Fronteiras II

[dropcap]P[/dropcap]onho-me debaixo do duche. Tiro o shampoo ainda da cabeça. A mão direita chega melhor à nuca. A esquerda retira a espuma do lado esquerdo da cabeça. Sinto a água que cai directamente sobre a cabeça e depois escorre pelo corpo todo, ombros, braços, barriga, mas também costas, nádegas. Não vejo as costas, nem a nuca, nem em geral a parte de trás do corpo, como não vejo o interior. Saio do banho. Limpo-me em frente ao espelho. Puxo a toalha da direita para a esquerda e depois da esquerda para a direita, de cima para baixo, para limpar as costas.

Vemos sempre só o que está à nossa frente, nunca o que está atrás de nós. Quando olho, com esforço por cima do ombro, para baixo, deixo de ver o que habitualmente vejo e passo a ver o que habitualmente não se apresenta. Sinto as costas quentes e molhadas e depois secas, a refrescar.

Mas é pelo tacto. Sinto cócegas, comichão, no exterior e no interior, mas não vejo as cócegas nem o prurido. São fenómenos tácteis. Todo o nosso corpo tem em si a perpassá-lo estruturalmente uma textura táctil, háptica. Sentimos uma dor de cabeça, como uma pontada, a vir do interior para o exterior, mas sem ir ao limite fronteiriço da cabeça. É lancinante, do lado direito da cabeça, um pouco acima dos olhos, no seu interior. É como uma agulha a espetar, mas não de fora. Esta é de dentro. Sinto dores musculares do treino. É no interior da coxa, ou na testa por um golpe sofrido.

Não é só superfície nem na pele. Entra-me pelo corpo adentro. Podemos perceber que dói tudo ou que o mal-estar é geral, como quando se tem uma febre de gripe e todos nós estremecemos.

Olho através da janela para ver como está o tempo. O céu azul abobadado, sem nenhuma nuvem. Nenhuma folha mexe nos ramos das árvores. Eu toco o céu com um olhar que se expande por todo o azul que eu consigo ver. O azul abobadado serve de plano de fundo ao horizonte. Haverá alguma correspondência entre os raios que saem da abóbada que são os olhos para cada ponto do céu azul? Ou será ao contrário, no plano de fundo azul, em toda a sua extensão, há pontos reais que servem de ponto de aplicação aos raios que saem do semi-globo ocular? Ou dos pontos do céu em toda a extensão a que acedo pelo olhar chegam como dardos raios azuis que formam a extensão. O azul do céu é a soma de todos os pontos azuis? Ou há uma extensão já em forma de plano curvo que é mais do que a soma das suas partes e forma faixas azuis? É o céu azul composto por faixas azuis como a fuselagem de um avião que parece feito de remendos? E o ver azul vem de onde? É do olhar ou da visão? A visão é mais do que o olhar. Eu posso olhar da direita para a esquerda e de cima para baixo, perto ou longe e, ainda assim, não estar a ver nada.

Por outro lado, ao olhar numa determinada direcção, de repente, vejo formado, de uma só vez, o céu azul de um dia sereno. Quando eu toco em toda a sua extensão o céu azul, vejo formarem-se em todos os planos até aos meus olhos diversos objectos. Um objecto forma um plano. Há tantos planos quantos os objectos e mesmo sem haver objectos referenciáveis há planos possíveis que se podem estabelecer imaginariamente. O objecto que eu vejo mais longe é a ponte 25 de Abril. Para lá dela, só vejo azul. Mas entre ela e mim, vejo várias edifícios, uns mais longe do que outros, depois vejo a janela que está suja, depois vejo os meus óculos de ler que estão limpos. Mas já não vejo a película que reveste os meus olhos. Não vejo as lentes de contacto. Mas quando procuro ver as lentes de contacto, percebo que estou já fora dos olhos. Concentro-me nos óculos e vejo a sua armação. Depois vejo o que está fora da armação. Concentro-me agora na janela e percebo a sua forma geométrica composta de duas partes. Já não vejo a armação nem as lentes dos óculos.

Percebo de forma desfocada a paisagem para lá da janela. Agora toco na ponte 25 de Abril: vejo os carros passarem da direta para esquerda. Não consigo se não adivinhar os carros que vêm de sul para entrar em Lisboa. Vejo, a ponte 25 de Abril deslocar-se para a esquerda, quando os carros são perseguidos por mim a diversas velocidades, na direcção contrária. Deixo de prestar atenção à ponte no seu todo, deixo de ver a ponte e percebo o azul que serve de plano de fundo a tudo. O horizonte da visão é construído por uma projecção que torna todos os planos visíveis, de lá dos olhos até lá ao horizonte. É como se tudo estivesse metido numa esfera de que só percebe a semiesfera abobadada em que eu estou metido com todas as coisas. Vejo agora da ponte 25 de Abril a minha casa, a janela de onde eu há pouco estava a olhar para cá. Desloco-me no tabuleiro.

O Cristo Rei lá ao fundo que eu antes não via, passa a estar visível. A foz do Tejo passa a estar visível e a costa de Almada. Lá ao fundo estarão as portagens que eu ainda não vejo. Olho para a Junqueira e percebo o verde dos jardins nas proximidades. Vejo o paredão entre as docas e Belém.

E vejo a casa onde está a janela de onde eu via a ponte. Não consigo fazer congruir nada do que vejo com o que via. As proporções estão trocadas. Mas tudo está fora da minha cabeça. A visão só vê fora. Não vejo o interior dos olhos nem o interior da cabeça. Por mais que olhe para o cimo e para baixo e para cada um dos lados e faça mexer o globo ocular, não consigo ver o interior. Só vejo o exterior. Do ângulo da minha visão dou tamanhos às coisas, ponho-as em múltiplas relações que só existem no interior do espaço de visão. O interior é o exterior e o interior é dentro do horizonte complexo da visão.

9 Abr 2019

Fronteiras I

Dedicado a José António Tenedório

[dropcap]A[/dropcap] palavra fronteira tem vários sentidos. O primeiro que ocorre é geográfico. A fronteira delimita países geograficamente. Mas historicamente alteram-se tal como diferentes foram os diversos povos que habitaram o espaço delimitado por uma mesma fronteira. Há fronteiras naturalmente geográficas: rios e montanhas. Outras foram forçadas política ou militarmente. O conceito de fronteira tem múltiplas dimensões. Definem-se espaços dentro das fronteiras nacionais e além-fronteiras. Além disso, ser fronteira não define apenas estaticamente localidades, locais, lugares, regiões, províncias terrestres, mas também há fronteiras marítimas que são território nacional de um país e vão muito além do território terrestre. Ser fronteira não é assim definido bem por uma linha geográfica. Ela é difusa ao olhar ainda que bem definida em latitude e longitude. Ser fronteira não é assim um objecto apenas realmente existente. Ao olhar para o globo terrestre como um todo, encontramos morfologias marítimas e terrestres que são as únicas heterogeneidades que encontramos a olho nu. Ser fronteira permite compreender o que é entrar num país e sair de outro país, o que é invadir e defender, acolher e exilar-se, regressar e partir. São muitos os infinitivos que estão conjugados no ser fronteira. A expansão das fronteiras nos impérios historicamente relevantes permite compreender também outros sentidos. Do ponto de vista do império e do invasor colonizador, o projecto para o mundo inteiro é integrar dentro dos seus limites. Do ponto de vista dos colonizados é ter sido invadido e ter perdido a identidade nacional dada pelo corpo definido na anatomia da sua fronteira. Aquém e além, dentro e fora, no interior e no exterior, acolher e libertar são determinações pensadas no fundo da concepção de fronteiras.

A cabeça da serpente que era Roma para o seu império tinha as suas fronteiras numa periferia móvel. Um historiador como Tácito compreende o império a partir da relação tensa que há entre a fronteira na Germânia por exemplo e o que se passa na cidade. O arco tenso entre o núcleo duro do senado romano e as fronteiras do império funda o espaço interior estruturante do próprio império. A nossa vida tem diversas fronteiras vitais. Os sítios que habitamos na nossa existência estão localizados num mapa vital que pode ser partilhado com outras pessoas. Enquanto mapa definido pela vida humana desmultiplica-se em múltiplos sítios, lugares, localidades. Há tantos países quantas as pessoas que são naturais dos seus países e uma única pessoa conhece vários países. Há tantos globos terrestres quantas as pessoas que o habitam, ainda que só lhe acedam pelo ângulo particular do canto do olho. Há múltiplos globos terrestres vistos por uma única pessoa conforme o país que habita ou visita apenas e o duplo olhar que se constitui como natural de um país ou como habitante, provisória ou definitivamente, de um outro país.

O conceito de fronteira corresponde em certa medida ao conceito de horizonte. Mesmo que compreendamos a existência de fronteiras e elas possam ser efectivamente ultrapassadas, mesmo que consigamos ver fronteiras representadas ou fotografadas na contemporaneidade ou ao longo da história, a interpretação do ser fronteira implica sempre uma vivência existencial do sentido, do que é estar em casa, em segurança, de um modo acolhedor, cómodo, familiar. E por outro lado, o que é projectado para fora dessa comodidade, o que é inóspito e inospitável, o que é estranho, está fora de casa, nos faz sentir como peixes fora de água. Gizamos, assim, as nossas próprias fronteiras ou vemos como elas são projectadas a partir do interior da existência humana. Define-se para nós de algum modo desde sempre o espaço estrutural do que é familiar e nós é próprio, do que nos pertence, e o espaço inóspito do que provoca alienação em nós, nos é estranho e não nos pertence. O espaço desta fronteira é afectivo ou sentimental. As fronteiras alteram-se a partir da intimidade da nossa sensibilidade que nos faz sentir em casa no mesmo sítio que nos faziam sentir não em casa. E vice versa: podemos deixar de nos sentir em casa no mesmo sítio a que outrora chamávamos casa. Há fronteiras delineadas com outros que ficam borradas, quando os outros desaparecem. Há fronteiras definidas com outros, quando não havia nenhuma linha a determinar qualquer horizonte de habitabilidade. Há fronteiras que são imaginadas, quando no passado eram inimagináveis, e passamos a habitar um sítio que é bom de ser habitado. Há mundos perfeitos que desabam por não terem fronteiras afectivas. Não por desaparecerem, mas porque nos lembram cidades fantasma inabitáveis pelos próprios nós que já foramos e não seremos outra vez ou só muito dificilmente. Cada pessoa giza as fronteiras do seu próprio império e tem que se ver com as fronteiras dos impérios que são as existências dos outros. Ao sermos com outros, somos por eles e contra elas, passamos por eles na nossa mais completa indiferença, ou ficamos presos uns aos outros pela ausência de indiferença, quando os outros fazem a diferença e nós fazemos a diferença nas suas vidas. Cruzam-se várias nações com outras pessoas, esboçam-se mundos, refazem-se mundos, desfazem-se mundos, constrói-se impérios e destroem-se impérios.

Somos Roma e as zonas limítrofes mais periféricas, de nós mesmos e dos outros. As fronteiras são desenhadas a partir do próprio que é nosso, a partir do interior, da intimidade da nossa própria vida. A vida nas suas múltiplas formas com outros e sem eles, sensibilidades, impactos afectivos, crises emocionais, ganhos e perdas é vista a partir da Roma do império que somos nós com outros até à periferia do mundo inteiro na sua totalidade. É aí que se definem os outros na importância muita, pouca, nenhuma ou total das nossas vidas nas dos outros e das dos outros nas nossas vidas. É nesse interior que se define o ateniense em nós e os bárbaros, os que são nossos e os outros. É aí que nos definimos, que percebemos se riscamos ou não riscamos, se somos importantes, muito, pouco ou nada, ou somos tudo parar os outros. E nós próprios na multidão de gente que somos, na múltipla personalidade que é a nossa, definimos também fronteiras para o nosso eu mais íntimo, aquele mesmo que nós somos, e para os outros eus que desprezamos, de quem temos medo, que segregamos, que não afirmamos ou até negamos que alguma vez tenham existido. À superfície da consciência ou sou quem giza a fronteira entre o aquém de mim e o além de mim, quem eu integro e quem eu expulso. Que fronteiras são estas? Qual é o sentido do ser fronteira em que eu entro e saio, eu integro e expulso, eu segrego e acolho? Cancelar-me-ei de mim próprio ou estou sempre continuamente numa posição de apropriação? E a fronteira da vida que é o seu limite, o além, depois da morte?

2 Abr 2019

Conhece-te a ti próprio

[dropcap]A[/dropcap] formulação gnôthi seauton, que podemos traduzir por conhece-te a ti próprio é uma máxima que Platão repete na boca Sócrates em diversas instâncias. A versão completa diz também mêden agan: nada de excesso. Importa perceber que o objecto do conhecimento é si mesmo ou si próprio e o verbo é um imperativo aoristo. A fórmula é um convite que diz, pelo menos uma vez na vida, conhece-te a ti próprio ou reconhece quem tu próprio és, e nada de excesso. Que excesso é este? É no conhecimento de si? Podemos conhecer-nos bem de mais? Ou é na própria prática, nas nossas acções? O que quererá dizer “conhecimento” aqui? E quem é esta entidade aparentemente diferente de “mim”, o “si”?

Há várias despistagens possíveis antigas e contemporâneas. A primeira prende-se com o domínio não coincidente do si próprio, self, Selbst, e do eu. Numa crítica a Descartes, Heidegger diz que, se o ego nunca morrer, se repete em cada cogitatio e cada pessoa projecta-se a si mesma como o eu que é para todo o sempre, pelo contrário, o sum, o sou, implica-me no encaminhamento da morte. Eu sou moribundo, sum moribundu: sou aquele que tem de morrer. O ser do sou é diferente do ser do é, do ser do eu. O eu é uma coisa que durará para sempre, que eu não perspectivo fora de mim nunca. Mesmo que eu viva para todo o sempre, o sou é sempre a perder, é sempre a abrir mão de si. O conhecimento que abre para o eu é uma percepção clara e distinta que é coincidente com o aqui e agora em que o eu existe e é também o eu que se desdobra e olha para o próprio eu: eu penso-me a pensar-me coisas pensadas por mim, eu sou o agente da percepção e ao mesmo tempo o conteúdo da própria percepção de mim.

Mas como acedo eu ao sou? A tradição da fenomenologia diz que há uma compreensão não reflexiva, não temática de si. Nós respondemos à pergunta “como tens passado?” com respostas mais ou menos óbvias: bem, mal, assim assim, vamos indo. A resposta dá já conta do modo como nos encontramos. Nós encontramo-nos desde sempre de um determinado modo, nós achamo-nos a nós desde sempre. Encontrar-se e achar-se querem aqui dizer que há um modo de nos surpreendemos sempre num modo de ser, num modo de estar. Há uma melodia que vibra connosco a vida e sentimos estar a ser ou ser de um determinado modo. Os outros que aí estão connosco são também melodias que vibram nas nossas vidas. Não são só eus aos quais acedem por percepções claras e distintas, nem intuições de si mesmos.

Os outros são na sua “fonia” vozes complexas jovens ou velhas, espíritos que sopram nas nossas vidas como o vento nas harpas eólicas. O si próprio de que fala Delfos é este horizonte de melodia em que somos com outros em sinfonia. A música das nossas vidas não é apenas a que Sócrates chamava a versão popular da música. Sócrates achava que tinha feito música a vida inteira para responder à exortação da personagem dos seus sonhos que lhe pediam para fazer música. Achava que tinha feito música a vida inteira e isso era ter feito filosofia, fazer filosofia. Por escrúpulo de consciência tinha composto uma música para acompanhar um poema, mas a verdadeira música que vem da inspiração e do entusiasmo divino tinha sido a filosofia na vida dele.

Conhecer-se a si mesmo é abrir-se à disposição musical em que escutamos e percebemos a nossa própria melodia e a melodia dos outros nas nossas vidas e as melodias das nossas vidas nas dos outros e as dos outros nas nossas. O si próprio em cada um de nós não é um ponto de vista. Os outros não são apenas pontos de vista. O acontecimento humano não é apenas espacial a abrir para um alvo e a definir um horizonte. Nós somos no tempo e distendidos pela totalidade do universo. Cada um de nós é à escala mundial. Não. Cada um de nós é à escala universal. E nós estamos distendidos uns nos outros desde o primeiro homem até ao último homem. O próprio é a dimensão temporal que se desenrola como um manto. O próprio é o agente complexo de todos os protagonistas das suas vidas.

O conhecimento resulta desta forma complexa de abertura a si, como ninguém quer a coisa, sem se saber como pode vibrar sobre todos os eus que nós somos, sobre todos os comités de gente que nós somos, sem saber como é possível reunirmos em nós a cidadela. O si é a cidadela de todas as cidadelas que existem desde os primeiros seres humanos e que pensavam no que havia antes de terem nascido. O Si somos nós na hora da nossa morte, antecipando todas as gerações de pessoas que estão para vir. O si somos nós na hora da nossa morte já sem ninguém a antecipar. Perguntamos quem seremos nós na hora da nossa morte. Perguntamos quem seremos nós depois de termos desaparecido daqui, sem pai nem mãe nem irmãos, sem os nossos amores. O que seremos sem os nossos amores e quem serão os outros sem o nosso amor. Conhece-te a ti próprio é a abertura de amor ao outro como nos temos aberto a nós próprios no concerto difícil da totalidade da vida a ser.

Nada de excessos!

19 Mar 2019

Biologias II

[dropcap]A[/dropcap]idade moderna dissocia dramaticamente a mente do corpo. Descartes torna irreconciliáveis pensamento e mundo. A “cogitatio” e a “extensio” são termos que se contradizem. Se o mundo é material, corpóreo, divisível e extenso. O pensamento é imaterial, incorpóreo, indivisível e inextenso. Descartes não deixa de dar uma formulação positiva para pensamento. A cogitatio é a abertura “aqui e agora” que dá acesso ao conteúdo “aqui e agora” de cada uma das nossas vidas com as suas agendas individuais. A percepção clara e distinta é a dupla presença sincronizada de mim a mim, de mim ao mundo, de mim ao outro. A percepção torna presente um dado conteúdo que coincide comigo e é interceptado por mim. O agora traz-me de cada vez um conteúdo determinado. Todas as pessoas existentes têm o seu conteúdo agora diferente do meu, no decurso das suas vidas. O presente que de cada vez se renova e actualiza é pensado à luz das nossas percepções que se reactualizam e renovam, mesmo tendo o mesmo conteúdo à sua frente. Deus é omnipresente não apenas por que tudo vê, mas porque cria o presente. O ser humano por defeito de finitude capta o presente a constituir-se e a trazer consigo o seu conteúdo específico. Mas nenhuma percepção poderia criar um momento presente. Nem o homem mais rico do mundo consegue comprar um só instante de tempo. Descartes procura assim mostrar que a evidência com que se constitui uma percepção clara e distinta resulta da consciência da simultaneidade de mim e de qualquer conteúdo, inclusive de mim próprio, quando me surpreendo a ter uma percepção de mim. Eu penso-me a pensar coisas pensadas por mim. Durante o tempo em que tenho essa consciência, não deixarei de ter a percepção da minha existência. Nem um génio maligno nem um deus enganador poderão estancar a consciência da duração, consciência que para ser tida também tem de durar. A percepção estende-se na duração para poder captar a duração, durante a qual as coisas duram. Passar muito tempo ou pouco tempo, todo o tempo do mundo ou nenhum tempo do mundo requer uma actualização contínua da percepção ou de fases de percepção. De outro modo, não poderíamos perceber a duração da nossa casa desde que temos a primeira percepção dela e a sua continua renovação. Sem duração nunca conseguiríamos ouvir música, a co-existência de sons numa sinfonia, perdura ao longo do tempo numa sucessão que permanece. O que se passa com a música na distribuição de sons por tempos, passa-se com toda captação sensorial. Não veríamos a continuidade de cores e texturas ou formas e figuras num quadro permanecer numa coexistência, mesmo se não olharmos para o quadro de forma abrangente. Podemos olhar para o canto superior esquerdo e deixarmos desatento o canto inferior direito. Quando recuperamos este canto, não é como se a tela não tivesse sido pintada. Um momento do quadro é visto depois de outro, mas percebe-se que ambos os momentos estão saturados de tinta, há uma permanência da coexistência de todos os pigmentos de cor que formam figuras e texturas.

Há, contudo, um elemento comum ao pensamento e à extensão, ao eu e ao mundo. Descartes fala de uma res cogitans e de uma res extensa. A realidade da coisa é a substância. A substância de uma coisa é tornada possível pela sua subsistência. A subsistência de uma coisa é a duração. Não é só a extensão material e corpórea que subsistem. O pensamento, mesmo durando um lapso de tempo dura. A duração do pensamento tem de coincidir com duração de uma coisa. A duração do eu tem de coincidir em possibilidade com a duração do mundo. A minha duração é a duração do meu mundo. Só que não vemos a duração do tempo, porque não vemos o tempo. Sentimos o tempo a passar, podemos até dizer que temos uma percepção do tempo, mas o que temos quando dizemos que sentimos ou temos uma percepção do tempo? O que é ter uma percepção de si, quando precisamente somos sem extensão, não temos realidade material no pensamento? Por outro lado, o mundo é o mundo pela sua realidade. No mundo pode ser visível a passagem do tempo, pelo menos na proximidade, porque o céu azul é o mesmo de sempre, a lua é a mesma de sempre, o Atlântico é o mesmo de sempre. A passagem do tempo sente-se, quando podemos dizemos, por outro lado, que o céu azul já não é o da infância, tal como não são os primeiros dias da primavera, nem o primeiro mergulho de verão atlântico é recuperável agora, ainda que possa ser tudo feliz. Sente-se o tempo passar mesmo sem que haja vestígios da sua passagem. Não é necessária a ferrugem no ferro, nem o míldio, ou a podridão, ou o caruncho, nem lombadas de livros desbotadas pelo sol, nem folhas amarelecidas, nem flores murchas, nem a idade estampada nos rostos das pessoas, nem ruas que se desfazem ou prédios que se desmoronam, amizades acabadas, pessoas mortas. O tempo passa e temos uma percepção da sua passagem, como temos uma percepção da nossa passagem. Ou será antes que é por termos uma percepção da nossa passagem que percebemos o tempo a passar e que tudo passa. Nós somos esse tempo a passar inexoravelmente. Eu sou esse tempo inexorável mesmo se vivesse para sempre. A sequência é tempo, sem dúvida, como a coexistência e a simultaneidade, mas invertida. O sentido da sequência, o ser do tempo, é, sem dúvida o tempo que virá, que começa agora. Mas é também o tempo da irreversibilidade, o tempo inultrapassável e irrepetível. Descartes não viu este tempo. Viu um outro tempo que era omnipresente, omnisciente, omnipotente. Temporalizou Deus. E divinizou o ser humano e o seu mundo, mas erradamente. Porque até o seu Deus cria o tempo e conserva-o. É a origem do primeiro momento e da sua repetição e tudo o que é abrangível pelo tempo. Mas o ser humano não senhor do seu tempo, não pode enganar-se, não pode fazer que tudo seja como no princípio, mesmo que haja muitas coisas no princípio. Ou poderá? Pode o verdadeiro e autêntico princípio ser a meio da vida e o que era tido por o princípio ser já velho e estafado e só enganosamente o princípio. Terá sido um começo mas não um princípio.

O princípio é agora. Haver eu e ser outro. Haver outro e ser comigo.

Von Uexküll usava o termo Umwelt, palavra alemã composta de Um- e Welt, respectivamente: em redor ou envolvente, por um lado, e, por outro, mundo. A sua biologia teórica procurava mostrar de que modo o mesmo local era completamente diferente para diversas formas de vida, ao ponto de terem mundos diferentes, impermeáveis e incompatíveis uns com os outros. As espécies que habitam uma árvore, por exemplo, não vêm o mesmo que nós humanos, quando olhamos para uma árvore, se é que druidas, caçadores, guerrilheiros e amantes vêem a mesma árvore. [Continua]

15 Mar 2019

Biologias I

[dropcap]A[/dropcap]s disciplinas contemporâneas “biologia” e “zoologia” visam a vida. A biologia estuda a vida e os organismos vivos. Comporta em si diversos campos de investigação. A zoologia faz parte da biologia e estuda a vida animal. De qualquer modo, o acrescento “-logia” tal como noutras palavras: teologia, filologia, antropologia, significa disciplina científica. Portanto, há um suporte teórico e um modelo cognitivo de acesso a objecto específico pertencente a cada disciplina. Ainda: percebe-se que há ramificações e especificações em cada disciplina ao ponto de se poder pensar no plural: biologias e zoologias. Não se pretende reivindicar os termos “biologia” e “zoologia” para novas ciências ou novas concepções da vida em geral, humana e animal. Pretende-se, antes, procurar perceber o que na antiguidade estava em causa quando se falava de “bios” ou de “zôê”.

 

Muitas vezes, o que quer que os antigos visassem com o termo “bios” e “zôê”, ambos tinham o mesmo referente. Tal pode ser percebido quando verificamos a expressão “bios te kai zôê” (a existência tal como a vida) em Aristóteles. A hendíade reforça um único campo de investigação, ainda que com duas expressões diferentes. Mas mais. Parece haver uma troca de referente ou campos semânticos. Às vezes, o que parece ser visado segundo uma designação, noutras circunstâncias, parece ser visado pela outra. Por um lado, “bios” parece ter o sentido de “zôê”. Por outro, “bios” e “zôê” têm sentidos diferentes, ainda que se complementem.

Mas vamos por partes.

 

Aristóteles, na Ética a Nicómaco, distingue formas de vida ou horizontes “zoóticos”, para poder identificar a que diz propriamente respeito à existência humana. Primeiro, identifica uma dimensão que nós, humanos, partilhamos com animais mas também com vegetais. A nossa capacidade de assimilar nutrientes e de crescer é comum ao reino animal e ao reino vegetal. Cresce-nos o cabelo e as unhas. Aumentamos de tamanho desde a mais tenra idade. Desenvolvemo-nos até à idade adulta. Definhamos, envelhecemos. Morremos. A vida manifesta-se no seu sentido vegetal mais próprio na capacidade de processar alimentos, nutritivos, sólidos e líquidos, de os ingerir, digerir, assimilar. Nós e os animais e os vegetais. Aqui, não há diferença alguma entre a vida humana enquanto horizonte zoótico e os reinos animal e vegetal. Sem dúvida que há diferença no modo como nos acercamos dos nutrientes, os seleccionamos e segregamos. A planta de modo diferente dos animais. Os animais de um modo diferente do ser humano. Mas a “dieta” e o “regime alimentar” sempre foram objectos de estudo desde a antiguidade e encontra-se mesmo fixada nos textos mais antigos do pensamento ocidental.

 

O segundo estrato zoótico, se assim lhe pudermos chamar, é o da vida sensitiva ou perceptiva. Há textos em que Aristóteles exclui o reino vegetal da possibilidade de ter percepção. Outros há que o inclui. O reino animal partilha da possibilidade humana de ter capacidades perceptiva ou sensorial. Mas como é que uma planta pode ter percepção? Para Aristóteles, o facto de absorver água e os seus nutrientes e mesmo a necessidade de luz para a sobrevivência indicam, mais do que simbolicamente, a possiblidade de as plantas serem “sensíveis” ao meio ambiente. De resto, o modo como Aristóteles via a morfologia de uma planta por analogia com um animal não deixa de nos deixar perplexos do mesmo modo que nos permite compreender o que ele tem em mente. Diz Aristóteles, no De Anima, que a planta está de pernas para o ar, com o que corresponde, analogamente, à cabeça de uma animal enterrado na terra. Os seres animais, como os seres humanos, alimentam-se pela boca, normalmente, situada na cabeça. Assim, também uma planta. Só que a planta está de pernas para o ar e com a cabeça enterrada na terra. Podemos argumentar que o girassol parece ter a cabeça virada para o sol e, assim, gira orientado pelo movimento que o sol parece esboçar-se. Ainda assim, percebe-se que a terra dá nutrientes e a fotossíntese é uma realidade. Por outro lado, seres humanos e animais partilham de uma capacidade mais sofisticada de percepção, de locomoção, de reprodução e conservação, defesa, protecção e caça. A visão parece ser partilhada pelo cavalo, o boi e o ser vivo. Todavia, vemos de maneiras diferentes a mesma coisa. Podemos até reconhecer uma capacidade de visão ao falcão que nunca teremos. O mesmo com o olfacto do cão, etc. etc..

 

O horizonte zoótico que é próprio do ser humano, segundo Aristóteles, e não é partilhado por nenhum ser vivo nem ser vegetal, é o prático ou pragmático. Se quisermos, os humanos podem “existir” e a vida humana acontece na existência. Mas a vida animal e a vegetal, embora estando na realidade e na vida, nunca poderão existir. Uma planta está junto de outra. Pode até ser enxertada noutra. Mas nunca conviverão. Um animal pode conviver com outro animal, mas não existirá como cidadão num mesmo estado. “Ser um com outro” é uma expressão reservada ao ser humano. Só o ser humano existe com outro na polis, tem história e antecipa futuro. A zôê praktikê de que fala Aristóteles designa o horizonte específico do ser humano, mas, ainda assim, não capta a característica fundamental do bios.

O bios quer dizer a existência humana enquanto cronologicamente constituída: o tempo finito ou crónico, a distribuição da existência por tempo sido, tempo ser e futuro a haver, aspirações e desejos, conquistas e perdas, ambições e frustrações. Para os gregos, o bios mais do que um horizonte da cronologia que nos é loteada, é o resultado de uma escolha em que cada um pode ser de um determinado modo e ter um modo de vida.

8 Mar 2019

Cinestesia IV. Razão ou paixão?

[dropcap]A[/dropcap]modernidade projecta o humano a partir de uma presença incipiente da razão no horizonte individual e procura expandir o humano enquanto indivíduo para a maximização da racionalidade. A essência do ser humano é em Descartes: mente, ou espírito ou entendimento ou razão. Se o composto humano: animal + racional, na fórmula de Séneca, procurava identificar a racionalidade e a animalidade como características constitutivas do ser humano, agora, com Descartes, afirma-se a preponderância da racionalidade sobre a animalidade.

A história deste “composto” é difícil de perseguir, se a reduzirmos apenas às formulações. Homo = animal rationale é uma equação diferente da que encontramos em Aristóteles: to zôon logon eckon: o ser vivo capaz da palavra – uma tradução possível. Diferente é também a formulação Kantiana: vernunftbegabtes Lebewesen: criatura dotada de razão. Em todo o caso, relevante, para nós aqui, é a identificação da essência do ser humano com a razão, na verdade, a redução do humano à racionalidade e, por outro lado, a extirpação da animalidade, da vida instintiva, das pulsões e impulsos, dos afectos, emoções, paixões etc., etc. A razão é virtualmente desprovida de afecto. Dizer sim e dizer não, dizer como são as coisas e como elas não são, dizer que elas existem e que elas não existem depende exclusivamente da razão. A forma essencial do acesso é, na formulação técnica de Descartes: percepção clara e distinta. O que não pode ser acedido por uma percepção, ou por uma intuição, não permite obter evidência, isto é, clareza e distinção. No limite oposto, temos objectos que não são percebidos nem clara nem distintamente. São mal percebidos ou intuídos de forma deficiente. No extremo, temos objectos que não são, de todo, percebidos.

No entender de Descartes, epítome de uma longa tradição, tanto a vontade, o querer e o querer que não ou o não querer, os actos voluntários, nada têm que ver com a esfera da razão teórica nem. Por maioria de razão, os actos da esfera da afetividade: o sentimento de prazer e de dor, gostar de… e ter aversão a… só podem perturbar tanto a razão teórica como a razão da vontade.

O projecto de investigação da verdade em Descartes fixa-se, assim, num fundamento inabalável em que apenas o acesso perceptivo e intuitivo da razão, sob os auspícios da axiomática euclideana, proporciona clareza e distinção, as características da evidência. Tudo o mais, está envolto em formas obscuras e indistintas de “representação” dos objectos. A ideia reguladora da evidência funda a descoberta da verdade, circunscreve, de forma severa, a sua possibilidade ao domínio teórico, o que propriamente é racional.

Se invertermos a intenção cartesiana, podemos compreender, pelo menos na sua formulação exterior, que Nietzsche propõe o contrário. A inversão dos valores ou a sua transmutação implica a predominância da animalidade, do instinto, da paixão, das emoções, do eruptivo, do episódico, sobre a racionalidade. O que tradicionalmente se chama corpo, o horizonte somático, afirma-se em detrimento do espírito, do que é mental. Se no limite o homem cartesiano existe sem corpo, sem extensão, sem divisão, sem matéria, por outro lado, o homem nietzscheano é corpo, o horizonte onde nos aparece aquilo para o que nos dá, onde vemos e sentimos nascer em nós vontades, apetites. Mas não é apenas a inversão do que em nós é mais eficaz: a perseguição inflexível do prazer ou a fuga contínua ao sofrimento ou a formulação patológica contrária: fuga contínua ao prazer e perseguição inexorável do sofrimento. Tudo isto é mais eficaz do que a razão, cuja presença não se faz sentir. Nem tão pouco importa saber se a característica eruptiva de um coup de foudre é mais poderosa na sua eficácia do que a razão que nos impermeabiliza às paixões, aos amores, desejos, apetites, veleidades, caprichos. Há com Nietzsche, claramente, uma afirmação do ser que nos expõe a si, quando nos abandona e deixa a lidar a sós com o que patologicamente nos acontece. Mesmo a razão é “fria”. A razão é desprovida de sentimento, mas tem uma relação com o emocional. A razão afirma-se pela neutralização da vontade e do sentimento, mas numa outra perspectiva. Cria o pathos da distância. O afecto transforma o corpo, por outro lado, de tal forma que não é apenas eruptivamente que nos deixa com apetites, faz sentir fome e sede, desejo sexual, de vingança. E também nos deixa transidos de medo, tristes e angustiados. Será que a razão nos deixa serenos, com o corpo em paz, tranquilos no nosso ser, mas, também, a uma distância absolvida de tudo o que pode irromper, invadir, controlar-nos?

(Continua)

22 Fev 2019

II O espanto

[dropcap]U[/dropcap]m dos problemas postos no interior da actividade filosófica, da acção do filosofar, é o da motivação, o da fundamentação complexa que desencadeia o filosofar. Tanto mais assim que toda a filosofia procura a transparência relativamente ao seu próprio acontecimento. A obtenção de transparência relativamente a si próprio enquanto filósofo procura sempre obter inteligibilidade sobre esta possibilidade humana. A hipótese com que sempre nos teremos que ver a respeito da filosofia é a de que lhe corresponde um modo inteira e radicalmente diferente de vivermos a nossa vida com os outros no mundo. Isto é, o modo como habitualmente nos encontramos depostos nas coisas, a maneira como nos relacionamos com os outros, a forma como damos conta de nós próprios, pode ser diferente. Para que esta hipótese não seja académica e afastada da nossa realidade, tem de se perseguir vestígios da possibilidade de haver um mundo diferente daquele em que vivemos, de o mundo poder apresentar-se, se não, como é em si, pelo menos numa apresentação diferente daquela de que ele se reveste, que nós próprios podemos ser diferentes, outros, irreconhecíveis para nós tal como somos, que os outros também nos podem aparecer sob uma outra luz completamente diferente. Uma coisa é certa. É extraordinariamente difícil abrir mão do preconceito fundamental que nos faz aderir à compreensão que temos das coisas, na verdade, que a nossa compreensão nos permite interpretar as coisas tais como elas são em si, impermeáveis a qualquer tonalidade privada e subjectiva. O primeiro passo é o da auscultação da diferença. Como perceber que a interpretação do mundo de coisas e dos mundos que são os outros bem como do nosso próprio mundo enquanto a vida que é é a que temos é precisamente a nossa interpretação. De uma forma mais precisa: a minha interpretação. Sou eu o agente e o protagonista da vida. És tu o agente e protagonista da tua vida. É ela e ele o protagonista da vida dela e da vida dele. Somos nós, sois vós, os protagonistas das nossas, vossas vidas e eles das vidas deles. Os gregos encontraram no espanto a possibilidade concreta de encarar a sério a possibilidade de as coisas não serem como nos aparecem ou como nos parecem ser. A palavra thayma descreve um objecto espantoso, uma experiência espantosa, uma afectação que provoca um estado mental de espanto. A palavra exprime um sentido que excede o conteúdo do objecto enquanto tal. O que é espantoso no objecto não é, a bem dizer, nada. É o modo como se dá a ver, como se apresenta, como nos afecta que é espantoso, agente provocador de espanto, o próprio resultado de espanto. A par da palavra espanto, pasmo, encontramos as palavras admirável. admiração, admirador, maravilhoso, maravilha, emaravilhamento, maravilhado. A experiência do espanto, do espantar-se com algo ou alguém e até o ficar espantado consigo é complexa. Há dois vectores afectivos que podemos determinar. Por um lado, produz-se uma atração na direcção do que provoca espanto. Queremos olhar para o espantoso, o que está presente no étimo de admirar: mirar, olhar para. Por outro lado e pelo contrário, espanta, põe em fuga, desperta aversão ou um respeito que não nos deixar encarar olhos nos olhos nem arostar com o que é espantoso. Fazemos uma experiência de perplexidade. Por um lado de emaravilhamento e por outro de espanto em sentido estrito. Um pode ser preponderante em relação ao outro, pode haver sensações sucessivas dos dois sentimentos, pode dar a sensação que maravilha e espanto estão a acontecer ao mesmo tempo.

Todas as coisas maravilhosas do mundo vinculam-nos num olhar para as ver e estar a ver. Todas as coisas espantosas do mundo podem ser medonhas e terríveis. Metem medo, receio, terror e horror. Podemos perceber que a experiência implica objectos que são assim caracterizados: a beleza de uma pessoa, a linha do horizonte, o Atlântico, o pôr do sol, o cume de uma montanha, o jogo da luz a criar as luminosidades do dia, as estações do ano, etc., etc.. Há também coisas que metem medo: o olhar frio do assassino, o poder demolidor de um exército, de catástrofes naturais, tsunamis, incêndios, desastres. Há coisas que são dignas de admiração tal como pessoas. Há coisas e pessoas que espalham o terror. Em qualquer dos casos e qualquer que seja a combinação entre as disposições que são despertas em nós, fazemos a experiência de perplexidade, somos acordados violentamente do sono quotidiano, do modo como nos encontramos habitual e normalmente. É o que acontece no fenómeno da paixão, da “filia”, da obsessão compulsiva com um determinado objecto, na relação perplexa com um conteúdo erótico no sentido mais lato do termo, com aquilo que mexe connosco, de que gostamos muito, que constitui a nossa identidade.

Na paixão, sentimos uma invasão total, avassaladora, com a presença de alguém, que muda simplesmente a nossa vida. Mas não se trata apenas da alteração do estado da consciência provocado pelo amor erótico ou pela amizade profunda e amor que sentimos por pessoas. A alteração provocada pelo estado de paixão pode ter como objecto a ciência, a arte, a religião, tudo aquilo a que nos dedicamos, as nossas devoções, o que nós somos e o que nós fazemos.

Tudo pode resultar de uma espécie de entusiasmo, uma invasão do divino em nós, que permite escutar o que as musas têm para dizer e que o dizem como se estivessem a ditar o que temos para escrever. É como se sentíssemos a inspiração que “sopra” uma brisa ou um vento que cria uma dimensão diferente daquela em que habitualmente nos encontramos. O que sucede nestas variações disposicionais complexas é a criação de mundos paralelos que estavam adormecidos que eram como se não existissem e passam a ser despertos, mantidos acordados. E nós transformamo-nos para podermos habitar esses mundos e existir nessas outras formas de vida. Há uma metamorfose do objecto e uma metamorfose dos próprios. O músico é diferente quando vai de pagar impostos e quando está tomado de um transe inspirador que o transporta para a dimensão intrínseca do horizonte musical. O mesmo se passa com o actor, com o pintor, o escultor, o escritor, o poeta, o sacerdote e o professor.

Temos estado a referir experiências radicais, recalcitrantes, que testemunham a diferença entre a vida de todos os dias de que não despegamos ou que não nos demite e uma outra possibilidade de vida mais intensa, radical, que depende da existência de inspiração, entusiasmo, espanto, admiração, respeito, interesse.

O espanto filosófico é, contudo, diferente. Ou antes assume um rosto diferente também. Não é apenas o episódico e o extraordinário que permite compreender a diferença entre o mundo criado pelo entusiasmo e o mundo sem entusiasmo. O destino da filosofia está em compreender que os maiores problemas se encontram depositados nas coisas mais banais e aparentemente triviais. O espanto não é com o diferente é com o igual. Como é que a mesma coisa, a mesma pessoa, nós próprios, tudo é o mesmo objectiva e realmente e, contudo, completamente diferente, tudo pode ser completamente diferente. Podemos apaixonar-nos por uma pessoa que nunca vimos, como por actividades de que não tínhamos nunca feito a experiência. Mas podemos também ver uma pessoas 2000 mil vezes e apaixonar-nos por essa pessoa à bilionésima primeira vez. Podemos dar conta da maravilha daquilo a que nos dedicamos e do que propriamente fazemos, décadas depois de o termos iniciado, já estafados e sem o entusiasmo sequer de principiante.

Aristóteles dizia que era espantosa a incomensurabilidade do triângulo, as fases da lua, os eclipses do sol e da lua. Mas mais espantoso é isso ser espantoso, porque é assim que esses fenómenos extraordinários são. Mas tudo é extraordinário. Estar vivo e ser é espantoso porque há ser e não nada, estamos vivos e não se dá o caso de estarmos mortos. Espantoso são todos os objectos, todas as coisas, todas as pessoas por que sob plano de fundo existe o horizonte relativamente ao qual tudo é forma, no qual tudo está distribuído numa coexistência de sequências temporais que entroncam num mesmo e único tempo que se está a fazer ao mesmo tempo que ele próprio passa e com ele todos os conteúdos que são no seu todo.

19 Fev 2019

Um itinerário

[dropcap]O[/dropcap] João Paulo Cotrim com o anfitrião José Teófilo Duarte e eu, decidimos animar com filosofia o magnífico espaço da Casa da Cultura de Setúbal, às segundas sextas-feiras de cada mês. O João Paulo Cotrim, com o seu jeito, inato e trabalhado, para títulos, é o autor deste. Agora, temos como anfitrião o Carlos Morais José, que nos abriu a porta do Hoje Macau. Não se fará a transcrição do que tem acontecido e irá acontecer, até mesmo porque não temos gravado todas as sessões. O que lá se tem passado resulta de uma preparação dos temas em conjunto com o João Paulo Cotrim que não é mero entrevistador, por mais elevada que seja a prestação do entrevistador. O João Paulo Cotrim é um actor protagonista que comenta, resume, lança e relança os pontos que temos previstos no alinhamento e itinerário para cada tema. É disso que em certo sentido se trata: oferecer aos leitores do Hoje Macau aquilo a que os alemães chamam protocolo das aulas. As aulas dos seminários começam com um resumo da aula anterior. A partir daí retoma-se a própria aula. Dividirei tanto quanto possível o assunto de cada mês em quatro partes. Cada uma delas corresponderá a uma parte do protocolo da sessão inteira. Esta primeira procura esclarecer o sentido do título a pés juntos ligado explicitamente à filosofia.

“A pés juntos” explica adverbialmente o modo de saltar, entrar, jurar. Mas também podemos atirar-nos de pés juntos, num movimento ofensivo, para cair em cima de um adversário. Ou, apoiar pés juntos, para esticar as pernas e nos afastarmos do fundo do mar, para vir à superfície. A expressão dá ênfase ao sentido do verbo. O que será então a filosofia a pés juntos? É um modo como podemos abordar a filosofia. Fincar pé e, enfaticamente, procurar saltar para ela, entrar nela, num movimento que vai na sua direcção. Pode significar, também, se a tomarmos como sujeito, que é a forma como ela acontece, ao assaltar-nos ou ao entrar dentro de nós. As sessões a decorrer na Casa da Cultura de Setúbal terão este mote. Soltaremos filosofia para que nos ajude a saltar para o âmago de temas que nos assolam. Despiremos a sua roupagem técnica. Deixaremos que cerque, abalroe e invada tudo quanto nos preocupa. É assim também que lidaremos com ela. Como se fosse um animal que nos serve de defesa e, por isso, não pode estar completamente domesticado. Terá de encontrar vestígios, farejar pistas que tentaremos perseguir. A sua presa será sempre emboscada. O sentido que se persegue a pé juntos com a filosofia terá de dar caça a cada tema das nossas conversas.

Educação?

A educação é uma das presas a que daremos caça. Agostinho da Silva dizia que se devia banir o termo e, consequentemente, o sentido que lhe dá compreensão. Dizia ele que educação vinha do latim ex-duco que quer dizer conduzir de dentro para fora. Portanto, educar pode querer dizer levar para fora do caminho interior de cada um. Podemos pensar na diferença anulada por uma versão do ensino que procura uni-dimensionar cada pessoa, homogeneizá-la, planifica-la. A sua proposta para o ensino era expressa na palavra instrução. In-struo em latim quer dizer construir a partir do interior. Portanto, a aprendizagem é uma compreensão da essência de cada pessoa, o seu modo de ser, como é suposto existir com as suas possibilidades mais radicais. A possibilidade mais radical de um ser humano será a técnica ou a poética e a prática. Agir é importante. Produzir é importante. Criar é importante. Não saber o que quer que seja assim sem mais para ter sabido, mas para intervir, sobretudo, sobre o próprio.

Fronteiras

As perguntas mais básicas da filosofia interrogam sobre a situação em que cada um de nós se encontra. A mais básica é onde estamos ou onde somos? Em que tempo vivemos? Quando passamos por aquilo pelo qual passamos? Com quem fazemos vida? O que fazemos aos outros, sob a nossa acção e o que os outros nos fazem deixando-nos vulneráveis às suas acções? Todas as perguntas desenvolvem a questão fundamental pela situação existencial. A situação terá de começar por uma explicitação espacial, regional, local, fronteiriça. Erigimos barreiras entre os problemas que temos em lidar com determinadas pessoas e assuntos que jazem fundo nas nossas vidas. Mas também destruímos muros. Abrimo-nos aos outros tal como nos abrimos para nós, quase sempre por causa dos outros. Também traçamos fronteiras físicas, geográficas naturais e artificiais, linguísticas. Há entre quem cada um de nós é no seu interior e o meio que o envolve fronteiras. Há o interior e o exterior. Há espaços privados com o direito reservado de admissão. Há espaços interditos, privados. Há espaços públicos. O próprio corpo no seu interior tem a pele como fronteira para o mundo exterior. E entre o interior da nossa alma e o exterior que é o nosso corpo não haverá também barreiras que se erigiram e podem ser intransponíveis se não fizermos adequadamente a pergunta como somos alma e corpo, ou mente e físico?

Justiça

Dos problemas sempre decorrentes, a definir como a filosofia entra a pés juntos no que procura compreender, por ser opaco e nós querermos obter transparência, é o da justiça. Sócrates dizia que é melhor sofrer a injustiça do que a cometer. Dizia ainda que, uma vez tendo nós cometido a injustiça é melhor pagá-la do que ficar impune. Aparentemente, Sócrates defendo o mundo às avessas. Não queremos nós “fazê-las”, primeiro, antes que no-las façam a nós? E tendo nós sido injustos não estaremos continuamente a invocar pretextos e desculpas que tendem à atenuar o que fizemos de mal aos outros, com o fim da nossa absolvição? Ser justo ou ser injusto, sofrer a injustiça ou obter justiça implica uma relação intrínseca, não anulável, ao outro. É por sermos uns com os outros, antes de tudo o mais, que, mesmo sem o sabermos e, apenas pelo facto de existirmos, podemos fazer os outros sofrer. Ou porque sem querer os ignoramos e não lhes ligamos nenhuma. Ou porque dizemos da boca para fora uma palavra ao próximo. Impensada uma palavra pode ferir. Ou porque uns se deixam aos outros para ficarem cada um deles com outros ou sozinhos. Seremos nós vítimas de todas as injustiças ou os algozes das injustiças que infligimos aos outros?

Identidade

Talvez devêssemos falar de identidades. Reconhecemos uma coisa, quando dizemos a sua identidade específica. A identidade de uma coisa dá-se na identificação dessa coisa no que ela é, por onde é que ela vem a ser o que é. Um rectângulo de madeira, pintada de azul com 2.10 m de altura e 70 cm de largura, perpendicular ao chão, não permite reconhecer a porta de uma sala. Nem tudo o que é rectangular é porta e há portas que não são rectangulares: ser de forma rectangular, ser de madeira, ser azul, ter determinadas medidas são os conteúdos específicos da porta, mas o ser da porta não “existe” nesses conteúdos. A identidade da porta é o que faz a porta ser porta. É abrir e fechar para deixar entrar e sair, é libertar e prender, é deixar preso num interior ou permitir sair para o exterior. Os infinitivos nucleares: abrir e fechar, deixar entrar e sair, são o ser da porta. Não são conteúdos presos aos componentes da porta. A identidade da porta é reconhecida, quando, ao olhar para os seus componentes materiais, a porta se dá reconhecer pela sua compreensão. Compreender uma porta é saber poder intervir nela, accionando efectivamente a possibilidade que oferece. Como identificar uma pessoa? Será o humano definível como se define um objecto técnico, uma peça de vestuário, um artigo ou instrumento? Os antigos diziam que a identidade pessoal é diferente da identidade natural ou técnica. Ser eu tem uma identidade no próprio, no mesmo, que me permite reconhecer ser eu próprio e não apenas a abstracção animal racional.

Corpo

Nem sempre o corpo foi compreendido em oposição à alma. Em Homero há duas palavras para dizer o corpo vivo e o corpo morto, como talvez possamos compreender que um cadáver é um corpo morto. O que qualifica a compreensão de um corpo morto, sem alma, abandonado pelo espírito? Como podemos compreender o corpo como um organismo que alberga aparelhos, que por sua vez, são feitos de órgãos, como compreender o corpo como mecânico e, por outro lado, como o horizonte no qual cada um de nós se encontra consigo, com a vida e com o mundo, com o mundo e a vida dos outros? Somos nós do tamanho da nossa altura ou do que vemos? Estamos nós apenas no interior das fronteiras do corpo ou estamos sempre fora de nós, a olhar já para as coisas como que a tocar-lhes e não para as lentes dos óculos ou de contacto nem para a superfície ocular para lá da qual começamos a ver? E quando adaptamos próteses, guiamos veículos, manobramos máquinas, usamos utensílios não estamos antes a intervir no próprio corpo como aquém e além de nós mesmos? Não nos apropriamos também como se fosse uma segunda natureza, um segundo corpo, de todos os instrumentos que nos permitem uma intervenção no mundo? E o corpo do outro é o que vejo apenas anatomicamente ou é de quem eu tenho medo e me terroriza ou o que me atrai no outro, que eu desejo, que eu amo? E o meu corpo para o outro sou eu reduzido de mim no que sou ou sou isso mesmo apenas, o meu corpo, veículo de terror e de desejo?

Criação

O sentido do ser na antiguidade era expresso pela natureza que faz nascer. Ela própria está continuamente em movimento criacionista e é a partir dela e para ela que tudo nasce e morre. A produção, poiêsis, o produzir, poiein, é a metáfora viva do ser. Criar é uma forma radical de ser, fazer existir, fazer ser. A obra de arte e a natureza interrogadas na sua origem têm uma concepção de criação. Criar é por um lado fazer artística, técnica ou profissionalmente algo, mesmo até na genética e na sua engenharia se podem criar seres humanos. Mas esta criação é feita a partir do que já existe. Não é formar é transformar. Não há criação a partir de nada, diziam os antigos: ex nihilo nihl fit. Mas não é a criação, pensada a partir do nada. Do nada que não existia, passa a existir, pelo menos, algo. Ainda assim, é da massa informe que surge a forma, do que estava mergulhado na noite do ser que passa a despontar o dia e todos os objectos que possam ganhar contornos e ser definidos, do caos que tudo engoliu de um só trago passa a haver o cosmos, a ordem que ordena e organiza intrinsecamente todas as coisas que são, porque age sobre si própria a partir do princípio formador das coisas que são. A criação é decalcada da conservação. A realidade é mantida, repetindo o que lhe esteve na origem, quando ainda não era nem nada de real ainda tinha passado a ser.

Cidade

É um dos lugares específicos em que o humano vive. É o seu sítio natural se não fosse aparentemente artificial relativamente à paisagem que achamos que encontramos no seu estado virgem: o campo, o interior e o litoral, as diversas morfologias geográficas são pensadas em contraposição à urbe. Como é uma cidade sem alcatrão, estradas, ruas, travessas, calçadas, avenidas? Como são as cidades de Portugal sem calçada portuguesa? Mas a cidade não é apenas a morfologia artificial que transforma a natureza. A polis era o próprio estado. Estruturalmente, cada ser humano era a cidade inteira, não apenas os seus contemporâneos, os seus concidadãos, mas os seus compatriotas das gerações passadas e vindouras. A cidade nasceu de uma aglomeração de seres humanos ou, antes, não será porque cada ser humano é já todos os outros humanos que se deu a conglomeração e o ajuntamento? E a comunidade complexa da comunidade ou da sociedade dos humanos que habitam o planeta terra não terão uma saudade da cidade de Deus ou daquela outra cidade que é um projecto e talvez uma construção do humano, mas que alberga o universal humano de que todos de nós, coletiva e individualmente, somos portadores?

12 Fev 2019

Redução. Construção. Destruição. 1

[dropcap]H[/dropcap]á tantos métodos quantas as filosofias desde que se pretendeu fazer filosofia, fundar uma filosofia. Mas mais. Ao pretender-se constituir uma filosofia, o constituir uma filosofia é uma formulação que expressa o método, o encaminhamento, o processo que leva à formação de uma perspectiva que dê acesso ao que existe aí no mundo connosco, um mundo de coisas e um mundo de pessoas. Assim, as respostas positivas dos pré-socráticos à pergunta pelo princípio que causa todas as coisas, a pergunta concreta pela forma maciça como o ser e a vida nos confrontam consigo, resultam de métodos, de processos de formação do caminho que procura a genealogia do não ser até ao ser. Se as respostas parecem ser ingénuas: água, ar, fogo, éter ou os quatro elementos em simultâneo, postos em interacção pelo amor e pelo ódio (Empédocles) ou qualquer coisa de indeterminado, apeiron (Anaximandro), a pergunta que as fazem ser dadas não é. A ideia de Platão, a substância de Aristóteles, a representação de Kant, são despistareis concretas que visam a constituição de uma filosofia com os seus métodos próprios e interpretações. Há uma diferença de acesso às coisas que existem na realidade, se as considerarmos que resultam de uma ideia que se projecta sobre elas ou se é nelas que se encontra de forma não explícita a sua essência ou se o nosso acesso ao mundo das coisas e a nós próprios é uma representação de uma representação. Uma coisa é certa: há uma diferença entre o método do que consideramos ser filosofia e do que conhecemos como ciência positiva. As ciências positivas têm como objecto de investigação entes, coisas que existem na realidade. Recortam da realidade por abstracção o seu objecto, o tema específico do seu estudo: espaço, número, tempo, elementos químicos, física, psique, etc., etc.. e consideram-no isoladamente de todas as abstrações possíveis para o porem positivamente sob foco de evidência e estudo. A filosofia de acordo com uma das suas interpretações, a fenomenologia, têm como tema o ser do ente. O ente é compreendido no seu ser, quando se compreende o sentido do ser do ente específico que de cada vez está a ser estudado. O sentido do ente é compreendido a partir do ser que se projecta sobre o ente na sua inteligibilidade.

É no ser que tudo aparece. Ser é o aparecimento de tudo o que aparece: sujeito e objecto numa das suas formulações. É a cada um de nós como portador do acesso que o ser aparece. Ao aparecer o ser, aparecemo-nos a nós, uns aos outros, as coisas a cada um de nós. A nossa compreensão das coisas, a própria inteligibilidade das coisas, é dada no ser, isto é, numa das suas formulações na vida. A vida é condição de possibilidade de compreensão da própria existência humana e da inteligibilidade das coisas que existem.

Uma das compreensões que temos para “ser” tanto do verbo como do substantivo é precisamente o aparecer, o aparecimento e o desaparecimento de pessoas e coisas, mas também o nosso próprio aparecer em cena na vida e como aparecemos na vida aos nossos olhos e aos olhos dos outros.

O aparecer altera a relação que temos com o que aparece. Podemos ter uma antecipação relativamente ao que vai aparecer, enquanto algo ou alguém ainda não apareceu. Ao compararmos esse algo ou alguém no momento em que ainda não apareceram com o momento em que já apareceram e fazem corpo de vida connosco, verificamos que as coisas não são, de facto, como pensáramos que eram. Esperamos sempre por pessoas na vida. Não sabemos se virão ou não, nem quando nem como. Mas há uma diferença entre o pensamento na pessoa possível e a relação concreta que transforma retroactivamente o pensamento e a pessoa pensada ainda abstractamente. A história do aparecimento de alguém joga-se na imaginação entre a realidade e a possibilidade. O mesmo se passa com o agente do aparecimento, quem faz aparecer alguém para nós como possibilidade concreta e também já como realidade transforma-se pela sua própria essência.

O ser que faz aparecer altera-se como altera a pessoa a quem faz aparecer alguém e o próprio sentido com que alguém nos aparece. Toda a relação afectiva ou, antes, pessoal é histórica, biográfica, auto-biográfica. É intransponível em certo sentido, mas compreende-se que é em geral assim para o universo humano!

A transposição da relação pessoal, da história da nossa vida na vida dos outros, para o mundo dos objetos, altera a sua compreensão objectiva. Mesmo uma “natureza morta” é muito mais do que a realidade objectiva do corpo espácio temporalmente, física e materialmente, determinados. Todos os lugares que antecipamos no seu ser são diferentes, quando lá vamos. Mesmo a própria antecipação em imaginação e fantasia de sítios a que nunca fomos e se calhar nunca iremos nas nossas vidas tem a sua própria estória a sua própria afectividade. Paris antes de lá termos ido existe como ficção literária ou cinematográfica. É diferente de Paris quando lá fomos. Uma qualquer parte da China antes de lá termos ido inunda-nos oniricamente. É completamente diferente da realidade, quando lá estamos. Mas também trazemos em nós os sítios onde vivemos como as pessoas que conhecemos. Algo ou alguém que nos apareceu desaparece para um sítio que é diferente do “sítio” em que se encontravam antes de nos terem aparecido.

Mas nem todo o aparecimento é confrontado com o não aparecimento. Nem se perspectiva sempre o aparecer do aparecimento enquanto tal. O ser é agente do aparecer. O aparecer faz que algo ou alguém, todas as coisas e pessoas, simplesmente, sejam, existam, apareçam. O facto de tudo estar desde sempre aberto de alguma maneira faz que tudo nos apareça no contexto específico das nossas vidas singulares. Há diversos contextos ao longo da vida que permitem perspectivas e aspectos diferentes com que cada coisa ou pessoa nos aparece. A situação originária do aparecimento e do desaparecimento é o tempo. O horizonte do aparecimento aparece todo ele por atacado, de uma só vez, e é aí que tudo aparece. Mas é ainda no horizonte em que tudo aparece que tudo desaparece, cai para um plano de fundo. O que se define, perde definição, o que se forma deforma-se, o que aparece desaparece. O horizonte temporal vai-se constituindo à medida que o tempo passa. O tempo que passa, é o tempo que veio antes de ter passado.

Antes de termos nascido, na nossa situação pré-natal, como lhe chamaria Platão, éramos já tempo. A “matéria” de que o ser humano é feito, universalmente, é tempo. É do tempo que nascemos, com ele vivemos e com ele morremos.

O a priori como lhe chama a filosofia é o anterior não cronológico, mas ontológico que nos antecipa no ser especificamente humano. Mas o que quer dizer que o meu ser era já na sua essência antes de eu ser na minha existência? Há uma predeterminação ou sou livre para ser o que eu quiser?

O ser de uma cadeira era já na sua essência antes de uma cadeira, da primeira cadeira ter existido, feita pelo carpinteiro. Mas eu sento-me numa cadeira real e não na essência da cadeira. Mas a compreensão anatómica das ancas em que o tronco se encontra sentado, a compreensão anatómica da possibilidade de nos sentarmos de cócoras ou de pernas cruzadas ou sobre o rabo de pernas dobradas, a possibilidade de nos sentarmos em qualquer sítio que sirva para o efeito dá-nos a condição de possibilidade de pensar a cadeira como uma prótese: sentar e levantar, sentar e levantar dos mais diversos modos possíveis é o ser da cadeira que primeiramente é experimentada a partir do e no corpo próprio. Mas a compreensão da possibilidade está já na morfologia do corpo, a compreensão do seu ser é anterior à primeira vez que nos sentamos?

Ser é ser do ente. Tal quer dizer que o ser é co-tematizado, está concomitantemente aberto mas de forma pré temática. O poder sentar-me, o poder da cadeira de deixar sentar-se nela, no assento e no encosto e de deixar levantar-se dela não está dado da mesma forma que os seus componentes materiais, a sua configuração. A cadeira é os seus componentes e a sua configuração e design, mas essas entendidas reais e objectivas por si não fazem o ser do ente que é uma cadeira. As ancas são o que são na sua constituição, mas sem músculos e articulações não poderia actuar sobre elas, o mesmo quando flicto os joelhos e fico de cócoras ou me sento sobre as nádegas ou cruzo as pernas. A possibilidade de actuar anatomicamente implica uma interpretação complexa da possibilidade com que conto, que acciono e activo mas que não está já de forma elementar na consideração meramente anatómica.

A redução fenomenológica é a recondução do olhar que vê só objectivamente o ente para chegar até ao seu sentido. O sentido é a manifestação primordial do ser de todo e qualquer ente. A possibilidade é o que possibilita um ente vir a ser o que é. Ela é expressa pelo infinitivo: “a ser”, “para ser”, com que todo e qualquer ente é compreendido na sua inteligibilidade.

Quando vejo uma cadeira, não vejo apenas o plano do assento perpendicular ao plano das costas, nem assento e costas de uma cadeira sobre as pernas e eventualmente com braços para apoiar os meus, vejo um ente que é dado na sua possibilidade que me é oferecida: sentar-me e levantar-me, estar sentado e olhar para a cadeira ocupada com alguém que nela está sentado ou livre para que alguém se possa sentar nela.

Nós não vemos os infinitivos: levantar e sentar; vemos só o objecto onde nos podemos sentar e de onde nos podemos levantar.

Segundo momento do método: construção fenomenológica: projecção do ente para o seu ser e compreensão do ente à luz dessa mesma projecção. Não apenas desvio do olhar do ente, do objecto, da coisa, do corpo para o seu ser, mas compreensão à luz do sentido que se projecta a partir do ser e do sentido do ser sobre o ente assim compreendido.

A filosofia está implicada assim em três momentos decisivos (Heidegger). É uma redução, uma construção (projecção) e uma destruição.

25 Jan 2019

A agenda extasia os servos

[dropcap]O[/dropcap]s seres humanos não conseguem lucubrar sobre tudo. Há limites. É por isso que existe a poesia, é por isso que se criaram as religiões, é por isso que houve necessidade de se inventar a filosofia e outros modos de perceber e de questionar.

Imaginemos, no entanto, uma peça de teatro em que o princípio activo fosse esse: dez ou vinte personagens em cena a falarem sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo. Seria uma coreografia sobre o que não existe, uma verdadeira panóplia para loucos, na medida em que “tudo” não passa de um pronome indefinido e invariável, logo algo que faz pela vida apenas na imaginação das pessoas e não na realidade, digamos, tangível (Shakesepeare jamais podia ter comparado a linha avançada do West Ham com a do Leicester).

O normal – sim, falemos de coisas normais – é a existência de escolhas, de opções, de alinhamentos (como escreveu o semiótico dinamarquês L. Hjlemslev, os humanos recortam do continuum as suas opções, embora esse recorte obedeça a linhas de resistência, tal como os pintores na pré-história permitiam que os seus traços se orientassem pelas linhas da rocha). Ao escolhermos, a nossa soberania é sempre uma soberania orientada, prescrita, definida.

Durante praticamente toda a história dos humanos, as proibições facilitaram as escolhas possíveis. Sempre foi proibido falar de muitas coisas, por razões políticas, espirituais, históricas, tabus, etc, etc. No ocidente moderno, a ideia de liberdade (enquanto possibilidade) foi, entretanto, escrevendo a sua própria história. E o que sempre limitou a liberdade acabou, também, por ser o que melhor a caracteriza.

Hoje em dia, sentimo-nos livres quando se designa por agenda aquilo de que se fala. A agenda é a sucedânea das antigas linhas da rocha que orientavam os pintores pré-históricos. A agenda é o novo sinaleiro tectónico que nos diz sobre o que lucubrar e quando.

A agenda selecciona alguns tópicos que se vão abrindo e fechando ao longo dos dias. Esses tópicos surgem com o formato das ondas: erguem-se no alto, rebentam, espumam (por vezes muito) e logo desaparecem. O vestígio e a patine que ficam deste exercício são constituídos por gases raros. Um nada que se forma como uma nuvem de Verão: chamemos-lhe memória (ou o que dela ainda resta).

Quase tudo o que a agenda viabilizava há 24 ou há 36 meses já não existe hoje no debate diário. Do mesmo modo que a agenda dos últimos dias, tão vociferada nos teclados, irá em breve esvair-se. Perdemos o dom da ritualização e adquirimos o propósito do fluxo. Estou a referir-me ao escritor que disse que não se atirava a mulheres com mais de 50 anos, às expectativas dos estudos ambientais em torno do aeroporto do Montijo, às vicissitudes do muro de Trump, às entrevistas a fascistas na TV, à rapariga saudita em fuga pelo sudeste asiático, às greves de sectores da função (naturalmente) pública, aos políticos na justiça dando a ideia de que são perseguidos, aos pobres globos de ouro, à vaga de gripe, aos treinadores de futebol que saem e que entram, aos migrantes sem porto para desembarcarem e à Tesla que se está a instalar em Xangai.

Os tópicos da agenda começam geralmente por um facto e, depois, inflamam, degeneram e tornam-se em ziguezagues palavrosos que se acirram. Mais de noventa e cinco por cento das pessoas que ‘dão opinião’ (nesse novo polígrafo do julgamento divino chamado redes sociais) é o que fazem: pescam um tema da agenda e depois assanham-se, inebriam-se ou registam aquilo que imaginam advogar como se fosse algo único, ímpar, fundador do mundo. Virada a página do dia ou da semana, é como brincar às escondidas: lá se removeu todo o miolo da convicção, lá se foi toda a massa do pão da madrugada passada para que possa amassar sempre a do dia seguinte.

Na verdade, nunca ninguém está presente. O vazio da véspera é o já o vazio do próprio dia. Razão pela qual o ‘feed’ das redes sociais é um fio-de-prumo sem qualquer arquitectura para habitar. E o mais maravilhoso é que a nossa era vive precisamente desta beleza sideral: o que não faz parte, nem nunca fará da agenda (aquilo para onde ninguém olha, por outras palavras) é o que melhor a definirá. Da mesma maneira que a fotografia se pode definir, nos nossos dias, como aquilo que ainda não foi fotografado, tal é a hemorragia com que as imagens, sendo o que são, se estão a transformar em coisa nenhuma (um ‘sample’ que é repetido até ao torpor). Não deixa de ser verdade meus amigos: a fotografia é aquela parte de mim ainda por fotografar.

Sabendo que, na verdade, nunca ninguém está presente, pergunto-me, por vezes, por que razão continuo ainda a pagar a assinatura do cabo, já que em todos os canais, com raras excepções (mesmo na, por muitos adorada, neflix), se vê sempre o mesmo filme. A agenda é matreira e consegue espalhar eflúvios de aparente felicidade nos povos do globo! Mas eu sei por que continuo a pagar: tenho que estar dentro da rede, nos calores da infosfera. Fora da gruta, ‘liberto’ das opções impostas, eu seria um desalojado e sentiria graves problemas de sobrevivência. As presas de caça dos neandartais são hoje megas gigas teras petas. Assim é. Pouco mudámos, já se vê.

Assim é. Nem que seja para que nós, humanos, tenhamos a sensação ilusória de que conseguimos falar sobre tudo e sobre nada, ao mesmo tempo. Nem que seja para que nós, humanos, tenhamos a sensação ilusória de que está tudo à nossa mão e de que somos livres a fazer as nossas opções. Nem que seja para que nós, humanos, tenhamos a sensação ilusória de que é ‘bluff’ pensar numa agenda que nos tende a escravizar.

Os novos escravos têm diante de si o espelho e o teclado da normalidade e deixam o seu traço no mundo, interiorizando a ideia de que são os personagens mais autónomos do planisfério. Por vezes usam maiúsculas, repetem clichés, imaginam-se na ponta do charuto de Churchill e cantam fora da banheira como se fossem Plácido Domingo. Ao fundo da rua, ouço tantas, tantas vezes Nietzsche a rir à gargalhada.

17 Jan 2019

As gerações são um gelado ao sol

[dropcap]O[/dropcap] poder é como a polifonia: um vasto conjunto de vozes que irrompe de todo o lado, não se detectando, na maior parte das vezes, de onde provém e para onde segue. É uma zoada que desejaria subjugar ou imobilizar tudo o que mexe e que se impregna em todos nós, pobres mortais. Como escreveu Barthes, na sua famosa Lição (1977), é discurso de poder todo aquele “que engendra a culpa e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o ouve”. Os poderes fazem parte da teia humana, ou seja: eles são o grande parasita do maior predador do planeta, o que quer dizer que estão muito para além da galáxia política ou das (muitas) redomas dos costumes. Até esta crónica é um pequeno apêndice de poder. Até os periquitos do Jardim da Estrela são adições de poder (já me têm subjugado a meio dos meus passeios matinais).

Num tempo secular em que a rigidez dos costumes começou a pouco a pouco a fluir, o que aconteceu gradativamente depois da segunda grande guerra mundial, as gerações passaram a constituir-se, cada vez mais, como agentes de poder (de muitos poderes). Não é por acaso que, hoje em dia, a publicidade visa targets cada vez mais jovens: dos adolescentes aos pré-adolescentes, tal é o poder que estas franjas passaram a conquistar dentro do que ainda resta do conceito clássico de família.

Tão longe destas encenações próprias do nosso tempo, João de Salisbúria escrevia, há 859 anos, socorrendo-se de uma imagem semelhante à que acompanha este texto: “os modernos (neste caso, as pessoas do seu tempo) são como que anões aos ombros de gigantes que vêem mais e melhor do que os seus predecessores, não porque possuam uma visão mais apurada mas porque se encontram numa posição mais elevada, suportada pelos gigantes”. O adágio, atribuído a Bernardo de Chartres, dava a entender que o esclarecimento do mundo vinha sempre e inevitavelmente de trás; só a partir da ‘Querela dos Antigos e dos Modernos’, oito séculos depois, é que esta relação se começou a alterar. Desde então, e com acelerações brutais até aos nossos dias, foi emergindo a ‘consciência do nosso tempo’ e a ideia de que é no presente, e só no presente, que se encontram os gigantes, os génios, os chavalões e, figuradamente, ‘os imortais’.

Cada geração com que convivemos nos nossos dias imagina-se sempre no cume da história, numa espécie de clímax ou de vórtice mergulhado em chantili festivo. A desmobilização das ideologias que iluminavam o futuro e domesticavam o passado, a par dos poderes encantatórios da tecnologia que nos devolvem a instantaneidade do agora como único tempo possível e fruível, sublinham a patologia. Escrevi “patologia” pois nunca houve um tempo tão desligado da história, quer no sentido antigo (da pertença escatológica), quer no sentido dos modernos (que recriaram a escala do humano após o Iluminismo). As gerações são hoje a graça divina animada pela juventude eterna dos ginásios, pelos likes no FB enquanto inscrição existencial, pela aceleração e mediação das imagens, enfim, por uma espécie de autismo social de tipo ahistórico. Um papagaio de peito feito a quem os deuses deram vida perpétua.

O presente basta-se, desta forma, a si próprio nos nossos dias. É até possível que tal venha a configurar a primeira grande utopia que se realiza enquanto se vive (será esse o segredo conjugado do virtual, do hiperespaço e da telemática). De qualquer modo, só se entende bem o que é uma geração, quando se sai da vaga. Isto é: ao cruzarmos as primeiras cinco ou seis décadas de vida, o olhar retrospectivo permite ver e rever de fora a emergência de uma nova geração a ocupar os seus poderes, os mais diversos e em todas as esferas (mesmo nas que parecem mais inofensivas como a literária, por exemplo). Tudo o que ela afirma e inscreve funciona como se tudo estivesse a acontecer pela primeira vez. Já nem está em causa a amnésia ou a vaguez dos horizontes. O culto vira-se sobretudo para hiatos de linguagem (como “os novos”, “a neo-”, o “retro”, os “primeiros”) que são indícios, ainda que involuntários, de uma auto-celebração que se vai tornando pouco inclusiva. Sinal dos tempos.

Quando o que se celebrava era um feito luminoso do passado que ritualizava efectivamente o presente, os ‘culpados’ éramos todos nós. Razão tinha Barthes no seu diagnóstico dos poderes (os tais discursos que “engendravam a culpa”). Hoje em dia, celebramo-nos a nós próprios, ou, por outras palavras, cada geração celebra-se a si mesma, fazendo dessa ‘correcção’ um modo eficaz de nos desculpabilizarmos. Nunca os poderes foram, portanto, tão invisíveis e, ao mesmo tempo, tão actuantes e arredados do ‘dever ser’ tradicional. A ‘correcção’ e a sua colmeia onanista de ditames (amante de uma imagem turva da liberdade) é filha desta saga que gosta, ao espelho, de se confessar como sendo fracturante. Não haverá maior devaneio.

A consciência de se ser geração é uma coisa recente e corresponde a um modo de caracterizar mutações sobre as quais deixou de haver controlo. O que realmente fractura é a quase ausência de leme no fluxo de acontecimentos que fazem o mundo e não tanto o que possa decorrer desse agente fantasmático que, há poucas décadas, se passou a designar por geração.

10 Jan 2019

Sopros de paixão

Horta Seca, Lisboa, 3 Dezembro

[dropcap]E[/dropcap]xperiência é a palavra dum viajante em zona estranha, hostil.» Ainda há poucos dias, Fernando Belo (Lisboa, 1933-2018) publicava em uma das pontas da sua intrincada meada de blogues intenso depoimento acerca da entrada enquanto pensador irrequieto no jogo de gato e rato entre espiritual e intelectual. Engenheiro por causa dos números, padre por via de um transe, filósofo em resposta a uma enorme paixão… intelectual.

«Comecemos por distinguir intelectual e inteligente: este é quem compreende as coisas do mundo, além dos seus interesses próprios, aquele é quem sabe jogar com conceitos e literaturas. Há quem sem ter estudos superiores e sem ser intelectual seja fortemente inteligente e há intelectuais académicos que são burros de fazer dó (acontece-me em certos aspectos da vida). […] Também o motivo de ‘espiritual’ tem que ser distinguido de ‘religioso’, que se constituiu como uma forma social englobante de toda a sociedade, desde o nascimento, enquanto que o ‘espiritual’ parte da conversão da vida e rompe com o aparato ritual e doutrinal da religião. Mas também o ‘espiritual’ não é a pôr apenas do lado da ética, que esta também tem incidências intelectuais, ainda que filósofos, cientistas e artistas possam por vezes rebaixarem-se eticamente. Seria tentado a pensar o que chamei ‘respiritual’ do lado do sopro na vida, mais do que da ética de que, melhor ou pior, muita gente dá provas em vidas que não são fáceis: ‘respiritual’ seria o sopro duma paixão que se põe acima do culto dos feitiços habituais, o dinheiro, o poder, as ortodoxias mediáticas, uma paixão que não transige, não se dobra em face do que impera.»

Os seus textos não perdem densidade quando se deixam tomar pela poesia. E, contudo, deu, como poucos, atenção à materialidade e ciência. Lamento muito não o ter chegado a editar. Há que percorrer estas suas paisagens em busca de vestígios de funda linguagem, do ser e do tempo, do corpo e da alma. Como de oxigénio, dedo no ar, tenho que perceber de onde se pode reacender o sopro.

Povo, Lisboa, 3 Dezembro

A cada segunda, a noite estremece: por vezes arrepio, outras relâmpago. Outras nada, mas ainda assim há 274 sessões que Poetas são ditos e celebrados pelo Povo, no Cais Sodré de ancestrais traficâncias. Desta, tratava-se de alguém que ajudou, luas atrás, a definir o perfil do lugar. O mano José [Anjos] não teve como seguir as suas instruções e desaparecer. Dando cor aos seus versos, fez-se presente de guitarra na mão e pedais ao pé, de par com Filipe Homem Fonseca no teremim, que encheu o ar de futuros e distintas coreografias de mãos tocando o nada. O resto deu-se no ziguezague costumeiro das vozes cavas do Vitor [Alves da Silva] e do Pedro [Lamares] e as mais agudas do mano António [Caeiro] e do gordo que se assina.

Nem toda esta poesia nasceu para ser dita, mas em muita a voz fá-la ganhar corpo e respiração. Sou testemunha próxima do amadurecimento do poeta também na sua encarnação de diseur, encenando leituras com rigor extremo e testando sem descanso parcerias variáveis, em busca da companhia e do instrumento exacto para aquela palavra. Estas exibições não dispensarão leituras em modo íntimo, olho na página, mas toca lugares nem sempre visíveis apesar de palpáveis. No que me diz respeito, o mistério acontece na partilha plana da pessoal interpretação, como se a estivesse a ouvir na minha cabeça, sem efeitos de maior.

A voz que se segue logo revela mais possibilidade. E nisto se descobre pelo verso corrido, respirado, suado do Anjos a oculta arquitectura das paisagens.

Nova, Lisboa, 5 Dezembro

Aristóteles teve de ir a casa. O António [de Castro Caeiro] anunciou-o e o Luís [Gouveia Monteiro] explicou-o estabelecendo paralelo entre as personagens do clássico liceu e as tribos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. O Paulo [José Miranda] detectou a estranheza com que o outro, qualquer que seja, nos surge (texto publicado há dias nestas páginas). «As Constituições Perdidas de Aristóteles» continuam a suscitar desafiantes leituras. «No mundo de Aristóteles os elementos têm vontades: a terra deseja cair em direcção ao centro do universo, o fogo anseia pelo céu, a natureza tem horror ao vazio. No nosso também, e ainda nem sequer nos livrámos da ideia de que os deuses nos olham lá de cima sentados numa nuvem, às vezes visitam-nos e podem até, em querendo, pescar-nos como peixes. E as Constituições, produto daquelas escolas, como a academia e o liceu, são um documento essencial para um momento único na história da espécie, uma verdadeira indústria de conceitos, de espírito, que procurou organizar e sistematizar o conhecimento disponível numa espécie de primeira grande modernidade intelectual da espécie.» Mas o Luís foi mais longe e traçou uma genealogia do jogo entre alma e corpo, espírito e matéria para concluir: «E é claro que as coisas têm desejos, como disse Aristóteles, como precisa a metafísica e como a poesia sempre suspeitou. A física contemporânea continua à volta dos problemas daquilo que não é nem espírito nem matéria, ou então é as duas coisas ao mesmo tempo, como a luz. […] O mistério continua intacto e esta tradução enriquece esse mistério, dá alimento ao pensamento e à imaginação.»

Palácio, Queluz, 7 Dezembro

A Divino Sospiro, assombroso projecto animado pelo Massimo [Mazzeo], instalou-se em boa hora no renovado Palácio Nacional de Queluz, lugar de prolongados namoros entre paisagem e arquitectura. E estendeu-se com um Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal, que lançou, entre muitas outras iniciativas, um primeiro volume dos «Cadernos de Queluz» (ed. Hollitzer) dedicado à «Serenata and Festa Teatrale in 18th Century Europe», e coordenado por Iskrena Yordanova e Paologiovanni Maione. De grafismo irrepreensível, os dezasseis estudos levam-nos a lugares e celebrações do fausto, mas sobretudo a uma complexa maquinaria teatral que criava mundos nas capitais da Europa. Artifício e verdade, poder e arte dançavam apaixonadamente juntos. Dançavam?

S. Luiz, Lisboa, 10 Dezembro

«Sócrates tem de morrer», certo e sabido. Uma certa ordem das coisas, por exemplo a que diz serem distintas a alma e o corpo, precisa da morte para se afirmar. Mickaël de Oliveira investigou Platão e produziu um díptico, ao qual se soma «A Vida de John Smith», erguendo cenário para questões que nos atravessam, rindo, rasgando e perturbando. Na primeira parte, a lógica do pensamento que garante a sobrevivência da alma depois da morte leva à criação de grupo quase terrorista. E quase apenas por ser o assassinato o seu horizonte, não tanto o terror. A segunda parte revela-se distopia: «a matéria (a linguagem, as texturas, a luz) não é obstáculo ao conhecimento, no qual já não existem segredos, particular ou universais.» É um mundo triste, de onde a poesia está ausente, a custo, diz a personagem, mas ausente. Não radica aí a tristeza, antes na inescapável cedência à lógica de qualquer poder: jamais se questionar nunca. E o fim da linguagem não resolveu os imponderáveis. A ficção científica nacional, subitamente rica, tomou os palcos e neles questiona futuros de maneira aguda. John Smith, em poderosa interpretação de Albano Jerónimo (foto de Bruno Simão algures na página), pega na arma do mais chão bom senso e corta cerce.

13 Dez 2018

Deslocação e viagem I

[dropcap]D[/dropcap]emora-se muito mais tempo a chegar a um sítio do que se pode pensar. Mesmo que o não pensemos explicitamente, há claramente uma diferença entre deslocação por locomoção e viagem. Não estou a falar necessariamente da diferença que existe entre viagem interior e deslocação no espaço exterior. Não, se decorrerem no mesmo tempo. À chegada, percebemos que estivemos sem prestar atenção à paisagem. Nem há que pensar que estivemos a ouvir música ou a ver filmes, se fôssemos conduzidos e não os próprios condutores. A sensação do tempo da deslocação pode dar a noção de que decorreu depressa, nem demos conta do tempo. Mas também pode arrastar-se, parece que nunca mais chegamos.

Há, em todo o caso, uma diferença entre a deslocação por locomoção e o transcurso temporal da viagem. Se preparamos o que chamamos uma viagem de fim de semana, de férias ou ao estrangeiro, estamos já virados para a possibilidade efectiva do que vai acontecer semanas antes. Não quero dizer que seja uma preparação minuciosa, ou de uma viagem que venha efetivamente a acontecer. Podemos considerar essa hipótese como que a sonhar ou como um desejo ou um voto. Mas consideremos a antecipação das férias, por exemplo. Pode requerer mais ou menos preparação. Podemos ir só com uma mala com artigos indispensáveis. Podemos ir por uma semana ou mês. Contudo, uma semana antes ou nos dias que antecedem a partida, estamos completamente virados para esse dia futuro. Estamos ainda a cumprir calendário, com uma agenda própria, a trabalhar, com as atividades normais que temos, com os nossos hábitos nos sítios a que vamos, com os horários que temos. Ainda assim, estamos já em contagem decrescente para o dia e hora da partida. Estamos na antecipação já na expectativa do que vai acontecer. E ainda faltam dias para a partida. Não começamos a deslocar-nos ainda, não fomos, por assim dizer. Podemos até nem nunca partir. Mas a viagem já começou. Os preparativos mesmo apenas mentais estão já a criar tensão. Podem ser despedidos, podemos não pensar neles, mas estão já a formar-se no espírito, temo-los em mente.

As vésperas de viagem estão já a construir a própria viagem. Viajaremos nós ainda? Podemos correr mundo e apenas deslocar-nos. É tudo velho de mais e o que encontramos tem diferenças mas não são muito acentuadas se viajarmos sob o planeamento de roteiros de viagem feitos para sítios diferentes sempre com uma mesma linha de edição, gizada por alguém que nunca saiu do seu quarto, podendo até viajar mais do que quem de facto viagem. Ou não: alguém que nunca saiu do seu bairro e quer ver em todo o universo à imagem e semelhança do seu sítio.

Talvez possamos viajar e fazer a jornada. A deslocação pode ser não apenas a anulação da distância entre o sítio da partida e o sítio da chegada. Pode ser uma viagem, uma jornada, onde encontramos pessoas e não apenas passageiros, condutores. Podemos encontrar sítios e não localidades com longitude e latitude. Podemos chegar diferentes, como quem entra numa dimensão completamente diferente do que aquela em que se encontrava quando partiu.

Não chegamos também apenas quando o percurso foi feito e o caminho galgado.

Demora tempo a chegar e a esquecer velhos hábitos. É assim: para sítios, para pessoas, para coisas, para nós.

9 Nov 2018

As pessoas são estranhas

[dropcap]É[/dropcap] possível que o mundo precise de ser salvo. É pouco provável que isso venha a acontecer. Ou mesmo que seja desejável. E enquanto os grandes desígnios da Humanidade não se cumprem, observemos o que para aqui nos interessa: os seus pequenos desígnios, iguais e da mesma forma espantosos.

O amador da natureza humana tem uma vantagem sobre os restantes indivíduos: há sempre qualquer coisa passível de deter o seu olhar, por mais irrelevante ou marginal que possa parecer. Normalmente são factos disfarçados de trivialidade, reservados para rodapés ou comentários ociosos que facilmente se esquecem.

Mas, caro leitor, estes pequenos afluentes humanos que correm ao lado do grande rio da História não deixam de ser reais. Como esta notícia recente, por exemplo: um cientista russo, Serguei Savitsky, esfaqueou o colega com quem se encontrava em serviço numa remota estação científica na Antárctida. Até aqui nada de novo – altercações violentas acontecem um pouco por todo o lado. Mas o motivo não: a vítima não parava de contar ao agressor os finais dos livros que o outro estava a ler. Pausa para o leitor sorrir, como eu fiz. Só que este pequeníssimo alfinete no Grande Esquema Das Coisas pode ter mais do que se lhe diga (para além de Savitsky ter ficado com a honra duvidosa de ser o primeiro homem condenado por esfaqueamento na Antárctida). É que a coisa já tem antecedentes. E com elementos comuns.

Explico: em Setembro de 2013 dois homens discutiam acaloradamente as obras de Immanuel Kant. Subitamente um deles, provavelmente por um qualquer imperativo categórico, disparou várias balas de borracha sobre o interlocutor, acabando assim o debate. Eram ambos russos. Mas continuem comigo: quatro meses depois do incidente que relatei, outro esfaqueamento. Desta vez a discussão era outra mas o tema também era relevante: o que é superior, a prosa ou a poesia? Um ex-professor resolveu colocar o argumento definitivo sobre esta matéria em forma de arma branca; a vítima, um homem de 67 anos, não resistiu aos ferimentos. Aconteceu no sul de Sverdlovsk que fica – adivinhastes – na Rússia.

Que conclusões poderemos tirar daqui, leitor ? Pessoalmente acho qualquer tipo de violência inaceitável; mas poderei dizer que não compreendo estes homens ? Ou estes acontecimentos confirmam as teorias de que existe uma identidade colectiva (e nestes casos em particular a famosa Alma Russa)? Ou mais prosaicamente que o vodka pode prejudicar qualquer discussão literária ?

Não sei responder. Como de costume vou buscar santuário ao que já foi escrito (e tudo já foi escrito) para tentar compreender as coisas, E encontro-me com esta famosa locução de Publius Terentius Afer (194 a.C ? – 159 a.C), um autor romano de várias sátiras e comédias: “Homo sum, humani nihil a me alienum puto”, ou seja “Sou homem; nada de humano me é estranho”. Uma atitude distanciada e quase blasé sobre aquilo que somos e fazemos. Mas felizmente, e por mais banal que isso possa parecer ainda é possível maravilhar e estranhar. E quem sabe, isso sim poderá salvar qualquer coisa, por mais pequena que seja. O mundo, nunca se sabe.

7 Nov 2018

Inshalla

[dropcap]O[/dropcap]s gregos achavam que o passado estava à nossa frente, porque dele nos podíamos lembrar como vida passada. Achavam, pelo contrário, que o futuro estava nas nossas costas. Era como se andássemos de costas para o futuro. O caudal do passado aumenta a cada dia. O Afluxo do tempo futuro é cada vez menor, ténue, até ao estrangulamento e asfixia do sentido. A memória refere-se a uma percepção passada. Platão fez da reconstituição da vida uma anamnese: uma lembrança da representação do que temos sem o vermos. Todos os protagonistas das nossas vidas: mãe, pai, irmão, amigos, amada, a banda sonora das nossas vidas, a nossa cinemateca, os sítios onde vamos e fomos, ginásios, cervejarias, igrejas e hospitais, a casa dos avós, tudo é como se tivesse sido projectado outrora num tempo pré-natal. O passado tem peso. Tem tanto peso que mal nascemos somos já velhos o suficiente para morrermos ou como dizia Santo Agostinho: “começas a morrer quando sais do ventre da tua mãe”. O presente é a actualidade complexa que desactualiza o passado, tempos idos: é o que é, é por onde vamos indo. Estafa. Não temos já o que fomos, nem quem tivemos, meus queridos. Agora, temos de nos reinventar. É sempre difícil. Mas chegam auroras. Chegam.

E o futuro? Como temos uma antevisão, uma previsão do futuro?

Os antigos achavam que a esperança era uma velha vestida de princesa ou então um sonho cheio de promessas. Na verdade, não trazia nada a não ser a morte sem a possibilidade do presente. Quem vive cheio de esperança, mesmo da vida eterna, esquece-se de viver. A vida está cheia de gente que veio à existência, a atravessou, dela saiu e, hoje, está morta para sempre. Mas também não é o desespero nem a desesperança. O horror nasce das paredes da nossa casa vazia de gente. O horror não tem rosto. Não é a gadanha nem a dor. O horror escorre da humidade fria das paredes das nossas casas.

O futuro é outra coisa. Está presente logo na primeira vez de todas as primeiras vezes. Para haver contagem tem de haver as segundas e as terceiras vezes, mas também a última vez. Nós acordamos para a vida com a hora da nossa morte. Tudo o que é o mais antigo nas nossas vidas não passou. Pode ser esquecido mas não passou. Está à nossa espera na hora da nossa morte. O tempo não é do presente para o futuro. Vem sempre do futuro para o presente e depois para o passado e para o esquecimento. Toda a duração tem esta qualidade. É do limite temporal do fim que pensamos o presente sem o pensarmos. O jogo a partir do seu fim onde decorre. A aula, a viagem, o encontro. O encontro total da vida é pensado a partir do seu fim. Tem de ser no limite irreversível do fim que pensamos o presente.

Mesmo que vivêssemos eternamente seria sempre a perder.

Sem a possibilidade radical da perda não poderíamos viver a pensar no céu azul nem na linha do horizonte.

26 Out 2018

Víctor Jara

[dropcap]D[/dropcap]izem-se muitas coisas. Mas ninguém sabe o que aconteceu. Muito menos por que aconteceu. Não. Não. Como poderão saber? Em São João todos apedrejaram a pecadora. E como diz o evangelista: “cada um foi à sua vida”. Era noite, e a polícia política entrou em casa. O castelhano era inevitável: “Vá, levanta-te, onde tens a tua guitarra e os livros imundos que lês?”

Santiago não era já a cidade que comemorava o santo que, dizem, terá morrido no norte da península ibérica. Onde São Paulo morreu também à espera do seu Jesus, para, por fim, se ir embora ter com o Pai.

Não. Santiago era outro. E afinal o teu nome era Santo Inácio, o mesmo que deu origem àquela ordem! Cerrada a perna gangrenada, o santo “colou-a”. O amor vinha da coragem física e moral. Pegaram na tua guitarra e em toda a literatura subversiva.

Tu não aceitavas nunca um não e contrariavas sempre o que te diziam. Só não foste absolutamente ignóbil, porque tinhas um carácter no teu coração que não te deixava perder inteiramente. Cantavas Ho Chi Minh como se fosse um poeta e esse lugar.

“Vamos, anda!” gritava a polícia política. Atirou-te escadas abaixo e contra ti literatura subversiva, a Antígona e o Rei Édipo, do sacerdote maior que era Sófocles. Arremessaram a guitarra como a tua mulher e filhos e os velhos pais. Escarraram-te na cara e deram tantos pontapés que desfiguraram botas na tua cara de índio. E tu, naquela que seria a tua última noite, deixavas que o corpo gemesse mas não a tua alma. Não a tua alma era possuída pelo teu espírito e tu não irias deixar o espírito gemer. Só o corpo.

As tuas mãos delgadas que percorreram Santiago à espera de cada espectáculo! Arrastavas mulher e crianças que te amavam como se fosses um oráculo muito antigo. El derecho de…

E agora era a última noite. Não era uma qualquer. “Segue: tens filhos comigo, mas não te preocupes, amor. Quero-te assim. Tu és o amor”. Arrastavas tudo contigo e não conseguias recuar. A consciência tranquila e a justiça faziam-te inimigo da má consciência e da injustiça. Não conseguias tolerar a injustiça. “Morro e vou-me se a vida for assim”.

A vida é assim.

Despiram-te e disseram-te para tocares a tua guitarra. Deceparam-te a mão esquerda. “Toca, filho da puta.” Tentaste. E cortaram-te a mão direita. “Toca, filho da puta.” E era com os cotos que tentaste fazer música daquela guitarra. “Canta”. E cantaste como nunca.

A dor toma, agora, conta de tudo o que é o teu corpo.

Cantas e cantas.

Cortam-te a língua: “Canta, cão!”.

Há um gemido surdo que soltas.

Vem do fundo dos tempos!

Foste-te.

19 Out 2018

Filósofo José Gil diz que “Tudo o que resulta das velhas verdades falhou”

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om um elogio ao inconsciente na formação do conhecimento, o filósofo e ensaísta José Gil defende que é nesse inconsciente e no caos que ele provoca que podem estar as novas soluções para os antigos problemas atuais.

“Tudo o que resulta das velhas verdades falhou”, disse o filósofo, numa sessão na Escola das Artes da Universidade Católica do Porto, onde apresentou o seu livro mais recente, “Caos e Ritmo”.

Num final de tarde de meteorologia incerta, o ensaísta e filósofo dissertou sobre o caos como origem das certezas, a partir dos fragmentos de ideias que “possam entrar numa continuidade consistente”.

“Se olharmos para a Arte, para a Cultura, para a Ciência, para os princípios morais, encontramos constantemente fragmentos, a que nos referimos como um caos”, explica José Gil, dizendo que é nesse caos fragmentado que devemos procurar as explicações para o que nos rodeia, rejeitando muita da lógica que até agora considerámos válida.

“Temos de conseguir unir o que é heterogéneo”, acrescenta o pensador, numa evidente referência às atuais questões da inclusão e dos riscos da manipulação. “As ‘fake news’ são um aspeto não completado do estilhaçamento do real”, diz José Gil.

José Gil fala ritmadamente, com argumentos que se percebe terem nascido de reflexões construídas com a avidez de quem gosta de interrogar tudo, pensar tudo.

Mas afinal, o que é pensar?

A questão é central no livro “Caos e Ritmo”, mas o problema dilui-se rapidamente em mil fragmentos de temas que se acumulam nas 504 páginas recentemente editadas pela Relógio d’Água, num livro em acabamento de capa mole.

E essas duras dúvidas foram repetidas de diferentes maneiras, como se esmiuçadas de diferentes perspetivas, na sessão na Escola das Artes, da Universidade Católica do Porto.

A conversa decorreu num palco improvisado ao lado de um auditório que se chama Ilídio Pinho, o nome do empresário de Vale de Cambra que fez fortuna com embalagens metálicas, na base de uma Fundação com várias iniciativas de mecenato, uma questão que Gil também questiona, sem o abordar diretamente, mas deixando o tema pairar, quando fala da questão da sustentabilidade do ato de pensar, na era da ‘cultura negócio’.

Mas o que move José Gil é mais a compreensão de como o caos pode criar ritmo, e o ritmo, por sua vez, a ordem, onde, no final, tudo se sustenta.

José Gil é um ensaísta português, nascido em Moçambique em 1939, com formação matemática antes de transitar para a filosofia, onde tem praticado a sua imensa curiosidade, derramada em diversos livros, que atravessam décadas com reconhecido prestígio.

O semanário francês Le Nouvel Observateur colocou-o na lista dos 25 pensadores mais influentes do planeta, no mesmo ano em que recebeu o Prémio P.E.N. Clube Português de Ensaio (2005). José Gil foi também distinguido com o Prémio Vergílio Ferreira (2012), da Universidade de Évora.

Nenhuma destas distinções parece afetar no seu discurso, que apenas formalmente se afigura distanciado do mundo real em que assenta o seu conhecimento, mas que, na verdade, constantemente regressa a esse real.

Como quando, na sua reflexão, hoje, na Escola das Artes, José Gil remeteu para exemplos da atualidade: da atualidade que nos interpela, mas também da atualidade que nos aliena dessa mesma realidade, por discursos que intermedeiam a nossa compreensão do que se passa à nossa volta.

Também por isso a linguagem é tão importante: porque ela corporiza o pensamento e revela o inconsciente.

“Porque é necessário que se explique à criança a sua enfermidade e a sua diferença relativamente às crianças normais? Porque só assim ela poderá adquirir uma imagem inconsciente do corpo sã”, escreve José Gil logo nas páginas iniciais de “Caos e Ritmo”.

A liberdade da palavra é um dos pilares essenciais do pensamento de José Gil, nesta obra, como na sessão no Porto, onde fala dessa linguagem como arma privilegiada para combater as ameaças totalitárias, fundadas na negação da heterogeneidade, aí considerada uma representação de um caos incompreendido e indesejado.

Essa linguagem, por vezes, remete para um nível de compreensão da realidade que colide com a lógica tradicional, o que ajuda a explicar por que na área da psiquiatria são os chamados “feiticeiros” aqueles que mais eficácia podem conseguir na cura, sendo esses “feiticeiros” exatamente os psiquiatras que desafiam o pensamento tradicional sobre o funcionamento da mente humana, explicou José Gil na Escola das Artes da Universidade Católica do Porto.

A “magia” dos “feiticeiros” ‘cozinha-se’ ao nível do inconsciente, diz o pensador, remetendo para essa arquitetura de soluções não-lógicas que se desenvolvem inesperadamente nas mais diferentes áreas, seja na Medicina, na Matemática ou na Filosofia.

A verdade é que José Gil acredita que tudo tem regras – seja um bailado, um poema, um algoritmo, ou uma posição de ioga – mas essas regras nem sempre são conscientes.

E é nessa ordem das coisas que a razão, a razão pura Kantiana (a tese de Mestrado de José Gil foi sobre Kant), procura ocultar aquilo que pode ser uma explicação para o sentido da vida, se existisse um sentido da vida (o tema pairou no debate, mas nunca lá aterrou).

Mas não será a ameaça de uma catástrofe planetária a negação dessa ordem? Ou pelo menos, da sua afirmação pela razão ordenada pelo ritmo?

“A ameaça está aí…”, foi a única resposta que o pensador deixou, na sessão do Porto, olhando a plateia, como se a interpelasse para mil outras perguntas, fragmentadas.

14 Out 2018

Buzinadela

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á pouco tempo, um amigo juiz disse-me para não apitar, no trânsito a ninguém, nem a alguém que conduza, nem a qualquer transeunte. Acho que lhe devo ter dito que era mais pessoa para fazer sinais de luzes do que propriamente para apitar, que achava bárbaro. A praxis do meu amigo juiz era a base para o seu pedido. Vários casos de homicídio tinham-lhe chegado à barra. Os casos desgraçavam quase sempre duas pessoas: quem morre e quem mata. Nunca se sabe bem quem tem um destino pior, se quem morre ou quem mata. Ponto é que, embora consiga compreender como há muitos casos de homicídio provocados no trânsito, não tinha a percepção de que uma buzinadela pudesse provocar a ira do buzinado a ponto de desferir um tiro sobre o buzinado. Talvez manobras perigosas, ultrapassagens, transgressões várias levassem a uma resposta agressiva por parte de quem se julga exposto. Sobretudo, quando há crianças a serem transportadas, crianças que puderam ter sido postas em perigo. É natural que um pai ou uma mãe, instintivamente reagissem de um modo violento.

Mas buzinadelas? Não!

Ainda assim, dei por mim a pensar, o melhor é mesmo não buzinar em circunstância alguma. As pessoas andam com stress nas suas vidas. A condução de manhã à noite pode deixar alguém com a cabeça em água. E eu, que sou eu, nunca buzino.

Eis que se não quando dou por mim num dia particularmente infeliz, pensei. E buzinei muito. Há um carro que está parado à minha frente sem razão aparente. Buzino. Nada. Não reage. Apito de novo e nada. Depois, percebo que há alguém que procura arrumar o carro e que o carro está parado por esse motivo óbvio. Penso cá para mim que a coisa foi descabida. Mas também não penso que fosse necessário que o condutor gesticulasse ou me dissesse alguma coisa. Era um indivíduo urbano. Lá no fundo, o seu silêncio estaria a enviar-me para qualquer uma parte da sua preferência para que para lá me mandasse.

Uns Km à frente num daqueles cruzamentos de Lisboa em que abre o sinal para seguir em frente, mas não para a esquerda, não percebo também por que razão o cidadão continua sem iniciar a marcha e apito. Com suavidade, mas confiança, braço fora do vidro, aponta o indicador para o semáforo, para que eu perceba, finalmente, que o sinal está fechado para nós, que queremos cortar à esquerda.

Um urbano e outro delicado.

Mas a coisa não fica por aqui. Numa bifurcação em que há espaço para três fachas, pode cortar-se à esquerda ou à direita. Um tipo que podia perfeitamente aproveitar ainda o “verde” permitido pelo laranja, para-me exactamente no meio sem me deixar perceber se quer virar à direita ou à esquerda. Dou-lhe uma buzinadela tremenda. Olha para mim com cara de espanto. Faço os gestos que lhe pretendem explicar que nem andou para a direita nem para a esquerda. Olha para a mulher que lhe diz que tenho razão ou lá o que é que ela lhe disse- podia simplesmente ter sido: deixa-o que é um atrasado mental. E depois aguarda e faz-me aguardar pela abertura do sinal.

O pior foi quando uma criatura estava a tentar arrumar o carro, criando a forçosa fila de carros. Nem para cima nem para baixo. Um cidadão vai mesmo para o meio da estrada dar indicações. O veículo da frente não consegue ultrapassar, por que tem a passagem vedada pela pessoa. Eu apito. O condutor do veículo da frente acha que estou a apitar para ele. Gesticula. Aponta para o carro da frente. Eu grito a dizer-lhe que era para a criatura que estava no meio da estrada.

Entretanto, atrás de mim um veículo apita. Olho pelo retrovisor. Um indivíduo sai do carro. Dirige-se a mim.

Baixo o vidro.

Dou-lhe um tiro.

12 Out 2018

Verões

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]stes dias de calor abrandam o dia. Mesmo o vento nas ruas que lhe estão expostas é quente. Ou então não mexe uma palha. Percebe-se a lentidão dos gestos como uma tentativa de arrefecimento. O mais pequeno gesto convoca uma libertação energia. Apesar da inércia destila-se. O céu azul e as praias lotadas atestam a persistência do verão no outono. Outrora, havia um mundo vivido pelas férias grandes, início de anos lectivos, reencontros. Há quem nunca tivesse saído de anos escolares. Talvez só saia desse ritmo anual quem não tenha contacto com escolas, por não ter filhos.

A pujança do verão impõe-se, ainda. Agora, pelas suas características meteorológicas. Ou alguém nos traz os verões passados. Os verões da infância eram cheios de noites de calor insones, antecipando manhãs de praia e sestas a seguir ao almoço. Os da juventude eram dias e noites sem amanhã, com os ruídos da idade, céu estrelado, romance, feliz ou infeliz, pequenos almoços nas padarias de um qualquer local e dias mal dormidos no parque de campismo ou, pior ainda, na praia.

Também podia haver o resguardo. A antecipação de um ano lectivo particularmente exigente suscitava a leitura. As tardes desses verões passadas no campo ou na praia tinham o ritmo voraz das leituras, variavelmente feitas de pé ou deitados, gramática, poesia, romance. Acompanhada de café com limão e gelo lia-se a Crítica da Razão Pura de Kant a inventar as condições de possibilidade da experiência.

Há os verões da doença de familiares. Há os verões com as mortes de familiares, no princípio, meio ou fim. Há mortes que se antecipam e outras, não. Esses verões são oceanos em que não se mergulha. Atravessa-se a estação sem estar nela. O alívio vem com as primeiras chuvas, os primeiros dias frios, quando se passa a usar a roupa de inverno e se arruma a roupa de verão. Delineia-se, contudo, sempre o mesmo verão, um verão que está inscrito em nós pelo universo, pelos dias grandes, pelo calor, pela luz. Ou talvez seja o próprio princípio, a própria ideia de princípio. O primeiro ano cósmico inculca-se-nos nas nossas cabeças. Não o esquecemos e não podemos lembrar-nos dele, vivido o tempo primordial como o tempo pré-natal, sem verdadeiramente cá estarmos. Mas essa inscrição lança-nos e projecta-nos para um futuro a haver numa outra possibilidade.

E alguém aparece. Não é alguém em abstracto nem é geral. É alguém que tem ainda em si inscrito o verão e põe em prática ainda o da sua infância. É um verão de dias longos de praia, banhos atlânticos, travessias de rios, fins de tarde, jantares à conversa e, quando é noite, abraços e beijos. E se achássemos que tínhamos tido verões, afinal não os tínhamos tido. Foram verões só literários, ficções de possibilidades, atestados pelo que cremos ser os verões dos outros. Mas é possível que, tarde na vida, sem contar verdadeiramente com nada surja como uma brisa ou a leve corrente do rio a encher, um verão partilhado, na verdade, inaugurado por um outro aí comigo.

5 Out 2018

Diário incerto

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]verbo ser. O mais universal poema da língua portuguesa: eu sou, tu és, ela, ele, isso é, nós somos, vós sois, elas, eles, essas coisas são. Solipsismo lírico diz o poeta. Rumo a sul. Há tantas coisas para fazer: máquinas de lavar. Levar a mãe ao médico. Uma palavra desconhecida que se vai ver ao dicionário. Um almoço quotidiano. E mais nada, mais nada. Lembro-me daqueles dias. Onde estão os amigos? Abrir um livro. Ter de escrever vezes sem fim. Quando não há que escrever, copia-se quem escreve. Uma música imitada mal na guitarra. Uma canção ecoa no vento de verão.

Dia 9

Vejo-te descer uma rua. Tenho a certeza de que tenho: solipsismo lírico, sul, máquinas de lavar, médicos, palavras desconhecidas, almoços, dias, amigos, livros, fins, escrever. Há uma música que ecoa. É verão. Uma canção, talvez.

Dia 8

Não ouço música há anos. Os dias passam com um problema linguístico. E, depois, vem a velhice. Vem a doença. Não se sabe o que fazer: ante a velhice nem a doença. “Agora, é que ela me deu”. É um sítio banal. Se calhar, uma porta de elevador. “Agora, é que ela me deu!”. “Ela” era a morte. Vamos ao rio. No rio, vemos Alcântara mergulhar no oceano. Bebemos uma água. Queres conversar. O teu melhor amigo está a ir-se. Choras. Olho para ti.

Dia 7

Não queres comprimidos. “Se aparecer uma miúda que ames, casa com ela”. Não vias nada. Às vezes, uma matrícula.

Dia 6

Aparecias-me atrás de mim. Acordavas três vezes durante a noite. Tomavas banho e escanhoavas-te. Perguntava-te por que razão. Voltavas para a cama. Ia resgatar-te vezes sem conta. E era o banho. Ensaboava-te. E o cabelo branco! Depois, dizias que não querias ir para o Hospital de INEM. Íamos de táxi.

Dia 5

Passou muito tempo. Querias uma cerveja. Dei-te muitas cervejas. Bebias um golo. Querias ir até sul. E fomos. “Quando encontrares um amor, diz para vir”. “Não importa nada. Vais encontrar um amor.” A tortura da gota é tremenda. Não queremos ficar fechados num quarto estreito. Não podemos bater em ninguém nem fugir. “O avô ama-te”.

Dia 4

Queria ser tudo: soviético. Fui alemão. Fui todas as nações. Cantei o nosso hino. Dizia: 10, 9, 8, 7, 6, 5. Onde estás? Pedias o Andy. Era atrás de mim. Vinhas de gravata. Íamos comprar o Público e o Diário de Notícias. Às vezes, Jogo. Se eu te perdia, atravessavas a Junqueira. Acenavas. “Estou aqui”! Dizia-te qualquer coisa como se tu me dissesses a mim. Regressávamos a casa ou o que era a casa.

Dia 3

Já te mijavas todo. Não sabias onde era o Norte da tua cama. De manhã, dizias-me: “vamos, então.” Depois, perdeste-te. Só se perde quem se encontrou. Tinhas pena de não ter nem namorada, muito menos mulher. Os teus filhos adoram-te.

Dia 2

Há uma rapariga que desce uma rua. Anos depois de teres morrido. Era, afinal, da mesma rua onde te prenderam. Tu que perdoaste quem te denunciou. Não foi aí que me declarei. Mas ela ficou tudo para mim. Não te vou explicar como ela é. É por pudor. Ela é linda. Mas sabias que seria assim. Ela tem um carácter indefectível. Ela desce uma rua com o “telefone portátil”, como dizias. Apoia tudo no lado esquerdo. Tem o braço direito livre. Sorri como ninguém. Faz-me lembrar a vida. Tu perdeste a tua. Eu gostava de ter a minha. Ela desce como ninguém. E, parece-me, encanto-me. Não há ninguém como esta miúda. Sabes: sou terno. Mas não importa. Talvez…

Dia 1

Passaram-se muitos anos. Mas não a fome. Não, o amor. Se calhar, chego a tempo. E chego àquela criatura.

Na rua onde vivemos em tempos diferentes, nos anos em que não podíamos ter-nos conhecido, em todo o tempo em que fomos sem sermos um com outro: esperávamos. E esperamos e esperamos. Não há nada que eu possa fazer.

E eu amo-a. E ela ama-me.
Seguimos o melhor que pudermos.
Não morreste nem o pai dela.
No céu, bebem um copo.
Eu amo-a como ninguém.

1 Out 2018

Como quem se olha ao espelho

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo pode dar-se o reconhecimento do outro, como lhe chama a filosofia um “outro si próprio” (self)? Platão formula este problema. Arranca-o à simplicidade de se achar que é fácil ou difícil, possível ou impossível conhecer alguém. Põe no núcleo duro do problema a reciprocidade. Sou eu quem se reconhece como um “si”, como portador da “vida”, do ser universal que escancara todos os tempos havidos e a haver e todas as pessoas de todas as gerações passadas e futuras? Como posso, então, reconhecer o outro como outro, isto é, como portador da vida universal e a fortiori, à escala mundial, em si mesmo como outro e como um “si próprio” para si? Sou eu quem está projectado no outro que eu reconheço? É o outro que existe em mim e quem o outro aí comigo também pode reconhecer-me como um duplo de si próprio? São os amigos uma multiplicação dos mesmos nos outros como diferentes filhos são o mesmo mas multiplicados pelo seu número? Pode “isto” passar-nos despercebido, isto é, que sou quem existe no outro e que é o outro que existe em mim, como diz Platão no Fedro dos enamorados, que cada um está apaixonado por si no outro, mas isso mesmo, a paixão por si no outro lhe passa desapercebidamente?

O reconhecimento da alma (psychê) uma outra palavra para o si próprio é compreendido analogicamente pelo facto do quotidiano de nos vermos ao espelho. Tal como um olho se pode ver a si próprio espelhado no olho do outro para quem estamos a olhar também o próprio de nós poderá ser reconhecido ao olhar-se para o próprio do outro, naquela dimensão em que nós podemos ficar plasmados no olhar do outro, no olhar de preocupação que inspiramos no outro, no olhar de amor de que somos susceptíveis e podemos inspirar no outro. Um olho pode ver-se a si mesmo no seu reflexo na pupila de um outro olho. De modo semelhante, uma alma pode conhecer-se a si mesmo na sua “reflexão” na dimensão mais complexa do si próprio no outro. Além do mais, um olho pode ver-se a si mesmo melhor ainda na sua reflexão num espelho. Uma alma, de modo semelhante, pode conhecer-se a si mesma quando usa o melhor dos espelhos reflexivos, e contempla o modo como se encontra refletida em Deus.

Assim, “O rosto da pessoa que olha nos olhos de outra pessoa é mostrado nos olhos da pessoa que se encontra à sua frente, como num espelho, e chamamos isso pupila, pois de certo modo é uma imagem da pessoa que olha. Um olho ver-se-á, enquanto vê o outro olhos nos olhos, sobretudo quando olha para a parte mais perfeita dele, aquilo mesmo com o qual vê. E assim também se verá a si. Mas não pode olhar para nenhuma outra parte do outro, nenhuma parte do seu corpo, nem do seu rosto. Terá de ver para lá do próprio olhar e enfrentar olhos nos olhos a vida que acontece no outro. Terá de olhar para o que verdadeiramente se assemelha a si, a sua própria vida espelhada na vida do outro diferente de si. Essa diferença é anulada e duas pessoas reconhecem-se como sendo uma da outra: uma e outra projectadas reciprocamente em cada um dos outros.

“E se a alma também vier a conhecer-se a si mesma, certamente deve olhar para uma alma e, especialmente, para aquela região em que ocorre a excelência de uma alma. Porquanto essa parte da existência onde ocorre a sua excelência é assimilada por Deus. Quem olhar para isso e vier a conhecer tudo o que é divino, obterá assim o melhor conhecimento de si mesmo.” (Platão, Alcibíades II)

Conhecer-nos a nós mesmos implica desviar o olhar da imagem da pupila do olho no espelho em frente (e fora) de nós e olhar para aquela região da alma que é mais divina. Então, olhando para Deus e fazendo uso deste mais belo espelho interno e também olhando para a excelência da alma, somos, portanto, muito mais capazes de ver e reconhecer nós mesmos da maneira como realmente somos. Reconhecemos o outro susceptível de Deus. O outro reconhece-nos “capazes de Deus”. Deus é um nome para a possibilidade radical da felicidade no amor de outrem por nós e de nós por outrem.

O outro apresenta-se em si tal como é ao olhar? E nós o que vemos quando olhamos os outros olhos nos olhos? Vemos os outros simplesmente? Os outros o que vêem, quando nos vêem? Vemos nós simplesmente os outros ou vemo-nos lá a olhar os outros sem nos apercebermos de que somos nós próprios lá? E os outros o que vêem de nós? Não se verão também a si mesmos em nós, não percebendo esse facto, achando que nos vêem tal como somos em nós próprios? Não há nenhum acontecimento isolado de si. Ou, antes, cada pessoa percebe-se no seu isolamento apenas, porque percebe a distância a que se encontra de toda a outra pessoa. Mas o milagre acontece e todo o reconhecimento recíproco traz consigo esse maravilhamento de que o outro é o nosso próprio si e nós somos o próprio si do outro. Passar-nos-á despercebido a maior parte do tempo da vida a respeito da esmagadora maioria da humanidade, mas a hipótese filosófica do reconhecimento do outro como outro, da vida a acontecer no outro, implica crescermos à altura em que vemos a vida de que somos portadores, universal, a fortiori à escala mundial e vital.

7 Set 2018

Melancholia revisitada

[dropcap style=’circle’] F [/dropcap] austo na versão de Thomas Mann vende a alma ao diabo para obter anos livres de criação. Em troca, o compositor Adrian Leverkuhn não podia amar. Nem sequer “abrasar-se”. Era paradoxal, segundo uma das projecções da configuração do diabo. O diabo inspira a luxúria, a violência, o priapismo. O próprio casamento para o apóstolo Paulo era a segunda melhor opção. Melhor seria que nunca ninguém vivesse com outrem. O celibato era a melhor opção para o cristão militante. O exercício da castidade é o método.

Fausto, Adrian Leverkuhn, não chega a fazer bem a promessa. Facto é que durante 24 anos, qualquer forma de amor que o ligue a um qualquer ser humano: a uma mulher ou a um sobrinho, acabaria sempre por abortar. Ninguém fica impune a um coração partido. Como se sobrevive a uma decepção romântica? Uma mulher amada que faça a vida longe com outro homem com quem teve filhos é uma abstracção concreta. Não é nunca ninguém. É sempre alguém com o volume espesso do inatravessável. É compreendida com o coração como uma transparência absolutamente opaca. Uma criança amada que tivesse morrido ou fizesse vida fora das nossas vistas é o quê? É um vulto com uma biografia e uma cronologia que passam ao largo da nossa vida. Revisita-nos de quando em vez ou sempre, na realidade ou em sonho, mas não tem a espessura que o quotidiano dá às relações humanas.

O pacto de Fausto com o Diabo é feito, quando o artista é jovem. Na versão de Goethe é completamente diferente. Fausto é um homem velho que se apaixona por uma rapariga muito jovem. Compreende-se fora de prazo para o amor. A sua compleição física não é erótica nem sensual para a menina. Vende a alma ao diabo em troca de tempo. O tempo agora é de juventude e é um tempo para amar. O sábio abdica de tudo para regressar a um tempo em que era possível recomeçar de novo. Este recomeço é feito com a certeza de que não esbanjará de novo a vida com o estudo. Será para ter uma vida amorosa, banal para o teólogo e o filósofo, burguesa para o artista.

Não nos enganemos, vivemos a projecção existencial que compreende a vida a partir da situação esboçada por Thomas Mann. Talvez Nietzsche lhe sirva de modelo. E poderá mesmo servir, porque na sua biografia há elementos importantes que o deixam na situação de Fausto. Não se sabe se terá sido ou não correspondido. Não terá sido de certeza correspondido por quem quis ter e com quis ser, pressupondo que teria tido o talento para ser marido. As vidas fora da ordem da normalidade não são compatíveis com nenhuma forma de amor, não pelo menos aquela forma de amor que faz do outro a representação do tudo que nos diz.

O ricochete dessa impossibilidade não dá a paz da neutralização. Dá outra coisa. Se todas as acções ficam em quem as pratica, a renúncia ao amor é a mais poderosa das acções. Não se rejeita toda a gente, nem todas as mulheres, nem todas as crianças, nem todas as pessoas em geral. Só aquelas que nos podem tornar escravos delas. É que a renúncia ao amor que tem como objectos amores efectivos, reais, poderosos, violentos, traz consigo o poder criativo. É desse poder criativo que vive o sacerdote, o artista, o político, o poeta, o filósofo.

Sem querer pode ter-se feito o pacto. É-nos concedido tempo, muito tempo. Mas o pacto não nos blinda em absoluto. De quando em vez, vem até nós um sonho de amor. Como teria sido se tivesse ficado com alguém para ter sido a outra versão de mim próprio?

Talvez o Fausto de Goethe seja a versão velha do Fausto de Thomas Mann. Na verdade, quer-se tudo e não se pode ter verdadeiramente nada sempre nem da mesma maneira.

As asas da melancolia, ao baterem, afastam qualquer espécie de vida que tenhamos escolhido, presumindo que a escolhemos efectivamente.

29 Jun 2018

Decisão I

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] partir de determinada altura, deixamos de ter aniversários. Fazemos anos todos os dias. Ficámos, de algum modo, à espera. O que era para nós um projecto vital pode ficar hipotecado. Não tanto relativamente à promessa que temos com a vida, seja nós a fazê-la, seja a vida a fazê-la a nós. Mais relativamente ao meio que escolhemos para ser quem somos. Há muita gente que não terá tido essa possibilidade. Mas eu conheço muita gente que teve. Há alturas em que parece que ficamos desavindos com amigos. Sem sabermos bem por quê. Acontece. A resposta imediata de parte a parte resolve a situação. Não ficam ressentimentos. Voltamos a estar como se não houvessem mal entendidos. Os entusiasmos passados lentamente se tornam cruzes que temos de carregar. Todas as nossas decisões tomadas de ânimo leve ou difíceis abrem horizontes temporais que podem ser de longo prazo. Mesmo que achemos que foram acertadas no momento da escolha, a partir de determinada altura na vida, pensamos o que teria sido se não as tivéssemos tomado. Podemos pensar que não havia alternativa, mas o resultado que é esta vida, a única que temos, parece, se não, negativo, pelo menos difícil. O modo de vermos as coisas pode ter sido o do ultimato. A decisão podia ter parecido inevitável. Mas pensamos sempre se não poderíamos ter esperado mais um dia, se não poderíamos ter visto “melhor” as consequências das nossas acções: do sim e do não. De algum modo, parece que podemos ter cedido a tentações: a do prazer a que dissemos sim e à da fuga ao sofrimento a que dissemos não. Sabermos, ainda assim, se não foi uma decisão motivada por princípios “patológicos” como Kant lhes chamava: por um lado, a cedência à promessa do prazer, por que nos decidimos como se não houvesse amanhã. Por outro, a fuga à ameaça de sofrimento como se só houvesse um amanhã sem alternativa, difícil de suportar. Em ambos os casos vemos a promessa como o que vai ficar para sempre. Tudo será como é agora no presente. Todo o prazer será bom e cada vez mais frequente e intenso. Por outro lado, todo o sofrimento é visto no presente como a ameaça não anulável de um futuro onde só haverá condenação sem redenção. A racionalidade promete a possibilidade de um escrúpulo da não cedência à primeira dificuldade ou facilidade. Mas como podemos percorrer as nossas vidas na fantasia da imaginação para ver o que efectivamente vai acontecer se ficarmos ou se formos, se partirmos ou insistirmos, se mudarmos ou ficarmos na mesma? É a racionalidade que transcende o prazer e o sofrimento, a promessa e a ameaça, a abertura possível a uma escolha que vai contra todo o prazer e tolera todo o sofrimento, que anula o vigor de promessas e ameaças como futuros aparentes e falsos? E esta elucubração sobre a possibilidade da racionalidade aparece por quê? Pode ela modificar o passado ou antecipar boas resoluções para o futuro? Posso eu ficar sossegado ao ver em retrospectiva as decisões passadas como boas decisões e que tudo estaria pior se tivesse optado pela outra alternativa? E no futuro, poderei eu decidir fora do âmbito do prazer ou do sofrimento e perceber que as coisas já acabaram e eu não sabia ou ainda não acabaram e eu também não sei? Nenhum sossego vem, contudo. Tudo é inquietação, porque achamos que somos o resultado da única alternativa possível. As coisas que fazemos por prazer admitem a abstenção. As que não fazemos por sofrimento admitem a motivação. Em qualquer dos casos, há alturas em que achamos que todas as nossas decisões tomaram o curso errado. Mas a aparência de resolução desta possibilidade cai por terra, quando se multiplicam as decisões no âmbito de todas as frentes da vida.

Tudo é inquietação, porque achamos que somos o resultado da única alternativa possível. As coisas que fazemos por prazer admitem a abstenção. As que não fazemos por sofrimento admitem a motivação.

Só podemos ter uma vida e com ela há uma possibilidade infinita de vida que corre paralela a esta vida. Mas é só na nossa imaginação. Viver todas as vidas de todos os amores possíveis, viver em todos os países que vivemos, ter todos os trabalhos que gostaríamos ter tido, viver todas as aventuras possíveis. E, contudo, só há isto que podemos viver. Mesmo que nos multipliquemos não seremos artistas, sacerdotes, amantes ou lá o que pudemos ter sido e ser. Amamos muitas coisas na realidade e na imaginação, mas haverá um único verdadeiro amor? Porque achamos que é um único o verdadeiro amor e que é o amor a motivação intrínseca para sermos quem somos. Há amores infelizes e amores felizes, amores que dão prazer e outros que são duríssimos. Há assim as pessoas das nossas vidas e as relações que com elas temos e as actividade a que nos dedicamos e que nos definem. Mas que seremos sem essas pessoas todas? O que seremos sem as atividades que são as nossas vidas? O que seremos sem conteúdos? Posso ser sem biografia? Posso ser sem o conteúdo dos dias como se fosse uma tábua rasa de tudo sem nada? E poderíamos viver na indecisão? A não decisão tem consequências também. A angústia invalida até o horizonte em que as possibilidades de decisão ocorrem.

8 Jun 2018

Nietzsche

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ui para Lille. Lá, ao que parece, existe a melhor Faculdade de Filosofia do país, no rasto da estudante que só lhe interessava, afinal, saber dele: está muito bem, por mim nem uma vida chega para tão grande empreendimento. Foi pelos vinte anos que também li a sua poesia numa maravilhosa e única, creio, tradução de Paulo Quintela e até hoje ainda não tenho uma dimensão exacta do choque provocado.

Era assim como se não tivesse tamanho… oxigénio, aquilo era de uma beleza que só com iniciação poderia ser completada. A Teologia pareceu-me a mais directa passagem para ele, independentemente da esfera gnóstica parcialmente oculta nas suas paragens.

Como naquelas máximas: não pronunciar… em vão… sim, eu também não pronunciava o nome dele, no entanto, permanecia em mim uma inquietação de fogo, aquela chama que me prostrava logo que chegava mais perto. Que a beleza é terrível, já Rilke o pronunciara, mas nem sabemos a dimensão de tanto horror dentro do próprio fascínio. Mais tarde, Schiller ajudar-me-ia a repor aquela opressiva sensação, numa obra chamada «Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico», e por ele consegui de novo adentrar-me. Mas, se é certo que um só homem não justifica aparentemente cinco anos de estudos, mais certo é que as paixões juvenis podem acabar depressa. O que pode ser mais próximo disto? Um curso de Vinhos, Enologia. Eu entendo todas as formas de desistência. Até entendo que haja maldições que passam de geração para geração.

Demorei-me a imaginar como seria este ser, em que contexto nasceu, o que seria importante para que tal pessoa fosse possível, quando nasceu, se tinha astro – astro tinha, era de Outubro, 15, Balança, portanto mais intrigada fiquei. Pastores protestantes, aquelas mulheres, mãe, irmã, mas nada disto resolve a indagação. Há naquele homem uma força que sentimos e uma delicadeza que nos surpreende e seduz, há até uma monstruosa galvanização de interditos, uma exasperada riqueza cósmica que não é fácil de expressar seja por quem for. Assim, dele, sempre guardei temor. O que leva um filósofo da sua estirpe a escrever aquela poesia – que posso melhor avaliar do que a sua carreira de filósofo – pois que geralmente são até posições que não raro se antagonizam. E é o Nietzsche poeta que me interessa aqui ressalvar. E mais, é destas matérias e cursos tão em desuso que nos interessa esclarecer pois que sem eles pomos em causa a nossa própria acção civilizadora.

Lembro-me sempre de Lou Salomé e do primeiro encontro entre ambos numa Catedral onde disse isto: de que estrelas tão belas caímos!? Lou achou aquilo muito pomposo e sorriu; depois, ele no grupo foi um complexo elemento tendo-se apaixonado por ela, o que o fez afastar-se de forma um pouco revanchista. A sua voz era estranha e mesmo os seus alunos mencionavam tal incómodo mas sem dúvida que a sua presença neste grupo foi das coisas boas que o mantiveram, não havendo no entanto uma opinião consensual ou debatida a seu respeito entre todos. Ele continuava em tudo demasiado formal: este homem, que enlouquecerá, estava trajado de uma protecção que parecia não o identificar. Começou como filólogo, foi crítico cultural, e até compositor, mas é a sua dicotomia que o toma, Apolíneo versus Dionisíaco e a debandada da morte de Deus, o seu niilismo que muitos insistem em dizer que não é, e toda a escrita que raia o paranormal. Estudar Nietzche, reconheço que seja até um exercício que requeira grande estofo moral e uma vida de quietude, pois que tudo ali está em chaga, no limite, na transcendência e no descrédito profundo da sua própria exaltação trágica. E se a música o faz ainda compositor prussiano, a inimizade com Wagner torna a melodia mais patética. Desiludido e ferido, ele arrefece à medida que passam os anos. Controverso, brilhante, e por fim frágil, a sua saga é sem dúvida a de um grego, a do antigo professor de crítica textual. Mas aqui releva-se o poeta imenso que foi, a natureza alquímica de uma danação, a beleza indómita e a incontornável grandeza da sua alma. Ele afirma que o seu estilo é uma dança, já em Zaratustra o reafirmara: Vede como me sinto leve, vede voo, vede sobrevoo, vede! Há em mim um Deus que dança!

Ele é consciente da enorme distância que o separa de tudo, de todos, e escreve desassombradamente, intensamente, sem êxito visível pois que pensa que a distância a que se encontra o invisibiliza. Ele não pára de trabalhar arduamente, da forma que sabe, e colapsa, talvez de esgotamento nervoso, enlouquece, eletrocutado pela energia que transporta. Sabe-se vindouro, muito para lá do tempo da sua marcha. Mal interpretado mais tarde por aqueles que não sabem distinguir, por esses maus artistas que desejam um palco maior, e associado a afrontas das quais o seu sentido visionário teria desconhecido o grosseiro equívoco: tampouco me agradam esses novos especuladores em idealismos, os antissemitas que hoje reviram os olhos de modo cristão-ariano-homem-de-bem, e através do abuso exasperante do mais barato meio de agitação, a afectação moral, buscam incitar o gado de chifres que há no povo.

Vontade do Poder e a roda gigante do Eterno Retorno guiam alguma da sua marcha como relâmpagos, e o que faz a família não nos deve interessar, se um homem se encontra em registos tais. Ainda hoje nos perguntamos quem pode acolher gente assim em caso de verdadeiro colapso, para onde irem, quem os tratará. Que entendem os outros deles? O que lhes aconteceu ao certo? Vemos como é profunda não só a eternidade mas também o abismo. Por isso fiquei de certa forma aliviada quando Lille terminou nos planos peregrinos de uma jovem mulher que deve sem dúvida dedicar-se a outras coisas. Não há cursos sobre Nietzsche, seria como ir estudar os Livros Sagrados em frases exegéticas, uma vida só não dá para isto. Sem este episódio, também eu, que não falo do que não sei, e pondo-me sempre na posição de que sei pouco, ousaria pronunciar em vão tal nome.

Ressalve-se «Poemas em Prosa» como a mais impressionante força poética que me foi dada sentir, sentir… não sei se isto é sentir, estamos para lá das sensações, é certamente aqui acrescentado ao registo do entendimento uma área desconhecida que perdura como se antevíssemos mais Homem para lá das barreiras da sua própria definição. Lille fica para trás, ele, que tanto amava França e Itália e teria certamente esse fundo meridional que tantos de nós não soubemos ver. Era esse meio-dia a sua hora, o tempo sem sombra, o seu desassombro. A noite para mim?… Mantém-te forte, meu valente coração! Não perguntes: por quê?-

É o poema infindo de um Pastor cheio de altura, quando desce traz os decálogos, mas o cume é a sua Casa, a sua mais notória natureza.

15 Mai 2018