Ao domingo, ao fim da manhã

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]iver com ruínas humanas afastam-nos de pessoas cheias de futuro, mesmo que saibamos o que a vida é. Mais tarde ou mais cedo, ninguém terá futuro. Os sítios que revisitamos tanto em recordação, imaginação ou na realidade são “vistos” através de um ecrã. Há camadas. A da realidade ou como julgamos sem suspeita foi a realidade do lugar e do nosso estar por lá. A do sentido que dá a compreender que foi e não é já. Mas a significação compara sempre, de forma imediata ainda que oculta, a realidade pura com a realidade simbólica.

O que chamamos realidade é um horizonte completamente esfolado de todos os sentidos subjectivos, privados, únicos, resultantes da vida que acontece a cada pessoa. Se habitássemos sem cessar no cosmos projectado pela inteligibilidade astronómica, não era por muito tempo. Ainda assim, também a realidade depurada de toda a subjectividade não é tão reduzida que não ache estranheza à entidade que é o mundo e a nossa vida metida dentro da ciência.

Acreditar que a ciência é última realidade é uma superstição. Não que se saiba qual é verdadeiramente “a” realidade, e por comparação se pudesse dizer que a realidade do mundo astrofísico não é a realidade. O que sucede é que se cada pessoa vivesse no mundo com entidades científicas, estranharia, depois de se ter espantado por ter acordado nele. Acabando por chegar à beira da loucura.

Agora, pode pensar-se, então, que a realidade, contrariamente à tese objectiva, materialista, reducionista, descascada de toda a subjectividade, resulta de uma projecção subjectiva, privada, idiossincrática. Que há tantas realidades quantas as pessoas, que há tantos mundos quantas as pessoas que neles vivem, do mesmo modo que há tantas vidas para além da vida conforme as pessoas que as delimitam pelas suas próprias configurações.
Vivemos com a crença de que estamos metidos no meio da mesma realidade e que todos vemos exactamente o que os outros vêm.

Sem dúvida, há pessoas que vêm o que outros não vêm, mas, no fundo e na essência de cada percepção, todos temos um mundo em nosso redor que é o mesmo. E, contudo, o mundo em nosso redor é sempre parte tanto do mundo em si, vasto, extenso, infinito, quanto faz parte do “nosso pequeno mundo”, no limite do meu mundo interior. Um local onde estejamos, sei cá, numa esplanada a tomar o que for, a ver pessoas estarem ou passarem, a ler um livro, a ouvir música, a ver o Tejo confundir-se com o Atlântico,— pensamos que cada pessoa tem o seu conteúdo específico que a ocupa, mas, no fundo, todas estão grosso modo naquele sítio, aí. Ora o que distingue os diferentes aspectos de uma esplanada para as pessoas que lá se encontram a dada altura ou para cada uma delas de cada vez que lá vai não é apenas o sítio em que estão sentadas, nem a hora do dia, nem o tempo que lá estão. Todos os outros que lá se encontram são conteúdos objectivos para mim e escapam mentalmente ao que sei deles. Também eu sou um conteúdo objectivo, mesmo até só como quem faz parte da lotação do local. Todos somos reduzidos a uma anatomia, ao sítio onde estamos sentados, pelo menos.

Mas aquele tempo específico das nossas vidas não é o domingo de manhã. Cada domingo é diferente, como sabemos. Mas o que constitui a sua diferença é o estádio da vida em que cada um se encontra. Os domingos que eu tenho para viver são muito menos dos que eu vivi. Mesmo que a “esperança de vida” seja apenas reguladora, os domingos dos últimos quatro anos da vida de alguém são diferentes dos domingos da infância e da juventude, até mesmo para criaturas com vidas ceifadas cedo de mais. E há o estado de espírito específico da pessoa nesse momento da sua vida, e o modo de saber estar numa esplanada, de se alhear de si ou de estar ensimesmada com os seus pensamentos mortais de tédio e angústia.

Não sabemos, contudo, nenhuma dessas determinações: quantos domingos temos, quantas vezes nos sentaremos num local, qual é o estado de espírito dos outros, definido pelas suas vidas pessoais naquele preciso instante, como fazem a experiência do fim da manhã de domingo num sítio.

As determinações subjectivas são mais objectivas do que o Tejo ir fundir-se com o Atlântico, como é bela a rapariga que está sentada lá ao fundo, com a cabeça mergulhada na sua leitura, como são irritantes as crianças que guincham, como a manhã vai chegar ao fim, como é hora e ir almoçar com a minha mãe.

23 Fev 2018

Ponto Preciso

[dropcap style≠‘circle’]H[/dropcap]á um ponto. Não sei se é no tempo no espaço ou em mim e de que maneira. Olho pela janela com a memória do bicho no colo e a cortina invisível adejando subtil e sensível às brisas secretas, é uma inquietação sem limite. Foi talvez um comboio que partiu e agitou o universo. Um pensamento fugaz. Uma lembrança. Ou o peso incerto deste outro bicho. Sempre que me sento, com o bicho pendurado num ramo, penso nele e há talvez uma viagem que não faço. O ponto alto da estimativa dos dias corridos demais a imprecisão, a indecisão nos gestos. Que se geram e interrompem sem sentido nem vontade. O que não tem estimativa possível. O que pára. O que trunca o destino. O que não se estima. O que se estima e mede na falta da autoestima. E das árvores, dessas, não reza a história, ficam para sempre paradas no chão, no respeito pelo sono do bicho bom, branquinho, que já não está, que foi para o céu. Resta o outro, de sempre.

Penso nele como num dos pecados capitais. E não consigo deixar de pensar neste pequeno fragmento de Kant, que há tanto, tanto tempo disse o que continua tão actual: “A preguiça e a cobardia são as causas porque os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio (…) / continuem, no entanto, de boa vontade menores durante toda a vida(…).”.Menores nos passos a cobrir caminho. Menor o caminho. E tanto mundo a fazer… olho para o espelho como se as árvores se vissem ao espelho. Tenho um bicho encavalitado no ramo da esquerda a pesar-me.

Não devia fazer parte da natureza humana, contornar os assuntos difíceis da psique. Tendo uma só oportunidade de lidar com a vida nas suas complexidades, tenho a ilusão de que se avança com mais descanso olhando de frente, espreitando-lhe os cantos antes de dormir, e atrás das portas, e com ela nas pontas dos dedos, nas palmas das mãos. Como folhas a recolher em grandes haustos o ar necessário e a expelir delicadamente o que sobra. Enfim. Esta proliferação de bichos a circular pela casa para que nem tudo se encerre nos eternos e nunca silenciados diálogos interiores que se desenrolam nestes corredores dia após dia após dia e após. Bichos domésticos e monstros fantasmagóricos a subir pelas paredes. Coisas domésticas, como o nome indica e íntimas de portas a dentro, a distrair uma unidade consistente e solitária que não gosta de se ver ao espelho. Nem seria preciso. Sentem-se por aí como um peso, uma obrigação a cuidar. A esconder das visitas não vão morder ou afiar as garras onde não devem. Da preguiça, esse bicho que cuidadosamente cuidamos na nossa casa, no colo, no ombro e na cama, com aquele sentimento misto de rejeição e inevitabilidade. De quase afecto. Porque nos acompanha e protege. Da destruição, de nós mesmos, talvez. Ou desamor, porque nos protege de voar. Com as dificuldades técnicas em que a alma emperra de súbito. Aquele peso no ombro esquerdo, que deixa mesmo assim liberdade ao outro braço. Ramo. Como um saco de dúvidas, que ultrapassam a margem do conforto doméstico em que convivemos, vivemos e fazemos viver, esse animal manso, profundamente íntimo e caseiro, pequeno no porte mas denso de presença e pleno de interrogações. Como uma marca profundamente gravada na pele por garras que foram concebidas, no acto de criação do mundo, para outros efeitos.

Bicho peludo e pacato, entre os cinzas e umas texturas riscadas a confundir com os galhos onde vive bem alto. Longe de terra e escondido do céu. Bem longe de tudo afinal. A dormir catorze horas por dia. Que sorte a do bicho. De metabolismo lento e pouca actividade. Há subespécies de dois e três dedos. Não sei agora, assim de repente, qual é que exprime a aversão ao trabalho. A mais conhecida, vinda como as outras das matas e florestas da américa central ou do sul, assombrar um mundo inteiro. Não é essa a que me importa. Que viva com as pessoas que não gostam do que fazem. É aquela outra. Num ramo diferente na evolução da espécie, mas aparentada, insegura e tendo como ramificação, um outro bicho, em tudo semelhante à preguiça comum. O mesmo pêlo a confundir-se com a casca das árvores, a mesma inactividade estrutural, a mesma lentidão e inocência. Camuflada de contornos inseguros, meio desfocada entre papel e estatuto, vocação teatral, sempre escondida atrás da sua personagem. A que vive por aqui e se dedica ao teatro fervorosamente. A um teatro de que é preciso descobrir segredos camarins e bastidores. Destapar frascos de maquilhagem, cheirar os cremes e perfumes e tocar os trajes de cena. Os limites. Que aparece sempre mal disfarçada da sua personagem preguiça favorita. A insegurança. Em todas as peças, uma, fundamental a desempenhar a preguiça. Essencial como um ponto. Ali para lembrar o esquecimento súbito. E tem todos os sinais de entender bem por dentro o que a move em cena.

Vem disfarçada de sono, de cansaço, insegurança, indecisão. Não – espera – quem é quem, afinal? Quem é quem o bicho actor e quem é quem a personagem bicho. Não confundir as coisas e trocar o mestre pelo aprendiz. Pobre personagem bicho. Não caça, não faz mal a ninguém. Não tem alma de predador. Trepa à árvore e ali fica pendurada num braço esperando que este não se me mova ao vento, nem este a disfarçada pelagem que cresce em contracorrente no ruído das folhas e texturas do corpo. Da árvore. Num todo vegetal de aparência. Mas enquanto dorme custa à arvore deixar-se levar a dançar com as correntes de aragem mansa para não lhe incomodar o sono o silêncio o modo. Como um gato no colo. Se fosse pessoa. Mas árvore em que se dependura no ombro e no desconforto de o não poder fazer de costas viradas para baixo. Olho-a e sinto-lhe o peso no ombro esquerdo e, por respeito ao sono do bicho, estendo o ramo para lhe dar espaço e sinto-o acomodar-se dependurado como é seu hábito, mais pesado ainda, mas confortável nesta posição. Confortável para ele. Para mim, não. E ali fico de bicho encavalitado no ramo em riscos de se partir, e a avaliar-lhe as qualidades e razões. Porque veio. Porque habita comigo há tantos anos se tantas vezes não o deixo dormir a horas. A espiar a mansidão do bicho, a lentidão da vida. Não porque queira – pobre animal – mas porque a biologia o fez lento das células e mecanismos fabris para dentro. O criou vagaroso no metabolismo. Tão lento em tudo, porque tudo lhe requer uma reserva extra de energia para viver. Somente isso. E que precisa de poupar não se dando a muitos esforços.

Mesmo as necessidades fisiológicas de limpeza, uma só vez na semana. Uma só. Descendo da árvore e ali mesmo aos pés desta. Alimentando-a com os próprios nutrientes das matérias que desta ingeriu. Diz a enciclopédia. Ali em baixo para não ir mais longe. A contornar a linha circular da sua existência sedentária em circuito fechado. Um ciclo que se alimenta a si próprio. Circular. Bicho preguiça a alimentar-se da árvore em que habita uma vida inteira, e a alimentar as defesas da vida face a si própria. A defender o que o defende. A economizar energia vital. Então porque veio? Por isso mesmo. Para defender de cada batalha incontornável escondida em cada esquina incontornável sem ela. De cada decisão difícil e que se teme congenitamente poder abalar toda a árvore. De cada confronto e avaliação a que cada troço da floresta traz ou leva e no qual incorpora todo o saber, todas as possibilidades de equação, de questão, de interrogação. De validade, dúvida, qualidade. Um esforço imenso em que tudo se pode perder, de si, do caminho, do sentido, da orientação. Dúvidas. Esse animal de que falei. Insegurança de seu nome secreto. Sempre disfarçado em trajes de carnaval no teatro da vida, da vida de uma árvore. Com o bicho encavalitado num braço. Lá bem em cima. Longe do chão e escondido do céu pela folhagem. Longe do olhar, longe do coração. De predadores.

De aparência inocente. Mas aquela atitude dúbia de certas pessoas que nos entram pela vida adentro e não sabemos bem se nos fazem bem ou mal. Um bicho de pelo sedosos e quente. Que nos impede de levantar de uma cadeira para não o fazer despertar e desmoronar em questões. Quezilentas e difíceis questões que temos naquele nível subliminar, em cada patamar de escada a subir. Mas sempre à espreita. Ou que temos sempre na frente mas a que podemos voltar a cara como sem reparar. Há pessoas que têm livros completos possíveis e caminhos. Só de voltar o olhar para si e teclar um pouco. Músicas sem retorno. As do fazer. Desperdício de melodias por tocar. Temor do embate face a uma face que vinda a lume se revela com qualidades e defeitos. E um olhar que vêm muitos, e às vezes poucas. Mas o bicho doméstico não gosta de ver a casa desarrumada com outras presenças desconfortáveis, ruído nítido e diálogos imprescindíveis quando se tem visitas. Bicho ciumento da etérea atmosfera da casa arrumada, que tudo permite imaginar, mas nunca avança para fora dessa cortina de porvir e possibilidade. Satisfaz-se assim. Sem visitas indesejadas. Inconformismos, trabalhos difíceis. Coisas que obrigam a pensar. Que ficam serenamente mentirosamente adiadas para um dia mais tarde. Só um dia. Logo ali. E que às vezes nunca chega. Mas que fazer se temos que amar o que temos. O que nos protege. E uma casa feita de discussões e fantasias é uma batalha contínua numa guerra nunca vencida. É uma forma, a sua forma de armazenar, preservar energia por longos períodos. E como sempre na coabitação, passa a ver-se a vida com dois pares de olhos. E os deste animal a colorir de inevitabilidade a luminosidade de alguns sonhos. O que é o sonho, um conjunto de possibilidades remotas ambições uma térmica memória em desejo, mas que previamente se antevê como remota fantasmagórica pretensão a excluir do mundo dos vivos. Na alma pequenina do animal. A preguiça. Bicho felpudo que se instala no ombro esquerdo. De pêlo macio e quente. Ao qual se encosta carinhosamente o rosto, em sereno e triste desalento, a fazê-lo sentir-se bem.

Esse – outro – bicho encavalitado no galho ressequido da direita sempre em riscos de se quebrar. São dois ou a dissociação vítima da desfocagem que os separa meio tremidos em dois. Dois que são personagem e actor. E a sobrepor-se rapidamente e no mesmo movimento em que voltam a dissociar, e a coincidir e a separar, e a confundir. Se. E são duas e já uma só e de novo. Nunca estática, em estonteante movimento de… pára. Pára tudo. Um estonteante e alternado estado de dupla imagem ou de imagem desfocada e tremida nos limites, e por aí fora num caleidoscópio linear como carris de uma câmara de cinema, sintético cansativo e desesperante. Ou já um vinho a mais, a fazer efeito. E quanto fica por habitar, por experimentar por desvendar, por descobrir por representar e escrever e tentar e falhar. E falhar melhor. Sabe-se. Como se se soubesse. O ponto preciso. Onde colocar o dedo e doer. Digo. Digo num daqueles meus diálogos interiores. Senta-te. Vê como somos ao espelho. Dizem que dorme catorze horas sem se cansar. Não sei. A minha, não. Passa muitas das horas que lhe sobram ao sono, de alma túrgida de ideias e emoções e definições para dali a pouco. Muito pouco. Já ali. No ponto preciso. Em que lhe perco um pouco a amizade e a espanto. Aquela espécie de distracção mágica e inesperada. Aquele ponto de que preciso. Definido, preciso e precioso.

20 Fev 2018

O lugar das coisas

[dropcap]O[/dropcap]s sistemas de rotina nem sempre coincidem de pessoas para pessoas. Basta perceber que há pessoas arrumadas e pessoas desarrumadas. Há quem ache que um terceiro vive no caos, quando esse terceiro se dá perfeitamente com o ambiente que criou. O ponto fundamental parece ser este. Um objecto pode ser identificado num “topos” que não é a sua “chora”, o seu território, por assim dizer. Cada objecto tem o seu território e o território identifica também outros objectos com os quais está relacionado. Sem esses outros objectos, um objecto pode estar isolado. Há um sistema, uma rede de forças, que identifica logo uma coisa no seu sítio com uma relação intrínseca com outra coisa que pode não estar no seu sítio. Imaginemos as loiças da casa de banho e as da cozinha. Um bidé não fica na cozinha por razões óbvias e o lava-loiças não fica bem na casa de banho. Mas o lava-loiças implica uma zona para ter tachos, pratos e talheres sujos e uma outra zona onde eles são colocados para serem enxugados.

O armário onde serão arrumados está próximo, etc., etc.. A própria relação do território de cada objecto pode ser alargado. Pensemos na relação que há entre pôr a mesa ou equipar a mesa e levantar a mesa para lavar a loiça. Há uma relação entre os sítios próprios onde se arrumam copos e pratos, os armários da loiça, e os sítios próprios onde estão tachos, panelas e fervedores, por exemplo. Há um sítio onde está o pão e o seu cesto. Um sítio onde estão os talheres. As gavetas dos talheres têm divisórias para garfos, facas e colheres, e até para colheres de várias dimensões. Estes “artigos” viajam até à mesa. São colocados sobre a toalha posta. Têm um sítio apropriado, cada lugar está reservado para cada pessoa específica da família e sem grandes cerimónias. Podemos alargar a consideração. Olhemos para a nossa mesa de trabalho. Pode ser a secretária onde uma miúda ou um miúdo estão a fazer os seus trabalhos de casa. Pode ser a secretária de um arquitecto, engenheiro, médico, filólogo. A secretária é estruturalmente diferente para cada profissão e cada profissional tem a sua maneira de arrumar as coisas. Por exemplo, a sua posição relativamente à luz. Um dextro recebê-la-á pela esquerda. Será posta junto à janela ou afastada dela, para não haver distracções. Há livros que eu tenho à esquerda e outros à direita. A posição do computador tem de ser confortável para escrever, para prevenir até a fadiga física. Se pensarmos nos sítios das nossas vidas, percebemos que ginásios, hospitais, cafés, sítios públicos e privados têm os seus sítios estruturalmente determinados para as suas coisas. A nossa vida lida com sítios inteiros, espaços públicos, locais e localidades precisamente como lida com o açucareiro, leite e café. Organizamos a nossa vida de acordo com os sítios pelos quais a nossa vida está distribuída. Essa organização é temporal.

2 Fev 2018

Erôs, eróticus, erótismus

[dropcap]U[/dropcap]ma das palavras antigas mais difíceis de traduzir para as línguas contemporâneas é erôs. A sua versão adjectiva substantivou-se. O erótico assumiu expressão, contudo, de um conjunto de fenómenos que vai desde a pornografia em versão suave até ao amor romântico.

O substantivo é nome de acção, exprime uma acção. Sem se fazer a experiência desta acção, não se percebe de que se trata. Tal como a semântica de caminho implica o caminhante, de outro modo o caminho não sai do sítio em que se encontra, estático e morto para a possibilidade que oferece. O grande teórico de erôs é Platão. Tão grande que podemos ter dúvidas, não terá sido Platão a inventar o fenómeno e a inculca-lo na humanidade. Enfim, há algumas características que o distingue do “amor” latino, tal como da “cupido”, mas importa mergulhar no coração do fenómeno, pelo menos como ele é expresso por Platão, e tentar perceber até que ponto se trata de uma palavra para referir o “sentido”, a “orientação”, a “direcção” que a vida toma. Em função da presença de um sentido numa ou noutra direcção, com orientações ou sem orientações, compreendemos que faz sentido ou não faz sentido nenhuma a vida que levamos, a vida que temos, a vida.

Um dos componentes não negociáveis de erôs é a epithymia. A palavra compõe-se de um prefixo “epi-” e da variação do substantivo “thumos, -ou”, palavra que em sentido estrito quer dizer “ira” mas em sentido lato quer dizer todo o acontecimento disposicional, vibrações, modulações, estados de alma disposições do espírito. O prefixo quer dizer que o fenómeno é activo e nós estamos-lhe expostos quando acontece. É invasivo, dominador, deixa-nos no estado que provoca, com a impressão que cria.

Mas o que é estranho e aparentemente paradoxal é o conteúdo da epithumia, do desejo, da ânsia. O seu conteúdo está ausente. A ausência do conteúdo por que ansiamos vivamente ou que muito desejamos não é nada. Antes pelo contrário é uma presença. Esta prasentia in absentia tem toda a nossa atenção. Por outro lado, o momento triunfal, meramente hipotético, da sua posse é projectado para o futuro. Sente-se já um anseio no presente de um acontecimento que a dar-se, dar-se-á no futuro, promete enquanto houver esperança, mas faz-nos desesperar pelo alongamento até ao infinito da espera. Mata de tédio.

A falta, a precisão, a necessidade, a carência descrevem esta forma particular de anseio do erôs. Não é como se tivéssemos tudo o que precisássemos à nossa disposição, com níveis satisfatórios de contentamento. Só nos faltaria aquilo que especificamente não temos mas de que sentimos precisão e de que temos necessidade. Não. Esta ânsia produz um objecto absoluto na hierarquia das coisas que queremos, no nosso projecto vital. Nada do resto “risca”, por assim dizer. Tudo o resto não tem importância. A falta (endeia) com que a ânsia (epithumia) faz sentir o que não se tem é absoluta. Só tenho falta do conteúdo específico de que tenho falta e não tenho necessidade de mais nada, a não ser daquilo que não tenho.

Ora, há tantos desejos, ânsias, necessidades, precisões, carências, conforme a escassez específica que temos relativamente às mais diversas coisas. Há um elemento “erótico” na relação entre sede e o que a mata, entre a fome e o que a mata, entre todos os apetites, todos os nossos desejos e o que os mata ou sacia. O erôs descreve resta relação complexa que temos com inanidades, com ausências que, porém, canalizam as nossas vidas para as suas possibilidades de preenchimento. Mas erôs não se verifica obviamente apenas só na periferia concreta e indespidível do acontecimento humano. Refere até tudo aquilo que não sabemos que não temos. Há todo um conjunto de sentidos que não identificamos como sentidos que constituem a ausência por causa da qual as nossas vidas são por essa ausência e não por qualquer particular presença. E mais, o erôs perpassa todas as nossas vidas, desde antes de termos sido, durante o tempo em que existimos até ao derradeiro momento em que tivermos sido, mesmo que não vivido conscientemente, mesmo que antecipado apenas mas nunca verdadeiramente vivido, por já não fazermos parte deste mundo.

Dizem que o melhor de tudo não é nem a saúde nem a riqueza, mas encontrar na vida o que se ama. E, depois, ser esse amor de vida.

25 Nov 2017

Entrevista | António de Castro Caeiro, “Tudo quanto exista implica tempo”

António de Castro Caeiro fez parte da histórica banda punk, Mata-Ratos, até mergulhar a fundo na filosofia. Actualmente divide-se entre a crónica, a tradução de clássicos gregos e a divulgação filosófica. Está em Macau e dá hoje uma conferência no Antigo Tribunal, pelas 19h30, no âmbito da celebração dos 150 anos de Camilo Pessanha

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ez parte de uma das bandas que mais marcou o panorama do punk nacional, os Mata-Ratos. Como se faz a passagem para a filosofia?
Na verdade, formalmente, não é uma transição difícil porque o “label” dos Sex Pistols era “no future”. Portanto, a expressão do punk mais barulhento dava conta disso na primeira juventude. Eu vou para filosofia aos 17 anos. Essa era outra forma de expressão erudita, mais complexa e não tão barulhenta, mas que também tem no sentido final essa ideia do ser no encaminhamento da morte. No fundo, toda a arte, poesia, filosofia, pintura, arquitectura tem, em certa medida, a ver com a nossa vivência na Terra, com a complexa compreensão de que ficamos para morrer, que não estamos aqui para sempre.

Tem escrito bastante sobre o tempo. É um tema que o tem perturbado, para o qual tem procurado resolução?
Comecei por abordar a filosofia de um ponto de vista analítico. Isto porque eu estive para estudar engenharia, portanto, a forma lógica esteve sempre nos meus horizontes. A partir de determinada altura, digamos assim, a lógica é sem tempo, é repetível em qualquer circunstância, em qualquer sítio do mundo. Isso contrasta e relativiza com a situação concreta de cada indivíduo na família, na nação, num estado de alma, num determinado contexto ou ambiente. Cedo comecei a estudar grego e latim e, a partir daí, li os filósofos alemães. Inclusivamente vivi alguns anos na Alemanha e li o grande livro de Heidegger “Ser e Tempo” e o “Tempo e Ser”. Tudo aquilo quanto existe implica tempo. É por isso, por exemplo, que pomos a mesa e que depois de comermos recolhemos a mesa, lavamos a louça, enxugamo-la e arrumamo-la para o dia seguinte. Tudo quanto nós usamos implica essa ideia de uma utilização, num determinado momento, de uma forma eficaz, com a expectativa que temos. Tenho 50 anos, uma idade em que acompanhamos o envelhecimento da mãe, do pai, ou dos avós e em que perdemos pessoas, nós próprios envelhecemos e percebemos que as circunstâncias não mudam apenas adjectivamente, mas substantivamente com o tempo. Portanto, ser, viver, estar na realidade não é uma coisa para sempre mas é uma coisa que está continuamente a deixar de ser. Esse é o objecto de estudo, o grande operador ontológico da filosofia.

Apesar da intensidade de trabalho que a vida académica implica e dos projectos em que está envolvido, ainda tem tempo para escrever. Está algum livro na forja?

Sempre, vários livros. Traduzi os fragmentos perdidos dos livros de Aristóteles há sete anos e agora vão ser publicados pela Abismo do João Paulo Cotrim as constituições perdidas de Aristóteles. Depois segue-se a publicação de textos sobre estética e, finalmente, textos científicos. À parte disso, estou a escrever semanalmente para o Hoje Macau. Vou alargar a minha colaboração com o jornal, tenho estado a traduzir o poeta austríaco Georg Trakl e estou a planear sair um poema por semana, bilingue, em alemão e português. Por outro lado, vamos ter uma coluna a quatro mãos com o João Paulo Cotrim que abordará temas ad hoc. Cada um escolherá o seu texto que passará pelas mãos do grande editor, grande poeta e ensaísta, João Paulo Cotrim e por mim, que sou um novato nestas coisas. Isto é algo que vou gostar muito de fazer. Dito isto, para além das cerca de dez conferências por ano que dou sobre temas academicamente complexos, sobre a linguística grega e o pensamento antigo, o meu objectivo é sempre explorar a filosofia a partir dos exemplos que tenho das aulas. Quem quer que seja que se interesse por um problema filosófico sem ter a sua certidão de nascimento na filosofia, num autor ou num texto, tem de conseguir perceber do que é que se trata. O que se trata é a relação connosco, a relação com os outros, com o mundo, a relação com o tempo. Como é que, em Lisboa, uma manhã de Primavera é completamente diferente de uma tarde de Verão em Agosto. Como, por exemplo, a Clepsidra que é uma descrição do tempo a escoar enquanto nós estamos lá no meio daquela bola que se vai indo. Isso para mim é o objectivo, não é uma questão de tornar simples, mas que as pessoas possam aproximar-se dos problemas da filosofia sem a carga e o peso da técnica académica. Essa é uma pretensão minha e, eventualmente, uma arrogância.

Como é a concretização semanal de escrever um artigo para um jornal?

Esta é a minha segunda experiência a escrever num jornal. Durante nove meses, como a gestação de um bebé, tive no Expresso online um blog que era “O modo e o tempo”. Quando o Carlos Morais José me convidou disse-lhe que queria fazer uma coisa sobre moods, tonalidades, que tivesse a ver com qualquer coisa que nos aconteceu durante a semana. Estou tão cioso destes meus textos que saem no Hoje Macau que, às vezes, por qualquer motivo, elas só saem à segunda-feira. Então, o Carlos leva com os meus emails, cheguei mesmo a dizer-lhe que esta era a única coisa boa que me está a acontecer e, portanto, fico contente por ver o artigo online e por o poder partilhar no Facebook. Muitas pessoas lêem e partilham e eu fico muito feliz por isso, por estar no sudoeste de Portugal a pensar no sudoeste asiático.

Como surgiu a possibilidade de trazer a filosofia para um programa de televisão na RTP2?
Fui entrevistado duas ou três vezes na televisão. Este projecto resulta de uma conversa com o Nuno Artur Silva [administrador da RTP da área dos conteúdos de ficção]. Disse-lhe que queria ter um programa de filosofia justamente para fazer uma aproximação, que já se fez na ficção e na poesia, mas que nunca se fez na filosofia em Portugal. Há programas na Alemanha como o “Quarteto Filosófico”, na BBC há grandes entrevistas com grandes filósofos e o Nuno Artur Silva não me disse logo que não. Meses mais tarde disse-me: “Olha, o Público está a editar quinze livros de catorze autores, entre os quais Confúcio, porque é não começas por aqui? Em seguida abrir-se-ão portas”. Assim foi. Vamos ter treze programas de 30 minutos com o João Paulo Cotrim, o Luís Gouveia Monteiro, eu e alguns convidados. Depois a Teresa Paixão disse-me que tinha de apresentar em dois ou três minutos uma nota biográfica e uma nota bibliográfica.

A filosofia compagina-se com uma mensagem tão sucinta?
Sim. O Wittgenstein dizia que o que pode ser dito tem de ser dito claramente. Há pessoas que escrevem milhares de páginas e que falam muito, outras que não dizem nada nessas milhares de páginas. O Heidegger dizia que uma frase de Heráclito valia mais do que a inteira Biblioteca de Alexandria. Foi um exercício de compilação e, ao mesmo tempo, não de contracção mas de expansão. Foi interessante também por esse lado. Eu dou aulas de duas horas, os mestrados são de três horas, mas já dei aulas de quatro horas. É completamente diferente quando temos de pensar que não há reformulação possível. Diz-se uma nota bibliográfica e uma nota biográfica e espera-se que a pessoa não tenha tempo para fazer zapping e fazer-me desaparecer do ecrã.

4 Set 2017

Das tonalidades

Francis Bacon – “Oedipus”

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma tonalidade é uma tradução para o que Heidegger escrutina como formas radicais de acesso ao mundo. São maneiras de ser. A palavra alemã é “Stimmung”. Traz à colação o fenómeno do estado-de-ânimo. É uma disposição. A palavra equivale, de certo modo, à inglesa mood. No étimo, está a palavra “Stimme” (voz). Uma tonalidade é uma cadência acústica, uma melodia, um modo. É assim que na nossa vida estamos dispostos.

Vibram em nós disposições, cadências musicais rítmicas. Heidegger usa tanto metáforas acústicas: “uma tonalidade é um modo de ser no sentido em que é uma melodia, a qual não paira sobre o ser humano que existe aí, mas indica o som do seu ser, é o jeito e a maneira que determina e tonaliza o seu do ser humano (GBM, 101)” ou como metáforas meteorológicas: “Parece que a tonalidade está desde sempre aí, como uma atmosfera na qual nós já imergimos e ela ressoa em nós completamente” (GBM, 100).

Nós temos em português expressões como “estar um ambiente de cortar à faca” ou “de cortar a respiração”, apontando assim para uma densidade extraordinária, uma atmosfera que não só paira em suspenso sobre as coisas, vibra sobre elas, mas perpassa tudo. Isto é o que dá disposição de ir ou de não apetecer ir. Não é uma coloração que pode ser detectada nas coisas (alegria rosa, melancolia negra), que acompanha o estarmos aí. É o que abre ou fecha, de todo em todo, atmosferas.

Nós existimos entre possibilidades extremas de disposições vibrarem. O mais das vezes não estamos nem bem nem mal. Aparentemente neutraliza-se a disposição. Fecha-se o olhar, para dar conta dessa mesma presença. Isto serve para situar o acontecimento do esvaziamento de sentido, no nada da angústia ou do tédio. O nada dá ritmo à vida, dá-lhe uma melodia peculiar, desde sempre, desde a primeira vez das primeiras vezes. A sua cadência é a da asfixia, do estrangulamento do próprio sentido do tempo.

Encontrarmo-nos no meio das coisas no seu todo não significa que o meio seja determinado por uma qualidade espacial (a equidistância). Por estarmos dentro de um determinado sítio não estamos dentro desse sítio: na praia, na esplanada, no mundo. Não é por estarmos entre quatro paredes que estamos na sala.

Estar na sala de jantar a comer e a jogar às cartas é diferente. Se não captamos a totalidade da natureza e história.

A disposição não apenas qualifica o sítio específico em que estamos (só esta sala). Ela faz-nos explodir para fora da sala, do edifício, para fora da cidade, tinge o céu, contamina tudo no seu todo. É centrífuga e claustrofóbica.

O meio das coisas refere a cadência, o ritmo, a atmosfera e o clima em que nos encontramos. Fazemos a experiência de como cada um se encontra ou acha fora do âmbito perceptivo ou cognitivo. Cada pessoa é uma onda ou uma vibração. Cada pessoa encerra em si um espectro de modulações e tonalidades que metamorfoseiam o tempo, circunstâncias e situações. Cada pessoa é uma onda que modula o tempo e atinge a totalidade dos entes.

A priori eu sei que quando me encontro com tonalidades diferentes: azul, rosa ou negro. Não apenas como um fenómeno cromático, mas como atmosferas que antecipam todos e quaisquer conteúdos.

Há disposições a priori que podem não ser anuláveis. Podemos anular a chatice de um filme, saindo da sala do cinema para nos expormos a outros estímulos. Mas só manipulamos as disposições até certo ponto (com um copo de whisky sexta-feira à noite, por exemplo). Os estados de espírito são calculados. Rejeitamos convites porque sabemos que nos vamos aborrecer. Mas há disposições incontroláveis.

Independentemente de onde estamos – no pátio, mar do sul, outra galáxia – estaremos sempre numa cadência com o mesmo tom.

Não é necessário percorrer todos os compartimentos, todas as regiões de ser para interrogar sobre o que ainda escapa.

À partida está ganho o horizonte e a confiança para nele estarmos: o horizonte onde vibram tonalidades. Há um tom para cada um de nós? Qual é? Conseguimos escutar-nos uns aos outros? Como?

GPM: “Grundprobleme der Metaphysik” (Problemas fundamentais da Metafísica)

23 Jun 2017

O problema dos clones

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m destes dias jantei com uma amiga, a Inês, e, a páginas tantas, ela confessa-me a sua relutância em ser teletransportada. “O teletransporte, a existir”, assegura-me, “não funcionaria como vemos nos filmes de ficção científica”. “E isso quer dizer o quê?” Pergunto. “Nos filmes de ficção científica”, prossegue, “o teletransporte é equivalente a mover água de um sítio para outro, ou seja, a matéria que estava de um lado é transferida para outro lado através de um meio adequado para o efeito.” De facto, pensei, é também assim que eu concebo o teletransporte, enquanto possibilidade de um futuro por acontecer. “O teletransporte assemelha-se muito mais a uma cópia, na verdade. O sujeito está do lado de cá, passa por uma espécie de scanner que o lê e, do lado de lá, é reconstruído. Mas não é a mesma matéria que passa de um lado para o outro, é como se o resultado do transporte fosse, na verdade, uma versão dois de ti próprio, um clone.”

Um clone. Se nos focarmos no processo leitura e recriação, tal como a Inês mo descreveu e que corresponde, de resto, ao modo como a física quântica o teoriza, é difícil não pensarmos nas implicações que uma tecnologia deste tipo teria ao nível daquilo que postulamos ser a identidade. Mesmo que não seja possível termos – como de resto não o parece ser, pois a leitura quântica é de carácter destrutivo –, num determinado instante, dois sujeitos exactamente iguais coexistindo – mesmo que por fracções de segundo –, ficam algumas dúvidas inquietantes.

Cada teletransporte corresponderia, na verdade, a uma espécie de suicídio. O sujeito – ao contrário do que acontece, por exemplo, num elevador, no qual a pessoa que entra e que sai é a mesma – entraria num compartimento e, no processo, seria destruído para poder ser reconstruído noutro local. De certo modo, isto reconfortava a Inês. Era garantia de não poderem existir, em simultâneo, duas criaturas absolutamente idênticas. Mas a questão da recriação criava outros problemas, nomeadamente a questão das versões.

A Inês não estava de todo confortável com o facto de cada transporte ser uma espécie de progressão aritmética de versões de si própria. Afinal, e mesmo sem a possibilidade de existir outro eu para além de mim, pela natureza específica do processo, o sujeito tinha forçosamente notícia de a sua existência corresponder, na verdade, a uma recriação de um original que já não era ele. Para mim, no entanto, este pensamento não era inquietante. Para existir um clone, insistia, tem de existir um original. Se o original é destruído no processo de cópia, a questão não se põe.

Da nossa discordância acerca da natureza filosófica do teletransporte passámos para outro tipo de considerações. “Imagina”, sugeri-lhe, “que o processo de leitura não era destrutivo. Imagina que te conduziam para dentro de uma sala, completamente às escuras, e que te clonavam. Imagina que o processo era instantâneo e que, quando acendiam as luzes, estavam dezenas de sujeitos exactamente iguais a ti, da roupa às memórias, do corpo à capacidade de se auto-nomearem. Haveria alguma forma de podermos distinguir, com certeza, o original dos clones? Mais importante ainda, haveria alguma forma de o original saber que o era?”. Ficámos o resto da noite nisto. Talvez a quantidade de passos dados dentro da sala pudesse ajudar o sujeito a determinar em que posição estava quando se deu a clonagem. Se, de algum modo e sem se mexer, estivesse numa posição inteiramente diferente da distância que imaginava ter percorrido, saberia com certeza que não era o original. Mas era fácil ultrapassar isso. Se o sujeito fosse de cadeira de rodas, teria uma notícia muito mais difusa da distância percorrida. Ou se a sala fosse antecedida por um corredor extenso que dificultasse a leitura da distância às cegas. O facto, indesmentível, é que todos os sujeitos pensariam ser o original e que todos eles nutririam, mesmo não o verbalizando, a mesma dúvida: e se eu for meramente uma cópia?

Não conseguimos resolver o paradoxo. Nem sei se tem resolução. Mas temos de jantar juntos mais vezes.

14 Mar 2017

António de Castro Caeiro: “A poesia arcaica, a epopeia, a lírica e a tragédia sempre me interessaram”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s professor de filosofia na Universidade Nova de Lisboa, tradutor de Aristóteles e de Píndaro, e recentemente editaste um livro entre a filosofia e a poesia, chamado Um Dia Não São Dias, que tive a honra de apresentar. Como entendes tu esse livro?
O livro é uma tentativa de escrever fenomenologia do tempo fora de um estilo e âmbito estritamente académicos. Usei como embrião um texto escrito na USF (University of South Florida) de 2004 sobre os dias da semana. Cada dia tem o seu tom, a sua vibração específicas. A temporalização que organiza e estrutura o dia tem também diferenças. Assim também a semana, as semanas de um mês, os meses de um ano, os anos. A possibilidade teórica está dada desde a antiguidade. Em Homero e Píndaro, mas também em Tácito, os dias ou o ano são o “sujeito” que serve de plano de fundo estrutural ao ser de tudo o que acontece, ao desenrolar do tempo, ao começar e ao expirar dos prazos. Quis redigir todos os dias um pequeno texto e foi o que fiz, quando tive um Blog no Expresso online. Escrevi todos os dias durante nove meses aproximadamente. Foi esse conjunto de apontamentos que serviu de base para aquilo que depois tu (PJM) editaste.

Quais os próximos projectos de tradução, tanto os que já tenhas terminado quanto os que ainda irás começar?
Estão para sair as constituições perdidas de Aristóteles num conjunto de fragmentos dos livros perdidos de Aristóteles: os Historika. Estão a ser preparados para sair também na Abysmo dois outros volumes de traduções de fragmentos: um volume sobre o que contemporaneamente se pode chamar Estética e um outro dedicado a textos de teor científico. Sairá também pela Abysmo uma tradução das odes Olímpicas de Píndaro. Ainda por fazer está uma tradução dos fragmentos éticos dos velhos estóicos em colaboração com um colega meu, desta feita para o IFIL Nova, unidade de investigação a que pertenço.

A tua relação com a poesia vem de longe, e foi concretizada em livro numa primeira vez na tradução das Píticas, de Píndaro, em 2005, pela Prime Books e depois, mais tarde, reeditado pela Quetzal, em 2010. Recentemente aceitaste participar num projecto de leitura de poesia ao vivo com música (o contrabaixo de Carlos Barretto), chamado No Precipício Era O Verbo, juntamente com o poeta José Anjos e o actor André Gago. Já fizeram vários espectáculos pelo país e gravaram um disco. O que te levou a este projecto?

Sim, a edição das Odes de Píndaro pela Quetzal com ensaios em 2010 é já uma reformulação da tradução das Odes Píticas, editadas em 2005 pela Prime Books. A poesia arcaica, a epopeia, a lírica e a tragédia sempre me interessaram, porque aprendi que para se ler Platão não basta saber o grego em que ele escreveu, mas os princípios genéticos do Ático. A sabedoria popular ou o folclore são formas de manifestação das inquietações do espírito dos tempos e não podem ser ignoradas. No Precipício Era o Verbo não existiria sem vários factores humanos na base do seu nascimento. O João Paulo Cotrim da Abysmo apresentou-me ao José Anjos, este ao Carlos Barretto, e eles ao André Gago. Numa sessão de apresentação de Um Dia Não São Dias, na Barraca, organizada pelo poeta Miguel Martins, o Carlos Barretto propôs que tentássemos fazer leituras com Contrabaixo. O João Paulo Cotrim associou-se ao projecto e, assim, aos poucos, demos corpo a um reportório com poesia ou textos poéticos do José dos Anjos, André Gago e meus, com versões de poesia estrangeira (dórico e alemão) lida no original. A experiência do palco ressuscita a minha juventude quando actuei como baixista nos Mata-Ratos. Tem sido gratificante a partilha e fazer parte de um projecto em que acredito pela sua consistência e originalidade. Aproveito para dizer que o nosso percurso será coroado pela primeira vez com a actuação no CCB, no dia 20 de Dezembro.

Pensas em escrever acerca de poesia, de modo a produzir um livro?
Por defeito, tudo o que leio tem vista poder falar sobre o assunto nas aulas, assim também tudo o que escrevo visa a possibilidade de uma publicação, no sentido lato do termo. Tenho feito várias apresentações de livros de poesia de autores contemporâneos portugueses. Sempre produzi texto para o efeito, porque nunca consigo falar “de cor” nestas circunstâncias. Gostaria, contudo, de fazer despistagens de maior fôlego sobre o modo como a poesia exprime e se posiciona relativamente a problemas mais intimamente ligados à metafísica: a vivência da temporalidade humana, crónica e finita, definição de orientações e direcções em encruzilhadas, indecisões, destino, contra tempos, atrasos de vida, perda de sentido, crises afectivas, impactos emocionais, disposições, etc., etc.. A economia da formulação poética sempre me impressionou muito mais do que o encadeamento argumentativo. Talvez sejam duas formas indispensáveis para “dizer o humano”, complementares, indissociáveis.

E para quando um novo livro teu de filosofia?
Tenho estado a estudar a melancolia como manifestação do espírito desde os Hipocráticos, passando por Platão e, claro, Aristóteles que tem, este último, uma referência explícita ao fenómeno, nos Problemata. Depois, tenho estudado o fenómeno do ponto de vista da psicopatologia e da fenomenologia. O conjunto de estudos que sairá de um semestre que farei sobre melancolia, depressão, mania e euforia, constituirá um conjunto de anotações e de textos. O que sair desse curso permitirá a redacção de um texto. Não sei ainda qual o seu formato, mas pretendia que pudesse ser lido sem os tiques do ensaio académico e que se aproximasse mais do modelo encontrado para Um Dia Não São Dias.

2 Dez 2016

Espírito do Mundo

[vc_row][vc_column width=”1/2″][vc_column_text][dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mundo transporta no seu seio uma dualidade (dicotomia) que nada nem ninguém pode superar (que é insuperável). NATUREZA E ESPÍRITO representam os dois pólos de uma realidade que é non facientia unum. O ser da natureza consiste cada vez mais em ser objecto de representação, de conhecimento científico, de exploração técnica. O ser do homem consiste em se colocar como sujeito face ao mundo concebido como um objecto essencialmente estranho ao homem, mudo no que diz respeito ao seu destino.

[/vc_column_text][/vc_column][vc_column width=”1/2″][vc_single_image image=”13988″ img_size=”257×400″ add_caption=”yes” alignment=”center” style=”vc_box_shadow_border” css=”.vc_custom_1480424001469{margin-right: 4px !important;margin-left: 4px !important;}”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]A posição do homem era muito clara quer face ao cosmos antigo quer face ao universo teofânico da Idade Média. Mas com a ruína do universo medieval, tudo se desmoronou:

— O lugar do homem que se tornou problemático e

— O universo que se esvaziou progressivamente da sua substância.

Agora a situação do homem é a de um ser afastado de tudo, profundamente isolado no seio de um mundo infinitamente aberto que exclui qualquer sentimento de simpatia entre o eu pensante (sujeito) e as coisas. É nisto que consiste em larga medida o desencantamento do mundo. É o fim de uma relação amorosa.

“It’s all in pieces, all coherence gone” cf. John Donne. E é também esse o sentido da obra de Pascal, … ambos autores do BARROCO exprimem a dolorosa perda da totalidade.

O sentimento de perda da sensação de totalidade.

Daí o sentimento concomitante de estranheza. A perda da totalidade destrói a intimidade. O Universo serve agora para calcular e medir. É uma exterioridade! Já era! Mas agora inapropriável globalmente. O facto de se reduzir a cacos inviabilizando uma reconstrução possível provoca um vazio que nada pode preencher, e uma tristeza incurável.

Em tempos o Mundo fora considerado como um testemunho de Deus. Como o signo por excelência da existência de uma Inteligência ordenadora e fonte de todo o Valor.

Ora o que anacronicamente procuraram fazer todos os grandes apologistas do século XVIII foi Restaurar, ressuscitar, um paradigma já obsoleto. Nesse plano a primeira grande reflexão existencial sobre o tema pertenceu ao Barroco. O que veio depois é empobrecedor.

Já nenhuma certeza ontológica emana do curso do mundo.

O estupor desencantado de Pascal diante da solidão gelada do Universo culmina no verso de Rimbaud: “não somos do mundo!” , ou “nós não pertencemos ao mundo”.

É então que Vico, face à dúvida cartesiana (barroca), viu na HISTÓRIA o único firmum et mansurum ao qual o homem poderia aceder.

Única realidade considerada ao alcance do conhecimento do homem dado que produzida por ele aparece ao homem, no dealbar da modernidade, como a grande fonte de certeza de si, ao mesmo tempo englobante e totalizante…

Face ao desaparecimento de Deus, face à natureza emudecida e inaudível, o homem opunha este fragmento dérisoire do tempo que ele conseguiu fazer seu e do qual espera extrair a verdade o seu ser assim como a norma da sua acção com vista ao futuro. Hegel até extrairá daqui a via do Absoluto.

Hegel propõe um grande sistema filosófico em que o mundo, como Espírito, se encontraria em um processo histórico contínuo de racionalidade e perfeição cada vez maiores. A teleologia proposta por Hegel será explicitada tanto na análise da totalidade do universo, quanto nos diversos processos e desenvolvimentos que o constituem, através do método dialéctico, em que as tendências contrárias (tese e antítese) se entrechocam resultando em uma síntese, por definição mais perfeita e completa que as anteriores. Hegel tem como mérito a criação de uma nova tendência na filosofia: a de abordar os diversos assuntos a partir da investigação de sua génese ao longo da história.

“Na história, o pensamento está subordinado aos dados da realidade, que mais tarde servem como guia e base para os historiadores. Por outro lado, afirma-se que a filosofia produz suas Ideias a partir da especulação, sem levar em conta os dados fornecidos. Se a filosofia abordasse a história com tais Ideias, poder-se-ia sustentar que ela ameaçaria a história como sua matária-prima, não a deixando como é, mas moldando-a conforme essas Ideias, construindo-a, por assim dizer, a priori. Mas, como se supõe que a história compreenda os acontecimentos e acções apenas pelo que são e foram e que, quanto mais factual, mais verdadeira ela é, parece que o método da filosofia estaria em contradição com a função da história.” (HEGEL)

Ao contrário de uma possível contradição metodológica entre essas ciências, Hegel afirma que a história do mundo só pode ser contada e contemplada à medida que ela se valha da filosofia.

É pela especulação e reflexão racional que a filosofia se sustenta. E haja em vista que “na história do mundo as coisas aconteceram racionalmente”, (HEGEL, 2001: 53) vislumbramos o início dessa união entre as ciências supracitadas. Para provar a existência de uma razão no mundo, Hegel dá-nos o exemplo de Anaxágoras, cujo feito foi observar que há um sistema solar no qual os planetas giram ao seu redor. Porém, diz Hegel, ao grego não foi possível inferir qualquer racionalidade sendo contemplada, pois no seu tempo ela estava ainda velada. Percebe-se claramente que a história do mundo hegeliana visa, portanto, uma teleologia. Ora, sendo uma teleologia comandada pela razão, não iria ela ser contra qualquer doutrina religiosa? Não para Hegel, já que ele vê em Deus a Razão Absoluta. Aliás, Razão e Deus são termos correlatos e, pode-se dizer, significam uma mesma coisa: requisito lógico do mundo, cujas potencialidades inerentes se manifestam no decorrer da história. Metodologicamente, Hegel assim compreende o estudo da história do mundo: “devemos tentar seriamente reconhecer os caminhos da providência, os seus significados e as suas manifestações na história, e seu relacionamento com o nosso princípio universal[1]” (HEGEL, 2001:57) (“Reconhecer os caminhos da providência” implica uma certa passividade daquele que estuda ou quer conhecer a história passada; não é a toa que ele emprega o verbo contemplar em sua obra.) Se assim é, qual o objectivo final do mundo?

Dissemos acima que o mundo, para Hegel, deve ser pensado racionalmente, que todos acontecimentos históricos passados foram necessários; donde seu aspecto teleológico. Esse plano divino é manifestado ao mundo mediante o “Espírito de um povo”, visando a Ideia de Liberdade. Ou seja, esta Ideia é a força motriz da história, ao passo que o Espírito de um povo é expressão de uma realidade histórica finita, que por processos dialécticos busca sobrepujar as potencialidades infinitas da Ideia.

Pelo carácter objectivo do “Espírito de um povo”, as subjectividades que constituem uma nação e até mesmo as dos próprios indivíduos, são consideradas por Hegel apenas como um primeiro passo do movimento dialéctico. Todas as paixões particulares servem para serem aniquiladas, dando lugar à universalidade de que a Ideia de Liberdade necessita. Nem mesmo os heróis, aqueles que serviram de exemplo para uma mudança do Espírito de uma época à outra, tinham consciência da objectividade de suas paixões, pois “a história do mundo dá início ao seu objectivo geral – compreender a Ideia de Espírito – apenas em uma forma implícita (ansich), ou seja, como Natureza, como um instinto muito profundo e inconsciente” (HEGEL, 2001: 71). Torna-se preciso, então, compreender a ligação entre o particular e o universal, – entre o subjectivo e o geral – cujo casamento propicia a história do mundo.

Sendo a Ideia, condição lógica para o mundo, ela não está contida nele. Ou melhor, ela não necessita dele para sua preservação. Enquanto tese, a Ideia “é o universal, o imanente, o representado” (HEGEL, 2001: 72), isto é, ela não tem ao quê se comparar. É necessário, pois, um outro lado cujas qualidades neguem o conteúdo da Ideia. Este outro lado é chamado por Hegel de consciência, Ego, ou átomo. Estes conceitos são a “negatividade infinita” da Ideia. Eles são sua finidade e sua forma. É desta lógica dialéctica que Hegel vê surgir o mundo, como síntese entre a Ideia e o Ego[3].

O mundo é composto pela Natureza e pelo Espírito. O primeiro, o campo da necessidade, o segundo da liberdade. Enquanto aquele se manifesta mediante a natureza; este se caracteriza, em uma primeira instância, por meio do indivíduo.

É pela característica da liberdade que o homem é um ser moral. Tal facto implica “em que ele cumpra os deveres de sua posição social” (HEGEL, 2001:76), além de ter a consciência de pertencer a um determinado “Espírito de um povo”. Pois “o indivíduo não cria o seu conteúdo, ele é o que é, expressando tanto o conteúdo universal quanto o seu próprio conteúdo”. (HEGEL, 2001: 77) . Ou seja, a ligação entre o subjectivo e o geral, dá-se neste momento.

A união supracitada, segundo Hegel, só se manifesta por meio do Estado. Esta instituição abarca todo o conjunto moral de seus indivíduos. Só através de sua presença é possível falar em liberdade e auto-consciência no indivíduo. Porque “a Ideia de liberdade necessariamente implica lei e moral”. (HEGEL, 2001, 92). O Estado é o campo das objectividades. Um espaço pontual no qual podemos assinalar e nos referir quando pensamos na História do mundo. Enquanto o indivíduo morre, o Estado, através de abstracções, permanece. Isto é, apesar do Estado grego morrer com o povo grego, ele permanece historicamente. A sua “morte”, deu lugar, concordando com Hegel, a outro Estado mais perfeito, mais consciente de si e tendo seus indivíduos com o conceito da Ideia de Liberdade mais aflorado e rígido.

Por se tratar apenas de um texto de apontamentos sobre a referida obra de Hegel, pararemos por aqui. Entretanto, deixaremos uma última citação de Hegel que confirma a enorme função que o Estado tem para seu sistema filosófico: “O Estado é a realização da Liberdade, do objectivo final absoluto, e existe por si mesmo. Todo o valor que tem o homem, toda sua realidade espiritual, ele só a tem através do Estado.(HEGEL, 2001:90)

Karl Popper, crítico de Hegel em A sociedade aberta e seus inimigos, opina que o sistema de Hegel constitui uma justificação vagamente dissimulada do governo de Frederico Guillermo III e da ideia hegeliana de que o objectivo ulterior da história é chegar a um Estado que se aproxima ao da Prússia do decénio de 1831. Esta visão de Hegel como apólogo do poder estatal e precursor do totalitarismo do século XX foi criticada minuciosamente por Herbert Marcuse em Razão e revolução: Hegel e o surgimento da teoria social, arguindo que Hegel não foi apólogo nem do Estado nem da forma de autoridade, simplesmente porque estes existiram; para Hegel, o Estado deve ser sempre racional. Arthur Schopenhauer desprezou Hegel por seu historicismo e tachou sua obra de pseudofilosofia.

A filosofia da história de Hegel está também marcada pelos conceitos da “astúcia da razão” e do “escárnio da história”. A história conduz os homens que crêem conduzir-se de per si, como indivíduos e como sociedades, castigando suas pretensões, de modo que a história-mundo, ao fazer troça deles, produz resultados exactamente contrários e paradoxais aos pretendidos por seus autores, a despeito de, nos períodos finais, a história se reordenar e, em um cacho fantástico, retroceder sobre si mesma e, com sua gozação sarcástica e paradoxal convertida em mecanismo de criptografia, cria também ela mesma, sem querer, realidades e símbolos ocultos ao mundo e acessíveis tão-somente aos cognoscentes, id est, àqueles que querem conhecer.[/vc_column_text][vc_separator css=”.vc_custom_1480425835216{margin-bottom: 30px !important;}”][vc_tta_tabs style=”modern” shape=”square” active_section=”1″ css=”.vc_custom_1480425795405{margin-top: 5px !important;}”][vc_tta_section title=”Biografia” tab_id=”1480423549556-ac307ab4-8964″][vc_column_text]HEGEL nasceu em Stuttgart a 27 de Agosto de 1770 e faleceu em Berlim a 14 de Novembro. Hegel encontra a sua posição na história da filosofia no seio do chamado Idealismo Alemão, representando por um lado o seu apogeu, o idealismo absoluto e a transição para a Filosofia do Romantismo. Estudou na Tübinger Stift, (seminário da Igreja Protestante, em Württemberg). A sua Fenomenolgia do Espírito desenvolve a ideia dialéctica de que o espírito humano se manifesta através de um conjunto de contradições e oposições que acabam por se integrar numa poderosa síntese. Todos os elementos se integram unem-se, no quadro de superações sistemáticas, o que significa que os elementos em confronto não se eliminam. Exemplos de tais contradições incluem aqueles entre natureza e liberdade e entre imanência e transcendência. Deste ponto de vista ele é o grande filósofo da Modernidade, da ideia de progresso e de totalidade do Espírito.[/vc_column_text][/vc_tta_section][vc_tta_section title=”Ficha” tab_id=”1480423549788-702a8d9a-b0d3″][vc_column_text]Hegel, Georg Wilhelm, Friedrich, A Razão na História (Introdução à Filosofia da História Universal), Edições 70, Lisboa, 1995
Descritores: História da Filosofia, Historicidade e historicismo, Espírito, 223 p.
ISBN: 972-44-0906-6
Cota: A-4-13-9
[/vc_column_text][/vc_tta_section][/vc_tta_tabs][/vc_column][/vc_row]

28 Nov 2016

Tao-Confúcio

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]ecentemente tenho ciberneticamente explorado sobre a sexologia taoísta que levou a uma pertinente preocupação das influências para o sexo que se faz na China. Se no mundo ocidental temos a igreja e as revistas cor-de-rosa a insistir em certos entendimentos sexuais, muitos deles que se caracterizam pela sua castração e repressão; da China histórica, encontramos muito provavelmente as influências do Taoismo e do Confucionismo (e por enquando ficar-me-ei por estas duas correntes, mas mais reflexões sobre a sexualidade oriental/chinesa estará por vir).

Taoismo: Além das referências ao yin e o yang (阴阳), a importancia do qi (气) e ainda do jing (精), o taoísmo sexual, não surpreendentemente, foi descrito muito centrado na perspectiva masculina. Sexo em si era uma prática de potencial espiritual onde ‘se une a energia’ (合气) com vantagens grandiosíssimas para o homem, que se acreditava desenvolver muito boa saúde pela prática e, com muita dedicação, atingir a imortalidade. Acreditava-se que o sexo estabelecia o tão desejado equilíbrio que se procurava na natureza e que o yin e o yang ilustrava, sugerindo uma possível abordagem naturalista que nunca se popularizou.

A verdade é que acreditava-se que o sémen continha altos teores de jing (精) e que a sua perda teria consequências para a sua saúde. Por isso: sexo sim, mas sem ejaculação. As práticas desenvolvidas trouxeram, por isso, dicas úteis para não perder o seu sémen e jing (精) em sexo que era necessário, mas não o pacote total.
As mulheres eram vistas como um receptáculo sexual, um ‘caldeirão’ necessário para o desenvolvimento fetal e por isso até certo ponto eram respeitadas e deveriam ser estimuladas e agradadas porque só assim é que a energia gerada seria benéfica para o homem e para o seu desejo de imortalidade. Contudo, apesar de se sentir como uma obrigação médica agradar o yin (o lado feminino) para a sua energia ser terapeuticamente aproveitada, as mulheres continuavam a ser usadas como objectos.

Confucionismo: Provavelmente a corrente filosófica mais influente na China, pouco ou nada disse sobre sexo. Confúcio não se debruçou por aí além pelo tema e tudo indicava que usaria pessoalmente a actividade sexual heterossexual de forma muito prática, desde que, contudo, não interferisse na sua vida social.

O pior veio depois, quando Neo-Confucionistas, a partir da dinastia Sung, trouxeram uma reinterpretação dos ensinamentos do sábio e sugeriram uma teoria repressiva do sexo, que teóricos acreditam ser a base para o entendimento sexual na China dos últimos 1000 anos. Antes da intervenção dos neo-confucionistas, historiadores acreditam que as relações sexuais eram vistas com maior liberalismo e naturalidade porque as descrições de vidas amorosas, casamentos, divórcios, e tipos de relacionamentos heterossexuais e homossexuais não mostravam desaprovação nem condenação.

Se esta visão continuou na base da vida privada chinesa, temos pouca certeza, porque os discursos pós-Sung mostram uma contínua repressão que poderiam ter mais forma em certas classes sociais e/ou nos documentos históricos a que temos acesso hoje. O que vale são as descrições literárias, as representações artísticas que ainda mostravam alguma criatividade sexual e que nos fica no imaginário de tantas taradices que julgamos chinesas.

As descrições da antiga sexualidade chinesa, especialmente a Taoista, têm sido alvo de bastante análise pelos grupos que desejam elevar a sua sexualidade a uma experiência espiritual (tal como era descrita, na união das energias) e por isso tem aumentado de popularidade em círculos ocidentais interessados em Tantra. A filosofia sexual chinesa tem sido por isso reinterpretada à luz de uma maior igualdade de géneros e na possibilidade de estender a actividade sexual ao máximo, com tantos exercícios de controlo ejaculatório que existem.

Consigo imaginar que não é da mesma forma que se influencia a sexualidade chinesa actual. Certas crenças ainda se perpetuam sobre como não é saudável desperdiçar o suco sexual, insistida pela medicina tradicional chinesa. Afectando, por exemplo, a forma como a masturbação é vivida na China. Se é herança dos neo-confucionistas ou não, também se denota a ditadura do silêncio sobre as coisas do sexo e alguma relutância em retirá-las da privacidade do quarto. Como em muitos outros contextos é simplesmente pouco falada. Mas e a globalização, o socialismo de características chinesas ou a agora política do filho ‘duplo’?

NOTAS
1. Usei caracteres simplificados para ilustrar variados conceitos porque foi assim que aprendi, teria escolhido os tradicionais pela minha ligação a Macau, mas não seria fiel ao meu conhecimento da língua chinesa. 2. Muitas das informações aqui apresentadas basearam-se em Ng, M. L. & Lau, M. P. (1990) Sexual Attitudes in the Chinese. Archives of Sexual Behavior, 19 (4), 373-388 que oferece uma maior reflexão das práticas e das suas influências e que será do interesse de quem deseja aprofundar o tema.

24 Nov 2015

Ego

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]iddhartha Gautama Shakyamuni (o sábio dos Shakyas) viveu entre os séculos VI e IV a.C., não se sabendo ao certo a data do seu nascimento ou morte. Sabe-se apenas que era filho de rei e que se fez pobre e sábio, acabando por atingir a iluminação debaixo de uma figueira.

Curiosamente, a Bíblia é omissa quanto à vida de Yehoshua Ben Yosef – da tribo de David, aspirante a carpinteiro – dos doze aos 30 anos. Algumas teorias dizem que o jovem que discutia no templo com os doutores da lei foi levado para a Índia por um dos viajantes indianos que cruzavam aquele território, onde terá sido exposto ao hinduismo e, necessariamente, ao budismo, tendo ficado conhecido por Issa.

Quando regressa à sua terra, inicia a sua prática e os seus sermões, seleccionando gente a quem faz o velho desafio “larga tudo e todos e segue-me”, tão à maneira dos mendicantes budistas.

O momento que atravessamos assemelha-se à adoração dos ídolos de ouro que Moshe veio encontrar quando descia do Monte Sinai com as tábuas da Lei.

É o culto das ilusões, da eleição da matéria, do ganho, do Eu acima de todas as coisas.

Assim, e porque o mundo vive uma enorme crise, manchada pelo materialismo e pelo Egoísmo, parece oportuno transcrever, retirado da obra “Buda e os seus Ensinamentos” de Samuel Bercholz e Sherab Chodzin Kohn, os ensinamentos do Mestre Tibetano Chogyam Trumpa (1940-1987), um dos primeiros da sua tradição a assimilar plenamente a mentalidade ocidental. Deste modo, foi capaz de formular os ensinamentos budistas tradicionais de uma forma nova, falando directamente ao ocidental. Temos assim uma lição da psicologia básica budista.

“Uma das ideias budistas mais centrais é a de que o eu não existe. O sentido do eu a que ingenuamente nos agarramos é visto pelo olho nu da meditação como sendo apenas uma amálgama ténue, sempre mutável de elementos psicológicos, conhecidos tradicionalmente como os cinco skandhas ou «montões»”. Aqui, Trungpa apresenta-os como forma, sentimento, percepção, conceito e consciência e fornece um íntimo relato interior do seu desenvolvimento.

“Um ponto-chave é a dualidade que se ergue ao nível do primeiro skandha, forma. A dualidade é uma descrição da característica mais básica do mundo confuso do ego, o bloco rudimentar edificador do mundo sofredor do samsara. É o sentido fundamental de que há «algo mais». O sentido desse «algo mais» torna consciente o aspecto directo e primordial do aqui e agora. Percebe o «outro» e, em pânico, percebe-se a si próprio como um outro oposto ao outro. Neste ponto, temos uma situação de dualidade, do eu e do outro, e assim começa a luta de se relacionar com um mundo estranho que deve ser captado, contra o qual se deve defender ou que deve ser ignorado”. Trungpa relaciona este facto com o momento do nascimento do tempo.

”Penso que seria melhor começar com algo de muito concreto e realista, o campo que vamos cultivar. Seria loucura estudar assuntos mais avançados antes de nos familiarizarmos com o ponto de partida, a natureza do ego. No Tibete, temos o ditado de que, «sem a cabeça estar bem cozida, não vale a pena comer a língua». Qualquer prática espiritual precisa desta compreensão básica do ponto de partida, o material com o qual vamos trabalhar.

Se não conhecermos o material com que estamos a trabalhar, então o nosso estudo é inútil; as especulações sobre o objectivo tomam-se mera fantasia. As especulações podem assumir a forma de ideias avançadas e de descrições de experiências espirituais, mas exploram apenas os aspectos mais fracos da natureza humana, as nossas expectativas e desejos de ver e ouvir algo de interessante, algo de extraordinário. Se começarmos o nosso estudo com estes sonhos de «iluminação» extraordinária e experiências dramáticas, então iremos edificar as nossas expectativas e preconceitos de tal maneira que, mais tarde, quando estivermos realmente no caminho, as nossas mentes estarão grandemente ocupadas com o que será em vez de com aquilo que é. É destrutivo e injusto para as pessoas brincar com as suas fraquezas, as suas expectativas e sonhos, em vez de lhes apresentar o ponto de partida realista daquilo que elas são…

Fundamentalmente, há apenas espaço aberto, o terreno básico, aquilo que realmente somos. O nosso estado de mente mais fundamental, antes da criação do ego, é tal que há abertura básica, liberdade básica, uma qualidade espaçosa; e temos agora, como sempre tivemos, esta abertura. Tome-se, por exemplo, a nossa vida do dia-a-dia e os padrões de pensamento. Quando “vemos um objecto, em primeiro lugar dá-se uma percepção que não tem de modo nenhum qualquer lógica ou conceptualização com ele; apenas percebemos a coisa em terreno aberto. Depois, entramos imediatamente em pânico e apressamo-nos a tentar acrescentar-lhe alguma coisa, ou procuramos encontrar-lhe um nome ou tentamos receptáculos em que o possamos localizar ou categorizar. Gradualmente, as coisas desenvolvem-se a partir daí.

Este desenvolvimento não assume a forma de uma entidade sólida. Pelo contrário, este desenvolvimento é ilusório, a crença errada num «ego» ou «eu». A mente confusa inclina-se a ver-se como uma coisa sólida, contínua, mas ela é apenas um conjunto de tendências, acontecimentos. Na terminologia budista, designamos este conjunto como os cinco skandhas, ou cinco montões. Analisemos, então, esses cinco skandhas.

[quote_box_left]O momento que atravessamos assemelha-se à adoração dos ídolos de ouro que Moshe veio encontrar quando descia do Monte Sinai com as tábuas da Lei. É o culto das ilusões, da eleição da matéria, do ganho, do Eu acima de todas as coisas[/quote_box_left]

O ponto de partida é que existe espaço aberto, não pertencente a ninguém. Há sempre inteligência primordial ligada ao espaço e à abertura, vidya – que significa «inteligência» em sânscrito, precisão, nitidez, nitidez de espaço, nitidez do espaço onde colocar as coisas, onde trocar as coisas. É como uma sala espaçosa em que há espaço para aí se dançar, onde não há perigo de se derrubar as coisas ou de se ir contra elas, pois há um espaço completamente aberto. Nós somos esse espaço, somos um com ele, com a vidya, a inteligência e a abertura.

Mas se somos sempre isso, de onde vem a confusão, para onde foi o espaço, o que aconteceu? De facto, nada aconteceu. Tornámo-nos simplesmente demasiado activos nesse espaço. Como é espaçoso, inspira-nos a dançarmos nele; mas a nossa dança torna-se demasiado activa, começamos a girar mais do que o necessário para expressar o espaço. Neste ponto, tornamo-nos auto-conscientes, conscientes de que «eu» estou a dançar no espaço.

Neste momento, o espaço deixa de ser espaço enquanto tal. Torna-se sólido. Em vez de sermos um com o espaço, sentimos o espaço sólido como uma entidade separada, tangível. Esta é a primeira experiência da dualidade – o espaço e eu, eu estou a dançar neste espaço e este espaço é uma coisa sólida, separada. A dualidade significa «espaço e eu», em vez de sermos completamente um com o espaço. É o nascimento da «forma» do «outro».

Então ocorre uma espécie de blackout no sentido em que nos esquecemos do que estávamos a fazer. Há uma pausa súbita, uma paragem; e viramo-nos e «descobrimos» o espaço sólido, como se nunca antes tivéssemos feito fosse o que fosse, como se não fôssemos os criadores de toda essa solidez. Há um intervalo. Tendo já criado o espaço solidificado, então ficamos esmagados por ele e começamos a sentir-nos perdidos nele. Dá-se um blackout e depois, repentinamente, um despertar.

Quando despertamos, recusamo-nos a ver o espaço como abertura, recusamo-nos a ver a sua qualidade suave e arejada. Ignoramo-lo por completo e a isso se chama avidya. A significa «negação», vidya significa «inteligência», pelo que estamos a falar de «ininteligência». Como esta inteligência extrema se transforma na percepção do espaço sólido, como esta inteligência enquanto qualidade luminosa aguda, precisa e fluente ficou estática, é, portanto, chamada avidya, «ignorância». Ignoramos deliberadamente. Não nos satisfazemos em apenas dançar no espaço mas queremos um parceiro e assim escolhemos o espaço como nosso parceiro. Se escolhemos o espaço como parceiro da dança, então naturalmente queremos que ele dance connosco. A fim de o possuir como parceiro, temos de o solidificar e de ignorar a sua fluência, a sua qualidade aberta. Isso é avidya, ignorância, ignorar a inteligência. É o culminar do primeiro skandha, a criação da ignorância-forma.

De facto, este skandha, o skandha da ignorância-forma, tem três diferentes aspectos ou estágios que podemos examinar através do uso de outra metáfora. Suponhamos que no início há uma planície aberta sem montanhas ou árvores, terra completamente aberta, um simples deserto sem qualquer característica particular. É assim que somos o que somos. Somos muito simples e básicos. E, no entanto, há um Sol que brilha, uma Lua que brilha e há luzes e cores, a textura do deserto. Haverá também algum sentimento da energia que se manifesta entre o céu e a terra. E isto continua sem parar.

Então, estranhamente, alguém de repente repara em tudo isso. É como se um dos grãos de areia tivesse esticado o pescoço e começasse a olhar à sua volta. Somos esse grão de areia, chegando à conclusão da nossa separação. É o «nascimento da ignorância» no seu primeiro estágio, uma espécie de reacção química. A dualidade começou.

O segundo estágio da ignorância-forma chama-se «a ignorância nascida por dentro». Tendo notado que somos separados, então adquirimos a sensação de que sempre o fomos. É uma grosseria, o instinto virado para a auto-consciência. É também a nossa desculpa para permanecermos separados, um grão individual de areia. É um tipo agressivo de ignorância, embora não exactamente agressivo no sentido da ira; não se desenvolveu a esse ponto. É antes agressão no sentido em que nos sentimos desequilibrados, desajeitados e tentamos segurar-nos ao nosso chão, criar um abrigo para nós próprios. É a atitude de sermos um indivíduo confuso e separado e que é tudo quanto somos.

Identificamo-nos a nós mesmos como separados da paisagem básica do espaço e abertura.

O terceiro tipo de ignorância é a «ignorância auto-observadora», que se observa a si própria. É o sentimento de nos vermos como um objecto externo, que conduz à primeira noção do «outro». Começamos a ter uma relação com o chamado mundo «exterior». É por isso que estes três estágios de ignorância constituem o skandha da ignorância-forma; começamos a criar o mundo das formas.

Quando falamos de «ignorância», não nos referimos à estupidez em si. Em certo sentido, a ignorância é muito inteligente, mas é uma inteligência completamente biunívoca. Isto é, reagimos puramente às nossas projecções em vez de simplesmente vermos o que é. Não há uma situação do «deixar ser», porque durante todo esse tempo ignoramos o que somos. Essa é a definição básica de ignorância.

O passo seguinte é o estabelecimento de um mecanismo de defesa de protecção da nossa ignorância. Este mecanismo de defesa é o sentimento, o segundo skandha. Como ignorámos o espaço aberto, a seguir, gostamos de sentir as qualidades do espaço sólido, a fim de realizarmos completamente a qualidade de posse que estamos a desenvolver. Claro que o espaço não significa apenas espaço vazio, pois contém cor e energia magníficas. Há tremendas e magníficas manifestações de cor e energia, lindas e grandiosas. Mas ignorámo-las totalmente. Em vez disso, temos apenas uma versão solidificada dessa cor, e a cor transforma-se em cor capturada e a energia transforma-se em energia capturada, porque solidificámos o espaço inteiro e transformámo-lo no «outro». Assim, começamos a tentar sentir as qualidades do «outro». Ao fazer isto, garantimos a nós mesmos que existimos. «Se posso sentir algo lá fora, então eu devo estar aqui.»

O mecanismo seguinte no estabelecimento do eu é o terceiro skandha, percepção-impulso. Começamos a ficar fascinados com a nossa própria criação, as cores estáticas, as energias estáticas.

Queremos relacionar-nos com elas, e por isso começamos gradualmente a explorar a nossa criação.

Se sentimos a situação e a consideramos ameaçadora, então, afastamo-la de nós. Se a consideramos sedutora, então atraímo-la a nós. Se verificamos que é neutra, tornamo-nos indiferentes. Esses são os três tipos de impulso: ódio, desejo e estupidez. Assim, a percepção refere-se à recepção de informação do mundo exterior e o impulso refere-se à nossa reacção a essa informação.

O desenvolvimento seguinte é o quarto skandha, conceito.

A percepção-impulso é uma reacção automática à sensação intuitiva. Contudo, este tipo de reacção automática não é uma defesa realmente suficiente para proteger a nossa ignorância e garantir-nos segurança. A fim de realmente proteger-nos e enganar-nos completa e adequadamente, precisamos do intelecto, da capacidade de dar nomes e categorias às coisas. Assim, etiquetamos as coisas e acontecimentos como «bons», «maus», bonitos», «feios», etc., de acordo com o impulso que achamos apropriado.

Assim, a estrutura do ego torna-se gradualmente mais pesada, mais forte. Até este ponto, o desenvolvimento do ego tem sido puramente um processo de acção e reacção; mas, a partir de agora, o ego desenvolve-se gradualmente para além do instinto animal e torna-se mais sofisticado. Começamos a experimentar a especulação intelectual, confirmando ou interpretando-nos a nós mesmos, colocando-nos em certas situações lógicas, interpretativas. A natureza básica do intelecto é muito lógica.

Em certo sentido, deve dizer-se que a inteligência primordial está sempre em operação, mas está a ser utilizada pela fixação dualista, pela ignorância. Nos estágios iniciais do desenvolvimento do ego, esta inteligência opera com a agudez intuitiva da sensação.

Mais tarde, actua na forma de intelecto. Realmente, parece que afinal não existe ego; não existe o «eu sou». É uma acumulação de uma porção de material. É uma «brilhante obra de arte», um produto do intelecto que diz: «Vamos dar-lhe um nome, vamos chamar-lhe qualquer coisa, vamos chamar-lhe “eu sou”», o que é muito inteligente. O «eu» é o produto do intelecto, a etiqueta que unifica num todo único o desenvolvimento desorganizado e disperso do ego.

O último estágio do desenvolvimento do ego é o quinto skandha, consciência. A este nível, ocorre uma amalgamação: a inteligência intuitiva do segundo skandha, a energia do terceiro e a intelectualização do quarto combinam-se para produzir pensamentos e emoções. Assim, ao nível do quinto skandha, descobrimos os seis domínios bem como os padrões incontroláveis e ilógicos do pensamento discursivo.

Este é o quadro completo do ego. É a este estado que todos chegámos no nosso estudo da psicologia e meditação budista.”

E nestas breves mas longas deambulações se introduz a complexidade simples dos mecanismos que o budismo, naquela busca próxima do descascar da cebola, vai operando para o homem se perceber a si mesmo.

8 Jul 2015

Para onde voam os pássaros

[dropcap style =’circle’]P[/dropcap]ara longe. Isso sabe-se. Quando migram, adiantam-se às estações. Têm percursos fixos independentemente dos perigos e cumprem-nos anualmente mesmo tendendo para a extinção. Eles sabem onde vão. Guiando-se pelo magnetismo da terra. Há sítios do mundo em que hoje se reeduca espécies para encontrarem outros caminhos e outros lugares.

E como voam. Nessas formações perfeitas em flecha ou em arco. Eles, os seres redondos por natureza poética ou filosófica, ou fenomenológica. Disse-o Klee: “todo o pássaro é redondo”, e disse-o Bachelard, evocando Rilke quando escreve “o gorjeio redondo do ser redondo arredonda o céu em cúpula”, ou Michelet quando define o pássaro como “quase totalmente esférico”. A forma redonda não como forma física de natureza geométrica mas como imagem metapsicológica. O ser e o ser do pássaro redondo porque centrado em si. São no entanto, em bando, o movimento por excelência, a seta de sentido. O sentido do todo. E, mergulhando os olhos naquelas nuvens imensas de aves, em bando compacto, em estruturas indecifráveis na sua causalidade, definindo ritmos e padrões mutantes, evoluindo no ar consistentemente, há uma sensação de maravilha. E o bando, mesmo na mansidão rítmica e dinâmica dos inúmeros arabescos e floreados, nunca se perdendo como um corpo, orgânico e uno na sua identidade. Plástico no entanto ao ponto de ver a ligação entre as minúsculas partes, como células, distender-se mais ou menos elástica, deformar-se por acentuação ou nivelarem-se entre si as linhas invisíveis que as ligam. Um pouco como um tecido tridimensional arrastado pelo vento e pelo tempo, suavemente a mudar a sua curvatura e a modelar ondulações várias, sem romper. Ou como uma malha fina e flexível. Hipnótica.

A beleza emocionante, e emocionante sem retórica, até quase à força de lágrimas arrancadas à nossa dificuldade em lidar por vezes com o que é belo. Faz pensar que talvez o embalo para olhos contemplativos, com que invejamos os pássaros, se assemelhe a referências remotas, muito lá atrás no início de tudo no ventre materno, a oscilação dos fluidos um eterno romanço de conforto em que só se antevê um mundo fora da caverna, em subtis mudanças de luz e sons coados. E porque embalamos o corpo ao som da música, também nos embalamos solitariamente ao sabor de formas que nos conduzem o olhar. Pequenos humanos que dançam uns com os outros, que também somos. Aos pares ou em grupos. Só ao sabor do ritmo e da melodia, ou em coreografias imaginadas e ensaiadas num corpo de baile. A eterna nostalgia do vôo que afinal nunca fizemos. Excepto, ou talvez sobretudo, porque a natureza dos pensamentos tem essa mesma qualidade e capacidade das aves. O que nos liberta das limitações corpóreas e terrenas, se bem permaneçam sempre ligados a um corpo como à luz de um farol. Os pensamentos.

Os pássaros pequenos – que o mesmo é dizer, pássaros porque só eles o são em termos de espécie – como os estorninhos, e porque são presa de predadores de maior vulto, voam às centenas ou voam aos milhares ao fim da tarde antes de escolher o poiso para dormir. A grandes velocidades navegam juntos em padrões assimétricos, altamente coordenados. A estas revoadas dá-se o nome colorido, burburinho de estorninhos. Uma onomatopeia bonita que quase rima com o seu nome de pássaros a adejar asas velozmente. Agitados. Animados. Por isso a questão é afinal para onde voam os pássaros quando não voam para lado nenhum.

Esses bandos de dezenas centenas ou mesmo milhares de pássaros ou outras aves, que evoluem juntos no espaço, porque a natureza lhes ensinou que é melhor, para se protegerem de predadores, naturais ou não, mas também porque têm um destino comum e se ajudam para essa finalidade. Enquanto outras aves voam sós, e não há juízos possíveis sobre a validade de uma ou outra forma de existir.

Eles levantam vôo de forma aparentemente despreocupada e aleatória, mas gradualmente vão definindo as suas posições e o seu lugar no bando. Posicionam-se numa formação que permite usufruir do impulso gerado pelo deslocamento do ar, causado pelo bater das asas do que voa à sua frente. As primeiras aves do bando, ajudam a vencer a resistência do ar criando um vácuo que ajuda as outras a planar ou a voar com menor esforço e por mais tempo. E quando voam para longe é uma economia relevante. Em tão pequenos seres vivos, que atravessam por vezes anualmente milhares de quilómetros. O bater das asas deixa para trás um redemoinho de ar, nesse turbilhão, em que o ar é empurrado para baixo e seguidamente num jacto para cima. E é aí que a ave seguinte pode fluir, economizando energia e desenvolvendo um esforço menor. Todos os órgãos sensoriais apurados se coordenam para uma orientação espacial precisa e os manter com exactidão no seu lugar, relativo a seis ou sete outros, que lhes voam em redor. E isso exige uma sincronia perfeita no batimento das asas, aferida pelas sensações de deslocação do ar, como uma orquestra em uníssono, ou quando um som ainda paira no ar e já outro se começa a formular. Os líderes são eventualmente os melhores navegadores. É um mistério como assumem esse reconhecimento de que o são. Mas no vôo em bando, este vai mudando regularmente a formação e os que lideram revezam-se nesse papel. Subtilmente, sem quebras de ritmo, sem dilemas, luta ou contestação. Seguindo viagem.

Quantas comparações, quantos símbolos encontram uma imagem no reino das aves, no seu modo de vida. A rapina, o vôo, o olhar, o golpe de asa. E estes mecanismos de grupo. A partir daqui, quantas metáforas se poderiam pertinentemente formular… Políticas, sociais, existenciais.

Quantos povos deveriam poder dizer “queres voar comigo?”… e quantos amantes deveriam saber dizê-lo também. O lirismo é um estado dificilmente partilhável. Sobretudo com esta puerilidade. No mundo de hoje como no de sempre. Mas tudo a tender para pior. Por isso me apetece esta metáfora infantil e simples.

Este é o discurso mais próximo de uma afirmação política que consigo de momento. Tão difícil escrever. Centrarmo-nos em algo que faça sentido, numa emoção relevante e abrangente que faça sentido. Seja ela enebriarmo-nos com concertos de Schumann, ou com a contemplação do vôo de bandos de pássaros. Que seja coincidente com o momento, anestesiante e extensível a outros sentidos possíveis, mas mais universais do que o simples desabafo da nossa pequenez. Desde que essa espécie de embriaguez possa extravasar o círculo redondo, passe a redundância, do nosso eu em êxtase lúdico, e envolver os outros no prazer de uma imagem bela, em algum prazer de um simples momento.

Para além de todo o registo de amargura, de dispersão e confusão, de injustiça, de desígnios imperscrutáveis, em que somos um bando desavindo, penso nas nuvens de pássaros. Funcionamos não como um bando mas como diferentes bandos de espécies distintas. Incompatíveis. Inimigas. A solidariedade, palavra terrível e aglutinadora como uma cola, mas por vezes tão desastrosa e inábil como esta. E como a cola, manietante e geradora de dependências. Melhor dizer como os pássaros que levantam vôo de forma caótica, mas que, subtilmente e às vezes levando muito tempo, se vão organizando naquela formação que é a melhor para o percurso de todos, sem competição sem hesitações. Melhor dizer, mesmo que por palavras. Podemos voar? Podemos voar convosco? Podemos voar juntos? Podemos voar? Poderíamos voar. Se fôssemos pássaros. Como humanidade, não vamos longe.

3 Jul 2015

Ao negro, ao rubro ou às cegas

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]inda e sempre, visualizando um mundo inteligível por camadas. Aí, onde a estética do sublime vive nas orlas extremas. As mais inalcançáveis arriscadas e fugidias. A mais elevada (as esferas mais altas de Nietzsche) e intangível porque volátil, a esfera do utópico sonhado, que preconiza a morte da filosofia porque idealmente se teriam desenrolado todos os nós do conflito pelo entendimento da vida, sentido e fim, e aquela que os filósofos amantes do saber perseguem. Amam-na perseguindo a sua morte. O que é uma curiosa forma de amor. Como noutras em que o apaziguamento traz no final a mudez dos não sentimentos. A morte por se alcançar a inutilidade final. Ou aquela outra dimensão mais subterrânea de onde se desentranham verdades dolorosas, conclusões parciais no limite do suportável, do encarável. O domínio da natureza humana como fundamento de todas as complexidades sem mais responsabilidades a remeter para fora do estritamente humano. O remexer nas perplexidades inerentes e como tal sem solução excepto do ponto de vista do saber interior ao ser. Sem uma lógica ou uma razão física ou metafísica para o desenrolar de questões, para além dos próprios mecanismos do intelecto humano. Se não é o universo a estabelecer as bases para a sua própria interrogação mas as condicionantes humanas, o que sobra é fútil, é um encadeado de elucubrações e devaneios da alma do indivíduo colectivo, inútil e vã como pressuposto universal. Ou o universo se dimensiona por referência ao homem na sua insuficiência, por incapaz de se entender a si mesmo. A filosofia é o que é imperfeito, o que é desconhecido, misterioso. “Só conhecemos o que a si próprio se conhece” como diz Novalis. E descer às profundezas é penoso e atemorizante.

Depois há todo um universo intermédio, à superfície, que é o domínio do pitoresco. O colorido, alegre e paisagístico, feito de formas e elementos naturais, lúdicos, onde se situam os viciados no discurso pelo discurso, e nas palavras pelas palavras de um modo decorativo e hedonista. Como na pintura, o excesso de cores a conduzir para uma progressiva dissolução do sentido. Cinco cores, cinco palavras-chave. Seria o ideal. Nem demais nem de menos. Tudo o resto são as cambiantes de claro-escuro que tornam complexo. Que modelam as formas em volumes mais suaves ou mais acidentados conforme a expressão. As palavras bonitas e os conteúdos frescos, apaixonados feéricos e embriagadores de onde não podemos senão resvalar, como da beira de um penhasco, conduzidos pelo flautista de Hamlin, e cair em desamparo da futilidade ligeira, para o pântano tenebroso das questões profundas. Diria dessa camada do meio, o verdadeiro limbo. A fuga em frente. E das outras camadas, céu e inferno em simultâneo. Quantos infernos tinha Dante? Nove camadas de sofrimento entranhadas nas profundezas da terra.

Mas como nas dualidades externamente estabelecidas como reverso umas das outras, na sua inextricável vivência a duas faces, dos opostos só faz sentido perceber as relações entre eles estabelecidas e desfeitas, a sucessiva deslocação de um ponto de vista para o outro, um olhar cubista que recuando se ilude na mistura de todos eles num mesmo plano. E esse é um exercício retórico. Assumir a validade de, em cada momento, nos resignarmos ou pelo contrário desafiarmos a lógica inalcançável das coisas, ao olhar através de um só desses ângulos parece ser uma imperfeição mais humana e possível. Saltar agilmente de face para face, de camada para camada sem perder contudo de vista a possibilidade das outras. Ou nos perdermos. Mesmo que desse sítio do mundo visível, tudo nos seja apresentado ao negro. Ou ao rubro. De outro modo seria às cegas.

28 Jun 2015

Do destino – 2

[dropcap type=”2″]H[/dropcap]á quem nunca consiga por em prática os seus talentos ou inteligência; ou, mesmo quando consegue, é sem grande consequência. Há quem não chegue a qualquer resultado, apesar de ter talentos e inteligência comparáveis a Confúcio.

As pessoas, vendo alguém de conduta irrepreensível, lhe perguntam: “Como explicar que, com a sua sabedoria, nunca tenha recebido honrarias?” A outrem, avisado e ponderado, dirão: “E você, tão astucioso e inteligente, porque nunca enriqueceu?”

Ora, a riqueza e as honrarias dependem do destino e da sorte, não da sabedoria e da inteligência. Eis porque se diz que não se pode contar com a riqueza e que os talentos não chegam para garantir honrarias. Pessoas inteligentes e avisadas não conseguem fazer fortuna; outras, perfeitamente capazes, não conseguem arranjar emprego. Os detentores [de sinetes] em prata, ou de [sinetes] suspensos de cordões púrpura [NT – altos funcionários], não são necessariamente do calibre de Ji ou Xie [NT –conselheiros míticos]; nem todos aqueles que acumularam ouro ou jade são tão engenhosos como Zhu de Tao [NT – conselheiro que se dedicou aos negócios]. É possível encontrar refinados idiotas que possuem grandes quantidades de ouro e imbecis entre os grandes dignitários locais. Funcionários de iguais capacidades têm cargos diferentes por causa dos seus destinos; dado não terem a mesma sorte, mercadores de capacidades comparáveis não acumulam as mesmas riquezas. A sorte dita que alguns sejam ricos e outros pobres e a inteligência nada nisso pode mudar; não são as competências que decidem promoções ou despromoções, mas sim o destino.

O rei Cheng era menos dotado do que o duque de Zhou e o duque Huan [de Qi] menos inteligente do que Guan Zhong, mas o rei Cheng e o duque Huan conheceram a glória, enquanto que o duque de Zhou e Guan Zhong nunca passaram de subalternos. Devemos recordar que numerosos soberanos antigos se instruíram com seus súbditos e que muitos destes, dotados e inteligentes, foram seus tutores. Mas tal não impediu os primeiros de serem os amos, mesmo que fossem incompetentes, enquanto que os seus brilhantes súbditos não passaram de servos – ora isto sucede porque o estatuto social não depende da sabedoria, mas do destino, e porque o sucesso material não é função da inteligência, mas da sorte reservada a cada um.

Os nossos oradores afirmam que os mais competentes devem ocupar as mais altas funções e que os outros devem labutar nos ofícios da terra ou do comércio.

Sempre que vêem um homem capaz e inteligente falhar na sua carreira oficial, espantam-se e acusam: “Deve ser um problema da sua conduta moral!” E àqueles que cuja moral é irrepreensível [mas que também falham], fazem a acusação inversa: “Trata-se, sem dúvida, de um incompetente!” Não lhes ocorre que uma pessoa pode muito bem dar provas de grande inteligência e de uma moralidade perfeita, mas que é sempre o destino a decidir o seu sucesso.

Quando uma pessoa capaz e inteligente gera os seus interesses numa época que lhe é favorável e é bem sucedida, interpretamos isso como prova das suas capacidades; mas outra pessoa, a quem o destino seja hostil e só conheça a desgraça, vê-se classificada de estúpida. Eis o que é ignorar que o destino pode ser fasto ou nefasto, a sorte favorável ou desfavorável.

*O destino e a sorte: ming lu [命 祿]. As palavras ming e lu referem-se a dois aspectos do destino: o ming define o sucesso social, o estatuto, enquanto que o lu determina a riqueza, o sucesso material. Curiosamente, lu designa também o salário de um alto oficial na China antiga.

24 Jun 2015

Da Primavera e do Outono

[dropcap]E[/dropcap]m 1046 a.C., há cerca de 3.500 anos, em plena Idade do Bronze, os Shang travavam a mais crucial batalha contra os Zhou, onde é hoje a província de Henan, na bacia do Rio Amarelo, berço da civilização chinesa.

A batalha de Muye opôs o exército dos Shang, de 700.000 homens, contra os Zhou, possuidores de uma força de 4.000 carros de guerra e 48.000 homens, ditando a queda dos primeiros.

Esta batalha iria dar origem à mais longa dinastia da China, a dos Zhou, nada mais que 790 anos (1046 – 256 a.C.), dividindo-se em complicados sub-períodos, nem por isso menos interessantes.

É no período chamado “Primavera e Outono” (770 a.C. – 476 a.C.) que se afirmam, na falta de outro termo, as quatro escolas filosóficas chinesas: o Taoísmo, o Confucionismo, o Mozismo e o Legalismo.

Conta a lenda que Lao Tzu, antes de transpor as portas de Luoyang para desaparecer no horizonte Ocidental, deixou escrito o Tao te Qing, os fundamentos do Taoísmo, que contém este belo trecho, entre tantos outros:

[pull_quote_center]Havia algo de indeterminado antes do nascimento do Universo.
Essa qualquer coisa vagueia sem cessar.

Como não lhe conheço o nome, chamo-lhe Tao (Caminho, Via)
Com um nome deve ser a Mãe de todas as coisas
Sem nome, é o Antepassado dos deuses.[/pull_quote_center]

Do legado Taoísta, à benevolência do Confucionismo, segue-se a entrada do Budismo na China dos Han (206 a.C. – 220 d.C.) pela Rota da Seda, estabelecendo-se uma como que trindade de crenças, onde ao conceito cósmico, dinâmico e abstracto do Taoísmo se conjugam os princípios éticos do Confucionismo e a oportunidade da extensão temporal por via da crença Budista na roda das encarnações.

No Império do Meio o tempo passa a ter uma outra dimensão.

O tempo do tempo

Das altas montanhas debruadas de nuvens, às magnificentes capitais e à grandeza dos seus inventos, dir-se-ia que toda a longa história da China parece ter sido tecida – pura ilusão – para desembocar num conceito que lhe era exógeno, o da República.

[quote_box_right]Este breve olhar sobre a história milenar de um país que, nas últimas décadas, assistiu a uma transformação quase ímpar no desenrolar da história do mundo, fez-me lembrar um outro, no Extremo Ocidental da Europa, que, também há poucas décadas, teve o ensejo de se poder metamorfosear em um país democrático, moderno e desenvolvido, mas, dessa Primavera, resta-lhe apenas, apesar do céu azul, um ar Outonal. [/quote_box_right]

A República mais não significou que a primeira tentativa de resgate de um sistema decadente e corrupto cujo final, protagonizado pela Regente Ci Xi, mostrou a distância e o alheamento com que o Império era (des)governado.

Após o período revolucionário liderado por Mao Zedong, a China percorre em 30 anos, como país mais populoso do mundo, um caminho em direcção ao que Deng Xiao Ping apontou: “Socialismo não tem de significar pobreza”. E nos subsequentes planos quinquenais e no estabelecimento do princípio Um País Dois Sistemas conduzem com firmeza o país a uma Economia Socialista de Mercado, um dos conceitos-chave que iriam, num curtíssimo período, criar uma classe média de 400 milhões, uma classe milionária assinalável, e colocar a economia chinesa no topo da escala mundial. Apesar dos quase 100 milhões que vivem ainda abaixo da linha de pobreza, das migrações e da sustentabilidade ambiental constituírem um desafio para o governo central, a República Popular da China é hoje uma presença mundialmente poderosa.

Este breve olhar sobre a história milenar de um país que, nas últimas décadas, assistiu a uma transformação quase ímpar no desenrolar da história do mundo, fez-me lembrar um outro, no Extremo Ocidental da Europa, que, também há poucas décadas, teve o ensejo de se poder metamorfosear em um país democrático, moderno e desenvolvido, mas, dessa Primavera, resta-lhe apenas, apesar do céu azul, um ar Outonal.

11 Jun 2015