de vasos de guerra dos EUA, bombardearam o forte de Dagu. A guarnição chinesa ripostou e causou 500 feridos e mortos. Para retaliar, em Julho de 1860 os britânicos e franceses enviaram para Dagu uma força de 16 mil homens, que desembarcaram no mês seguinte em Beitang e ocuparam Dagu e Tianjin. Em Setembro vão o caminho de Pequim, levando o Imperador Xianfeng a entregar a negociação de paz ao irmão, o Príncipe Gong, Yi Xin e com alguns dos seus oficiais foi para Rehe (actual Chengde, Hebei), onde irá falecer em Agosto de 1861. Pequim, a capital da dinastia Qing, foi invadida em Setembro de 1860 por ingleses e franceses, liderados por Charles George Gordon, que destruíram o antigo Palácio Imperial de Verão (Yuan Ming Yuan) saqueando e queimando-o. Em Outubro, para pôr fim à II Guerra do Ópio, à China foi-lhe imposta a abertura de Tianjin como porto de comércio e a permissão dos trabalhadores chineses irem para o estrangeiro; – não mais do que legalizar o tráfico de culis. Como indemnização de guerra prescrita pelos tratados de Tientsin foi aumentada para os 8 milhões de taéis de prata a cada um dos países e à colónia britânica de Hong Kong veio acrescentar-se a península de Kowloon. Entre os católicos, aos missionários franceses da Propaganda Fide, que vinha substituindo o Padroado português, foi permitido comprar ou arrendar terra e construir o que desejassem. Em Setembro de 1861, Shamian, em Guangzhou, tornou-se uma concessão anglo-francesa, como se apresentará ainda na visita de Camilo Pessanha a Cantão.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasPortos da China e Japão abertos ao comércio [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]China, desde que perdera por via militar a I Guerra do Ópio, percebera ter sido tecnicamente suplantada pois ficara fora da intelectual inteligência do renascimento ocidental, sussurrada aos ouvidos do Imperador Kang Xi (1662-1722) quando ainda criança. Sinergia entre Ocidente e Oriente trazida pelos jesuítas para dentro do Palácio Imperial, onde entraram através da Matemática, Astronomia e relógios, e por oferendas como âmbar cinzento, brinquedos, rapé e quadros pintados em perspectiva. Por ordem do segundo Imperador Qing, em 1708 começaram a ser cartografadas todas as regiões do Império, colaborando os jesuítas nesse trabalho. Compilado em 1718, foi guardado num dos pavilhões imperiais e aí ficou; já os missionários, com o valioso e estratégico mapa da China, enviaram-no aos Superiores na Europa. A manchu Dinastia Qing (1644-1911), a última das imperiais dinastias chinesas, a partir do quarto Imperador Qian Long (Gao Zong, 1735-1795) começou a entrar em decadência. Em 1781, a Companhia Inglesa das Índias Orientais sem nada para trocar de interesse com os chineses, começou a enviar ópio para a China. Com o sexto Imperador Dao Guang (Xuan Zong, 1821-1850) ocorreu a I Guerra do Ópio (1839-42), devido à recusa do governo imperial em aceitar essa droga, “levando as costas marítimas chinesas a serem fustigadas pelos canhões dos 38 navios de guerra, com 4 mil tropas britânicas que terminou com a assinatura do Tratado de Nanjing a bordo da nau inglesa Cornwallis a 29 de Agosto de 1842 (24.º dia da 7.ª lua do 22.º ano do Imperador Tao-kuang). Sir Henry Pottinger, por parte da Grã-Bretanha e o comissário imperial Ki-ing I-li-pu (Qiying) e Neu-kien, por parte da China, sendo as ratificações trocadas em Hong Kong a 26 de Junho do ano seguinte”, segundo Marques Pereira e nesse tratado “o Imperador da China ficou obrigado a pagar a soma de 21 milhões de patacas, a título de indemnizações da I Guerra do Ópio e outras, no prazo de três anos e quatro meses, contados desta data da assinatura, e outrossim a abrir inteiramente ao comércio estrangeiro os portos de Cantão, Amoy, Fuchau, Ningpo e Shanghai, admitindo neles cônsules e adoptando razoáveis tarifas de direitos. Foi pelo mesmo tratado confirmada a cessão da ilha de Hong Kong à Rainha Victoria e a seus herdeiros e sucessores, e aceitação da ocupação das ilhas de Chu-san e Ku-lang-su até à completa abertura dos portos mencionados e integral pagamento das indemnizações.” Tamanha humilhação marcou a viragem da China Imperial para um semi-feudal e colonizado país. Após o Tratado de Nanjing, os britânicos controlavam o comércio marítimo da China e as outras potências Ocidentais, como a França, a Alemanha, a Rússia e os EUA, assistindo à fraqueza dos governantes chineses decidiram fazer pressão para obterem também privilégios, concessões e território. Os Estados Unidos em 1844 assinaram em Macau o Tratado de Wangxia, que concedeu os direitos dados aos ingleses e reduzia as taxas sobre os barcos americanos, podendo estes navegar nas águas interiores da China. Crimes cometidos por cidadãos americanos na China seriam apenas julgados por tribunais americanos, mesmo os relacionados com a morte de chineses por americanos. Aceitação da civilização ocidental O Japão (Nippon para os japoneses) mantivera-se fora do mundo desde 1639 devido aos Éditos de Isolamento que o Shogunato Tokugawa (1603-1867) sucessivamente foi proclamando, até que a 11 ou 12 de Fevereiro de 1854, o comodoro americano Mathew C. Perry regressou ao Japão com uma esquadra de sete navios para saber a resposta à carta do presidente Norte Americano Millard Fillmore (1850-1853), por ele aí deixada um ano antes, quando em 8 de Julho de 1853 na Baía de Yedo (Tóquio) aportara na primeira vez. Recebido a 14 de Fevereiro, exigia a abertura dos portos japoneses ao comércio americano. O shogun adiando a resposta, pois a corte imperial em Quioto era defensora da guerra para não deixar entrar as potências estrangeiras, logo recebeu a ameaça: . Tal levou em Março de 1854 o Presidente do Conselho dos Veteranos, Abe Masahiro a assinar o acordo com os americanos, onde o Japão abria portos ao comércio. As reformas no Japão iniciaram-se com aquisições de armamento e navios de guerra, dando-se em 1855 a abertura com instrutores estrangeiros das escolas Naval e Militar. Em 1858, o governo shogunal assinava novos tratados, agora com a Holanda, Rússia, Inglaterra e França, e ao ser obrigado a abrir mais portos aos estrangeiros perdeu força interna para os partidários do imperador, começando o declínio do regime de shogunato, que vigorará até 1867. Os estrangeiros, comerciantes e diplomatas, estabelecem-se no Japão e muitos jovens japoneses vão para a Europa e EUA estudar. Era aprender com o Ocidente, compreender os seus modelos para conseguir o melhor e negociar em pé de igualdade. Desde 1603 a família Tokugawas detinha o poder e quando o shogun Iemochi morreu sucedeu-lhe Yoshinobu a 29 de Agosto de 1866. A 25 de Janeiro de 1867, “Os jornais e as cartas são unânimes em afirmar grandes reformas sociais no Japão, devidas sem dúvida às ideias progressistas do novo taicun (taiko, Grande Príncipe). Os nobres do império principiavam a usar trajes europeus e a empregarem carruagens em seu serviço. Todos os vapores que actualmente partem dos portos abertos ao comércio, conduzem japoneses para a Europa, que vão visitar a exposição de Paris, e muitos jovens enviados pelos seus parentes aos colégios de educação. Uma escola se ia abrir em Yokohama, dirigida por ingleses, para os filhos do país, à imitação da escola para o mesmo fim criada pelos franceses e estabelecida no distrito de Yokohama, conhecido pelo nome de Benten. O governo (japonês) adoptou um figurino francês para fardar e equipar o seu exército, tendo engajado alguns instrutores franceses. O Dr. Maggowan, chegado àquele país, apresentou uma proposta para estabelecer um telégrafo eléctrico entre a capital do império e os portos abertos, excelentemente acolhida, com os trabalhos a começar para se fixar o fio eléctrico entre Yeddo e Yokohama e crendo ficar concluído ainda este ano. Afirma-se que já o novo Taicun dirigira aos ministros estrangeiros residentes, o convite para o irem visitar ao seu palácio em Osaka e supõem todos que nesta ocasião se tratará da grande questão pendente, a abertura do porto de Hiogo”, segundo Boletim do Governo de Macau e Timor, 1867. Levadas a sério as ameaças americanas, com espelho na humilhação que a China passava, em 1868 o Japão colocou no poder com 15 anos de idade o Imperador Meiji e em galopante transformação radical se modernizou pela matriz ocidental de competição e guerra, até atingir um Império na Ásia
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasCônsules portugueses de Fuchau e Xangai As comemorações não realizadas em Hong Kong contrastam com as dos 25 residentes portugueses de Fuchau (Fuzhou), província de Fuquiam (Fujian), que prestaram “homenagem à Pátria, festejando condignamente o 4.º Centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia pelo ínclito navegador Vasco da Gama”, segundo O Porvir que refere, “No dia 17 de Maio reuniram-se na residência de monsieur Frandon, ilustrado cônsul de França e vice-cônsul de Portugal naquela cidade, e de lá expediram o seguinte telegrama COMISSÃO EXECUTIVA VASCO DA GAMA, MACAU. Esta pequena colónia portuguesa não podendo festejar grandiosamente este glorioso aniversário une-se do coração felicitando seus compatriotas. FRANDON Cônsul. Após o telegrama enviado, seguiu-se uma esplêndida garden party e um lauto banquete em que todos foram muitíssimo obsequiados por monsieur e madame Frandon, e no qual o digno cônsul fez o seguinte eloquente e agradabilíssimo brinde, que nós daqui, em nosso nome e no da pátria agradecida, penhoradíssimos lhe agradecemos: O dia de que os portugueses, não somente residentes na sua Mãe Pátria, mas em todos os países do mundo celebram solenemente hoje o quarto centenário universal, não é uma data memorável, somente na História de Portugal, é uma data memorável, direi mesmo excepcionalmente importante na História de todos, humanidade. Se o príncipe Henrique, não o da Prússia que actualmente se acha na China, mas o de Portugal que vivia no XV século, não houvesse tido a ideia genial de alargar os conhecimentos marítimos dos seus contemporâneos e de ir, sobre os frágeis navios da época, reconhecer….” O Sr. Ernest Frandon está há quinze anos encarregado do consulado português em Fuchau (Fuzhou) com o cargo de vice-cônsul de Portugal que o desempenha gratuitamente e zelando sempre “com tanta dedicação pelos interesses dos portugueses residentes naquela cidade como se eles fossem seus compatriotas, e tem também mostrado sempre tanto amor por Portugal como se ela fosse a sua própria nação. É um benemérito em toda a extensão da palavra, e são tantos, tão valiosos e desinteressados os serviços que tem prestado aos portugueses de Fuchau, que todos o estimam e lhe são gratos, e todos gostariam, assim como nós também gostaríamos, que o nosso governo recompensasse de algum modo o digno cônsul concedendo-lhe uma mercê honorífica, que ele bem a merece, e podemos até dizer que lhe é devida”, segundo O Porvir de Maio de 1898. Cônsules de Shanghai O francês Ernest Frandon desde 1883 desempenhava as funções de Vice-Cônsul de Portugal em Fuchau, cargo para o qual já a 10 de Julho de 1855 fora nomeado o negociante inglês Guilherme Halis Luce. Em 1849, o Governador Ferreira do Amaral escolhera o negociante estabelecido em Cantão, John Dent, cônsul de Portugal nessa cidade e o negociante britânico, Thomas C. Beale, para o mesmo cargo, em Xangai, até que em 1862 ocorreu a falência da Firma Dent, Beale & Co., que então representava os interesses portugueses em Xangai. A 20 de Março de 1862 “foi criado o consulado português de Neng-pó (Ningbo) em Fuchau, com sede no primeiro porto e com jurisdição na costa da China, desde Amói até Xangai, sendo nomeado Francisco João Marques para o desempenho do cargo de cônsul nesses dois portos”, Luís Gonzaga Gomes. “Reconhecida pelas autoridades chinesas, a casa Dent manteve a representação consular portuguesa em Xangai até 1862. Depois, o nível de representação diplomática acompanhou as oscilações sociais de quem assumia aquelas funções. Quando se deu a falência da casa Dent, foi nomeado como cônsul António José Homem de Carvalho” Jr. (?-1878), que emigrou para Xangai, onde veio a falecer. “Deste modo, <rebaixou-se o Consulado português da alta esfera social em que vivia o nosso cônsul (…) Para ir albergar-se em a oficina de um typografo”, segundo Alfredo Gomes Dias, que em nota refere, “De acordo com Forjaz trata-se de um comerciante, mas na List of Foreign Residents in Shanghae, publicada no North China Herald, de 23 de Setembro de 1850, em Xangai, este macaense trabalhava no North China Herald Office, como revisor.” (…) “Homem de Carvalho e José da Silva, macaenses, foram cônsules de Portugal em Xangai até à chegada do primeiro diplomata de carreira”, Anselmo Ferreira Pinto Bastos. “Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, Pinto Bastos foi nomeado cônsul de 1.ª classe em Xangai por decreto de 23 de Janeiro de 1879, sendo a 1 de Novembro de 1881 promovido a cônsul de 1.ª classe em Londres.” Já o nosso protagonista, o tenente de cavalaria Joaquim Maria Travassos Valdez, nomeado Cônsul de Portugal de 1.ª classe em Shanghai por decreto de 3 de Fevereiro de 1887, tomou posse do consulado a 8 de Junho e como cônsul geral em Xangai a 14 de Agosto de 1889. Mas a 18 de Outubro de 1890, O Macaense refere, para substituir o cônsul Valdez na sua ausência é nomeado para o lugar de vice-cônsul português em Shanghae o Sr. Bottu”, (empregado do arsenal do governo chinês). Uma desconsideração aos nossos compatriotas! “Assevera-se que o Sr. Valdez pediu ao cônsul francês para o substituir e, como era de esperar, o pedido não foi aceite, porque o cônsul francês tem muito que fazer na própria concessão com os seus inúmeros encargos. Não consta, porém, o que era de estranhar, que o Sr. Valdez se lembrasse ou tivesse a vontade de fazer o mesmo pedido aos outros seus colegas que tem menos a lidar nos seus respectivos consulados; e alguns dos quais já ficaram temporariamente encarregados do nosso consulado aqui, nomeadamente o Sr. Bonilla, cônsul de Espanha, o Sr. Carl Bock, cônsul de Suécia e Noruega, o Sr. Joseph Hass, cônsul de Áustria, em fim vários outros cavalheiros de alta posição social com prestígio, e com vasta ilustração e experiência em coisas de leis.” Mas no sábado dia 4 de Outubro de 1890 foi preso Filomeno Pereira, acusado de ter posto fogo à casa, onde morava, na rua margin 1 de Soochow Creek, num renque de casas há bem pouco incendiadas e subsequentemente reconstruídas por conta das companhias de seguro. O irmão Eusébio também ali tinha casa e participara no crime. Estavam elas asseguradas em 2500 taéis. “Este caso foi inquirido no consulado português em audiência secreta. O Sr. Valdez procedeu na terça-feira a uma visita domiciliária na casa de Filomeno Pereira”, onde se encontraram maiores vestígios do crime. Mandou os dois irmãos, um preso para a estação de polícia em Hongkew e outro para a estação central. É de interesse público “que o Sr. Valdez empregue todos os meios ao seu alcance para descobrir a culpabilidade dos incendiários”, visto que “tanto em Hong Kong como em Shanghai nestes últimos tempos têm havido muitos incêndios que provocaram suspeitas, mas não foram descobertos os criminosos, que ficaram impunes, sendo além disso beneficiados com as indemnizações das casas de seguro. O cônsul Valdez, com a pressa que tem de regressar ao reino, tem trabalhado até altas horas da noite” neste caso.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasFestejos em HK nos Clubes portugueses [dropcap style≠‘circle’]R[/dropcap]ivalidades na comunidade portuguesa de Hong Kong levam dois clubes a ter distintos programas para as celebrações do 4.º centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia. O Club Luzitano, sob a presidência do Sr. Conselheiro Agostinho Guilherme Romano, irá celebrar no dia 17 de Maio de 1898 um Te-Deum às 5,30 da tarde na Catedral de Nossa Senhora da Conceição, pelo vigário apostólico de Hong Kong, Bispo de Clazomme, com a assistência do clero espanhol, francês e italiano ali residente. Nesse dia ainda se realizará um sarau literário e musical, assim como a inauguração do busto de Vasco da Gama no Club Luzitano e a iluminação do edifício sede, que continuará até ao dia seguinte, quando se irá efectuar o baile no Club. Já o Club Vasco da Gama propõe-se fazer uma festa no seu Club, na Peel Street e uma excursão a Macau, mas a 8 de Maio de 1898 a comissão executiva da celebração do Club Vasco da Gama resolve: 1.º Que em vista do luto que cobre muitas famílias e da dor que, pela irreparável perda de entes estremecidos, actualmente as excrucia, o referido Club e os seus aderentes não fizessem nenhuns festejos aos quais se pudessem atribuir qualquer sombra de regozijo público, e que se pusesse de lado a ideia de adiamento de tais festejos por não deverem ter lugar em época tão anormal como a que estamos atravessando, e nem depois, porque, depois, o que se deverá fazer será darem-se graças a Deus por nos haver libertado do terrível flagelo que óra nos traz consternadíssimos a todos. 2.º Que se convocasse uma nova reunião, a fim de nela se deliberar sobre a melhor aplicação humanitária e patriótica a dar-se à quantia subscrita para os festejos que estavam projectados”, de M. Fernandes de Carvalho n’ O Porvir. A 9 de Maio, a Comissão Executiva da Celebração em Macau do IV Centenário publica uma circular: <devido ao irregular estado sanitário da província, não serão enviados convites especiais para os festejos oficiais aos portugueses e estrangeiros residentes fora de Macau>. Sobre a terrível epidemia da peste bubónica já dois meses antes o Hongkong Daily Press de 7 de Março de 1898 dá conta de existir na colónia inglesa. O Cônsul-Geral de Portugal em Hong Kong emite a 10 de Maio uma circular, “Tendo-me comunicado a Direcção do Club Lusitano a resolução tomada, de acordo com os sócios do Club, de se adiarem os festejos comemorativos (…) – em vista do estado de consternação geral, estando por tal motivo bastante sobressaltados os habitantes desta colónia; pedindo-me a referida Direcção ao mesmo tempo para assim o fazer constar a todos os portugueses aqui residentes, cumpro por esta forma este dever, sentindo, como representante do governo (…) este adiamento forçado…” O Porvir, cujo editor responsável é Lisbello J. Xavier, presidente do Club Vasco da Gama, a 14 de Maio cai logo sobre o Sr. Agostinho Guilherme Romano, Cônsul, referindo, “… os festejos comemorativos do Centenário da Índia, que deveriam ter lugar no Club Lusitano, seriam obra exclusivamente dos dignos sócios do mesmo Club, pelo que não teriam nem poderiam ter um carácter público” … “O Sr. Romano assinar a circular como cônsul, sendo presidente do Club, e devendo, portanto, tê-la sua Exa. expedido nesta qualidade ou tê-la feito assinar e expedir pelo sr. secretário do mesmo Club. (…) Além disso, a circular era do Club Lusitano e só aos sócios dele pode interessar, que não a todos os portugueses residentes aqui, pois que a grande maioria destes últimos não pertence àquela agremiação e, nem que quisessem, poderiam ir ao baile daqueles, por não haver onde os alojar, e, mesmo que o houvesse, sabem bem que a ‘boda ou baptizado não se deve ir sem ter-se contribuído para isso ou ter-se sido convidado’, caso que se não deu com eles, com essa grande maioria dos portugueses residentes em Hong-Kong.” “Ainda se o Club Lusitano estivesse, relativamente aos festejos do Centenário, nas circunstâncias do Club Vasco da Gama, vá que não vá. Este tem como subscritores e aderentes, para os festejos que projectara, grandíssimo número de cavalheiros portugueses residentes aqui e que são completamente estranhos a ele. Por tal motivo, a festa promovida por este, em comemoração do Centenário da Índia, teria um carácter mais nacional e seria mais da nossa comunidade, porque esta tomaria maior parte nela, e as decisões a tal respeito tomadas pela comissão executiva do Club Vasco da Gama devem, portanto, interessá-la mais do que as decisões da direcção do Club Lusitano sobre o mesmo assunto, visto que a festa projectada por aquele seria uma festa pública portuguesa, em quanto que a d’este seria uma coisa apenas dos seus sócios”, n’ O Porvir. Tristes festejos No dia 17 de Maio em Hong Kong não se canta um Te Deum na Catedral Católica em honra do centenário da Índia e somente é içada uma bandeira no Club Lusitano. O Independente de 22 de Maio diz ter a direcção do Club Luzitano resolvido “adiar os festejos projectados para comemorar o Centenário. Contudo, não podia o jubileu nacional, nesta ocasião, fossem quais fossem as circunstâncias, passar despercebido a essa associação que em tantíssimas ocasiões tem sabido honrar a nossa querida pátria, que é a de todos os seus membros efectivos; por isso o seu digno presidente, Sr. conselheiro Agostinho Guilherme Romano, nosso cônsul geral nessa colónia, no dia 17, o primeiro dos festejos, à noite depois das 7 horas, quando no Club se costuma reunir o maior número de sócios, convidou todos os presentes a subirem ao salão Luís de Camões. Aí ficaram todos agradavelmente surpreendidos vendo erguida no meio da sala, no topo de uma linda haste dourada, uma bandeira de seda, semelhante à que guiou Vasco da Gama na gloriosa viagem à Índia, e que gentilmente fora feita e oferecida ao Club pela esposa do Sr. Conselheiro Romano para cobrir o busto do grande navegador e que no referido dia devia, segundo o programa dos festejos que foram adiados, ter sido ali inaugurado. O Sr. Conselheiro tendo feito servir champanhe,” pede licença para oferecer ao Club Lusitano essa bandeira, que ficará sendo a da associação. Bandeira semelhante conserva-se na fachada do edifício do Club, arvorada durante os dias 17 a 20, período em que no Consulado está hasteada a bandeira nacional. Múltiplos brindes se fazem e ainda no dia 17 o Sr. conselheiro Romano expede para Lisboa telegramas, um como presidente do Club Lusitano para a Comissão do Centenário e outro como cônsul para El-Rei o Sr. D. Carlos, associando-se ao jubileu nacional em nome da comunidade portuguesa desta colónia, mas sem lhe dar conhecimento. No dia seguinte recebe a resposta: <Suas Majestades agradecem muito. Conde Arnoso>. Estes os únicos festejos em Hong Kong e a desencantada comunidade portuguesa logo a 1 de Julho de 1898 assiste ao júbilo do Reino Unido, quando força a China a arrendar-lhe os Novos Territórios por 99 anos para os juntar a Hong Kong, tomada em 1841 e a Kowloon, anexada em 1860.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasFestejos de 1897 e o cônsul de Hong Kong [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]residente da Direcção do Club Lusitano de Hong Kong em 1893, o conselheiro Agostinho Guilherme Romano em 1897 acumula já essa função com a de Cônsul. Da inicial proposta de se fazerem as celebrações da partida de Vasco da Gama para a Índia nada encontramos em Macau registado nos jornais e em Hong Kong, só no Club Vasco da Gama é festejado. Este Club, situado na Peel Street em Hong Kong, envia um folheto ao jornal de Macau, O Independente que o publica a 21 de Novembro de 1897 com o título, “Memória dos festejos celebrados no Club de Recreio, hoje Vasco da Gama, por ocasião do IV Centenário da Índia, na noite de 8 de Julho de 1897, e onde, com precedência da fotografia do quadro alegórico existente na sala do referido Club em Hong Kong, se faz desenvolvida narração da maneira briosa e patriótica como a festa correu.” Este o único registo que encontrei da comemoração do IV Centenário da partida de Lisboa da primeira armada para a Índia comandada por Vasco da Gama. No estrangeiro, o IV Centenário é comemorado em Munique no dia 14 de Fevereiro de 1898, na grande sala do Instituto das Artes e Indústrias da Sociedade Geográfica daquela capital com uma sessão solene e festival em honra de Vasco da Gama, que obteve um êxito brilhantíssimo. “Na presença dos presidentes de honra, suas altezas o príncipe Luiz e a princesa Thereza, do presidente da câmara alta, conde de Lercheufeld e de um selecto concurso de damas e cavalheiros fez o professor Eugénio Oberhummed uma descrição viva e interessantíssima dos conhecimentos geográficos na Idade Média, auxiliando-se de uma grande quantidade de mapas e cartas soberbamente coloridas pertencentes ao rico tesouro da Universidade. O Sr. Dr. Haunnerich, conferente da sessão, apresentou em fases eloquentes uma fiel e pitoresca imagem das navegações do grande descobridor e herói marítimo português e dos tempos que o precederam e lhe sucederam, comunicação científica e eloquente, principalmente baseada em novos documentos e estudos dos arquivos de Lisboa. Causou viva sensação no auditório a apresentação feita pelo pintor Adolpho Schmidt Celle, de uma cópia em tamanho natural do retrato original de Vasco da Gama existente no Museu de Lisboa. O painel ficará em exposição na Liga Artística”, notícia do Echo Macaense de 6 de Março de 1898. Tricas com o Cônsul Português Em 1898 publicam-se em Hong Kong dois jornais em língua portuguesa, O Provir, editado por Lisbello Jesus Xavier, presidente do Clube Vasco da Gama, com constantes reparos ao Sr. Conselheiro Agostinho Guilherme Romano, cônsul português desta cidade e presidente do Club Lusitano, que tem a seu favor o jornal Extremo Oriente. É numa rivalidade entre clubes portugueses com os seus jornais que o ambiente da preparação em Hong Kong do IV Centenário se desenrola. Ambos apenas estão de acordo ao pedir para Macau adiar por dois dias as datas dos festejos, para assim calhar no fim-de-semana de 21 e 22 de Maio, a permitir aos sócios aí se deslocarem. Não houve resposta de Lisboa. De Macau, o Echo Macaense de 13 de Março de 1898 envia um recado na primeira página do jornal, “Aos nossos compatriotas em Hongkong. É deveras penoso ler o que estão publicando os nossos dois colegas de Hongkong, o Extremo Oriente e O Porvir, a propósito da dissidência originada da formação da comissão executiva do centenário da Índia. Como de ambos os lados vieram à imprensa liquidar as suas responsabilidades, diremos francamente o nosso parecer, que, pelo que nos consta, se ajusta com o sentir geral das pessoas imparciais. Em vista de factos e documentos que vieram à luz da publicidade, se infere que de ambos os lados houve precipitação e falta de savoir faire. Em primeiro lugar é evidente que a comissão directora do Club de Recreio, tendo conhecimento de que havia sido convocada pelo Sr. Cônsul Romano uma reunião magna da comunidade portuguesa, para o dia 20 de Setembro [de 1897], no Club Lusitano, afim de a assembleia eleger uma grande comissão para elaborar o respectivo programa dos festejos do centenário, não devia de modo algum expedir na véspera, isto é, no dia 19 de Setembro, um expresso, convidando todos os sócios do Club, os seus amigos, e a comunidade em geral para uma reunião no mesmo dia 19 de Setembro, a fim de tratar dos festejos do centenário da Índia. Uma tal reunião, na véspera da outra, não podia deixar de ser considerada uma provocação, como realmente o foi. D’ outro lado, é também certo que, tendo o Sr. cônsul Romano convocado uma reunião magna da comunidade portuguesa no Club Lusitano, para eleger uma comissão executiva, devia ter deixado completamente ao alvedrio da assembleia eleger a comissão por meio do escrutínio secreto, o que evitaria toda a discussão acrimoniosa, e daria óptimo resultado, porque o bom senso da maioria teria pronunciado com acerto o seu veredictum. Mas longe de seguir esta orientação, o Sr. Cônsul Romano apresentou uma lista de 32 cavalheiros que propunha para compor a grande comissão. Esta proposta tirou à assembleia a liberdade de eleição, e inutilizou a reunião”. Não havia nada a censurar se o cônsul “desde o princípio tivesse agregado a si alguns dos nossos compatriotas mais conspícuos, constituindo entre si uma comissão, que levasse a efeito os festejos”. “Quis, porém, que a comissão fosse da sua escolha, e, ao mesmo tempo, fosse eleita, ou nomeada por aclamação, pela comunidade, sobre proposta dele. Não conseguiu o que desejava, e teve de dissolver a assembleia, dando lugar às tristes dissensões que aí vemos. Deu-se um passo falso, que trouxe consequências lamentáveis. Nas actuais circunstâncias, afigura-se-nos dificílima uma reconciliação; mas o que é fácil, e muito digno de todos, é a abstenção de mútuas hostilidades”. Está levantada “uma polémica desabrida em que de ambos os lados se procuram deprimir e rebaixar uns aos outros! É altamente triste tal situação!” “Ao Sr. Romano, que pela sua idade, posição social, e bom conceito de que goza, deve dar bom exemplo em tudo, pedimos que dê mais uma prova de patriotismo, de conduta, e de bom senso, e seja o primeiro a apresentar o ramo de oliveira, mandando cessar desde já essa triste polémica, e esses longos e fastidiosos artigos, que sob o pretexto de o defender, tendem a cavar mais funda a sizunia entre os nossos, e a acumular sobre o Sr. Romano mais ódio e mais rancor, falando dos seus meios de fortuna, que toda a gente conhece, e não é preciso assoalhar ao público com o fim de deprimir os outros. Que os nossos compatriotas de Hongkong façam as festas como cada grupo quiser e puder, mas que se abstenham de mútuas hostilidades, é o que pedimos em nome de bom senso, de cavalheirismo, e de patriotismo”, apelo do Echo Macaense de 13/3/1898. Faltam nove semanas para a realização das comemorações e dois diferentes planos de festejos vão sendo tratados em Hong Kong, ainda com a esperança do adiamento das datas em Macau para em fim-de-semana aí ir celebrar.