André Namora Ai Portugal VozesComandos por lapidificar O prestígio dos Comandos do exército português foi por água abaixo. Depois de anos e anos na guerra das colónias, depois de serem respeitados pelos portugueses como a tropa de elite, depois de terem centenas de militares comando condecorados com as mais altas insígnias, depois de serem escolhidos para missões internacionais, nomeadamente, na República Centro Africana, eis os Comandos a deixar o país perplexo por pertencerem a uma rede internacional de tráfico de diamantes, ouro, droga, armas e notas falsas. Ao longo de vários anos militares dos comandos e ex-comandos dedicaram-se a traficar, com a agravante do transporte das mercadorias ilegais terem sido feitas em aviões militares. Um escândalo. Uma vergonha. Um crime gravíssimo e estonteantemente nenhum militar superior de comando, nenhum chefe da Polícia Judiciária Militar, nenhum chefe de Estado-Maior, tenha tido qualquer conhecimento. Nem a secreta portuguesa, que ninguém sabe para que serve, conseguiu ter uma informação do crime desprestigiante para Portugal que estava a ser levado a efeito. No meio desta vergonha, a mais grave é a atitude do ministro da Defesa, João Cravinho, que não deu conhecimento das investigações que estavam a decorrer ao primeiro-ministro e este ao Presidente da República. Como é isto possível? O Presidente da República é por inerência o Comandante em Chefe de todas as Forças Armadas. Tinha de ser a primeira personalidade a ser informada, porque se tratava de militares em acção no estrangeiro e sob a égide da ONU. Até o secretário-geral António Guterres se sentiu envergonhado. Mas os políticos em causa já vieram tentar sacudir a água do capote dizendo que os militares estavam ao serviço da ONU. Não, em primeiro lugar os militares são portugueses. O tráfico era enorme. Os diamantes foram levados para Antuérpia, na Bélgica, aos milhares. O ouro resultou em venda de milhões de euros. As armas proporcionaram tanto lucro que um inspector da Polícia Judiciária disse-nos que ainda não fazem a mínima ideia do dinheiro que a venda rendeu e para que países foram. A droga foi espalhada pela Europa e na Holanda estavam os maiores receptores. Os 10 comandos e ex-comandos detidos pela PJ são suspeitos de traficarem 1,5 milhões de euros em ouro e diamantes. Os suspeitos compravam diamantes de sangue – pedras preciosas extraídas em zonas de guerra – na República Centro Africana durante as missões de “paz” das Nações Unidas em que Portugal tem vindo a desempenhar naquele país. Uma “paz” transformada em maná. A mercadoria era depois colocada em tubos de charutos na bagagem pessoal dos militares de regresso a casa nos aviões, inacreditavelmente, nos aviões da Força Aérea Portuguesa. Chegados ao aeroporto militar de Figo Maduro em Lisboa, o controlo era inexistente, logo facilitando a entrada da mercadoria ilegal. Uma vergonha no seio da organização militar nem sequer existir controlo no aeroporto militar. Quanto aos diamantes eram levados por estes suspeitos detidos em viaturas civis até Antuérpia para serem vendidos num dos maiores centros de negócios de diamantes a nível mundial. O esquema era depois concluído com a lavagem do dinheiro. Cerca de 40 indivíduos, já constituídos arguidos, aceitaram que nas suas empresas o dinheiro fosse depositado nas contas bancárias. Este dinheiro era depois usado para comprar moedas virtuais, limpando assim o rasto da origem do dinheiro. O mais impressionante é que não existem suspeitas apenas ao nível de soldados, mas também de militares com patente superior, como major. A rede internacional pode ainda vir a ser muito maior do que as autoridades judiciais recolheram até ao momento, porque no caso do tráfico de droga que os militares efectuaram a ligação pode incluir traficantes de vários países, os quais teriam pago avultadas quantias aos militares portugueses. No meio de isto tudo, o mais escandaloso é saber-se que o ministro João Cravinho informou a ONU em 2020 sobre as suspeitas do tráfico por parte dos militares portugueses. Em 2020? E até hoje nada disse ao primeiro-ministro? Não acredito. E António Costa nada disse ao Comandante em Chefe das Forças Armadas, o Presidente Marcelo? Inacreditável todo este comportamento político e toda esta pouca vergonha que agora veio a público. Afinal, o ministro João Cravinho depende de quem? Do chefe do Governo ou da ONU? Este ministro, assim que o caso veio a público e que o Presidente Marcelo e o primeiro-ministro disseram que não tinham conhecimento, tinha imediatamente de se demitir. Portugal não pode continuar a ser governado por indivíduos sem seriedade que se dão ao luxo de esconder um caso tão grave como este de tráfico de ouro, diamantes, droga, armas e notas falsas. No caso de a investigação a cargo do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa ter tido início em 2020, então, a tutela da Justiça, ou seja, a ministra também não sabia de nada e nada transmitiu ao primeiro-ministro? A tudo isto se chama um “cambalacho” político que nos envergonha a todos. Esperemos que, desta vez, o Presidente da República actue com firmeza doa a quem doer.
João Romão VozesTurismo lento É verdade que vão emergindo novos conceitos de vida e de viagem associados à lentidão e ao usufruto tranquilo do tempo, normalmente ditos em inglês para acentuar o toque de modernidade, mas ainda assim a maior parte dos turistas tem pressas, pouco tempo disponível, muita coisa para ver e fazer numa visita inevitavelmente curta. Tal como o “slow living”, slow cooking”, slow city”, também o conceito de “slow travel” apela a um abrandamento do ritmo que acrescente prazer, sabor, qualidade àquilo que se faz. Fazer menos mas melhor, demorar mais a preparar e saborear os momentos, impondo uma certa lentidão no quotidiano. É difícil fazê-lo quando viajamos, sobretudo em cidades: há um ritmo próprio da urbanidade, sobretudo nas grandes metrópoles, que impõem longas e demoradas deslocações diárias para o trabalho, com a ruidosa azáfama dos transportes e dos congestionamentos vários a animar e a marcar a cadência de cada dia. É nesse contexto de relativa aceleração que temos que nos enquadrar mesmo enquanto visitantes, com os nossos planos do que há para conhecer no pouco tempo disponível, em sítios que conhecemos mal mas onde queremos ver e fazer o máximo, já que as despesas para ali estar foram feitas com antecipação. Se em ambientes rurais ou em áreas menos urbanizadas o conceito de “lentidão” é relativamente fácil de associar a uma certa tranquilidade no usufruto dos tempos de lazer – na realidade, essa ruralidade também implica uma certa escassez de alternativas de actividades que convida a que tudo se faça mais devagar – nas cidades, pelo contrário, há um permanente apelo à velocidade, ao movimento, à aceleração, que não só é induzido pelo ritmo quotidiano de quem lá vive mas também pelas nossas motivações de turistas com planos e agendas quase sempre mais preenchidos do que a realidade do tempo disponível nos permite. Esse frenesim é pouco compatível com a preferência por formas não-motorizadas de transporte – os transportes suaves, que vão hoje fazendo o seu caminho até uma aceitação mais ou menos generalizada, também em centros urbanos. Andar a pé, de bicicleta ou de patinete começa a ser hoje uma opção facilmente disponível em muitas cidades, quer para quem lá vive, quer para quem visita. São formas de mobilidade com menor (ou nulo) impacto ecológico e também menores impactos sobre o espaço urbano, quer em termos de poluição do ambiente, quer em termos de ocupação de um espaço público cujo planeamento foi nas últimas décadas largamente influenciado pela necessidade de acomodar a garantir a circulação de um número massivo e sempre crescente de automóveis. Para quem conhece mal as cidades e procura breves mas relevantes descobertas numa visita curta, estas formas de transporte, que obrigam também a uma autonomia máxima de cada pessoa na identificação dos percursos e previsão da sua duração, podem ser vistas como um obstáculo ao usufruto dos atractivos do território. Mas esta opção também pode ser vista como uma oportunidade para se marcar melhor o ritmo da visita, para aumentar a flexibilidade das opções e a liberdade dos caminhos a seguir. Diferentes turistas terão certamente diferentes preferências e essa foi a razão pela qual procurei estudar o assunto na cidade de Barcelona, onde a autarquia local – não por acaso governada por uma formação chamada Em Comum – disponibiliza gratuitamente toda a informação e dados estatísticos recolhidos com financiamento público local. Nesse estudo (em parceria com a investigadora chinesa Yahua Bi e recentemente publicado no jornal “Sustainability”) identificámos uma dupla clivagem geracional – uma que se vai diluindo e tenderá a desaparecer em breve e outra cuja evolução futura está por conhecer. A primeira tem a ver com a utilização de ferramentas digitais na obtenção de informação para preparação da viagem e decorrentes aquisições de serviços: se numa primeira fase esta era uma opção assumida sobretudo pela população mais jovem, hoje está generalizada a quase todas a gente. Na realidade, os resultados que obtivemos sugerem que apenas as pessoas em situação de reforma não recorrem de forma generalizada à internet e outras tecnologias da informação e comunicação para a preparação das suas viagens. A segunda clivagem tem a ver com as opções de transporte: apenas na faixa etária mais jovem (abaixo dos 24 anos) se observa uma preferência generalizada pelas formas não motorizadas de transporte. Na realidade, é também a população mais jovem (mas neste caso abaixo dos 34 anos) a que tem maior propensão a utilizar transportes públicos. Se estes comportamentos característicos de uma geração que convive mais directamente com os previsíveis impactos das alterações climáticas em curso corresponde a uma resposta cívica e política a estes problemas ou se se trata apenas de uma questão económica (transportes públicos e/ou não motorizados são mais baratos do que os taxis) é uma questão que o tempo se encarregará de esclarecer. Em todo o caso, as tendências são hoje claramente identificáveis – tal como é clara, já agora, a maior propensão dos turistas de negócios para a utilização de transportes individuais (automóveis), independentemente da idade. O nosso estudo permitiu ainda identificar outras formas de conservadorismo com manifestos impactos negativos sobre o ambiente: independentemente das respectivas idades, turistas com viagens organizadas por empresas ou outras organizações promotoras de deslocações em grupo (como excursões de estudantes ou empresas) são também menos propensos a utilizar formas não motorizadas de transporte. Se há sinais de que a população – sobretudo a mais jovem – começa a mudar hábitos para se adequar às exigências ambientais contemporâneas, também não deixam de se confirmar os sinais de que no universo dos negócios as prioridades continuam a ser outras, lentas na mudança e uma mudança que parece inevitável e inadiável se ainda queremos preservar a vida no planeta.
Tânia dos Santos VozesUma genealogia simples da violência obstétrica Toda a gente tem medo da violência obstétrica. As parturientes, claro, mas também a Ordem dos Médicos (OM) em Portugal. A OM tem tanto medo da violência obstétrica que quer negar-lhe qualquer tentativa de definição. Não querer defini-la não quer dizer que a violência não exista. Se uma árvore cai no bosque, e ninguém estiver por perto para ouvir, emite algum som? Será que a resistência das instituições em nomear a violência obstétrica é porque ela não existe num país desenvolvido como Portugal? A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto inquiriu várias mulheres acerca do seu parto e da sua interação com a equipa médica. O inquérito mostrou dados preocupantes sobre práticas não consentidas ou de práticas que não têm suporte científico – uma desatualização atroz entre a investigação e a prática. O resultado para o mau-estar das parturientes mostrou-se notório também. A necessidade de desenvolver mais investigação na área é urgente, porque existem vozes, realidades e perspectivas que parecem estar obscurecidas no suposto “normal” de realidades institucionais. A OM pega nos resultados deste inquérito para tirar uma conclusão diferente. No parecer sugerem que os dados não reflectem práticas de violência obstétrica, mas revelam insatisfação na relação entre parturientes e as equipas médicas. Esta é uma re-significação, no mínimo, interessante. Na visão da OM, as mulheres não são vítimas de violência obstétrica, mas estão insatisfeitas com o serviço prestado. Sim, o termo violência obstétrica é forte, pressupõe agressores e vítimas. Para a comunidade médica que tem como preocupação máxima a vida humana parece uma ofensa insinuar que as práticas diárias nas maternidades portuguesas – os sistemas – estão a promover práticas de violência. Mas reduzir estas experiências a uma disposição da parturiente é querer continuar a não ouvir quem deveria estar no centro de tudo o que o parto envolve: as mulheres a parir. A presente polarização deve-se muito em parte a esta incapacidade para o diálogo. Numa situação em que as pessoas se insurgem contra a falta de humanismo no parto, a OM tenta deslegitimar em vez de tentar dialogar. Não é surpreendente. As culturas institucionais parecem insistir num parto altamente medicamentado sem criar o espaço para as parturientes terem voz ou vontades. Das práticas referidas são as episiotomias de rotina e a manobra de Kristeller – que são contraindicadas na literatura e pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Também a posição ginecológica/litotomia (posição deitada) não é a mais indicada para parir e muitas instituições não permitem outras. A violência obstétrica tem no seu coração uma visão exclusivamente médica do parto e de uma relação hierárquica – de poder e autoridade – sobre o que o parto pode ser, infantilizando a parturiente e despindo-lhe de qualquer vontade, ou até sabedoria sobre o seu próprio corpo. A violência obstétrica mostra que é preciso construir uma visão do parto onde a parturiente é ouvida e onde as intervenções médicas são informadas, discutidas e consentidas. A argumentação da OM parece ter resquícios de uma visão do conhecimento médico como o propulsor do desenvolvimento. Num país onde a mortalidade materna e infantil tem vindo a diminuir a olhos vistos, agarram-se a esse indicador para justificar as práticas correntes. O contexto português, diz a OM, não tem problemas com direitos humanos, e a violência obstétrica é coisa dos “bárbaros”, parecem insinuar. Só que os gritos por ajuda são outros. Não se trata de recusar todo o desenvolvimento científico até agora, mas exigir melhores cuidados médicos no parto. É preciso reconhecer que a redução da mortalidade não é o único indicador de sucesso. O bem-estar das parturientes – que é tanto físico como emocional e psicológico – tem que ser considerado no desenho institucional de intervenção no parto. Até porque esse bem-estar ajuda no processo do parto em geral. Esta conversa pode ser estendida para as outras especialidades médicas. Mas a situação do parto é especialmente caricata porque tem sido construído como um evento de alto risco, com necessidade de intervenção médica obrigatória, uma visão, dizem alguns profissionais, um pouco exagerada. Outros países desenvolvidos mostram que há outras formas de abordar a questão. No Reino Unido, o Sistema Nacional de Saúde prevê que as mulheres saudáveis, sem uma gravidez de risco, podem ter o parto em casa se assim o desejarem. Podem estar rodeadas por quem quiserem e parirem na posição que quiserem. A genealogia da violência obstétrica exigiria muito mais tinta e papel, não tenho dúvidas. Esta uma visão simplificada para a tensão que hoje assistimos: a falta de diálogo nas salas de parto é um dos muitos sintomas da contínua falta de diálogo protagonizado pelas instituições médicas. E os dissidentes resistem ao trazer para a esfera pública uma visão do cuidado que é fundamentalmente humana: com capacidade de escutar os gritos de desconforto e de trauma das parturientes – com muitavontade de mudança.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesFundo de Previdência Obrigatório Depois de vários anúncios, o “Relatório sobre a Revisão do Fundo Central de Previdência Não Obrigatório” foi finalmente publicado. Como era esperado, enquanto a pandemia durar, o relatório não recomenda que o Governo implemente o “Fundo de Previdência Obrigatório.” (FPO) As conclusões do relatório apontam para a manutenção temporária do “Fundo de Previdência Não Obrigatório” (FPNO). Como o ” Relatório 19/123 do Fundo Monetário Internacional” assinala que em 2025, o PIB de Macau deverá recuperar até 101 por cento em relação ao de 2019, a recomendação é que o FPO seja implementado em 2026. Se nessa altura, a situação económica ainda não for a ideal, a implementação deve ser adiada para 2028. Vale a pena debruçarmo-nos sobre certos conteúdos deste relatório. Em primeiro lugar, Macau nunca teve um sistema de pensões obrigatório. A “pensão” atribuída pelo primeiro nível de segurança social aos maiores de 65 anos fixa-se nas 3.740 patacas mensais, valor que como é lógico não é suficiente. A protecção na reforma não pode depender apenas do Governo, dependerá também das próprias pessoas. O relatório recomenda a implementação do FPO. Os trabalhadores terão de contribuir com 5 por cento dos seus salários e os empregadores com outros 5 por cento; desta forma, os trabalhadores recebem no seu fundo de previdência 10 por cento do valor dos seus salários, valor esse que reverte a favor das suas reformas. Este novo sistema vai permitir que os residentes de Macau venham a dispôr de mais dinheiro durante a reforma, o que é sem dúvida positivo. Em segundo lugar, o relatório recomenda que quando o FPO for implementado, o plano de protecção actual continue a existir. A proposta está efectivamente em consonância com a actual situação de Macau. Pode eliminar a necessidade das empresas que já têm planos de reformas terem de os converter para o sistema do Fundo Obrigatório. O Fundo de Previdência Obrigatório é semelhante ao de Hong Kong. As contribuições previstas para trabalhadores e empregadores são equivalentes, 5 por cento para cada uma das partes. A experiência de Hong Kong diz-nos que como os planos de reforma anteriores ficavam mais dispendiosos para as empresas os empregadores usam de todos os meios para levar os trabalhadores a aderir ao Fundo Obrigatório. Assim sendo, o Governo deve tomar este factor em consideração. Na implementação do Fundo Obrigatório, deve ser evitado que os empregadores forcem os trabalhadores a retirar-se dos planos pré-existentes para optarem pelo FPO. Em terceiro lugar, quanto à propriedade dos direitos e proventos do Fundo Obrigatório, o relatório recomenda que se mantenha a prática relativa ao Fundo Não Obrigatório. O empregado começará por receber 30 por cento das contribuições patronais após três anos de serviço, que serão aumentados em 10 por cento todos os anos. Ao fim de dez anos de serviço, terá direito a 100 por cento das contribuições do empregador. Esta medida destina-se a garantir que as pessoas não mudem de trabalho sem motivos de força maior e que os patrões tenham equipas estáveis. A relação entre o patronato e os trabalhadores é delicada, e ninguém pode garantir que uma pessoa fique na mesma empresa num mínimo de três anos. Se alguém trabalhar numa empresa só por dois anos, com os actuais regulamentos, não tem direito a qualquer percentagem das contribuições patronais. Do ponto de vista do trabalhador, esta regra não protege os seus direitos na reforma. Para que esses direitos estivessem protegidos o tempo de trabalho numa empresa não deveria ser limitativo para se ter aceso às contribuições patronais. A questão da duração do emprego deve antes passar pela criação de boas relações de trabalho. Em quarto lugar, os empregadores usufruem de benefícios fiscais devido às suas contribuições, mas os empregados não. A protecção na reforma tem a ver com o futuro de todos os residentes de Macau, e a participação de todos é crucial. Se o Governo facultar quer a empregadores quer a empregados benefícios fiscais pelas suas contribuições, as pessoas ficarão mais motivadas para aderir ao FPO. Estes benefícios fiscais são positivos para todos e vão permitir que cada residente de Macau desfrute de uma reforma mais descansada e que a sociedade se torne mais estável e mais harmoniosa. Por último, no relatório é apontado o exemplo de alguém que recebe um salário de 20.000 patacas. Neste caso as contribuições no seu conjunto ascendem às 2.000 patacas mensais. Se o trabalhador iniciar a sua carreira contributiva aos 25 anos e se reformar aos 65, o juro do investimento será de 5 por cento. No momento da reforma, dispõe de cerca de 3 milhões de patacas. De acordo com os dados da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, a esperança de vida dos homens em Macau é de 81 anos e das mulheres de 86. Presumindo que uma pessoa se reforma aos 65 anos, dispondo de um valor de cerca de 3 milhões de patacas e morre aos 86, terá 22 anos de vida como pensionista, ou seja 264 meses. Pode gastar 11.364 patacas por mês, mais a pensão actual de 3.740, o que perfaz um total mensal de 15.104 patacas. Este valor pode ser suficiente para alguns e insuficiente para outros. Do ponto de vista do sistema de protecção na reforma, deveriamos considerar dar mais um passo, ou seja, fazer investimentos tendo em vista essa fase da vida? O “Plano de Anuidades de Hong Kong”, actualmente em vigor na cidade, diz-nos que se a pessoa fizer um investimento de 3 milhões de dólares de Hong Kong (HKD), pode receber 18.000 HKD mensais enquanto viver. Na elaboração do Fundo Obrigatório, deveriamos considerar um plano semelhante ao de Hong Kong para que todos possam ter um retorno vitalício garantido? O relatório prevê a manutenção do Fundo Não Obrigatório, estabelece um prazo para a implementação do Fundo Obrigatório e promove o desenvolvimento da segurança social em Macau, deve por isso receber o apoio geral. A próxima questão passa por encontrar a forma ideal para melhorar o sistema existente e a maneira de levar à participação de todos. Mas o mais importante é encontrar uma forma de garantir uma pensão vitalícia, para que as pessoas possam desfrutar de uma reforma livre de preocupações.
André Namora Ai Portugal VozesA Dissolução Há um amigo meu que recebe o Hoje Macau em PDF e virou-se para mim e disse que eu era um grande analista político. Respondi que nem gosto de política e muito menos de políticos, mas que a minha colaboração para o jornal deveria visar os temas que preocupam os portugueses e que sejam tema na semana. Desta feita, lá volto à política, apesar das patetices proferidas pelo ministro Pedro Nuno Santos merecessem umas boas reguadas… O Presidente Marcelo resolveu dissolver a Assembleia da República e marcar eleições para 30 de Janeiro do próximo ano. Uma data que parece só ter agradado ao próprio Presidente. Marcelo Rebelo de Sousa desde que começou a escrever para o Expresso e a criar factos políticos, por vezes, acontecimentos inventados por ele próprio, que sabe perfeitamente o que quer. A dissolução do parlamento não é inocente e o Presidente sabe que neste caso tem mesmo a faca e o queijo na mão. A sua experiência mostrou-lhe que António Costa só fez asneiras nos contactos que manteve com o Bloco de Esquerda e com o Partido Comunista. Costa já não tinha cumprido em vários assuntos a quando de geringonças anteriores. Desta vez, o experiente PCP resolveu virar as costas ao líder socialista porque o Orçamento do Estado era um saco de batatas. Com uma agravante: o Governo já andava a comprometer dinheiros da chamada bazuca e na da do pecúlio era para melhorar a situação social do povinho pobre e dos trabalhadores. E ora aí está o Presidente Marcelo, com o seu saber de malandrice, sábio em vários quadrantes nem que tenha de jogar em dois carrinhos como aconteceu com Paulo Rangel e confirmou logo que em próximas eleições, sem praticamente campanha eleitoral – porque o pessoal vai é estar preocupado com o Natal e a festa de fim de ano – não será possível que haja uma maioria absoluta de direita nem de esquerda. Ele próprio já a tem fisgada: nomeia um governo de índole presidencial e a tal bazuca que contém muitos milhões para distribuir será tudo controlado por ele. Não será um Bolsonaro, mas não sei não, como dizem os brasileiros. O comportamento da maioria dos partidos políticos é a maior vergonha a que temos assistido. O CDS deveria realizar um congresso, mas assim que o seu líder soube que Nuno Melo pretendia o seu lugar, o “Chicão” suspendeu o congresso e marcou-o (a conselho de Rui Rio) para depois das eleições legislativas. Nuno Melo chamou a isso um “golpe de Estado” e a verdade é que vale tudo. No dia das eleições a 30 de Janeiro já nem Francisco Rodrigues dos Santos é presidente do CDS por ter terminado o seu mandato. Anteriormente dizia-se que o CDS era o partido do táxi, mas actualmente parece que o motorista vai ficar sozinho. António Pires de Lima, ex-vice-presidente do partido e Adolfo Mesquita Nunes, que poderia ser muito bem o presidente dos democratas-cristãos abandonaram o partido. Paulo Portas e Assunção Cristas, ex-líderes do partido, pronunciaram-se que o CDS pode batido no fundo e ter entrado no ocaso. Cecília Meireles, a melhor deputada do CDS, anunciou que vai abandonar a vida política. Um grande número de militantes do CDS já se vê nas acções do Chega. Os neofascistas, segundo as sondagens (se acertarem desta vez), estão a subir na tendência de voto de uma forma quase assustadora. Ainda ontem um casal que toda a vida votou PSD, ao encontrarmo-nos manifestei-lhe os parabéns pela vitória do seu Carlos Moedas. Respondeu-me o casal de imediato que eu estava enganado, porque eles votaram no Chega. Tudo indica que se André Ventura tiver bons conselheiros e não fizer uma campanha eleitoral, tipo feirante, pode ir buscar muitos votos ao PSD e CDS. Concluindo, maioria absoluta de direita não haverá se o desentendimento no seio dos partidos continuar. No PSD é gritante. Paulo Rangel saiu do armário e com unhas e dentes quer o lugar de Rui Rio. Estavam à porta eleições no seio do PSD. Rui Rio chegou a afirmar que o que se passa no PSD “é um absurdo”. Rio referia-se às eleições directas no interior do seu partido e ao congresso agendado. Antes, pensou-se que Rui Rio estava a evitar que Paulo Rangel lhe tirasse a cadeira do poder social-democrata, mas esclareceu que o ideal será antecipar o mais breve possível as eleições e o congresso no seio do PSD. As divisões no interior dos partidos são flagrantes. No Partido Socialista o ministro Pedro Nuno Santos já proferiu afirmações que desautorizam o próprio primeiro-ministro. O homem do ‘Maserati’ quer de qualquer forma que António Costa desista para que ele possa ocupar o seu lugar. Mas, António Costa está disposto a prosseguir na luta pela moderação no partido e no Governo deixando a ideia de que poderá conquistar uma maioria absoluta. Costa está a pensar que imensos apoiantes do PCP e do Bloco ficaram chocados por estes dois partidos terem votado contra o Orçamento do Estado. Ouve-se constantemente por parte de apoiantes socialistas que a culpa do que se está a passar foi dos dois partidos mais à esquerda. É uma tentativa clara de levar eleitores do PCP e BE a votar no PS. Pessoalmente não acredito numa maioria absoluta socialista e como a extrema esquerda parece não estar virada para outra geringonça, temos de pensar que a dissolução da Assembleia da República foi mesmo muito e antecipadamente decidida pelo Presidente Marcelo, porque a solução que resta é um governo de iniciativa presidencial. É que Marcelo sabe nadar…
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesPara onde vais Macau? O Governo da RAE de Macau iniciou a Consulta pública sobre o “Segundo Plano Quinquenal de Desenvolvimento Socioeconómico da Região Administrativa Especial de Macau (2021-2025)” em meados de Setembro e irá encerrá-la a 13 de Novembro. Quem teve oportunidade de ler o documento de consulta, poderá ter dificuldades em comentar os conteúdos porque as propostas incluídas no Segundo Plano são muito banais, e já tinham sido mencionadas anteriormente pelo Executivo. Mas, acima de tudo, o problema é que não são apontadas soluções para os problemas existentes. O documento de consulta assemelha-se a uma publicação política editada de cinco em cinco anos. A consulta pública do Segundo Plano Quinquenal é uma mera formalidade que não merece discussão. Mas, infelizmente, Macau vai usá-la como guia para o desenvolvimento sócio-económico dos próximos cinco anos. Enquanto cidadão de Macau, vou manter-me em silêncio em relação ao Segundo Plano Quinquenal, sobretudo depois de ter assistido à unanimidade na selecção dos membros das diferentes comissões na Assembleia Legislativa, que teve lugar no passado dia 26 de Outubro. Este episódio fez-me mais do que nunca ter vontade de honrar as minhas responsabilidades cívicas, expressando os meus pontos de vista. Mas a decisão final sobre o rumo de Macau está nas mãos dos cidadãos. No documento de consulta, existem apenas quatro linhas para descrever a implementação do Primeiro Plano Quinquenal, sem que sejam especificados os pontos que foram cumpridos, talvez porque não seja possível especificar nada em concreto. No que diz respeito ao aceleramento do processo de diversificação adequada da economia, a estratégia assemelha-se à do “Projecto Geral de Construção da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin”. Com as actuais capacidades e pontos fortes de Macau, temo que venham a ser necessários mais alguns Planos Quinquenais para atingir este objectivo, no qual as pequenas e médias empresas (PMEs) têm um papel muito importante a desempenhar. Mas no cenário de pandemia, o Governo da RAEM não deu às PMEs apoio à medida das suas necessidades. Os negócios pioram de dia para dia, devido à falta de trabalhadores e de recursos materiais. Para as PMEs, a Ilha de Hengqin é apenas uma utopia, não passa de uma palavra vã. A “Lei da Habitação Económica” foi promulgada, depois de a habitação económica ter perdido a sua função equilibradora dos preços do imobiliário. O problema de habitação que os residentes enfrentam é causado pelas políticas do Governo da RAEM, favoráveis aos empresários do sector da construção civil. Um número considerável de terrenos não aproveitados não foi utilizado de forma correcta e existe pouca oferta de habitação pública, fazendo com que os candidatos tenham de esperar indefinidamente. Resulta que muitas pessoas não podem comprar casa por causa do preço, e várias casas ficam desocupadas porque não há quem as compre. Macau não tem falta de terrenos nem de recursos, tem falta de desenvolvimento e de empenhamento. Desde o regresso à soberania chinesa, as condições de vida das pessoas desfavorecidas que habitam o Bairro do Iao Hon, o Edifício San Mei On e o Bairro das Missões de Coloane permanecem na mesma. O objectivo de transformar Macau numa cidade com condições ideais de habitabilidade estabelecido no primeiro e segundo Planos Quinquenais não se cumpriu de todo. Os últimos 18 meses de pandemia revelaram aquilo de que o Governo da RAEM é capaz. Embora ainda não tenham sido revelados os últimos resultados da sondagem à opinião pública, tudo leva a crer que a insatisfação da população está a aumentar. Se o desempenho administrativo e legislativo do Governo não satisfizer os pré-requisitos que permitirão tornar Macau numa “uma sociedade de serviços”, a estabilidade social pode ser abalada por eventuais erros cometidos pelo Governo na alteração ao “Regime Jurídico da Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar em Casino”. O Governo da RAE não tem falta de pessoas talentosas, mas após o estabelecimento do princípio “Macau governado por patriotas”, a equipa governante só pode ser constituída por pessoas que exibam o rótulo de “patriotas”. Na ausência de competição, Macau não caminhará no sentido do progresso. Assim sendo, para onde ruma Macau no futuro próximo? Acredito que esse futuro será determinado pela mudança e pelo desenvolvimento. Antes de mais nada, quem governa tem de abrir mão do anacronismo e do nepotismo, precisa de revitalizar a equipa executiva, abrir as diferentes áreas de trabalho à participação do público e concentrar esforços no Planeamento de Novos Aterros Urbanos. Depois destes problemas terem sido abordados, haverá condições para aspirar à Ilha de Hengqin. Numa cidade em que o Metro Ligeiro teve de estar parado durante seis meses para obras, que condições existem que possam justificar a integração de Macau num projecto de partilha de recursos?
Olavo Rasquinho VozesOs Prémios Nobel e as alterações climáticas Foram recentemente laureados com o Prémio Nobel da Física 2021 três eminentes cientistas intimamente ligados à investigação sobre as alterações climáticas: Klaus Hasselmann, Syukuro Manabe e Giorgio Parisi. Este ano o prémio incidiu sobre o ramo da física que trata de sistemas físicos complexos e, sendo o clima um sistema deste tipo, é natural que as alterações climáticas fossem alvo da atenção da Academia Real Sueca das Ciências, contribuindo, assim, para chamar a atenção para a degradação do clima, nas vésperas da 26ª Conferência das Partes (COP26) da Convenção-Quadro sobre as Alterações Climáticas das Nações Unidas , que está a decorrer em Glasgow entre 31 de outubro e 12 de novembro. Metade do prémio foi atribuído conjuntamente a Klaus Hasselmann e Syukuro Manabe, pela contribuição de ambos para a modelação física do clima da Terra, o que permitiu quantificar a sua variabilidade e prever o aquecimento global de forma fiável. A outra metade foi atribuída a Giorgio Parisi pela descoberta da interação da desordem e flutuações em sistemas físicos da escala atómica à escala planetária. Klaus Hasselmann, oceanógrafo alemão, natural de Hamburgo e nascido em 1931, é professor no Instituto alemão de Meteorologia Max Planck. Referindo-se ao problema das alterações climáticas, tem vindo a realçar que o principal obstáculo à sua resolução consiste no facto de os decisores políticos e o público não estarem cientes que é solúvel, bastando para isso utilizar tecnologias já existentes e investir na inovação em novas tecnologias no sentido de reduzir significativamente as emissões de dióxido de carbono por parte dos humanos. Numa entrevista publicada em 1988, já Hasselmann avisava que, dentro de 30 a 100 anos, o nosso planeta enfrentaria alterações do clima muito significativas. Syukuro Manabe, meteorologista e climatologista nipo-estadunidense, nasceu em 1931, em Shingu (Japão). Emigrou muito novo para os EUA, onde desenvolveu a sua atividade profissional na Universidade de Princeton, sendo autor de trabalhos que demonstram que o aumento da concentração do dióxido de carbono na atmosfera causada pelas atividades humanas é a principal causa do aquecimento global. Contribuiu grandemente para o desenvolvimento do primeiro modelo climático que permitiu antever a evolução da temperatura e o comportamento do ciclo hidrológico em função do aumento da concentração do dióxido de carbono na atmosfera. De acordo com Manabe, a atribuição deste prémio deu a si e aos outros dois modeladores do clima a credibilidade e o reconhecimento que sempre desejaram. Ambos contribuíram para o primeiro (AR1) e terceiro (AR3) Relatórios de Avaliação do IPCC sobre o estado do clima, em 1990 e 2001, respetivamente, e Hasselmann também contribuiu para o segundo Relatório de Avaliação (AR2), em 1995. Giorgio Parisi, físico italiano, nascido em Roma em 1948, é professor de Teorias Quânticas na Universidade de Roma “La Sapienza”. Desenvolveu trabalhos revolucionários na área da teoria de sistemas complexos que contribuíram para melhor compreender a evolução temporal do sistema climático. Parisi declarou recentemente, numa conferência de imprensa, que a atribuição do prémio é importante não só para ele, mas também para os outros dois laureados, na medida em que as alterações climáticas são uma grande ameaça para a humanidade e é extremamente importante que os governos ajam com determinação o mais rapidamente possível. Não é a primeira vez que o Prémio Nobel á atribuído a personalidades relacionadas com as alterações climáticas. Em 2007, o Prémio Nobel da Paz foi atribuído conjuntamente a Albert Arnold Jr (Al Gore), que havia sido Vice-Presidente dos Estados Unidos da América de 1993 a 2001, e ao IPCC pelos esforços no sentido de aprofundar e disseminar um maior conhecimento sobre as alterações climáticas devidas a atividades antropogénicas. Muito antes, em 1903, o prémio Nobel da Química foi atribuído ao físico-químico sueco Svante Arrhenius (1859-1927), não por atividades relacionadas com o clima, mas em reconhecimento dos serviços prestados ao avanço da química através dos seus trabalhos sobre a dissociação eletrolítica. No entanto, embora não fosse essa a razão da atribuição do prémio, Arrehnius já havia chamado a atenção para o facto de que o aumento da concentração de dióxido de carbono implicaria o aumento da temperatura da Terra. Os prémios Nobel nem sempre beneficiaram da aprovação unânime da sociedade. Certamente os negacionistas não terão apreciado esta escolha da Academia Real Sueca das Ciências. Políticos como Bolsonaro e Trump muito provavelmente não terão concordado com a seleção dos laureados. Ambos têm sido responsáveis pela degradação do ambiente, não só nos respetivos países, mas também à escala global. Bolsonaro, alterando a legislação que impedia a exploração desenfreada dos recursos mineiros e florestais da Amazónia, demitindo personalidades das suas funções, como por exemplo Ricardo Galvão, Diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), pelo facto de ter divulgado dados sobre a desflorestação da Amazónia. Trump ficou bem conhecido por negar as alterações climáticas, retirando os EUA do Acordo de Paris, proibindo instituições americanas (como por exemplo a NOAA ) de empregarem expressões com “alterações climáticas” e “aquecimento global”, colocando à sua frente personalidades negacionistas. Seria um desastre se as ideias (ou ausência delas) de Bolsonaro e de Trump singrassem à escala global. Este último já foi apeado do poder, mas ainda permanecem numerosos admiradores seus que poderão fazer com que volte à presidência dos EUA. Espera-se que, para bem da humanidade, o atual presidente do Brasil perca rapidamente as rédeas do poder no seu país, através de impeachment, ou das próximas eleições em 2022. A Academia Real Sueca das Ciências selecionou, algumas vezes, personalidades cujo comportamento posterior à atribuição dos prémios veio mostrar que não eram merecedores destes. Assim, por exemplo, o antigo Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, foi laureado com o prémio Nobel da Paz 1973 (conjuntamente com Le Duc Tho), pelas suas diligências no sentido da concretização do acordo de cessar-fogo na Guerra do Vietname. Nesse mesmo ano foi um dos promotores do golpe de Augusto Pinochet contra o presidente Salvador Allende, democraticamente eleito pelo povo chileno. Esse golpe, que culminou com a tomada do poder pela extrema-direita chilena, deu origem a um regime de terror que perdurou até 1990. Kissinger, em 1975, também foi figura proeminente no apoio político à invasão de Timor. Foi um dos promotores da Operação Condor, iniciada em 1975 sob os auspícios da CIA , que consistiu numa campanha clandestina de repressão e terror de Estado, organizada pelas ditaduras da Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Brasil e, embora menos ativamente, do Equador e Peru. Também Aung San Suu Kyi, líder da oposição ao regime militar que governava o Mianmar desde 1962, a quem foi atribuído o Prémio Nobel da Paz de 1991 pela sua luta não violenta pela democracia e pelos direitos humanos, foi mais tarde acusada de não denunciar as atrocidades perpetradas pelos militares contra a minoria étnica Rohingya. Na sequência das eleições gerais de 2015, em que o seu partido foi vencedor, Suu Kyi era considerada a figura mais influente do governo de Mianmar, desempenhando o cargo de Chanceler e de Primeira Conselheira de Estado, o que lhe permitiria exercer ação moderadora sobre os militares. Há ainda a considerar a atribuição do Prémio Nobel da Paz 2019 ao primeiro-ministro etíope Abiy Ahmed Ali pelos seus esforços para a paz e a cooperação internacional, principalmente no que se refere aos acordos de paz com a Eritreia. Mais uma vez, o prémio foi atribuído a uma personalidade controversa, na medida em que a sua ação, desde o despoletar da Guerra do Tigré, em novembro de 2020, entre as autoridades regionais da região do Tigré e o governo federal, tem sido muito criticada pela ONU e Amnistia Internacional. Segundo investigações levadas a cabo por estas duas organizações, ocorreram graves violações e abusos dos direitos humanos perpetrados pelas tropas etíopes, nomeadamente no que se refere à repressão dos dissidentes de Tigré, onde tem ocorrido forte repressão através de atos que podem ser considerados crimes de guerra. A atribuição do Prémio Nobel da Física 2021 a cientistas envolvidos no estudo das alterações climáticas, pouco tempo antes da 26ª cimeira da ONU sobre o clima, poderá contribuir para dar maior urgência às decisões a serem tomadas no sentido do cumprimento do Acordo de Paris, ou seja, para que os decisores políticos ajam prontamente no sentido de que o aumento da temperatura média a nível global não atinja 2 ºC, de preferência inferior a 1,5 ºC, em relação aos níveis pré-industriais.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesHabitação sénior Quando abrimos os jornais, vemos diversas notícias sobre os encontros do Chefe do Executivo com vários grupos, representantes de outros tantos sectores da sociedade. Os encontros destinam-se a auscultar a opinião destes representantes, a propósito da definição das estratégias do Governo para o próximo ano. Uma delas diz respeito à questão da terceira idade. Dados da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos indicam que em 2020 Macau tinha 683.100 habitantes, dos quais 12.9 por cento com idades superiores a 65 anos. Depois de 2036, os idosos irão representar 20 por cento a 25 por cento da população. Faltam 15 anos para chegarmos a 2036, pelo que temos muito tempo para aperfeiçoar as políticas direccionadas para a terceira idade. Actualmente, o Governo de Macau atribui aos idosos o “Subsídio para Cidadãos Séniores”, (anual) no valor de 9.000 patacas e uma reforma mensal de 3.740 patacas, o que perfaz um total mensal de 4.500 patacas. O apoio financeiro que o Governo garante aos idosos é bastante bom. A comunicação social também noticiou que o Governo encomendou às Universidades um estudo sobre a possibilidade de implementação de um “plano de amortização reembolsável”. Este plano funciona como uma anuidade vitalícia. As pessoas entregam os seus bens como garantia (à partida propriedades) e recebem mensalmente um valor proporcional, até ao final das suas vidas. Aqui a diferença é que as pessoas não precisam de depositar grandes somas para terem direito à mensalidade. Esta modalidade é mais conveniente para aqueles que investiram em bens imóveis, mas que têm pouco dinheiro. É uma forma de aumentar o rendimento mensal dos pensionistas. A divida contraída nunca será paga em vida. Depois da morte do pensionista, os herdeiros podem pagá-la, ou caso contrário, a empresa financiadora toma posse da propriedade e vende-a em leilão. O estudo feito pela Universidade indica que actualmente a procura por este produto é baixa e, como tal, o plano, por enquanto, não vai para a frente. Grande parte dos serviços de saúde proporcionados pelo Governo de Macau são grátis ou de baixo custo, o que é bom para os idosos. Em termos de habitação, se uma família que se quer candidatar a uma habitação social tiver no seu seio um idoso, tem mais hipóteses de a obter do que se não tiver. A habitação social é uma política implementada pelo Governo para ajudar a resolver o problema da habitação em Macau, e não uma política especialmente concebida para a terceira idade. Nesse âmbito, o que existe actualmente são os “Apartamentos para Idosos”. Estes apartamentos proporcionam aos idosos serviços semelhantes aos de um hotel. A gestão destes apartamentos é semi-privada e como tal é necessário pagar uma renda, apenas acessível a pessoas com uma boa situação financeira. Assim sendo, o Governo poderia considerar a implementação de uma política de habitação social exclusivamente dedicada aos mais velhos. Pessoas que vivam sozinhas, casais idosos, ou irmãos que possam co-habitar. Esta medida evitaria que os pensionistas tivessem que esperar pela sua vez juntamente com todos os outros candidatos e permitiria que conseguissem uma casa mais rapidamente. Pode beneficiar não só os idosos, como também toda a sociedade; porque as pessoas vão sentir que Macau é uma cidade onde podemos viver e trabalhar em paz. Se começarmos agora a pesquisar, a procurar terrenos e a construir, 15 anos vai ser o tempo à justa até o projecto estar concluído. No quadro da actual pandemia e da recessão económica que provocou, o Governo pode apostar na construção de infra-estruturas para estimular a economia e reduzir o desemprego; a criação de habitação social para os mais idosos também pode fazer as pessoas sentirem que Macau é um local para viver e trabalhar em paz e com alegria, o que fará aumentar o sentimento de pertença à cidade. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal VozesO Divórcio Portugal está na rua da amargura. A geringonça casou e na semana passada divorciou-se. O Partido Socialista, Partido Comunista e Bloco de Esquerda deram um mau exemplo a um povo que cada vez sofre mais e que tem um nível de vida dos piores da Europa. Há seis anos o entendimento entre os três partidos foi total e deu para formar governo, ao qual os detractores habituais chamaram logo de “geringonça”. O Partido Socialista governou bem, mal ou assim-assim. É conforme a opinião de cada um. Os patrões queixam-se sempre que um governo de esquerda os prejudica, mas o salário mínimo nacional aumentou sempre miseravelmente com o apoio desses empresários que controlam a economia do país. O Orçamento do Estado para 2022 foi a votos e o PCP e o BE resolveram pela primeira vez exigir o impossível e foi triste vermos uma votação onde a esquerda, a direita e os neofascistas estiveram unidos. Quem apoia o PCP e o BE nunca imaginou que os seus partidos de preferência não fossem capazes de se entender com o PS. O Orçamento foi chumbado e agora? Agora vira o disco e toca o mesmo com prejuízo para milhares de famílias. Aumentos da Função Pública e dos pensionistas, reforço de abonos e alterações aos escalões do IRS devem ter ido por água abaixo. O chumbo do Orçamento trava ganhos de mil milhões de euros para as famílias. A direita política bateu palmas de contentamento com a derrota dos socialistas e pensa que vai eleger Paulo Rangel, para que todos unidos venham a ser governo. Rui Rio tem a mesma ideia: formar uma nova AD (Aliança Democrática) com o actual líder do CDS que conseguiu adiar o congresso e deixar Nuno Melo a ver a banda passar. Pessoalmente não acredito nessa vitória da nova AD porque António Costa, como filho de um comunista, sabe bem que não soube negociar seriamente com o PCP porque tem ministros que são incompetentes, corruptos e mentirosos. António Costa só tinha uma coisa a fazer e fez. No seu último discurso no debate sobre o Orçamento do Estado começou já a apelar a uma maioria absoluta em próximas eleições. Eleições que o Presidente da República não desejava e terá de as marcar lá para Fevereiro, depois de se saber se Paulo Rangel conseguirá afastar Rui Rio. Um acto eleitoral que pode ser mais um fiasco, porque se o PS não obtiver a maioria absoluta lá teremos mais um Orçamento do Estado reprovado e assim sucessivamente. Ou então, o PS terá que saber negociar com o Partido Comunista. Perguntar-me-ão que país é este em que os neofascistas sobem nas sondagens e o BE e PCP arriscam-se a ficar com o mesmo número de deputados do CDS e do PAN? É simples esclarecer o labirinto: as facções existentes no seio do PS estragaram tudo. Há gente que quer o lugar de António Costa por qualquer desígnio, mesmo traindo os princípios que aprenderam com Mário Soares. Digladiam-se no interior do partido para a ocupação do lugar de secretário-geral e como alguma dessa gente é ministro, tudo fez para que não houvesse acordo entre o PS e os partidos à sua esquerda. O caldo está entornado e o cozinheiro Marcelo Rebelo de Sousa anda a ouvir os parceiros sociais, os partidos e os conselheiros de Estado, como se de uma prova oral se tratasse. Neste caso, com o país a ser governado em gestão e com as eleições antecipadas mais que decididas pela palavra do próprio Presidente da República, só é tempo perdido andar a fingir que a opinião generalizada de políticos, patrões e sindicalistas é algo de muito importante e decisivo, com a agravante de podermos apenas ter novo Orçamento lá para Maio. O povo está descontente e triste porque o país não avança em nada, a não ser na injecção de milhões de euros na TAP e no Novo Banco. Os pensionistas e reformados iam receber uma miséria de 10 euros, mas sempre era qualquer coisinha, agora lamentam que nem isso vão obter de um governo que vai desaparecer. Façamos votos que nas próximas eleições, como tudo indica, se o PS vencer, que António Costa escolha ministros dignos, competentes, sérios e decididos a transformar o tecido social paupérrimo que existe de norte a sul. Ainda ontem, uma pessoa amiga com quem troco impressões numa rede social me dizia que está desempregada, que tinha um subsídio de 400 euros, mas já não tem, que não pode trabalhar porque sofre de várias doenças tais como artroses, tendinites, hérnias, ciática, fibromialgia, problemas na coluna vertebral e sendo mãe e avó está numa aldeia em casa de seus pais aguentando as dores porque não há médico a menos de 200 quilómetros. Este é o país real que os deputados não conhecem nem querem saber. O que lhes interessa é abrir uma garrafa de champanhe ao jantar após terem votado contra a proposta do Governo e que deitou abaixo o que seria o próximo Orçamento do Estado. Que Natal tristíssimo que Portugal vai ter com a governação sem poder realizar o que estava projectado. Nunca fui simpatizante do Partido Socialista, no entanto, é muito penoso constatar que só a ganância pelo poder ou a negociação radical e exagerada é que coloca um país no pântano, como dizia António Guterres. As próximas eleições, caso o PS não obtenha a maioria absoluta, serão mais um acto de lana-caprina, inútil, prejudicial ao progresso do país e que facilitará o ressurgimento da maioria silenciosa fascista que sempre andou na sombra de certos partidos à espreita do dia da redenção. Estivemos perante um divórcio político do mais lamentável que se podia imaginar numa hora em que até a União Europeia desejava ajudar Portugal a sair do buraco. *Texto escrito com a antiga grafia
João Romão VozesUpopoy ou o coro dos indígenas Quase ano e meio decorreu desde a minha última viagem de avião e não por acaso no mesmo trajecto em que agora retomo o transporte aéreo: já a pandemia de covid-19 se propagava intensamente pelo Japão, no início de Abril de 2020, quando tive que viajar de Hiroshima a Sapporo para consumar mudanças: abrir a porta à companhia de transportes, encerrar contratos, acertar contas, dar uma última vista à cidade de longos e intensos invernos onde tinha estado durante quase cinco anos, para me deslocar para o sul, para a quente Hiroshima, de longos e chuvosos verões. Lembro-me da escala em Tóquio, em Haneda, um dos mais movimentados aeroportos domésticos do mundo, subitamente deserto e silencioso, com os sinais evidentes da imobilidade que havia de assinalar as nossas vidas nos tempos vindouros. Quiseram as coincidências que voltasse a viajar de avião com o mesmo destino, outra vez Sapporo, num tardio outono mas ainda sem neve, que apenas se avistava ao longe, nas mais altas das majestosas montanhas de Hokkaido. Depois de reencontrar um aeroporto pleno de passageiros, quase todos em voos domésticos, ainda assim, foi tempo de rever amizades, retomar projectos suspensos pela pandemia, explorar novos rumos e também redescobrir a cidade, agora com a ajuda do novo olhar da minha filha, por acaso feita em Sapporo e nascida em Hiroshima há pouco mais de um ano, uma vida em pandemia permanente, sempre alerta às novidades mais relevantes, que são quase todas. A viagem incluiu visita ao recém inaugurado Museu Nacional Ainu, na vila de Shiraoi. Fizemo-nos ao caminho a partir da estação ferroviária de Sapporo, em pleno centro da cidade, atravessámos subúrbios de alta densidade populacional e funcional organização com a tradicional eficiência logística japonesa, que nem a neve nem o frio conseguem afectar significativamente. Passámos por Kita-Hiroshima, a “Hiroshima do Norte”, local onde foi concentrando população vinda de Hiroshima, a original, a sul, num percurso inverso ao que me calhou fazer. Afastamo-nos da urbanidade em direcção a uma natureza cada vez mais densa, as árvores por vezes muito próximas das carruagens exibem diversidade de cores outonais, vários tons de vermelho, do mais laranja ao mais castanho, a interromper a ainda predominante presença do verde, quase moldura para os tons da estação actual. Aproximamo-nos do aeroporto de Nova Chitose e logo a seguir do porto marítimo de Tomakomai, com as suas plataformas logísticas, as maiores da ilha, a garantir a conexão e as transações de mercadorias com o resto do Japão e do mundo. Foi numa linha que percorre um tranquilo percurso junto ao mar, outra vez com uma omnipresente natureza a convocar espíritos ancestrais e anteriores à urbanidade, que chegámos à vila de Shiraoi, subitamente notória no país ao alojar o primeiro museu nacional dedicado aos Ainu, a comunidade indígena que ocupava a ilha de Hokkaido antes da chegada dos Japoneses – e que só neste milénio viu reconhecidos alguns dos direitos habitualmente reconhecidos a populações indígenas: passaram a ser legalmente valorizados aspectos imateriais como a cultura ou a língua, mas não houve lugar a compensações relacionadas com aspectos materiais – como os terrenos – como aconteceu na generalidade dos países com comunidades indígenas mais ou menos violentamente despojadas dos seus territórios e modos de vida. A construção deste museu – na realidade um magnífico parque ao ar livre com diversas instalações para acolher actividades culturais diversas inspiradas nas tradições Ainu – constitui um dos elementos mais notórios para uma tardia e insuficiente reparação da dívida histórica a uma comunidade indígena que foi forçada a um processo acelerado de assimilação cultural, económica e demográfica quando a população japonesa se instalou em Hokkaido no final do século XXI. Com manifesta vocação turística, o museu está preparado para receber visitantes em larga escala – objectivo que por enquanto suspenso devido às restrições ou proibições inerentes à pandemia de covid-19. Há acesso fácil de comboio, enormes parques de estacionamento para automóveis e autocarros, centros de informação e zonas de repouso adequadas a diferentes tipos de visitante, incluindo estudantes de várias idades ou pessoas com mobilidade reduzida. O museu em si mesmo traz pouca novidade, no entanto. Para quem tenha visitado antes pequenos museus relacionados com a cultura Ainu, poucas ou nenhumas são as surpresas que se podem encontrar entre os objectos expostos, sobretudo relacionados com o quotidiano das comunidades. Há, no entanto, uma maior preocupação em fornecer informação que contextualize as exposições, quer em japonês, quer em inglês, já que a língua Ainu é apenas falada e não se escreve. Há também uma biblioteca com o material publicado sobre o tema (sobretudo em japonês) e a habitual loja de recordações. Magníficos são os restaurantes – ou pelo menos o das carnes grelhadas, onde se servem estupendas refeições alegadamente inspiradas na tradição Ainu. O parque chama-se Upopoy, que na língua Ainu designa a actividade de “cantar em grupo”, essa tradição coral que anima cantares populares pelo mundo fora. É um coro desequilibrado, no entanto, já que a população Ainu continua a ser pouco visível neste espaço: não se nota a sua presença e se há membros desta comunidade será entre os monitores dos diversos workshops oferecidos nas diferentes instalações ou nos espectáculos de música, dança ou artes performativas baseadas na palavra a que se pode assistir num teatro relativamente pequeno mas com um palco que se abre numa majestosa vista sobre o lago em torno do qual se edificou o parque. Ainda que todas as pessoas a intervir nos espectáculos adoptem uma “alcunha-Ainu” (como parecia ser tradição da comunidade), nenhuma delas foi apresentada como tendo origens indígenas. Na realidade, este é um processo de “não-inclusão” há muito tempo visível nas actividades do turismo da região, que utilizam a originalidade da tradição Ainu enquanto atractivo turístico mas sem envolver a comunidade indígena nos negócios. Neste coro que é um parque teve a minha filha – com os seus parcos 16 meses de existência – a sua primeira oportunidade para assistir a espectáculos em auditório, que os tempos de covid não estão para esses ajuntamentos. Primeiro foram danças e cantares e mais tarde filmes de curta metragem alusivos à história e cultura Ainu, duas sessões de meia hora em que se manteve tranquila e atenta. Era tudo muito bom, portanto.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesOutubro Rosa Quando o meu professor de psicologia da percepção de risco disse-nos em aula que um terço das mulheres presentes teria cancro da mama, achei um exagero. Um exemplo claro sobre a importância desta disciplina. Por vezes os dados comprovam que há um risco elevado de contrair uma doença, mas as pessoas nem sempre o entendem assim. O Outubro rosa, ou o mês de prevenção do cancro da mama, tenta reverter a tendência. De acordo com a organização mundial de saúde, o cancro da mama é o cancro mais prevalente de todos. Um dos factores de risco mais claro e consistente na literatura é a idade. Quanto maior a idade, maior a probabilidade de contrair a doença. Mas a minha experiência começou a ver outros padrões. Pessoas jovens com mamas que se viram confrontadas com o flagelo do cancro. Cirurgia, quimioterapia e radioterapia antes dos 40. Há outros factores de risco como predisposições genéticas. A Angelina Jolie decidiu fazer uma mastectomia de prevenção por isso mesmo. Depois, há factores hormonais, uma menstruação precoce ou uma menopausa tardia por exemplo. O uso de contraceptivos hormonais também está associado a algum risco. E claro, os culpados de sempre: consumo de álcool, tabaco e pouco exercício físico também aumentam a predisposição à doença. Com esta conversa não quero provocar medo. O medo pode ser muito contraprodutivo e levar ao evitamento. Produtivo é espalhar que as práticas preventivas e o diagnostico precoce levam a resultados muito positivos. As pessoas com mamas que não se desliguem delas. A apalpação mamária é algo que todos deveriam fazer com alguma regularidade: mulheres, homens, pessoas não binárias. Neste ano e meio de pandemia, de confinamentos frequentes e acesso a cuidados de saúde limitados, muitos cancros ficaram por diagnosticar. O tempo, nestas situações, é crucial. Recentemente uma radialista portuguesa – Joana Cruz – sentiu um nódulo na mama, foi ao médico que sugeriu uma avaliação daí a 6 meses. Ela não ficou satisfeita com a resposta e a sua intuição levou-a a pedir uma segunda opinião. Agora está a ser tratada para um tumor agressivo na mama. Seis meses teria sido tempo demais. Ela tem 42 anos. Há um trabalho imenso que tem que ser feito neste mês de prevenção. Mas claro, a sexualização dos mamilos femininos torna esta conversa pouco fácil. Não há muitos vídeos reais, descomplicados, com mamas verdadeiras a ensinar a fazer a apalpação, por exemplo. Felizmente que há quem tenha tido a ideia genial de substituir mamilos de mulheres por mamilos de homens, para ajudar a que – pelo menos visualmente – se possam discutir mamas na esfera pública. Também não sei se o lacinho cor-de-rosa e a feminilidade ajudam a contextualizar o tema. Parece que há uns anos atrás, nos Estados Unidos da América, decidiram sexualizar a campanha reforçando o lado “divertido” das mamas. Resultou numa campanha, no mínimo, mediática. Se resultou em mais informação sobre o risco, os sintomas e diagnostico é que a investigação mostra ter estado muito aquém. Ainda é preciso muito trabalho para que as campanhas consigam concretizar aquilo que se propõem: ressoar em todos. Apesar de nunca ter sentido na pele qualquer problema, as mulheres à minha volta têm mostrado que a estatística do meu professor não é totalmente descabida. Como um cerco que se aperta, o cancro da mama tornou-se numa conversa inevitável na minha vida. Se antes o lacinho cor-de-rosa suscitava empatia e pouco mais, agora é acompanhado por um aperto no coração. Já vi colegas, amigas, familiares, amigas de amigas a terem que enfrentar esta desagradável surpresa. Não existirão fórmulas milagrosas para se estar livre de cancro – viver é estar sempre em risco. Mas podemos estar de olhos postos em nós e em quem nós gostamos.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesCrime em Taiwan Chen Tongjia, o suspeito de ter assassinado a namorada Pan em Taiwan, não se encontrou com a mãe da vítima no Conselho Legislativo de Hong Kong. O facto despertou a atenção da comunicação social. Alegadamente, Chen Tongjia abandonou o corpo da namorada nos subúrbios de Taipé, antes de apanhar o avião para Hong Kong. Posteriormente, Chen Tongjia usou o cartão de crédito de Pan em Hong Kong, tendo sido acusado de aproveitamento de bens de outrém e considerado culpado deste crime. Depois de ter sido libertado da prisão, foi colocado numa casa segura protegida pela polícia. Esta protecção terminou recentemente. Actualmente, vive numa zona remota de Hong Kong. Embora Chen Tongjia tenha expressado a vontade de se entregar às autoridades de Taiwan, através da mediação de um advogado taiwanense, o Governo local impediu-lhe a entrada. A mãe de Pan insistiu repetidamente, através da comunicação social, para que ele se apresentasse em Taiwan a fim de ser julgado. No entanto, actualmente a entrada está-lhe vedada. Este caso encontra-se num impasse. O suspeito está impedido de entrar em Taiwan e, como tal, não pode expressar a sua vontade de assumir a responsabilidade do delito e de arcar com as consequências legais. A família da vítima não consegue que se faça justiça. Os apelos públicos da mãe exprimem a dor de alguém de perdeu um filho de forma brutal. A justiça de Taiwan fica abalada se o julgamento não se realizar. Se esta situação se mantiver, todos saem a perder. Chen Tongjia foi condenado em Hong Kong por ter usado o dinheito da vítima e foi preso. Agora vive numa zona desabitada. Embora já não esteja preso, tem uma vida muito restrita. Não pode ter contacto com o mundo exterior e não goza da liberdade de uma pessoa normal. Para além disso, como é muito conhecido, a sua história está sempre a circular na Internet. A “prisão perpétua” online é outro tipo de punição. Em Hong Kong, houve um terrível assassinato em 1985. As vítimas eram um homem e uma mulher britânicos. O homem foi espancado até à morte e a mulher violada e morreu porque lhe foi introduzido no ventre um objecto afiado. Como alguns dos criminosos eram menores, apesar de terem sido julgados e considerados culpados, a sentença não foi determinada. Quando Hong Kong regressou à soberania chinesa em 1997, a sentença foi finalmente proferida pelo Chefe do Executivo. Antes de tomar a sua decisão, o Chefe do Executivo recebeu inesperadamente uma carta dos familiares das vítimas e expressar o seu perdão e a pedirem uma pena mais leve para os agressores. Desta forma, acabaram por ter um castigo atenuado. Vinte anos mais tarde, em 2005, um polícia de Hong Kong descobriu, durante uma patrulha, um homem armado com uma faca e acabou por ser esfaqueado durante o interrogatório. Na sequência do ataque, ficou em estado vegetativo. Apesar de ter recebido os melhores cuidados médicos, não melhorou. O agressor foi libertado após ter estado vários anos na prisão. A família do polícia não perdoou o agressor, embora ele tenha sido preso e eles tenham sido indemnizados. A mulher do polícia diz apenas: “Estou sempre à espera de um milagre.” Existem precedentes em que a famíla da vítima perdoa os agressores e pede uma pena mais leve; mas também se verifica o contrário. Chen Tongjia ainda não foi julgado em tribunal e a situação está actualmente num impasse, o que não é bom para ninguém. Vale a pena reflectir sobre os desenvolvimentos deste caso. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal VozesA luta no preço dos combustíveis É a grande luta. A grande discussão. A grande perplexidade. A grande manifestação. O grande protesto. Tudo por causa dos combustíveis. Se há sessenta anos não tivessem expulsado do Instituto Superior Técnico, o aluno de engenharia de petróleos por ter apresentado uma tese que deixou as petrolíferas em pânico, talvez nada disto estaria a acontecer. Há sessenta anos o engenheiro Jorge Cabral foi afastado por ter apresentado uma tese na qual defendia que a energia do futuro era o hidrogénio e que um automóvel com um depósito poderia ir de Lisboa a Moscovo e voltar. De imediato foi silenciado e ameaçado pela PIDE se voltasse a falar no assunto que iria preso. As petrolíferas nunca poderiam ser prejudicadas, eram e são ainda as donas do mundo económico. Os combustíveis, entretanto, provaram que têm danificado o planeta e apareceram os carros eléctricos e já estão as principais marcas de veículos, aviões e navios a testar os seus modelos a hidrogénio. Enquanto os povos não estiverem esclarecidos do verdadeiro potencial do hidrogénio, a discussão e o descontentamento não acaba no que diz respeito ao constante aumento dos preços dos combustíveis. Em Portugal, é escandaloso. O preço tem vindo a aumentar dezenas de vezes nos últimos anos e na semana passada houve postos de abastecimento que chegaram a vender o litro de gasolina a dois euros por litro. Dois euros? Se um euro já seria um escândalo, imaginem a venda pelo dobro. Acontece que o Governo só pensa nos muitos milhões que consegue ganhar com o consumo de combustível e chegou-se ao ponto de no preço de cada litro de gasolina ou gasóleo, o Governo arrecada 65 por cento em impostos. É inacreditável, mas é a realidade. O povinho diz que não aguenta, mas continua a encher os depósitos. Os proprietários de camiões já tomaram a sua decisão: enchem em Espanha, onde o preço é muito mais barato e há camiões que levam cerca de 2000 litros. A luta dos contribuintes inseriu uma manifestação de protesto. Nada serve ir para a rua com cartazes porque os ministros estão no golfe ou no ginásio. Os proprietários de carros, motos e camiões têm de se convencer que só existe uma solução: em todo o país não abastecer em determinada marca, que por exemplo pode ser a Galp. Neste caso, gerava-se o pânico nas hostes das petrolíferas e do Governo. Porquê? Porque nas petrolíferas ao não poderem escoar o combustível e não têm estruturas para o guardar, além de as refinarias não poderem suspender a produção, o caos estaria instalado e seriam obrigados a baixar de imediato o preço dos combustíveis substancialmente. Como é que se compreende que em 2014 o preço do crude esteve a 110 dólares por barril e agora está em 85 dólares e em 2014 nunca o preço dos combustíveis atingiu a actual plataforma caríssima. O problema é grave quando ouvimos a associação dos proprietários de camiões a dizer que as suas empresas podem encerrar devido à impossibilidade de pagar os combustíveis a um preço tão elevado. Apelam ao Governo que baixe substancialmente os impostos sobre os combustíveis. O Governo fingiu que baixou e os preços continuam a subir. O presidente do Automóvel Clube de Portugal, Carlos Barbosa, chegou a assustar os cidadãos mais pacíficos, quando afirmou “As pessoas estão cada vez mais revoltadas e qualquer dia vão explodir”. Isto, não significa mais nada do que o vandalismo e a revolta podem estar à porta. Uma fonte policial adiantou-nos que já descobriram documentos que previam pegar fogo a várias gasolineiras, o que seria uma enorme tragédia. Portugal tem postos de abastecimentos junto a prédios com 10 andares e uma explosão numa dessas estações de serviços provocaria mortos e feridos. O que se está a passar não é brincadeira e em termos políticos, pode ser o fim de António Costa, tal como deseja o seu ministro ‘Maserati’ Pedro Nuno Santos que a toda a hora tudo faz para denegrir a imagem do primeiro-ministro a fim de poder vir a ocupar o seu lugar como líder do Partido Socialista. O preço exagerado dos combustíveis está directamente ligado ao ambiente político que se vive em Portugal, com toda a direita a puxar a carroça para o lado que atropele António Costa. Essa mesma direita política que sonha em juntar-se, liderada por Paulo Rangel, a fim de em próximas eleições legislativas subirem ao trono governamental, uma tese muito pouco viável porque essa direita tem que se definir no sentido se se une ao Chega ou não. A discussão sobre os combustíveis, podem crer, que não é inocente. Alguém está por trás a desenvolver uma estratégia de descontentamento no seio do povo com o objectivo de derrubar o primeiro-ministro. A única dúvida é se a estratégia tem origem na direita política ou na facção socialista de Pedro Nuno Santos, um esquerdista que está desejoso de ser poder abertamente unido ao Bloco de Esquerda e ao Partido Comunista. Como diria o pensador Agostinho da Silva “está tudo ligado”… *Texto escrito com a antiga grafia
Hoje Macau VozesForma urbana (II) – Dos ventos e das brisas urbanas Por Mário Duarte Duque Enquanto os ventos constituem o transporte de ar de uma circulação mais geral e são geralmente constantes ou predominantes numa região. As brisas geram-se localmente a partir de características locais. A forma urbana permite tanto defendermo-nos dos ventos gerais, como deles tirar partido, mas também permite gerar localmente correntes de ar desejáveis, a que se chamam brisas. Nas cidades não velejamos e muitas vezes sequer gostamos do vento. Mas precisamos e gostamos das brisas. As brisas urbanas geram-se localmente por convecção do ar no espaço urbano. Têm como motor a capacidade da terra e dos seres vivos de transformarem autonomamente a luz do sol em energia. Para tanto as cidades dependem da orientação solar, do tipo de cobertura da superfície, da distribuição da massa construída, dos materiais e das cores, e muito da presença de corpos de água. Do criterioso posicionamento de todos estes elementos obtemos as brisas urbanas que precisamos para a higiene e o conforto das cidades. Em verdade, todos sabemos que, se tivermos em casa janelas para fachadas opostas, em que uma fachada é soalheira e outra é umbria, temos correntes de ar. E que essa corrente até pode ser forte ao ponto de as cortinas voarem e as portas baterem. Como sabemos que quando estamos numa frente de água, o ar desloca-se entre a água e a terra em sentidos diferentes, a diferentes horas do dia. O fenómeno não é mais que o resultado da distribuição das temperaturas no espaço próximo. É conhecido que as cidades são mais quentes que as periferias não edificadas. A razão é que os materiais que predominam nas cidades são mais eficazes na conversão da luz do sol em calor. Disso resulta que, no efeito de “ilha de calor” que se atribui às cidades, reside um motor com capacidade de ventilar e renovar o ar, bastando que a forma urbana esteja para isso vocacionada. É também conhecido que diferentes materiais precisam de quantidades diferentes de energia para alterar a sua temperatura. De entre esses materiais a água e os cobertos vegetais são os que precisam de mais energia e que mais dificilmente alteram a sua temperatura. Enquanto o asfalto, o betão e os metais precisam de pouca energia e, mais facilmente alteram a sua temperatura. Quer isso dizer que é exactamente o pico do calor atmosférico o momento de formação de maiores diferenciais térmicos e de brisas urbanas, contando que exista água ou verde por perto, e a forma urbana esteja para isso adaptada. É numa situação extrema de calor atmosférico, onde reside maior capacidade de a cidade ventilar e de o ar arrefecer, por via da própria energia em presença. São exactamente esses os tipos de mecanismos que importam identificar e facilitar para devolver equilíbrio, sempre que os indicadores ambientais se desenvolvem em sentido que colocam em causa os sistemas de suporte à vida. E falamos apenas de brisas, as quais sequer têm a mesma capacidade de mover ar como os ventos gerais de circulação, mas que são a única possibilidade de mover ar em determinadas zonas do mundo, em determinadas alturas do ano. A chamada zona de convergência intertropical é a zona do globo onde os ventos circulação geral de norte e sul se encontram e se anulam mutuamente. Essa faixa equatorial também se aproxima e se afasta de cada trópico por ocasião do solstício do respectivo hemisfério. Ao efeito que disso resulta chama-se “marasmo”. Remete aos tempos da navegação exclusivamente feita à vela, e representa as situações em que os navios ficavam estacionados no mar porque o ar simplesmente não mexe. Nas cidades das zonas do mundo afectadas por esse fenómeno, onde Macau se inscreve, as bisas urbanas, geradas localmente, são a única possibilidade de movimentar ar. Mas brisas geram-se também por forças de arrasto que actuam lateralmente e em sentido oposto a um corpo em movimento. Em verdade, todos sabemos que os chapéus se soltam em sentido oposto à passagem de um comboio no cais de uma estação e quando tomamos banho de duche, as cortinas são sugadas logo que ligamos o chuveiro, seja a água quente ou fria. São as mesmas brisas que se levantam em sentido oposto à queda de água numa cascata. São as mesmas brisas que, quando chove, levantam o ar poluído das cidades, para que possa ser levado pelos ventos altos de circulação. São as mesmas brisas que permitem a ventilação dos lotes e dos prédios, se colocarmos em comunicação criteriosa as arcadas, as artérias e os pátios dos edifícios. E era disso de que dependia a higiene e a salubridade das colmeias habitacionais das grandes cidades que resultaram da revolução industrial, organizadas em galerias e pátios sucessivos nos interiores de grandes lotes. Nas cidades que são atormentadas, tanto por calor, como por chuva, aí reside exactamente grande capacidade para essas cidades poderem ventilar e arrefecer, contando que se tire partido da morfologia natural e se aperfeiçoe essa morfologia na forma urbana. Demonstração disso é o que se constata em cidades diferentes e se percepciona a respeito do seu clima urbano. Das cidades antigas que disso são bom exemplo, pode não ser claro se o que presidiu foi resultado de conhecimento empírico, intuição ou mero aproveitamento morfologia geográfica inicialmente identificada. Mas sabe-se hoje o que contribui para o aperfeiçoamento e para a degradação do clima das cidades, como também se pode representar e ensaiar isso em modelos numéricos. A mudança de paradigma é que as cidades modificam o clima local, mas não têm necessariamente que o degradar, antes pelo contrário, contando que a modificação seja informada e avisada. Outra mudança de paradigma é que as cidades não mais dependem de uma morfologia geográfica natural. Presentemente os recursos da técnica permitem que a forma urbana possa representar e equivaler em magnitude qualquer morfologia geográfica natural. E sempre se dirá que a infra-estrutura mais primordial de uma cidade é a sua forma urbana.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesMacau dependente da reserva financeira Depois do regresso de Macau à soberania chinesa, o primeiro Chefe do Executivo, Edmund Ho Hou Wa, encontrou um caminho inovador para fazer Macau sair da pobreza, a liberalização da indústria de jogo. Fernando Chui Sai On, o sucessor de Edmund Ho, sabia muito bem que a indústria do jogo iria trazer a Macau receitas milionárias, e a reserva financeira começou a aumentar de forma firme e regular. Quando o terceiro Chefe do Executivo, Ho Iat Seng assumiu funções, pretendia levar a cabo a reforma dos regimes e da gestão dos trabalhadores dos serviços públicos. Mas devido à Covid-19, as reformas não foram totalmente realizadas e os problemas que o regime sofreu ao longo dos anos começaram a emergir. A indústria do jogo, que durante tantos anos facturou milhões, sofreu um declínio significativo com a pandemia. Embora Ho Iat Seng esteja determinado em proteger a saúde dos cidadãos, a situação económica de Macau está estagnada há mais de um ano. Actualmente, o Governo da RAEM recorre à reserva financeira acumulada pelos seus antecessores para manter a sociedade a funcionar. Uma pessoa sozinha não consegue fazer frente a todos os problemas. A composição do actual Governo da RAE dá a impressão de ter “deficiências congénitas e anomalias adquiridas”. Se as capacidades de uma pessoa forem directamente proporcionais à sua auto-confiança, está tudo bem. Se uma pessoa for capaz mas tiver falta de confiança em si própria, não é dramático porque há formas de remediar a situação. O pior cenário é quando nos deparamos com uma pessoa cheia de auto-confiança mas totalmente incapaz, neste caso o desastre é garantido. Os sucessivos erros que aconteceram em Macau devido às medidas anti-pandémicas ilustram bem esta situação. 坐在椅子上的人無法搬得動椅子,可是在“Macau governado por patriotas”的princípio orientador下,澳門特區的“愛國者”都坐了在椅子上。坐在椅子上間中批評擺放的位置不妥,並不能修正錯誤,因為誰也不願意觸動既得利益者。 A 15ª reunião da Convenção sobre Diversidade Biológica vai realizar-se este ano na cidade de Kunming, na Província Yunnan na China, e a China é um dos países signatários. A “Convenção sobre Diversidade Biológica” foi criada no âmbito das Nações Unidas, durante uma conferência sobre Ambiente e Desenvolvimento, que decorreu no Rio de Janeiro em 1992. É um tratado internacional dedicado à conservação da riqueza da diversidade da vida na Terra. Da mesma forma, o objectivo da “diversidade política” é a protecção e sustentabilidade da diversidade social. Segundo o historiador Guo Tingyi, as cinco estrelas da bandeira da República Popular da China têm o seguinte significado: a maior representa o Partido Comunista da China (PCC), e as quatro mais pequenas representam os operários, os camponeses, a pequena burguesia e a burguesia nacional. Esta interpretação está totalmente embuída do espírito de “diversidade política”, patente durante o período de fundação do PCC. Felizmente a RAEM acumulou uma abundante reserva financeira ao longo de duas décadas. Foi estimado que até ao final da primeira metade de de 2021, Macau tinha cerca de 656,81 mil milhões de patacas em reserva, o que deve ser suficiente para aguentar as operações do Governo até ao final da pandemia. Mas o que é preocupante, segundo dados recentes, é que as receitas financeiras da RAEM têm vindo a cair 27.5 por cento todos os anos, ao passo que as despesas financeiras só diminuíram anualmente 1.9 por cento. Este desequilíbrio financeiro é alarmante. Assim sendo, tornou-se prioritário mobilizar e concentrar recursos para ajudar a manter os diversos sectores de Macau e proteger a vida do dia a dia dos residentes. É importante usar correctamente a actual reserva financeira para prestar uma assistência à medida das necessidades das pequenas e médias empresas que foram afectadas pela suspensão da sua actividade durante a segunda metade de 2021. As oito medidas de apoio às pequenas e médias empresas anunciadas pelo Governo da RAEM podem não vir a ser tão eficazes como a imprensa fez ver que seriam. Por agora, o Governo da RAEM tem de lidar com o plano urbanístico dos novos aterros, cuja área total é cerca de 350 hectares, dividida em cinco partes, bem como com o “Segundo Plano Quinquenal de Desenvolvimento Sócio-económico da Região Administrativa Especial de Macau (2021-2025)” e ainda com o “Projecto Geral de Construção da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin”. Por isso, é bom que o Governo os aborde de acordo com a prioridade de cada um, porque a reserva financeira é limitada mas os anseios das pessoas não conhecem limites.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSex Education Depois de um hiato de dois meses, o regresso a este espaço de escrita vem divulgar a série que melhor caracteriza o sexo e os relacionamentos românticos em muitas das suas valências, tensões e dificuldades. A série Sex Education, da vossa plataforma de streaming mais popular, proporciona o espaço de discussão para os temas mais prementes do sexo na esfera do entretenimento – que como já sabemos, não é dos espaços mais críticos ou inclusivos da sexualidade. Ainda nos dias que correm, comediantes fazem uso de estereótipos de género e de excepções à heterossexualidade como se fossem alvo de gozo e de comédia. Um comediante disse recentemente que ser trans é um predicamento “hilariante”. Felizmente que muitos já lhe caíram em cima. Já começa a ser hora de produzir conteúdos televisivos que consigam ser mais inclusivos do que os clichés televisivos dos anos 90. A série Sex Education é uma lufada de ar fresco comparada com outros conteúdos onde a heteronormatividade continua a ser a representação de base da imaginação colectiva do sexo e dos relacionamentos. A série foca-se em adolescentes na escola secundária, o que poderia insinuar que é uma série para uma faixa etária particular. Diria que é uma escolha estratégica para explorar o período de vida em que o sexo parece ocupar a maior parte das preocupações das pessoas. Mas esta exploração é tão relevante nessa altura como depois, e a série mostra isso também. A íntima relação entre o amor, o sexo, a paixão e o tesão continuam a ser explorados ao longo da vida. Os pais dos jovens que por lá aparecem mostram que toda a gente tem espaço para crescer, ora no sexo, ora na intimidade. Só mantendo a saudável curiosidade sobre o mundo é que é possível percorrer esse caminho de aprendizagem: que é tão relevante na adolescência como no resto da vida. Porque a série foca-se no sexo em contexto educativo em particular, explora-se também o que é a educação sexual. O sistema educativo formal consegue ser opressor ao enquadrar a sexualidade única e exclusivamente na forma como se previnem bebés e infeções sexualmente transmissíveis. O foco no prazer – e de como é que se pode dar espaço a esta dimensão – é relevante para todos. A série consegue puxar a necessidade de se falar abertamente do prazer nas salas de aula, bem como em conteúdos de entretenimento. Todos sabem que o sexo dá prazer, mas se há coisa que o legado judaico-cristão ensinou é que o prazer não é um direito, é um desvio, uma tentação da pureza da essência humana. Estas representações precisam de ser desconstruídas, e a série faz um bom trabalho ao não moralizar o sexo. O prazer está sempre lá, não fossem as dezenas de cenas de sexo que a compõe. Esta série também faz um trabalho decente em mostrar diversidade de constelações familiares, românticas e de expressões de género. Há uma naturalidade muito bem-vinda. A série remete para as dificuldades que muitos jovens não-heterossexuais e não-binários sofrem no seu dia-a-dia – mas não as tornam problemáticas. Todos abraçam esta diversidade na utopia que podia ser reflexo dos dias de hoje, mas que ainda não é. Se se podia fazer mais e melhor em termos de representatividade televisiva? Claro que sim, a verdade é que as personagens principais continuam a ser brancas com tendências heterossexuais. Ainda assim, os escritores desta série tentam explorar o tutano das experiências diárias destes jovens e dos seus pais, até em contexto de terapia sexual e de casal. Os autores expõem dados com base na evidência, tentam desconstruir estereótipos e preconceitos, ideias que foram guiadas pelo consumo de pornografia: ideias erradas sobre o corpo, as formas das vulvas e o tamanho do pénis. Discutem sobre o orgasmo feminino e as muitas formas de sexo que podem existir. Há uma tentativa de criar um ambiente verdadeiramente sex positive. Também é verdade que há quem se chateie com o nível de inteligência emocional que estas personagens mostram: a maioria delas mostram uma maturidade relacional e sexual fora do normal. Pelo menos que nos sirva de referência que maturar a nossa relação com o corpo, o sexo, e os outros pode ser bem possível. Dentro e fora do ecrã.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesAbertura das fronteiras A comunicação social divulgou recentemente que a fronteira de Macau com Zhuhai deve voltar a abrir. Mas, antes disso, é natural que se venha a realizar a quarta testagem em massa à população. Embora esta notícia ainda não tenha sido confirmada, traz consigo ventos de esperança. Macau é uma cidade de turismo, lazer e entretenimento. Os turistas vêm de todas as partes do mundo, embora a relação preferencial seja com Zhuhai. Existem muitos estudantes em Macau oriundos de Zhuhai, bem como trabalhadores de Macau que vivem em Zhuhai. O encerramento da fronteira afectou seriamente a economia de Macau e as pessoas que estão dependentes deste intercâmbio. Depois de os estudantes de Zhuhai terem chegado a Macau, foi-lhes impossível regressar à sua cidade de origem devido ao encerramento da fronteira, e passaram a precisar de assistência urgente. Foi um problema complexo. Se a fronteira abrir em breve, esta questão fica resolvida. A notícia sobre a abertura eminente da fronteira é sinal que não existem casos de COVID 19 e não existe portanto risco de transmissão. Os locais de entretenimento que se viram forçados a fechar as portas podem voltar a abrir e a economia vai crescer. Não são boas notícias? O fecho das fronteiras foi provocado pela pandemia. Enquanto o risco de transmissão não for eliminado, a vida não pode voltar ao normal. O processo de vacinação vai continuar durante algum tempo e os profissionais de saúde apelam a toda a população para que se vacine. A vacina permite criar anti corpos que combatem o vírus e, no caso de mesmo assim se contrair a doença, os sintomas serão muito mais ligeiros. Mas, acima de tudo, quando houver uma grande percentagem de pessoas vacinadas, a comunidade cria uma barreira ao vírus que o impede de se alastrar. Claro que esta vacinas são um produto recente. A comunicação social fala por vezes de pessoas que sentiram efeitos secundários após a administração da vacina. No entanto, partindo da premissa que os benefícios ultrapassam largamente os incómodos, toda a população deve considerar vacinar-se o mais rapidamente possível. Actualmente, todas as pessoas que trabalham em contacto directo com o público, ou em espaços fechados, têm de estar vacinadas. Caso contrário, têm de se submeter todas as semanas a um teste ao ácido nucleico. Estas medidas combatem eficazmente a propagação do vírus. A comunicação social também divulgou recentemente que alguns laboratórios farmacêuticos já desenvolveram um medicamento que, se for administrado na fase inicial da doença, tem resultados positivos. Um laboratório britânico anunciou para breve o lançamento no mercado de um medicamento anti-viral. O aparecimento destes medicamentos vai ser muito útil no combate às infecções. Embora estes medicamentos estejam para surgir, ainda não se sabe se terão eventuais efeitos secundários, nem quais serão. Assim sendo, vamos ter de continuar a usar máscara e a manter o distanciamento social. Recentemente, alguns sectores da sociedade propuseram que se implementasse a “Lei da Máscara”, para garantir que todos a usam de forma correcta. A implementação de tal lei implica que uma série de aspectos que têm de ser considerados. É preciso estudar cuidadosamente todos os aspectos da Lei da Máscara, para que se não colida com a vida quotidiana, caso contrário será contraproducente. Recentemente, o Governo implementou a terceira testagem em massa à população, na sequência do aparecimento de quatro casos de infecção por coronavírus. É o método mais eficaz para identificar casos e evitar a propagação do vírus. Mas a testagem em massa requer a colaboração de todos e é uma tarefa difícil. Talvez se pudesse considerar a divisão da população em vários grupos, tendo em vista testagens cíclicas. Macau tomou as medidas necessárias para travar a propagação do vírus e prestou os cuidados apropriados a quem foi infectado. Agora só podemos esperar que haja um desenvolvimento científico positivo ao nível do tratamento e da prevenção. A vacina de última geração vai poder ser administrada a crianças pequenas e a bebés recém-nascidos. Da mesma forma, os medicamentos para combater a COVID são apropriados para estas faixas etárias. As novas conquistas podem vir a eliminar as dúvidas sobre as vacinas e os medicamentos, fazer-nos reagir à ameaça dos vírus e fazer com que a vida das pessoas volte ao normal. Pode ainda voltar a pôr-nos um sorriso no rosto. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal VozesLocura política em Portugal Dá a ideia ao zé povinho que os políticos portugueses estão completamente loucos. De uma ponta à outra não se entendem. Nem no interior dos próprios partidos. No neofascista Chega há quem queira correr com o André Ventura. No CDS o eurodeputado Nuno Melo quer tirar o lugar ao líder Francisco Rodrigues dos Santos. No PSD o caso é grave. Carlos Moedas ganhou a Câmara Municipal de Lisboa e Rui Rio pensou que ficaria à frente do partido ad eternum. Enganou-se. Paulo Rangel, depois de sair do armário ganha cada vez mais apoiantes, além de todo o grupo gay do PSD, e na reunião do Conselho Nacional arrasou Rui Rio em todas as matérias. A reunião começou tensa, com uma ameaça de Rui Rio de que se “iria embora”, se não lhe fosse dada a palavra para uma intervenção inicial. O presidente da Mesa do Conselho Nacional, Paulo Mota Pinto, concedeu a palavra a Rio e foi a contestação geral. Ouviu-se um “bruá” na sala e quando as propostas várias foram a votação Paulo Rangel ganhou sempre. Rui Rio terá de pensar se valerá a pena concorrer nas eleições directas no partido, porque a maioria dos militantes prefere Paulo Rangel na liderança do PSD para combater António Costa. No PS a situação é grave. Até já existem militantes apoiantes do ‘Maserati’ Pedro Nuno Santos que querem que António Costa abdique do cargo se o Orçamento do Estado for reprovado. As facções socialistas digladiam-se ao estilo da idade média. A ala forte maçónica está com o actual primeiro-ministro e pretende uma remodelação ministerial que afaste Pedro Nuno Santos, considerado o “amiguinho do Bloco de Esquerda”. António Costa reuniu-se com o grupo parlamentar do seu partido e pôs muitos pontos nos is e deu recados fortíssimos aos “chicos-espertos”. A reunião decorreu após o PCP e o Bloco terem anunciado que irão votar contra a proposta do Governo para o Orçamento do Estado. Se não houver entendimento entre o PS e os parceiros de esquerda a crise política está instalada. O Presidente da República, depois de se banhar nas águas de São Tomé, andou a semana passada toda a tentar convencer os partidos que se entendam e que compreendessem que eleições antecipadas seria um erro de palmatória e que de nada adiantaria. Alguns observadores viram nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa que no caso de se realizarem eleições legislativas antecipadas que o PS voltaria a ganhar e que o país apenas teria gasto milhões de euros que tanta falta fazem, por exemplo, na Saúde. Marcelo apelou ao bom senso e a todos os esforços dos partidos com assento parlamentar para evitar um chumbo do Orçamento. O Presidente deixou à vista um calendário político que grassa o ridículo e sublinhou que a haver eleições antecipadas seriam em Janeiro de 2022, sendo formado o Governo em Fevereiro e discutido um novo Orçamento do Estado lá para Abril. A única esperança com que se ficou dos encontros do Presidente da República com os dirigentes dos partidos foi a posição do PCP, a qual poderá ainda mudar e deixar passar o Orçamento. Segundo fontes credíveis o encontro entre o Presidente Marcelo e Jerónimo de Sousa foi “demasiado” cordial e frutuoso. Veremos. O Partido Comunista e o Bloco de Esquerda têm uma importância vital nesta matéria e sabem bem que a reprovação do Orçamento do Estado é um enorme prejuízo para o país. As suas responsabilidades estão bem patentes e o povinho poderia vingar-se nas urnas em força pelo voto no PS. Obviamente que no Comité Central do PCP existam duas alas, uma mais radical e outra mais moderada. Esta última tem a noção do que acabámos de referir e possivelmente ainda consiga um acordo com o Governo. Por seu lado, o Bloco de Esquerda tem mudado paulatinamente de posição política relativamente ao Governo. Tornou-se mais crítico e a sua coordenadora Catarina Martins parece não querer nada com António Costa. Todavia, o antigo líder do Bloco, Francisco Louçã, agora comentador de televisão, foi da opinião que seria muito negativo para os portugueses que o Orçamento do Estado não fosse aprovado. E é esta política de “loucos” com que temos de viver e substancialmente assistimos a discórdia atrás de discórdia em todos os quadrantes. Não só de política geral, mas no interior dos partidos como vos referimos no início, mas o que é preocupante é ver um PCP que nunca deixou sair para o exterior os seus segredos, vê-lo agora com as suas células a discutir a liderança do partido. Por um lado, há quem deseje a substituição de Jerónimo de Sousa pelo líder parlamentar João Oliveira, enquanto outros preferem que seja o actual eurodeputado e vereador da Câmara Municipal de Lisboa, João Ferreira. Estes políticos parece que ainda não viram o quadro dos salários da Europa Ocidental, onde entre 19 países, Portugal está em último lugar com os salários mais baixos. Uma vergonha por se gastar tanto dinheiro como por exemplo no saco roto da TAP e não se usar esse dinheiro para a dignidade de quem trabalha. Só para ficarem com uma ideia, em primeiro lugar está a Suíça com um rendimento anual de 35 mil euros, enquanto Portugal na última posição tem um rendimento anual de 14 mil euros e com uma agravante, temos a sétima carga fiscal mais elevada sobre o trabalho, de 41 por cento. É obra. *Texto escrito com a antiga grafia
Hoje Macau VozesForma urbana (I) – Das tempestades e do atrito urbano Por Mário Duarte Duque, arquitecto A forma urbana é uma característica que condiciona tudo o que constitui transporte no espaço urbano, nomeadamente água e ar. Tal característica é, por sua vez, uma síntese de vários aspectos da forma urbana, entre eles “o atrito”, ou seja, a resistência ao transporte, e que na cidade se designa por “atrito urbano”. O atrito da superfície urbana retarda a drenagem da água das chuvas, aumenta o tempo de concentração de toda a água recolhida numa bacia hidrográfica, assim como atrasa a possibilidade do colector de toda essa bacia entrar em colapso. Esse atrito urbano forma-se no tipo de revestimento de superfície e nas características desse revestimento. Um coberto vegetal constitui não só maior atrito que uma superfície construída como contribui par um maior tempo de concentração da drenagem de uma bacia, porque também grande parte da água é infiltrada no solo. Assim como, uma via em paralelepípedos de pedra constitui maior atrito que uma via em laje lisa de betão. As vias de paralelepípedos de pedra, na RAEM só não contribuem para um maior tempo de concentração de toda a drenagem porque, acessoriamente e para facilidade de manutenção, são construídas sobre uma laje de betão que não permite qualquer infiltração de água no solo. Já para o que se prende com o transporte do ar, importa separar as brisas geradas localmente, dos ventos de circulação regional ou geral. Na situação de tempestades, são os ventos regionais que estão em comando e o “atrito urbano” a esse transporte já não se forma na superfície urbana, mas no chamado “canópio urbano”, constituído pela superfície urbana quando ela não está ocupada, mas também por todo o relevo que resulta de copas de árvores e de construção. Sendo o “canópio urbano” da RAEM formado na sua generalidade por construção, interessa conhecer porque os ventos são sentidos de modo diferente na cidade durante uma tempestade, independentemente da exposição dos lugares. Uma morfologia urbana constituída por construção com a mesma altura, rasgada por vias a que chamamos espaços canal afundados na massa construída, o vento varre esse “canópio urbano” com muito pouco atrito e pouca repercussão ao nível da superfície urbana. É muito parecido ao modo como as populações dos desertos se defendem em torno de pátios abaixo do nível do solo, durante uma tempestade de areia. Se ao longo do mesmo “canópio urbano” existir alguma irregularidade de alturas, isso confere um acréscimo de textura a esse “canópio urbano”, o mesmo quer dizer maior “atrito urbano”, mas ainda com muito pouca repercussão ao nível da superfície urbana. O risco que advém dessas situações é mais porque a resistência ao vento reside na textura desse “canópio urbano” que muitas vezes é constituído por construções informais nas coberturas, não sujeitas a cálculo, por vezes mal fixas, que se desprendem durante uma tempestade, e que podem causar danos graves. Todavia, quando o espaço urbano é constituído por grandes torres dispersas, o atrito que disso resulta é enorme e dá origem a um verdadeiro caos. Esse caos resulta do facto de que a textura do “canópio urnbano” constitui um “atrito urbano” cuja resistência e exposição equivale ao impacto do vento, e reencaminha o ar no espaço urbano, não só numa multiplicidade de direcções, mas também em diferentes sinais de sentido. Isso explica porque na mesma fachada de um edifício alto há vidros que entram pelos interiores da construção e vidros que são sugados para o exterior. O centro ou a meia altura de uma fachada é o centro do impacto e é onde os vidros são comprimidos no interior de uma construção. As extremidades da fachada é para onde o ar é divergido, se liberta do obstáculo, e de onde os vidros são sugados para o exterior com tudo o que se encontra no interior dessas construções. Se dobrarmos a esquina de uma construção alta, e que sequer é o lado exposto ao vento, todos os vidros dessa esquina acabam por estar também sujeitos a um efeito de sucção. Nada mais que o mesmo efeito que mantém os aviões no ar quando eles se deslocam. E se numa construção pequena temos a certeza que a água corre de cima para baixo quando chove. Numa construção alta podemos ter a certeza de que ela pode correr ao longo das fachadas em qualquer direcção. Chegados aqui, o “canópio urbano” só pode ser visto como uma componente do planeamento urbano e não um resultado aleatório desse planeamento. Convencionalmente a atmosfera classifica-se por caótica. O sentido que nisso reside prende-se com uma infinidade de condições e de magnitudes diversas que é ainda impossível introduzir num modelo, para reproduzir e explicar os efeitos exactos. “Caos” caracteriza tudo o que percepcionamos, mas que não compreendemos na totalidade, nem temos o controlo. “Caos é a “cruzada” primordial da razão, para compreender e controlar fenomenologia, com o propósito de converter as ideais em “cosmos”. Mesmo não compreendendo na totalidade, “caos” é também algo que se alimenta para aumentar a energia que se reconhece nos sistemas e para facilitar actuação de mecanismos que são capacidade própria desses sistemas. Em ciência, “caos” está associado a uma componente dos sistemas a que se chama “entropia”, e é também a razão por que toda a investigação na vertente da manipulação ambiental e atmosférica é comtemplada com grande cautela, exactamente porque mexe em muito que não se conhece na totalidade. O certo é que, hoje, na passagem de uma tempestade, temos o ar limpo, não tivemos danos, e todos partilhamos uma sensação de “fresh start”.
João Romão VozesFísica política No princípio era política, a economia: ainda antes de Adam Smith e David Ricardo, fundadores da ciência económica que haviam de oferecer ao mundo bases teóricas para as políticas liberais dos séculos vindouros, já os estudos exploratórios de fisiocratas franceses, como Quesnay, exploravam as ligações íntimas e óbvias entre a análise dos processos económicos, das suas condicionantes e consequências sociais, da importância e necessidade da sua regulação e legislação – enfim, do caráter inseparável da economia e da política no contexto do capitalismo na altura emergente. O pensamento posterior de Karl Marx viria a trazer à economia política uma dimensão crítica e revolucionária até então desconhecida e só possível pela integração sistemática das abordagens económica, social e política – um processo que mais tarde se viria a definir como “multidisciplinar”. Nem sempre havia de ser assim, no entanto. Na verdade, a dimensão política da análise económica não havia de se perder e ainda hoje os critérios de regulação ou desregulação das economias e de afectação e mobilização de recursos continuam a ocupar lugar central nos programas de intervenção política nos mais diversos níveis territoriais de decisão sobre o futuro das comunidades – seja o das autarquias locais, o das regiões, o dos países, ou mesmo o dos blocos internacionais, que normalmente combinam uma certa conjugação de interesses económicos e políticos comuns. O que se perdeu foi esse esforço original de integração “multidisciplinar” e de se analisarem os aspectos económicos, sociais e políticos de uma forma sistematicamente integrada. Ainda que os critérios económicos ganhassem cada vez mais peso na formulação de políticas, a intensificação da formalização matemática associada aos estudos económicos foi transformando este campo do conhecimento, tornando-o cada vez um terreno de sofisticação de cálculo e formalização de modelos quantitativos, e desligando-o progressivamente de outras abordagens da sociedade. Gradualmente, deixou de se falar em “economia política” e passou a falar-se apenas de “economia”, ainda que os aspectos económicos continuassem a ser centrais na formulação de políticas. Esse carácter “multidisciplinar” da economia política levou também a que outras disciplinas assumissem designação semelhante. Na realidade, enquanto a designação “economia” substituía a “economia política”, emergia entretanto a “sociologia política”, durante o século 20, procurando integrar na análise sociológica a dimensão política e as questões de poder. Também no campo da economia emergiam novas correntes, como a “regulacionista” ou a “institucionalista”, que procuravam combinar os desenvolvimentos de elevada precisão matemática da economia com aspectos de decisão política. Em todo o caso, no século 20 são correntes relativamente minoritárias (ainda que ocasionalmente influentes) as que procuram integrar os conflitos políticos na análise da economia e da sociedade, enquanto no século 19 a economia política constituía o eixo fundamental (e único, até certa altura) deste campo do conhecimento científico. Nunca esta dimensão política que se foi aplicando a diversas “ciências sociais” se aplicou às chamadas “ciências naturais”. “Biologia política” ou “química política” nunca foram designações utilizadas. Em todo o caso, talvez fosse tempo de começar a pensar no desenvolvimento de uma certa “física política”, tendo em conta o estado lastimoso em que o nosso modelo de desenvolvimento económico, altamente predatório, injusto e destrutivo vai deixando o planeta: nada se perde, tudo se transforma, mas as transformações em curso ameaçam claramente as possibilidades de vida humana na Terra. É um tempo histórico em que talvez a física possa ajudar mais do que a economia na formulação de políticas de governo. Na realidade, os Prémios Nobel da Física recentemente atribuídos apontam para a urgência dessa dimensão política. Giorgio Parisi foi galardoado com metade do prémio pelos seus trabalhos, iniciados ainda nos anos 1980, no estudo dos processes de regulação de sistemas complexos aparentemente desorganizados, ou caóticos, como possam parecer as sociedades humanas ou a diversidade de ecossistemas do planeta. A outra metade do prémio teve destinatários envolvidos no estudo de problemas directamente associados a um sistema complexo específico, o clima: Syukuro Manabe desenvolve, desde os já remotos anos 1960, modelos explicativos do impacto das emissões de dióxido de carbono na subida de temperaturas na superfície terrestre, assunto que está hoje no centro das preocupações políticas da juventude do planeta, ainda que parte significativa da humanidade continue a negligenciar o problema; e Klaus Hasselmann tem vindo a desenvolver e aperfeiçoar modelos estatísticos que permitem identificar os padrões de longo prazo na evolução do clima na Terra, independentemente da evolução mais ou menos irregular, errática ou caótica do estado do tempo em cada momento – contributo que poderá ajudar parte significativa da população do planeta a dar ao problema climático a importância e a urgência que ele na realidade tem. Se essa importância tem sido mais ou menos reconhecida pelos poderes instituídos, já o mesmo não se poderá dizer da urgência. Apesar da assinatura em 1994 de um tratado internacional promovido pela ONU para enfrentar as alterações climáticas, pouco significativas têm sido as medidas entretanto assumidas. Apesar do famoso “Acordo de Paris”, assinado em 2015 por 195 países durante a Conferência das Alterações Climáticas (“GOP 2015”), desde então não têm deixado de se acumular os avisos da comunidade científica sobre a contínua degradação dos ecossistemas e das condições de vida na terra decorrentes, não só da acção humana, como da incapacidade de a transformar. Dentro de poucas semanas haverá nova Conferência (“GOP 2021”), desta vez em Glasgow. A atribuição deste Prémio Nobel da Física vem evidenciar a urgência do problema mas ainda não é certo que estejamos perante a emergência de uma qualquer “Física política”. Na realidade, vamos ter líderes habitualmente motivados por critérios económicos para a definição de políticas que há muito dispensaram até o suporte da economia política.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesLei da máscara Alguns órgãos de comunicação social anunciaram no passado dia 8 que várias pessoas em Macau são a favor da promulgação da “Lei da Máscara”. Mas, como em tudo, há também quem discorde. O motivo que desencadeou a hipótese de se criar esta lei foi a contaminação de um segurança pelo coronavírus, devido a não ter usado a máscara correctamente. Nas três semanas seguintes, realizaram-se em Macau dois testes em massa à população e foram detectados três casos de infecção. Os residentes ficaram mais alerta para a possibilidade de o vírus se propagar na comunidade e para se encontrar todas as formas de o travar. Além disso, algumas pessoas não usam máscara quando se reunem ao ar livre. Se algumas estiverem infectadas, o virus propaga-se e a prevenção da epidemia passa a ter falhas. Alguns empregados discordam desta ideia porque suam muito enquanto tarbalham e têm de tirar a máscara para se refrescarem. A Lei da Máscara será um inconveniente para estas pessoas. Esta lei obriga ao uso da máscara enquanto houver epidemia. É uma lei e uma medida compulsiva. Quem a transgredir será punido. Fica excluída a possibilidade de “usar máscara ou não usar é uma questão de liberdade pessoal”. Macau tem as condições para formular e promulgar a “Lei da Máscara”, porque o Governo local implementou o “Plano para Garantir o Fornecimento de Máscaras”. Cada residente de Macau podia comprar 10 máscaras por apenas 8 patacas, e estas condições mantêm-se até agora. Se não houvesse máscaras em número suficiente, então as pessoas teriam razão para se opôr a esta lei. O objectivo da “Lei da Máscara” é obrigar as pessoas a usá-las e a usá-las correctamente. Quem não as usar quando a tal é obrigado será punido por lei. Mas quem não usar a máscara correctamente também será punido. O uso correcto da máscara pressupõe “que cubra completamente a boca, o nariz e o queixo” e, embora a lei esteja ainda a ser escrita, estas condições não serão certamente alteradas no essencial. E quais são os conteúdos específicos da “Lei da Máscara”? Sabemos que muitos factores têm de ser considerados antes da sua formulação. O Presidente americano Joe Biden assinou a ordem executiva “100-Day Mask Challenge” a 20 de Janeiro de 2021, que requeria que os americanos usassem máscara em todos os transportes públicos. É uma situação muito parecida com a de Macau. Podemos não usar máscara quando corremos ou praticamos qualquer outro desporto? Podemos não usar máscara ao ar livre? Em Taiwan, as pessoas têm de as usar sempre na rua, caso contrário são multadas em $15,000. Se os elásticos da máscara se romperem, pode ser considerada uma razão válida para não a usar e portanto não constituir violação à lei? Uma das formas de lidar com esta situação é aconselhar as pessoas a terem sempre consigo uma máscara suplementar. Assim, mesmo que a primeira se estrague, isso não é razão para não usar protecção. Caso contrário, estarão a violar a lei. Se o uso continuado da máscara causar inflamação cutânea, impedindo a sua utilização, estamos perante uma excepção legítima? Deverá haver um certificado médico que possa ser apresentado em tribunal pela defesa? Já convivemos há quase dois anos com esta epidemia. É natural que as pessoas estejam cansadas. Algumas revelaram-se mais sensíveis ao uso de máscaras. No passado dia 26, em Pingtung, Taiwan, quando um homem entrou numa loja de conveniência, a empregada lembrou-o de que tinha de usar máscara. De forma inesperada, o homem atacou os olhos da empregada, causando-lhe lesões na retina. Esta mulher pode vir a perder a visão de um dos olhos. No dia 18 de Setembro, numa bomba de gasolina na Alemanha, o empregado da caixa viu entrar um homem sem máscara que vinha comprar cerveja. Lembrou-o várias vezes para a necesidade de a usar. O homem saíu e voltou com máscara. Quando ia pagar tirou-a ostensivamente e os dois envolveram-se numa discussão. Mas o pior ainda estava para vir, o homem estava armado, disparou o matou o empregado. Mais tarde, disse à polícia que era contra o uso da máscara. Perante estes casos extremos, haverá necessidade de formular penas específicas para os infractores? Eu não uso máscara, o que é que você me pode fazer? Esta pergunta incorre numa pena, porque é uma violação à Lei da Máscara. Até aqui as penalizações têm sido apenas multas; mas em alguns casos esta penalização não é possível. Por exemplo, se alguém se recusa a usar máscara num autocarro, o condutor não tem autoridade para o multar. Pode apenas expulsá-lo do autocarro. Na elaboração desta lei, será necessário especificar que os condutores de transportes públicos têm autoridade para expulsar passageiros sem máscara? Antes de ser expulso do veículo, deve chamar-se a autoridade para que o identifique e multe? Deparamo-nos ainda com outra questão, que departamento vai implementar esta lei? Será criado um Gabinete especial, como no caso do Gabinete para a prevenção do tabagismo, levada a cabo por pessoal especializado, ou ficará essa responsabilidade nas mãos da Polícia? Seja qual for o departamento responsável, é bom que os agentes trabalhem aos pares. Caso ocorram situações extremas dois agentes ajudam a reduzir os riscos. Após ser criado o departamento responsável, a lei deverá entrar imediatamente em vigor após a sua promulgação? Ou deve dar-se alguns dias para que as pessoas se adaptem à nova legislação? Se houver um período de adaptação, quem estiver em situação de violação deve ser avisado. Se acreditarmos que todos já compreenderam a importância do uso da máscara, não vai ser necessário muito tempo de adaptação. Estas discussões decorrem em torno dos conteúdos específicos da lei. Quanto maior for o impacto de uma lei na vida do dia a dia, com mais situações se irá deparar. É preciso ser muito cuidadoso na elaboração das leis. É concebível que se a Lei da Máscara vier a ser formulada, venha a ter um certo peso na sociedade. Afinal de contas, o mais importante não é a Lei da Máscara. O que é necessário é que todos sejam conscientes e façam a sua parte para prevenir a propagação do vírus. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal VozesCaos nos hospitais Os amigos leitores que me acompanham há mais de um ano devem estar lembrados do que escrevi não há muito tempo sobre a situação dos médicos em Portugal. Afinal, o caso é muito pior. A situação está caótica e os hospitais pelo país fora, bem como os centros de saúde, estão a rebentar pelas costuras. A falta de médicos e a falta de condições para trabalhar é algo de gravíssimo. No Hospital de São Bernardo, em Setúbal, o director clínico tinha-se demitido por falta de condições para trabalhar e logo 87 médicos pediram a demissão por solidariedade. A situação em Setúbal é dramática e o hospital já não tem condições para servir a população. As queixas estendem-se a vários serviços e unidades. Na anestesiologia, por exemplo, só há 50 por cento das salas a funcionar e não há um número suficiente de anestesistas que permita sequer voltar à normalidade quanto mais compensar um défice que já existia antes. Os anestesistas por todo o Portugal são o maior problema. Como na maioria são mulheres médicas, naturalmente têm problemas de natalidade, de tratamento de filhos e outros problemas que não acontecem com os homens. Quase todos os hospitais estão com problemas graves. Muitos dos médicos já nem se queixam dos maus salários, dos milhões de horas extraordinárias que realizam, mas sim da falta de colegas na estrutura global de uma unidade hospitalar. Há falta de médicos, apesar do país ter cerca de 40 mil clínicos. Há médicos que gostariam de permanecer no Serviço Nacional de Saúde (SNS) mas ao fim de muitos anos de andarem a falar para o boneco optam pelos hospitais privados ou pelo estrangeiro. Para terem uma pequena ideia, há médicos que levam para casa mil euros, enquanto na Alemanha, Bélgica, França, Holanda e outros países europeus os médicos têm um rendimento entre os seis e os nove mil euros. Assim não há médico português, tal como os enfermeiros e outros técnicos de saúde, que aguente um sistema que não tem qualquer organização e que não olhe para a Saúde de uma forma realista e sempre tomando em conta que os hospitais públicos devem ser a sustentação de vida de uma população. O Ministério da Saúde está cheio de incompetentes a ganhar três e quatro vezes mais que um médico e a Ordem dos Médicos e o Sindicato Independente de Médicos dizem que o problema está a chegar ao fim. É gravíssimo que em Lisboa o Hospital Egas Moniz também esteja à beira da ruptura. As salas de cirurgia estão vazias por falta de profissionais e o hospital viu-se obrigado a contratar uma clínica privada para realizar as intervenções cirúrgicas. Ao ponto a que chegámos quando tudo isto é pago com o nosso dinheiro. Há dirigentes federativos ligados à Saúde que já se pronunciaram que existe uma estratégia para acabar com o serviço público indo paulatinamente passando o serviço de Saúde para os privados. Os hospitais de Beja e de Évora estão há anos a passar pelas maiores dificuldades e estão igualmente com falta de pessoal médico para poderem aceitar os doentes que para estas unidades são dirigidos. O problema é geral e os médicos de todo o país só apresentam queixas na gestão da Saúde e ameaçam em numerário assustador que se vão embora para o estrangeiro ou para os hospitais privados, os quais começam a aparecer no território nacional como cogumelos. O Governo tem de se compenetrar que médicos e enfermeiros não são alfaiates e sapateiros. São especialistas que obtiveram um dos cursos mais difíceis do mundo para salvar vidas. Obviamente que a sua remuneração não pode ser de mil euros. Conheço um dos melhores cirurgiões de oftalmologia que Portugal tem e ele opera diariamente num hospital público e à tarde vai descansar? Não, à tarde vai melhorar o seu salário dando consultas numa clínica privada. Sai de casa às seis horas e regressa às nove da noite. É vida para um dos melhores que temos? Perguntei-lhe porque não opta pelo estrangeiro? Respondeu-me que foi Portugal que fez dele médico e que tem de servir o seu povo. A situação no sistema de Saúde é mesmo muito grave. A situação no Hospital de Leiria já levou a Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos a alertar para a situação grave devido à falta de médicos no serviço de urgência e pediu ao Ministério da Saúde uma solução imediata do problema. Esta não é uma situação que surgiu hoje, há vários anos que a Ordem dos Médicos tem denunciado a gravíssima carência de recursos humanos no Hospital de Leiria e de outros hospitais da Região Centro do país. Uma situação que se agravou com a pandemia originária da doença covid-19. Os médicos foram requisitados para o combate ao vírus e os centros de saúde ficaram vazios. Os pacientes com outras doenças graves ficaram para trás e não tiveram consultas, cirurgias ou exames durante um ano e meio. Actualmente esses doentes, excepto os que entretanto morreram, tentam ser atendidos e ainda não existiu um planeamento que recupere o atendimento de milhares de portugueses. *Texto escrito com a antiga grafia
Mário Duarte VozesInundações na RAEM (III) Da reconstrução da matriz morfológica da RAEM A primordial preexistência de um tecido urbano é a sua morfologia geográfica. É isso que determina a preferência de determinado local em relação a outros para a formação urbana, como também determina o modo da ocupação urbana desse local. Dessas características ressaltam condições favoráveis para a formação urbana, como resultam moldes de ocupação, desenvolvidos por engenho e por arte, que tiram melhor partido dessas condições iniciais favoráveis. A segurança (que em português tanto significa security como safety) é igualmente critério por que se pauta a escolha dos locais e os moldes da ocupação. A génese da formação urbana na península de Macau pautou-se pelas vantagens da configuração do litoral, mas também se pautou pela segurança que as colinas conferem, face à contingência da presença da hidrologia. Assim, a cidade caracterizou-se por dois anfiteatros, um orientado para a Praia Grande e outro para o Porto Interior, inicialmente distintos, social e funcionalmente, mas unidos pela cumeeira comum e contínua da Colina da Penha. Era esse o perfil geográfico mais seguro em caso de inundação, a que correspondia, e que ainda corresponde, grande parte da Rua Central. Na Rua Central localizaram-se igrejas principais desde a Sé a S. Lourenço, o comércio ocidental, passando pelo centro administrativo, o Largo do Senado, ao qual se acedia pelas rampas que hoje correspondem às travessas do Roquete, da Misericórdia e de S. Domingos. Com a mesma Rua Central comunicavam privilegiadamente os tardozes dos palácios da Praia Grande, assim como as mansões chinesas viradas ao Porto Interior. Do que já vinha infra-estruturando e caracterizando a fábrica da cidade por aplicação de modelos urbanos ocidentais, chegaram também a Macau os modelos ocidentais de apetrechamento e de actualização das mesmas tradições urbanísticas ocidentais. Na Europa foi a abertura dos territórios nacionais pelo caminho de ferro, e a abertura das cidades a esses territórios através de estações, e ao mundo através de portos, que espoletou o movimento de pessoas, assim como o movimento de bens e de serviços, e que determinou mudanças radicais nos centros das cidades, na maior parte ainda de matriz medieval. Todas estas transformações tinham em vista a abertura do espaço urbano para uma melhor circulação e qualidade ambiental, introduzindo o novo modelo de vias a que se chamou boulevard. Teve como modelo mais paradigmático as transformações efectuadas na cidade de Paris pelo Barão Haussmann (1809 – 1891), enquanto conduziu a prefeitura do Sena (1853-1870), que se pautaram pelas aspirações de uma classe média que passou a predominar nos centros das cidades, como se pautaram pelos mesmos fundamentos intelectuais que tinham aberto caminho ao liberalismo económico e puseram termo ao “ancien regime”. Em Macau o mesmo modelo, movido pelos mesmos pressupostos, formou a iniciativa da abertura da Av. de Almeida Ribeiro, conhecida por San Ma Lou em chinês, ou tão simplesmente, a “avenida nova”. Comando que se atribui a Carlos da Maia (1878-1921), enquanto Governador de Macau (1914-1916). Macau passou assim a ser dotado de uma nova via principal, moderna, arejada por duas frentes marítimas, ligando os dois anfiteatros urbanos, social e funcionalmente distintos até então, integrando uma nova acessibilidade, criando um polo com funções onde predominou a classe média, e colocando a cidade em comunicação verdadeiramente cosmopolita com outras regiões e com o mundo, através de um porto. Por tudo isso, essa só pode ter sido uma intervenção esclarecida, pois nela se reflectem muitos dos fundamentos intelectuais por que o modelo se pautou. Para essa realização foi necessário rasgar parte da cumeeira geográfica a que correspondia a Rua Central. É essa a razão por que se desce por escada da Sé à Av. Almeida Ribeiro, e por rampa, mais inclinada que outrora, da Rua Central à Av. Almeida Ribeiro. Disso resultou que a morfologia da colina da Penha se isolou do resto da cidade, ou seja, interrompeu-se a continuidade da circulação segura que servia toda a cidade no caso de inundação das zonas baixas. Em grande medida é isso que hoje também reduz a fruição da continuidade do Centro Histórico de Macau, tal como está hoje definido, agravada pela forma como se encontram definidos os atravessamentos pedonais da Av. Almeida Ribeiro. Chegados aqui, importa dizer que as estratégias por se pauta a infra-estruturação das cidades são sempre aquelas que resultam do que anima e preocupa o momento histórico. Efectivamente, à data, o delta do Rio das Pérolas não estava ocupado como se encontra hoje, nem a maré precisava de se espraiar pela cidade por já não ter espaço no estuário. À data, a cidade apenas estava histórica, funcional e intelectualmente desactualizada e estiveram disponíveis os instrumentos para uma actualização necessária. Presentemente a inundação das zonas baixas da Península de Macau é preocupação e importa conhecer quais são as zonas que podem ficar geograficamente isoladas. Importa conhecer se toda a Colina da Penha pode ficar isolada da Península de Macau, de onde depende da quase totalidade dos dispositivos da protecção civil, no dia em que toda a Av. Almeida Ribeiro passar a ser considerada zona de inundação. Como importa avaliar da autonomia dessa colina, no que respeita a serviços de apoio, pois os locais de refúgio do Poto Interior, no caso de inundação, são parte na Colina do Monte, mas outra parte na Colina da Penha. A segurança contra inundações pauta-se por critérios que, em grande medida, é possível retirar da segurança contra incêndios, com adaptações óbvias. Os espaços dos edifícios são igualmente seccionados por compartimentação de segurança, todas essas áreas são dotadas de escapatórias própria e alternativas, os caminhos de evacuação devem ser convenientemente enclausurados. No caso do risco de incêndio, as portas devem ter adequada resistência ao fogo, mas no caso do risco de inundação, as portas deverão ter adequada estanqueidade. Neste caso falamos principalmente de caves. Os espaços urbanos devem ser na generalidade e alternativamente acessíveis por vias que acomodem a circulação e a manobra dos veículos de emergência, de resgate e de combate a incêndios. No caso de segurança contra inundações os mesmos locais já têm que ser acessíveis por vias acima do nível da inundação. Por isso, e alternativamente importaria avaliar da possibilidade de a Rua Central ser infra-estruturada com uma passagem desnivelada, que de novo a ligasse à Rua da Sé, sobrevoando a Av. de Almeida Ribeiro, e que fosse acessível a peões e a veículos, nomeadamente a veículos de emergência e de resgate, recuperando a continuidade da mesma cumeeira que no passado serviu a cidade. Um tipo de intervenção que reclama engenho e arte. Importa ainda clarificar que esta zona integra o Centro Histórico de Macau, inscrito na lista do património mundial classificado pela UNESCO, e relevar que o que justifica a inscrição de monumentos e lugares na lista do Património Mundial da UNESCO, não é a antiguidade mas “o valor universal excepcional” dessas realizações. Exactamente aquilo que se alcançou por engenho e por arte e que habilita as realizações de hoje a inscrições na lista desse património no futuro. Classificação que se pauta por 10 critérios onde importa “o desenvolvimento de formas de relevo ou características geomórficas significativas” (vd. critério 8); Falamos de infra-estruturas urbanas que se caracterizam por disposições construtivas fundamentais e necessárias para estabelecimento e suporte da vida urbana. Avaliam-se por uma análise S.W.O.T., nomeadamente no sentido de aferir oportunidades e de tirar o maior partido do esforço da iniciativa (vd. Plano Director IX – Oportunidade para uma análise S.W.O.T., em Hoje Macau – 11 Jun 2021) Inscrevem-se em legítima espectativa dos habitantes da cidade junto dos seus administradores. São dispositivos em permanente actualização face ao acréscimo de complexidade por que a vida urbana evolve. Por vezes caracterizam-se na sua concepção por qualidades semelhantes aos humanos e às organizações, nomeadamente por resiliência. I.e., a capacidade de se manterem funcionais na perturbação. Têm a capacidade de colocar os habitantes em paz com as suas instituições. Nunca será demais lembrar Thomas Heatherwick, pelo seu manifesto de 2013 “I don’t like design, at all”, onde clamou que “o que define o carácter de uma cidade é sua infra-estrutura, não é um edifício extraordinário”. “É a infra-estrutura da cidade que a diferencia, mais do que um museu ou a casa chique de alguém”. Sempre se dirá que a infra estrutura mais primordial de uma cidade é a forma urbana.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesA escuridão que precede a alvorada O declínio de uma região reflecte-se no estado da sua comunicação social. Quanto maior é a liberdade de imprensa, maior a tolerância do Governo em relação às diferentes opiniões e mais desenvolvida é a sociedade. No passado, Hong Kong tinha uma actividade jornalística fluorescente, regida pela lei da oferta e da procura e a competição obrigava os accionistas a uma constante luta pelo aperfeiçoamento. Mas a partir do momento em que esta actividade passou a estar sujeita à intervenção dos políticos e a ser regulada por autoridades públicas, ficou reduzida a um mero instrumento de propaganda e só sobrevive quem segue as regras à risca. Para além do fecho do jornal Apple Daily, vários colunistas importantes deixaram de escrever, como é o caso de Lam Shan Muk (colunista do Economic Journal de Hong Kong) e de Simon Shen (analista político e colunista). O escritor e apresentador de rádio Chip Tsao, conhecido pelo pseudónimo de To Kit, emigrou para Inglaterra. Em Macau, Li Jiang, editor chefe do Jornal Informação (Son Pou), anunciou na sua coluna que ia deixar de escrever. Quando a crítica desaparece, os problemas sociais também parecem desaparecer. Da mesma forma, com os deputados da Assembleia Legislativa a seguirem escrupulosamente o princípio “Macau governado por patriotas”, as divergências desaparecem. A escuridão que precede a madrugada é particularmente gritante! Alguém que tenha lido a obra de Mao Tsé Tung não pode cair no erro básico de dicomitizar a sociedade chinesa em “patriotas” e “não-patriotas”. Quem estiver familiarizado com o processo de redacção da Lei Básica de Hong Kong e de Macau, não vai seguramente interpretar as ideias contidas nos princípios “Um País, Dois Sistemas”, “Hong Kong Governado por Hongkongers”, “Macau Governado pelas Suas Gentes” e “alto grau de autonomia”, propostos por Deng Xiaoping, como “Hong Kong Governado por Patriotas”, “Macau Governado por Patriotas”, ou como “O Governo Central ter total jurisdição sobre as RAEs”. O derradeiro objectivo do princípio “Um País, Dois Sistemas”, idealizado por Deng Xiaoping, é a resolução pacífica da questão de Taiwan. Como é que a proposta de “Taiwan governada por patriotas” pode ajudar a uma reunificação pacífica? A “politica da meritocracia” elogiada por muitos especialistas e académicos não passa de um sinónimo de “politica de obediência civil”. Quando um carro não tem buzina, reduz a emissão de barulho; quando o corpo tem deficiência de glóbulos brancos, a pessoa não se sente bem, e quando uma cidade fica sem electricidade, não se pode incendiar. Mas depois do carro sem buzina ter um acidente, a pessoa com deficiência de glóbulos brancos adoecer, a vida fica melhor se vivermos às escuras? Relativamente ao desenvolvimento de Macau, o Governo levou a cabo uma consulta pública sobre o “Segundo Plano Quinquenal de Desenvolvimento Socioeconómico da Região Administrativa Especial de Macau (2021-2025)”. No entanto, no documento de consulta, apenas quatro linhas são dedicadas ao Primeiro Plano Quinquenal. É essencial que as reformas sejam efectuadas durante o Primeiro Plano Quinquenal. A forma como o Plano e a consulta foram delineados, faz com que as pessoas se interroguem sobre a sua eficácia. O “Projecto Geral de Construção da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin” é outra iniciativa particularmente importante para Macau. Aí, são mencionados os quatro sectores industriais para a promoção da diversificação adequada da economia de Macau, incluindo a investigação e desenvolvimento científico e tecnológico e a manufactura topo de gama, a indústria de marcas de Macau, nomeadamente a medicina tradicional chinesa, as indústrias cultural e turística, de convenções e exposições e do comércio, bem como as finanças modernas. Mas Macau não é forte em nenhuma destas áreas. Quando o desenvolvimento de Macau se encontra numa fase embrionária, o “Projecto Geral de Construção da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin” não passa de uma boa prospectiva para o futuro. Tomemos como exemplo os recentes surtos de covid-19 em Macau, seguranças que trabalham em hóteis, usados como locais de quarentena, foram infectados. Em resposta às perguntas dos jornalistas sobre o surto, dirigentes da RAEM atribuíram-no ao uso incorrecto das medidas anti-epidémicas por parte dos seguranças. Mas como é que é que possível que os departamentos relevantes não tenham sido parcialmente responsabilizados? É pena que hoje em dia não haja pessoas a fazer perguntas na RAEM. Ninguém grita do lado de fora da Fortaleza, e os que estão lá dentro podem dormir um sono tranquilo sem que sejam perturbados, até virem a morrer sufocados. Mas será a tranquilidade que precede a morte algo de desejável? Para sobreviver à escuridão que precede a alvorada, não podemos contar apenas com o Governo da RAE e com os deputados da Assembleia Legislativa recentemente eleitos. Precisamos de agir, é isso que verdadeiramente importa.