Abate de motociclos | Resultados superam expectativas

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]ais de 5700 proprietários candidataram-se ao apoio do Governo para abate de motociclos altamente poluentes, cujo prazo terminou na passada sexta-feira, indicou a Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental (DSPA).

O plano de apoio financeiro, delineado para “melhorar a qualidade do ar nas vias públicas”, destina-se a motociclos ou ciclomotores com motor a dois tempos e prevê a atribuição de 3500 patacas por cada veículo entregue para abate.

Em comunicado, a DSPA informou ter recebido 5736 requerimentos, entre 15 de Fevereiro e 30 de Junho. A adesão “foi mais activa e positiva do que o previsto”, sublinhou o organismo.

O Fundo de Protecção Ambiental e de Conservação Energética tem 75 dias, a partir da data da candidatura, para decidir sobre a concessão do apoio que, se aprovado, é pago no prazo de dois meses.

No final do ano passado, 250.450 veículos circulavam nas estradas de Macau, mais de metade dos quais de duas rodas, segundo dados oficiais.

Ainda na sexta-feira, entrou em vigor um novo regulamento administrativo que define valores-limite de emissão de gases de escape poluentes dos veículos em circulação e métodos de medição.

3 Jul 2017

Higiene alimentar | IACM detecta 20 falhas em meio ano

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ó na primeira metade deste ano, o Centro de Segurança Alimentar detectou um total de 20 casos de equipamentos ou instalações de produção de alimentos que não atendiam aos requisitos de higiene. De acordo com um comunicado do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM), foram tomadas medidas para restringir o fornecimento dos alimentos em causa e melhorar as condições higiénicas dos estabelecimentos.

Além disso, foram emitidos 33 autos de notícia relativamente à venda e recolha de produtos provenientes de contrabando. O Centro de Segurança Alimentar promete continuar a combater as actividades de contrabando de produtos alimentares, através da fiscalização e reforço da recolha e análise de informações.

Entre Janeiro e Junho, o Centro de Segurança Alimentar fez cerca de 5400 inspecções a produtos alimentares e respectivos estabelecimentos, tendo recolhido mais de 1600 amostras. Foram encontradas anomalias em duas das amostras testadas, envolvendo o adicionamento ilegal de ácido bórico ou bórax e a presença de aditivos alimentares superiores aos limites permitidos.

Os trabalhos de rotina da estrutura sob a alçada do IACM incluem inspecções aos estabelecimentos que fornecem produtos alimentares em Macau, recolha de amostras de alimentos e acompanhamento, bem como análise de incidentes de segurança alimentar locais e do exterior. No que toca a casos ocorridos fora de Macau, foram emitidos 28 alertas ao sector alimentar.

Quanto a casos de gastroenterite colectiva, o centro registou 15 no primeiro semestre do corrente ano. Após investigação e análise, concluiu-se que as causas foram principalmente de origem bacteriana, relacionada com processos deficientes de produção de alimentos: contaminação cruzada de alimentos cozidos e crus, e acondicionamento impróprio dos alimentos.

3 Jul 2017

Literatura | Granta unificada com edição simultânea em Portugal e no Brasil

Textos de autores portugueses e brasileiros, escritos sem alterações à ortografia, numa revista que vai ser publicada em simultâneo dos dois lados do Atlântico. A Granta quer chegar a escritores de todo o universo lusófono

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] revista literária Granta Portugal terá, a partir de 2018, uma edição única em língua portuguesa, publicada em simultâneo em Portugal e no Brasil pela Tinta-da-China, com textos de autores portugueses e brasileiros e sem alterações ortográficas.

Em declarações à Lusa, a editora portuguesa Bárbara Bulhosa apresentou esta nova vida da revista, a “Granta unificada”, como “um projecto literário de língua portuguesa – de modo nenhum um projecto português”, em que se manterão a periodicidade semestral e o director, o jornalista Carlos Vaz Marques.

“Creio, aliás, que não há precedente e que será a primeira vez que teremos uma revista literária com edição simultânea em Portugal e no Brasil”, observou.

“Já como Granta Portugal dávamos uma atenção especial à literatura brasileira, tendo publicado autores brasileiros em três números diferentes, [e] queremos contribuir, deste modo, para uma aproximação entre todos aqueles que se interessam pela literatura no nosso idioma, independentemente do espaço geográfico de que provêm”, sublinhou.

Se o modelo da revista sempre assentou em edições temáticas em que eram encomendados textos a diversos autores, a partir de 2018, o leque de autores será bastante mais alargado, indicou Bárbara Bulhosa.

“Com a edição simultânea no Brasil e em Portugal, passaremos a convidar a cada número escritores brasileiros e portugueses, enriquecendo em muito a diversidade e o interesse da revista. Estamos, aliás, interessados em autores de todo o mundo onde se fala e escreve em língua portuguesa”, referiu.

Objecto de coleccionador

Até agora, todos os textos da Granta têm sido sempre acompanhados por uma ilustração, com um ilustrador convidado em cada número, existindo também sempre um ‘portfolio’ fotográfico, traduzindo visualmente o tema de cada edição pela lente de um grande fotógrafo.

A partir do número 11, anunciou a directora editorial da Tinta-da-China e Tinta-da-China Brasil, “a curadoria de imagem da Granta estará a cargo do fotógrafo Daniel Blaufuks, que já viveu no Brasil e acaba de ser distinguido em Portugal com o mais importante prémio para as artes visuais que é atribuído em Portugal, o prémio AICA”.

“Estas duas particularidades visuais – a ilustração dos textos e o ‘portfolio’ fotográfico – dão à Granta um carácter único, tornando-a um objecto bonito e requintado, para coleccionar”, observou.

A Granta Portugal foi criada em 2013, com periodicidade semestral, e saíram até agora nove números, estando em preparação o décimo, que sairá em Outubro ainda apenas em Portugal, pelo que será o 11.º, programado para Maio de 2018, o primeiro com edição simultânea em Portugal e no Brasil.

“Na altura em que surgiu a Granta Portugal, existia ainda uma edição brasileira da revista que, entretanto, deixou de ser publicada”, explicou a editora, acrescentando: “Está na altura de devolvermos a Granta aos leitores brasileiros, num projecto renovado, alargado, mais ambicioso e capaz de fazer pontes entre o Brasil e Portugal”.

“Como marca literária internacional, a Granta foi responsável pela afirmação de grandes nomes da literatura de língua inglesa, como Salman Rushdie, Julian Barnes ou Martin Amis, [e] cada número da revista é composto em idêntica proporção por textos originais e por textos traduzidos a partir de edições da Granta noutras línguas, em particular da Granta de língua inglesa, cujo património de décadas é extraordinário”, salientou.

“Começámos a medo, comprometendo-nos a fazer apenas quatro números, para evitar que o projecto pudesse virar fracasso. O sucesso até a nós surpreendeu: venderam-se oito mil exemplares do primeiro número, um pouco menos daí para cá, mas muito acima das nossas melhores expectativas”, comentou Bárbara Bulhosa.

Os cerca de mil assinantes que a revista tem em Portugal também ajudam a garantir a viabilidade do projecto, referiu a responsável, anunciando que “haverá também uma campanha de assinaturas no Brasil, oferecendo vantagens consideráveis a quem assinar a revista”.

3 Jul 2017

Taiwan | Pequim opõe-se “firmemente” a venda de armas americanas

Acabou oficialmente a lua-de-mel entre os presidentes Trump e Xi Jinping. O motivo é simples: os americanos acabam de vender armas a Taiwan no valor de muitos milhões.

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] China anunciou sexta-feira que se “opõe firmemente” à venda de armas pelos Estados Unidos à Taiwan. O Governo do Presidente Donald Trump autorizou a venda de armas por 1,3 mil milhões de dólares a Taipé, incluindo bombas guiadas, mísseis e torpedos, anunciou o Departamento de Defesa norte-americano na quinta-feira. A transacção também inclui actualizações de armas que Taiwan já possui, incluindo um radar de defesa aérea e um sistema de guerra electrónica.

Pequim “protestou solenemente junto dos Estados Unidos”, sublinhou Lu Kang, um porta-voz do ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, durante uma conferência de imprensa diária. “Taiwan é uma parte indissociável do território chinês e nós nos opomos firmemente em relação a esta venda de armas”, acrescentou.

A embaixada chinesa já havia reagido à questão, dizendo que a venda de armas para Taiwan “vai prejudicar a confiança mútua e a cooperação entre a China e os Estados Unidos”.

O Presidente chinês, Xi Jinping, encontrou-se em Abril com o seu homólogo norte-americano, Donald Trump, na residência pessoal do bilionário republicano, na Florida. As relações bilaterais pareciam, desde então, ter reaquecido. Entretanto, a lua-de-mel não durou muito, especialmente porque Trump mudou o tom em relação à China, na quinta-feira, devido à questão nuclear norte-coreana.

Trump anunciou, pela primeira vez, sanções contra um banco chinês acusado por Washington de realizar actividades ilícitas com a Coreia do Norte, que desenvolve um programa nuclear e ameaça constantemente os Estados Unidos.

Novas armas ameaçam navios dos EUA

Entretanto, num artigo para revista The National Interest, o especialista Kris Osborn afirma que a marinha norte-americana poderá ter problemas sérios devido ao desenvolvimento dos mísseis hipersónicos. O perigo principal deriva dos porta-aviões se moverem muito lentamente.

Osborn aponta para a existência de programas de países como a China, com o seu míssil DF-ZF, e a Rússia, que estão a desenvolver actualmente armamento hipersónico, e acrescenta que existe uma tendência notória e um interesse de outras nações em ostentar tecnologias hipersónicas. Por isso, a Força Aérea dos EUA está a acelerar os seus programas deste tipo de armas, com o objectivo de combater qualquer ameaça.

De acordo com fontes militares citadas pelo especialista, enquanto que um míssil de cruzeiro voa a uma velocidade de 956 quilómetros por hora, as armas hipersónicas serão capazes de atingir velocidades de mais de Mach 5 (5 vezes a velocidade do som).

Nesse sentido, os Estados Unidos progrediram há vários anos no desenvolvimento de aeronaves e mísseis hipersónicos, adiciona Osborn. Entre os novos armamentos, o analista destaca o X-51 Waverider, um míssil de cruzeiro hipersónico. Osborn também acrescenta, citando o chefe científico da Força Aérea dos EUA, Geoffrey Zacharias, que os voos não tripulados a velocidades hipersónicas poderiam ser uma realidade em 2030, e o seu uso múltiplo não será possível até pelo menos 2040.

“Uma vez que os veículos hipersónicos podem viajar numa trajectória de voo do tipo parabólico, que se elevam muito alto na atmosfera para atingir velocidades hipersónicas antes de voltar a altitudes mais baixas, o desenvolvimento de aviões não tripulados recuperáveis é muito mais difícil dado o nível de autonomia necessário para os veículos hipersónicos na descida”, aponta o especialista. As vantagens de voo de um avião hipersônico não tripulado seriam principalmente a velocidade e o aumento do poder de destruição, concluiu Kris Osborn.

3 Jul 2017

A ressurreição da rosa

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz a lenda que rosas nascidas no Inverno são prenúncio de mau agouro. Talvez por isso a exclamação do rei não tenha sido de desconfiança mas de receio, de súbita apreensão, nesta altura ainda ele plantava uma nação feita de baldios por todas as áreas recentemente conquistadas e a cavalo conhecia bem o país e dele tirava amplas vantagens de generosos acolhimentos. As rosas são comestíveis e não há mesmo sinal de mesquinhez por parte de tão gentil rei.

Distantes andamos contudo desses tempos mas, neste tão lustroso em que temos a maior honra de viver, outrora como agora tive a mesma interrogação em pleno Inverno: rosas em Janeiro? Mudei logo e pensei: o mundo é um grande país e as rosas florescem em qualquer Estação, os anos são convenções de medida para o Tempo – o nosso tempo Alfa, do mandatário, do coronário, dos órgãos gigantes em pequenos tufos de carne e esqueleto que já sabe que vamos morrer ou somos mortais por eles, por causa deles, e que seria bom para já uma Humanidade a pilhas, mudadas a cada Glaciar. A terna noção de “estufa” foi rompida como sabem. Hoje a temperatura, as condições, são fórmulas absolutamente radicais, neve-fogo, ventos-calmarias, abrasa-gela… Um pontapé sem precedentes na nossa secular vida bucólica dos queridos tempos de antanho.

Penso que o local que se mantém muito igual a si mesmo desde o tempo em que Deus lá nasceu é mesmo o deserto, tendo levado, claro está, o rombo da gigantesca pegada, mas mais em altura do que em largura… a sua robustez pode ainda ser considerada como a manutenção de uma ordem e por ela nasce o ser eterno que é a Rosa de Jericó.

Ela, porém, não é a rosa efémera procurando o instante, a colorida e elegante menina dos olhos em botão, a enjeitada; ela é a eterna, a robusta, a densa, a mais complexa, a vertiginosa evidência de que tocamos numa outra “plantação”. Ela tem o dom de fechar, secar e morrer, e mesmo nas escaldantes areias se lhe tocamos morta, ela está fria não passando de uma ressequida imagem de um esqueleto, mas podemos voltar e ela já não estar por lá, levada pelos ventos. Sem dúvida, foi-se para ressuscitar mais para além.

Ao primeiro dia ela rola, ao segundo sai do sepulcro e ao terceiro torna-se verde. Esta rosa não é unida à Estação. Assim, basta-lhe condições propícias da ordem dos bons ventos e de contacto imediato com pequenas concentrações de água, para o sucedido. Por aqui as rosas já tinham de novo nascido na estação delas, mas as do Inverno estavam intactas na sua lei fatal, não querendo falar na estrutura linguística das “inverdades” como sinal abrupto de Leviatã, nem em “inveracidades” da ordem do probabilístico, pois está provado que o que está certo são sempre as contas pequenas.

Sabemos, no entanto, que na catástrofe só enumeramos números grandes, a rapidez é grandiosa e quase sempre rica em génio arrasador, pois que “tomar gosto a” não é um efeito fúria mesmo que se possa ser viciado em desportos radicais “tomar gosto” é uma educação pelo gosto, onde há pilares de benfeitoria que atenuam o risco do impacto. Dir-se-ia que é um aprendizado de amor, se os instintos e a sensibilidade são espontâneos, naturais, por vezes deliciosamente fortes e até brutais, épicos, já o amor fica longe de tudo isto e por ser tão diferente é preciosa uma educação de forma a não corromper a sua designação.

E no distrito do rei das rosas passou um fogo devorador, anunciado já pelas minhas próprias rosas, que forças desceriam na equação simples de um numeral consequente na ordem da manifestação de três para três. É aqui que perdemos o livre arbítrio e jamais na terra de ninguém onde toda a razão nos pertence – pensei muito no rei – no rei das rosas que semeou pinhais e namorou gentilmente por ali e fez sementeiras de filhos, que namorava em nichos escondidos nas florestas. Se lhe ardesse o seu pinhal que ele não viu crescer à distância de cem anos, se não foi excessivo visionarismo, se o visse arder em sonhos, se os sonhos ardem… enfim, pensei nele como nas rosas para não ter a doente propagação de um coro de outros condenados.

A rosa é ,no entanto, «sem porquê»… a rosa é sem porquê: floresce porque floresce, não cuida de si própria, não pergunta se a vemos. Ângelus Silesius, na sua bem conhecida obra de aforismos, qual novo florilégio, o jansenista teólogo que no instante das grandes lutas religiosas se manteve em relativa paz com os luteranos da sua cidade – ele o era de origem -, teve esta metáfora fundadora da Rosa como místico e como teólogo. Os dísticos são belos e descrevem uma profunda raiz do pensamento Ocidental como síntese de uma abordagem.

Tanto de ressequido tem a terra que habitamos que mesmo agora gostaríamos de dizer como Silesius : “Gosto de ouvir as trombetas. O meu corpo, ao seu clamor, de sob a terra despertará e voltará a ser meu“. A Rosa de Jericó! Ouve-se cantar pela zona do impacto melodias nada agrárias que o dinheiro que salva é o mesmo que mata e o dinheiro arde se for todo em papel e não houver mais rosas, nem ouro que o funda numa outra riqueza que também já não vem nos mapas pois que foi ele o cúmplice e combustível por onde a fornalha se agiganta.

“ Amigo, onde quer que estejas, não te deixes lá ficar, é preciso incessantemente partir de luz em luz.”

Os que partiram já não estão aqui, como é óbvio, os que ficaram estão no mesmo sítio onde a luz não penetra por entre a negra folhagem, não há comunicação alquímica com a haste, aquele segredo que lhe diz.. .cresce, cresce… preside ao estrondo o ruído, aceleram-se os requerimentos, armazenam-se mantimentos. Investiga-se quem tem o desplante na imprensa estrangeira inventar boatos falsos acerca da orquestração territorial, e, amealham-se víveres que bem poderão servir para outra imponderabilidade.

Faltam duas. Isto se não nascerem mais rosas em Janeiro.

3 Jul 2017

Comércio | Portugal ainda não consegue exportar plenamente para a China

AICEP quer fim de “entraves ainda existentes” às exportações

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] administrador-executivo da AICEP, António Silva, fez hoje votos para os “entraves ainda existentes” à exportação de “muitos produtos alimentares portugueses” para a China sejam “objecto de negociação entre as autoridades competentes” dos dois países.

“Muito gostaríamos que os entraves ainda existentes para a exportação de muitos produtos alimentares portugueses fossem objecto de negociação entre as autoridades competentes dos nossos países”, afirmou o líder da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), em declarações no Fórum Portugal-China, um evento realizado na Assembleia da República, que acolheu uma comitiva de empresários chineses provenientes da província de Guangdong, e aberto à participação de deputados e empresários portugueses.

António Silva começou por sublinhar a importância de Guangdong, a província chinesa “mais fortemente orientada para o exterior, para a exportação e internacionalização”, onde se localizam as principais três zonas especiais de comércio e investimento, Shenzhen, Zhuhai e Shantou, e deu conta do “relacionamento excepcional, a todos os níveis”, entre Portugal e a China. “Portugal e a China têm um relacionamento excepcional a todos os níveis. Estamos talvez no melhor momento deste nosso relacionamento”, disse.

O presidente da AICEP manifestou-se “optimista” em relação à participação portuguesa no projecto “Uma faixa, uma rota”, que a China está a desenvolver e que será o chapéu das relações económicas entre o gigante asiático e a Europa. “O posicionamento estratégico de Portugal transcontinental e transatlântico permite ser optimista em relação à nossa participação no projeto”, afirmou.

“No âmbito da iniciativa ‘Uma faixa, uma rota’, destacamos como oportunidades para Portugal as áreas dos Transportes e Logística, Infra-estruturas de transportes portuárias e respectivas zonas logísticas associadas, designadamente, Sines, que neste contexto assume uma importância estratégica para o comércio mundial”, especificou o responsável.

Neste contexto, Silva destacou a importância da assinatura do memorando de entendimento entre o Haitong Bank, o Banco de Desenvolvimento da China e a AICEP visando a identificação de potenciais grupos chineses interessados no estabelecimento da zona industrial e logística de Sines.

Na área das energias renováveis, a prioridade dada à utilização de energias não poluentes ao longo da rota, tendo em conta o conhecimento e a oferta no sector, “Portugal pode ser um parceiro muito interessante”, disse ainda o responsável português, que valorizou ainda o potencial português nos domínios da economia do mar e do know-how das empresas lusas em áreas como as da urbanização inteligente – desenvolvimento de “smart cities” -, ou agricultura moderna, etc.

O valor das exportações de bens e serviços portugueses para a China em 2016, de acordo com a AICEP, atingiu os 861 milhões de euros, com uma taxa de cobertura da ordem dos 50%. No entanto, sublinhou António Silva, 2016 foi um ano com resultados ligeiramente inferiores aos de 2015.

“Em contrapartida, no período de Janeiro a Abril de 2017, comparado com o período homólogo de 2016, as exportações de bens e serviços portugueses para a China aumentou 61%, pelo que estamos otimistas em relação aos resultados de 2017, que deverão atingir um recorde histórico nas nossas relações económicas”, disse.

Depois de uma queda em 2016, as trocas comerciais entre a China e os países de língua portuguesa subiram 40,41% até Abril, em termos anuais homólogos, atingindo 34,17 mil milhões de dólares, indicam dados oficiais.

Dados dos Serviços de Alfândega da China, publicados ontem no portal do Fórum Macau, indicam que a China comprou aos países de língua portuguesa bens avaliados em 24,41 mil milhões de dólares – mais 50,93% – e vendeu produtos no valor de 9,75 mil milhões de dólares– mais 19,56%.

O Brasil manteve-se como o principal parceiro económico da China, com o volume das trocas comerciais bilaterais a cifrar-se em 24,31 mil milhões de dólares entre Janeiro e Abril, um valor que traduz um aumento anual homólogo de 40,50%.

As exportações da China para o Brasil atingiram 7,67 mil milhões de dólares, reflectindo uma subida de 29,51%, enquanto as importações chinesas totalizaram 16,63 mil milhões de dólares, mais 46,19% face aos primeiros quatro meses do ano transacto.

Com Angola – o segundo parceiro chinês no universo da lusofonia – as trocas comerciais cresceram 61,83%, atingindo 7,60 mil milhões de dólares.

Pequim vendeu a Luanda produtos avaliados em 597,05 milhões de dólares – mais 27,71% – e comprou mercadorias avaliadas em 7,0 mil milhões de dólares – reflectindo uma subida de 65,60%.

Já com Portugal, terceiro parceiro da China entre os países de língua portuguesa, o comércio bilateral cifrou-se em 1,61 mil milhões de dólares – menos 5,11% –, numa balança comercial favorável a Pequim.

A China vendeu a Lisboa bens na ordem de 1,03 mil milhões de dólares – menos 20,34% – e, em contrapartida, comprou produtos avaliados em 583,73 milhões de dólares, mais 43,61% face aos primeiros quatro meses do ano passado.

Os dados divulgados incluem – como sempre incluíram – São Tomé e Príncipe, apesar de só ter passado a fazer parte da ‘família’ do Fórum Macau no final de Março, após a China ter anunciado o restabelecimento dos laços diplomáticos com São Tomé e Príncipe, dias depois de o país africano ter cortado relações com Taiwan e reconhecido Pequim.

O comércio entre São Tomé e Príncipe e a China é, contudo, insignificante: entre Janeiro e Abril cifrou-se em 1,71 milhões de dólares, valor que corresponde na totalidade às exportações chinesas – que caíram quase um terço -, já que as compras de Pequim ao pequeno arquipélago africano estavam a zero.

 

Moçambique | Bancos tentam ganhar mercado nas empresas chinesas

A Economist Intelligence Unit (EIU) considera que o reajustamento do sector financeiro e restrições na política monetária chinesa vão influenciar a actividade das empresas em Moçambique apesar dos esforços dos bancos moçambicanos para atrair estas empresas.

“Com a procura interna de serviços financeiros em Moçambique retraída pela iliteracia financeira e pela natureza informal da economia, direccionar os esforços para as empresas chinesas pode dar uma oportunidade de expansão aos bancos nacionais”, escrevem os peritos da unidade de análise económica da revista britânica The Economist.

No entanto, acrescentam: “Duvidamos que as empresas chinesas vão confiar fortemente nos bancos nacionais quando operam em Moçambique, principalmente porque conseguem geralmente aceder a melhores negócios e serviços na China”.

Numa nota enviada aos investidores sobre os esforços da banca moçambicana para captar mais clientes empresariais chineses, a que a Lusa teve acesso, os analistas notam que apesar destes constrangimentos, “o forte reajustamento em perspectiva no sector financeiro chinês e as condições monetárias mais apertadas a partir de 2018 deverão influenciar o ritmo da expansão das empresas chinesas em Moçambique”.

Exemplificando com o Millennium bim, de capitais portugueses e o maior em Moçambique em termos de quota de mercado de activos, que no princípio deste mês anunciou um serviço de troca de moeda externa para as empresas chinesas, a EIU diz que esta é uma tendência do mercado seguida por outros bancos como o Standard Bank e a Société Générale.

“Esta tendência do sector bancário de melhorar a sua oferta às empresas chinesas reflecte o facto de a sua presença comercial estar a crescer”, salienta a EIU, lembrando os negócios de 6 mil milhões de dólares no projecto de gás natural liquefeito, no qual a petrolífera estatal chinesa tem uma quota de 20%, e o de 1,4 mil milhões de dólares nos caminhos-de-ferro, um empreendimento no qual a China National Complete Engineering tem 50%.

“O sector financeiro de Moçambique é demasiado pequeno para oferecer crédito a estes megaprojetos, mas os bancos estão provavelmente na esperança que estas grandes empreitadas encorajem outras firmas privadas chinesas a expandir a sua presença no país”, nomeadamente no sector dos serviços, conclui a EIU.

2 Jul 2017

Eleições | Habitação é prioridade no programa de Melinda Chan

Melinda Chan, líder da lista Aliança Pr’a Mudança, apresentou ontem o seu programa político para as eleições legislativas e garante que a habitação é a sua prioridade, defendendo casas só para os residentes que querem adquirir o seu primeiro apartamento

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ão seis pontos, que abrangem várias áreas, mais a mais importante é mesmo a habitação. Um dia depois de a associação a que dá apoio, a Sin Meng, ter divulgado um inquérito que fala das dificuldades de habitação dos mais jovens, Melinda Chan apresentou o seu programa político com a equipa que compõe a Aliança Pr’a Mudança.

Deputada à Assembleia Legislativa há oito anos, Melinda Chan concorre novamente tendo a habitação como prioridade. A deputada quer que os novos aterros tenham pedaços de terra destinados a casas que só podem ser compradas por residentes que estão a investir pela primeira vez.

“Vamos ter mais terrenos, graças aos novos aterros, e temos de pressionar o Governo a construir mais casas, não apenas para habitação pública, mas para os jovens”, disse ontem à margem da apresentação oficial do programa.

Melinda Chan citou o inquérito a que deu a cara. “Mais de 70 por cento dos inquiridos gostaria de comprar a sua casa. É necessário um espaço para habitações que sejam adquiridas por residentes e que não têm casa.”

Jorge Valente, número três da lista, deu como exemplo um espaço na zona A dos novos aterros. “Os residentes de Macau que estão a comprar casa pela primeira vez têm de ter prioridade. O Governo, quando desenvolver essa área, deve incluir essa directiva.”

Desenvolver o aeroporto

Outro objectivo da Aliança Pr’a Mudança passa pelo desenvolvimento do aeroporto, para que tenha um maior papel no transporte de mercadorias. Melinda Chan defende a criação de um complexo de armazéns no futuro aterro E. Tudo para dar uma maior resposta aquando da conclusão da nova ponte Hong Kong-Macau-Zhuhai e do projecto da Grande Baía, com a região de Guangdong.

“O Governo tem de desenvolver boas políticas, o aterro E vai estar muito perto do aeroporto e podemos utilizar o espaço para esse transporte de mercadorias. O aeroporto não está a ser plenamente utilizado, e ainda há espaço nesse sentido, sobretudo na relação com os países de língua portuguesa”, disse Melinda Chan.

A lista acredita ser necessária uma flexibilização na contratação de trabalhadores não residentes, para ajudar as pequenas e médias empresas (PME).

“Deve existir uma flexibilização da mão-de-obra estrangeira, porque a actual lei precisa de ser actualizada. Foi feita numa altura em que ainda existia indústria fabril e as duas que ainda conseguem tirar proveitos da lei são da construção civil e da restauração. Não queremos aumentar o número de trabalhadores, queremos apenas flexibilizar”, disse Jorge Valente.

A lista Aliança Pr’a Mudança é ainda composta por Kenny Fong, presidente da Associação Comercial Federal Geral das PME, Osborn Lo, presidente da Associação Comercial Federal da Indústria de Convenções e Exposições, Leng Leng Fok, ligada à Associação Budista Geral de Macau, Evans Iu, da Associação de Beneficência Sin Meng, e ainda Brian Wu, vice-presidente da direcção do comité da juventude Sin Meng.

 

Três assentos não é impossível

Jorge Valente será o número três da lista, a seguir a Andy Wu, ligado aos sectores do turismo e PME. Ainda assim, o candidato tem confiança na obtenção de um lugar no hemiciclo. “É difícil, mas não é impossível, e as estatísticas do passado mostram que é possível eleger um terceiro lugar. A participação dos jovens é importante para a democracia e para a manutenção da política ‘Um País, Dois Sistemas’. Se continuo ou não a participar na política, depende do apoio que tiver”, apontou.

Sufrágio universal? “Somos uma equipa realista”

Um dos primeiros pontos do programa de Melinda Chan faz referência à necessidade de democratização do sistema político, com a eleição de mais deputados pela via directa. Sobre o sufrágio universal, Jorge Valente diz que há apoio, mas preferem ir devagar. “A longo prazo defendemos. Achamos que, dentro de quatro a oito anos, deveria haver mais deputados eleitos pela via directa. Defendemos o sufrágio universal, mas não podemos dizer se é daqui a quatro a oito anos. A nossa equipa é bastante realista.”

O programa, alguns pontos

– Cancelar o regime de comissão de serviços para os cargos de chefias de departamento e divisão na Função Pública

– Aperfeiçoamento dos procedimentos de avaliação e concessão de subsídios por parte da Fundação Macau e outros fundos

– Rever o Código Penal para que a lesão corporal dos menores praticada por não familiares seja qualificada como crime público

– Acelerar o desenvolvimento dos recursos de turismo marítimo

– Quebrar os monopólios e reforçar a fiscalização sobre as concessionárias exclusivas de utilidade pública

2 Jul 2017

Eleições | Nova Esperança alerta para votos à distância

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] lista Nova Esperança, encabeçada por José Pereira Coutinho e Leong Veng Chai, entregou uma carta à Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa (CAEAL) onde alerta para a existência de casos ilegais de votos à distância.

“Fomos informados de que algumas listas candidatas às próximas eleições da Assembleia Legislativa têm estado a sugerir aos seus apoiantes que, no caso de não poderem estar presentes na RAEM na altura do acto eleitoral, por motivos profissionais ou por estarem a frequentar o ensino superior, para cederem os seus documentos de identificação a familiares e irmãos gémeos para votarem em nome deles”, lê-se na carta.

Assinada por Rita Santos, mandatária da lista, a carta alerta para a ocorrência de fraude eleitoral e a necessidade de adopção de medidas. “Sugere-se que no momento anterior à entrega do boletim de voto sejam verificadas as impressões digitais do votante consoante o que consta nos registos oficiais para a obtenção do BIR. Tal acontece em muitos actos eleitorais de países democráticos, como é o caso de Singapura.”

“Tendo em consideração que, no dia do acto eleitoral, muitas centenas de milhares de pessoas irão deslocar-se às urnas, será possível, na prática, uma pessoa votar por outra tendo em conta as pressões características de um acto eleitoral de tamanha magnitude”, pode ler-se.

2 Jul 2017

Orçamento | Incumprimentos punidos penal, civil e disciplinarmente

O novo articulado da lei de enquadramento orçamental prevê punição para irregularidades na execução do Orçamento em termos penais, civis e disciplinares. As penas de multa deixam de se aplicar e passa a valer um regime de restituição de valores de dinheiro em falta, com responsabilidade solidária

[dropcap style≠’circle’]À[/dropcap] medida que a legislatura se aproxima do fim, a legislação que regula o enquadramento orçamental torna-se mais precisa, na opinião de Chan Chak Mo. “No dia 20 de Junho, o Governo entregou-nos um novo texto de trabalho que achamos que tem grandes melhorias, o conteúdo ficou mais concreto, mas ainda há aspectos a rever”, conta Chan Chak Mo.

O presidente da 2.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa (AL) adiantou que, para já, o projecto de diploma conta com 73 artigos. Um corpo legal com esta dimensão e detalhe pode resultar na menor dispersão de disposições que regulam o enquadramento orçamental.

Uma das inovações mais dignas de nota é referente aos capítulos das responsabilidades. Na versão inicial, as irregularidades à execução orçamental eram punidas apenas com aplicações de multas. Na proposta actual, “o pessoal de direcção e chefia dos serviços, assim como os trabalhadores, são responsáveis criminal, civil e disciplinarmente pela violação das normas de execução orçamental”, explica o deputado. A pena de multa desaparece para se evitar “duplicação de punição”.

Chan Chak Mo explicou ainda que se a infracção envolver perda de dinheiro para os cofres públicos, terá de haver restituição, com responsabilidade solidária. Apesar desta proposta estar mais precisa, na óptica dos deputados, o presidente da comissão permanente diz ainda ter dúvidas quanto à aplicação da lei em concreto, dúvidas essas que “serão colocadas ao Governo na próxima reunião”. Neste aspecto, é de salientar que a próxima reunião ainda não tem dia marcado, mas deverá ocorrer na próxima semana.

Relatório antecipado

Outra das novidades na nova lei de enquadramento prende-se com o facto de a AL passar também a efectuar fiscalização às actividades orçamentais. “Esta regra não existia, na versão anterior a entidade fiscalizadora era apenas a Direcção dos Serviços de Finanças”, revela Chan Chak Mo.

Também a data para a apresentação do relatório de execução orçamental é algo que deve mudar, no entender dos deputados da comissão permanente. Anteriormente, o Governo tinha até 30 de Novembro para entregar para apreciação da AL o relatório de execução e a proposta de lei do Orçamento. Chan Chak Mo considera que esta calendarização é muito trabalho para o Governo, o que pode levar à antecipação do trabalho da AL.

Desta forma, propõe-se uma antecipação da data de entrega do relatório de execução para 15 de Outubro e a proposta de Orçamento para o dia 15 de Novembro. O presidente da comissão permanente que acompanha este diploma preferia que o Chefe do Executivo fosse à AL mais cedo; porém, o Governo ainda não expressou a sua opinião nesta matéria.

A presente lei de enquadramento será revista passados cinco anos da sua entrada em vigor. Normalmente, os diplomas são revistos decorridos três anos, porém, “como aqui se trata de uma lei de bases, há que deixar passar algum tempo de aplicação prática”, explica Chan Chak Mo. O deputado acrescentou ainda que este tipo de diploma não é de fácil alteração, não se muda “de um dia para o outro”. Foi ainda clarificado que, em caso de dissolução da AL, a proposta de Orçamento deve ser apresentada em período acordado entre o Executivo e a órgão legislativo.

2 Jul 2017

Tráfico humano | Relatório é injusto para Macau, diz Juliana Devoy

Macau e Hong Kong estão no nível dois de vigilância no que respeita ao tráfico humano. A comparação não é justa, considera a directora do Centro do Bom Pastor

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omparar Macau e Hong Kong quando se fala no combate ao tráfico humano não é justo. A ideia é deixada ao HM pela directora do Centro do Bom Pastor, Juliana Devoy, em reacção relatório acerca do tráfico humano divulgado, esta semana, pelos Estados Unidos.

Para a responsável, os resultados foram uma surpresa. “Fiquei muito desiludida com o relatório: Hong Kong e Macau estão na lista de vigilância e penso que não é justo para o território”, diz.

Em causa, para Devoy, estão duas situações que podem ser equiparadas. “Seria como comparar Macau a países como a Coreia do Norte ou mesmo ao Continente”, refere.

Em Hong Kong, o Governo nega a existência de tráfico humano, “nega que exista um problema e, como tal, não há qualquer medida para que seja combatido”, refere.

Envolvida no combate a este tipo e criminalidade e na protecção das vítimas, Juliana Devoy justifica: “Tenho contacto com agências do território vizinho, nomeadamente com organizações não governamentais (ONG) que têm tentado, por todos os meios, alertar o Governo da RAEHK para a existência deste problema e para a necessidade de intervenção”, diz. Mas a resposta, afirma, repete-se: “Em Hong Kong não há tráfico humano, pelo que não é necessário fazer nada”.

Em Macau, a situação é muito diferente. “Dizer que não estão a ser feitos esforços neste sentido, não é verdade.” Para Devoy, o Governo local tem levado a sério a questão do tráfico de pessoas e os resultados apontados por Washington são baseados, “à partida, em critérios que nada revelam acerca da realidade”.

A classificação foi dada tendo por fundamento o número de condenações, o que “não é um critério justo”, diz. “Quando se fala de tráfico humano não é possível contabilizar os seus actores e as dificuldades são muitas”, sublinha a directora.

Nem tidos, nem achados

Por outro lado, dada a escala do problema e o número de entidades envolvidas no seu combate, Juliana Devoy considera que, quando se faz uma avaliação deste género, há que ter em conta todos os envolvidos. “Tanto quanto sei, no ano passado, a pessoa que recolhia os dados vinha ao território algumas vezes. No entanto, não quiseram saber de quem trabalha também no terreno, como nós. Nem nos contactaram”, explica, sendo que não deixa de sublinhar que, tratando-se de uma matéria que envolve várias entidades, além do Governo, seria fundamental o contacto com as ONG que estão em acção.

O combate ao tráfico humano existe, no território, desde 2008 e, de acordo com a directora, o Governo tem dado passos para melhorar a situação. “Não está feito tudo e há muito a fazer, há mais e melhor”, incentiva Juliana Devoy, que considera os resultados do relatório também desmotivantes para quem anda a lutar contra o tráfico de pessoas.

A opinião é partilhada pelo secretário-geral da Caritas Macau, Paul Pun. Para o responsável, Macau tem feito esforços efectivos no sentido de combater a criminalidade associada ao tráfico humano. No entanto, a matéria é complicada, é preciso mais, e Paul Pun deixa algumas sugestões.

De modo a tornar mais visíveis as acções que pretende implementar e para deixar uma mensagem às possíveis vítimas, seria bom que o Governo avançasse para outro tipo de iniciativas. “O Executivo podia colocar cartazes e informação nos postos fronteiriços, nos terminais marítimos e no aeroporto, visto que muitas das vítimas passam por ali”. Desta informação constariam números e formas de contacto para pedir ajuda.

Juliana Devoy apela ainda a uma formação específica dirigida aos juízes que tratam este tipo de casos. A directora do Centro do Bom Pastor recorda também palestras a que assistiu em que as forças de segurança mostraram as suas preocupações. “Quando se fala de tráfico de pessoas, além das dificuldades relativas às provas, os métodos que os criminosos adoptam estão constantemente a ser actualizados para que não sejam apanhados e os magistrados, muitas vezes, não têm sensibilidade e meios”, explica Devoy.

Salário a quem vem de fora

Um dos recados que também foi deixado por Washington diz respeito à criação de um salário mínimo para não residentes. Paul Pun, que tem trabalho feito junto das populações mais carenciadas, não podia estar mais de acordo.

“É fundamental que isso aconteça porque as pessoas têm de viver com dignidade e a imposição de um salário mínimo permitiria não só a subsistência familiar da população migrante que se encontra em Macau, como podia vir a prevenir situações de abuso que têm que ver com a escravatura moderna”, disse.

2 Jul 2017

Tradução | IPM nega queixas de alunos e abre mais cursos diurnos

Alunos locais do curso de tradução do Instituto Politécnico de Macau, que dominam o português, queixam-se de discriminação face aos alunos da China e dizem que são obrigados a frequentar os cursos nocturnos. O IPM refuta as acusações e diz que no próximo ano lectivo vai abrir mais opções diurnas

[dropcap style≠’circle’]“O[/dropcap] curso diurno de Português é apenas um sonho para os estudantes residentes de Macau.” É desta forma que começa a carta enviada por alguns alunos do curso de Tradução Português/Chinês do Instituto Politécnico de Macau (IPM) à Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM). Trata-se de alunos que já dominam o português e que pretendem fazer a sua formação como tradutores ou intérpretes de chinês.

Os estudantes dizem ser discriminados em relação aos alunos da China, pelo facto de estes preencherem todas as vagas das turmas diurnas de licenciatura. Afirmam também que os estudantes de Macau têm de frequentar as aulas a partir das 18h30, ainda que não sejam trabalhadores-estudantes.

“Nas turmas diurnas do curso de Interpretação e Tradução Chinês/Português e Português/Chinês, 90 por cento dos alunos são do Interior da China. Os alunos locais só frequentam uma turma nocturna. Já há muitos anos que é elevado o número de alunos do Interior da China nas turmas com horário diurno, desmotivando os residentes locais na formação de intérpretes-tradutores”, lê-se na missiva.

“O IPM afirma que o número de alunos não é suficiente, e que os alunos da turma de Português não são qualificados”, acrescentam na carta a que o HM teve acesso. Apesar disso, os estudantes afirmam que muitos passam nas provas de acesso.

“Há muitos candidatos que passaram no exame para integrar uma turma do ensino diurno de Português. No exame oral, os examinadores fazem umas perguntas simples e exigem a leitura de um texto em chinês e outro em português.”

Ana (nome fictício) já concluiu o seu curso e tem conhecimento da carta que foi enviada. Também ela frequentou uma turma nocturna e diz que há alunos de Macau, que dominam o português, nas turmas diurnas, mas são poucos.

“Que eu saiba, desde 2005 não abrem turmas diurnas”, explicou Ana. “Os alunos de Macau, chineses, só conseguem entrar no nocturno e não no diurno. O que nos dizem é que os estudantes da China têm melhores notas e ocupam as vagas.”

Ana acrescentou ainda que lhe foi dito que havia falta de professores para abrir mais turmas diurnas. “Disseram que não havia professores portugueses suficientes. O que me dizem é que a qualidade dos alunos não é boa e não têm alunos suficientes para abrir cursos diurnos.”

A estranha declaração

A carta dos alunos faz ainda referência a uma declaração que os locais terão de assinar quando concluem o período de exames e entrevistas de acesso, para que sejam transferidos para as turmas nocturnas.

Isso também aconteceu com Ana. “Quando fiz a entrevista, passei no exame escrito. Fiz a entrevista oral e os professores gostaram. Mas antes de sair apresentaram-me um papel e perguntaram-me se me importava de frequentar o curso nocturno, caso a escola não tivesse aulas no período diurno.”

“Disseram-me que podia não assinar, mas as minhas colegas disseram-me que quem não assina não entra no curso. Porque não há aulas diurnas e os alunos ficam excluídos”, acrescentou.

Os alunos locais queixam-se também das limitações em termos de viagens a Portugal para a aprendizagem da língua. “Os alunos que frequentam o curso de chinês na turma nocturna podem ser transferidos para uma turma diurna e depois ir a Portugal estudar, mas estão sujeitos a uma limitação da quantidade de alunos”, pode ler-se.

IPM nega tudo

Em resposta ao HM, Luciano Almeida, director da Escola de Línguas e Tradução (ESLT) do IPM, nega as acusações e diz que “não fazem sentido”. “Os critérios são iguais para todos. Os alunos locais não concorrem com os alunos da China porque têm vagas e o processo de selecção dos alunos é extremamente rigoroso, porque há muitos candidatos”, explicou.

“As vagas para os alunos locais nunca são totalmente preenchidas, porque há sempre menos candidatos [em relação aos alunos do Continente]. Um aluno local que quiser estudar no período diurno não tem problema nenhum”, acrescentou Luciano Almeida, que referiu ainda que vão existir mais turmas no período diurno.

“A questão será saber se a escola tem recursos para abrir mais turmas diurnas, em especial no curso de licenciatura em Tradução e Interpretação Chinês/Português e Português/Chinês. A resposta é afirmativa e no próximo ano lectivo teremos mais uma turma deste curso em regime diurno”, apontou.

Segundo o director da escola, vão existir, em 2017/2018, três turmas em regime diurno, num total de 75 vagas, e duas turmas em regime nocturno com 40 vagas.

“O número de vagas para o ensino da tradução e interpretação chinês/português, para o ensino da língua chinesa e para o ensino da língua portuguesa duplicou nestes dois últimos anos, não só pelo aumento das turmas, como pela criação de dois novos cursos”, referiu Luciano Almeida.

Actualmente existem 55 professores na escola, um número que “é suficiente para a actividade lectiva que [o IPM] tem programada”, explicou.

O responsável afirma ainda desconhecer a declaração de que os alunos falam. “Como director da ESLT desconheço a existência da exigência de qualquer declaração desse género, que não faria qualquer sentido porque o aluno candidata-se livremente ao regime que prefere. Todos os alunos que pediram mudança do regime viram os seus pedidos deferidos.”

 

 

Há vagas para locais, mas notas é que mandam

Para entrar no curso de tradução e interpretação do IPM não bastam as notas. É necessária a realização de entrevistas, que inclui a leitura de alguns textos nas duas línguas. Apesar de, segundo os alunos queixosos, o IPM afirmar que os alunos da China têm melhores notas, a verdade é que há vagas para todos. “No curso de Tradução e Interpretação Chinês/Português, Português/Chinês, no regime diurno, existe uma quota de 46 vagas destinadas a alunos locais [num total de 75] e no regime nocturno as 40 vagas são igualmente destinadas a alunos locais”, explicou Luciano Almeida. O director da ESTL referiu também que a “selecção dos alunos é efectuada de acordo com a legislação aplicável”, ou seja: contam as notas do ensino secundário e do exame unificado de acesso, e a entrevista com os responsáveis do curso.

2 Jul 2017

Aliança do Povo | Criticados atrasos na lei de bases das garantias dos idosos

A Associação Aliança do Povo de Instituição de Macau realizou ontem um fórum onde abordou as insuficiências nas políticas de apoio aos reformados. A deputada Song Pek Kei questionou o atraso na implementação da Lei de Bases de Garantias dos Idosos. O IAS diz que cerca de sete mil vivem sozinhos

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] ausência de políticas efectivas para apoiar os mais velhos esteve ontem em debate num fórum promovido pela Aliança do Povo de Instituição de Macau, que contou com a presença da deputada Song Pek Kei e de uma representante do Instituto de Acção Social (IAS).

Song Pek Kei, deputada à Assembleia Legislativa (AL) e candidata às eleições legislativas deste ano, alertou para o agravamento do problema de envelhecimento da população. A deputada questionou as razões para o atraso na elaboração da Lei de Bases das Garantias dos Idosos.

“O Governo já falou muito sobre o assunto, a lei é falada há quase dez anos e ainda não vimos qualquer trabalho concreto quanto à sua elaboração”, referiu.

Song Pek Kei lembrou que há muitos idosos a viverem sozinhos nas suas casas e que existe, por parte do Executivo, um esforço para a protecção dos idosos, mas as medidas não são satisfatórias.

A deputada alertou ainda para o facto de o envelhecimento da população trazer muita pressão às famílias, uma vez que os casais mais jovens precisam de trabalhar. Na visão de Song Pek Kei, os apoios sociais ajudam a atenuar este problema, mas o número de acções da Administração não chegam para as necessidades actuais.

Sete mil sozinhos

Lo Sok Ha, chefe de divisão dos serviços para idosos do IAS, referiu que há cerca de sete mil idosos que vivem sozinhos. Quanto ao plano de acção actual, contém mais de uma centena de objectivos a cumprir a curto prazo, sendo que um deles já foi cumprido: a abertura do centro de avaliação e tratamento da demência, bem como a inauguração de dois centros de cuidados diurnos para este tipo de doentes.

A responsável do IAS adiantou ainda que vão ser contratados consultores para inspeccionar os lares de idosos e centros de dia, tendo sido já criados dez organismos que dão apoio via telefone ou visitas ao domicílio.

Song Pek Kei lembrou que, no passado, houve casos de acidentes que se revelaram fatais para os idosos que residiam sozinhos. A deputada defende ainda uma revisão da lei de habitação económica no sentido de permitir que um idoso que viva sozinho na sua casa social possa ter a companhia de alguém que possa tratar dele.

Falando do exemplo de Seac Pai Van, a deputada frisou que, nessa zona, os idosos vivem como se estivessem numa ilha isolada, com dificuldades de acesso ao local e com poucos transportes públicos.

2 Jul 2017

Lote de terreno na zona do Pac On não fica na empresa de Ho Meng Fai

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Tribunal de Segunda Instância considerou improcedente um recurso contencioso interposto pela concessionária de um terreno no Pac On. O caso, que envolve a Sociedade Imobiliária Belo Horizonte, envolveu um pedido de troca de parcelas, o antigo secretário Ao Man Long e o empresário Ho Meng Fai, ambos condenados por corrupção.

A declaração de caducidade da concessão do terreno no Pac On foi feita pelo Chefe do Executivo em Maio de 2015. Inconformada, a empresa apelou para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, entre outros, “a total desrazoabilidade no exercício do poder discricionário, a violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da boa-fé e da colaboração entre a Administração e os particulares”.

A concessionária defendeu que o prazo de aproveitamento do lote em causa – o PO5d – não era de 12 meses, mas sim de 36. Argumentou também que, ao contrário do que disse o Executivo, requereu a prorrogação do prazo de aproveitamento. A recorrente tinha requerido uma troca de terreno – e a sociedade entende que “não é correcto entender que não tinha intenção de aproveitar” o lote em causa. Por fim, apontou o dedo ao Governo, ao afirmar que a falta de aproveitamento era da “culpa predominante da Administração, porque tinha decidido, morosamente, sobre o pedido da troca de terreno, e não era a prática habitual da Administração, antes de 2010, declarar a caducidade da concessão por incumprimento dos prazos de aproveitamento”.

O TSI reconheceu que é verdade que o prazo de aproveitamento do lote era de 36 meses, mas desvalorizou o facto, ao dizer que se trata de “um erro irrelevante”, visto que no momento da declaração da caducidade da concessão, o prazo de aproveitamento de 36 meses já tinha terminado há cerca de oito anos.

Pequeno por grande

Os restantes argumentos da empresa também são rebatidos. Em relação à troca de terrenos, a Segunda Instância considera que “o facto de pedir a troca de terreno em si já evidencia que a recorrente não queria aproveitar o terreno em causa, visto que o valor económico do lote destinado apenas para construir uma vivenda de três pisos é bastante inferior ao valor de um terreno que permite construir centenas de fracções autónomas”. E o colectivo continua: “Caso contrário, o comerciante Ho Meng Fai, que efectivamente tomava decisões sobre a sociedade, não teria tentado oferecer vantagens ilícitas a Ao Man Long, então secretário para os Transportes e Obras Públicas, com vista a obter a troca de terreno”.

O TSI também não colhe a ideia da “morosidade da Administração e a prática habitual antes de 2010”, ao dizer que não servem para justificar o incumprimento do prazo de aproveitamento por parte da recorrente.

Ho Meng Fai encontra-se em parte incerta. Em 2007, foi condenado à revelia a 25 anos de prisão.

2 Jul 2017

Imagens | HK Urbex à procura da memória colectiva de Hong Kong

Na cidade dos arranha-céus, um grupo de jovens exploradores documenta, em fotos e vídeo, o interior de edifícios abandonados, na tentativa de os inscrever na memória colectiva de Hong Kong

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e a metrópole é frequentemente associada à modernidade e futurismo – no cinema já foi, por exemplo, a Gotham City de “Batman” e cenário de “Ghost in the Shell” – nos vídeos do grupo “HK Urbex” são os redutos mais antigos, e até decadentes, que estão em destaque.

O grupo de oito elementos, que mantém a identidade oculta, já entrou, sem autorização, em mais de 100 edifícios ou estruturas deixadas ao abandono em Hong Kong, desde um centro de detenção para a antiga agência de serviços secretos, a um hospital psiquiátrico, uma antiga mansão, escolas, cinemas, um mosteiro, um antigo matadouro.

“Há muito património, mas é difícil de ver. Muitos destes sítios são demolidos sem que ninguém conheça a sua história. Partilhamos informação sobre eles para que entrem na consciência colectiva”, diz à Lusa Ghost, de 34 anos, um dos fundadores do projecto.

Os edifícios com valor histórico – mesmo que não reconhecido oficialmente – são o ‘alvo’ preferido, mas também já entraram em “estações de metro [desactivadas], estaleiros de obras”, já que também “fazem parte da narrativa de Hong Kong” e são locais “que as pessoas não vêem normalmente”.

Há também blocos residenciais, sem particular traço arquitectónico, mas que representam uma forma de viver. É o caso do prédio Hoi Hing, em Tai Kok Tsui, onde as 283 fracções estão quase todas abandonadas, mas nem por isso vazias.

Além do avançado estado de decadência – janelas partidas, canos soltos, paredes lascadas – os corredores e os apartamentos do Hoi Hing estão repletos de coisas, móveis, roupa, sacos, caixas, papéis, um amontoado de lixo onde se avistam subitamente objectos pessoais: um sapato de bebé, um jornal de 1982, álbuns de fotografias. Num deles uma família à mesa, miúdos e graúdos de pauzinhos em punho, olha para a câmara com um ar desanimado.

O edifício de 53 anos – que conta na sua história com um macabro caso de homicídio de um casal pelo filho – aguarda demolição, tendo a propriedade sido adquirida por 2,6 mil milhões de dólares de Hong Kong.

O património que morre

Os dois fundadores do projecto HK Urbex (2013), Ghost e Echo Delta, estão atentos às notícias sobre demolições e novos projectos imobiliários, e até desenvolveram um “sexto sentido”. “Há sinais. Notamos que há um edifício sem ar condicionado, a parede está partida, começamos a investigar. Muitas vezes somos as últimas pessoas a entrar nestes edifícios.”

“Na última década muito património foi demolido ou renovado”, diz Echo Delta, lembrando o caso do Queens Pier, cujo anúncio de demolição gerou forte contestação. “Eu era jornalista na altura e estava a cobrir a história. Muitos jovens ficaram indignados e até se acorrentaram ao cais, fizeram greves de fome. Foi a primeira vez que assisti a isso e marcou-me muito”, conta.

Uma combinação de demolições e gentrificação estão a ter um impacto significativo na cidade, garantem os exploradores. “Está a mudar muito rápido, está sempre tudo em obras, não fazemos ideia de qual será o aspecto da cidade daqui a 20 anos”, diz Echo Delta.

“Em cantonês há um termo que quer dizer ‘memória colectiva’ e tem sido muito utilizado nos últimos anos, em que as pessoas se sentem nostálgicas em relação ao antigamente. O processo de gentrificação está descontrolado. Daqui a dez anos, até os sítios mais tradicionais vão ficar como Singapura, onde tudo tem um aspecto muito genérico”, comenta.

Os edifícios “formam a identidade de Hong Kong” e, na opinião dos exploradores, o ímpeto para os proteger insere-se na mesma narrativa da luta política por democracia. “Muitos jovens querem diferenciar-se da China, por isso há tantos grupos pró-democracia, o Occupy Central, o ‘localismo’. De certa forma, isto surge em paralelo com isso, estamos a defender a nossa identidade e parte dela são estes edifícios”, salienta.

Numa cidade que luta com a falta de espaço e bate recordes nos preços do imobiliário, Ghost considera “uma loucura” que existam tantos edifícios remetidos ao abandono, recordando uma notícia de 2015 que dava conta que cerca de 100 escolas permaneciam abandonadas.

Embora longe de ser representativo, um relatório oficial indica que existiam no ano passado 43.660 fracções vagas em propriedades privadas. “É incrível, numa cidade onde as pessoas têm de viver no espaço de duas mesas, é criminoso, viola mais a lei do que nós ao entrarmos nesses sítios”, destaca.

De toda a gente

Apesar de saberem que não é permitido, os dois consideram as incursões importantes. “Não conhecemos a história se não entrarmos”, afirma Echo Delta, lembrando as emoções fortes das suas incursões, onde se comovem, assustam, divertem.

“Os álbuns de fotografias dizem-me muito. Questiono-me sobre o que é feito daquelas pessoas. Cresceram, morreram, ainda estão em Hong Kong? É um pouco triste por vezes, são sentimentos mistos. O sapato de criança que encontrámos, por exemplo, é um pouco mórbido. Não conseguimos deixar de pensar ‘O que se passou aqui?’”, comenta.

Estes salteadores dos prédios abandonados, que têm como mote “Não levar nada, não deixar nada, não matar nada”, começaram por usar máscaras para esconder a identidade, tendo em conta a ilicitude dos actos.

As máscaras acabaram por se tornar numa forma de “combater a cultura das ‘selfies’ e do ego”, sublinha Echo Delta. “Estes sítios onde vamos não nos pertencem, são de toda a gente”.

2 Jul 2017

O Seminário-Liceu de Macau

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] instituição de ensino secundário Liceu foi criada em Portugal no reinado de D. Maria II pelo então ministro Passos Manuel, em Novembro de 1836. Resolução para colmatar a lacuna existente nos cursos secundários, anteriormente quase exclusivamente ministrados pelas Ordens e Congregações Religiosas, mas extintas em Portugal por decreto de 28 de Maio de 1834 de Joaquim António de Aguiar e em Macau, só a 19 de Setembro de 1835. Repetia-se o que se passara por ordem do Marquês do Pombal com a expulsão da Companhia de Jesus, efectivada em Macau no ano de 1762 e que veio fechar os estabelecimentos jesuítas como a Universidade, no Colégio de S. Paulo e o Seminário de S. José, fundado em 1728 e onde funcionava o ensino primário e secundário. D. Frei Alexandre de Gouvea, eleito Bispo de Pequim e sagrado em Lisboa a 7 de Fevereiro de 1783, veio para Macau e ao passar por Goa visitou o Seminário de Chorão, então regido pelos lazaristas, onde convidou dois padres da Congregação da Missão para irem dirigir o Seminário de S. José em Macau, ficando este assim restabelecido em 1784 e confiado aos lazaristas como Colégio de S. José.

No advento do Liberalismo, os lazaristas aderiram ao constitucionalismo, mas este movimento em 23 de Setembro de 1823 foi substituído pelo conservador Conselho de Governo, presidido pelo Bispo de Macau, Frei Chacim e os lazaristas protestaram, sendo presos em 4 de Outubro três professores do Colégio de S. José. Joaquim Afonso Gonçalves e Luís Álvares Gonzaga fugiram para Manila, regressando poucos anos depois, talvez em 1825, onde continuaram a leccionar como seculares no Real Colégio de S. José (o antigo Seminário), que agora tinha na direcção o Padre Nicolau Rodrigues Borja. O Colégio voltou a funcionar, mas sem a regularidade anterior, contando com novos padres vindos de Portugal. Por aí passou Jerónimo José da Mata, primeiro, em 1826 como aluno, onde terminou os seus estudos e nos anos trinta do século XIX como professor. Eram as “grandes reformas do Liberalismo, com a introdução de órgãos mais especializados de supervisão do ensino. Início do ensino secundário, público e privado, em Macau”, segundo Aureliano Barata que adita, “O Seminário de S. José foi suspenso em 1845, sendo os seus alunos distribuídos pelos diferentes vicariatos da Congregação da Missão de S. Vicente de Paulo ou lazaristas, na China. No Colégio apenas ficou o Padre Joaquim Leite, que continuou a ensinar Latim, vindo a falecer em 1854.

O Colégio de S. José reabriu em 6 de Janeiro de 1857, existindo também aí a instrução primária, que a 3 de Novembro de 1858 o Governador Isidoro Guimarães propôs reunir com a Escola Principal de Instrução Primária, o que não foi aceite. Já a Nova Escola Macaense, idealizada pelo Barão de Cercal, António Alexandrino de Melo e inaugurada a 5 de Janeiro de 1862, contou com três professores contratados na Metrópole, mas, ao terminarem os contratos feitos por seis anos, fechou em 21 de Outubro de 1867.

Já como Bispo de Macau, D. Jerónimo José da Mata ao encontrar no Colégio de S. José apenas um aluno interno e outros oito ou nove externos, em 1862 pediu para voltar este estabelecimento de ensino a receber professores jesuítas, pois em 1814 o Papa Pio VII reabilitara a Companhia de Jesus. Chegaram os padres Francisco Xavier Rôndina e José Joaquim da Fonseca Matos a Macau e em dez anos, com um “escolhido corpo docente” transformaram o Seminário numa das melhores e exemplares escolas de toda a Ásia. Atraídos por bons professores de diversas nacionalidades, a afluência de alunos era grande, apesar de a maioria não fazer intenção de seguir a vida sacerdotal e assim, quando terminaram o curso, muitos ocuparam lugares de destaque na Administração.

Em Macau, o ensino secundário oficial surgiu em 1870, integrado no Seminário de S. José, segundo Aureliano Barata, referindo que no ano seguinte os missionários estrangeiros daqui foram expulsos. Tal criou graves problemas no funcionamento, pois no Seminário “funcionava não só o ensino liceal mas também uma escola comercial, onde estudavam, nomeadamente, os portugueses de Macau. Esta situação despoletou a comunidade macaense a constituir a Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM), liderada por homens afazendados de Macau e Hong Kong”.

O Seminário-Liceu e a Escola Comercial

Sete anos após a fundação da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (A.P.I.M.), tempo necessário para encontrar professores, em 8 de Janeiro de 1878 foi criada a Escola Comercial, que funcionava no edifício do Seminário de S. José, na Colina de Santo Agostinho. Pedro Nolasco da Silva assumiu o cargo de Director e em 1881 também o de Presidente da Associação. Na Escola Comercial havia a Classe Elementar, onde se ensinava Português, Geografia, Aritmética, Catecismo e Inglês e a Classe Superior, com Português, História e Geografia, Inglês, Aritmética, Álgebra, Escrituração Comercial, havendo ainda língua chinesa escrita e falada, Caligrafia e duas vezes por semana rudimentos de ciências naturais. Para se perceber a eficácia da Escola Comercial, o jornal O Independente de 13 de Fevereiro de 1886 refere: “Ninguém duvida que a causa da instrução pública em Macau ganhou muito, imenso, com a fundação da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses e com a sua Escola Comercial. Preparar a mocidade para a única carreira profissional que a habilitasse a ganhar a vida nos escritórios estrangeiros e nacionais, em Hong Kong, em Xangai, nos diversos portos do tratado do Japão, ou mesmo em Singapura e na Austrália, era sem dúvida uma missão digna de patriotas e de pais de família.” Este grande elogio à importância da Escola Comercial e à APIM aconteceu após formados os primeiros alunos do curso e logo terem conseguido emprego em Macau e nos escritórios no estrangeiro, mas também já se sabia do convénio assinado em Junho de 1885, entre Pedro Nolasco da Silva, como presidente da APIM e o Bispo da Diocese de Macau, José Manuel Carvalho, que estipulava serem as aulas da Escola Comercial dadas nas salas do Seminário de S. José, o que veio a acontecer durante dezasseis anos, até 1901.

Por Decreto de 22 de Dezembro de 1881 os estudos do Seminário de S. José foram reorganizados e com o nome de Seminário-Liceu de S. José de Macau passou a ter também o ensino comercial, mantendo-se aí a serem leccionadas a cadeira de Náutica e as aulas da Escola Comercial. Aureliano Barata refere: “Desta forma, passaram a existir em Macau duas escolas comerciais”. A APIM tomou então a iniciativa de fundir a sua Escola Comercial com a já existente no Seminário-Liceu de S. José. O Macaense de 1891 refere existirem quase todas as cadeiras de instrução secundária, mas dispersas, sem nexo entre elas; o que se precisa é reuni-las e formar um curso. Percebe-se ter fracassado a reforma do ensino secundário no Seminário-Liceu de S. José e para colmatar tal falha, por Carta Régia de 27 de Julho de 1893 voltou o Ensino a ser organizado, com a criação do Liceu Nacional de Macau.

2 Jul 2017

Uma praça cheia de gente

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma desproporção entre a configuração anatómica do ser humano e o que somos. Despertamos sensações uns nos outros pela nossa aparência. Podemos nem sempre percebê-lo. Podemos passar despercebidos uns pelos outros. Mas não me estou a referir a impressões que causamos uns aos outros. Estados em que nos deixamos uns aos outros. Estou a referir-me a uma outra forma de desproporção.

Numa praça cheia de gente, a praça é o local onde as pessoas se encontram. É um sítio que alberga todas elas. Mas ali há tantas praças quantas as pessoas que lá se encontram. No mínimo. Mas é muito difícil de perceber porque fazemos caber cada pessoa: bebé, criança, jovem, adulto, velho, homem ou mulher nas fronteiras compactas do seu corpo, no interior da sua anatomia. Há tantos seres humanos quantos os corpos que lá estiverem.

Sim. É verdade. É inegável. Mas a lotação pode estar esgotada e tocamos uns nos outros, desviamo-nos uns dos outros, deixamo-nos passar uns aos outros. Estamos a ir à casa de banho ou ao bar, a entrar ou a sair e não apenas de sítios mas vamos às nossas vidas, como viemos das nossas vidas.

Como poderíamos nós vir de outro tempo e ir para outro tempo que não os das nossas vidas? Não estamos nas nossas anatomias apenas espacialmente. Estamos sempre fora: de casa para o trabalho, a ir para onde vamos e a regressar. Estamos sempre a ir, como se ser fosse ir e com efeito a ter de ir. Mas estamos sempre distendidos entre o quando saímos de casa para vir até aqui ou ir onde vamos e o quando regressarmos. Sair e chegar, partir e regressar não são fronteiras estanques. Desde sempre estamos a sair: quando foi a primeira vez de todas as primeiras vezes e havermos de ter uma última vez de todas as vezes. E podemos já nem sair, nem partir, podemos só estar.

Quando partimos só já estamos, e talvez nem seja assim. Nos sonhos dos moribundos tal como nos sonhos das crianças estão a ser inventadas vidas já vividas ou por viver.

A vida distende-se e faz-se mesmo no interior estanque de onde não vem já sorriso nem queixume. Às vezes uma lágrima mas que pode ser do sebo da carne no quarto de hospital.

Na praça apinhada de gente, estão troços de vidas, uns mais longos do que outros, uns com rumo e tempo outros sem rumo nem tempo. Mas nada do que está ali está ali. O trânsito humano numa praça: um aeroporto, um igreja, uma praia, uma esplanada ou a Praça do Comércio não existem primeiramente geograficamente, mas como encruzilhada onde nada está parado e tudo é escoado e se precipita para não se sabe bem onde.

Há uma desproporção entre o que achamos ser uma vida humana e o seu corpo. E sim: o corpo é o órgão do tempo. Mas o corpo não é estanque e aponta também para o tempo. E vibra em nós o tempo no corpo, quando o forma e definha. Mas não é só assim que a vida e o tempo fazem corpo com a sua anatomia. Não somos sem pai nem mãe, nem antepassados nem descendentes, nem sem amigos, namoradas.

Encontramo-nos no corpo uns dos outros e desencontramo-nos de nós por não nos encontramos no corpo uns dos outros. E encontramo-nos sem ser só no toque. Pode ser no olhar, no cheiro e quando nos escutamos. É difícil conhecermos o tom de cada pessoa, quando não a conhecemos. Mas cada um forma essa possibilidade. Eu, por exemplo, sou lá uma multidão de gente. Não apenas os meus que até posso esquecer, mas os outros mais ou menos afastados. Pode ser uma nação, quando vivemos nesse país, pode ser uma única pessoa que está a dar o mote à cadência vibrante da chegada ou da partida. Numa praça de gente estão muitos destinos, muitas cadências vibrantes, cada pessoa entroncada com os seus destinos, o tempo que houve e o que há-de haver, com e sem esperança. Não está nunca simplesmente onde está. Não está primariamente onde está. Está onde não está. Coisa estranha.

2 Jul 2017

A curva e o foco

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] fascínio da geometria – volto a ele – e das suas formas e superfícies regradas. Puras. Os sólidos de revolução, fantasias intelectuais perfeitas e de vida expectável. Como quereria a linguagem. Qualquer linguagem. Mas de abstracções não se tece a vida nem urde a existência. Hiperbólica, metafórica, saturada de figuras, de uma retórica que é paradigma ou pura ilusão. Da hipérbole, dois ramos, numa curvatura que resulta do corte de duas superfícies cónicas por um plano. Sabe-se-lhe a intensão do plano, sabe-se-lhe o foco. Como noutras curvas. Pontos externos e de misterioso domínio sobre a expectativa da curvatura obtida. Como essências que determinam subterraneamente uma forma existencial. Sem deixarem de ser elementares, ínfimos e fundamentais. Invisíveis geradores. E as linhas, geratrizes de revolução. Nas superfícies. Fico extática perante o poder metafórico da geometria. E o quanto de existencial, na geometria possível do ser enquanto tal, se rebela de uma estrutura que é definição e orientação a uma coerência confortável. Mas tão desnorteada. E que não é rígida só porque existe. Existe na sua perfeição utópica. Às vezes, na vida.

E depois, essa oscilação pendular entre a corrosiva e imparável teatralização do sentir, que torna cada um tão fingidor como o poeta e tão dorido como ele, e a compulsão da verdade como se ela existisse. E um dia. Um dia de chofre. Uma luz cortante. E o paradigma dissolve-se no ar como um leve bouquet de feromonas em fuga, até não restar senão memória de um perfume. Uma verdade sempre acarinhada como antro de um bem maior e que se revela perversa, inóspita. Traindo a disposição dos focos, dessas curvaturas duplas em ramos estilizados, de uma árvore que deixa de ser construção e vida para ser demolidora. A competir com o ar respirável. Morreu. A verdade morreu. De saturação e excessos existenciais. De precipitação. Dela sobrevive-se com a prescrição dos maiores cuidados de futuro. De presente. Mas como uma doença crónica, como um alcoolismo, fica latente para sempre e para sempre a requerer cuidados. À espreita, enganosa e divergente como só ela.

Emoção, o terror a evitar, o perigo abismal, a selvajaria incontrolada, como curva em crescente, gerada num foco íntimo e distante. Como uma oxidação que corrói para dentro a pureza de um metal. Uma ferrugem a lapidar até á raiz do corpo onde reside a essência mascarada de castanhos ferrosos. Verdades múltiplas e disparadas como armas mortíferas. Químicos de fórmula desadequada. O que não cura, pode matar. Um espelho. Que se segura contra um rosto, como uma lente a ferir de sol uma haste seca. Até incendiar.

Eu às vezes sinto a embriaguez enorme e arrepiante de palavras com as vísceras em fogo, de líquidos derramados em páginas como lava fresca de vulcão extinto de imediato ou mesmo antes e são bolas porosas e de cores extravagantes que rolam página abaixo e se esvaem nas margens. Ou para além delas. Tão para além que não voltam. Não adianta perscrutar os outros dias das palavras poéticas, porque em muito se furtam a um retorno a que o tempo invalida a costura. Emoções de um tempo preciso. Ou porque não eram as minhas vísceras, o meu tempo ou a minha ferida que ali se abria. Era. Era a ferida como se ressonância por simpatia. Como se telecomandada a partir de uma origem, como corpo a abrir ao primeiro raio de um poema. De sol, digo. Como flor. Como gineceu túmido na azul glória matinal. Mas são outros tempos do corpo e são outros corpos do sentido tacto. Na fantasia das manchas ensolaradas e das sombras magras e febris dessas palavras texto, tecido de uma urgência outra. Ou de outra urgência minha. Tudo a debandar das páginas folheadas como dedos naquele ponto. Naquele preciso ponto húmido. Onde mesmo os dedos podem ser ásperos. Nenhuma carícia é demais para as flores. Mas por vezes mata de peso e inércia desmedida para a espessura de uma determinada configuração que não condiz com o gesto. Mas não nos incomodemos a chorar se uma estrofe não volta a dizer o que disse. Nunca prender com âncoras marinhas o destino que é térreo. E nele o balanço ondulado das ondas, de carreiros pedregosos. Ou arar ondas de mar. Cada emoção tem um único tempo. Um compasso e uma melodia irrepetível.

E depois, numa daquelas epifanias de trazer a dias sem pretensões, ver todas aquelas frases a cair, misturadas e desarranjadas, desgrenhadas mesmo, amotinadas de fresco das suas linhas seguras, umas para andares abaixo, outras em flick flack destemido a ultrapassar o limite do texto, da folha, do mundo. O delírio mais lírico de um poema. Entornar-se no mundo e misturar-se entre as pessoas. Em bocadinhos, com de pão com manteiga, em interjeições sem destino certo, em negações do que era e do que era para ser se fosse. Tudo a invadir a capa. Partes de texto poético a andar para trás. Há pessoas assim. A confusão de sentidos intercomunicantes pode trovejar-nos na cabeça mesmo no seu lugar. A cabeça. E subitamente esqueci se era a cabeça ou o lugar dos sentidos. O lugar certo. Mas depois nem isto importa. Não devia ser permitido usar pronomes pessoais para abstracções. Como se fossem flores e concretas como tal. Chamar ela a uma hipérbole retorcida em si. Ou a angústia. Como defini-la sem dela se dizer o que a transforme em entidade. E, no entanto, há uma espécie de textura de uma densidade própria e deslizante. Lentamente a entorpecer talvez de cima para baixo. Mas a cor. Tentar entender-lhe a cor, parece fútil face ao abraço entorpecente e espesso. Que anula até a dor. Olhar para aquele lado. São enormes pedras de jazz. De sal, era o que queria dizer. Mas caiu dali outra palavra. Com luz natural de lâmpada no interior. As pedras. Enormes. De sal. E que lhes vem de dentro como é da natureza do que se acende. A partir de um ponto e em expansão. E sem voltar atrás. A luz.

Espreito sempre à porta antes de entrar por um livro adentro não vá estar em trajes menores. E surpreendo-o, àquelas horas com as palavras a sair por todos os cantos como numa sandes demasiado cheia e desleixada. A capa com nódoas de pequenas palavras que se soltaram mesmo. Uma coisa do outro mundo. O descrédito quase me faz rir. Mesmo que à custa de um livro desmanchado de poemas. Por isso penso mas porque se escreve ainda quando todas as palavras já foram usadas com todas as temperaturas a expelir fumo de todos os termómetros inaplicáveis. É que o fogo que lavra destemente a qualquer deus e a qualquer balança, é privado de braços e pernas se não atacar outras folhas. Não há descanso. Para a verdade crónica e imperfeita.

Escrever, é uma coisa triste. O desvendar da alma a quem só nós conhecemos. O desabafo tão íntimo e tão privado que só nós ouvimos. Filtrado das linhas mesmo se baralhadas como cartas de jogar. Tudo o que se tenha que definir em mais do que duas ou três palavras, a substitui por um gesto. Um sorriso. E chega.

Ando há tempo a rondar este ângulo muito específico de estarmos a enlouquecer. Dizer isso como irremediável. E talvez porque muito da vida já o é, dizer. Estamos. Muito de nós está. A enlouquecer de desespero. De sabe-se lá, sabemos nós, não o sabemos, talvez a enlouquecer. Sim. De como as roupas que vestimos dia a dia hora a hora e circunstância a circunstância. E lugar. Hiperbólicas. A esquecer o foco. Talvez se escolha o ângulo concreto da loucura diária, como uma roupa e uma deixa, que nem sempre encaixa na fala global da peça, mas não sabemos fazer melhor. É talvez um facto que se vive entre paredes, entre as circunstâncias em que queremos ser amados e vistos com um olhar benévolo, e a necessidade de que os outros nos vejam na crua realidade do que se é. E ainda assim. Ser amados. Sofrer de figuras de estilo. Sofrer de lugares geométricos que tendem, ao invés da sua natureza matemática de rigor e abstracção, a deixar-nos num limbo de curvaturas várias num universo de espaço amplo e ilimitado. À mercê de elevações e expansões para as quais o corpo não oferece limite à fuga.

Encosto-me a uma amurada, junto daquele mar imenso que é o único a entender-me, e a dizer que se nele mergulho ou nado, sem saber regras e correntes, tudo depende da força que tiver. Para resistir às vagas. O mar que não pune nem castiga, simplesmente segue a natureza desmedida que há que conhecer. Já nos humanos, a natureza é razão que se pode ponderar. Porque há o lugar geométrico do apaziguamento. Encosto-me a essa amurada com vista, só porque me sinto menos só face ao mar e é a este que devo escutar. Encosto-me mais ao olhar. Apuro o ouvido. Vejo-me de costas como quem diz que é de costas que melhor nos vemos e aos outros. Hiperbólicos, sentidos. Muito. Às vezes demais. Para uma única superfície de pele de rosto. De pelos nos braços, insuficientes na expressão de tamanho arrepio. Porque o vento vem forte. E hiperbólicas. Pessoas assim, a quem dói a temperatura do corpo. E para quem a respiração é um risco a sangrar. Quando a sacralização de cada regra pode enfermar de uma ferida que se agrava. A verdade. Não mais que um momento. Os conceitos que amamos, as definições. Outra coisa é a explicação dos anjos. Sem nome. Os anjos não têm nome.

Não subjaz à forma o sentido, mas uma realidade motora que conduz a emoção do gesto à sua origem. Ao seu destino. O que liberta e o que contém envolve numa ilusão lúcida. A da realidade feita e perfeita, mas numa camada lírica, como num corpo, uma emoção e um sentido íntimo. Onde se vive mas não se encontra. Como a curva ao foco. Pequeno pirilampo. Ou o beijo da razão. Nem na verdade, nem na emoção.

2 Jul 2017

Karadeniz | O Filho

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vista, do terraço do restaurante do Conrad Hotel, é uma das mais terríveis do planeta Terra. É o lugar onde o que o homem faz e o que a natureza é se encontram esplendorosamente, sem máculas e sem culpas. Fui apenas duas vezes a esse lugar: a primeira por amor de uma mulher; a segunda pela morte de um homem. Karadeniz morreu em sua casa junto à torre de Gálata, numa das muitas noites em que lá ficava, em que não me apetecia apanhar um táxi para a minha casa em Baltalimani, junto a Bebek, no Bósforo. Deve ter tido uma morte santa, sem sofrer. Foi para a morte como se tivesse ido apenas deitar para outro dia. Encontrei-o de manhã com o rosto mais pálido do que o costume, e já só consegui tocar-lhe o frio. O homem já não estava ali. Tinha o passado à minha frente, diante do rosto e das mãos e não sabia o que fazer. Fiquei ali parado, sem fazer nada, a saber a morte. A seguir ao funeral de Karadeniz, em Istambul, o seu filho, T., que conheci na cerimónia, pediu-me para jantar com ele. Precisava de falar comigo com urgência, antes de partir para Londres, ainda essa noite.

T: Soube pelo porteiro que você passava muito tempo com o meu pai, posso saber porquê?

PJM: Porque gostava dele e ele me ensinava muito.

T: Ensinava-lhe o quê?

PJM: Tudo! Só não me ensinou a matar.

T: A mim, foi só o que ele me ensinou.

PJM: Ensinou-o a matar!?

T: Não propriamente, mas vi-o várias vezes a disparar com a espingarda contra os gatos da rua.

PJM: Foi só para saber porque me encontrava com o seu pai, que quis encontrar-se comigo?

T: Não, não foi só por isso! Queria saber como é que ele morreu, parece que não sofreu, pois não?

PJM: Não, não sofreu. Morreu a dormir.

T: Morreu como viveu!

PJM: A dormir!?

T: Não, sem sofrer.

PJM: Julga que o seu pai não sofreu na vida, é isso que me está a dizer?

T: Não me leve a mal, mas não quero falar sobre isto consigo, com quem nunca vi e provavelmente nunca mais vou ver. Não me leve a mal, mas não sou muito bom a falar de mim.

PJM: Não tem de que se desculpar! Compreendo perfeitamente. Há mais alguma coisa que queira saber?

T: Gostava de saber o que é que você faz na vida?

PJM: Escrevo livros.

T: Que tipo de livros é que escreve?

PJM: Romances, poesia e teatro.

T: Romances acerca de quê?

PJM: Acerca da vida e da morte, acerca dos homens.

T: E isso dá-lhe para viver?

PJM: Às vezes, dá! Outras vezes, não.

T: Então e quando não dá, o que é que você faz?

PJM: Isto é alguma entrevista, que me está a fazer?

T: Se quiser não me responda, não é obrigado a fazê-lo. Mas tenho curiosidade em saber que tipo de pessoa passou os últimos…

PJM: Dois anos!

T: Dois anos!?

PJM: Sim!

T: Pois, gostava de saber que tipo de pessoa passou os últimos dois anos a visitar o meu pai, a fazer-lhe companhia.

PJM: A companhia era mútua. Quanto à sua pergunta anterior, quando os livros não dão para viver, peço dinheiro emprestado, até que volte a dar.

T: O meu pai chegou a emprestar-lhe dinheiro?

PJM: Não! Estou num momento em que não é preciso.

T: O meu pai chegou a falar-lhe de mim, a dizer-lhe o que faço?

PJM: Sim!

T: E o que é que ele disse que eu fazia?

PJM: Disse-me que você era um homem de negócios, que importava vegetais da Turquia para Inglaterra.

T: Foi só isso que ele disse, não mencionou mais nada?

PJM: Não, só me disse isso. Porquê, há mais alguma coisa que você faça que o seu pai não me tenha contado?

T: Não, não há mais nada. Queria só ter a certeza de que o velho não tinha perdido o juízo, nestes últimos anos de vida.

PJM: O seu pai esteve sempre muito lúcido até ao fim, pode ficar descansado. O seu pai era um homem muito bom.

T: Muito bom!? Ele chegou a contar-lhe como era o inferno?

PJM: Qual inferno?

T: Qual inferno!? A casa! Crescer naquela casa com dois loucos à volta dos gatos: um aos tiros aos animais e o outro a salvá-los; e eu no meio, sem ser gato. E nem os matava, nem os salvava. Ele não contou isso, pois não?

PJM: O seu pai contou-me dos gatos, sim. Também me parece que sempre soube do mal que tudo isso lhe fez. Até ao fim, nunca quis aceitar culpa de nada, mas julgo que ele sempre se sentiu culpado em relação a si.

T: Que mais culpas é que ele poderia ter?

PJM: Culpa em relação à sua mãe.

T: Em relação à minha mãe, não teve culpa nenhuma. A minha mãe era louca. Não se pode fazer nada por um louco, muito menos ser responsável por ele.

PJM: O seu pai amava muito a sua mãe.

T: Essa é que é a sua culpa! Nunca lhe perdoei, ter-se sempre esquecido de mim, do que eu precisava, por causa dessa louca.

PJM: Se pensa assim da sua mãe, porque foi com ela para Londres, porque não pediu para ficar com o seu pai?

T: Precisamente para magoá-lo. E também, porque não queria ter mais nada que ver com ele. Queria esquecê-lo. Queria ser uma pessoa completamente diferente dele. Queria ser o homem que ele nunca foi.

PJM: Não sente culpa, por isso?

T: Na vingança não há culpa.

Depois de um longo silêncio, T. pegou no seu telefone e deu instruções para o piloto do helicóptero que o esperava no heliporto do hotel. Nesse momento pensei que Karadeniz sempre estava certo acerca das actividades do filho, que não é só legumes que ele importa para Inglaterra. Despedimo-nos e eu fiquei ainda ali sentado à espera de ver o ferro a voar para o aeroporto, levando para sempre da minha vida a história desta estranha família. Uma família sem culpa, a vingar-se da vida.

2 Jul 2017

Com uns trocos no bolso

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é difícil perdermos a noção das coisas. Vivemos numa bolha com demasiadas especificidades para conseguirmos espreitar além das paredes. Vivemos a um ritmo que não nos dá tempo para parar, escutar e atravessar para outros lados. Por isso é que andamos em círculos, muitas vezes às escorregadelas, mas sempre a acelerar. Macau é uma terra de ilusões, de sensações, de milhões, de excessos, de excessos excessivos, onde o tempo passa mais depressa do que a nossa capacidade de fazermos contas à vida.

No meio deste turbilhão onde toda a gente tem tudo, achamos sempre que ainda não temos aquilo de que precisamos. Os que têm tudo também querem mais, querem o dobro do que têm, como se fosse possível duplicar o infinito. Descobrem fórmulas de multiplicação de fortunas que não vêm nos manuais de economia. Das finanças sentimentais ninguém trata, porque não há tempo e, colocando tudo o que é de relevo em perspectiva, as almas ficam tão longe que mal se vêem. Os zeros é que contam.

Não é fácil mantermos os pés nesta terra, nem aterrarmos noutra qualquer. Sobrevoamos a vida sem pousarmos em nada, atarefados que estamos em afazeres que são os mais importantes, os mais decisivos, os mais inúteis também, mal o dia acaba e outro começa, com cinco minutos de intervalo para descanso dos pés cansados.

Tudo mudou muito nos últimos tempos, sabemos bem, apesar de não sabermos para onde vamos nesta centrifugadora de tempo e de energia. Tudo mudou muito e mais vai mudar, sabemos bem também, nós que começamos a olhar com normalidade para tudo aquilo que os outros fazem, todas as extravagâncias, todos os inusitados pedidos, todas as estranhas exigências. Já não nos espantamos com este mundo, como se a ausência de espanto fosse a normalidade. Queiramos ou não, todos nós fomos sugados pelo dinheiro que nos paga a casa, o carro, as jóias, as refeições com estrelas e sem estrelas, os ovos estrelados, o arroz com vegetais, o peixe cru raro e a sardinha na brasa.

Só no mundo da normalização da invulgaridade é que é normal comprar casas com três quartos, sem despensa, por dez milhões. Ou palácios por 70. Compram-se coisas aos milhões como quem muda de camisa. Ou de gravata. Assim como é normal mudar de roupa, também é normal tirar notas da mala, passar cheques, fazer transferências e comprar imóveis classificados em terras distantes. É tudo demasiado normal.

A Fundação Macau também compreende este espírito de normalidade. E alinha nele sem qualquer problema, sem qualquer desfaçatez, com toda a sinceridade de quem tem bem assimilado este modo de vida abastado, alargado, despreocupado, por ser aos milhões. Outra coisa não conhece.

Porque tem muitos milhões, mandatou um dos seus curadores para que este estudasse a aquisição de um determinado palácio lisboeta que pretendia comprar. Por coincidência, o curador é um empresário com olho para o negócio e com capacidade para cheirar a concorrência a quilómetros de distância. Por coincidência também, o mandatado anda com 65 milhões no bolso e não é pessoa para ficar à espera de convocatórias, reuniões e actas. Porque é um businessman, faz business. Compra o palácio em perspectiva, chega a casa e comunica o facto, os seus pares batem palmas ao feito, fazem-se poucas contas aos trocos, gastam-se mais uns milhões em avaliações e estudos ao que já se pretendia comprar antes de ser comprado, e está feito o negócio. Não se falou dele porque não calhou. Numa terra em que os milhões andam aos pontapés, tanto se lhe dá, como se lhe deu. E depois ninguém tem nada que ver com isso.

Também já nos habituámos a que nos normalizem os passos. Como se as tecnologias não bastassem para que se saiba se vos escrevo de Macau, da Taipa ou da Papua Nova Guiné. Todos sabemos onde andam uns e outros. Mas há quem queira ir mais longe e precise de compreender o que se faz entre este passo e o seguinte, o que se lê entre este livro e o próximo, a quem se sussurra, com quem se grita, com quem se viaja, qual é o último pensamento que nos abraça antes de o sono nos apagar. Estranha normalização esta que não nos faz gritar, espernear, fugir a sete pés, agarrar a vida com as duas mãos.

Não é difícil perdermos a noção das coisas quando as coisas que nos rodeiam surgem sem pré-aviso para se instalarem no meio da normalidade, disfarçadas de vulgaridades. Mas há que parar. Parar e escutar, para atravessar sempre, porque na travessia é que corre a liberdade.

2 Jul 2017

E agora, as autárquicas

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste ano teremos eleições autárquicas e, com elas, a multiplicidade infinda de cartazes, porta-chaves, autocolantes e demais brindes de campanha, estradas remendadas com uma pasta muito semelhante a alcatrão mas com um tempo de vida útil substancialmente inferior ao do alcatrão, soluções para tudo menos para a morte, tempos de antena na RTP com pessoas estranhamente parecidas com pessoas, discussões acerca do centralismo e dos seus malefícios, partidos-bebé com siglas de doenças, caixas de correio entupidas de circulares desenhadas pelo primo de um cunhado que tem muito jeito, arraiais e arruadas para todos os gostos menos para o nosso e os habituais comícios enfeitados por figurantes tão entusiasmados como crianças numa leitura de poesia.

Lisboa, por exemplo, e a julgar pelas obras que decorrem a um ritmo frenético para estarem concluídas antes das eleições, está em campanha há quase dois anos. A zona do Campo das Cebolas e arredores, se seguirmos o mesmo critério, está em campanha desde o início do século XXI, e não há previsão para que finalmente deixe de estar e cumpra a função de fazer pender o voto. As eleições têm o condão de precipitar todas as decisões, arranjos e melhorias que podiam ter sido feitos ao longo dos quatro anos que corresponde ao mandato daqueles que foram eleitos para os últimos doze meses do mesmo, porque os políticos, justa ou injustamente, acham que a memória dos eleitores é semelhante à do peixinho de aquário que confunde os dejectos da ida com a comida da volta. Os primeiros três anos do mandato são de “estabilização e renovação”, o que equivale a resolver de forma unilateral todas as avenças do partido deposto do poder e à contratação ou adjudicação das pessoas “da nossa confiança”, no caso de uma mudança de cor política, ou, no caso da continuidade, a um inexplicável mas aparentemente confortável nada mascarado de planeamento.

Como a taxa de natalidade em Portugal é ainda mais baixa do que a taxa de crescimento, as campanhas apontam baterias, invariavelmente, aos velhos que, em linguagem política, são ora a população idosa, ora a população sénior, ou qualquer outro jargão pós-moderno e politicamente correcto que cumpra a função de desossar das palavras a realidade que lhes subjaz. E os velhos, como se sabe, têm de ser tratados como crianças acumulando décadas de mau-gosto. Afinfa-se-lhes portanto o cantor pimba da moda, uma excursão a Badajoz para evocar a lembrança da fome e das maravilhas que Abril cumpriu e uns arraiais com bifanas à pala que cada um cuida de comer como se não o fizesse há largos dias.

Quando o triste espectáculo do disparate continuado finalmente termina, ficam os cartazes, outdoors e mupis desbotando, verão após verão, até da criatura constando neles se assemelhar uma nódoa informe numa toalha velha, ficam as promessas ainda mais desbotadas dos que as criaturas dos cartazes, ainda mais desossadas do que as palavras da moda, as promessas de que não nada resta senão, como escrevia o Eça na Relíquia, a “ousadia de afirmar”.

A única coisa boa é que o circo se repete somente de quatro em quatro anos. É o intervalo possível entre estas apneias de sentido em que já ninguém acredita mas que cumprem o propósito higiénico de simular uma alternância trajada de alternativa.

2 Jul 2017

Kerill Ezzy, instrutora de ioga | De Brisbane para Macau

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vida tem uma dinâmica cada vez menos linear. A australiana Kerill Ezzy é um bom exemplo disso mesmo. Chega a Macau como engenheira de som de espectáculos musicais para a apresentação de “Cats”, há cerca de 10 anos, e torna-se instrutora de ioga. Passados dois anos da primeira visita ao território voltou com a companhia que apresentou “The House of Dancing Water” e acabou por ficar por cá. Com um trabalho com características itinerantes, na altura, a engenheira de som sentiu a estranheza de trabalhar apenas num sítio. Porém, criar, construir um espectáculo e continuá-lo “foi uma experiência linda”, comenta.

Além disso, Macau, com o seu charme muito próprio, acabou por seduzir Kerill. Quando chegou, a cidade era muito mais calma do que é actualmente. Vivia-se a época da crise económica. “Quando, vim o City of Dreams tinha sido acabado de construir”, lembra.

Também o caldeirão cultural impressionou a australiana originária de Brisbane. Ao princípio, “a mistura de um povo asiático numa cidade com arquitectura portuguesa foi muito estranha para mim, porque sou australiana e não temos este grau profundo de diversidade”, conta. A herança resultante do cruzamento de culturas criou um grande impacto em Kerill Ezzy. “Foi tão bonito descobrir uma antiga colónia portuguesa com chineses, numa mistura que casa com tanta perfeição”, explica.

Entre o dia em que chegou e a actualidade, a australiana sente que uma das maiores diferenças é o evidente aumento do turismo, assim como da actividade ligada à indústria do jogo. Também o número de pessoas cresceu imenso, para dar resposta laboral às novas necessidades económicas.

Na opinião de Kerill, a era de confusão e crescimento económico não tiveram repercussão na capacidade dos seus habitantes para pararem e se encontrarem consigo próprios. “Acho que a introspecção e a reflexão aumentaram como resposta ao crescimento de Macau”, analisa.

No aspecto cultural, acha que ainda é cedo para medir as repercussões do boom da cidade. Uma coisa é certa, “os portugueses e os chineses continuam a ser os povos lindos que sempre foram”, conclui.

Zen na cidade

Hoje em dia, Kerill é instrutora de ioga, uma inversão que aconteceu por um acaso trazido pela sua antiga profissão. O ioga entra na sua vida devido aos problemas de costas provocados pelo trabalho como engenheira de som.

O ashtanga foi-lhe recomendado pela sua fisioterapeuta e foi uma surpresa para a australiana. “Era uma pessoa muito activa e a ideia de fazer ioga não era algo que me passasse pela cabeça”, conta.

Passados cinco anos de prática e na sequência da falta de professores, a australiana tornou-se instrutora. “Pensei que era a melhor forma de continuar a aprender, nomeadamente através dos meus alunos”, revela a instrutora, que falou ao HM numa pausa de formação que está a tirar na Tailândia.

Contrariando a impressão recorrente de que o ioga pode ser uma actividade rotineira, Kerill vê a sua dinâmica tendo em conta a maleabilidade do corpo humano. “Para quem olha de fora, o ashtanga parece ser sempre a mesma coisa mas, na realidade, o teu corpo muda, comes coisas diferentes, dormes de forma diferente, todos os dias são diferentes”. Esta evolução torna o ioga algo fascinante de se trabalhar, na óptica da australiana.

A instrutora encontra sempre algo na cidade locais que merecem atenção. “Há pequenas bolsas em Macau muito giras”, comenta. Por isso gosta de passar tempo nos pequenos cafés. Nesse aspecto, destaca o Macau Soul pelo belíssimo vinho português e fotografias antigas da cidade.

Outro dos lugares de eleição da instrutora de ioga é o Jardim Luís de Camões, que “tem uma energia especial”. É um sítio onde gosta de estar, onde se sente bem a partilhar o espaço com os iodos que por lá ficam o dia inteiro a praticar tai chi, a meditar, ou simplesmente a conviver. “Há ali um sentido comunitário muito forte e uma grande tranquilidade apesar de se estar mesmo no coração da cidade”.

2 Jul 2017

Hong Kong, 20 anos | Quase 200 mil pessoas residem em fracções subdivididas

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]em menos de sete metros quadrados o espaço a que Wong chama de casa. Localizado num prédio do bairro mais pobre de Hong Kong, reflecte as condições miseráveis em que milhares sobrevivem num dos territórios mais ricos da Ásia.

Wong, de 55 anos, subiu as escadas sem perder o fôlego, habituada que está à rotina de viver num quinto andar sem elevador de um prédio antigo de Sham Shui Po. À boa maneira chinesa, deixa o calçado à porta do minúsculo espaço pelo qual paga 3200 dólares de Hong Kong por mês.

O beliche ocupa boa parte dos aproximadamente 6,5 metros quadrados da fracção subdividida onde mora. A parte inferior serve para dormir, a superior para guardar os poucos pertences: volumosos sacos pretos quase tapam os lençóis sobre os quais pousam ainda utensílios do dia-a-dia, produtos de higiene ou um rádio.

Ao lado do beliche encontra-se um frigorífico, com um microondas por cima, defronte para um móvel de gavetas de plástico onde está uma televisão. Por cima, funciona quase ininterruptamente uma ventoinha fixa na parede que ajuda a suportar o calor. Existe uma pequena janela, mas nunca se abre, porque lá fora há “apenas lixo”, diz Wong à Agência Lusa.

Do outro lado, a casa de banho e a cozinha formam uma ‘divisão’, ainda que sem porta, onde cabe uma pessoa. A sanita encontra-se ao lado da bancada e o lava-loiça e o lavatório são uma e a mesma coisa, expondo “problemas de higiene” que Wong reconhece, sem ter como os solucionar.

Wong, que é empregada de limpeza, cozinha quase sempre, embora “não seja fácil”, “porque o espaço é muito pequeno”.

Diz ser rara a vez em que vai buscar ‘tapau’, optando por regressar a casa nas duas horas que tem de almoço. A refeição é feita sobre uma pequena mesa, sentada numa cadeira, ambas desdobráveis, que quando abertas tomam todo o espaço livre entre o beliche e a parede.

Já do tecto brotam peças de roupa penduradas em cruzetas engatadas em pregos, depois de terem sido lavadas à mão numa bacia colocada sobre a tampa da sanita, custando “dores de costas” à simpática Wong.

O único dia de descanso usa-o principalmente para duas coisas: dormir e ir à rua fazer compras. Também vai uma vez por semana à igreja pentecostal à qual pertence, como denuncia um autocolante na porta.

O contrato da chamada unidade subdividida – cujo modelo pode ser adquirido numa papelaria – expira em Fevereiro do próximo ano. Pese embora as condições, Wong não deseja mudar, não só pelo “pesado fardo financeiro” que será pagar um depósito e renda extra, mas porque sabe à partida da dificuldade de encontrar um lugar melhor, compatível com as suas possibilidades.

Wong tem um rendimento mensal de 8900 dólares de Hong Kong, pelo que praticamente metade vai para as despesas relacionadas com a habitação, incluindo água e electricidade.

A morar há quatro anos em Sham Shui Po, só conhece fracções subdivididas desde então. A anterior, onde foi surpreendida com um despejo, era maior, mas igualmente degradada, descreve.

Um elevador faria a “grande diferença” para Wong que se queixa também do “barulho frequente de obras” e “da chatice” de morar no espaço que fica logo à entrada do apartamento subdividido – que tem mais três espaços idênticos – porque, às vezes, os vizinhos acordam-na.

Habitação social não chega

A vida de Wong – chinesa nascida na Indonésia que se mudou para Hong Kong em 1989 e casou, no ano seguinte, com um residente da então colónia britânica – nem sempre esteve confinada a um cubículo.

A separação levou-a a deixar a habitação pública em Ma On Shan, nos Novos Territórios, onde residia com o marido e três filhos, hoje com idades entre 20 e 28 anos, com os quais não mantém contacto. “Nunca me ajudaram, nunca me deram um único dólar”, lamenta.

O seu sonho é voltar a viver numa habitação pública. Contudo, a lista de candidatos é extensa e a espera longa. Além disso, para formalizar o pedido tem de primeiro oficializar o divórcio, um processo em curso graças à ajuda legal que a Society for Community Organization arranjou, explica Gordon Chick, assistente social que a acompanha e que serve como intérprete-tradutor.

Wong foi referenciada pela organização não-governamental há aproximadamente um ano, altura em que foi despejada da anterior fracção subdividida e a ajudaram a arranjar dinheiro para suportar os custos inerentes à mudança. Já Wong destaca antes, com especial carinho, quando lhe consertaram a televisão que se avariara.

Não obstante as duras condições, as suas expectativas são “muito simples”, à imagem e semelhança da sua vida: “Manter o emprego e ter saúde”.

Pelo menos 200 mil pessoas vivem em habitações inadequadas em Hong Kong, em fracções subdivididas de variadas formas, em cubículos ou gaiolas, muitas com condições precárias que constituem um “insulto à dignidade humana”, na descrição da ONU.

2 Jul 2017

Hong Kong, 20 anos | Entrevista | Larry So, académico: “Há muitas pessoas a falar dos velhos tempos”

Larry So não é saudosista, embora agradeça a educação que teve. Nascido e criado em Hong Kong, o académico conta que a geração a que pertence se sente desiludida com duas décadas que podiam ter sido muito melhores. As expectativas eram grandes e os sucessivos Governos da RAEHK não deram conta do recado. O analista explica ainda porque é que os que nasceram depois também não se conformam

Em termos gerais, estes 20 anos de Hong Kong enquanto região administrativa especial da China vão ao encontro do que estava à espera?

De uma forma geral, sim. Mas também há muitos aspectos que não correspondem às expectativas. Sou da área dos serviços sociais. Eu e os meus amigos desta área estávamos à espera de que houvesse uma melhoria significativa neste aspecto. Hong Kong era uma colónia britânica e, com esse estatuto, não se esperava que houvesse um grande investimento, pelo que havia a esperança de um desenvolvimento dos serviços sociais. Claro que houve algumas melhorias, mas ficaram aquém das expectativas. Tínhamos, na altura, entre 40 a 50 anos e pensávamos que poderíamos ter uma reforma, por exemplo. Mas em Hong Kong, à semelhança de Macau, o sistema de previdência é terrível. 

Estamos a falar de um centro financeiro internacional, mas também de uma cidade onde existem muitas pessoas em situação de pobreza extrema – e os números aumentam nos últimos anos. Estas duas décadas não serviram para se trabalhar para a igualdade social.

Os ricos ficaram mais ricos e os pobres passaram a ter cada vez menos, como aliás demonstra o Coeficiente de Gini, que mede a desigualdade. Este coeficiente aumentou quase um ponto desde 1997. É uma medida objectiva.

Qual é a explicação para este fenómeno?

Quando Hong Kong voltou para a China, a política prioritária da região administrativa especial foi a manutenção da estabilidade económica. Partiu-se da ideia de que se houvesse mais dinheiro no topo, chegaria a todos e que a população sairia beneficiada. Mas parece que houve uma concentração excessiva das políticas na dimensão económica: tentou-se arranjar terras para que houvesse mais construção, mas não se investiu em habitação pública. Deram mais terrenos aos magnatas, que puderam aumentar os seus investimentos. Este tipo de política funcionou em certa medida, mas foi um erro pensar-se que o dinheiro iria chegar às pessoas comuns. Se olharmos para os níveis de qualidade de vida e os problemas políticos com que Hong Kong se depara, chegamos à conclusão de que a aposta na economia só beneficiou uma pequena parte da população.

Podemos falar em falhanço no que toca à qualidade de vida dos residentes de Hong Kong? A cidade é muitas vezes retratada como o local onde milhares de pessoas vivem em cubículos.

No tempo em que Hong Kong era uma colónia britânica, a habitação pública tinha muita importância em termos de apoio social. A Administração construiu apartamentos que disponibilizava a preços baixos. Metade da população vivia em habitação pública. Neste momento, temos pouco mais de 40 por cento da população a residir neste tipo de habitação. É um tipo de apoio muito importante porque um terço dos rendimentos das famílias é gasto nas rendas. É muito complicado. A Administração britânica lançou, na altura, medidas que considero muito boas, porque permitiram combater a pobreza. Mas este tipo de políticas não beneficia os magnatas ou os investidores do sector imobiliário, porque quantas mais fracções públicas houver, menos gente irá comprar no mercado privado. Neste momento, falta habitação pública e o preço do imobiliário continua a aumentar. De cada vez que se pensa que não pode subir mais, há um novo pico. Neste momento, o pé quadrado custa em média 20 mil dólares de Hong Kong.

O primeiro Chefe do Executivo de Hong Kong, Tung Chee-hwa, não foi propriamente popular.

O Governo Central tinha de escolher alguém em quem pudesse confiar. Essa pessoa tinha de ter uma ligação a Pequim e à Administração britânica. Não digo que fosse a única escolha mas, nessa altura, era a melhor. 

Eram anos complicados, que foram pouco tempo depois dificultados pela tentativa falhada de legislar o Artigo 23.o da Lei Básica. E aí começámos a ver milhares de pessoas nas ruas.

Sim, isso foi um problema. Tung Chee-hwa forçou essa questão demasiado depressa, subestimando o facto de, ao contrário dele, nem toda a gente estar satisfeita com o regresso à China. Muitas pessoas da classe média e da classe baixa-média não pensam dessa forma. Na altura, não teve sorte, na medida em que a situação económica também não era uma vantagem. Tentou disponibilizar mais habitação pública, mas a resistência dos promotores do mercado imobiliário foi tão forte que se viraram para o Governo Central. Foram directamente a Pequim e o Governo Central, que tinha de arranjar um equilíbrio, decidiu que não ia haver habitação pública. Os magnatas opuseram-se.

Tung Chee-hwa estava de mãos atadas?

Ambas as mãos, não foi apenas uma. Uma delas com a questão das condições de vida da população e a outra com os magnatas a dizerem ‘não’.

Portanto, não teve suficiente força política.

Não, na altura não teve. Se nos lembrarmos dessa altura, a economia não era uma vantagem.

Tinha rebentado a crise financeira asiática de 1997.

Sim. A economia num estado complicado, ele a tentar levar por diante o projecto de habitação pública e os magnatas a dizerem que não. Tentou desviar as atenções com o Artigo 23.o, e foi o que se viu.

E ainda houve o surto de pneumonia atípica, em 2002 e 2003. Morreram quase 300 pessoas em Hong Kong.

Foi outra coisa terrível. Diria que Hong Kong enquanto região administrativa especial não teve um bom início. Havia muitas pessoas que esperavam uma série de coisas positivas depois do retorno à China, mas toda esta situação não ajudou.

Depois Donald Tsang assumiu o poder. Há analistas que consideram que foi o único Chefe do Executivo capaz de congregar diferentes sectores e interesses. Foram anos de alguma acalmia.

Teve sorte logo no início, em termos políticos e no contexto económico. Teve pelo menos dois ou três anos de estabilidade. Era muito diferente de todos os outros. Era um funcionário público, um burocrata. O modo britânico de treinar os funcionários da Administração fazia com que as pessoas não estivessem sempre nos mesmos cargos. Tinham determinadas funções durante um par de anos e depois mudavam de departamento. 

Donald Tsang beneficiou dessa formação.

Sem dúvida alguma. Toda esta geração de funcionários públicos passou por esta experiência e Donald Tsang tinha a vantagem de perceber de finanças.

C.Y. Leung, que deixa agora o cargo, foi bastante menos popular. Teve um mandato com dias muito difíceis, com o movimento Occupy. Mais recentemente, surgiu uma nova palavra na política de Hong Kong: independência. Há estudos que apontam para um reforço do sentimento de pertença a Hong Kong, por oposição à China, nos últimos anos. Confirma esta ideia?

Sim, isso é um dado adquirido. O movimento Occupy não teve na origem qualquer vontade independentista – as pessoas pediam o sufrágio universal. Era este o pedido da maioria dos jovens. Mas o Governo Central apoiou o pulso forte de C.Y. Leung, o método que ele utiliza. De facto, ele hostilizou os jovens.

Quando olhamos para o Occupy e outras manifestações que têm acontecido em Hong Kong, deparamo-nos com líderes que, se já eram nascidos em 1997, eram ainda demasiado novos para perceberem onde estavam. Compreende-se que pessoas de gerações anteriores possam estabelecer paralelismos com os tempos da colónia britânica, mas estes jovens não podem fazê-lo. De onde vem toda esta vontade de oposição? Como é que se explica que não queiram fazer parte da China?

Não estavam em Hong Kong antes de 1997, mas ouviram muito e leram muito acerca do passado. Percebem o espírito antigo de Hong Kong, em que muitas pessoas vinham das classes baixas, lutavam por vidas melhores, entreajudavam-se e conseguiam um nível de vida melhor. As gerações mais novas não viveram isto, mas sabem do que estão a falar. Por outro lado, nas escolas secundárias e universidades leccionam professores que, em 1997, tinham 20 ou 30 anos. São pessoas que nutrem certos sentimentos em relação aos tempos da colónia britânica, sobretudo quando comparam C.Y. Leung com a Administração britânica. Alguns deles dizem: ‘Nos velhos tempos, pelo menos o Governo iria ouvir-vos. Não vos iria dar tudo, mas vinha, sentava-se e falava com vocês. Talvez vos desse um bocadinho do que querem. C.Y. Leung, com o pulso forte que tem, não vos dá nada’.

O passado continua demasiado presente em Hong Kong?

Diria que sim, há muitas pessoas que voltaram a falar dos velhos tempos. E os velhos tempos não significam necessariamente que a Administração britânica era boa. Mas o modo e a qualidade de vida, em termos comparativos, eram muito melhores. Em termos económicos, no que toca à performance do Governo, encontramos diferenças antes e depois de 1997.

As pessoas sentem-se traídas, na medida em que havia expectativas no retorno à pátria que saíram defraudadas?

Na minha geração, sim. As pessoas que nasceram depois de 1997 não tiveram essa experiência, mas comparam estes três Chefes do Executivo e encontram diferenças. Dos três, C.Y. Leung foi o pior. Em termos económicos, estes últimos cinco anos foram melhores do que a recta final de Tung Chee-hwa. Mas não é a economia que interessa. É o modo como o Governo lida com as pessoas e, sobretudo, a forma como defende as políticas que implementa. C.Y. Leung não defende as suas políticas; limita-se a dizer que são as soluções possíveis e que o que está a fazer é o melhor. Há muitas coisas que foi dizendo que levam as pessoas a perguntar ‘mas o que é que ele está a dizer?’.

Falando agora do futuro. Carrie Lam toma posse amanhã. Quando foi eleita, vários analistas consideraram que se trata de mais do mesmo.

Sim. Carrie Lam tem uma carreira como funcionária pública, o que é uma vantagem em relação a C.Y. Leung, porque conhece a Administração. Mas isto não significa que esteja numa posição tão vantajosa como a que Donald Tsang teve, porque ele não se rodeou do mesmo tipo de pessoas. Todos sabemos que Carrie Lam fez muitas promessas ao regime para poder estar no poder. Tem de pagar todos os favores. Uma das formas passa pela nomeação de pessoas para a sua equipa. A maioria delas não corresponde às preferências da população. 

Não podemos esperar, então, melhorias no ambiente social e político de Hong Kong.

Não. É algo que posso afirmar com certeza. Ela poderá não ter o mesmo pulso forte de C.Y. Leung, pode ser ligeiramente mais diplomática, mas não acredito que consiga dialogar com as diferentes forças políticas. Teremos mais ou menos o mesmo tipo de situação.

Tem saudades da Hong Kong anterior à transferência?

Não exactamente porque, quando era jovem, era uma espécie de anti-colonialista. Mas posso dizer que valorizo muito a educação que Hong Kong me deu.

 

Patten, lágrimas, entusiasmo

Partiu para o Canadá, passou uns anos nos Estados Unidos, mas antes de embarcar garantiu que, a 1 de Julho de 1997, estaria em Hong Kong. A promessa, feita ao seu grupo de amigos, foi cumprida. No momento em que nascia a primeira das duas regiões administrativas especiais da China, Larry So estava em Hong Kong, a assistir às cerimónias pela televisão, em casa de um amigo. “Chovia muito”, recorda.

“Estávamos todos muito entusiasmados. Chris Patten [o ultimo Governador de Hong Kong] estava emocionado, com lágrimas nos olhos”, conta. Foi uma imagem que o marcou. Assim como “ver a polícia a mudar os distintivos, substituir a coroa pelo logótipo da região administrativa especial”.

Foi uma noite em que se falou muito. O futuro era uma incerteza. “Havia muita especulação. Entre os meus amigos, alguns tinham passaporte do Canadá e do Reino Unido. Todos decidiram ficar por algum tempo, para ver o que ia acontecer”, explica Larry So. O que aconteceu não correspondeu às expectativas da generalidade.

Nascido e criado em Hong Kong, o académico da área dos Serviços Sociais acabou por partir mais uma vez, em 2002, mas para um destino mais próximo: Macau. É por cá que tem estado desde então, sempre atento ao outro lado do Delta.

2 Jul 2017

Hong Kong, 20 anos | Aumentam pedidos de passaportes britânicos

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á cada vez mais residentes de Hong Kong a tentarem assegurar passaportes estrangeiros como garantia para o futuro, conta a Reuters. São pessoas que temem o aumento dos conflitos sociais ou uma rápida erosão das liberdades.

A agência combinou dados oficiais, informações de fontes diplomáticas e testemunhos de vários residentes para fazer aquilo que diz ser “o retrato de uma ansiedade crescente em relação ao futuro”. Sobretudo entre a nova geração, a influência cada vez maior de Pequim é encarada como uma sombra.

A procura de passaportes estrangeiros cresceu a partir do momento em que a sociedade se fragmentou, na sequência do movimento Occupy de 2014. O facto de haver quem peça a independência – uma linha vermelha que o Governo Central não deixa pisar – contribuiu para o aumento dos receios, assim como o episódio do desaparecimento de vários editores e livreiros de Hong Kong.

“Em 2047, acaba o período da transição e não sabemos o que irá acontecer. Estou a preparar-me para o pior”, conta Dennis Ngan, um jovem de 25 anos. À semelhança de vários amigos, vai renovar o seu BN(O) – o passaporte britânico especial dado aos permanentes residentes antes de 1997. No ano passado, foram emitidos mais de 37.500 documentos deste género, um aumento de 44 por cento em relação a 2015 e o número mais elevado da última década.

O BN(O) não dá direito à residência no Reino Unido, mas os seus titulares podem permanecer seis meses e têm garantida protecção consular britânica. As autoridades do Reino Unido não forneceram à Reuters dados sobre os passaportes emitidos este ano, nem o número de pessoas que pediram a cidadania. No entanto, fontes diplomáticas da agência garantiram que houve “uma corrida aos pedidos de cidadania”, um fenómeno que justificam com as preocupações sobre o futuro do território.

Outras possibilidades

Há quem prefira olhar para o Canadá: o número de residentes de Hong Kong com passaporte do país cresceu substancialmente entre 2005 e 2015. Também Taiwan é visto como uma possível saída. Só no ano passado, 1086 pessoas de Hong Kong passaram a ser residentes da ilha, o valor mais elevado da última década.

Em 2015, o número de cidadãos da RAEHK que pediu residência permanente na Coreia do Sul foi sete vezes superior ao registado em 2007. Os vistos concedidos pelos Estados Unidos aumentaram 22 por cento de 2015 para 2016.

2 Jul 2017