Hong Kong, 20 anos | Primeira geração pós-97 não se identifica com a China

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]asceu no ano da transferência de soberania. Chau Ho-oi tem hoje 20 anos e houve uma altura em que sentia um orgulho imenso em pertencer a um território que faz parte da Grande China. Em entrevista à Reuters, a jovem recorda um desses momentos: os Jogos Olímpicos de Pequim 2008, em que a selecção nacional conquistou 48 medalhas de ouro, mais do que qualquer outro país. Chan tinha 11 anos.

“Achava que a China era óptima. Se me perguntassem, na altura, se me sentia chinesa, dizia imediatamente que sim”, conta. Nove anos depois, a forma como lida com o país modificou-se. E não é a única: a primeira geração pós-transferência está, cada vez mais, a virar as costas ao Continente.

De acordo com um estudo da Universidade de Hong Kong publicado na semana passada, apenas 3,12 por cento dos 120 jovens entrevistados consideram ser “chineses”. Os inquiridos têm entre 18 e 29 anos. Há duas décadas, quando o estudo começou a ser feito, 31 por cento diziam ter um sentimento de pertença à China.

A Reuters conversou com dez jovens nascidos em 1997. Todos eles, incluindo um migrante da China Continental a viver na antiga colónia britânica, afirmaram que se identificam como “Hong Kongers”. E acrescentaram que a lealdade que sentem é para com a cidade.

Para esta forma de estar contribuíram em muito vários acontecimentos percepcionados pelos residentes como manobras de Pequim para controlar o território. Em 2012, o então adolescente de 15 anos Joshua Wong arrastou milhares de pessoas para as ruas em protesto contra um novo currículo nacional obrigatório, entendido como uma “lavagem cerebral” aos estudantes, que tinha como objectivo promover o patriotismo. O currículo acabou por ser engavetado.

Dois anos depois, aconteceu o movimento “Occupy”, mais uma vez com Joshua Wong ao leme. Foram 79 dias de protestos nas ruas numa tentativa – falhada – de pressionar Pequim a autorizar o sufrágio directo universal para a eleição do Chefe do Executivo.

O desaparecimento de vários editores de Hong Kong e os esforços de Pequim para que dois jovens deputados eleitos, ambos pró-independentistas, fossem afastados do Conselho Legislativo também abalaram a confiança no princípio “Um país, dois sistemas”.

O medo invisível

Vinte anos depois da transferência de soberania, as perspectivas não são animadoras. A estudante Candy Lau tem receio de que a vida em Hong Kong seja cada vez mais controlada. A jovem teme que “a vigilância massiva da China Continental” chegue a Hong Kong, que deixará de ser “uma cidade segura”. “É um medo invisível”, diz.

Há cada vez mais jovens a lutarem pela autonomia do território e, nos últimos anos, surgiu uma palavra nova no léxico político local: a independência, ideia que é, obviamente, afastada por Pequim com veemência.

No mês passado, o número três da hierarquia chinesa, Zhang Dejiang, responsável pelos assuntos de Hong Kong, vincou que é necessário “reforçar a educação nacional junto da juventude de Hong Kong e desenvolver conceitos correctos acerca do país desde tenra idade”, para que a população mais nova possa “amar a pátria”.

Carrie Lam, que toma amanhã posse como Chefe do Executivo, não perdeu tempo: em declarações à Agência Xinhua, prometeu que vai cultivar o conceito “Eu sou chinês” desde as creches.

A agência oficial chinesa deu conta da participação de 120 mil jovens de Hong Kong em programas de intercâmbio com o Continente, no âmbito do 20.o aniversário da transferência. Para os entrevistados da Reuters, estes esforços podem ser contraproducentes.

“Como é que o Governo não percebe que quanto mais obriga as pessoas de Hong Kong a amar a China, mais força dá à oposição?”, pergunta o jovem Jojo Wong.

A importância da cultura

Até mesmo os estudantes mais moderados, que dizem não ter qualquer posicionamento político – como é o caso de Felix Wu –, preferem identificar-se primeiro como sendo “Hong Kongers” e só depois fazem referência ao facto de serem da etnia Han.

“A China é um mercado muito grande e Hong Kong tem necessidade de se integrar neste mercado”, afirma Wu. “Mas politicamente prometeram que nada iria mudar durante 50 anos. Acho que estão a faltar um pouco à palavra.”

Ludovic Chan, um estudante de Gestão que quer ser funcionário público, também diz ser um “Hong Konger”, mas não vê como é que o seu sentimento de pertença conflitua com o facto de ser chinês. “As duas culturas diferentes podem coexistir. Não deviam estar sempre a dizer que Hong Kong e a China têm de estar integrados. Mas os dois lados deviam tentar um entendimento mútuo.”

Há estudantes do Continente a viverem na antiga colónia britânica que olham para a questão de uma forma mais optimista. “Vinte anos são apenas o início”, lança Yoshi Yue, a viver na RAEHK há três anos. “Irão lentamente desenvolver um sentimento de pertença. Vem da cultura, não da política.”

2 Jul 2017

Hong Kong, 20 anos | Aproximação à China com impacto no modo de vida

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] historiador Jason Wordie considera que as maiores mudanças dos últimos 20 anos em Hong Kong estão relacionadas com o aumento de turistas e residentes da China continental.

O fluxo de gente vinda do outro lado da fronteira teve um efeito quase transversal: o comércio passou a estar subordinado aos seus interesses, alterando a fisionomia de grandes partes da cidade, e o excesso de gente em quase todos os espaços públicos gerou uma tensão que explica, pelo menos em parte, a contestação política actual.

“Há 150 mil pessoas por dia a vir da China. Desde a transferência, mais de um milhão passou a residir em Hong Kong”, salienta o britânico, a viver na cidade há três décadas.

Dados oficiais indicam que dos 7,3 milhões de habitantes de Hong Kong 2,2 milhões nasceram na China Continental, em Macau ou em Taiwan. Em 2016, mais de 56 milhões de turistas visitaram a cidade, a maioria da China.

“Há 20 anos não havia o fluxo de turismo da China. Em algumas zonas vemos que o comércio mudou. Locais onde originalmente as pessoas comuns viviam, tornaram-se áreas de comércio para os ‘mainlanders’. Sítios que costumavam ser cafés, bancas de jornais, agora vendem cosméticos ou produtos de leite ou alguma coisa que os chineses querem”, aponta.

Isto veio alterar o ambiente de vastas partes da cidade, onde “é preciso andar muito para se encontrar uma papelaria”. Segundo Wordie, há um sentimento de que a cidade foi, de alguma forma, sequestrada.

O historiador lembra um protesto numa zona pacata, Yuen Long, que considerou compreensível, perante o cenário de fim-de-semana, em que “as pessoas comuns não conseguem atravessar a rua porque toda aquela gente está lá, com malas de viagem, a comprar coisas”. O mesmo se passa na piscina pública, onde grupos turísticos terminam as visitas, e subitamente “estão lá mais 300 pessoas”.

“Os residentes sentem: Esta é a minha cidade, é o meu dia de folga e não consigo entrar num café, ir ao cinema”, explica.

Wordie destaca que o volume chama a atenção para a origem, que noutra situação não seria problemática. “As pessoas sentem-se pressionadas. Além disso, os que vêm de fora têm um nível cultural diferente e há choques. Quando subitamente são 18h e o metro está a abarrotar, há pessoas a empurrar… Isso enfatiza a diferença. Quando as pessoas são fisicamente confrontadas com outras faz com que digam: Nós não somos como eles”, comenta.

O número de visitantes da China começou a aumentar em 2003, depois de serem lançadas medidas para facilitar a entrada, após um surto de pneumonia atípica. No entanto, foi a partir de 2008 que “os números aceleraram muito” e isso deu “um grande empurrão à situação política”, de grande contestação.

A presença dos chamados ‘mainlanders’ aliou-se se a outros factores que fazem com que hoje Hong Kong seja “mais como a China”. “Ouve-se mais mandarim, o Governo parece-se mais com o da China, é mais burocrático”, exemplifica.

O valor do antigo

No topo das cidades mais caras do mundo, Hong Kong esticou as pernas nas últimas duas décadas: tem um novo aeroporto, os aterros permitiram-lhe crescer, tem novas pontes, mais linhas de metro, mais construção em altura. Mas este ímpeto de modernização gerou a vontade de proteger as primeiras vítimas do desenvolvimento desenfreado, os edifícios.

“Há uma lojinha em processo de ser preservada, tem 130 anos, uma arquitectura interessante, é uma sobrevivente, mas ouvindo alguns dos activistas até parece que é o Coliseu de Roma”, ironiza o autor de três livros sobre a história de Hong Kong, admitindo que esse tipo de movimentação “é sinal que as pessoas sentem que tudo está a mudar e têm de se agarrar a algo”.

“As pessoas precisam de alguns edifícios velhos”, que carregam a memória e a identidade do espaço.

Há 114 edifícios protegidos em Hong Kong (considerados monumentos) e outros mil classificados como tendo algum valor histórico. No entanto, nem todos os imóveis com valor estão nas mãos do Governo e os elevadíssimos preços fazem com que não seja viável a aquisição dos que estão na mão de privados.

“O promotor imobiliário vai dizer ‘Isto não é histórico, é só velho e posso ganhar dez mil milhões de dólares [de Hong Kong] com ele’”, aponta Wordie.

O historiador, que organiza passeios históricos pela cidade orientados para residentes, entende que entre 2003 e 2014 “gerou-se uma verdadeira consciencialização em Hong Kong sobre questões de património, ambientais, de igualdade, por melhores políticas sociais”.

“As pessoas sentiam-se com poder”, principalmente depois de meio milhão de ter saído à rua, para rejeitar a adopção da legislação sobre o Artigo 23.o – e ter conseguido. “Nos últimos cinco anos isso acabou.”

“As pessoas olham em volta e dizem: ‘Qual é o objectivo? Não está a funcionar, ninguém está a ouvir, estou a perder tempo’. Muitos juntaram as peças e perceberam que vai tudo dar à política”, afirma.

2 Jul 2017

Hong Kong, 20 anos | Êxodo de expatriados nos sectores bancário e financeiro

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ai um, entra outro. Sai um estrangeiro, entra um oriundo da China Continental. É este o fenómeno que se tem vindo a verificar nos sectores bancário e financeiro de Hong Kong, uma movimentação que chamou a atenção das agências internacionais de notícias e que pode resultar na descaracterização de uma das principais praças de negócios do mundo.

“Houve um influxo de profissionais da China em Hong Kong, mais visível no sector financeiro”, explica ao HM Diana Pires, uma gestora luso-britânica que trabalha na RAEHK, no sector financeiro. “Olhando para trás, há apenas dois anos os expatriados teriam várias ofertas de emprego a qualquer momento. Isso mudou drasticamente.”

De acordo com dados oficiais, o aumento de pessoas oriundas do Continente regista-se sobretudo em bancos de investimento, onde 80 por cento dos funcionários são oriundos do outro lado da fronteira.

Um dos gestores do BOCOM International contou à Reuters por que decidiu trocar a capital pela região administrativa especial: “O ambiente é muito melhor do que o de Pequim, onde costumava trabalhar”. Hong Hao vive em Hong Kong há já cinco anos. “A comida é boa e os impostos também.”

Diana Pires confirma a impressão transmitida por Hong Hao. “Os profissionais da China são cada vez mais atraídos pelo estilo de vida de Hong Kong”, diz. Esta procura pela região é “impulsionada principalmente pelo sistema fiscal atractivo que aqui temos”. Os impostos na RAEHK variam entre 15 e 17 por cento; no Continente podem chegar aos 45 por cento do valor do vencimento.

O mercado da língua

As ofertas públicas iniciais (IPO, na sigla inglesa) chinesas dominam o mercado de Hong Kong. No ano passado, era o maior do mundo em termos de IPO, com 80 por cento das novas empresas listadas a surgirem da China Continental. Os serviços financeiros representam neste momento 18 por cento da economia do território, uma subida significativa quando comparando com os 10,4 por cento de 1997.

Evan Zhang, um jovem de 26 anos natural da província de Guangdong, é uma das novas contratações da CITIC Securities International e olha para o aumento do capital chinês em Hong Kong como uma oportunidade pessoal, por poder “desempenhar um papel” nestas transacções.

Num mundo de negócios cada vez mais em língua chinesa, os profissionais do Continente têm uma vantagem em relação a muitos expatriados: o domínio do idioma. “Não estamos a ver apenas um aumento significativo nos executivos da China Continental. O conjunto de habilidades também mudou. As línguas tornaram-se um requisito, seja cantonês ou mandarim, ou então ambos os idiomas”, aponta Diana Pires. “É uma habilidade que muitos expatriados não têm.”

O aumento dos negócios da China está a ser acompanhado por algum desinvestimento de multinacionais com sede no Ocidente, que procuram deslocar os seus serviços para cidades menos dispendiosas.

Numa cidade com um custo de vida elevado, as condições que se oferecem aos expatriados têm vindo a cair. O valor médio dos salários oferecidos a gestores com alguns anos de carreira diminuiu dois por cento nos últimos cinco anos; os benefícios desceram cinco por cento, apontam as consultoras internacionais.

“Há uma enorme mudança no panorama de expatriados e naquilo que lhes é oferecido para trabalharem aqui”, constatou à Reuters a gestora Christine Davis, a viver em Hong Kong desde 2011, depois de ter residido na cidade entre 1999 e 2001.

Diana Pires destaca que a facilidade em se contratar profissionais na China faz com que as empresas invistam menos no recrutamento de estrangeiros. “É por isso que existe um êxodo de expatriados. Os pacotes não são tão atraentes e a concorrência da China é feroz.”

No sector bancário, os jovens chineses ganham entre menos 20 a 30 por cento do que os colegas expatriados. Na lista de benefícios não constam, por exemplo, a habitação e as propinas das escolas dos filhos.

Outros impactos

A Reuters assinala que esta mudança demográfica na indústria financeira tem reflexos na economia local. Os restaurantes de comida chinesa congratulam-se com os resultados obtidos. O mesmo acontece com as empresas que têm apartamentos prontos a arrendar a executivos sem famílias e os centros que oferecem cursos de Inglês. Há ainda um aumento de Audis nas estradas, uma vez que se trata de uma marca de carros muito popular entre os chineses.

Esta alteração na demografia tem impacto junto de restaurantes ocidentais de certas zonas da cidade e, noutra perspectiva, poderá significar uma mudança no modo como Hong Kong tem vivido e se tem apresentado ao mundo. “Sem ocidentais em Hong Kong ou chineses ocidentalizados, os chineses [do Continente] têm pouca visão sobre a condução dos negócios ocidentais”, afirma Diana Pires. “E esse foi essencialmente um dos muitos papéis de Hong Kong.”

2 Jul 2017