Editorial

Vivemos tempos em que os conceitos mais reaccionários e retrógrados encontraram meios de sair dos armários onde a racionalidade da segunda metade do século XX, na sequência da II Guerra Mundial, os havia forçado a ocultar a sua estranha malvadez. Infelizmente, com o advento das redes sociais, assistimos ao regresso impoluto e desbragado dos discursos e das práticas fascistas, racistas e homofóbicas. Na “civilizada” Europa, berço dos “direitos humanos”, um país membro de pleno direito da União Europeia acaba de promulgar uma lei que distingue cidadãos tendo em conta as suas preferências sexuais. Ou seja, assistimos a uma regressão ética que julgávamos impossível.

O Hoje Macau entende que a sexualidade de cada um a cada qual diz respeito. Afinal, referimo-nos a comportamentos recorrentes, constatáveis ao longo de toda a História e em todas as culturas, que não vale a pena mais omitir ou reprimir, cuja existência é criminoso não reconhecer. Assim sendo, a sociedade em geral e as leis mais não devem fazer que proporcionar a cada cidadão os mesmos direitos, independentemente das suas escolhas privadas. Não podemos discriminar, não devemos marginalizar, não temos o direito de excluir seja quem for pelas suas opções sexuais ou de género, desde que estas não interfiram com a liberdade alheia.

Todos sabemos que na RAEM existe uma significativa e etnicamente transversal comunidade LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexuais) que não vê reconhecidos os seus direitos cívicos, como o casamento, por exemplo, e se vê forçada a existir na sombra como se qualquer forma de amor, relação sexual ou escolha de género pudesse acarretar alguma “vergonha”.

Pelo contrário, vergonhosas, hipócritas e de dúbia motivação são a discriminação e a violência que sobre essa comunidade alguns pretendem exercer. É também tempo de aqui algo mudar e o mais rapidamente possível. Neste sentido, desafiamos o Governo da RAEM, bem como a República Popular da China, a reconhecer plenamente os direitos de todos a uma plena cidadania.

Por tudo isto, o Hoje Macau altera nesta edição as cores do seu cabeçalho, juntando-se assim a uma campanha internacional de repúdio à homofobia, de solidariedade com as pessoas LGBTI e de denúncia dos ataques de que são alvo.

28 Jun 2021

Eleição no condicional

Tendo em conta que a pandemia de COVID-19 ainda não está controlada, penso que ninguém pode garantir que a 32ª edição dos Jogos Olímpicos da era moderna, com abertura agendada para 23 de Julho, em Tóquio, se possa vir a realizar.

Pelo mesmo motivo, as eleições para o Conselho Legislativo de Hong Kong, inicialmente marcadas para 2020, foram adiadas para 19 de Dezembero de 2021. Quanto à realização das eleições para a 7.ª Assembleia Legislativa, marcadas para 12 de Setembro de 2021, acredito que tudo irá depender da vontade de Deus e dos esforços concertados dos residentes e das equipas de saúde no combate à pandemia.

A realização das eleições para a 7.ª Assembleia Legislativa vai depender da evolução da situação pandémica. Mas os 12 candidatos que concorrem para ocupar o lugar dos 12 deputados eleitos por sufrágio indirecto, serão inevitavelmente eleitos. Não haverá factores externos que afectem esta eleição porque existe apenas uma comissão de candidatura para cada um dos cinco sectores que têm capacidade para propôr candidatos. Por outras palavras, na ausência de competição, a menos que a Península de Macau seja tragada pelas águas, mesmo que surja uma variante de COVID-19 mais letal, os 12 candidatos serão definitivamente eleitos. Por outo lado, os 7 deputados que serão nomeados por despacho do Chefe do Executivo, vêm evidenciar a eficácia da estrutura política com predominância do poder Executivo, se comparada com o novo sistema eleitoral de Hong Kong. Neste contexto, “Macau governado por patriotas” será o resultado inevitável das eleições para a 7.ª Assembleia Legislativa de Macau. É expectável que o progresso democrático em Macau seja feito gradualmente, no entanto temo que esse progresso dificilmente se venha a manifestar com eleições por sufrágio indirecto e nomeações efectuadas pelo Chefe do Executivo.

Posto isto, as eleições por sufrágio directo são a única possibilidade de determinar o resultado final das eleições para a 7.ª Assembleia Legislativa. No entanto, não é tarefa fácil eleger candidatos que verdadeiramente representem e sirvam o povo.

Macau é conhecida como “uma sociedade assente em associações”, e algumas figuras políticas que as representam podem frequentemente usar vários meios, facultados por essas associações, para, em período eleitoral, aliciarem a população com descontos em refeições, em viagens, presentes, vouchers, etc, e darem uma imagem favorável da sua agremiação. Desde que não haja um apelo explícito ao voto num candidato, ou oposição explícita no voto em qualquer outro, este tipo de presentes são aceites no contexto da campanha eleitoral para a 7.ª Assembleia Legislativa.

Recentemente, um grupo entregou uma carta à Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa solicitando que se abrisse um inquérito para apurar se estas ofertas feitas pelas Associações constituem uma violação à Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa da RAEM. Contudo, desde que a associação em causa cumpra os requisitos do Comissariado contra a Corrupção, no que respeita a transparência eleitoral e actue dentro dos limites da lei, penso que será muito improvável vir a ser condenada.

Muitos acontecimentos são determinados pelo povo, mas este resultado eleitoral possivelmente não será um deles. A Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa, recebeu 27 pedidos de reconhecimento de constituição de comissão de candidatura, dos quais 22 para o sufrágio directo, até à data limite (15 de Junho) para a apresentação do pedido de reconhecimento de constituição de comissão de candidatura aos sufrágios directo e indirecto das eleições. Ninguém pode prever os resultados eleitorais, e mesmo que tenha havido menos pedidos de reconhecimento de constituição de comissão de candidatura ao sufrágio directo este ano, não quer dizer que o antagonismo seja menos intenso.

Durante uma eleição, independentemente dos meios que são utilizados, o resultado será negativo se a equidade, a justiça e a integridade tiverem sido violadas. Para ficarmos a saber qual é a vontade de Deus, basta ouvirmos a voz do povo.

25 Jun 2021

A oportunidade na crise

“The Chinese use two brush strokes to write the word ‘crisis.’ One brush stroke stands for danger; the other for opportunity. In a crisis, be aware of the danger-but recognize the opportunity.”
John F. Kennedy

 

Os negócios não funcionam no vácuo, por isso a sua história está ligada à nossa história social mais ampla. A pandemia revelou e acelerou tendências mais amplas na cultura e política, porque é de acreditar que uma geração de mudanças empreendidas em nome do capitalismo minou o seu sistema, e o que podemos fazer a esse respeito. Esta tem sido uma crise mundial com duas teses. Primeiro, o impacto mais duradouro da pandemia será como um acelerador. Apesar de iniciar algumas mudanças e alterar a direcção de algumas tendências, o principal efeito da pandemia tem sido o de acelerar a dinâmica presente na sociedade. Em segundo lugar, em qualquer crise há oportunidades; quanto maior e mais perturbadora for a crise, maiores serão as oportunidades.

Contudo, o optimismo em relação à segunda tese é temperado pela primeira pois muitas das tendências que a pandemia acelera são negativas e enfraquecem a nossa capacidade de recuperar e prosperar num mundo pós-COVID-19. Há um ditado atribuído a Lenine de que “Nada pode acontecer durante décadas, e depois décadas podem acontecer em semanas”. Não foi Lenine, mas sim o deputado escocês George Galloway que o parafraseou, com a típica brevidade escocesa, algo muito mais redondo e obtuso o que Lenine disse em 1918, após as mudanças radicais operadas pela sua revolução. Este tema, décadas em semanas, está a ser abordado na maioria dos sectores e facetas da vida.

O comércio electrónico começou a criar raízes em 2000. Desde então, a quota do comércio electrónico no comércio a retalho tem crescido aproximadamente 1 por cento todos os anos. No início de 2020, aproximadamente 16 por cento do comércio a retalho era transaccionado através de canais digitais. Oito semanas após a pandemia ter atingido os Estados Unidos a 12 de Março de 2019, esse número saltou para 27 por cento e não vai voltar atrás. Registamos uma década de crescimento do comércio electrónico em oito semanas. O período para o social, empresarial, ou pessoal é de dez anos e considera-se rápido. Mesmo que a sua empresa ainda não esteja presente, o comportamento do consumidor e do mercado assenta agora no ponto 2030 que é a linha de tendência positiva ou negativa.

Se a sua empresa tinha um balanço fraco, é agora insustentável. Se está no retalho essencial, os seus bens são mais essenciais do que nunca. Se está na venda a retalho discricionária, está mais arbitrária do que nunca. Na sua vida pessoal, se estava a brigar com o seu parceiro, as suas discussões são piores. As boas relações têm agora mais dez anos de história e boa vontade. Durante décadas, as empresas investiram milhões de dólares em equipamento para reuniões virtuais, na esperança de diminuir as distâncias. As universidades adoptaram a contragosto ferramentas tecnológicas, incluindo o “Blackboard” no início dos anos de 1990 para acompanhar o ritmo do mundo exterior. As empresas de comunicação publicaram numerosos anúncios com jantares familiares virtuais, médicos a ver pacientes, e estudantes a aprender com os grandes professores do mundo sem saírem da sua cidade natal. E durante décadas, não aconteceu grande coisa.

Os sistemas de videoconferência multimilionários não funcionaram, e os professores resistiram a qualquer tecnologia mais complexa do que o “Dry Erase” ou o “PowerPoint”. O “FaceTime” e o “Skype” fizeram incursões nas nossas comunicações pessoais, mas não atingiram a massa crítica. Depois, em semanas, as nossas vidas mudaram “online” e os negócios passaram ser feitos à distância. Cada reunião de negócios tornou-se virtual, cada professor tornou-se um educador “online”, e as reuniões sociais passaram para um ecrã. Nos mercados, os investidores calibraram o valor das empresas problemáticas, com base não nas semanas ou anos seguintes, mas em pressupostos da posição da empresa em 2030.

A Apple levou quarenta e dois anos para atingir o valor de um trilião de dólares, e vinte semanas para acelerar de um trilião para dois triliões de dólares (Março a Agosto de 2020). Nessas mesmas semanas, a Tesla tornou-se não só a empresa automóvel mais valiosa do mundo, mas mais importante do que a Toyota, Volkswagen, Daimler, e Honda combinadas. Durante décadas, os presidentes de câmara das grandes cidades e os responsáveis pelo planeamento têm apelado a mais pistas para bicicletas, acesso pedonal, e menos carros. E durante décadas, o tráfego, a poluição atmosférica e os acidentes congestionaram as nossas ruas e os nossos céus. Depois, em semanas, os ciclistas tomaram conta da estrada, as mesas de jantar ao ar livre brotaram, e os céus desobstruíram.

As tendências negativas podem ter acelerado a um ritmo maior. Durante décadas, os economistas têm vindo a advertir que a desigualdade económica se estava a aprofundar, enquanto a mobilidade económica estava a diminuir.

Uma economia com tendências subjacentes incómodas transformou-se numa distopia. Quarenta por cento dos americanos, teriam dificuldade em cobrir uma despesa de emergência de quatrocentos dólares. Mas uma expansão económica de onze anos sem precedentes significou que a maré nunca se esgotou. Depois, nos primeiros três meses da recessão Covid-19 os Estados Unidos perderam mais emprego (13 por cento) do que perderam nos dois anos da Grande Recessão (5 por cento). Metade das famílias americanas tiveram pelo menos uma pessoa a perder um emprego ou a sofrer um corte salarial devido à pandemia.

As famílias com rendimentos inferiores a quarenta mil dólares foram as mais atingidas e cerca de 40 por cento foram despedidas ou dispensadas no início de Abril de 2020, em comparação com apenas 13 por cento das famílias com rendimentos superiores a cem mil dólares. O mundo girou mais depressa, para melhor ou pior. As crises trazem oportunidades. É um cliché que tem uma razão e o presidente John F. Kennedy fez dele um dos seus principais discursos da sua campanha. O ex-vice-presidente dos Estados Unidos e Prémio Nobel da Paz, Al Gore, utilizou-o no seu discurso de aceitação do Prémio Nobel. A palavra chinesa para crise consiste em dois símbolos, um que significa perigo, o outro, significa oportunidade. Que oportunidades nos esperam no post-COVID-19? A pandemia tem um lado bom que pode rivalizar com o tamanho da “nuvem”. A América tem uma maior taxa de poupança e menos emissões e três das maiores, e mais importantes categorias de consumidores (saúde, educação, e mercearia) estão num estado de ruptura sem precedentes e, possivelmente, de progresso.

Embora a esmagadora maioria dos hospitais devido à COVID-19 tenha sido a história principal, a narrativa mais duradoura pode ser como os outros 99 por cento das pessoas que tiveram acesso aos cuidados de saúde durante a pandemia sem pôr os pés num consultório médico, muito menos num hospital. A adesão forçada à telemedicina promete uma explosão de inovação e abre uma nova frente na guerra contra os custos e os encargos do fracturado sistema de saúde americano. Da mesma forma, o abraço forçado da aprendizagem à distância, por mais desajeitado e problemático que tenha sido, poderia catalisar a evolução do ensino superior, produzindo custos mais baixos e taxas de admissão mais elevadas, e devolvendo à aptidão o seu papel de lubrificante para a mobilidade ascendente dos americanos.

Ainda mais fundamental do que a educação, a nutrição está no precipício da revolução, se a dispersão da mercearia através da entrega criar oportunidades para uma distribuição mais eficiente, maior alcance para alimentos frescos, e adopção de bens locais. Por baixo destas mudanças, a chegada à idade adulta numa crise mundial tem o potencial de amadurecer uma geração com um renovado apreço pela comunidade, cooperação e sacrifício; uma geração que acredita que a empatia não é fraqueza, e que a riqueza não é virtude. As oportunidades não são garantias. De facto, a história popular sobre a palavra chinesa para crise não é muito correcta. O primeiro caracter significa perigo, mas o segundo caracter é melhor traduzido como uma conjuntura crítica. Uma encruzilhada. Para os compatriotas de Lenine, as transformações radicais de 1917 também apresentavam oportunidades.

O seu fracasso em aproveitá-las levou a um imenso sofrimento. É fácil acreditar que isso não nos vai acontecer, que “não pode acontecer agora”. Mas consideremos que não há muito tempo (meados do século XX), foram postos setenta e cinco mil cidadãos americanos atrás do arame farpado porque tinham ascendência japonesa. Considerando que nenhum de nós, no início da pandemia, pensou que os Estados Unidos poderiam perder mais vidas por dia para um vírus que outros países (menos desenvolvidos) travaram no seu caminho. A resposta americana a esta crise não inspirou confiança. Apesar de terem mais tempo para se prepararem, gastando mais nos cuidados de saúde do que qualquer outro país, e acreditando que eram a sociedade mais inovadora da história, com 5 por cento da população mundial, os Estados Unidos suportaram 25 por cento das infecções e mortes. Foram necessários os últimos dez anos para criar vinte milhões de empregos e dez semanas para destruir quarenta milhões.

As viagens estão em baixa, os restaurantes estão na obscuridade, a bebida e as vendas de armas de fogo estão em alta. Mais de dois milhões de “Gen Zers” voltaram a viver com os seus pais, e setenta e cinco milhões de jovens vão à escola no meio da incerteza, conflito e perigo Os historiadores podem dissecar os passos errados que os trouxeram até aqui. A causa mais profunda do seu fracasso é clara. O envolvimento da América na II Guerra Mundial durou três anos e oito meses, e quatrocentos e sete mil americanos pereceram. Apesar do “stress financeiro” do tempo de guerra, foi pedido aos agregados familiares que esvaziassem os seus bolsos e comprassem títulos de guerra. Os fabricantes remodelaram as suas fábricas para construir bombardeiros e tanques, e foi imposto um limite de velocidade “Vitória” a quarenta quilómetros por hora a nível nacional para poupar combustível e borracha para o esforço de guerra. Preparam estudantes e professores do ensino secundário que deram as suas vidas pela liberdade.

Após a guerra, investiram nos seus inimigos e produziram mais riqueza e prosperidade do que qualquer sociedade até à data. Durante algum tempo, distribuíram de forma mais justa do que nunca. Mudaram o local onde viviam (subúrbios) e como viviam (o carro e a televisão), e começaram a contar com as suas mais profundas desigualdades de raça e género. As forças americanas lutam no Afeganistão há dezanove anos, e perderam dois mil e trezentos e doze efectivos. O conflito transformou-se em violência que se estende por metade do globo, com mortes de centenas de milhares de civis. Durante esse tempo, eram vistos “slogans” nos veículos utilitários desportivos com autocolantes “apoiem as nossas tropas”, mas não existia dificuldade em encontrar chocolate, ou qualquer outra coisa que se pudesse desejar, na loja ou no telefone. Quanto mais dinheiro ganham, mais baixa é a taxa de imposto, e ninguém pede para comprar um título de guerra. Em vez disso, subcontrataram a guerra a um exército voluntário de jovens da classe trabalhadora, financiado pelas gerações futuras através de um aumento do défice de quase sete triliões de dólares.

O patriotismo costumava ser um sacrifício, agora é um estímulo. Na pandemia, a América e os seus líderes falaram com as suas acções; milhões de mortes americanas seriam más, mas um declínio no NASDAQ seria trágico. O resultado tem sido um sofrimento desproporcionado. Os americanos com rendimentos mais baixos e as pessoas de cor têm mais probabilidade de serem infectados e enfrentam o dobro do risco de doenças graves do que as pessoas de famílias com rendimentos mais elevados. Para os ricos, o tempo com a família, a Netflix, as poupanças, e o valor da carteira de acções aumentaram à medida que as deslocações e os custos diminuíram. Se os Estados Unidos estão a dirigir-se para um futuro de “jogos da fome” ou para algo mais brilhante depende do caminho que escolherem depois da COVID-19.

Um dos aspectos mais surpreendentes da crise da COVID-19 tem sido a resiliência dos mercados de capitais. Após uma breve queda quando o surto se transformou numa pandemia, os principais índices de mercado rugiram de volta. No Verão de 2020, tinham recuperado a maior parte do terreno perdido, apesar de quase duas centenas de milhares de mortes nos Estados Unidos, do desemprego recorde, e de nenhum sinal de que o vírus tivesse recuado.

A Bloomberg Businessweek chamou-lhe “The Great Disconnect” numa reportagem de capa de Junho de 2020 e mesmo os profissionais de Wall Street”, declaram que ficaram “atónitos”. Dois meses mais tarde, na altura em que o artigo foi escrito, o vírus estava a matar mais de mil americanos por dia, e os índices de mercado continuavam a subir. Os índices de mercado podem, no entanto, ser enganadores. A “recuperação” tem sido o produto de ganhos de dimensão exagerada de algumas empresas, nomeadamente as grandes empresas de tecnologia e outros actores importantes.

Não se reflecte nos mercados públicos mais vastos. De 1 de Janeiro a 31 de Julho de 2020, o S&P 500, que acompanha as quinhentas maiores empresas públicas, foi apenas positivo no ano. Mas as empresas do meio, de média capitalização, caíram 10 por cento. E as seiscentas empresas de pequena dimensão que foram seguidas no S&P 600 tiveram uma redução de 15 por cento. Enquanto os meios de comunicação social foram distraídos por objectos brilhantes como grandes índices tecnológicos, um incansável abate do rebanho está bem encaminhado. Os fracos não estão apenas a ficar para trás, estão a ser abatidos. A lista de falências é longa e chocante. As acções “BEACH” (reservas, entretenimento, companhias aéreas, cruzeiros e casinos, hotéis e resorts) desceram em média 50 a 70 por cento. Isto ajuda a explicar o forte desempenho dos líderes de mercado.

A avaliação de uma empresa é uma função dos seus números e narrativa. Neste momento, a dimensão pode alimentar uma narrativa não só sobre como uma empresa irá sobreviver à crise, mas também sobre como irá prosperar no mundo pós-COVID-19. Após a crise, quando as chuvas regressam, há mais folhagem para menos elefantes. Empresas com dinheiro, com garantias de dívida, com acções altamente valorizadas, serão posicionadas para adquirir os activos de concorrentes em dificuldades e consolidar o mercado. A pandemia está também a impulsionar uma narrativa de “inovação”. As empresas consideradas inovadoras estão a receber uma avaliação que reflecte estimativas de fluxos de caixa daqui a dez anos, e com desconto de volta a uma taxa incrivelmente baixa. Os investidores parecem estar concentrados na visão de uma empresa, na sua narrativa sobre onde poderá estar dentro de uma década. É assim que o valor de Tesla excede agora o da Toyota, Volkswagen, Daimler, e Honda combinados.

Isto apesar do facto de em 2020 a Tesla ir produzir aproximadamente quatrocentos mil veículos, enquanto as outras quatro empresas vão construir um total de vinte e seis milhões.

O mercado está a fazer apostas ousadas sobre o ambiente pós-COVID-19, e estamos a assistir tanto a grandes ganhos como a declínios abruptos. No final de Julho de 2020, a Tesla subiu 242 por cento em relação a 2019, enquanto a GM desceu 31 por cento. A Amazon subiu 67 por cento, e a JCPenney faliu. Esta “desconexão” entre o grande e o pequeno, o inovador e o antiquado é tão importante como o fosso mais falado entre o mercado e a economia em geral. Os vencedores de hoje são julgados como os maiores vencedores de amanhã, e os perdedores de hoje parecem condenados. O que se passa com as previsões do mercado de capitais é que elas se autorrealizam, em certa medida.

Ao decidir que a Amazon, Tesla, e outras empresas promissoras são vencedoras, os mercados reduzem o custo de capital dessas empresas, aumentam o valor da sua compensação (através de opções de compra de acções), e aumentam a sua capacidade de adquirir o que não podem construir por si próprios. E há uma quantidade incrível de capital à procura de um lar neste momento.

O governo americano injectou 2,2 triliões de dólares na economia, e devido a algumas decisões políticas terríveis uma enorme quantidade desse montante vai directamente para os mercados de capitais. Assim, as empresas que se estavam a sair bem antes da pandemia beneficiaram notavelmente desta crise mundial. Encontraram fundos disponíveis para absorver as perdas de receitas, enfrentar a concorrência e expandirem-se para as novas oportunidades que a pandemia está a abrir. Entretanto, os seus concorrentes mais fracos foram excluídos dos mercados de capitais e verão as suas notações de dívida serem reduzidas, os detentores das suas contas a telefonarem, e os clientes a ficarem nervosos com os negócios a longo prazo. Há um árbitro não económico para quem perece, sobrevive, ou prospera que é o apoio do governo. As companhias aéreas, por exemplo, não estão em condições de sobreviver a esta pandemia na sua forma actual.

É difícil imaginar um produto mais propício à propagação de um vírus do que um avião. A pandemia acelera o trabalho remoto e evita as viagens de negócios, a vaca a dinheiro da indústria. Além disso, as companhias aéreas têm enormes despesas gerais e dificuldade em reduzir os custos quando as receitas diminuem. Várias pequenas companhias aéreas nacionais, não vistas como campeãs nacionais, e uma série de transportadoras estrangeiras, incluindo a Virgin Atlantic, declararam falência. Mas suspeito de que não veremos uma única grande transportadora dos Estados Unidos a afundar-se, porque as companhias aéreas têm um controlo mortal sobre o Congresso. Em Abril de 2020, o governo deu-lhes vinte e cinco mil milhões de dólares, e é provável que recebam mais. Uma combinação de bons lobistas e pessoas de relações públicas, alta consciência dos consumidores, e uma profunda ligação ao orgulho nacional podem salvar uma indústria, dando-lhe uma linha de vida com capital.

24 Jun 2021

Cartão de consumo de Hong Kong   

O Governo de Hong Kong divulgou no passado dia 18 a forma de funcionamento do Programa de Cartões Electrónicos de Consumo de Hong Kong (ECVP/sigla em inglês). O valor por cartão monta a 5.000 HK dólares.

Qualquer pessoa maior de 18 anos com residência em Hong Kong, anterior a 18 de Junho de 2021, os residentes permanentes e os recém chegados podem registar-se no website ou preencher um formulário em papel para se registarem no ECVP.

Chen Maobo, Secretário das Finanças de Hong Kong, afirmou: “Espero que a emissão de cartões de consumo, carregados com 5.000 HK dólares, possa encorajar os residentes a usarem este meio de pagamento prático e flexível no comércio local, na restauração e nos serviços. Espero também que o consumo cresça e que a recuperação económica de Hong seja acelerada. O ECVP vai incentivar os pequenos e médios comerciantes a adoptarem o sistema de pagamento electrónico e abraçarem novas oportunidades de negócio.”
  
Os residentes de Hong Kong podem optar pelo Alipay Hong Kong, pelo Octopus, o Tap & Go “Take and Stay Reward” e o WeChat Pay HK para receberem os cartões electrónicos, carregados com 5.000 HK dólares. Estes carregamentos serão efectuados em duas fases. Em todas as plataformas, excepto no Octopus, na primeira recebem 2.000 dólares e na segunda 3.000. As duas fases podem ser combinadas. No Octopus, existem três fases, duas com 2.000 dólares e uma com 1.000. As três fases podem ser combinadas.

Os cartões podem ser usados em lojas físicas e em lojas online, em compras e serviços e também em transportes públicos. Não podem, no entanto, ser usados em pagamentos de impostos, de serviços públicos, doações, etc.

Existem algumas diferenças do cartão de consumo electrónico de Macau que vale a pena salientar.

Em primeiro lugar, quem usar o Octopus em Hong Kong recebe dinheiro em três fases. O Governo não impõe restrições à utilização do cartão nem data limite. Ou seja, o utilizador pode decidir como e quando usar o cartão. Se optar por não gastar os 1.000 dólares da última fase, pode cancelar o cartão e guardar esse montante. Esta possibilidade não existe no cartão de Macau. O objectivo do cartão de Macau é a promoção do consumo local. Por isso existe uma data limite para utilização do cartão. Se o valor não for usado dentro da data limite, o remanescente reverte para o Governo. Os residentes não podem levantar o valor que não gastaram nem revertê-lo para as suas poupanças.

Em segundo lugar, em Hong Kong o Governo informa os cidadãos do saldo em cartão através de um SMS. Em Macau, para ter acesso a esta informação é necessário aceder a uma aplicação específica. Este método parece ser mais conveniente.

Em terceiro lugar, a emissão do cartão de consumo com 5.000 HK dólares para revitalizar a economia assemelha-se aos primeiros cartões de Macau. Se o Governo de Hong Kong seguir o plano de Macau, os residentes depois de terem recebido estas injecções de dinheiro, poderão usar os subsídios em pleno. Esta estratégia irá revitalizar a economia de Hong Kong.

Em quarto lugar, para beneficiar deste programa é necessário ser maior de 18 anos e ter residência em Hong Kong antes de 18 de Junho de 2021, ou seja, a data da implementação da medida. A intenção é garantir que o plano abrange apenas residentes da cidade. Há quem afirme que as pessoas deveriam dizer porque motivo não viviam em Hong Kong antes da implementação do plano. Esta abordagem só irá criar mais divisões e conflitos na cidade.

Por último, embora os cartões electrónicos de Hong Kong sejam emitidos de forma faseada, podem ser combinados. A maior vantagem desta modalidade é permitir o pagamento de uma só vez de produtos de valor elevado. Esta possibilidade não existe em Macau onde o limite diário do cartão de consumo é de 400 patacas. Neste aspecto são completamente diferentes.

O cartão de consumo de Hong Kong pretende revitalizar a economia da cidade. A intenção é boa, mas se houver muitas restrições e o montante disponível ficar pelos 5.000 dólares, resta ainda saber se os benefícios que trará à economia irão suplantar as críticas ao plano.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

23 Jun 2021

A internet é um monte de informação falsa

Estamos a viver em Portugal a era da informação desinformada. Cada vez mais a informação que temos é uma aldrabice. Tudo se inventa, tudo se especula, tudo se mente, enfim, o que se passa? Acontece que os jornais portugueses não têm nada de interessante a não ser os recados do Governo que digam respeito à vida das pessoas.

Os jornais existentes apenas contratam miúdos com salários que antigamente nem a um estagiário se pagava e estes passam a vida a sacar informação da internet. As redacções não têm quem saiba da história portuguesa e da internacional muito menos. Gramaticalmente são um zero e os erros são diários. Não são as chamadas gralhas, são mesmo erros de ortografia, de falta de conhecimento da língua portuguesa. A um jovem jornalista foi-lhe perguntado por um familiar o que era uma vacina e para o que servia e ele respondeu que ia ver na internet e já respondia.

A organização do sistema de vacinação na luta contra a covid-19, que os jornais já não sabiam o que publicar, mudou de um dia para o outro com a nomeação do vice-almirante Gouveia e Melo. Em boa hora este militar colocou ordem, disciplina e trabalho sério para que o país fosse vacinado.

– É pá, a AstraZeneca é que eu não tomo, pode matar!
– Ó pá, quem é que te disse isso?
– Li na internet…

– Ouve bem o que te digo, não te vacines!
– Porquê, meu?
– Porque se te dão a Pfizer podes ficar com lesões cerebrais.
– Onde ouviste tal coisa?
– Li na internet…

– Sabes que a vacina que andam a dar às pessoas é perigosíssima?!
– Porquê?
– Porque tem morrido muita gente!
– Ouviste isso na CNN?
– Não, pá! Li na internet…

– Já te vacinaste, meu querido filho?
– Não, pai! Isso das vacinas tem que se lhe diga… estão a criar graves problemas nas pessoas que são vacinadas!
– Mas eu e a tua mãe já fomos e nada aconteceu!
– Vocês são do número das excepções…
– Mas quem é que te informou disso?
– Ó pai, li na internet…

– Ó tio, estou cheio de medo de ser vacinado!
– Tás doido, pá! Aquilo não custa nada e toda a gente deve ser vacinada!
– E o perigo que é depois de se ser vacinado?
– Qual perigo?
– Uma pessoa pode morrer…
– Como é que soubeste tal disparate?
– Li na internet…

Não se admite este estado de espírito que certas empresas estão a criar propositadamente no seio da população, entendendo que o importante é prejudicar as multinacionais que fabricam as vacinas. Que absurdo o que estamos a assistir nas redes sociais, onde se espalham as maiores invenções informativas sobre a vacinação e os males que pode provocar. É a isto que eu chamo a informação desinformada, ou melhor, afincadamente criminosa. Afinal, para que servem os cientistas? Temos confiança na ciência ou não? Acreditamos que trabalham para o bem da humanidade ou para o extermínio global?

As campanhas que assistimos contra a vacinação deviam ser investigadas até ao último pormenor informático. O número de infectados com a covid-19, infelizmente, voltou a aumentar na Área Metropolitana de Lisboa e no Algarve. Pudera, são as zonas do país onde a falta de cumprimento das regras estipuladas mais se verifica. E esse aumento regista-se agora nas camadas jovens. Tinha de ser porque a juventude não usa máscara, junta-se em grupos de duas dezenas a beber nos jardins depois dos restaurantes encerrarem, organizam festas com cerca de 400 inscritos onde vale tudo desde o beijar na boca entre quem não se conhece, até às conversas onde a distância entre eles é de dois palmos. Em Albufeira, chegaram ingleses aos magotes e é na Inglaterra que se desenvolvem cada vez mais as variantes do coronavírus e esses ingleses, todos sem máscara, enchem as artérias principais com cerveja na mão, abraçados e aos beijos uns aos outros. Como é que será possível que o sistema de vacinação possa ter êxito?

Não o creio, apesar de no passado fim-de-semana já ter sido decretado que ninguém podia entrar ou sair na Área Metropolitana de Lisboa.

Toda a gente sabe que a situação é séria em qualquer local do mundo. Portugal começou a melhorar substancialmente e o desconfinamento estava a ser progressivo. Tudo indica que está tudo a ir por água abaixo porque a ajuda principal para tal é a informação falsa e a desonestidade dos prevaricadores incivilizados.

*Texto escrito com a antiga grafia

21 Jun 2021

Novas rotas dos Impérios

Está a fazer dois anos: foi a 28 de Junho de 2019 que aqui publiquei “Muros e estradas”, uma crónica em que comparava o abnegado esforço do então presidente dos Estados Unidos da América para a construção de muros que protegessem o seu país de potenciais invasões de imigrantes, com a iniciativa que a China designou como a “nova rota da seda”, a reactivação dos caminhos que ligam o extremo oriente asiático à Europa, desta vez através de um programa de investimentos promovidos pelo estado chinês e destinados a reforçar as infraestruturas e capacidade produtiva de países com recursos mais escassos, não só na Ásia mas também em África, que as rotas de hoje têm maior amplitude e flexibilidade geográfica – também à medida das ambições de quem pode adaptar-se às circunstâncias ou disputar em várias frentes territoriais as competições desenfreadas que a globalização capitalista vai promovendo.

Na altura olhava-se desde os Estados Unidos e da Europa com manifesta desconfiança e animosidade para esta iniciativa chinesa, percebida como uma tentativa de aumentar a influência económica, cultural e política do país com o pretexto do apoio ao desenvolvimento – enfim, o discurso habitual sobre os perigos e consequências do imperialismo, das pouco democráticas implicações da expansão da hegemonia política por via da dominação económica. A curiosidade, desta vez, é que o discurso sobre estes perigos vinha precisamente do governo de um dos países mais desenvolvidos do mundo – os Estados Unidos, com toda a sua longa tradição e pergaminhos no assunto em questão – com o diligente e dedicado apoio de governos e instituições europeias.

Na minha crónica de há anos comparava então a nova “Rota da Seda” promovida pelo governo chinês com o que ficou conhecido como o “Plano Marshall”, financiado sobretudo pelos Estados Unidos, que apoiou programas de larguíssima escala para a reconstrução de infra-estruturas e capacidade produtiva após a II Guerra Mundial. Foi um plano altamente apreciado, não só por quem o promoveu, mas também pelos países que receberam os investimentos – e até pela generalidade dos analistas e estudiosos de políticas económica nas décadas que se seguiram, à esquerda e à direita do espectro ideológico. Foi um plano que claramente beneficiou os países que receberam os investimentos e que tiveram oportunidade de promover um ciclo longo de acelerada e intensa recuperação económica, que levaria até a que se viessem a questionar os limites destes acelerados processos de desenvolvimento, com a inerente delapidação de recursos e degradação ambiental, já no final dos anos 1960.

Na altura, evidentemente, o plano também contribuiu – e muito largamente – para se afirmar no planeta uma hegemonia económica, cultural e política dos Estados Unidos que até então se desconhecia. Havia Hollywood, o jazz e viria o rock’n’roll, que dificilmente teriam a expansão global que tiveram se não fosse o ambiente de generalizada expansão económica, aumento do consumo, florescimento de novas actividades e interesses culturais, abertura de horizontes e perspectivas mais cosmopolitas, pelo menos para quem não vivesse sob a tenebrosa sombra de regimes ditatoriais, pobres e broncos, como o que assombrou o povo português por quase meio século. A consolidação dos EUA na hegemonia política do planeta é largamente tributária da sua liderança económica no período do pós-II Guerra e isso muito se deve a este portentoso programa internacional de investimentos.

Dois anos volvidos sobre a tal crónica que aqui publiquei, muda então o cenário: há um novo governo nos Estados Unidos e uma outra percepção sobre as novas rotas da seda – que são, na realidade, novas rotas da finança: não basta olhar com desconfiança e discurso crítico para o papel que a China está a assumir ou a reforçar no apoio ao desenvolvimento económico da regiões mais desfavorecidas do planeta: se se quer disputar o inerente reforço da influência económica, cultural e política, não há outra alternativa senão fazer o mesmo. Nasce agora então novo plano, apresentado esta semana pelo presidente dos Estados Unidos aos seus parceiros líderes das potências económicas planetárias, o chamado G7, um dos símbolos máximos do imperialismo económico do planeta, disposto agora a mobilizar 40 mil milhões de dólares para apoiar investimentos na América Latina, Caraíbas, África e Indo-Pacífico.

Posicionam-se então os impérios para nova disputa sobre a economia do planeta e a inerente hegemonia política. A China retomou a velha Rota da Seda para propor uma modernização acelerada de países menos desenvolvidos. Os Estados Unidos aproveitam a crise provocada pela pandemia de covid-19 para oferecer apoios à recuperação económica. Em ambos os casos, mobilizam-se os recursos da sobre-acumulação de capital que vai engordando bilionários avarentos, alimentando processos globais de especulação imobiliária ou financeira e criando sucessivas novas oportunidades para branqueamento de capitais variados. Pelo menos parte do que estes respeitáveis larápios vai acumulando retornará à esfera da produção. Já não é mau de todo.

18 Jun 2021

O clima como questão política

“Political action and intervention, on local, national and international levels, is going to have a decisive effect on whether or not we can limit global warming, as well as how we adapt to that already occurring.”
Anthony Giddens
The Politics of Climate Change

 

O clima na Terra é o produto de uma enorme variedade de fenómenos físicos como a irradiação do Sol, o ciclo da mancha solar, o reflexo imediato em espaço sideral de parte da energia solar, a formação de nuvens, a evaporação do vapor de água da superfície dos oceanos, o transporte de energia da faixa tropical em direcção aos pólos devido às grandes correntes oceânicas e à complexa circulação dos ventos, a acumulação de calor nos oceanos, a emissão de radiação infravermelha da superfície terrestre e a interacção desta radiação com moléculas de gás na atmosfera, o ciclo do dióxido de carbono, aerossóis, vulcanismo e a energia irradiada da Terra para o espaço sideral. Embora a maioria destes fenómenos sejam cientificamente bem caracterizados nas condições simplificadas do laboratório, a sua correcta representação em situações climáticas reais é extremamente difícil. O grau de ligação entre entradas e saídas dos vários subsistemas é demasiado elevado, os numerosos “feedbacks negativos” e positivos são demasiado relevantes, e a diferença nas escalas espaciais e temporais dos fenómenos a ter em comum é enorme.

A dinâmica do clima ainda é, portanto, afectada por incertezas consideráveis. Historicamente, a questão do clima tem sido sempre uma questão científica. Mas no final da década de 1980 tornou-se rapidamente uma questão política. O aumento da temperatura média global da Terra que ocorreu nesses anos levou os políticos e diplomatas ocidentais, particularmente os que gravitam no ambiente da ONU, a preocuparem-se e a suporem que a causa do aquecimento global era antropogénica. A primeira iniciativa da ONU sobre o problema foi a criação em 1988 do “Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC)”, um órgão encarregado de elaborar relatórios apropriados que resumem as investigações climáticas em curso em todo o mundo, a fim de melhor compreender os efeitos das actividades humanas sobre o clima e prever as consequências a longo prazo.

As outras iniciativas da ONU foram a organização da importante “Conferência do Clima do Rio”, em 1992 (que endossou em particular a necessidade de desenvolvimento sustentável) e a proposta de um tratado internacional para minimizar as alterações climáticas induzidas pelo homem, a “Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC na sigla inglesa)”, que entrou em vigor em 1994 e foi assinado por quase todos os Estados-membros da ONU em 1997, o “Protocolo de Quioto” e o “Acordo Internacional de Paris”, em 2015. Acerca da questão do clima desde o início dos anos de 1990, importantes instituições políticas ocidentais (a ONU, a União Europeia, a Presidência dos Estados Unidos com o Vice-Presidente Al Gore) tomaram uma posição totalmente alinhada com o IPCC que foi a não hesitação em atribuir às actividades humanas (e em particular à combustão de combustíveis fósseis) o aquecimento global em curso desde o início da revolução industrial; partilha das previsões catastróficas do IPCC sobre o aumento da temperatura que ocorrerá até 2100 (previsões obtidas com modelos de dinâmica climática totalmente carentes de validação); convicção da urgência de intervenções de mitigação radicais; nenhuma dúvida científica sobre a correcção destas decisões.

Estas foram (e são) as principais características da ideologia do “Aquecimento Global Antropogénico (AGW na sigla inglesa)”, que nasceu no início dos anos de 1990 no contexto político elitista mas limitado da ONU e de importantes governos ocidentais, e nos anos seguintes espalhou-se por todo o mundo com uma rapidez impressionante. Vários factores contribuíram para este extraordinário sucesso que foram o colapso da União Soviética em 1989, a consequente difusão geral e partilha do objectivo do desenvolvimento sustentável, a pressão das ONGs verdes, a adopção de posições verdes pelos partidos políticos progressistas nos governos dos países ocidentais, a aspiração da ONU de exercer uma “governação” global (particularmente na gestão da atmosfera), o apoio dos produtores de gás natural visando a marginalização do carvão, o apoio dos países em desenvolvimento atraídos pela promessa de financiamento dos países desenvolvidos até cem mil milhões de dólares por ano em compensação, e sobretudo a excepcional fortuna mediática da poderosa mensagem alarmista contida na AGW.

A AGW tem conseguido nos últimos vinte e cinco anos tornar a questão climática talvez a mais importante questão política partilhada pelos governos de todo o mundo. O facto de ser substancialmente compartilhado pela opinião pública mundial permitiu aos governos de países desenvolvidos importantes (especialmente os da União Europeia) embarcar em onerosos programas plurianuais destinados a conseguir uma rápida descarbonização da economia, ou seja, a revolucionar a estrutura energética da nossa sociedade. Neste contexto altamente politizado, o aspecto científico da questão climática perdeu quase toda a relevância. Alguns cientistas até insistem que a questão científica foi resolvida, mas este não é de modo algum o caso. Na complexa ligação de causas e efeitos do sistema climático, há uma série de aspectos científicos importantes que ainda têm de ser esclarecidos.

Além disso, as previsões das tendências climáticas a médio e longo prazo continuam a ser completamente duvidosas. Um indicador seguro da fraqueza da base científica da AGW é a falta de divulgação científica séria. Por exemplo, num dos aspectos fundamentais da AGW, a atribuição ao CO2 antropogénico do aquecimento global em curso, as pessoas com preparação mas não especializadas não encontram na literatura mundial qualquer apresentação científica convincente do mecanismo físico de tal acção do CO2. Pelo contrário, a literatura está cheia de revelações superficiais, pouco claras, omissivas, ou evidentemente catastróficas sobre os processos climáticos. Toda a história da humanidade mostra que a energia é um factor chave no seu desenvolvimento. Todas as melhorias socioeconómicas mais significativas foram sempre associadas à disponibilidade de energia fiável e à capacidade de a utilizar da melhor forma. A forte melhoria das condições de bem-estar desde o início da revolução industrial está intimamente ligada à disponibilidade de energia segura e barata.

A este respeito, foram introduzidos dois parâmetros para cada país que é o “Índice de Desenvolvimento Humano”, que é composto tendo em conta a esperança de vida, o nível de educação e o rendimento per capita e o “Índice de Desenvolvimento Energético”, que tem em conta o consumo de energia per capita e a mistura de fontes utilizadas.

Os índices estão bem correlacionados entre si, especialmente em valores baixos, mostrando que a disponibilidade de energia é crucial especialmente na fase inicial do desenvolvimento de um povo. Os valores elevados do Índice de Desenvolvimento Humano podem ser acompanhados por valores bastante diferentes do “Índice de Desenvolvimento Energético”, devido à multiplicidade de factores envolvidos, incluindo condições climáticas, densidade populacional e disponibilidade de fontes de energia. Até há três ou quatro séculos atrás, as fontes de energia predominantes eram fontes renováveis que diferiam de acordo com a localização geográfica, mas durante os últimos dois séculos os combustíveis fósseis têm vindo progressivamente a assumir e cobrem agora cerca de 80 por cento das necessidades energéticas mundiais.

Não se pode esperar que os combustíveis fósseis sejam facilmente substituídos a curto prazo. No século XX surgiu também a fonte nuclear, que, entre momentos de expansão e outros de abrandamento, cobre agora cerca de 4 por cento das necessidades mundiais. A utilização de combustíveis fósseis implica a emissão de CO2 adicional para a atmosfera em comparação com os fluxos naturais, sendo um gás com efeito de estufa, que tem sido responsabilizado pelo aquecimento que ocorreu no século XX, em particular o registado na segunda metade do mesmo século, em conjunção com o forte desenvolvimento de países que até então tinham sido subdesenvolvidos. A este respeito, é de salientar que o CO2 produzido por fontes fósseis representa agora menos de 5 por cento do total de CO2 libertado na atmosfera, as maiores contribuições provenientes da desgaseificação dos oceanos e da degradação de todos os compostos biológicos. Além disso, a concentração de CO2 na atmosfera varia consideravelmente de local para local, de modo que as medições de referência são geralmente efectuadas em locais localizados fora da “camada limite planetária ” em áreas não particularmente antropizadas e sem vegetação intensa.

O ponto de referência para o hemisfério norte é a medição a cerca de quatro mil e duzentos metros acima do nível do mar no vulcão Mauna Loa no Havai. O CO2, com os níveis actuais de concentração na atmosfera (400 ppm igual a quatro moléculas a cada dez mil) está longe de ser um poluente; de facto, o homem vive sem problemas em ambientes com concentrações muito mais elevadas. O CO2 não é tóxico, o perigo é de roubar espaço ao oxigénio, mas este é um caso extremo dada a desproporção entre a concentração dos dois gases na atmosfera (400ppm correspondendo às ditas quatro moléculas em dez mil para o CO2 e 210.000ppm correspondendo a vinte e uma moléculas em cem para o O2). O ar exalado por um ser humano em condições normais tem um teor de CO2 da ordem de 40.000 ppm. O CO2 é também a molécula chave no processo de fotossíntese e, portanto, revela-se um poderoso fertilizante de toda a biosfera. Assistimos a um processo de ecologização de quase todo o globo, provavelmente resultante do aumento da sua concentração na atmosfera e de 1958 até Março de 2019 aumentou de 315 ppm para 410 ppm.

Em geral, na presença de um maior teor de CO2, a vegetação pode crescer bem mesmo em áreas mais secas porque, por um lado, pode permitir um menor número de estomas, limitando assim as perdas de água, enquanto por outro lado pode investir mais biomassa no desenvolvimento dos sistemas radiculares, que podem assim explorar melhor os recursos hídricos do solo e armazenar mais carbono orgânico no próprio solo. Para um determinado local geográfico ou para um território mais ou menos alargado, o clima é uma abstracção estatística obtida através do cálculo dos valores médios e extremos das variáveis meteorológicas medidas em várias escalas espaciais e durante um período de trinta anos. Neste contexto, o clima actual deve ser entendido como referindo-se aos últimos trinta anos.

O sistema climático, de acordo com uma definição da Organização Meteorológica Mundial, é um sistema composto por atmosfera, hidrosfera, criosfera, litosfera e biosfera. Na sua essência, todo o planeta participa no sistema climático. O clima local está relacionado com uma determinada área da superfície da terra que pode ser mais ou menos extensa. O clima global diz respeito a todo o planeta e é obviamente a soma de muitos climas locais. A principal variável que a caracteriza é a “Temperatura Global Média da superfície (TGM)” que influencia duas variáveis globais essenciais que são a cobertura glaciar e o nível do mar. À medida que a TGM aumenta, a cobertura glaciar diminui e o nível do mar aumenta devido ao derretimento da neve e do gelo e, em menor grau, à expansão térmica da água líquida. Se as primeiras medições instrumentais da TGM datam de 1650 e se devem à Academia do Cimento fundada por Galileu, aproximando-se dos tempos recentes, a rede de detecção da TGM tornou-se cada vez mais fiável, cobrindo uma boa parte do planeta por volta de 1850.

Esta rede é de facto ainda deficiente em muitos aspectos, porque algumas áreas são mal controladas e outras estão sujeitas a influências negativas ligadas a actividades antrópicas, em particular as chamadas “ilhas de calor”, cujo efeito de distorção é corrigido por ajustamentos que, em vários casos, podem contudo ser problemáticos. Deve-se ter em conta que grandes complexos urbanos com uma alta concentração populacional podem levar a aumentos de temperatura local de até alguns graus Celsius. Estas medidas têm sido progressivamente aperfeiçoadas e considerando o nível tecnológico actual, são uma boa referência. Desde 1956 que existem levantamentos atmosféricos com balões de sondagem e desde 1979 com satélites que também nos permitem rastrear a TGM. No passado, antes de 1850, existem algumas séries de dados a nível local úteis para conhecer o clima em áreas limitadas, em geral na Europa, enquanto vários sinais de tipo físico ou biológico deixados pelas alterações climáticas são utilizados para reconstruir aproximadamente a TGM.

A opinião pública está muito condicionada pelo clima do lugar onde vive e tende a generalizá-lo a um clima global. Só raramente nos lembramos que mais de 70 por cento da superfície terrestre é coberta pelo mar e que apenas 30 por cento é constituída por terra seca, da qual apenas uma fracção, não superior a 10 por cento, é antropizada com uma densidade populacional significativa. É de recordar que uma grande parte da superfície terrestre é coberta por desertos, florestas tropicais, tundra, zonas montanhosas ou coberturas glaciares. Assim, menos de 3 por cento da superfície terrestre total é significativamente antropizada. O clima local depende principalmente do clima em maior escala e do clima global, mas em áreas antropizadas é também significativamente influenciado pelas actividades humanas. Em particular, a utilização maciça de energia, produzida principalmente com combustíveis fósseis com a consequente emissão de poluentes (não queimados, óxidos de enxofre, óxidos de azoto e partículas em suspensão) é certamente corresponsável pela mudança do clima local.

Um exemplo clássico pode ser o clima local como o do Delta do Rio das Pérolas que é influenciado por actividades antrópicas. É também óbvio que, uma vez que o clima global é a composição de muitos climas locais, os das zonas fortemente antropizadas intervêm para caracterizar o clima global, mas como ocupam uma pequena fracção da superfície total do planeta a sua contribuição é modesta. A situação muda se, como resultado de actividades antrópicas, algo que possa influenciar o clima global for introduzido na atmosfera, que é rapidamente remisturada ao nível de um único hemisfério. É o caso do CO2 com a sua função como gás com efeito de estufa. Não há dúvida de que a utilização de combustíveis fósseis deve visar a redução da emissão dos poluentes primários reais (não queimados, óxidos de enxofre, óxidos de azoto e partículas) tanto quanto possível, de forma compatível com as tecnologias disponíveis.

Produzir energia reduzindo os poluentes é mais amigo do ambiente, mas mais dispendioso. Por conseguinte, é evidente que a forma como os combustíveis fósseis são utilizados está ligada ao nível de desenvolvimento tecnológico do país e não se pode esperar que os países subdesenvolvidos utilizem os combustíveis como fazem na Suécia, mas progressivamente todos os países tenderão a utilizá-los cada vez mais para reduzir as emissões poluentes. Na história do clima da Terra sempre houve fenómenos extremos como as “ondas de calor”, secas e precipitação intensa (chuvas torrenciais indevidamente chamadas “bombas de água”), aumento da pluviosidade e falta de precipitação, ciclones, furacões, tornados e outros. O termo “eventos extremos” foi recentemente introduzido para estes fenómenos. Apenas uma série relevante e bem documentada de eventos extremos durante um período de tempo significativo poderia ter significado climático e possivelmente estar ligado às alterações climáticas.

O próprio IPCC no relatório “AR5 Climate Change 2013 – The Physical Science Basis SPM” salienta que tais eventos na segunda metade do século passado provavelmente se intensificaram em algumas áreas, mas não à escala global; relativamente a estes eventos é muito difícil comparar, mesmo a nível local, com o que aconteceu no passado por falta de dados estatísticos cientificamente fiáveis.

17 Jun 2021

O fascismo está sempre atrás da porta

Em Portugal gerou-se um fenómeno político no dia 25 de Abril de 1974 que poucos antifascistas se deram conta do sucedido. Aconteceu que a grande maioria dos funcionários da PIDE/DGS e altas patentes da administração pública passou-se logo para o Partido Socialista (PS), para o Partido Popular Democrático (PPD), para o Centro Democrático-Cristão (CDS) e até para o Partido Comunista. Bem disfarçados e escondidinhos foram caminhando por esta pseudo democracia até aos dias de hoje. Mas, entretanto, já o gato foi às filhoses, porque mais de cinquenta por cento desses “fascistas-democratas” já mudaram de partido político várias vezes. Uns, que estavam como militantes e até membros do PS já se passaram para o Partido Comunista e para o PPD/PSD. E o mais espampanante é que alguns desses já estão ao lado do neofascista do Chega. Outros deixaram o PPD/PSD e foram para o CDS de onde já saíram para o Chega. Há ainda outros que conseguiram vestir a pele de cordeiro de tal forma que são hoje funcionários da Polícia Judiciária e dos serviços secretos da República.

E afinal, há ou não fascistas em Portugal? Há e não são poucos. Voltámos a ter uma maioria silenciosa que começa a despontar no tal fenómeno fascizante chamado Chega, que está a ser financiado por quase toda a extrema-direita europeia. O Chega não é nada e é tudo. Há quem não dê valor nenhum ao antigo social-democrata André Ventura e simplesmente o definem como populista e demagogo. Estão errados. André Ventura sabe muitíssimo bem o que está a fazer e para onde quer ir. Por exemplo, há dias teve até o desplante de afirmar que o Chega queria ser governo.

Estão a ver a jogada? Como os sociais-democratas e os democratas-cristãos se habituaram a ser governo e a ter de imediato um lugar numa autarquia, no executivo ou na Assembleia da República têm assistido às quedas na adesão dos portugueses aos seus partidos e nessa conformidade estão a ser ludibriados por André Ventura que lhes acena com a ida para o governo, o que se traduz na possibilidade de um “tacho” aqui ou acolá. O Chega não tem programa de uma mudança credível, moderna, democrática para o país. O Chega está apostado em captar o maior número de latifundiários, empresários e saudosistas do antigo regime para se transformar numa organização ditatorial que pudesse governar Portugal com mão de ferro e com leis, cuja maioria coartaria a liberdade de informação e outras.

Os portugueses eleitores em partidos ditos democráticos não se estão a aperceber do avanço que está a ser gerado pela demagogia e aldrabice anunciadas por Ventura. Mas, ele tem levado a água ao seu moinho. Todos os meses as empresas de sondagens realizam inquéritos a nível nacional e já chegámos a um ponto em que os inquiridores ficaram de boca aberta porque o Chega estava praticamente com a mesma percentagem do PPD/PSD, não do Bloco de Esquerda ou de outro partido, mas sim do PPD/PSD que sempre foi o mais votado ou o segundo com mais preferência do eleitorado.

O Partido Socialista está a governar o país, anda distraído com uma terceira ponte que quer construir entre Lisboa e a Margem Sul sobre o rio Tejo; com um comboio de alta velocidade entre o Porto e Vigo, sem pensar que o mais importante seria entre o Porto e Lisboa ou entre as capitais portuguesa e espanhola; com as patetices do ministro Pedro Nuno Santos e do agora governante João Galamba; com as injecções de milhões de euros no Novo Banco; com os refugiados que acomoda em estabelecimentos turísticos sem sequer avisar ou indemnizar os proprietários; com a luta interna no governo e no interior do partido onde muitas figuras (já) públicas não querem deixar o poder ou, se possível, subir ao lugar de António Costa, enfim, um partido de importância vital para impedir o avanço da maioria silenciosa e que nada faz por isso. O PS assiste ao André Ventura a enganar os portugueses e chama-lhe “sonhador”, “populista” ou “demagogo” e nada faz para esclarecer os portugueses que por trás daquela falácia está uma espécie de fascismo disfarçado de salvador do povo, tipo Hitler.

Por seu turno, o PCP e BE não têm força política para travar um avanço politicamente a rondar uma ditadura. As forças que se dizem democráticas têm de olhar para Espanha e ver o que aconteceu com o partido de extrema-direita, o VOX, que paulatinamente foi andando até chegar à meia centena de deputados no Congresso de Espanha, sendo já a terceira força política. A nossa nova geração que sempre viveu em liberdade nem sabe o que é não poder estar a uma esquina a conversar com amigos, só quer copos pelo meio das ruas, noitadas sem máscara e sem distanciamento físico, pergunta aos pais o que foi isso do 25 de Abril e acha uma imensa piada aos gritos de André Ventura quando se põe no Parlamento a insultar tudo e todos. Os jovens deviam ter um papel importantíssimo nas universidades, onde deveria ser obrigatório o ensino de uma disciplina sobre política que lhes ensinasse o que tem sido o seu país desde que terminou a monarquia. Infelizmente, em política a juventude está apenas activa nas minorcas associações juvenis que pertencem aos principais partidos. Mesmo assim, há dias, perguntei a um jovem da Juventude Comunista quem foi Salazar e ele respondeu-me que foi “o fascista que matou Álvaro Cunhal”… Não brinquemos mais com coisas muito sérias porque o fascismo está sempre atrás da porta.

*Texto escrito com a grafia antiga

16 Jun 2021

Fundo de Previdência em revisão

A lei que regula o Fundo de Previdência Não Obrigatório entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2018. O regulamento estipula que a lei deve ser revista após terem passado 3 anos e 6 meses sobre a data da sua implementação. Ou seja, a revisão deve ser realizada até 30 de Junho do corrente ano. Passados estes três anos, o que é que pode ser dito sobre o sistema de Pensões em Macau?

O sistema de segurança social em Macau está dividido em dois níveis. O primeiro garante aos residentes reformas, subsídios de incapacidade, subsídios de desemprego, baixas por doença, subsídios de nascimento, de casamento, funeral, etc. Este primeiro nível garante a cobertura das necessidades básicas. Desta forma, todos os residentes de Macau, desde que cumpram os requisites necessários, ao atingirem os 65 anos podem usufruir de uma reforma mensal de 3.740 patacas, acrescida de outros benefícios, como a pensão de velhice de 9.000 patacas anuais, o cheque pecuniário 10.000 patacas (anual), e uma contribuição do Governo de 7.000 patacas nas suas contas pessoais associadas ao Fundo de Previdência, etc. Os residentes de Macau, em média, podem receber 6.000 patacas por mês; é por isso um bom sistema.

O segundo nível está associado ao Fundo de Previdência Não Obrigatório, regulado pela Lei No. 7/2017 e pelo Regulamento Administrativo No. 33/2017. Este nível destina-se a reforçar a protecção à terceira idade e pretende colmatar algumas deficiências do primeiro nível. Para aceder a este segundo escalão, os empregados e os empregadores têm de contribuir mensalmente com 5% do salário auferido pelos primeiros. O valor acumulado fica à disposição do trabalhador após ter completado os 65 anos de idade.

Presumindo que um trabalhador ganha 20.000 patacas por mês, que quantia pode acumular no Fundo De Previdência Não Obrigatório ao fim de 30 anos?

= $20.000 x 10% x 12 meses x 30 anos= $720.000

Sem calcular os juros do investimento, este é o valor de que pode dispor ao atingir os 65 anos.

Os estudos demonstram que a esperança de vida dos homens é de 85 anos e das mulheres de 87. Assim sendo, as pessoas têm de se preparar para poderem garantir as suas despesas durante 20 anos. Tendo em contas as 720.000 patacas acumuladas no Fundo de Previdência, o valor que pode ser gasto deste total, por mês, vai ser achado a partir do seguinte cálculo:

= $720,000 / 12 meses / 20 anos

Combinando com o valor que recebe do primeiro nível de segurança social:

= $3,000 + acerca de $6,000 = cerca de $9,000

Façamos agora o cálculo para um salário de 30.000 patacas mensais, para perceber quanto é que o trabalhador terá acumulado no Fundo ao atingir os 65 anos de idade:

= $30,000 x 10% x 12 meses x 30 anos= $1 milhão e 80 mil patacas

O valor que pode gastar por mês deste Fundo, será:

= $1.08 milhão/ 12 meses / 20 anos= $4,500

Combinando com o valor que recebe do primeiro nível de segurança social:

= $4,500 + cerca de $6,000 = cerca de $10.500

Claro que estes números não incluem os juros do investimento no Fundo de Previdência. Desta forma, o valor que fica disponível ao atingir os 65 anos será seguramente mais elevado.

9.000 patacas mensais são suficientes? E 10.500? Quanto é que se gasta mensalmente depois da reforma? A resposta varia de pessoa para pessoa, e não pode ser generalizada.

De acordo com a Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, o salário médio dos residentes de Macau em 2019 e 2020 era de 17.000 patacas. Os números indicam a diferença do valor mensal que se recebe durante a vida activa e depois da reforma. É um alerta para começarmos a planear a nossa reforma o mais cedo possível.

Será que é boa ideia tentar aproximar o valor do Fundo de Previdência da média do salário e usar como padrão as despesas mensais durante a reforma? Mais uma vez a resposta vai variar de pessoa para pessoa e não pode ser generalizada, mas é certo que os reformados continuam a querer desfrutar da vida, e para que isso seja possível é necessário fazer preparativos atempadamente.

Se o Fundo de Previdência Não Obrigatório for convertido em Fundo de Previdência Obrigatório, os residentes de Macau podem ter automaticamente acesso aos dois níveis da segurança social e a protecção na reforma aumenta imediatamente. No entanto, devido à pandemia, as condições socio- económicas foram afectadas e muitas pessoas encontram-se actualmente numa situação económica difícil. Fazer esta alteração nesta altura, dará certamente origem a vários protestos. Assim sendo, por enquanto será mais realista reforçar a informação sobre o Fundo de Previdência e encorajar as pessoas a participarem voluntariamente neste plano, o que poderá conduzir à melhoria das condições de vida dos reformados de Macau e simultaneamente ajudar a estabilizar as finanças do Governo.

Todos têm reformas diferentes. Quanto mais cedo nos começarmos a preparar, melhores condições teremos nessa altura. Uma reforma próspera não pode depender só da segurança social, o nosso esforço e preparação são igualmente importantes.


Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

15 Jun 2021

Plano Director IX – Oportunidade para uma análise S.W.O.T.

Por Mário Duarte Duque, Arquitecto

 

O regime de encomenda de obras públicas implica uma metodologia pela qual as decisões se pautam, e que se forma a partir de parâmetros previamente estabelecidos. Desses parâmetros os mais recorrentes são o preço, o prazo, a concepção e a experiência dos intervenientes, sem que a ordem tenha necessariamente significado.

Esta ordem só ganha significado quando se associa a esses parâmetros um coeficiente que pondera diferentes apreciações numa apreciação final.

Por sua vez a atribuição de coeficientes de ponderação deverá ser função das características da obra. Assim, para uma obra corrente e simples, o preço e prazo afiguram-se o mais importante, enquanto, para uma obra exigente e fundamental, a concepção e a capacidade técnica são essenciais, naturalmente dentro de prazos admissíveis e dentro de custos já aptamente estimados e reservados para o efeito.

Fácil é também admitir como os coeficientes desses parâmetros podem atentar uns contra os outros, e influenciar nefastamente o resultado final, no caso de a ponderação não estar ajustada às características da obra.

No caso da encomenda do Plano Director para Macau a concepção do plano não foi factor de apreciação. Apenas foram o preço, o prazo e a aptidão técnica da equipa.

Desde logo se afigurou que colocar à concorrência o número de dias e o preço para a elaboração da proposta de plano seria irrelevante face ao tempo que o mesmo plano precisaria para ser discutido e analisado, ou face ao encargo de toda a máquina necessária montar para discutir, analisar e desenvolver a mesma proposta.

Deixada a concepção de fora, ocorre que o aspecto que mais importaria na escolha, e que permaneceria ao longo de todo o processo, seria antes a aptidão técnica da equipa e a sua experiência em outras realizações que relevassem para o estudo em causa.

Sendo o Plano Director um plano fundamental, o facto de a concepção não ter sido critério de escolha, também não deve significar que a concepção não interessasse. Apenas deve significar, admitamos, que o dono da obra já estava munido de um documento estratégico do que pretende, para com isso prosseguir, como é capacidade e prática das administrações públicas.

Mas também significou que o dono da obra prescindiu de outros contributos que emergissem tanto de conhecimento como de intuição. Esses contributos não resultam de pensamento analítico ou dedutivo, mas são oportunidade para lançar mão de soluções que não se extraem do prato das considerações, com capacidade de propulsionar saltos que permitem ganhar tempo.

Essa consideração também só tem lugar em fase de proposta de plano, e extingue-se em fase de análise de proposta, sob pena de trazer o processo à estaca zero.

E, sendo as actuais circunstâncias apenas de análise, importam mais os instrumentos de que a análise se mune.
Tal como como se extrai do acrónimo, a análise S.W.O.T. é uma técnica de planeamento estratégico, que recorre a uma matriz onde se identificam os pontos fortes (Strengths) e fracos (Weaknesses), assim como as oportunidades (Opportunities) e as ameaças (Threats) na estratégia em consideração.

A mesma análise tanto assiste projectos e negócios, como assiste actos de governação e de participação em consultas de interessados.

Os pontos fortes (Strengths) estão onde as vantagens da estratégia se revelam, enquanto os pontos fracos (Weaknesses) são os que colocam a estratégia em desvantagem em relação a outras.

As oportunidades (Opportunities) já são os elementos e as condições do ambiente dos quais é possível tirar partido para a eficácia da estratégia, enquanto as ameaças (Threats) são os elementos e as condições do mesmo ambiente que podem frustrar ou colocar a estratégia em crise.

Nas categorias de informação que a análise S.W.O.T. trata, os pontos fortes e fracos são as características próprias da estratégia, enquanto oportunidades e ameaças já resultam da interacção da estratégia com o meio.
Como ferramenta, este instrumento de análise serve estágios preliminares de tomada de decisão para avaliação da eficiência global de uma estratégia, assim como da necessidade de mitigar algumas das suas componentes.

Permite concluir sobre a robustez do projecto face aos objectivos em vista, fazendo e respondendo a perguntas que permitem gerar informação significativa para cada componente do projecto, identificando os factores internos e externos que são favoráveis ​​e desfavoráveis ao atingimento desses objectivos.

A predominância de pontos fortes e de oportunidades configuram confiança. Por outro lado, a predominância de pontos fracos e ameaças devem suscitar prudência.

Chegados aqui, resulta que, em actos de governação, uma análise S.W.O.T. tanto assiste um governo na globalidade das estratégias de administração de bens públicos, como assiste a população em geral nas especificidades e interesses de cada grupo a que a iniciativa interessa.

Ou seja, é uma ferramenta que deve estar geralmente distribuída para que possa ser utilizada por todos os participantes, para que a informação possa ser integrável e gerível em sínteses subsequentes.
E, quando os interessados não estão dotados de aptidões e meios necessários para interpretar, gerir e gerar essa informação, assistem questionários onde as perguntas são, por si, estrategicamente vocacionadas para obter respostas relevantes de cada sector do universo dos interessados.

Esta interacção em consulta de interessados não serve apenas para “comprar” a legitimidade que interessa a uma iniciativa pública, serve principalmente para averiguar da combinação da estratégia com o ambiente externo, e concluir num conceito quantificável a que se chama a “adequação estratégica”.

As conclusões que resulta dessas consultas, quando dirigidas ao público menos especializado, devem ser “traduzidas” por comunicadores sociais, em moldes compreensíveis por esse público, mas a estrutura de análise deve manter-se evidente em qualquer versão desses relatórios.

Estabilizado o instrumento de governação em vista, a análise S.W.O.T continua a ser útil para medidas supervenientes, nomeadamente de “combinação” e “conversão” de elementos da estratégia.
Isso porque, as vantagens competitivas da estratégia emergem da combinação de pontos fortes com oportunidades.

Já a conversão dos elementos da estratégia tem por alcance a transformação táctica de pontos fracos e ameaças em pontos fortes e oportunidades. Exemplos recorrentes de medidas de conversão em iniciativas públicas é a reconfiguração de instrumentos, infra-estruturas, actividades e universos de participantes.

E, se as ameaças e pontos fracos não podem ser convertidos, as medidas não devem estabilizar, e o efeito estimado deve ser evitado, minimizado ou compensado, necessariamente nesta ordem de prioridade.

Se mesmo assim os objectivos não forem atingíveis, objectivos diferentes devem ser seleccionados e o processo repetido.

Quando aplicada a um Plano Director, uma análise S.W.O.T. também não deve ser abandonada com a conclusão da análise, antes deve continuar presente em fase de acompanhamento do plano ou de observatório, onde o desenvolvimento das condições iniciais, vantagens estimadas e impactos mitigados são monitorizados, para avaliação da sua eficácia e para informação de subsequentes revisões de plano.

Em Macau não existe experiência desenvolvida em acompanhamento de planos. Todos os que existiram não tiveram acompanhamento, muito menos revisões, foram simplesmente revogados, sequer substituídos. A avaliação desses resultados não está sistematizada. Só é possível através de um esforço de interpretação.

11 Jun 2021

Aquela noite em São Domingos

Em Macau, durante a Páscoa, o “Correr as Igrejas” é uma prática habitual. Como a Sé Catedral está em obras, todas as cerimónias que aí se iriam realizar foram transferidas para a Igreja de São Domingos. Foi por este motivo que na Páscoa de 2021 visitei pela primeira vez a Igreja de São Domingos, durante o “Correr as Igrejas”.

Para os chineses de Macau a Igreja de São Domingos é apenas uma das muitas que existem na cidade, mas para os portugueses, ou para os seus descendentes, esta Igreja é muito especial porque ficou para sempre associada a um incidente político. Talvez porque houve derramamento de sangue, esta história seja raramente mencionada, mas, seja como for, a Igreja de São Domingos é um local único.

Quando vou à missa em dias normais, só costumo olhar para o cenário que se ergue por cima do altar e raramente vou à parte detrás onde podemos adorar a Presença de Cristo na Eucaristia. Mas, nesta noite do “Correr as Igrejas”, visitei as traseiras do altar da Igreja de São Domingos, onde está uma estátua de Cristo. A estátua parece contar-nos a história desta Igreja e a longa escada de pedra, que se ergue em frente ao altar, também parece conduzir-nos à Pedra da Agonia, que fica em frente ao Altar Mor da Igreja de Todas as Nações, em Jerusalém. Nesse local, podemos meditar sobre o caminho que queremos trilhar; seguir os nossos caprichos ou optar por uma vida com um propósito, digna de ser vivida.

Em Macau, desde que sejamos subservientes, sigamos a tendência em vigor e juntemos a nossa voz ao coro colectivo, a vida corre tranquilamente. Por analogia, quando a ideologia dominante apelava ao combate ao “vento desviacionista de direita de Deng Xiaoping”, poderíamos ter desenhado uma cruz no retrato de Deng. Mas, quando “O Bando dos Quatro” soçobrou e Deng Xiaoping voltou ao poder, veio a afirmar-se como o grande arquitecto das reformas e da abertura da China, pelo que será para sempre louvado.

Se vivermos para comer e para levar uma vida confortável, negligenciando a nossa alma, o que é que nos vai diferenciar dos porcos que são criados para a engorda?

À primeira vista, Macau parece ser uma cidade próspera e rica, mas se procurarmos melhor, as fraquezas vão ser reveladas. A obra de construção de “Box-Culvert” da Estação Elevatória de Águas Pluviais, que se arrasta há muito tempo, criou graves problemas de circulação. O objectivo era resolver o problema da acumulação das águas da chuva, mas muitas zonas de Macau continuam a ficar inundadas quando chove com mais intensidade. Diversos projectos do Governo, como foi o caso do megalómano, embora inútil, do Metro Ligeiro da Taipa, do Novo Estabelecimento Prisional de Macau em Coloane, em construção há vários anos, da proposta de Lei intitulada “Lei de protecção dos direitos e interesses do consumidor”, em discussão há dois anos, e das desorganizadas “obras viárias” que se estendem por toda a cidade, só têm suscitado o desagrado da população. Mas projectos e acções que promovam verdadeiras reformas, são raros e insuficientes. Se todos tivessem vontade de dar o primeiro passo, dizer o que pensam e agir independentemente dos seus próprios interesses, acredito que alguma coisa haveria de mudar.

O abandonado sistema de recolha de resíduos na Zona da Areia Preta serve para demonstrar que Macau, a chamada cidade-feliz, poderia vir a ser ainda mais feliz.

Se Jesus não tivesse entrado em Jerusalém, nem tivesse abandonado a cidade após uma breve estadia, e também não tivesse criticado os poderosos locais, acredito que nunca teríamos sido acusados do crime de tentar subverter o Império Romano e condenados à morte. No entanto, a escolha do silêncio não traz necessariamente a felicidade.

Não vou falar sobre o que aconteceu na Igreja de São Domingos no passado. Mas, naquela noite, quando integrei o “Correr as Igrejas” e visitei este local, repleto de santidade e humanismo, compreendi profundamente a escolha de Jesus. Esta deveria ser também a escolha de cada cristão, que se proclama Seu seguidor. Para fazer do mundo um sítio melhor, as orações são indispensáveis, mas as acções também são muito importantes.

11 Jun 2021

Epidemia biológica e social

“Great pandemics have resulted in significant death tolls and major social disruption. Other “virgin soil” epidemics have struck down large percentages of populations that had no previous contact with newly introduced microbes.”
Jo N. Hays
Epidemics And Pandemics: Their Impacts On Human History

A história lembra-nos que as interligações entre o momento das epidemias biológica e social estão longe de ser óbvias. Em alguns casos, quando a própria epidemia é tão claramente marcada como anormal, como as características dramáticas da febre-amarela ou cólera nos séculos XVIII e XIX ou a apresentação clássica da gripe espanhola no início do século XX, o fim da epidemia pode parecer relativamente claro. Como um saco de pipocas a estalar no micro ondas, o ritmo dos eventos de casos visíveis começa lentamente, aumenta para um pico frenético, e depois recua, deixando uma frequência decrescente de novos casos que eventualmente são espaçados o suficiente para serem contidos e depois eliminados. Noutros casos, porém e aqui as epidemias de poliomielite do século XX são talvez um modelo mais útil do que a gripe ou a cólera em que o próprio processo da doença está escondido, ameaça voltar, e termina não num único dia, mas em escalas de tempo diferentes e de formas distintas para pessoas diversas.

As campanhas contra as doenças infecciosas tendem a ser discutidas em termos militares e trabalham com o pressuposto de que tanto as epidemias como as guerras devem ter um desfecho singular. Existe um “pico” como se fosse uma batalha decisiva como Waterloo ou um acordo diplomático como o Armistício de Compiègne, em Novembro de 1918. No entanto, a cronologia de um final único e decisivo nem sempre é verdadeira, mesmo para a história militar. Mais de três meses separaram o termo da II Guerra Mundial na Europa, formalizada pelo “Dia V-E”, do final, tal como experimentado no teatro mais amplo do Pacífico como “Dia V-J”, quanto mais o final como vivido por Teruo Nakamura, o último soldado japonês a depor armas em 1974, após quase 30 anos escondido numa ilha remota nas Filipinas. Para países ocupados como o Japão, Alemanha e Áustria, o fim da guerra teve também uma temporalidade diferente.

Quando a Áustria assinou um tratado de paz da II Guerra Mundial em 1955, as operações militares da Guerra da Coreia já tinham cessado após o armistício de 1953, mas ainda não existe um tratado de paz entre a Coreia do Norte e do Sul. Tal como o fim claro de uma guerra militar não se aproxima necessariamente da experiência da guerra na vida quotidiana, também a contenção de um agente biológico não desfaz imediatamente os impactos sociais de uma epidemia. No decurso da II Guerra Mundial, os historiadores calcularam que sessenta milhões de pessoas foram deslocadas só na Europa, entre elas sobreviventes do Holocausto, prisioneiros de guerra, refugiados e deportados.

Dois anos mais tarde, havia ainda perto de um milhão de pessoas presas em campos de deslocados, o último dos quais fechou apenas em 1959. O regresso à vida “normal” para as pessoas nos seus países de origem também levou tempo e o racionamento de alimentos na Grã-Bretanha continuou até 1954.

Assim também os efeitos sociais e económicos da pandemia de 1918-1919 se fizeram sentir muito depois do fim da terceira e putativa onda final do vírus, mesmo que relatos explícitos sobre a pandemia pareçam ter sido rapidamente “esquecidos “. Embora o efeito económico imediato em muitas empresas locais causado pelos encerramentos parecesse ter sido resolvido numa questão de meses, os efeitos da epidemia sobre as relações laborais e salariais ainda eram visíveis nos inquéritos económicos em 1920, novamente em 1921, e em várias áreas da economia até 1930. Alguns historiadores económicos argumentaram que havia um efeito ainda mais longo, detectável ao longo de gerações que era o impacto negativo da gripe espanhola na confiança social, que por sua vez influenciou o desenvolvimento económico a longo prazo. Tal como a I Guerra Mundial, com a qual a sua história estava tão intimamente ligada, a pandemia de gripe de 1918-1919 pareceu, no início, ter um final singular. Em cidades individuais, a epidemia produziu frequentemente picos dramáticos e cai em ritmo igualmente rápido.

Em Filadélfia, como observa John Barry no seu livro “The Great Influenza: The Story of the Deadliest Pandemic in History”, após um aumento explosivo e mortal em Outubro de 1919, que atingiu uma taxa de mortalidade de quatro mil e quinhentas e noventa e sete pessoas por semana em meados do mês, os casos caíram subitamente de forma tão precipitada que no final do mês foi levantada a proibição de ajuntamento público, e duas semanas depois quase não houve novos casos. Como qualquer parte de um universo materialmente determinado, Barry descreve, “o vírus queimou através do combustível disponível, e depois desapareceu rapidamente”. E no entanto, como Barry nos lembra, os estudiosos aprenderam desde então a diferenciar pelo menos três sequências diferentes de epidemias dentro da pandemia mais vasta. A primeira vaga surgiu através de instalações militares na Primavera de 1918, a segunda vaga causou os picos de mortalidade devastadores no Verão e Outono de 1918, e a terceira vaga começou em Dezembro de 1918 e prolongou-se por muito tempo durante o Verão de 1919.

Algumas cidades, como São Francisco, celebraram o sucesso das suas medidas de saúde pública depois de passarem pela primeira e segunda vagas relativamente incólumes, para serem devastadas pela terceira vaga. Nem era claro para aqueles que ainda estavam vivos em 1919 que a pandemia tinha terminado após o fim da terceira vaga. Em 1920 ocorreram onze mil mortes relacionadas com a gripe na cidade de Nova Iorque e Chicago. Mesmo já em 1922, um mau período de gripe no Estado de Washington mereceu uma resposta dos funcionários da saúde pública para ser tratada da mesma forma que a gripe pandémica. É difícil, olhando para trás, dizer exactamente quando é que esta pandemia prototípica do século XX realmente terminou. Quem pode dizer quando uma pandemia termina? Em rigor, só a Organização Mundial de Saúde (OMS) pode. O Comité de Emergência da OMS é responsável pela governação global da saúde e pela coordenação internacional da resposta a epidemias. Após a pandemia da SARS coronavírus de 2002-2004, este organismo recebeu o poder exclusivo de declarar o início e o fim das “Emergências de Saúde Pública de Preocupação Internacional (PHEICs na sigla inglesa)”.

Ainda que a morbilidade e mortalidade da SARS (cerca de oito mil casos e oitocentas mortes em vinte e seis países) já seja reduzida pelas proporções que a COVID-19 está a atingir, o efeito da pandemia nas economias nacionais e globais levou a revisões do Regulamento Sanitário Internacional em 2005, um corpo de direito internacional que permaneceu inalterado desde 1969. Talvez o passo mais fatal implementado na sequência da SARS tenha sido a decisão de expandir os poderes declarativos dados à OMS nas revisões de 2005 do Regulamento Sanitário Internacional. Esta revisão alargou o âmbito da resposta global coordenada de um conjunto de doenças para qualquer evento de saúde pública que a OMS considerasse de interesse internacional e passou de um mecanismo reactivo para um mecanismo proactivo baseado na vigilância em tempo real e da acção nas fronteiras para a detecção e contenção na fonte. Sempre que a OMS declara um evento de saúde pública de interesse internacional e frequentemente quando opta por não declarar um evento, este torna-se uma questão de notícia de primeira página.

A OMS tem sido criticada tanto por declarar um PHEIC demasiado apressadamente (como no caso da pandemia de H1N1) ou demasiado tarde (no caso da pandemia de Ebola). A cessação de um PHEIC raramente é sujeita ao mesmo escrutínio público que o seu início. Quando um surto anteriormente conhecido como PHEIC não é classificado como “evento extraordinário” e não se considera que represente um risco de propagação internacional, o PHEIC é simplesmente considerado injustificado, levando a uma retirada da coordenação internacional. Na maior parte do seu funcionamento corrente, a OMS actua para apoiar as acções dos seus especialistas de saúde, em vez de desempenhar qualquer função como uma agência executiva supranacional. Uma vez que os países possam lutar contra a doença dentro das suas próprias fronteiras, com os seus quadros nacionais, presume-se que a coordenação internacional não é necessária, e o PHEIC é discretamente desprovido de objectivo.

No entanto, como a resposta ao surto de Ébola de 2014-2016 na África Ocidental demonstrou que o acto de declarar o fim de uma pandemia pode ser tão poderoso como o acto de declarar o seu início, e um regresso ao “normal” pode de facto existir juntamente com a continuação de uma emergência. Quando, em Março de 2016, a directora-geral da OMS, Margaret Chan, anunciou que o surto de Ébola já não era um evento de saúde pública de preocupação internacional, o pronunciamento teve consequências significativas a nível internacional, nacional, e local. Os doadores internacionais já não viam justificação para fornecer fundos e cuidados aos países da África Ocidental devastados pelo surto, mesmo quando estes sistemas de saúde em dificuldades continuaram a ser sobrecarregados pelas necessidades dos sobreviventes do Ébola. A nível local, para aqueles que lutam com consequências físicas e mentais e para os sobreviventes do Ébola e as suas famílias e comunidades traumatizadas pela epidemia, a situação mal tinha terminado.

O fim oficial da epidemia também causou preocupação para além dos contextos nacionais pois as organizações não-governamentais internacionais temiam que o fim de uma emergência internacional impedisse o trabalho e a colaboração em matéria de vacinas, que ainda estavam em desenvolvimento na altura, sendo parte da razão pela qual o papel da OMS na proclamação e cessação do estado de pandemia está sujeito a tanto escrutínio. Ao contrário de outros grandes financiadores da saúde mundial, como a Fundação Bill & Melinda Gates ou o Wellcome Trust, que são responsáveis apenas perante si, a OMS é a única agência de saúde internacional que é responsável perante todos os governos do mundo e contém os ministros da saúde de cada país no seio do seu órgão parlamentar, a Assembleia Mundial da Saúde. Desde a sua fundação em 1948, a organização tem sido crucial na coordenação de uma resposta sanitária, fazendo recomendações, e dirigindo esforços na gestão de epidemias.

A sua autoridade não se baseia principalmente na obtenção de fundos para orçamentos mal geridos, mas sim no seu acesso à inteligência e ao conjunto de indivíduos seleccionados, peritos e técnicos com vasta experiência em resposta a epidemias. E no entanto, embora o reconhecimento desta autoridade científica e de saúde pública seja fundamental para o seu papel em crises pandémicas, em última análise as recomendações da OMS são levadas a cabo de formas muito diferentes e em prazos muito díspares em distintos países, províncias, estados e cidades.

Podemos ver, através do nosso consumo diário de notícias, que a linha do tempo das epidemias se desenrola de formas diferentes em vários países. Um país pode começar a aliviar as restrições à circulação e à indústria, enquanto outro está prestes a decretar medidas cada vez mais rigorosas, à medida que as fatalidades aumentam de dia para dia. Como as viagens aéreas internacionais e as redes globais de produção e distribuição quase pararam, ou pelo menos reduziram significativamente, o fluxo de mercadorias, somos diariamente recordados pela falta de laços que nos ligam ao resto do mundo que o fim de um surto numa comunidade, país ou continente não significará o fim da epidemia.

Embora o corte possa parecer universal, a reconexão mostrará uma extraordinária variação local. Muitos acreditam que o fim da COVID-19 chegou simplesmente com o aparecimento das vacinas. No entanto, um olhar mais atento a uma das histórias de sucesso da vacina central do século XX mostra que as soluções tecnológicas raramente oferecem solução para as pandemias por si só. Ao contrário das nossas expectativas, as vacinas não são tecnologias universais. As práticas de vacinação e as infraestruturas existentes para as fornecer são tão diversas como as estratégias de gestão de epidemias seguidas pelos governos nacionais. São sempre implantadas localmente, com recursos e compromissos variáveis em termos de conhecimentos científicos. Isto não é mais visível em lado nenhum do que na gestão de epidemias de poliomielite que causaram estragos em todo o mundo nos anos de 1950. O desenvolvimento da vacina contra a poliomielite é uma história relativamente conhecida, geralmente contada, tanto da história da poliomielite como da americana.

No entanto, nos anos de 1950, as epidemias de poliomielite varreram o globo sem qualquer consideração pelas fronteiras, ou mesmo pela Cortina de Ferro, e em muitos aspectos uniram o mundo politicamente dividido da Guerra Fria com um objectivo comum. Encerradas num conflito que prosseguiria por décadas, às superpotências antagonistas foram providenciadas um porto seguro pela doença em que se podiam encontrar e colaborar. Uma miríade de publicações, cientistas e espécimes cruzaram o globo num esforço para partilhar experiências e investigação na prevenção e tratamento. Alguns anos após o licenciamento da vacina de Jonas Salk nos Estados Unidos, a utilização da vacina inactivada tornou-se amplamente utilizada em todo o mundo. Não funcionou, contudo, em certos cenários, ou pelo menos não tão bem como os governos e cientistas esperavam. Esta incerteza com eficiência deu lugar ao teste em massa de outra vacina viva e oral desenvolvida por Albert Sabin, que colaborou nas fases finais com colegas da Europa de Leste e da União Soviética, principalmente Mikhail Chumakov.

O sucesso dos ensaios soviéticos da vacina contra a poliomielite tornou-se um marco raro da cooperação na Guerra Fria, o que levou na Segunda Conferência Internacional de Vacinas Vivas contra o Poliovírus, em 1960, a afirmar-se que “em busca da verdade que liberta o homem da doença, não há guerra fria”. No entanto, a utilização diferenciada desta vacina fez recuar as divisões da geografia da Guerra Fria. A União Soviética, Hungria, e Checoslováquia foram os primeiros países do mundo a iniciar a imunização a nível nacional com a vacina Sabin, logo seguida por Cuba, o primeiro país do Hemisfério Ocidental a eliminar a doença. Quando a vacina Sabin foi licenciada nos Estados Unidos em 1963, grande parte da Europa Oriental já tinha eliminado as epidemias e estava em grande parte livre da poliomielite. O fim bem-sucedido desta epidemia no seio do mundo comunista foi imediatamente considerado como prova da superioridade do seu sistema político.

Será que a natureza estatista destes regimes os tornou capazes de pôr fim a epidemias de poliomielite? Esta questão pode ser vista e reflectida nos debates em curso sobre as intervenções acerca da COVID-19 no presente. No entanto, foi também colocada em 1948, numa das primeiras reuniões da recém-formada OMS. Após uma guerra devastadora com ditaduras fascistas, e na crescente sombra da Guerra Fria, a invocação de medidas autoritárias foi no mínimo desconfortável, mas a sua necessidade foi amplamente reconhecida. Além disso, foi a organização militar do sistema de saúde soviético que Dorothy Horstman, virologista de Yale e enviada da OMS, enfatizou em apoio à validade dos ensaios de vacinas soviéticas. Tal regime estava bem posicionado para organizar e entregar o empreendimento de forma eficiente. O que uniu o Leste da Guerra Fria não foi apenas autoritarismo e hierarquias pesadas na organização do Estado e da sociedade. Era também uma crença partilhada na integração da política e da saúde como uma imaginação particular da modernidade, numa combinação de um estado paternal, abordagens biomédicas, e medicina social e socializada.

Independentemente da disponibilidade de recursos e de quão longe estavam as realizações dos cuidados de saúde dos seus objectivos, a gestão de epidemias nestes países combinava uma ênfase global na prevenção da doença, trabalhadores da saúde facilmente mobilizados, organização de cima para baixo das vacinas, e a retórica da solidariedade, tudo assente num sistema de cuidados de saúde que visava proporcionar o acesso a todos os cidadãos.

Por mais incompletas que sejam as intervenções imperfeitas, verticais e tecnocráticas de vacinação, encontraram-se com infraestruturas horizontais de saúde e cuidados sociais. As medidas estatistas e dominadoras, portanto, não são suficientes, nem são necessariamente tão benéficas como se poderia imaginar. Soluções alternativas, construídas com base na compaixão e solidariedade e conjugadas com provisões adequadas, podem aliviar e até eliminar tensões que muitas vezes são elevadas em contextos epidémicos. O historiador Samuel Cohn examinou o exemplo do surto de cólera em Berlim, em 1831, onde as autoridades se concentraram na assistência e nas negociações em vez de se debruçarem duramente sobre o assunto, estabelecendo cozinhas de sopa para os desempregados e cuidando dos órfãos das vítimas.

E como resultado, Berlim tornou-se única em evitar os motins da cólera, que se espalharam por cidades alemãs e grande parte da Europa na altura. Há outros exemplos pois no início da Florença moderna durante um surto de peste, o seu conselho de saúde, o Sanitá, combinou medidas de mão pesada com punição para quem violasse as medidas de quarentena (por exemplo, dançando), e ao mesmo tempo fornecia comida e medicamentos a todos os habitantes. O pressuposto era que uma dieta insuficiente, especialmente entre os pobres, contribuiria para a sua vulnerabilidade à doença, pelo que recebiam pacotes diários e semanais de pão, vinho, salsichas, queijo e ervas aromáticas. O número global de mortos em Florença permaneceu significativamente mais baixo do que noutras cidades italianas (cerca de 12 por cento contra 61 por cento) na altura em que a epidemia terminou. Ainda assim, o autoritarismo como catalisador para acabar com as epidemias pode ser destacado e perseguido com consequências duradouras. As epidemias podem ser precursoras de mudanças políticas significativas que vão muito além do seu fim, levantando questões sobre o que então se torna um novo “normal” depois de a ameaça passar.

Muitos húngaros assistiram com alarme ao completo afastamento do parlamento e à introdução do governo por decreto no final de Março de 2020. Não foi fixada qualquer data para o fim das medidas de emergência. O fim da epidemia, e portanto o fim da necessidade do aumento significativo do poder do Primeiro-ministro Viktor Orbán, seria determinado por ele. Da mesma forma, muitos outros Estados, apelando à mobilização de novas tecnologias como solução para acabar com as epidemias, estão a abrir a porta a uma maior vigilância estatal dos seus cidadãos.

As aplicações e os rastreadores agora concebidos para acompanhar o movimento e a exposição das pessoas, a fim de permitir o fim dos bloqueios epidémicos, podem recolher dados e estabelecer mecanismos que vão muito além da intenção original. A vida posterior digital destas práticas levanta questões novas e sem precedentes sobre quando e como terminam as epidemias. Embora queiramos acreditar que um único avanço tecnológico acabará com a crise pré-enviada, a aplicação de qualquer tecnologia de saúde global é sempre local.

10 Jun 2021

Ghosting – a prática ignóbil de terminar relacionamentos

Ghosting. A palavra mais proferida pelas redes socias nos últimos tempos. Todos falam dela e nem parece ter uma tradução para português. Por miúdos: o ghosting é o acto de cortar relações súbita e abruptamente com alguém, desaparecer sem rasto, nem com sucessivas tentativas de contacto. Certamente que já passaram por isso, seja como recipientes ou protagonistas. Uma estratégia progressivamente comum desde que nos virámos para o mundo das seduções e namoros online. É tão comum que já é normal. Só que isso traz problemas.

O contacto online ajudou a “anonimizar” as pessoas, não as responsabilizando pelos seus actos. Quando conhecemos alguém online é provável que não haja amigos em comum, tornando muito mais fácil cortar relações sem explicação alguma, sem pressão para dar uma justificação. Empurrando o trabalho emocional de se dizer “este relacionamento já não me interessa”, ao outro, que fica a pensar que raio poderá ter acontecido. Para as pessoas mais fantasiosas o desaparecimento de alguém pode ser sinal de desgraça. Um acidente de carro e um coma induzido que pode durar 6 meses ou mais. Mas raramente é o caso. As pessoas desaparecem dos chat-rooms, deixam de responder a mensagens, bloqueiam, sem ajudar o outro assimilar: o que aconteceu? Porque é que x ou y deixou de falar comigo?

Nestes casos, o trabalho emocional – que devia ser partilhado – duplica ou triplica só para um dos lados. O problema é a criatura que julga que ignorar os outros é a forma mais fácil de incutir uma mensagem: a de que não estão interessados. A falta de clareza tem consequências na auto-estima das pessoas e no seu bem-estar. Não que as pessoas precisem de tudo explicadinho do porquê ou como é que uma relação deixou de dar certo, precisam de saber que terminou. As características da comunicação digital tem aumentado esta possibilidade de evitarmos as conversas difíceis. Um escudo de proteção que serve a uma pessoa, somente. Como consequência, as pessoas deixam de querer mostrar vulnerabilidade. Começam a ter receito de se envolver se o resultado final for este. Como é que não são dignos de uma conversa onde expressamente se diga que aquela relação não vai a lado nenhum?

O medo de nos pormos em situações que nos deixam desconfortáveis fala mais alto, e as tecnologias ajudam a que ninguém necessite, quiçá, de partir o coração a alguém. Assim damos um passo civilizacional contraproducente.

Ensinamos as pessoas a não enfrentarem o seu trabalho emocional e a empurrarem-no para o evitamento como se fosse uma solução viável. Mas não é. Está a deteriorar a natureza das relações interpessoais para uma mecanização que anseia seguir algoritmos informáticos. Como se fossemos robots onde simplesmente se reage ao que se quer e não quer. Eu diria mais – dependendo da natureza da relação, o mesmo se pode dizer dos emails telegráficos que têm intuito de terminar relações de anos. Protegerem-se do sofrimento do outro, da sua expressão viva de desilusão, é a escolha dos fracos. E assim a comunicação digital explora esta vulnerabilidade humana de não querermos confusões emocionalmente difíceis. O futuro distópico que viverá destas estratégias deixará a nossa humanidade flutuar na espuma do que é verdadeiramente importante: a conexão, e sabermos geri-la.

9 Jun 2021

O trânsito em Macau e as soluções insolúveis

No passado dia 2 ocorreu um acidente grave no Iao On, Macau. Um autocarro atropelou duas crianças, tendo ficado uma delas debaixo do veículo. Os vídeos que circularam na Internet mostraram que alguns transeuntes bateram nas janelas do autocarro para obrigarem o motorista a parar e em seguida ajudaram a retirar a criança.

Posteriormente, a transportadora emitiu um comunicado de imprensa onde afirmava que o autocarro atravessava a passadeira à velocidade de 8 Km/hora quando atingiu as crianças. Foi constituída uma equipa de emergência para analisar as causas do acidente. A empresa apresentou um pedido de desculpas às crianças e aos seus familiares e suspendeu temporariamente o motorista.

É inegável que um acidente deste género é grave. Não é de estranhar que muitos habitantes de Macau estejam preocupados com esta situação. A transportadora suspendeu imediatamente o motorista, deu início a uma investigação e apresentou um pedido de desculpas às crianças e aos familiares. São indicadores que o caso está a ser tomado muito a sério. A suspensão do motorista terá sido a mais importante de todas as medidas, pois é uma forma de garantir a segurança da população.

O apuramento da responsabilidade deste acidente é uma tarefa que cabe à Polícia, ao Gabinete dos Transportes, à transportadora e às crianças envolvidas. A população está mais preocupada com a forma de evitar acidentes semelhantes de futuro.

O acidente ocorreu numa esquina. As passadeiras normalmente são colocadas nas extremidades das ruas. A colocação das passadeiras desta forma facilita a passagem entre artérias. Os carros têm de abrandar quando contornam uma esquina, no entanto, ao curvar, o condutor pode perder a visibilidade de certos ângulos da rua. É realmente difícil abarcar toda a complexidade da temática rodoviária. Se surgirem situações menos comuns, como chuva intensa, peões que desrespeitam as regras de trânsito, inclusivamente que atravessam com o sinal vermelho, as estradas ficam ainda mais perigosas.

Para além da concepção das vias, levanta-se ainda a questão da consciencialização dos peões. É frequente ver pessoas que não respeitam os sinais quando atravessam. O Governo pode processar quem viola as regras, mas isso só iria castigar quem fosse apanhado em flagrante. Este problema só pode ser resolvido através da pedagogia e todos os projectos que envolvem educação são sempre resolvidos a longo prazo. Se os problemas de trânsito em Macau só puderem ser solucionados desta forma, os residentes vão ter de sofrer ainda por muito tempo.

Entretanto, para evitar que acidentes deste género voltem a acontecer, os peões têm de obedecer às regras e os condutores também têm de manter uma atitude conscienciosa. Mas mais importante ainda, é refazer o traçado das passagens de peões que, se estiverem colocadas a meio da via, vão permitir que os condutores vejam claramente se está alguém a atravessar. Desta forma, os atropelamentos podem ser bastante reduzidos.

Claro que em certas ruas de Macau esta mudança não será feita com facilidade, porque muitas delas têm no centro os depósitos para os caixotes do lixo. Se viermos a pôr aí as passadeiras, onde é que poríamos os caixotes do lixo? E onde é que os residentes depositariam os seus resíduos domésticos? Noutras artérias, na parte central foram plantadas árvores e flores. Se estas zonas viessem a ser ocupadas com passadeiras, qual viria a ser o destino das plantas?

As pontes pedonais e os túneis poderiam ser a solução. No entanto, muitos peões têm relutância em subir e descer de pontes para atravessar a estrada. A taxa de utilização das pontes pedonais é baixa. Além disso, de cima da ponte pode ver-se o interior das casas que se situam ao nível do solo, o que vai naturalmente acarretar consigo toda uma complexa questão de privacidade. Ao contrário das pontes, os túneis não levantam questões de privacidade, mas, desta vez, contemplamos o problema da inundação. Se voltar a haver chuvas torrenciais em Macau e os túneis inundarem, como é que os peões vão ousar entrar nos túneis outra vez?

Qualquer solução para este problema desemboca noutro problema e não há nada que possamos fazer para o evitar. Contudo, as condições de circulação do trânsito em Macau têm de ser melhoradas, porque é muito provável que acidentes graves continuem a acontecer.


Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
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8 Jun 2021

Bragança é o novo Entroncamento

Lembram-se certamente que o Entroncamento foi durante muitas décadas conhecido como a localidade dos fenómenos esquisitos, raros ou mesmo misteriosos. Quando acontecia qualquer coisa de anormal em outro local lá se dizia “isso é um fenómeno do Entroncamento”. Pois bem, agora temos outro Entroncamento chamado Bragança.

Só que neste caso estamos perante factos muito tristes. Há uns tempos, Bragança chegou a ser notícia na capa da revista “Time” porque numa localidade tão pequena como era Bragança instalou-se mais de uma dezena de prostitutas brasileiras e aquilo foi o fim do mundo. Os homens brigantinos ficaram loucos porque nunca tinham visto mulheres tão lindas, com corpos esculturais e com a possibilidade de lhes “tocar”… Nesse fim do mundo, as esposas fizeram tudo para que as brasileiras fossem expulsas da terra já que os seus maridos nem iam dormir a casa.

Lutaram de tal maneira contra a presença das prostitutas que as autoridades correram mesmo com as “loiras” para fora de Bragança.

Desta vez, o “fenómeno” é muito mais grave e entra no foro judicial. Há crime em Bragança que chocou o país. Crime multiplicado por imensos casos e praticado há muitos anos por médicos e proprietários de agências funerárias e ainda por mais alguém que a Polícia Judiciária (PJ) está a investigar. Os crimes foram hediondos e já foram detidos dois médicos, um que até era o presidente dos Bombeiros Voluntários de Bragança e o outro ou outra, era, imaginem, a delegada de saúde. Estes clínicos passavam certidões de óbito sem sequer verem os cadáveres, confiando nos agentes funerários. Segundo as nossas fontes policiais, os crimes podem ultrapassar tudo o que se possa pensar, incluindo terem sido mortos por envenenamento ou outros métodos, para que os herdeiros recebessem espólios avultados e valiosos. Esses herdeiros dividiam depois o pecúlio com as funerárias e com os médicos. Isto, além de muito chocante é quase inacreditável. Quantos velhotes teriam sido mortos durante anos?

Provoca repulsa à maioria das gentes falar-se em pena de morte. Portugal foi dos primeiros países a abolir a sentença máxima em 1867, mas os tempos mudaram de tal forma e assiste-se a crimes tão desumanos e ignóbeis que já se ouve muita gente a concordar com a pena de morte para certos indivíduos, tais como os que abusam sexualmente de crianças com menos de dois anos de idade.

Bragança está a ferro e fogo. A PJ de Vila Real não tem parado um dia a investigar toda esta rede criminosa que pode ter ceifado muitas vidas de velhos brigantinos. Foram detidos já dois médicos e sete agentes funerários por suspeita de corrupção e falsificação de documentos. Neste país parece que só falta vermos elefantes a passear na praia do Estoril. Esta operação da PJ que foi denominada “Rigor Mortis” prendeu quem menos se esperava, o médico José Moreno, delegado de Saúde Pública, presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Bragança, presidente da Assembleia-Geral da Santa Casa da Misericórdia e membro da Assembleia Municipal eleito pelo PSD. O povo de Bragança nem quer acreditar que esta “personalidade” fosse capaz de entrar num esquema tão criminoso e obscuro. Inacreditavelmente, os médicos envolvidos terão certificado a morte de centenas de pessoas à distância, a maioria das quais idosos que viviam nas aldeias, sem apurar se havia ou não indícios de crime. Isto é infame e repugnante.

Já foram realizadas 29 buscas domiciliárias e não domiciliárias e entre os detidos encontram-se seis homens e três mulheres, com idades compreendidas entre os 38 e os 67 anos, suspeitos da autoria dos crimes de recebimento indevido de vantagem, corrupção, falsificação de documentos e falsificação informática. Ora, se existia uma rede deste calibre tudo leva a crer que era intencional tirar a vida aos velhos para herdar as suas fortunas.

A que propósito é que os médicos emitiram e entregaram a agentes funerários, mediante contrapartida financeira, várias dezenas de certificados de óbito e respectivas guias de transporte de cadáveres sem praticarem os actos médicos que lhes competia legalmente?

A PJ já classificou os crimes como algo de “muito grave” por desconfiar que as mortes podem ter tido origem criminosa e porque o princípio da segurança no sistema de saúde foi posto em causa. As nossas fontes policiais não nos adiantaram os quantitativos recebidos pelos médicos, mas adiantaram que se cifra em muitos milhares de euros.

Um dos responsáveis da PJ de Vila Real que está a investigar o caso, adiantou à comunicação social que “Sempre que temos a emissão de um certificado de óbito, onde se faz constar informação relativa aos falecidos que é fornecida através de familiares, através de pessoas, sem que haja verificação concreta pelo médico no local, corremos o risco de ter situações em que haja mortes em que possa ter havido intervenção de terceiros sem que isso seja verificado conforme a lei impõe”, concretizou.

Presentes a tribunal, o principal arguido, o médico delegado de Saúde ficou com suspensão de funções e sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, enquanto os restantes oito arguidos ficam sujeitos a apresentações bissemanais às autoridades e proibidos de contactarem entre si. A maioria da população de Bragança diverge da sentença e entende que deviam ter sido todos presos preventivamente. E é por estas e outras que o povo não acredita na Justiça.

*Texto escrito com a antiga grafia

7 Jun 2021

Benefícios económicos e pegadas ecológicas

O turismo de negócios é normalmente visto como um dos segmentos mais interessantes para qualquer destino turístico: são normalmente pessoas com gastos bem acima da média, que ficam por pouco tempo mas geram maiores benefícios económicos, quer porque os seus rendimentos pessoais não os obrigam a grandes restrições e até lhes permitem eventuais extravagâncias, quer porque, na maior parte dos casos, as despesas são larga ou totalmente cobertas pelas organizações que representam. São turistas com pouco tempo mas com acelerado consumo, o que frequentemente envolve restaurantes de gabarito e até permite mobilizar um conjunto de serviços com relativa sofisticação para oferecer programas de visita de curta duração e alta qualidade e conforto para quem tem oportunidade mas pouco tempo para explorar alguns dos encantos de um território pouco ou nada conhecido.

Essa desproporção entre a o dinheiro e o tempo disponíveis tem outra consequência, no entanto: são viajantes sem tempo a perder, em correrias sucessivas para cumprir as tarefas profissionais, seja uma reunião para concretizar uma parceria estratégica para o desenvolvimento de novas áreas internacionais de negócio, uma feira de promoção turística, uma operação imobiliária, um encontro com jovens criadores, o patrocínio de um festival de verão ou a apresentação de uma comunicação numa conferência. Há sempre pouco tempo para as tarefas e ainda menos para explorar novos destinos ou as últimas novidades em territórios já conhecidos. Tudo corre com uma urgência que requer rapidez e flexibilidade, aparentemente tidas como incompatíveis com a programação colectiva dos transportes públicos e a inerente rigidez relativa de ritmos e horários.

Foi essa a principal conclusão de um estudo ainda fresco, publicado esta semana no Journal of Transport Geography, em que explorámos potenciais relações entre as características sócio-demográficas dos turistas, as suas motivações para a visita, as respectivas opções de transporte e a satisfação que tiveram ou não com a experiência turística. O estudo foi conduzido em Barcelona, cidade com um vasto e bem organizado sistema de transportes público, que garante acessibilidade relativamente fácil a todas as zonas urbanas – ou pelo menos às zonas normalmente frequentadas pelos turistas, incluindo os que viajam por motivos profissionais. Informação abundante, de fácil identificação e interpretação, disponível em várias línguas, ajuda a ultrapassar as possíveis barreiras de comunicação frequentemente associadas à dificuldade de utilização de transportes públicos por turistas.

Nestas circunstâncias – em que se dispõe de uma satisfatória rede de transportes públicos sem significativos problemas de linguagem e comunicação – observámos que as diferentes características dos turistas (idade, sexo ou nível de educação, entre outras variáveis) pouco influenciam a escolha dos modos de transporte (ainda que os turistas mais jovens tendam a preferir transportes colectivos, até por restrições financeiras). No entanto, o factor que se revelou mais determinante nessa escolha foi o motivo da viagem, com os turistas motivados pelo lazer ou pela visita a familiares e amigos a revelar clara preferência por transportes públicos, em contraste com a preferência por transporte individual (taxis, sobretudo) revelada pelos visitantes cuja presença em Barcelona se deve a motivos profissionais. Na realidade, o estudo mostrou ainda que também os turistas com motivação profissional tendem a preferir transportes colectivos quando a visita se torna mais longa e é combinada com lazer ou visitas a familiares e amigos. Também se demonstra com clareza que a utilização de transportes públicos, não só não diminui a satisfação com a visita, como é um dos factores que mais contribui para uma apreciação global positiva da cidade de Barcelona.

A questão dos transportes é, evidentemente, um aspecto central no futuro do turismo, tendo em conta o respectivo impacto nas emissões de CO2 e inerentes implicações sobre as alterações climáticas em curso. Em estudo recente publicado pela Organização Mundial de Turismo e pelo Forum Internacional de Transportes, estimava-se em 5% o contributo do turismo para o total de emissões de CO2 provocadas por acção humana. Para essas emissões contribuem sobretudo o transporte aéreo (40%) e o transporte por automóvel (32%), sendo de apenas 3% o contributo de todas as outras formas de transporte (incluindo comboios, barcos ou autocarros). Se a redução drástica do turismo internacional e do transporte aéreo parecem a única alternativa razoável para tentar compatibilizar o futuro do turismo com uma resposta efectiva às alterações climáticas, a substituição do transporte em automóvel por transportes colectivos parece ter semelhante importância e urgência nos processos de mobilidade no interior de cada destino turístico.

O obstáculo a esta transformação, sugere o nosso estudo, são os atarefados e apressados turistas com afazeres profissionais, o único grupo com preferência inequívoca pelo táxi. São turistas que pelo seu poder de compra proporcionam maior impacto económico, mas que também deixam nas paisagens marca mais pesada da sua pegada ecológica, com acumulação intensiva de emissões de CO2 relacionadas com aviões, primeiro, e automóveis privados, depois. Está por conseguir, mais uma vez, melhor equilíbrio nesta relação entre benefício económico impactos sobre o ambiente. Não deixa de ser relevante, já agora, que neste grupo de turistas nos encontremos também nós, investigadores mais ou menos preocupados com estas questões, quando participamos nas conferências e congressos de que não gostamos de abdicar.

Concluo com uma curiosidade relevante: porque motivo um investigador japonês radicado no Japão e uma investigadora chinesa a trabalhar na Coreia se dedicam a estudar a cidade de Barcelona? É uma razão prática, sobretudo: em Barcelona é entendido que toda a informação obtida com financiamento público deve estar acessível ao público. Assim sendo, estão online e com acesso livre todos os dados recolhidos nos inquéritos regulares que a Câmara de Barcelona faz a turistas e residentes. É verdade que há poucas cidades onde um estudo destes possa ser feito – com quantidade significativa de turistas e uma rede de transportes públicos eficaz e sem grandes barreiras de comunicação – mas esta é a única que disponibiliza gratuitamente os dados necessários a um estudo deste género.

5 Jun 2021

Plano Director VIII – Dos momentos históricos e da ideologia

Por Mário Duarte Duque

 

O espaço urbano demarca-se do espaço natural pela artificialidade, mesmo quando proliferam elementos naturais nas cidades. Por isso, as cidades nunca poderiam ser ingénuas. Só a natureza é ingénua, pois não avalia, não reflecte, não planeia os seus actos. Produ-los automaticamente.

Em expressão disso, Kostof tipificou as cidades quanto ao seu método de génese por cósmicas, práticas e orgânicas.
A cidade orgânica é uma cidade coesa e indivisível. Comporta-se mais como um organismo contínuo do que como uma máquina com componentes especializadas. Depende de uma dimensão ideal e tem interacções próprias que lhe permite de imediato ajustar-se à mudança. Fa-lo mais por via de uma “consciência própria” do que por via de intervenção instrumental. Admite-se que Macau se tenha desenvolvido e caracterizado nesta categoria.

A cidade prática é a cidade a que recorre a instrumentalização para se manter factual e funcional, e depende recorrentemente da actualização dessa instrumentalização para lidar com a intensificação e com a mudança. É feita de componentes especializadas e autónomas, como se de uma máquina se tratasse. A falta de sincronia gera necessariamente disfuncionalidade. De todas as categorias, Kostof designou a cidade prática a menos “mágica”, que podemos também interpretar como a menos rica em deslumbramento.

Admite-se que em Macau já se tenha extinguido qualquer viabilidade de uma cidade orgânica, e que o modelo necessário lançar mão para resolver o ordenamento urbano da RAEM seja necessariamente o da cidade prática. Todavia, dessa constatação resultam duas condições complexas. Desenvolver novos instrumentos directores de ordenamento territorial e, simultaneamente, mudar o paradigma da génese urbana. A equação não parece fácil numa cidade onde pesam atributos históricos.

A cidade cósmica é a cidade ideal. Pauta-se por um diagrama ou um traçado que traduz uma interpretação do universo, onde os atributos podem ascender a um sentido de divino ou de verdade absoluta, muitas vezes articulado com a expressão do poder. Os modelos conhecidos no ocidente foram de apreensão racional, por via de uma grelha que regula todas as hierarquias espaciais e sociais, ou foram de apreensão sensorial recorrendo a eixos visuais e a impressionantes cenários urbanos onde o observador é um participante nessa teatralização.

São estas as cidades onde o ordenamento territorial é mais marcado por um “texto” função de uma ideologia sobrejacente, e que é explícita.

A título de exemplo, foi assim que as três vias do tridente que representa os três poderes da soberania, concentram-se à entrada do palácio de Versailles, e fácil é perceber em quem todos esses poderes convergiam à data. Mas em Washington DC o mesmo tridente já se concentra numa praça pública, e apenas numa das três vias o edifício do Capitólio tem a sua posição.

Como também a abertura da Av. Almeida Ribeiro em Macau se pautou por um momento histórico e por ideologia sobrejacente.

A mesma configuração urbana pode ainda ser simultaneamente expressão de um texto diferente a que chamamos “subtexto” quando, noutro plano de leitura, expressa ainda outro discurso cuja interpretação já é mais estrita.
Exemplo disso é a Baixa Pombalina onde, a par de um modelo racional de índole iluminista e classista, configura um altar maçónico, porque também era esse o pensamento místico dos que aí intervieram

Muitos planos de ordenamento territorial também emergiram de efectivos ou de eminentes cataclismos geográficos ou sociais que acabaram por servir a afirmação de já existentes ou novos status quo.

Desastres naturais e convulsões sociais foram recorrentemente origem catalisadora para a reconstrução aperfeiçoada das cidades, nomeadamente com iniciativas ambiciosas e oportunidade exibir o prestígio das cidades e dos protagonistas dessas transformações.

Muitas das linhas orientadoras dessas medidas são resultado de situações de exaustão, de risco, ou mesmo de colapso. São medidas que em muitas frentes se configuram em sentido de “defesa”, fosse qual fosse o efectivo “agressor”, assim como em sentido de “eficiência”.

Foi assim que as cidades se especializaram em determinadas aptidões. Cidades fluviais desenvolveram conhecimento em hidrologia para fazer face a recorrentes inundações, Lisboa desenvolveu estruturas resistentes a tremores de terra, e Singapura especializou-se numa política de integração étnica, garantindo que a ocupação de cada conjunto habitacional tenha uma correspondência étnica equiparável ​​à média nacional, pois foi esse equilíbrio que esteve na génese da separação de Singapura da Malásia.

Mas também se conhece exemplos do contrário, como foi o caso de Londres, e importa conhecer as razões. Apesar de se terem configurado desenhos inovadores de grande escala para a reconstrução da cidade após o Grande Incêndio em 1666, nenhum prosseguiu. A razão atribui-se à dificuldade em reconfigurar direitos sobre o solo. No entanto, foram feitas melhorias na cidade, nomeadamente na higiene e segurança contra incêndios, com ruas mais largas, construção de pedra e acessos ao Rio.

O mesmo não foi impedimento para que o conhecimento não fosse desenvolvido e viesse a ter utilidade, como efectivamente teve para o estabelecimento e apetrechamento de cidades na América do Norte.
Chegados aqui é legítima a expectativa que o Plano Director de Macau seja particularmente forte nas vertentes que são as principais preocupações da RAEM e, nesse sentido, desenvolva aptidões acrescidas, que desde logo se afiguram serem o saneamento urbano em condições hidrológicas adversas, assim como a habitação e a pressão imobiliária. O que se delinear na vertentes de transportes será em função e em articulação com essas decisões.

Como é igualmente legítima a espectativa de que o pensamento sobrejacente não seja ingénuo e, por isso, as soluções nas vertentes mais importantes não devem ser triviais.

A Proposta de Plano Director pra a RAEM não produziu um “texto” relevante de uma posição ideológica que deve caracterizar o futuro ordenamento territorial, pelo que não é exercício inútil especular sobre possíveis “subtextos”.

Daí é possível extrair que as orlas da RAEM são objecto de mais definição e intervenção, nomeadamente em circulação viária, do que as zonas mais interiores, seja qual for o actual nível de consolidação.

É pela orla do território que será feita a integração definitiva da RAEM no território continental da RPC, como é também esse o alcance temporal do Plano Director. Por isso, não faz sentido que tal integração não seja um ponto forte, senão o mais forte, do “texto” da Proposta de Plano Director, ou que isso se deva extrair de um “subtexto”, sendo que “subtextos” são frequentemente discursos secretos ou enigmáticos.

Assim, trazer esse “texto” à luz do Plano, permitiria estabelecer linhas orientadoras para definir funcionalmente e paisagisticamente essas frentes de integração do território, mesmo quando o ponto de partida ainda só seja a rede viária. Em verdade, mesmo projectando uma estrada regional ponderam-se as opções de traçado que, para além da sua utilidade, tornam a viagem mais aprazível.

Sobrejacente ao acto de ordenar o espaço está, ou deve estar, o pensamento que comanda as regras por que um plano urbanístico se pauta, e que, necessariamente, é reflexo do ordenamento social existente ou em vista.

É por isso impossível interpretar a paisagem urbana à margem de uma narrativa política ou do pensamento no momento histórico. Do mesmo modo que também é impossível não concluir pela ausência de narrativa, quando estamos perante algo ingénuo.

Por isso, a interpretação na vertente ideológica poderá posicionar-nos diferentemente na apreciação de um plano de ordenamento territorial. Mas já nos colocamos solidariamente na mesma posição perante tudo o que se nos apresenta ingénuo, trivial, ou que não releve em discurso urbano.

5 Jun 2021

O estado do clima

São de tal maneira frequentes as referências ao aquecimento global e às alterações climáticas que, por vezes, se confundem os dois conceitos. O aquecimento global refere-se ao aumento da temperatura média do ar, à escala global, enquanto que alterações climáticas se trata de um conceito mais vasto, que inclui o aquecimento global e as suas consequências, como sejam o aumento da frequência e intensidade de fenómenos meteorológicos, como tempestades, degelo das calotas polares e gelo marítimo, ondas de calor, secas, etc. Pode-se afirmar que o aquecimento global é um dos muitos sintomas das alterações climáticas. Note-se que, quando se fala na temperatura do ar sem se especificar a que altitude se refere, subentende-se que é entre 1,25 a 2 dois metros de altura, medida num abrigo meteorológico sobre terreno com relva.

Embora tenha sido em pleno século XIX que os cientistas começaram a dar grande importância ao facto de determinados gases na atmosfera terem a capacidade absorver calor, só nos anos oitenta do século passado foi possível antever, em termos quantitativos, o efeito que esses gases tinham no aumento da temperatura à escala global. Foi James Edward Hansen, climatologista americano, que, recorrendo a um modelo climático por si construído, em 1981, chegou a conclusões que levantaram grande celeuma no meio científico, antevendo que a temperatura média do ar poderia sofrer um aumento de 3,0 ºC a 4,5 ºC até 2100, valores muito próximos dos constantes nos relatórios do IPCC, apesar de nessa altura a capacidade dos computadores ser muito menor do que a dos atuais.

Já antes, nos anos setenta, Hansen havia colaborado na elaboração do Relatório Charney, no qual se alertava o governo dos EUA sobre as implicações do uso intensivo do carvão como combustível. devido às emissões de dióxido de carbono. Este relatório constitui uma base científica sólida do que se convencionou designar por aquecimento global.

Em 1988, Hansen proferiu uma palestra perante o Congresso dos Estados Unidos que causou grande controvérsia, não só nos meios científicos e políticos, mas também no público mais atento aos grandes problemas da humanidade.

Era tão crente das suas conclusões, que se tornou ativista e foi várias vezes preso por incitar a manifestações populares contra o uso de combustíveis fósseis, alertando para as graves consequências para o equilíbrio do sistema climático.

Já passaram algumas dezenas de anos e, apesar da criação da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (United Nations Framework Convention on Climate Change – UNFCCC) e dos 25 encontros científicos, designados por Conferências das Partes (COPs), promovidos no âmbito desta Convenção, e dos compromissos assumidos, a concentração de gases de efeito de estufa (GEE) continua a aumentar.

Os termos da UNFCCC foram submetidos à apreciação dos Estados participantes na Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro de 3 a 14 de junho de 1992, tendo entrado em vigor em 21 de março de 1994. Foi numa das 25 COPs promovidas por esta Convenção que se negociou o Acordo de Paris (COP 21, 2015), que veio a substituir o Protocolo de Quioto a partir de 2020.

O Acordo de Paris constitui o primeiro tratado internacional a pressionar os aderentes a executarem planos de ação para reduzirem os GEE, induzindo os países a colaborarem dentro das suas possibilidades, exigindo, no entanto, a execução das chamadas NDCs, sigla em inglês de Nationally Determined Contributions (Contribuições Determinadas a Nível Nacional).

Apesar das ações no âmbito destes tratados internacionais, promovidas sob os auspícios das Nações Unidas, para alertarem os governos sobre a necessidade do cumprimento das respetivas recomendações e decisões, as medidas tomadas até agora não têm sido de molde a reduzir as emissões dos GEE e travar as graves consequências desta inação.

No último relatório sobre o estado do clima elaborado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), designado por “State of the Global Climate 2020”, são destacadas as seguinte conclusões:

As concentrações dos principais gases de efeito estufa, dióxido de carbono, metano e óxido nitroso (CO2, CH4 e N2O), continuaram aumentar apesar da redução temporária das emissões em 2020, devida às medidas tomadas em resposta à COVID-19.

2020 foi um dos três anos mais quentes já registados. Os últimos seis anos, incluindo 2020, foram os mais quentes desde que há registos. A temperatura atingiu 38,0° C em Verkhoyansk, na Federação Russa, em 20 de junho de 2020, o valor mais alto registado a norte do Círculo Polar Ártico.

A tendência de subida do nível do mar está a aumentar. Além disso, o armazenamento de calor pelo oceano e a acidez estão também a aumentar, o que implica diminuição da capacidade do oceano para moderar as alterações climáticas.

A extensão do gelo marítimo do Ártico em setembro de 2020 foi a segunda menor registada. O recuo do gelo no Mar de Laptev, a norte da Ásia, foi o mais precocemente observado desde que há satélites meteorológicos.

A tendência de perda de massa de gelo na Antártida acelerou por volta de 2005 e, atualmente, a Antártida perde aproximadamente entre 175 e 225 milhões de toneladas de gelo por ano.

A estação de 2020 dos furacões no Atlântico Norte foi excecionalmente ativa. Furacões, ondas de calor extremo, secas severas e incêndios florestais causaram prejuízos de dezenas de milhares de milhões de dólares e elevado número de mortes.

Durante o primeiro semestre de 2020 foram registados cerca de 9,8 milhões de migrantes, em grande parte devido a riscos e desastres hidrometeorológicos.

Interrupções nas atividades agrícolas devido à Covid-19 agravaram o impacto de fenómenos meteorológicos em toda a cadeia alimentar, intensificando os níveis de insegurança alimentar.

De acordo com o último relatório da Agência Internacional de Energia, divulgado em 20 de abril deste ano, esta organização antevê que em 2021 ocorrerá muito provavelmente o segundo maior aumento anual de sempre de emissões de dióxido de carbono.

Entretanto, o regresso dos Estados Unidos da América ao Acordo de Paris constitui uma esperança para humanidade, na medida em que, sendo o segundo maior emissor de GEE, poderá contribuir grandemente para o cumprimento deste tratado internacional. A União Europeia, apesar da renitência de alguns membros, está a elaborar a Lei Europeia do Clima, preconizada no Pacto Ecológico Europeu, com cuja implementação se pretende atingir a neutralidade carbónica em 2050. Um dos países mais renitentes é a Polónia, país em cerca de 80% da eletricidade é produzida em centrais de carvão.

Portugal tem vindo a tomar algumas ações significativas no sentido da diminuição da utilização de combustíveis fósseis, encerrando a central termoelétrica de Sines, em 14 de janeiro de 2021, e programando a cessação do funcionamento da central do Pego, em novembro próximo. Com este encerramento, o carvão deixará de ser utilizado para a produção de eletricidade no nosso país.

*Meteorologista

3 Jun 2021

Perdidos na transcodificação

Na passada quinta-feira foi divulgada uma situação que certamente criou bastante transtorno a quem estava a viajar entre a China continental e Macau. Por volta do meio-dia, o sistema informático deixou de conseguir transcodificar os códigos dos cartões de saúde (códigos QR) entre as duas zonas, o que perturbou seriamente a passagem nas fronteiras.

Embora o sistema tenha voltado ao normal por volta das 12.30h, voltou a falhar às 17.00h desse mesmo dia. Nesta altura, o sistema deu um alerta de avaria. Cerca das 19.40h o problema estava resolvido e o movimento entre fronteiras foi retomado.

Não é a primeira vez que ocorre uma falha na leitura do código e não é a primeira vez que causa transtornos.
Desta vez, julgando pela organização, é óbvio que o Governo já há muito tempo que vinha a fazer preparativos para esta eventualidade. Quando o sistema informático falhou, verificou-se que o pessoal envolvido conhecia perfeitamente o plano de emergência, o que fazer e como deixar as pessoas passar. A polícia implementou medidas de controlo de multidões, pedindo às pessoas em trânsito que usassem plataformas de informação em tempo real para verificarem quais os pontos de passagem mais movimentados, de forma a evitá-los, para que a travessia na alfândega se fizesse com a maior facilidade possível. Estas medidas demonstraram que os funcionários governamentais estavam bem coordenados e que os viajantes foram também bastante cooperantes. No final, toda a operação decorreu sem problemas.

Embora actualmente o novo coronavírus ainda esteja a ameaçar a saúde dos seres humanos, não afectou os intercâmbios frequentes entre Zhuhai e Macau. A avaliar pelos problemas que têm acontecido por falhas na leitura do código, percebemos que esta questão pode criar uma quebra na comunicação entre as duas cidades, afectando a vidas das pessoas que transitam entre ambas. Este problema tem de ser abordado com seriedade.

Qual terá sido a causa da falha no sistema informático? Se foi um ataque de hackers, implica que houve crime informático, e a polícia naturalmente dará início a uma investigação.

Se a falha se ficou a dever a problemas com o software ou com o hardware, resta-nos pedir aos dois Governos que aperfeiçoem a manutenção e a monitorização do sistema informático. Por exemplo, haverá necessidade de adicionar novos servidores para aliviar a carga dos que já existem? Esta medida não só aumentaria a eficiência, como também reduziria a probabilidade de ocorrência de situações que causem transtornam a quem se desloca entre as duas cidades.

Além disso, as operações processadas pelos sistemas informáticos implicam transmissão de dados. Desta forma, poderá ser necessário uma maior monitorização das redes para evitar que haja uma sobrecarga provocada pela transmissão simultânea de excesso de dados, que possa dar origem a um problema na leitura do código.

É evidente que os peritos conseguem resolver problemas informáticos, mas para que seja possível atravessar fronteiras sem dificuldade, quando ocorre um erro na transcodificação, cada pessoa tem de ser responsável. Uma das formas de ultrapassar o problema seria unificar os códigos QR de Zhuhai e Macau. Mas embora esta solução fosse simplificar a passagem entre as duas cidades, iria levantar questões de privacidade.

Actualmente, é impossível saber quantas pessoas entram e saem em cada posto fronteiriço, quer estejam a usar o código QR de Macau ou de Zhuhai. Em circunstâncias normais, quanto mais pessoas passarem em determinadas alfândegas, mais pesado será o sistema informático desses locais. Se fosse possível adicionar uma ligação entre os códigos QR de Zhuhai e de Macau, os passageiros poderiam verificar em tempo real a afluência de cada ponto fronteiriço durante a transcodificação. Isto não só reduziria o congestionamento nas fronteiras, como também reduziria a sobrecarga do sistema informático. É por isto que o Departamento de Imigração necessita com urgência que os passageiros passem a usar plataformas de informação em tempo real de forma a procurarem os pontos fronteiriços menos movimentados. Desde que estas plataformas tenham uma ligação aos códigos QR, as pessoas podem obter informação relevante em tempo real e, mesmo quando a transcodificação não é viável, as alfândegas podem continuar a funcionar normalmente.

É evidente que a forma mais simples e mais directa, será proceder à transcodificação antes de chegar à alfândega para evitar os congestionamentos.

Os sistemas informáticos dependem de máquinas e as máquinas podem avariar-se. Não é possível esperar que funcionem sempre a 100 por cento. A chave está em estabelecer um bom plano de emergência. Desde que este plano esteja bem concebido, pode colmatar-se as falhas informáticas. Mesmo nessas circunstâncias, haverá forma de resolver os problemas e os inconvenientes serão minimizados.


Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
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2 Jun 2021

O labirinto da política

Em Portugal os políticos ou enlouqueceram ou querem matar-se uns aos outros. Já ninguém do povinho os entende e o que é que pretendem. Houve um escriba que até se deu ao luxo de afirmar que a direita e a esquerda políticas tendem a acabar… O homem não deve ter tido conhecimento do que aconteceu na semana passada e que está a fazer correr muita tinta. O chamado “Congresso das Direitas” pode ser classificado de duas formas: por um lado a pretensão de ressuscitar dinossauros de triste memória que até percebiam imenso de submarinos e por outro, um palco onde se promoveu a extrema-direita sem que se ouvisse uma intervenção com algum conteúdo de política digna, futurista, infraestrutural, alternativa ou até, num extremo analítico, de união dessas direitas para que pudessem vencer futuras eleições. Não, aquilo pareceu mais um velório, onde o silêncio foi quebrado com baboseiras de indivíduos que escolheram a política para se manterem à tona da sociedade ou para enriquecerem. Não ouvimos um discurso com conteúdo suficientemente baseado em propostas de mudança no país, de forma a que os desprotegidos deixassem de dizer que não há justiça, que não há saúde, que não há educação, que não há combate à corrupção, que não há economia, que não há emprego e por aí fora tal como diz continuamente a vox populi.

A ideia parva de juntar uns comentadores ultrapassados, os líderes do CDS, Chega, Iniciativa Liberal e PSD foi algo de absurdo porque nenhum daqueles “sábios” está interessado numa mudança social no país. Eles querem promover-se e afirmar que são de direita, sem o serem. Para serem de direita têm de assumir, em princípio, propostas conservadoras mas sérias e democráticas. Ora, ali naquela reunião chamada “Congresso das Direitas” só vimos um liberal que não tem iniciativa alguma. Um fala-barato da extrema-direita que só para rir é que se ouve o fulano a dizer que quer ser governo, um centrista que se apelida de democrata-cristão e um ex-autarca que deixou os adeptos do seu partido, dito social-democrata, de boca aberta quando afirmou que não era de direita, mas sim do centro. Mas qual centro? E assim quase que se concluiu que não há direita na política portuguesa. A palhaçada ultrapassou os limites quando levaram para a plateia o ex-primeiro-ministro e líder do PSD, Pedro Passos Coelho, que ao fim e ao cabo foi a vedeta da “festa” mais aplaudida. E porque teria estado ali esta figura pública ultrapassada? Alguém pretende que Passos Coelho volte a ser o número um do PSD? O próprio diz que não quer. Ou há sonhadores que o querem promover para eventual candidato a Presidente da República nas próximas eleições?

Obviamente que há direita política. São todos aqueles que estiveram no denominado “congresso”. Todos são de direita e da extrema-direita. Todos querem acabar com o reinado de António Costa e aproveitarem-se das divergências existentes no Partido Socialista e restante esquerda representada pelo Partido Comunista e Bloco de Esquerda. O tal “congresso” foi um fiasco e nem uma proposta de alternativa ao actual regime socialista foi ouvida pelo auditório, de onde se conclui que afinal, o grande vencedor daquela triste iniciativa foi António Costa, o qual até já anunciou a sua recandidatura a líder do PS.

Triste é vermos a luta das sanguessugas pelo poleiro na esquerda política. No PS, Pedro Nuno Santos, Fernando Medina e Ana Catarina Mendes. Três facções em que os apoiantes já começaram a “trabalhar” para que um dos três políticos possa ser o substituto de António Costa na liderança socialista. Os políticos enlouqueceram. Querem ser alguma coisa que os leve à televisão. Autarcas, deputados ou governantes, todos repetem a mesma lengalenga aos assessores para que estes os promovam na hasta pública. Sim, porque se trata de um leilão, onde por vezes aquele que tiver mais dinheiro é que coloca a coroa de diamantes na cabeça. No Partido Comunista, Jerónimo Sousa, continua com a teimosia de ver o Bloco de Esquerda como “ladrão” de votos e a partir daí não admite entendimentos à esquerda. Por sua vez, no Bloco de Esquerda as manas Mortágua estão desejosas de que Catarina Martins volte para os palcos de teatro e deixe o microfone bloquista.

Temos, sem dúvidas, políticos de direita e de esquerda que não compreendem o que o povo necessita. Não são capazes de ver as miseráveis reformas que são pagas a milhares de velhos que trabalharam uma vida inteira e que imensas empresas não lhes executaram os devidos descontos para a Segurança Social. São políticos que há dois anos andam a falar de pandemia, confinamento e covid-19, três palavras que nunca tinham antes pronunciado. Estes políticos estão a desgraçar o país porque o povo está cada vez mais a optar pela abstenção de cada vez que temos eleições. E quem ganha com isto é sempre o populismo normalmente de extrema-direita, o que é perigoso. Estamos num labirinto difícil de encontrar a saída, mas onde os portugueses têm de começar a levantar a voz bem alto de modo a que o seu protesto é que tenha de mudar o paradigma de políticos que valem zero.

*Texto escrito com a antiga grafia

1 Jun 2021

Em defesa de uma agenda cultural para a cidade

Opinião de João Miguel Barros

1. Macau é uma cidade pequena, com comunidades diversificadas. Tem muita gente por cm2, mas não tanta assim interessada em acontecimentos culturais contemporâneos. No entanto, a autonomia individual na promoção e dinamização cultural, e a lógica do “cada um por si”, que aparenta ser um sinal de enorme riqueza e variedade, torna-se num factor não inclusivo e até de exclusão à participação nas actividades culturais que se vão organizando pela cidade.
Somos muitos e apenas deve contar quem está. Mas não é possível estar em mais do que um lugar ao mesmo tempo. E este é o problema.
Justifica-se que a autonomia de cada uma das entidades que organizam eventos leve a que se tenha, por vezes, duas e três inaugurações no mesmo dia e há mesma hora?

2. Em meu entender, isto é um absurdo. Mas pode ter solução se houver vontade de se começar a olhar para além do próprio umbigo!

3. O caminho não é limitar a capacidade de iniciativa de ninguém (a livre iniciativa na organização, como a liberdade criativa, são sempre bens a preservar e a defender de forma intransigente). Mas já seria uma boa solução se fosse criada uma agenda cultural para a cidade.
Poderão realizar-se eventos que coincidam no mesmo dia e hora, se for essa a vontade consciente das entidades envolvidas, mas é imperioso minimizar os “riscos” dessa sobreposição.

4. O Instituto Cultural (ou a Direcção de Turismo) poderia, e deveria, promover uma plataforma de registo prévio de eventos, aberto a todas as entidades que organizem eventos culturais, para que, com antecedência, essas entidades “reservem” espaço de calendário, deixando nesse backoffice uma previsão da sua programação cultural. As entidades (associações, fundações, departamentos do governo, etc.) teriam assim, querendo, um instrumento de planeamento da sua programação (e nunca de controlo ou censura), que lhes permitiria ajustar as suas inaugurações ou realizações a dias livres e sem se sobreporem a outros “acontecimentos” já previamente projetados.

5. Uma vez confirmadas as diversas iniciativas, o conteúdo dessa agenda cultural deveria ser disponibilizado em três línguas através de uma página própria na internet, onde se dariam detalhes públicos sobre cada uma das concretas iniciativas a acontecer ou em curso. E assim teríamos, também, mais um instrumento de promoção de um turismo cultural que importa dinamizar, e que vá para além das visitas aos bairros históricos ou ao património construído.

6. Esta é uma solução plausível e a sua concretização é de manifesta utilidade pública. A tecnologia não é problema; mas as pequenas vaidades ou necessidades de afirmação de “independência” de cada um talvez o sejam…
Esta metodologia de trabalho inclusivo seria a melhor forma de garantir a diversidade e de permitir a participação cultural na cidade. Logo se ajustariam os procedimentos quando as pessoas passassem a ter o dom da ubiquidade!

31 Mai 2021

A linha de partida das eleições

De momento, ainda ninguém sabe se os Jogos Olímpicos de Tóquio se vão realizar a 23 de Julho como estava programado. Mas as eleições para a Assembleia Legislativa de Macau, agendadas para 12 de Setembro, serão realizadas, a menos que qualquer situação de emergência não prevista, como um tufão, um terramoto, uma super variante do coronavírus, ou uma guerra regional ocorram. As eleições para o Conselho Legislativo de Hong Kong têm sido sucessivamente adiadas. Com a implementação da decisão do Congresso Nacional do Povo para Aperfeiçoar o Sistema Eleitoral da RAEHK e da Lei de Segurança Nacional de Hong Kong, é difícil prever se os democratas estão dispostos a candidatar-se a esta eleição. O sistema eleitoral em Macau permanece inalterado e pode ser encarado como um modelo de sucesso da implementação do princípio “um País, dois sistemas”. Por isso não vejo nenhuma razão plausível para adiar ou cancelar uma tão simbólica eleição.

Para participar nas Olimpíadas de Tóquio, os atletas têm de obedecer a determinados requisitos. Para participar na eleição dos deputados à Assembleia Legislativa da RAEM por sufrágio directo, as associações políticas ou as comissões de candidatura desde que constituídas por 300 a 500 eleitores recenseados podem apresentar candidatura.

Existem mais de 325.000 eleitores recenseados em Macau e havia mais de 174.000 eleitores recenseados para votarem nas eleições por sufrágio directo em 2017. Se 10% dos eleitores recenseados desejarem formar comissões de candidatura, e se cada candidatura requerer 500 eleitores recenseados, os 10% dos eleitores recenseados podem apresentar 34 candidaturas no total. Nas eleições para a 6.ª Assembleia Legislativa de Macau, só foram apresentadas pouco mais de vinte candidaturas. Em teoria, não deveria ser difícil encontrar 300 eleitores recenseados para formar uma comissão de candidatura. Mas na verdade, participar neste processo é tão difícil como participar nas Olimpíadas de Tóquio.

Como os diferentes grupos que pretendem apresentar candidaturas precisam de angariar um número suficiente de eleitores recenseados dispostos a formar uma comissão de candidatura, alguns tentam encontrar estes eleitores recenseados através de várias organizações e instituições, enquanto outros apelam directamente ao público, instalando bancas em certas artérias da cidade, ou procuram eleitores recenseados através da Internet. Nestas eleições, a procura de eleitores recenseados tem sido mais intensa que nas anteriores. Primeiro que tudo, a “caça” aos eleitores recenseados disparou rapidamente desde 11 de Março, e toda a força de trabalho necessária foi mobilizada por diferentes grupos. Em seguida, o número de eleitores recenseados angariados por grupos excedeu largamente os 500 definidos pelos estatutos, sem ter havido necessidade de estabelecer um patamar mais elevado.

Independentemente da forma hilariante como foram “coleccionados” os eleitores recenseados para formar comissões de candidatura, ocorreram-me os seguintes motivos para analisar a situação: 1) Alguns grupos não conseguem obter os eleitores recenseados requeridos, por isso necessitam procurá-los freneticamente; 2) Outros, já conseguiram o número suficiente de eleitores recenseados, mas continuam à procura de mais para aumentar a sua exposição pública; 3) Outros ainda, que já têm eleitores recenseados de sobra, procuram diminuir a quantidade de eleitores recenseados disponíveis no “mercado” para prejudicar os seus rivais; 4) Há ainda aqueles que, embora tenham eleitores recenseados em excesso, continuem à procura de mais para testar a capacidade organizacional e de mobilização dos seus membros e para obterem uma grande quantidade de dados para análise de forma a prever o número de votos que podem obter nas eleições para a 7.ª Assembleia Legislativa de Macau e também para poderem estabelecer estratégias de campanha e planos de votação com antecedência.

A intensa luta pela obtenção de eleitores recenseados demonstra que não é de todo fácil pôr o pé na linha de partida nas eleições para a 7.ª Assembleia Legislativa de Macau, agendadas para 12 de Setembro. E mesmo alguns grupos que já pisaram esta linha, é possível que não venham a participar na corrida por uma variedade de motivos. Recentemente, dois grupos enviaram uma carta à Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa anunciando a sua desistência da candidatura. As razões para a desistência da candidatura podem ser pessoais, saúde ou quaisquer outras. Mas, avaliando a partir de um conjunto de sinais, a rivalidade intensa despertada pela eleição dos deputados à 7.ª Assembleia Legislativa da RAEM por sufrágio directo não será menor que nas eleições para a 6.ª Assembleia Legislativa da RAEM e o número da lista de candidaturas para a 7.ª Assembleia Legislativa da RAEM será também semelhante à anterior.

Alguns grupos optaram por não participar e outros optaram por concorrer à eleição dos deputados à 7.ª Assembleia Legislativa da RAEM. Cada eleitor recenseado tem o direito de exercer os direitos de propositura, de candidatura e de voto nas eleições, e o exercício dos direitos é um dever dos cidadãos. A linha de partida pode estar em qualquer lado, mas o mais importante é que os cidadãos definam por si próprios onde se encontra esta linha.

28 Mai 2021

A crise como oportunidade

“The COVID-19 outbreak has turned bedrooms into offices, pitted young against old, and widened the gaps between rich and poor, red and blue, the mask wearers and the mask haters. Some businesses–like home exercise company Peloton, video conference software maker Zoom, and Amazon-woke up to find themselves crushed under an avalanche of consumer demand.”
Scott Galloway
Post Corona: From Crisis to Opportunity

 

O equilíbrio incerto da concorrência e da cooperação no mundo obriga-nos a olhar para a COVID-19 como a crise que cristalizou uma competição prolongada e de alto risco entre as maiores potências mundiais, tal como as crises na Grécia e na Turquia em 1946-1947 que cristalizaram uma Guerra Fria emergente. A pandemia sublinhou que o mundo está a fracturar-se em vez de convergir; as políticas das grandes potências estão a assumir uma lógica de adição zero cada vez mais.No entanto, podemos também olhar para a COVID-19 como o evento que lançou em alívio a vulnerabilidade mútua de rivais ainda mais amargos e a necessidade de uma cooperação de soma positiva entre eles, como se este equilíbrio entre concorrência e cooperação será um desafio determinante da ordem mundial no século XXI.

Dirá respeito não só às pandemias, mas também às alterações climáticas, segurança alimentar, migração, informação e biotecnologia, e outras questões com potencial para perturbar fundamentalmente a experiência humana. Há perspectivas contrastantes sobre como abordar este dilema. Alguns analistas argumentam que os Estados democráticos do mundo deveriam primeiro concentrar-se em ganhar a competição com a China, porque um equilíbrio de poder favorável é a melhor garantia de assegurar a cooperação com os rivais em condições favoráveis.

Seria insensato, nesta perspectiva, silenciar a rivalidade sino-americana na esperança de ganhar a cooperação chinesa em matéria de pandemias ou alterações climáticas. Em vez disso, a América e os seus aliados deveriam competir vigorosamente, confiantes de que a cooperação sobre interesses comuns pode ser compartimentada, tal como as superpotências conseguiram cooperar no controlo de armas e na erradicação da varíola durante a Guerra Fria ou talvez esta primeira visão seja demasiado sanguínea.

A cooperação entre os Estados Unidos e a União Soviética em matéria de controlo de armas e doenças globais só surgiu após duas décadas de Guerra Fria e os primeiros passos no sentido de um desanuviamento da superpotência.

Talvez seja necessário limitar a rivalidade sino-americana antes que os comportamentos de soma positiva possam criar raízes. Se for este o caso, um esforço determinado para aproveitar o terreno geopolítico e ideológico elevado, poderia simplesmente assegurar que todas as questões fossem vistas em termos de soma zero, como aconteceu nas fases iniciais da crise da COVID-19. E embora a suposta ameaça que a China representa possa parecer muito real, permanece algo mais abstracta do que a carnificina humana e económica que a COVID-19 tem vindo a provocar em ambos os países e em todo o mundo. Para alguns, a natureza alterada do sistema internacional significa que o fracasso das grandes potências em subsumir as suas diferenças para trabalharem em desafios globais partilhados e potencialmente catastróficos levará o mundo à ruína.

O debate lembra-nos que os desafios de sustentar um mundo pacífico e florescente neste século são particularmente assustadores, porque o mundo está a dividir-se cada vez mais por linhas geopolíticas e ideológicas, mesmo quando requer cooperação entre elas. E mostra que uma forma de estadismo americano que é puramente competitiva por natureza que não tem um papel de liderança dos Estados Unidos na acção catalisadora de desafios transnacionais não irá satisfazer as exigências da liderança global. O futuro da globalização e inovação COVID-19 não é simplesmente uma crise de saúde pública. É uma crise económica, um coma auto-induzido sem paralelo na história moderna. Quarentenas, pedidos de abrigo e outras restrições causaram o colapso do crescimento e o aumento do desemprego.

Estas medidas também suscitaram fortes questões sobre quanto tempo durariam os danos resultantes, que indústrias e países emergiriam com uma vantagem competitiva, e que perspectivas existem de economias equitativas vibrantes a nível nacional e global nos anos vindouros. O facto de a COVID-19 ter ocorrido no meio de uma crescente insatisfação com os efeitos da globalização e da interdependência é complicado. Nos anos após a Guerra Fria, a globalização tinha-se intensificado e aprofundado. O processo ligou o mundo como nunca antes, gerou uma enorme riqueza, e tirou indivíduos de todo o mundo da pobreza. No entanto, internamente, a deslocalização também exacerbou a desindustrialização e a perda de postos de trabalho de produção nos Estados Unidos e outros países. A nível mundial, os aumentos maciços dos fluxos comerciais e financeiros geraram turbulência e crises ocasionais, e deixaram os países vulneráveis a forças globais poderosas fora do seu controlo.

Esperava-se que a globalização trouxesse consigo democracia liberal, transparência, tolerância e abertura, mas a China, o exemplo mais claro, encontrou engenhosamente formas de capturar benefícios económicos sem fazer sacrifícios políticos ou sociais. A ansiedade em relação à abertura andou de mãos dadas com a ansiedade em relação à inovação tecnológica. Muito crescimento e ainda mais interligação foram impulsionados por mudanças profundas na tecnologia, especialmente no sector da informação. Há apenas uma década atrás, esta revolução tecnológica era vista como quase inteiramente benéfica para a humanidade, mas desde então, temos visto alguns dos seus lados obscuros. As campanhas de desinformação aprofundaram a polarização dentro das democracias, enquanto novas tecnologias, tais como ferramentas de reconhecimento facial, dão poder a regimes eminentemente estatistas. A inteligência artificial, robótica, aprendizagem de máquinas e biotecnologia prometem benefícios extraordinários para a humanidade, ao mesmo tempo que aumentam a ameaça de perigos potencialmente vastos.

A inovação tecnológica sempre foi uma fonte de perigo, bem como de oportunidade. A ordem económica do pós-guerra nunca foi tão suave ou sem problemas como por vezes acreditamos. O sistema de Bretton Woods era propenso a crises e entrou em colapso no início da década de 1970, levando a anos de esforços ad hoc para estabilizar um sistema turbulento. Quando a Guerra Fria terminou, muitos países em todo o mundo reduziram as barreiras comerciais, liberalizaram as suas economias, e permitiram o investimento estrangeiro; as décadas que se seguiram testemunharam um crescimento impressionante, mas também crises debilitantes. A história da economia global pós II Guerra Mundial é uma história de prosperidade fantástica e de desafios severos e recorrentes. Nesta crise, há más e boas notícias. A má notícia é que a globalização se revelou surpreendentemente frágil face a uma pandemia em fúria, pois mesmo países dentro da União Europeia impediram as exportações de bens críticos e fecharam as suas fronteiras.

A boa notícia é que certos aspectos do sistema têm funcionado bastante bem à semelhança da crise financeira global de 2007-2009, a Reserva Federal dos Estados Unidos actuou como o banqueiro do mundo durante a pandemia, fornecendo a liquidez muito necessária para evitar uma depressão (embora com menos coordenação global). Os governos nacionais, incluindo os Estados Unidos, iniciaram programas de estímulos massivos; os resultados foram mistos, mas o efeito foi certamente melhor do que teria sido na ausência destas injeções. Existem também certas indicações de que os governos ainda podem responder à crise de formas na sua maioria construtivas. Se o resultado da pandemia for uma redução das dependências específicas de regimes estatistas, uma ênfase na resiliência económica que, no entanto, encoraja uma integração profunda entre as democracias, uma maior concentração de recursos entre nações de mentalidade semelhante para desenvolver e dominar as tecnologias do futuro, e esforços acrescidos para abordar as desigualdades tanto no interior como entre países, então a crise poderá ser uma fonte de renovação em vez de um prenúncio de uma nova era sombria. Uma razão pela qual a crise da COVID-19 tem sido tão aguda é que parecia agravar a profunda crise global da governação.

A fragilização das normas democráticas, o aumento do populismo e do nacionalismo, a sobreposição e a eficácia das burocracias governamentais, e o alcance crescente dos líderes autocráticos têm ameaçado a ordem global durante vários anos. A pandemia tem, pelo menos a curto prazo, acelerado muitas destas tendências preocupantes. Há muito tempo que a arte estatal americana defende que a ordem mundial deve ser baseada em ideias liberais e valores democráticos. Se assim for, revigorar e repensar a política democrática em casa pode ser um pré-requisito para sustentar a influência desses valores na cena global. Embora existam diferentes pontos de vista sobre como a batalha entre formas democráticas de governação e autoritarismo se irá desenrolar, o futuro pode não ser tão auspicioso.

Algumas democracias como a Nova Zelândia, Islândia e Alemanha implementaram medidas especialmente eficazes para limitar a propagação do coronavírus. Países com populistas iliberais ou líderes autoritários no comando como o Brasil, Irão, Rússia, Coreia do Norte, Bielorrússia viram casos, hospitalizações e mortes aumentar. Infelizmente, a principal democracia mundial, os Estados Unidos, teve um mau desempenho, devido à presidência errática de Donald Trump, bem como ao desempenho decepcionante da burocracia federal.

O contraste com a eficiência absoluta da China parece, à primeira vista, bastante surpreendente. Mas a história não é toda má. A forma como o sistema chinês fez realmente melhor contra a COVID-19 parece indiscutível. Nos Estados Unidos, a ausência de supervisão nacional permitiu a certos governos estaduais e locais demonstrar competência e visão. Elementos do sector não lucrativo e privado exibiram qualidades de agilidade e adaptação. O extraordinário esforço, em curso que culminou no desenvolvimento de terapias eficazes como vacinas produzidas em massa em tempo recorde é de cortar a respiração. A sociedade civil americana profunda, diversificada e inovadora proporciona um grau de resiliência, mesmo face ao desempenho federal insuficiente, que as autocracias têm dificuldade em imitar. A COVID-19 pode forçar as democracias a confrontar as suas limitações, como as crises frequentemente fazem. A COVID-19 irá equipar os governos democráticos em todo o mundo com uma maior compreensão dos perigos das campanhas de desinformação.

A pandemia pôs em evidência questões persistentes de igualdade e injustiça racial nos Estados Unidos e noutras sociedades democráticas. Não menos importante, revelou como a polarização política profunda e o tribalismo se têm demasiadas vezes colocado no caminho de políticas sábias e coordenadas. É evidente que os Estados Unidos e outras sociedades democráticas enfrentam uma crise de política e governação. Temos de escapar a um ciclo terrível pois quanto pior for o desempenho das nossas instituições e da política, mais pessoas perdem a fé na governação e mais a nossa política fica envenenada. Se estamos à procura de algo que dê um impulso ao lento, confuso e incremental processo de reforma necessário para evitar um tal resultado, uma pandemia global parece ser um candidato tão bom como qualquer outro. Estamos a viver uma época sombria. O mundo confronta-se com crises nacionais e globais sobrepostas.

Os governos e as instituições internacionais parecem muitas vezes inadequados para a tarefa. O autoritarismo agressivo e o iliberalismo parecem muitas vezes estar em ascensão. Aspectos das ordens do pós-guerra e pós Guerra Fria parecem desgastados e desactualizados. Aqui a história pode fornecer tanto consolo como inspiração. O mundo tem visto outros períodos de grande desordem e turbulência, mesmo desde a II Guerra Mundial que foram indiscutivelmente piores do que os nossos. A crise actual revelou mesmo os pontos fortes subjacentes à actual ordem mundial. Por exemplo, a partilha sem precedentes de informação científica e o impulso para terapias e vacinas recordam-nos os progressos económicos, intelectuais e científicos de tirar o fôlego que ocorreram nas últimas décadas. Finalmente, a história recorda-nos que os tempos de crise oferecem oportunidades de criatividade e reforma. A inovação e os avanços técnicos emergem frequentemente de depressões económicas (a bicicleta foi inventada na Alemanha durante uma epidemia entre cavalos em 1815). Os momentos de crise quebram a inércia e criam uma fluidez que pode ser posta a bom termo; podem fomentar a vontade política necessária para enfrentar patologias enraizadas.

Os extraordinários protestos sobre a injustiça racial em Junho de 2020, que rapidamente se espalharam pelo mundo, reflectem um desejo colectivo nacional e global de trazer mudanças reais. As propostas para reformar a governação global, reforçar a solidariedade das nações democráticas, e investir em novos esforços para enfrentar as ameaças que se aproximam reflectem um impulso semelhante. Será que podemos aproveitar ao máximo o momento? O ponto de partida é pensar de forma criativa sobre como chegámos à nossa actual conjuntura e como podemos sair da incerteza que nos acompanha. Conhecemos bem o início, pois os primeiros casos de pneumonia em Guangdong, gripe em Veracruz, e febre hemorrágica na Guiné, marcaram respectivamente as origens do surto da SARS de 2002-2004, a pandemia de gripe H1N1 de 2008-2009, e a pandemia de Ebola de 2014-2016. A história recente diz-nos muito sobre como as epidemias se desenrolam, os surtos se espalham, e como são controlados antes de se alastrarem demasiado.

Estas histórias só nos levam até agora, no entanto, a enfrentar a crise global da COVID-19. Nos primeiros meses de 2020, a pandemia do coronavírus passou por cima da maioria dos esforços de contenção, tomou as rédeas da detecção e vigilância de casos em todo o mundo, e saturou todos os continentes habitados. Para compreender os finais desta epidemia, temos de olhar muito mais para trás. Os historiadores há muito que são fascinados pelas epidemias, em parte porque tendem a formar um tipo semelhante de coreografia social reconhecível em vastas extensões de tempo e espaço. Mesmo que os agentes causadores da Peste de Atenas no século V a.C., a Peste de Justiniano no século VI d.C., a Peste Negra do século XIV, e a Peste Manchuriana do início do século XX não fossem quase certamente a mesma coisa, biologicamente falando, as próprias epidemias partilham características comuns que ligam os agentes do passado à nossa experiência actual.

O historiador de medicina americano, Charles Rosenberg disse que como fenómeno social, uma epidemia tem uma forma dramatúrgica. As epidemias começam num momento no tempo, prosseguem num palco limitado no espaço e na duração, seguindo uma linha de enredo de tensão crescente e reveladora, avançam para uma crise de carácter individual e colectivo, e depois derivam para o final. À medida que o coronavírus se infiltrava ainda mais como uma mancha demasiado visível no tecido da nossa sociedade, vimos uma fixação inicial sobre as origens dar lugar à questão mais prática dos fins. Em Março de 2021, foi argumentado com verdade as possíveis “linhas de tempo para o regresso à vida normal”, todas elas dependentes da base biológica de uma quantidade suficiente da população que desenvolvesse imunidade (talvez 60 por cento a 80 por cento) para refrear a propagação. As epidemias não são meros fenómenos biológicos. São também sempre inevitavelmente moldadas pelas nossas respostas sociais do princípio ao fim. A questão que agora se coloca aos cientistas, clínicos, presidentes de câmara, governadores, primeiros-ministros e presidentes de todo o mundo não é meramente quando irá o fenómeno biológico desta epidemia se resolver? Mas sim quando (se é que alguma vez) irá a perturbação da nossa vida social causada em nome do coronavírus chegar ao fim? Como o pico da incidência parece ter passado nalguns locais, mas aumenta noutros, líderes eleitos e grupos de reflexão de extremos opostos do espectro político fornecem roteiros e quadros para a forma como uma epidemia que quase travou a vida económica, cívica e social de uma forma nunca vista em pelo menos um século poderá eventualmente recuar e permitir o recomeço de uma “nova normalidade”.

Estas duas versões de uma epidemia, a biológica e a social, estão estreitamente interligadas, mas não são o mesmo. Os processos biológicos que constituem a epidemia podem encerrar a vida quotidiana, adoecendo e matando pessoas. Mas as respostas sociais que constituem a epidemia também encerram a vida quotidiana ao derrubar premissas básicas de socialidade, economia, governação, discurso e interacção ao mesmo tempo que matam pessoas no processo. Existe o risco, como sabemos tanto pela gripe espanhola de 1918-1919 como pela gripe suína mais recente de 2009-2010, de relaxar as respostas sociais antes de a ameaça biológica ter passado. Mas existe também o risco de julgar erroneamente uma ameaça biológica baseada em modelos defeituosos e de responder ou perturbar a vida social de tal forma que as restrições nunca poderão ser retiradas. Vimos no caso do coronavírus, as duas faces da epidemia a escalar a nível local, nacional e global em conjunto. Mas a epidemia biológica e a epidemia social não recuam necessariamente na mesma linha temporal.

27 Mai 2021

Hong Kong a debelar o vírus

O número de novos casos de coronavírus em Hong Kong caiu desde há vários dias para um dígito. Os peritos da cidade têm salientado que Hong Kong tem agora a oportunidade atingir as “zero” infecções e conseguir eliminar a transmissão local. São sem dúvida boas notícias para Hong Kong.

Após ter vivido um período de caos e destruição da segurança pública, promovido pelos “homens de preto”, o surto epidémico veio agravar seriamente a economia de Hong Kong. Não estamos a exagerar se dissermos que houve uma “recessão em todos os sectores” para descrever a situação. Os negócios estiveram parados e os trabalhadores ficaram sem emprego. Embora o Governo de Hong Kong tenha alocado por várias vezes fundos para ajudar a suavizar a crise, este esforço só por si não foi suficiente para resolver todos os problemas. Esta ajuda, por maior que tenha sido, acabou por ser apenas “uma gota no oceano” em relação às necessidades económicas da cidade.

Agora, se Hong Kong conseguir erradicar por completo a epidemia, pode retomar a sua actividade económica. Se o distanciamento social for sendo levantado, as pessoas vão poder retomar o contacto e as actividades regressam ao normal. Deixar de haver casos de COVID em Hong Kong é também um dado fundamental para que as fronteiras com a China continental e com Macau reabram. Com a abertura das fronteiras regressa o comércio com a China e com Macau. Para Macau vai significar o regresso dos turistas de Hong Kong aos casinos. A epidemia isolou os residentes de Hong Kong e de Macau e tornou-se quase impossível viajar. Os casinos de Macau perderam grande parte da sua clientela. Quando as fronteiras abrirem, os turistas de Hong Kong vão começar a chegar um a um aos casinos de Macau.

Para recuperar a economia de Hong Kong não basta a abertura das fronteiras. Hong Kong é actualmente o maior centro que a China utiliza para transicionar a sua moeda, o renminbi. As instituições financeiras da China, de Hong Kong, e de Macau já promoviam os seus produtos cotados em renminbis, antes da pandemia. Hong Kong é um centro financeiro internacional. Não existe controlo nas entradas e saídas de fundos. Um sólido sistema jurídico garante uma protecção sólida. Esta é a grande vantagem de promover produtos financeiros em RMBs. Além disso, Hong Kong tem muitos anos de experiência em planeamento financeiro, quer seja em fundos, seguros, ou obrigações. Vários projectos de gestão financeira, ou métodos de gestão financeira, como protecção de bens, avaliação de investimentos, heranças, etc., podem ser assegurados por instituições financeiras da Área da Grande Baía. No pós-pandemia, se Hong Kong continuar a apostar em produtos financeiros cotados em renminbis, recuperará a sua economia mais rapidamente. Para a China e para Macau, a experiência financeira de Hong Kong será uma mais valia. Numa perspectiva de cooperação em termos de desenvolvimento financeiro, Hong Kong tem uma palavra a dizer na Área da Grande Baía.

Embora existam várias formas de revitalizar a economia, Macau pode tirar partido da experiência de Hong Kong. Macau depende da indústria do jogo, durante a epidemia deixou de haver turismo e esta indústria foi naturalmente afectada. Este foi o resultado da aposta do Governo numa única fonte de rendimento. O mesmo se passa em Hong Kong, que depende quase exclusivamente do sector financeiro. Assim, depois da epidemia, o Governo de Hong Kong deve tentar perceber seriamente qual a indústria que lhe pode proporcionar uma fonte de taxação estável. Com um rendimento estável, Hong Kong pode desenvolver o seu sistema de segurança social e garantir que os seus residentes possam viver e trabalhar em paz.

Até ao momento, o número de pessoas vacinadas em Hong Kong e em Macau não é muito grande e isso é reflexo dos receios que as vacinas inspiram. Com as contínuas mutações do vírus, resta saber se as vacinas vão ser eficazes contra as novas variantes. Só quando o vírus estiver completamente controlado é que a economia mundial pode recuperar. Se Hong Kong quiser recuperar a sua economia, tem de esperar pela oportunidade e redobrar os esforços.

25 Mai 2021