Educação sexual (também é educação)

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Em Macau começou mais um ano lectivo, e apesar de se falar de quando em vez dessa possibilidade, voltamos a não ter uma disciplina de Educação Sexual na maior parte das escolas. Quer dizer, haver há, ou dirão alguns que sim, mas até estes sabem tão bem quanto eu que aquilo de que as escolas falam cinge-se ao aspecto fisiológico do sexo, e acho que cairiam o Carmo e Trindade locais caso alguém ousasse explicar aos pequenos que os adultos têm sexo porque “gostam”, e que o praticam em busca de gratificação, de prazer. Quem defende que a educação sexual é “uma responsabilidade das famílias” (um argumento “quick and easy” para quem é contra a E.S. nas escolas) sabe que nenhum pai ou mãe vai explicar ao seu educando que a razão porque se deitam juntos tem a ver com razões que se prendem com o deboche e com a luxúria. E qual é a criança que quer ouvir certos detalhes sórdidos da boca do pai ou da mãe, para quem tantas vezes olham como se um pacote de sementes e outro de adubo se tratassem? Verdade seja dita, quem se opõe a que a E.S. se inclua nos currículos é quem ainda pensa que os jovens vão sair dali a querer aplicar aquilo que aprenderam. Mas porque carga de água haviam eles de fazer com aquela disciplina o que não fazem com as restantes?
Olhando para Macau e para as mentalidades vigentes, o sexo continua a ser visto quase como uma agressão, e nem vale a pena falar de igualdade entre géneros: os homens procuram sexo, as mulheres defendem-se, os primeiros são tidos como “predadores” , e as segundas precisam de representar o papel de “púdicas”, e para quem observa – os pais, lá está – nada como a abstinência total, que sempre mantém as coisas como estão, o que neste caso parece ser o ideal. Isto não se prende tanto com motivos de saúde, receio de doenças sexualmente transmissíveis, e nem os mais jovens têm em mente a possibilidade de uma gravidez na adolescência (ou a gravidez de todo) quando pensam em dar esse passo pela primeira vez: o problema ainda são “os outros”, o que vão dizer, o que vão pensar, e principalmente como vai ficar a família aos olhos da “sociedade”. Outra vez, isto tudo tomado com um grãozinho de sal, pois quem quiser optar pela devassidão, deboche e tudo aquilo a que há direito, que o faça pela calada. Por incrível que pareça, em Macau a interrupção voluntária da gravidez é crime, ninguém toca no assunto e nem se coloca a hipótese de se rever a lei. E para quê, se basta atravessar as Portas do Cerco e encontramos um mundo onde o aborto é visto como um mero método de planeamento familiar, chegando mesmo a ser encorajado? Se a isto não se chama “hipocrisia”, então não sei o que isso é.
Aparentemente “estamos bem assim”, dirão alguns, para quem basta reprimir a sexualidade dos adolescentes, e quando chegar a hora, lá saberão como se “desenrascar”. É uma falácia muito comum esta, de conter as hormonas, mesmo que para isso seja necessário amarrar a caixa com uma corda, para que elas não saltem cá para fora e façam “estragos”. Sem uma ideia concreta do que deve ser o ensino da E.S. nas escolas, no âmbito da sua função da preparação dos jovens para a vida adulta, estamos entregues à bicharada. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, fazem-se campanhas de promoção da abstinência recorrendo a exemplos atrozes, comparando jovens sexualmente activos com “sapatilhas usadas” ou “pastilha elástica mastigada” – que raio de comparação, e que gente tão perversa. Aqui tivemos a nossa própria “colher de xarope” de pudor, com a Igreja de um lado, e as famílias do outro, sempre com a missão de “manter a face”, chamem-lhe o que quiserem, dignidade, honra ou pudor.
No meio deste fogo cruzado estão as mulheres, que carregam consigo o ónus da virgindade na forma de uma membrana. Uma membrana, minha gente! Uma coisa esteticamente abominável! Uma mulher que não seja virgem não é necessariamente uma devassa, uma rameira, ou uma ninfomaníaca. Essa associação da virgindade com a pureza é típica das sociedades menos civilizadas, medievais, e tem servido de pretexto para justificar as maiores atrocidades no passado. Torna-se um fardo ainda mais pesado para a condição feminina se a primeira vez de uma mulher resultou de uma violação, ou foi indesejada. Um homem que se recuse a casar com uma mulher simplesmente porque já não é mais virgem, está parado na Idade Média, ou é cigano. Se por acaso se considera “conservador”, então que me desculpe, mas está a ser é parvinho. Quando gostamos de alguém, devemos aceitá-lo como é, e se os seus defeitos se resumirem a uma ou outra escolha infeliz em termos amorosos, o que importa? Quando nos batem à porta perguntamos “quem é”, e não “quem foi”. 
Por um instante apenas, pensemos no que é a Educação Sexual na sua vertente de “educação”, que é sempre um bem precioso, e olhemos para o “sexual” como um simples detalhe. Falemos de tudo nesse espaço de tempo reservado a esse efeito, porque não? De erecções, de penetrações, de orgasmos, de falos, de vulvas, tudo coisas que afinal existem, e são bem reais. Se pensamos que esta necessidade de aprender a orientar-se nos largos e floridos prados do desejo se resolve por si mesma, estamos a convidar todo o tipo de perigos, pois a ignorância nunca foi boa conselheira. O maior risco não é deixar os jovens saber mais do que devem, mas sim deixá-los indefesos perante outros menos bem intencionados que a Escola, e que “a sabem toda”. Ou pensam que sabem, o que pode ser ainda mais trágico. A reflectir.

10 Set 2015

Refugiados na Europa: resposta mínima

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]União Europeia acaba de dar mais um espectáculo triste de falta de solidariedade. Com declarações pouco sérias sobre a crise dos refugiados, pronunciadas nas fronteiras leste da Europa, e com os motores da integração europeia aparentemente distraídos quanto ao tema – afinal, o Presidente Francês aproxima-se rapidamente de eleições e não quer dar pretextos para que Marine Le Pen suba ainda mais nas sondagens – uma resposta comum tem-se revelado impossível. Mas independentemente das iniciativas individuais de acolhimento por parte dos Estados-membros, o que esta onda de candidatos a refugiados tem mostrado é uma total incapacidade e uma desesperante falta de vontade política de a União lidar institucionalmente com o assunto.
Essa inabilidade viu-se na primeira metade do ano quando a Comissão apresentou um plano para lidar com a vaga de candidatos a refugiados que previa o acolhimento de apenas 40 mil pessoas nos próximos dois anos. Ou seja, se o plano tivesse sido implementado como proposto, teriam sido autorizadas a entrar na Europa, a título excepcional, apenas 20 mil pessoas este ano. Nos últimos dias, têm entrado no território da Hungria mais de três mil pessoas por dia.
O plano inicial desenhado pela Comissão Juncker foi depois aumentado por decisão dos Estados-membros. Acordou-se, no final de Junho, que o número de refugiados subiria para 60 mil – isto após uma reunião que durou a noite toda e que terá sido, segundo vários relatos, uma das cimeiras mais azedas da história recente da União Europeia, com vários chefes de governo, de dedo em riste, acusando-se mutuamente de insensibilidade social. Foi aberta uma porta para mais 20 mil pessoas oriundas especificamente da Síria e da Eritreia que ainda não estavam na Europa, tendo a Hungria e a Bulgária ficado de fora, devido a razões económico-sociais, como também o Reino Unido, por opção.

[quote_box_left]Prevê-se nova maratona negocial. Não se acredita que a Comissão tenha aproveitado as férias de Verão para fazer um curso intensivo de mediação política. Receia-se, pois, que a crise política continue a fazer o seu curso no interior da União[/quote_box_left]

Tudo mudou nos dois últimos meses. Por um lado, os políticos – como grande parte da população europeia empregada – foram de férias. E as imagens do aumento da vaga de refugiados pareciam notícias do além, pouco nítidas, pouco claras, pouco audíveis – como acontece com as notícias das desgraças que ocorrem no interior de África, e não são poucas, ou dos acidentes com fábricas na Índia ou na China em que morrem pessoas aos magotes. Não têm nada a ver connosco. Não nos afectam grandemente. É da natureza humana: se não nos afecta directamente, porque é que nos havemos de preocupar? Um pouco como o aquecimento global, não é assim?
Quando os dirigentes políticos regressaram aos gabinetes e tinham sobre as suas secretárias os números de candidatos a refugiados que haviam entrado na Hungria e na Grécia enquanto estiveram a banhos, ficaram chocados. De acordo com os dados da Organização Internacional das Migrações (OIM), até 31 de Agosto, terão já entrado na Europa mais de 350 mil pessoas. E logo depois levaram com a fotografia, na primeiras páginas de vários jornais europeus, do cadáver de uma criança síria de três anos morta numa praia da Turquia, quando procurava, com o pai, a mãe e o irmão, de cinco, chegar de barco à Grécia. Foram pois compelidos a agir.
A Comissão multiplicou por quatro o seu programa original e está disponível para convencer os Estados-membros a aceitarem 160 mil pessoas nos próximos dois anos. A Alemanha e a França são os Estados-membros que irão receber a maior fatia destes refugiados, aumentando também substancialmente a quota individual de cada um. Portugal, por exemplo, subiria a sua contribuição para o esforço de acolhimento de refugiados para 4775 pessoas, quando na proposta anterior previa apenas a integração de 1701.
Esta crise, mas sobretudo a imagem da criança morta, Aylan Kurdi – e, de facto, há que considerar que há imagens de cadáveres e há outras imagens de cadáveres – parece ter agitado consciências adormecidas. Por outro lado, é interessante ver que durante semanas os media internacionais foram tratando as vagas de pessoas que fogem das guerras na Síria e no Iraque como “migrantes”, mas agora, finalmente, adoptaram o termo “refugiados”, mais consentâneo com a realidade. A diferença não é meramente semântica. O estatuto de refugiado permite, a quem o consegue obter, adquirir protecção social por parte do Estado de acolhimento, a qual está vedada ao mero imigrante, que procura num outro país uma oportunidade de trabalho e, potencialmente, melhores condições de vida.
A reunião da próxima segunda-feira do Conselho de Ministros de Justiça e Assuntos Internos deverá discutir a proposta da Comissão. Os chefes de governo da República Checa, Eslováquia, Hungria e Polónia já anunciaram a sua oposição ao plano das quotas. Prevê-se, pois, nova maratona negocial. Até porque não se acredita que a Comissão tenha aproveitado as férias de Verão para fazer um curso intensivo de mediação política. Não será caso para espanto, por outro lado, se os ministros dos Estados-membros, seguindo o exemplo dos seus chefes de governo, aproveitem a reunião para voltarem a trocar insultos. Receia-se, em síntese, que a crise política continue a fazer o seu curso no interior da União.

10 Set 2015

Fixação Oral

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]a fixação oral chega a reflexão sobre o sexo oral. O termo, bastante auto-explicativo, sugere sexo com a boca. Há quem acredite (e isto aconteceu-me mesmo) que se trata de falar sobre sexo, ou mesmo, falar sobre o amor.

Visões mais ingénuas e românticas à parte, sexo oral é daquelas práticas que já se tornaram comuns, aceites. A minha fantasia me dirá que em tempos antigos sexo oral, feminino ou masculino, não seria tão facilmente encontrado. Mas posso estar errada. Projectos futuros seriam de discutir sexo com a terceira idade, se o meu à vontade o permitisse.

Esta oralidade amorosa (genital), no decorrer das descobertas sexuais, poderá constituir uma preocupação, um nervosismo especial entre as camadas mais jovens. Já é choque suficiente ter que se consciencializar pela exposição do orgão sexual ao outro, pior ainda será pensar que se tem que aproximar com uma intimidade tal e natural para chupar e lamber. Convenhamos que até então aquela área estava destinada ao regular xixi e à masturbação, ter que aproximar a boca, o nariz, os olhos ao órgão sexual do outro poderá ser potencialmente intimidador para ambos. Tanto quanto sei de broches, os homens (rapazes) não se acanham em pedi-los, que põe a menina numa posição difícil. Não que sejam obrigadas, mas sentem-se obrigadas. E isso tira todo e qualquer prazer que pudesse suscitar. Aliás, o prazer de presentear com sexo oral no rapaz provavelmente só virá quando este o deixar de pedir: são estes os depoimentos que me têm dado. Um estudo que se debruçou especialmente na temática do sexo oral entre os jovens adultos, veio também clarificar que sexo oral nas meninas vem em troca do sexo oral nos meninos, ou seja, faz-se um broche para receber um minete, com alguma sorte.

A esperança é a aquela de que o sexo oral não seja necessariamente um castigo, ou uma troca de fretes alternadas. Claro que não. Adultos de sexualidade desenvolvida e desinibida já o incluem nas suas práticas sem pedir nada em troca. Um bom broche ou um bom minete é o apogeu do altruísmo sexual. Um sinal de dedicação ao outro, tanto que um outro estudo diz que sexo oral é mais comum em relacionamentos duradouros. Talvez essa história do falar ‘do amor’ não seja tão despropositada quanto isso.

Agora, sexo oral é uma arte a ser desenvolvida e muito praticada. Porque se numa dança penetrativa pode-se ajeitar o que cada um gosta mais e lhes dá mais prazer, andar a explorar lá em baixo com a boca talvez seja mais desafiante. São muitos os mistérios que envolvem o caminho para o clímax oral. Nos homens talvez haja alguma facilidade, nas mulheres pode ser um pouquinho mais difícil. Não são missões impossíveis mas são missões que exigem dedicação e atenção. Atenção às necessidades, aos sinais, aos gemidos do outro. Até porque há toda uma coreografia de anca quando se aproxima da hora H. Até lá é um jogo de profundidade, de saliva e de algum jogo de mãos. A oferecer aos homens ainda há o adicional ‘teabag’ que a cultura popular televisiva ensinou ser uma sofisticada técnica de prazer oral aos testículos. Deixo à vossa imaginação.

Sobre o orgasmo, a pornografia expõe as situações e as práticas que inquietam mentes: engolir ou não engolir. Não é das conversas mais comuns enquanto as amigas tomam o seu chazinho. No fundo não se percebe o que é normal ou facilmente aceite. És da vanguarda, da badalhoquice, da taradice, és prática. Ou simplesmente é muito amor para engolir tal quantidade calórica cromossómica. Como nem eu própria entendi a conotação que existe, pelo menos entre mulheres, com toda a segurança garanto que não é importante engolir ou não. Porque em boa verdade nenhum homem se sentiria em grande coragem de fazê-lo ele próprio, leia-se, engolir o seu próprio esperma. Para homens pode ser uma prova de amor ou uma prova de uma sensualidade pornográfica que virá em diversos níveis de insistência. Às mulheres insisto eu: se não há qualquer obrigatoriedade para o sexo, engolir está longe de ser um pré-requisito sexual. Faz-se o que se quer. Pornografismos à parte.

Para os que têm dificuldades com altruísmo há sempre o número de uma perfeita harmonia e simetria. Sexo oral a rodos e para todos, ao mesmo tempo, sem discussões ou conflitos. Sessenta e nove de uma logística mais ou menos complicada, com resultados possíveis, democráticos.

8 Set 2015

Face de rosto

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão acabou. Outras vezes, podia dizer: inacabou. Mais definitivo talvez, nítido até. Tactear. Lentamente. De início com muito cuidado porque num dos cantos dói. E no outro falta. Branca, texturada. Cheia de vazio. As fibras com rasgos de brusquidão e uns miolinhos regulares do corte. Sem instrumentos mais do que as mãos. As duas. Simétricas e leves, levemente cegas, mesmo. Voltadas para baixo, primeiro que tudo. A rugosidade áspera. Fresca. Que nada passe daqui para lá. O contrário sim, procurar. Ou esperar. Depois unindo levemente os dedos. Revirando-a à procura da interrogação certa. Do que é exacto na impossível exactidão daquele momento. Circunvoluções invisíveis mas que encerram tudo o que pertence. Já. Tudo está sempre. Naquele canto uma palidez solar. Bem no meio que não se encontra, fugidio como as linhas a partir de um ponto qualquer e que param só onde já é tarde, às vezes. Recurvadas. Em formas feias. Erradas. A destruir. Como pensamentos inapagáveis. Nada metafísico nisto. Na lua sim e não. Só nunca acabou. Nunca terminou o desconhecimento e nunca se esgotou o medo. Do dia do não encontro. Dos dias dos não encontros. Que não tendo uma conta certa espreitam o erro da abordagem. Por vezes há que fingir enganar essas invisibilidades e começar pelo erro. Brutalmente mesmo. O olhar é socrático e reage por uma vez, arquitectando um argumento. E tudo rola a partir daí. Montanha acima, primeiro. Bem ou mal. Recomeçar. Muitas vezes recomeçar. E de novo. Sempre com o tacto nos olhos. Espiar o desconhecido que se infiltra. De onde veio e para que tende. Tudo por fazer. Tudo magicamente possível. Olhar um foco nítido sobre o vazio. Em cheio, ali. A vencer o medo. Inacabado. Inspirar o prazer do tacto. Devagar.Anabela Canas
Não. Nunca acabou o medo. Tactear lentamente. Com dedos leves, quase insensíveis. Uma linha, uma curva. Mandíbula humana. A textura áspera a recobrir a superfície lisa e quente estruturada por dentro. Cheia de desconhecido. Ou com as costas da mão. E depois a palma. De início sempre com o cuidado do não saber. Mesmo dos olhos que devolvem a carícia ou a interrogam. Tudo está ali. Onde magoar. Também. Onde se ilumina sem saber de onde. Quando. Como. As duas mãos. Em concha. Simétricas sobre a simetria. Por vezes encostada com força e a pender sobre uma só das mãos. Essas nada incorruptíveis. Maculadas de interrogações. A rede da textura mais complexa do que em qualquer brancura lisa ou rugosa. Logo ali atrás inacessível. Fortaleza exposta. A defender-se ferozmente. O que belo, transcende. Logo por isso. E em fuga. E ainda mais cheio de erro. De manchas ou invisíveis linhas. Enoveladas, centrípetas, quebradas, atadas em nós. Ou de marinheiro. Ou soltas e sem fim nos limites do horizonte. Desfiadas. Por vezes rectas quase cortantes. Não. Nunca se esgota o medo. Do dia, aquele dia do não encontro. Que é impossível de recomeçar. E poucas vezes a partir do erro. Dizer que inacabou seria uma forma curiosa de sugerir um fim do que não foi. Mas o medo. Há o interior. Fechado. Escuro sempre por comparação. (Falava do exterior à superfície. Mas também…). O resto a superfície. Cerrada também. E as questões a mais. Intrusas. Distraem sem benefício. Crescem, absorvem, sufocam. Tudo por saber. Magicamente impossível. Olhar desfocado. Entre cá e lá. Pelo temor. Sempre inacabado. A emoção do tacto. Muito devagar.
Saber-lhe os movimentos antes de ensaiados a tinta. Mais ou menos. Depois. Como passos de dança que podem falhar por um pequeno deslize da respiração. E preferir o improviso ao esquema rígido e prévio. Centrar.
Lembrar os gestos possíveis, mas não saber se serão desenhados. As mãos, outras mãos, e os olhos, outros olhos. No lugar de encontro. Ou desencontro. Ontem ou amanhã. Agora. Ou não afinal. Não era, e assim, nunca foi. A pele dos lábios irrepetível. E a densidade. Tudo. Abandonar o possível. Roupas. Concentrar. Esquecer.
E as linhas entretecem por fim uma teia a fio negro fino. Outras brancas no branco, a indicar o sentido já. Urgente. A curvatura, a intensidade, o vazio, o cheio. Uma inércia boa. Ainda com desconhecido mas a desvendar-se já como um caminho a sair de um nevoeiro compacto. Também a partir daí é possível o afago, dos tons, de pequenas traquinices de emoção para iludir a confusão do real. Ou mecanizar ritmicamente um gesto, formular uma textura já não física mas fictícia. As formas a oferecer outras. A ganhar espaço para lá e para cá. Ilusões. As mãos já aí esquecidas de si. Os olhos também. Nada mais do que o filme a revelar-se a pouco e pouco. Encruzilhadas para parar e pausadamente reflectir o curso.
E os gestos desencadeiam às vezes por fim um encadeado conhecido. Uma renda ponto por ponto. Linha branca, esta. Até ao segundo a seguir. Tudo o resto ainda por detrás de uma névoa de risco imprevisível. E dai uma inércia boa. Sem interrogações agora, mas sem certezas também. Ou o repouso esquecido de tudo. Nunca foi. Segundos, talvez. Tudo o resto talvez igual ao acima descrito.
Não a face.
Papel, fino e transparente ou folha espessa com duas faces. Só uma de rosto. A do desenho do rosto. Vice- versa. Virada, de novo as possibilidades infindas do branco. Já a face do rosto, de espessura maior, mais densa. Opaca. Como a do rosto do desenho, a que é impossível virar do outro lado. Detrás do rosto. A que não tem outro lado, aí o universo inteiro, redondo de escuridão. Caminhos infinitos do negro. Um mundo de trevas e luzes, convexo, pejado de sinais furtivos, equívocos. Sinais. E indizível.
O rosto.

4 Set 2015

Hong Kong sã assi

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á duas semanas atrás decidi mandar umas bocas sobre o universalmente aceite estatuto de “internacional” de Hong Kong e de Singapura. Pelo que ora decidi dar alguma continuidade ao tema, transferindo contudo a conversa para uma outra área e focando as atenções apenas em Hong Kong.
Todavia, antes de mais, caríssimo leitor, deixo aqui um esclarecimento: sou um grande admirador de Hong Kong, cidade onde também cresci, tantos que foram os fins-de-semana ali passados desde a minha infância. Aliás, ainda hoje visito Hong Kong assiduamente, tanto por motivos de lazer como de trabalho.
Por outro lado, também não escondo que a minha forma de estar na vida é, de certa forma, influenciada pela cultura pop de Hong Kong já que durante a minha infância e adolescência segui religiosamente os programas de televisão e os filmes da vizinha ex-colónia. IP Man 2
Isto tudo apenas para dizer que gosto genuinamente de Hong Kong.
Esclarecimento feito, vamos ao que interessa. E o caríssimo leitor, que é atento e perspicaz, sabe certamente que quando se
começa um discurso da forma como comecei, logo a seguir vem um “mas” e parte-se para a violência.
Sempre houve um certo mal-estar entre Macau e Hong Kong. Não sei ao certo nem como nem quando terá surgido, mas provavelmente com o próprio estabelecimento da vizinha ex-colónia no século XIX e com a sua progressiva ascendência como interposto comercial no Sul da China, ao mesmo tempo que Macau progressivamente perdia a sua importância.
Não se pode falar em rivalidade entre Macau e Hong Kong: são duas cidades com perfis completamente diferentes que desempenham funções distintas, pelo que não competem sequer no mesmo campeonato ou modalidade.
Mas o que é certo é que Hong Kong cresceu e tornou-se na metrópole que é hoje. Ganhou o estatuto que ganhou, sendo uma das principais praças financeiras mundiais e um centro de serviços de referência internacional. E, com isso, a malta de Hong Kong passou a olhar para Macau – e não só Macau – como algo inferior.
Existe, por isso, uma certa arrogância por parte de Hong Kong que, naturalmente, Macau não aceita. Muito menos nós, maquistas de gema, que somos tão orgulhosos da nossa cidade e das nossas origens.
O meu avô Lourenço, no seu tempo um brilhante jogador de hóquei em campo, nunca escondeu o especial prazer que lhe dava derrotar Hong Kong nos jogos do Interport. Jogava de forma agressiva e tinha uma stickada forte. E a bola de hóquei em campo é dura como pedra. O guarda-redes daquela selecção tinha medo dele.[quote_box_right]“Sempre que alguém lhe disser “em Hong Kong fazemos assim”, responda “olha, em Macau, fazemos assado. É por isso que somos melhores que Hong Kong.”[/quote_box_right]
A verdade é que às vezes a malta de Hong Kong merece. Infelizmente existem sempre uns espertinhos da vizinha RAEHK que pensam que são os melhores do mundo e por vezes têm a mania que tudo e todos – incluindo Macau – devem fazer as coisas à maneira deles. Porque tudo o que seja diferente de Hong Kong é para eles estranho e, portanto – ponto principal – errado.
Ora, ao longo dos meus 13 anos de vida profissional aqui em Macau, tive o privilégio de trabalhar com excelentes profissionais – e repito: excelentes profissionais – de Hong Kong com quem mantive magníficas relações de trabalho. E de amizade até.
No entanto, quando sinto que estão a pisar o risco, devolvo-lhes sem cerimónias a dose de mau feitio maquista que acho que merecem, tipo stickada forte do meu avô, deixando-os chulados com um sabor amargo na boca.
Estou-me a lembrar de um episódio muito interessante que foi assim: numa sessão de abertura de propostas de um concurso público presidida por mim, um dos concorrentes era uma empresa de Hong Kong – e uma grande empresa até – que apresentou uma proposta com deficiências formais, não cumprindo o estipulado no Programa de Concurso.
A proposta não foi admitida, pelo que os representantes desse concorrente reclamaram imediatamente. E com aquela arrogância. Os argumentos deles? “Em Hong Kong é assim que fazemos e nunca tivemos problemas!”
Estavam a pedi-las, certo? A minha resposta, sem esconder desprezo, foi assim: “Desculpe, mas de acordo com os parágrafos X, Y e Z deste Programa de Concurso, está estipulado que o concorrente tem de fazer assim, assado e cozido, e vocês não o fizeram. Não sei como as coisas funcionam em Hong Kong, mas aqui em Macau a vossa proposta não pode ser aceite. Em Macau vigora a lei!” (*)
Os restantes concorrentes de Macau riram-se e trocaram olhares de cumplicidade comigo.
Não escondo que esse episódio me deu imenso prazer. Pelo que, de vez em quando, e como entretanto comecei a ganhar cabelos brancos e a senioridade profissional já me permite fazer determinadas coisas, até me dou ao luxo de lançar ataques preventivos à malta de Hong Kong, mesmo na ausência de qualquer tipo de provocação.
Pelo que, caríssimo leitor, tenho aqui umas boas para partilhar consigo e não me importo que as utilize sempre que lhe apeteça dar umas bengaladas à malta de Hong Kong. E a piada da coisa é que têm como base a mesma arrogância à la Hong Kong, só que virada contra eles próprios:

Saúde

“Sabe, costumava ir a Hong Kong para consultas médicas, mas deixei de ir depois de todos os recentes medical blunders. Só no ano passado houve em Hong Kong sete casos de objectos cirúrgicos esquecidos dentro do corpo dos pacientes após cirurgia. Prefiro ir a Bangkok, o Bumrungrad é espectacular e tem médicos ingleses. De onde vêm os vossos médicos? São locais, certo?”

Água com chumbo

“No outro dia estive em Hong Kong, lavei os dentes com a água da torneira e pimba, fiquei logo com uma diarreia. Agora, em Hong Kong, só lavo os dentes com água engarrafada.”

Construções ilegais

“Em Macau somos muito rigorosos e construções ilegais não são permitidas. Em Hong Kong não existem leis que regulam isso, certo? O Henry Tang e o próprio CY Leung admitiram ter obras ilegais em casa, não foi?”.

Grande Prémio

“Então vocês falharam a candidatura à Formula E? Eles quiseram vir para Macau, mas rejeitámos. Mas afinal porquê querem vocês copiar Macau? Venham ver o nosso Grande Prémio, já vamos na 62ª edição. E temos carros de competição de verdade, não são eléctricos.”

Passaporte

“Nunca consegui perceber essa treta do British National Overseas passport. Nós não temos nada disso. Aliás, ouvi dizer que vocês quando vão à Inglaterra com um passaporte desses, têm de fazer fila para o balcão All Other Nationalities. Que nacionalidade é essa, afinal?”

Fins-de-semana

“Macau está-se a tornar demasiado stressante e fast-track. Por isso, nos fins-de-semana, gosto de ir a Hong Kong: mais espaço, menos gente, pessoal mais amigável, boas refeições a preços acessíveis. É tudo mais lento e laid-back. Consigo relaxar.”

Dinheiro

“Nunca percebi por que razão as cores das vossas notas não seguem correctamente as nossas: as vermelhas devem ser de 10, e não de 100; as roxas devem ser de 20, e não de 10; as castanhas devem ser de 50, e não de 500. A única que acertaram foi a de 1000. What were you thinking?”

Bandeira

“Ah e tal, Occupy Central… Mas afinal por que razão a vossa bandeira é vermelha?”

E uma que dá para tudo

Sempre que alguém lhe disser “em Hong Kong fazemos assim”, responda “olha, em Macau, fazemos assado. É por isso que somos melhores que Hong Kong.”
Brincadeiras à parte, a verdade é que Hong Kong é uma cidade magnífica e desenvolveu a sua própria identidade cultural, pelo que em muitos aspectos é, ou então julga-se, auto-suficiente. No entanto, é vítima do seu próprio sucesso, pois em muita coisa vive para o seu próprio umbigo. E depois pretende ser uma espécie de cidade-estado, tipo Singapura – mesmo sabendo que isso nunca vai acontecer.
Hong Kong tem por isso de deixar essa atitude arrogante, olhar à volta, abrir-se e preparar uma estratégia a longo prazo para se manter competitiva. O mundo mudou e o campeonato já não é o mesmo, sobretudo dada a ascensão de algumas cidades chinesas.
No entanto, parece que ainda não acordaram para a vida e continuam iludidos: num artigo recente do South China Morning Post, foi noticiado que cerca de 90% dos cidadãos de Hong Kong abaixo dos 30 anos é trilingue. E esse facto foi registado como sinal de uma sociedade competitiva, preparada para os desafios do século XIX. Sendo que, contudo, essas três línguas são afinal o inglês, o cantonense e o mandarim…
Nenhuma delas verdadeiramente estrangeira para Hong Kong, convenhamos.
Não se ponham a pau, não. Correm o risco de ser ultrapassados e esquecidos. E no dia em que isso acontecer não lhes vai valer de nada fazer birras e protestar com o argumento “em Hong Kong fazemos assim”. Ninguém vai dar ouvidos.
Eu avisei.

Sorrindo Sempre

Não há Sorriso Sempre porque já escrevi muito. Mou ah, nám tem.
Sorrindo sempre.

(*) “Em HK vigora a lei (HK kong fat lot ga)” era uma expressão muito utilizada em Hong Kong nos anos 80 e motivo de orgulho dos cidadãos daquela cidade.

4 Set 2015

Carta Aberta | Sindicato dos Trabalhadores Consulares e Das Missões Diplomáticas

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]pós a sua recente deslocação a Macau, Rosa Teixeira Ribeiro, Secretária-Geral do STCDE (Sindicato dos Trabalhadores Consulares e Das Missões Diplomáticas de Portugal no Estrangeiro) rejeita formalmente as acusações formuladas pelo Sr. José Pereira Coutinho, candidato a membro permanente do CPP pelo círculo China, Macau e Hong Kong.
“Maçãs podres” é um termo altamente difamatório para quem, em condições cada vez mais degradadas, assegura um serviço reconhecido de elevada qualidade. Os funcionários do Consulado Geral de Portugal em Macau e Hong-Kong têm-se revelado trabalhadores incansáveis, com grande capacidade de adaptação e de inovação, recebendo os utentes de forma isenta e sem discriminação, contrariamente ao afirmado pelo candidato. A sua prestação de trabalho tem-se caracterizado pelo profissionalismo, imparcialidade, brio e dedicação.
Rosa Teixeira Ribeiro deplora que o candidato não tenha optado por unir todos os interessados em torno de um projecto comum em defesa dos interesses e objectivos de todos os nacionais portugueses, tendo preferido designar bodes expiatórios que nem sequer se podem defender directamente e pessoalmente.
Mas a verdade vem sempre acima, pois não é por acaso que o Consulado Geral de Portugal em Macau e Hong-Kong, graças ao trabalho dos seus funcionários operacionais, administrativos, técnicos e diplomáticos, é um posto reconhecido pela sua capacidade de trabalho e de adaptação, na vanguarda e totalmente investido na sua missão de representação de Portugal e defesa dos seus cidadãos.
Por prova disto, os trabalhadores estarão a postos no dia 6 de Setembro de 2015, para receber todos os eleitores que se deslocarão ao Consulado Geral de Portugal em Macau e Hong-Kong, incluindo quem tão pouco respeito lhes manifestou.

Rosa Teixeira Ribeiro, Secretária-Geral do STCDE (Sindicato dos Trabalhadores Consulares e Das Missões Diplomáticas de Portugal no Estrangeiro)

4 Set 2015

HINDI LUBOS

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] manifestação organizada no último domingo por uma associação de empregadores dos serviços domésticos, em parceria com a Associação Geral das Mulheres de Macau teve uma adesão que ficou “aquém das expectativas”. Dos alegadamente mil inscritos na parada participaram apenas pouco mais de uma centena – e é assim que anda a coerência por estas bandas: à dízima do seu valor facial. Pode ser que as centenas de ausentes sejam pessoas que caíram em si, chegando finalmente à conclusão de que se iam expor a um ridículo: qual a intenção em protestar por um serviço, que sabendo de antemão no que consiste e de que contornos se rodeia, continuam a considerar “indispensável”? No entanto dos que levaram a petição ao Palácio do Governo houve quem até dissesse algo de interessante, aliás, num mundo melhor, esta manifestação faria todo o sentido. Permitam-me um pequeno exercício, não do contraditório, mas do que tenta olhar a situação do outro ponto de vista, em vez de se apressar a chamá-lo de “xenófobo”, e outros impropérios. Com os melhores cumprimentos, aqui vai ela.
Concordo que uma empregada doméstica ou outra mão-de-obra não-residente venha para Macau para esse efeito, e não com um visto de turista para depois andar à procura de um “sponsor”. Parece-me a todos os títulos legítimo que alguém queira saber do passado de uma pessoa que vai colocar na sua casa, ora sozinha, ora tomando conta de crianças ou idosos do seu agregado familiar. Todas estas causas e mais algumas outras referidas por estes pobres tansos têm a sua razão de ser, ninguém duvida disso, ou duvida? O problema aqui não é tanto “o quê”, mas “quem”; são as mesmas pessoas que criaram este estado de coisas que vêm agora fazer barulho. Foi a negociata das agências, os recrutadores ilegais, o emprego em “part-time” (que é ilegal para os TNR, recorde-se) e todas essas “escapadelas” que levaram a um ponto em que é tolerado contratar alguém de quem nada se sabe para fazer um trabalho para o qual pode nem estar habilitado.Empregados domésticos
Da nossa parte, da comunidade portuguesa, continuamos nesse “tilt” de olhar para tudo como se nos estivessem a fazer o mesmo – isto pelo que li e ouvi por aí a este respeito. Mais uma vez, nem todos os filipinos são “de Manila”, e alguns deles preferem este “passar mal” de que aqui desfrutam de quando em vez, do que ao “dolci far niente” que os aguarda no país de origem, com a diferença deste “far niente” não ser nada “dolci”. A “gente bonita” vai logo buscar a escala dos “direitos humanos” para medir a coisa, quando muitas vezes nem sabe que o primeiro colchão onde muitos filipinos dormem na sua vida encontram aqui em Macau, no apartamento que dividem com mais sete ou oito deles. As “condições mínimas de higiene”, de que alguém famosamente rotulou o facto de ter que se tomar banho de pé, nada são atendendo ao facto de que existe água quente, algo que no interior das Filipinas “é um luxo”, assim como ter telefone residencial, em vez precisar de andar centenas de metros até ao único entreposto na aldeia com comunicação para o exterior.
É verdade que em comparação a muitos de nós, que não dispensam duas idas de férias a Portugal por ano (em muitos casos para ostentar), as filipinas e as indonésias “vivem mal”, e que merecem todo o nosso apoio e solidariedade. Mas atenção, que aceitar que se torçam as regras não é dar carta branca à anarquia total, e se este problema “não é nosso”, um pouco de moderação na hora de cometer certos julgamentos é recomendada. Até porque muita da precariedade em que alguns destes TNR se encontram é igualmente culpa nossa, senão digam lá: quem é que passou a ter as filipinas e indonésias como mais do que apenas “empregadas domésticas”? A consciência, esse depósito de entulho que por lá foi ficando esquecido…

PS: O título do artigo significa qualquer coisa como “Não é bem assim”, em filipino.

4 Set 2015

Pré-acto

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]reparativos são mais ou menos necessários dependendo da personalidade de quem os pratica. Há quem queira ser espontâneo ou há quem tente preparar ao ínfimo pormenor tudo o que vai acontecer. Isto sou eu a pensar na generalidade, para quem gosta de viajar, organizar um jantar ou nas nossas rotineiras vivências. O que se faz com preparativos para sexo? Preparações logísticas, mentais e físicas contribuem para a performance e à sua optimização. Poderia pensar em lingerie da mais alta qualidade, uns acessórios excitantes daquelas lojas que não têm direito a montra. Há diferentes níveis de criatividade que mostram todo o potencial apimentador do sexo, que vai de organização kinky até a uma lubrificação bem feita, para a coisa correr bem. maxresdefault
Para mulheres se prepararem para sexo, convém existir alguma dica de que a coisa vai acontecer. Para as mais preocupadas, depilação e lingerie são questões importantes a serem consideradas. Para as menos preocupadas, talvez não seja necessário, mas sei lá, convém haver um preservativo à mão. Pois que a ânsia para o sexo faz o tico e o teco aumentarem a sua actividade fantasiosa. Pois que de fantasias se vive o prazer, e a lubrificação também agradece.
Sexo não é penetração vaginal, única e exclusivamente. Se a sua definição é vista como tal, talvez que daí se justifique o uso do sexo anal para evitar a sua tão assustadora e possível disrupção (talvez nunca entenderam que ‘sexo’ está em sexo anal…). Se se concentrarem em fantasias, naquelas imagens mentais que nos assolam dia e noite em dias mais sexualmente necessitados, o que se vê: corpos, toques, apertos e entradas e saídas (digitais, orais, genitais). Um saudável salpicar de tudo. Chegamos então à fantástica conclusão que sexo na sua definição redutora não satisfaz os apetites de todos quando tentamos teórica e empiricamente percebê-la. Que isto tem que ver com preparativos e, em especial, preliminares? Pois que os preliminares deveriam ser menos pre, tornando-se parte do processo, do acto, da concepção. Sem este q.b. de preparação mental e física, o pinar pouco se via.
Os preliminares são popularmente entendidos como aquele tempo necessário antes de sexo que se estende por mais tempo por vontade das mulheres e por menos tempo por vontade dos homens, com a importante função biológica de lubrificação. Há um estudo que vem mostrar que, na verdade, o tempo que se deseja para os tais preliminares é o mesmo, tanto para homens como para mulheres (tenho que agradecer a referência académica ao blog da Leonor – prontoadespir.me – com textos sobre sexo de uma audácia e descomplicação sem igual). Escandaloso pensar que há mulheres que cortam os seus preliminares porque acham que ele não quer, e homens que são levados no embalo do que acreditam ser vontade dela, e não reclamam por mais! Mais preliminares para estas mesas, por favor! O estudo também mostra que as expectativas são entendidas através de estereótipos sexuais que temos do parceiro, que têm pouca consideração das necessidades individuais, e mais – das do casal e da sua dinâmica. Não querendo cair em clichés, vou cair: senhores e senhoras, é preciso comunicar. Comunicar verbal ou não verbalmente se querem continuar no amasso, se o querem apressar. Whatever. Claramente que existem situações onde longos preliminares (não estou a gostar nada desta palavra, é do sufixo, mas à falta de melhor…) não fazem sentido. Pensem naquela rapidinha antes de ir trabalhar, por exemplo. tumblr_lk847ihppL1qf6iy9o1_500_large
Enaltecendo a funcionalidade dos liminares (não resulta) que pode ser mais ou menos propositada, o foreplay (gosto mais) traz não só o desenrolar de um desejo inusitado e descontrolado, mas faz uso da imaginação do prazer. Vai do uso da pele (referido anteriormente) à criatividade dos jogos genitais e zonas erógenas que com classe e eficácia são estimuladas. Reparem que me referi a classe, porque destes automatismos esperam-se a ausência… de classe. Usar os mamilos como sintonizadores de rádio à espera de um interruptor de vontade sexual, não impressiona. Nada contra estimular mamilos per se, mas há que não ficar por aí. Há desespero por encontrar uma fórmula milagrosa de excitação que por vezes é confundida com o estimular um mamilo, ora o direito, ora o esquerdo e dedilhar o clitóris, à vez – no sentido dos ponteiros do relógio. A ocasional lambidela no pescoço, o afogar orelhas em saliva, já lhes conhecemos as manhas. De interesse o prazer e uma optimização lubrificadora (de ambas as partes), uma fórmula infalível talvez seja uma procura desnecessária. Mas que não vá desencorajar o explorar, as explorações sexuais.

1 Set 2015

Poucas condenações nos tribunais

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o sábado passado, o jornal “South China Morning Post” publicou uma peça crítica sobre a relativa baixa taxa de condenações verificada na “Magistrates Court” de Hong Kong, que não passa dos 50%, segundo dados oficiais. Ou, posto de outra maneira, a acusação ora ganha, ora perde um caso.
Em Hong Kong, a “Magistrates Court” representa o tribunal de justiça mais baixo daquele território, equivalente ao Tribunal de Primeira Instância da RAEM. A taxa de condenações mencionada no primeiro parágrafo deste artigo refere-se à quantidade de vezes que um arguido trazido a tribunal foi considerado culpado. Pode-se então dizer também que o Governo de Hong Kong apenas ganhou metade dos casos considerados neste tribunal, visto serem estes os responsáveis pela acusação.
O departamento responsável por assuntos legais em Hong Kong opera debaixo do título “Department of Justice” (DoJ), sendo dirigido pelo “Secretary for Justice”. Acaba na verdade por ser o equivalente ao Ministério Público da Região Administrativa Especial de Macau, apesar de na RAEHK o departamento encarregue da acusação constituir um sub-departamento do DoJ, sendo este chefiado por Grenville Cross, que ocupa o cargo de “Director of Public Prosecution” (DPP), conhecido também como o número dois do Departamento de Justiça daquele território. Pois foi então este dirigente que se encarregou da autoria do artigo agora por nós analisado.
Duas razões específicas podem ser apontadas como as causas da baixa taxa de condenações descrita por Grenville. A primeira deve-se aos advogados recentemente licenciados, pois recentemente mais e mais casos têm vindo a ser defendidos por indivíduos recém-formados, o que pode pôr em causa os padrões de qualidade da acusação. Todavia, o Secretário para a Justiça da RAEHK manifestou uma opinião diferente, pois segundo este responsável, uma das mais importantes funções do Department of Justice é exactamente treinar novos advogados. O segundo factor apontado por Grenville tem a ver com a saída de procuradores públicos da Magistrates Court. O procurador público é o responsável pela acusação dos processos levados a julgamento neste tribunais, que normalmente requer a contratação de 102 pessoas para esta posição. Porém, o Governo da RAEHK parou de contratar novos procuradores em 2008, havendo agora apenas 80 indivíduos encarregues desta função. Assim, a sua carga laboral é naturalmente muito maior do que a normalmente antecipada.
Mas será justo apontar os advogados recém-formados como a principal causa da má prestação da acusação da Magistrates Court? Este argumento não é fácil de comprovar, mas podemos talvez tecer algumas considerações através da análise do ambiente de ensino de Hong Kong. Hoje em dia, os estudantes da RAEHK têm de investir quatro anos para completar um bacharelato numa universidade local. Depois de completarem este primeiro curso de direito, são então obrigados a frequentar o “Postgraduate Certificate in Laws”, com a duração de um ano. Só depois de completar com sucesso estes dois programas é que os candidatos se encontram aptos para os estágios profissionais, ou treino prático.
Um aluno que acabe o ensino secundário na casa dos 18 anos, tem ainda de estudar mais seis ou sete anos para se qualificar como advogado em Hong Kong, estando nessa altura com cerca de 24 ou 25 anos. Assim, temos de considerar se estes advogados recém-formados, apesar de legalmente qualificados, dispõem ou não da maturidade suficiente para gerir um caso de natureza criminal? A lei criminal lida com o crime, e o crime é praticado por um criminoso. Mas é normal encontrar delinquentes que sabem violar a lei sem porém ficarem sujeitos a nenhuma responsabilidade criminal, ou então sem deixar nenhum indício. Em contrapartida, e na maioria dos casos, um indivíduo com 24 ou 25 anos não está ainda casado, nem tão pouco acumulou nenhuma experiência profissional. Existe então uma grande probabilidade que este jovem advogado não saiba pensar como um criminoso, que se especializa em violar a lei. Mas, se tal for verdade, torna-se então muito difícil para este advogado conseguir ganhar um caso em tribunal.
Nos Estados Unidos, por sua vez, as universidades não oferecem nenhum curso de direito. Assim, uma pessoa tem primeiro de completar um curso universitário para depois poder estudar direito naquilo que são conhecidas como “Law Schools”. Mas, esse mesmo indivíduo, depois de completar primeiro um bacharelato e a seguir enveredar pelo estudo de direito numa instituição académica apropriada, só acaba a sua preparação académica na casa dos 30 anos. Podemos então assumir que seja dotado de mais maturidade do que os seus colegas de Hong Kong, mesmo que igualmente não esteja ainda casado nem tenha acumulado nenhuma experiência profissional. A experiência de vida de um advogado é essencial para o guiar na interrogação de um arguido ou testemunha durante um julgamento. Ao mesmo tempo, serve para o auxiliar quando necessitar de se pôr na pele de um criminoso para explorar possíveis falhas do sistema. Esta é aliás a principal razão pela qual os alunos interessados em seguir direito ou medicina nos Estados Unidos são obrigados a completar primeiro um outro curso qualquer, sendo assim o curso de direito ou medicina a sua segunda habilitação universitária.
Vamos agora então analisar a segunda causa indicada por Grenville – a falta de procuradores públicos. Em Hong Kong, este cargo não é ocupado por advogados. Os candidatos a este cargo têm primeiro que completar outras funções nos tribunais por longos períodos, e só são considerados para o cargo aqueles indivíduos que se distingam por um desempenho exemplar. Assim, apenas alguém com uma vasta experiência legal é que pode vir a assumir a posição de procurador público. Ao mesmo tempo, isto implica que já seja mais velho, assim como que já disponha de muita experiência de vida. Assim, não é normal ver um procurador público perder um caso em tribunal, pois toda esta experiência é vital para o ajudar a pensar como um criminoso.
Ainda assim, e como já mencionamos anteriormente, é vital que o Governo da RAEHK prepare novos advogados através da experiência adquirida em tribunal, ou seja, facilitando-lhes mais casos para levar a julgamento. Esta é sem dúvida uma boa prática, pois se estes recém-formados não conseguirem casos para representar nos tribunais, não vão nunca poder aprofundar os seus conhecimentos jurídicos, nem tão pouco avançar nas suas carreiras. Assim, mesmo que um jovem advogado perca um caso em tribunal, isto representa uma oportunidade para enriquecer a sociedade. Isto é um custo necessário para a sociedade de Hong Kong poder preparar a nova geração de advogados.

Podemos então considerar que a função das autoridades da RAEHK é exactamente balançar a necessidade de obter uma maior taxa de condenações na Magistrates Court com o desejo de oferecer mais oportunidades aos advogados recém-formados.
Talvez seja vantajoso para o Governo da RAEM considerar implementar algumas das medidas utilizadas em Hong Kong – para assim oferecer aos advogados locais mais oportunidades de aprofundar os seus conhecimentos. Esta pode mesmo ser uma das melhores maneiras para melhorar a qualidade dos advogados na RAEM.
O direito é um assunto prático. Não podemos aprender assuntos jurídicos exclusivamente através dos livros de ensino, mas temos sim que aplicar esses conceitos na vida real. Quanto mais praticarmos, mais vamos saber. É por isso que a máxima “a prática leva à perfeição” é sempre verdade no que concerne à lei.

31 Ago 2015

A verdade está à solta, colhendo o que se semeia

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]urante a Dinastia Song do Sul da China, o imperador Gaozong e o seu chanceler Qin Hui conspiraram juntos para remover Yue Fei, o principal general militar na altura. Qin chegou mesmo a discutir os detalhes do plano em casa com a sua mulher. Fruto dessas discussões, o casal chegou a um consenso que “libertar o tigre para que este regressasse às montanhas viria a trazer uma série interminável de problemas no futuro”. Assim, a única alternativa viável era a morte de Yue Fei. Alegasse que, depois do falecimento de Qin Hui, este visitou a mulher durante um sonho para a informar que o seu complot havia sido exposto, o que a assustou de tal modo que chegou mesmo a causar a sua morte.
A verdade vem sempre ao de cima, mais tarde ou mais cedo. Mesmo quando todos se preocupam apenas com os seus próprios assuntos, não se pode assumir que a sociedade se encontra em paz. Se nós não nos interessarmos pelo local em que vivemos, este sítio acaba inevitavelmente por nos partir o coração. A quarta legislatura do Governo da RAEM encontra-se em funções há menos de um ano, mas mesmo assim os problemas sociais têm-se multiplicado, e com uma ferocidade tal que mais se assemelham a uma erupção vulcânica. O recente incidente envolvendo a troca de terrenos destinados à Fábrica de Panchões Iec Long, que se encontra agora sob a investigação do Comissariado Contra a Corrupção, é um dos muitos casos que preocupam as gentes de Macau.iec long
A troca de lotes verificada neste incidente foi realizada de acordo com todos os requerimentos legais durante o mandato de Ao Man Long como Secretário para as Obras Públicas e Transportes. A maior incongruência foi a troca de um lote pequeno por um bem maior, situação considerada fora do normal e isenta de qualquer razão ou lógica. Não nos podemos porém esquecer de uma situação semelhante que envolveu o empresário da construção civil Lam Wai. Na altura, ninguém levantou nenhuma objecção acerca do caso de Lam e todo o processo decorreu dentro da legalidade. Mas, quando Ao Man Long foi processado por aceitar subornos, a opinião pública, e em especialmente a deputada Kwan Tsui Hang, exigiram que o sucessor de Ao nas Obras Públicas investigasse as concessões de terras realizadas durante a era de Ao como Secretário para as Obras Públicas e Transportes, de forma a garantir que nenhum problema tivesse ficado por resolver. Mas, no final de contas, o sucessor de Ao pouco ou nada fez a este respeito, e o caso da Fábrica de Panchões Iec Long nem sequer fazia parte da lista de transacções sob investigação.
Lembro-me que, na altura, alguns deputados insistiram frequentemente para que o Governo divulgasse quanta permuta de terrenos havia sido autorizada, e que fornecesse esclarecimentos sobre o rumor de que parte dos cinco aterros do Plano Urbanístico teria de ser usada como compensação pelas permutas anteriores. Mas, como já é habitual, a resposta do Governo foi pouco esclarecedora. Apenas quando Raimundo do Rosário assumiu a pasta de Secretário para as Obras Públicas e Transportes é que as autoridades se dignaram a fornecer respostas mais detalhadas às perguntas colocadas pelos deputados em questão. Veio-se então a saber que, em relação à troca de terrenos relativa à Fábrica de Panchões Iec Long, esta permuta só podia ter ocorrido de acordo com os respectivos procedimentos legais. Mas, apenas por estar de acordo com a lei não significa necessariamente que a troca tenha sido justificada. Mas temos também que reconhecer que esta prática se encontra tão enraizada que acabou mesmo por se tornar numa característica distinta de negócios “à Macau”. Também no caso do terreno “Tou Fa Kón”, localizado perto do Mercado Vermelho, assim como no do projecto La Scala, situado em frente ao Aeroporto Internacional de Macau, os respectivos terrenos foram concedidos de uma forma legal. Mas isso não tira importância ou influência às várias partes interessadas que se movimentaram nos bastidores de todo este processo.
O Secretário Raimundo do Rosário chegou aliás a pedir ao Comissariado contra a Corrupção que abrisse um inquérito relativo à troca de terrenos da Fábrica de Panchões Iec Long, o que acabou por ser uma medida muito inteligente. Por um lado, este dirigente evitou desta forma vir a ser considerado responsável pelos casos melindrosos que constituem o legado da antiga Administração. E, daí para a frente, todas as futuras decisões relativas à Fábrica de Panchões Iec Long teriam de ser aprovadas pelo Comissariado contra a Corrupção. Por outro lado, esta decisão vem também evitar que Raimundo se torne no alvo de ataques por parte do público caso se venha a verificar qualquer outro problema no que toca a concessões de terrenos, especialmente aquelas envolvendo lotes de grandes dimensões. Caso os nossos leitores estejam a par dos desenvolvimentos do caso da Fábrica de Panchões Iec Long, sabem certamente que o proprietário do terreno em questão, assim como os seus parceiros, mantém uma relação muito íntima com os círculos empresariais e políticos do território. Tanto Chui Sai On como Raimundo do Rosário são responsáveis de resolver ou gerir qualquer problema que tenha sido deixado pela Administração anterior. Podemos então afirmar que ambos estão agora a colher aquilo que semearam no passado. Mas, neste momento, seria talvez vantajoso perguntar a nós próprios, o que levou Macau a se tornar naquilo que é hoje? iec long
Será que o conceito de “um país, dois sistemas” falhou? Ou será então que as gentes de Macau são incapazes de gerir o território por si próprias? Na verdade, o princípio “um país, dois sistemas” acabou por dar a Macau, como também a Hong Kong e a Taiwan, um alto nível de tolerância política. Se os tumultos de 4 de Junho não tivessem ocorrido na China, a onde de reformas políticas que decorria no país não teria nunca terminado, e as situação política teria despoletado em algo verdadeiramente agradável.
Em Macau, por sua vez, não há falta de talentos, apenas uma escassez de talentos políticos que estejam dispostos a se dedicar à cidade por completo. Existem sim muitos que proclamam ser patrióticos e ainda que amam a RAEM, mas na realidade estão dispostos a roubar para proveito próprio ou então de forma a enriquecer as associações ou organizações a que pertencem. Mas Macau nunca teve falta de indivíduos interessados em representar as massas, nem tão pouco de organizações destinadas a supervisionar o desempenho do Governo. Todavia, estas associações são incompetentes e colocam ênfase na manutenção do status quo, ou da harmonia social, ao invés de exigir a responsabillização dos funcionários públicos. Assim, e com uma administração que carece de supervisão apropriada, a porta encontra-se aberta a todo o tipo de conduta desordeira. Outro problema que temos de superar é a necessidade que os nossos campeões da democracia sentem em ser foco das atenções, assumindo este problema um carácter de veneração semi-religiosa. Na verdade, estes indivíduos encontram-se tão divorciados da realidade que se julgam transformados numa espécie de ídolo, que porém existe apenas em nome. Além disso, recusam-se a partilhar o poder com outros, devido ao medo que têm de perder o seu status social, e parecem ser ignorantes da necessidade que todos nós temos em gerir adequadamente o tempo. Tudo isto culmina numa espécie de ecologia política caracterizada por pessoas que se dedicam a enriquecer através da política. Ao mesmo tempo, deparamo-nos com uma sociedade cada vez mais populista, em que a maioria dos seus cidadãos denota uma nítida falta de visão estratégica, além de uma marcada incapacidade em assumir uma conduta altruísta. Se as coisas se mantiverem assim, o que pode ser feito? Esta questão merece sem dúvida a nossa atenção.

28 Ago 2015

VÁ-SE LÁ ENTENDER…

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] falta de uma “silly season” a que fiz referência na semana passada neste espaço veio parir mais um monstro. Numa iniciativa que deverá ter tudo de original à escala global, os “patrões” vão sair à rua a protestar contra os “empregados”, ou neste caso “empregadas” – em Macau os empregadores marcaram para este domingo uma manifestação contra as suas empregadas domésticas. Não é engano, e penso que nada ficou perdido na tradução: centenas de pessoas vão protestar contra outras que colocaram a trabalhar na sua casa de forma completamente voluntária. Não sei que “slogans” e outras palavras de ordem se vão escutar nessa tal manifestação, mas suspeito que não será “não me limpem a casa”, ou “deixem os meus filhos esquecidos no infantário”, isso é que era. Este é mais um daqueles casos em que se exige “que alguém faça alguma coisa”. Quem e o quê, isso já não é problema deles, que já fizeram o que lhes competia, que é protestar. A parte do “deitar abaixo” está feita, agora que “alguém” se encarregue de fazer o resto.
Esta iniciativa, que só pode ser catalogada de “absurda”, partiu de uma tal Associação de Empregadores dos Serviços Domésticos, e tem como mote um caso isolado, onde uma ajudante familiar de origem vietnamita terá maltratado uma criança pequena, que tinha a seu cargo. O bom senso diz-nos que este é um caso de polícia, e generalizar seria cair no ridículo – deviam todas as mulheres deixar os seus maridos com o pretexto de um caso de violência doméstica, por exemplo? Mas o bom senso não é para aqui chamado, e é por demais evidente que existirão outras razões que não essa para que tanta gente prestar-se a esta triste figura, que nem de “hipocrisia” se pode classificar, de tão surrealista que é. O que vai dizer um patrão que participe desta arruada à sua empregada? “Olha, no Domingo vou-te rogar mil pragas, mas isso não quer dizer que na segunda tens folga, estás a ouvir? Quero-te aqui às oito em ponto, como costume. Ah sim, é verdade: VOLTA PARA O TEU PAÍS, DESGRAÇADA!”.[quote_box_left]Não sei que “slogans” e outras palavras de ordem se vão escutar nessa tal manifestação, mas suspeito que não será “não me limpem a casa”, ou “deixem os meus filhos esquecidos no infantário”, isso é que era. Este é mais um daqueles casos em que se exige “que alguém faça alguma coisa”. Quem e o quê, isso já não é problema deles[/quote_box_left]
Nós, comunidade portuguesa, sempre na linha da frente do sentimento humanista na sua vertente “respeita os mais fracos e os oprimidos, ou levas na tromba”, fomos os primeiros a manifestar indignação por isto, que não fica muito atrás daqueles exemplos horrendos de que a História é fértil, desde cristãos a judeus, passando por ciganos, pretos, mulheres no Islão, etc, etc, etc. Não nos fica mal indignarmo-nos, não senhora, até porque não custa nada: é só falar, ou escrever, agitar o punho, chamar “selvagens” a estes, “racistas” e “xenófobos” aos outros, e lá ficamos de consciência tranquila. Deve ser a mesma coisa que sentem os participantes da manifestação do próximo domingo, no fundo: não gostam das empregadas, não as querem cá, mas não podem passar sem elas. No fundo funciona um pouco como um acto de auto-flagelação, um processo em que se expiam os pecados, os seus, e os dos outros, e vão ficar ali a marrar na parede até que alguém repare e diga “Epá, afinal sempre é verdade, vocês estão mesmo MUITO chateados.Maid of salem
Há coisas, como estas e muitas outras, que nunca vamos entender, pois não são para serem entendidas por nós. É a “cosadeles”, que é como a “cosanostra”, mas só que “é deles”. Aqui em Macau, onde não existe um “SOS racismo” e afins (e ainda bem, livra!), convivem no mesmo espaço vários nacionalidades e etnias, as coisas são estruturadas desta forma, há os que são de cá, e os que vêm de fora, e isto percebe-se a olho nu. Um filipino que tenha nascido em Macau, filho de pais filipinos, mas que tenha estatuto de residente, e como tal os mesmos deveres e direitos da família Chan, Leong ou Wong, não se livra de ouvir um “volta mas é para a tua terra”, na eventualidade de “pisar a cauda” a um outro residente como ele, mas que à vista desarmada não se dá conta desse facto – e nem precisa, para quê? Afinal quantos de nós também já não se deu a dizer cobras e lagartos de um grupo de milhões, apenas porque dois ou três destes nos tramaram numa ou noutra circunstância? Se quiserem um exemplo, basta recordar que 1500 milhões de pessoas em todo o mundo, um quarto da humanidade, professa a religião muçulmana – serão todos eles “gajos de quem só queremos distância”?
Não concordo que os chineses em geral sejam racistas, ou que alguma vez tenham sido. São etnocêntricos, isso sim, e para eles existe a China e os chineses, e depois o resto do mundo, que é habitado pelos “estrangeiros”. Mesmo que alguém tenha nascido na China, mas com outra ancestralidade, aos olhos dos chineses nunca será um deles, e o mesmo se aplica aos mestiços, ou alguém que não tenha uma linhagem familiar completamente chinesa. Contudo não os vejo deixar de interagir com os tais “estrangeiros”, e como censurar? Eles são assim, tal como os seus pais já eram, e os pais destes, e não sabem ser outra. É muito despeito, na minha humilde opinião, querer aplicar as valências adquiridas pela nossa culturização a quem nasceu, cresceu e vive num mundo completamente à parte do nosso, e onde o valor da vida humana tem outra cotação. Achamos graça aos aspectos mais exóticos desta cultura, mas não percebemos nem queremos aceitar o reverso da medalha. E vá-se lá entender porquê…

27 Ago 2015

Da impunidade política na Guiné-Bissau

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] nova crise política na Guiné-Bissau faz levantar dúvidas, uma vez mais, sobre a adequação do quadro jurídico-constitucional em vigor no país com a realidade sócio-política guineense. Esta é uma questão que tem sido levantada em tempos de confrontação política ou na sequência de mais um golpe de Estado. Desta vez, a crise colocou o Presidente da República eleito pelo PAIGC, José Mário Vaz, contra o líder do PAIGC e primeiro-ministro demitido, Domingos Simões Pereira, e a nomeação de um governo de iniciativa presidencial, chefiado por Baciro Djá, ex-ministro da Presidência do Conselho de Ministros que se incompatibilizou com o antigo secretário-executivo da CPLP. Tudo por alegada corrupção e incompetência do executivo.
As crises político-securitárias têm-se repetido na Guiné-Bissau como em poucos outros países da África Ocidental. A história regista o facto de que, desde as primeiras eleições multipartidárias em 1994, não houve nenhuma legislatura que chegasse ao fim nem um Presidente da República que completasse o seu mandato. As razões para que isso tenha acontecido e continue a acontecer, 31 anos depois do primeiro acto eleitoral e 42 anos após a independência, são várias e têm sido apontadas nos últimos anos pelos mais diversos comentadores. As consequências directas são os golpes de Estado e os assassínios, mas o analfabetismo, o tribalismo, a incapacidade de diálogo entre os vários protagonistas políticos são alguns dos problemas que os diversos analistas têm identificado como causas estruturantes da instabilidade permanente que tem marcado a Guiné-Bissau pós-colonial.
Uma das principais questões que enquadram o problema da recorrente instabilidade da Guiné-Bissau foi salientada pelo ex-representante especial do Secretário-Geral das Nações Unidas no país, José Ramos-Horta, quando há dias, nas páginas do Público, apontou o dedo a um dos mais recentes legados lusos, a influência jurídico-constitucional: “A crise resulta de uma Constituição que foi cozinhada em Portugal, sem qualquer consideração à realidade social da Guiné-Bissau, mas encomendada e absorvida na Guiné-Bissau, logo a seguir ao derrube do Presidente Amílcar Cabral. A partir desse primeiro golpe nunca mais conheceu paz.”
Antevendo as dificuldades que poderiam existir entre o poder presidencial e o executivo, Ramos-Horta, diz o próprio, procurou deixar um conselho ao Presidente Vaz, quando deixou a chefia da missão da ONU na Guiné-Bissau: “Esse modelo Constitucional não desculpa tudo. A crise tem a sua génese no Palácio Presidencial, num Presidente que, mau grado as prerrogativas ou limitações dos seus poderes, devia acima de tudo ser o mediador, homem de diálogo, fazedor de consensos. Foi o que aconselhei o Sr. Presidente José Mário Vaz a ser: o homem do diálogo, o apaziguador. Obviamente ele não ouviu. Ou ouviu mas sucumbiu a tentação e resvalou pelo mesmo trilho muito perigoso por onde passou outros Presidentes de triste memória.”[quote_box_right]O reconhecimento da diferença e das especificidades sócio-culturais de países como a Guiné-Bissau deve ser o primeiro passo para se encontrar uma estrutura jurídico-política que permita a estabilidade, elemento essencial do desenvolvimento.[/quote_box_right]
Político experiente, Ramos-Horta sabe do que fala quando refere que o modelo jurídico-constitucional guineense não se adapta à cultura sócio-política do país. Afinal, a Guiné-Bissau, como Timor-Leste mais de duas décadas depois, adoptou um sistema político inspirado no modelo semipresidencialista português. Tanto num caso como no outro, assessores portugueses estiveram por detrás das propostas que haveriam de ser consagradas em lei.
A lógica do Presidente-mediador, apagador de fogos, proponente de compromissos é uma marca do sistema presidencialista. Uma marca que tem estado ausente da Guiné-Bissau de Vaz, como esteve ausente em Timor-Leste, em 2006, quatro anos depois da independência, quando Xanana Gusmão era o Presidente e o país, dividido entre dois grupos étnicos, esteve à beira de uma guerra civil.
A questão constitucional está há muito identificada. Foi um dos problemas elencados, por exemplo, durante as duas dezenas de conferências organizadas pela Assembleia Nacional Popular, com o apoio do então Presidente da República, Malam Bacai Sanhá, “Caminho para a Consolidação da Paz e Desenvolvimento”, que procurou fazer o diagnóstico das principais causas de conflitos na Guiné-Bissau e avançou propostas para a sua resolução. Nesse documento, os que sugeriam a introdução do presidencialismo – o modelo em vigor nos vizinhos continentais da Guiné-Bissau, quer anglófilos quer francófonos – faziam-no “como forma de evitar conflitos de competências entre os titulares dos órgãos de soberania”. A principal fonte de problemas identificada, no entanto, foi outra: uma certa cultura de impunidade, que propiciou assassínios políticos, a descredibilização do Estado, o tráfico de droga.
O reconhecimento da diferença e das especificidades sócio-culturais de países como a Guiné-Bissau deve ser o primeiro passo para se encontrar uma estrutura jurídico-política que permita a estabilidade, elemento essencial do desenvolvimento.Shat in Africa
No que ao impasse constitucional diz respeito, muitos não querem ver o problema. Parte da elite guineense foi formada em Portugal e não quer sequer abrir a porta à discussão, aparentando ser imune às lições da história, que nos mostram que, também no processo de consolidação democrática de Portugal, a tensão entre o poder presidencial e o poder executivo foi motivo de instabilidade.
Outros aproveitam o actual quadro para dar razão aos que proclamam que existe uma espécie de poder à africana que tem alergia ao Estado de Direito e aos direitos das minorias, em que o Presidente usa o seu poder absolutamente numa lógica de total sobreposição da pessoa do Presidente ao Estado, na qual a concepção republicana do Estado está ausente.
Ao optar por isolar Simões Pereira, um político reputado – que congregou o apoio da chamada “comunidade internacional”, de quem recebeu a promessa, há apenas cinco meses, da doação de mil milhões de euros de ajuda ao desenvolvimento – vai no caminho de perpetuar a instabilidade. As pequenas conquistas do último ano, tão celebradas pelos guineenses quer na sua terra quer na diáspora, vão ser todas postas em causa. Afinal, foi só agora, nos últimos meses, que Bissau, pela primeira vez em muitos, muitos anos, passou a ter electricidade 24 horas por dia.
Vaz está no lado errado da história.

27 Ago 2015

A cultura de tolerância zero

[dropcap styte=’circle]A[/dropcap] luta contra a corrupção é o terceiro desafio que os países devem enfrentar. A democracia é uma experiência compartilhada por centenas de milhões de pessoas e não se reduz ao acto de votar, consistindo no debate público que decorre antes e depois das eleições, no qual os cidadãos vão aprendendo uns com os outros. É pelas características desta aprendizagem que reside a diferença fundamental entre democracia e autocracia. Num governo autoritário aqueles que aprendem são uns quantos e que têm acesso aos problemas públicos.
A experiência do poder está interditada à maioria e, quando o sistema se abre subitamente, a população irrompe sem saber do que se trata. Ainda que, um governo autoritário apresente a aparente vantagem de poder tomar decisões mais eficazes a curto prazo, o que nunca conseguirá é preparar a maioria dos cidadãos que pretensamente governa a tomarem um dia as suas próprias decisões. Goodfellas
O sistema democrático, por seu lado, requer maior tempo para realizar as transformações desejadas, mas quando chegam, são sólidas porque resultaram de uma aprendizagem colectiva. Se sob o impulso do consenso público fosse empreendido amanhã o combate contra a corrupção, os frutos seriam duradouros. Se, pelo contrário, um messiânico general tomasse o poder num país, e pendurasse segundo o seu arbitrário critério, uma dúzia de pessoas numa praça, a corrupção continuaria estruturalmente instalada no sistema, com a agravante da falta de controlo.
O longo processo de aprendizagem que é a experiência democrática tem etapas sucessivas e cada uma delas representa um desafio que a comunidade no seu conjunto deve resolver. Existem duas estações nesse percurso que é o de aprender a respeitar as instituições e a recusar o populismo em matéria económica.
A “Cimeira de Brisbane” do G-20, que se realizou a 15 e 16 de Novembro de 2014, na qual os líderes mundiais reafirmaram o compromisso que fizeram em 2010, de fazer face aos efeitos negativos da corrupção sobre o crescimento económico, comércio e desenvolvimento. Estiveram de acordo em tomar medidas sobre o suborno público e a transparência no sector privado, integridade e cooperação internacional na luta contra a corrupção.
A corrupção, no final de 2014, continuava a ser uma importante ameaça ao crescimento global e à estabilidade financeira, destruindo a confiança dos cidadãos, rompendo o estado de direito, distorcendo a concorrência, impedindo os investimentos transfronteiriços e o comércio, e distorcendo a atribuição de recursos.
O G-20, como grupo das maiores economias do mundo, mantém o seu compromisso de reduzir a incidência da corrupção e a construção de uma cultura mundial da intolerância à corrupção. A “Grant Thornton”, multinacional consultora de negócios a nível mundial, representada em cento e trinta países, realizou um estudo sobre o Brasil e a Índia, economias- chave do grupo G-20 que não são alheias às práticas corruptas, no sentido de entender como podem as empresas crescer eticamente num ambiente onde a corrupção é moeda corrente.
A “Percepção da Corrupção” da “Transparency International” revela o índice de 2014 de países sobre o nível de corrupção no sector público, em que a qualificação zero é considerada de altamente corrupto e a de 100 corresponde a muito limpo. O Brasil teve um índice de 43, Rússia 27, Índia 38, China 36 e África do Sul 44.
O índice reflecte a percepção da corrupção e é exacto se for vinculado à facilidade de fazer negócios. O proprietário de uma pequena, média, grande empresa ou de uma multinacional, debate-se com a complexidade para iniciar a actividade na Índia, por exemplo, sendo um verdadeiro desafio, cada fase do processo, pela existência de obstáculos burocráticos, havendo o pedido para a realização de pagamentos ilegais, ou dinheiro a ser oferecido para ocupar uma posição melhor na longa lista de espera de pedidos que aguardam decisão.
O Brasil, nos últimos anos tem vindo a confrontar-se com vários escândalos de corrupção de grandes dimensões, como o “Mensalão”, “Petrolão” e “Operação Lava Jato” que envolvem quer os trabalhadores públicos, como os do sector privado, não tendo o índice de percepção da corrupção no Brasil, no entanto, sofrido alteração.
A discrepância entre a realidade e a percepção deve-se principalmente ao facto dos cidadãos se habituarem a esse tipo de situação e crerem que sempre existiu. O impacto dos casos mediáticos sobretudo, no crescimento económico, dá-se por se criar um custo adicional para a realização de negócios, não existindo a garantia nunca de que um pagamento que configura o crime de corrupção produzirá o resultado desejado, aumentando os custos enormemente, sem qualquer benefício, sendo de extrema gravidade nos grandes contratos governamentais.[quote_box_left]A corrupção, no final de 2014, continuava a ser uma importante ameaça ao crescimento global e à estabilidade financeira, destruindo a confiança dos cidadãos, rompendo o estado de direito, distorcendo a concorrência, impedindo os investimentos transfronteiriços e o comércio, e distorcendo a atribuição de recursos[/quote_box_left]
Os custos não são legítimos por força da legislação do local, conduzindo a uma economia paralela de pagamentos na sombra. Um estudo recente da OCDE mostra que o PIB da Índia aumentaria significativamente, se todos esses pagamentos ilícitos fossem carreados para a economia real.
O Brasil vive o momento mais oportuno da sua história para debater sobre o cancro da corrupção. O país está no meio da investigação do maior escândalo de corrupção de que há memória e que envolve a Petrobras, a empresa estatal de petróleo e várias outras empresas. A investigação pode levar à falência de muitas empresas e travar grandes projectos de infra-estrutura, o que implicaria o despedimento de milhares de trabalhadores.
O escândalo causa prejuízo significativo à reputação da economia brasileira e aumenta o risco da realização de negócios no país, bem como afecta as empresas que tentam entrar no mercado pela primeira vez, ou que conquistaram um segmento de mercado e tentam alargar.
As empresas brasileiras que não têm nenhuma operação no estrangeiro é muito possível que considerem esta situação como um custo normal da realização de negócios. As empresas indianas que realizam operações no estrangeiro, em geral, nos Estados Unidos e na Europa, estão sujeitos às estritas normas desses países, tal como as multinacionais estrangeiras que investem na Índia.
As empresas não se podem dar ao luxo de serem condescendentes porque teriam de se expor a uma possível prática de infracções graves e serem punidas com sanções de milhares de milhões de dólares, pena de prisão e inclusive perder os clientes. As empresas não só poderiam perder os contratos com o governo, no qual não estão interessadas, porque os riscos são maiores que os benefícios. O novo governo da Índia chegou ao poder em 2014, e a percepção sobre a realidade levou-o a tomar medidas para travar a corrupção transnacional e institucional, mas tem um longo caminho por percorrer.
A Índia é um país muito descentralizado pelos seus trinta estados e cada um tem um peso significativo, e nem sempre estão em sintonia com o que ocorre no centro, mas o governo central enviou a mensagem clara de concentração no crescimento e governança, e implementação de e-governo, em particular, o que significa que não tem de interagir com os trabalhadores públicos, onde a incidência da corrupção é mais alta.
O governo brasileiro aprovou a legislação contra o branqueamento de capitais, no inicio de 2014, tendo as acusações quadruplicado. O acordo social na luta contra a corrupção está a crescer, mas existe um longo caminho por transitar, sobretudo devido à aceitação da cultura da corrupção, o que torna a situação mais difícil de mudar.
A introdução de legislação contra a corrupção pela primeira vez na história brasileira, faz que as empresas tenham medo, acrescido do facto de personalidades proeminentes terem sido detidas, pelo que o Brasil se encontra numa situação melhor no combate à corrupção. A comunidade empresarial tem um papel importante e pode exigir maior transparência nos negócios de Estado.
As empresas devem adoptar em todo o mundo a regra do acordo de integridade que a “Transparency International” criou há muitos anos. Se uma empresa estiver em fase de negociação pré-contratual com um Serviço do governo ou uma empresa estatal, as duas partes devem assinar um acordo de integridade e comprometerem-se a não incorrer em práticas corruptas durante a vida do contrato, devendo concordar na inclusão de um monitor independente que assegure o cumprimento das cláusulas do acordo de integridade.
As empresas no Brasil, por exemplo, estão obrigados a investir mais nas mudanças no suporte lógico para se adaptarem aos requisitos do sistema de informação do Serviço de Impostos Internos, que vigiarão as conversas entre clientes, fornecedores e autoridades tributárias. Existe uma melhoria na formação dos funcionários públicos brasileiros na luta contra a corrupção e cumprimento da lei.
A comunidade empresarial internacional está a fazer um esforço para terem boas práticas no que respeita à luta contra a corrupção. Se os dirigentes empresariais não forem obrigados a fazer face a práticas de corrupção as perspectivas de crescimento dos negócios serão maiores e os riscos menores.

26 Ago 2015

Ao léu

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] finais de Agosto fica a saudade de um Verão de aroma costeiro-rural ou a frustração de quem não pôde ficar de papo para o ar. Sofrendo de uma ou de outra, neste hemisfério norte é impossível não ficar indiferente à quantidade de pele em exposição, seja na praia ou no calor urbano, as indumentárias são as que favorecem o pessoal. Ainda para mais Verão rima com tesão. Há qualquer coisa no ar, nas peles bronzeadas que já passaram pelos pólens da primavera, manchas de sal e o cheiro a protector solar que suscita toda uma outra percepção do corpo e eventualmente, do sexo.

Há uma liberdade hippie que se apodera dos mamilos mais tímidos e das pernas de todos os feitios. O entendimento do corpo nu, que é tendencialmente sexual, da exposição e do voyeurismo se alimenta nesta estação tão sexy. Contudo, estes nichos de libertação corporal são raramente a norma, porque da exposição à afronta não vai muito. Disto sabem as mulheres que viajam um pouquinho (ou muito). O corpo da mulher, de beleza mais do que reconhecida, transporta a política que a pele à mostra exige, até às formas que as sustêm. Ninguém fica indiferente às ditaduras do corpo e às culturas (paranóias) individuais e colectivas de ideais inatingíveis. Que seja um rabo gigantesco ou umas pernas palito, pele moreníssima ou de brancura leitosa, mamas grandes ou para quem prefira pequenas. A diversidade que deveria ser tomada como um parque de diversões – a descoberta do corpo novo! – tem o peso e a preocupação das normas de beleza em vigor. Experimentem passar uns três minutos (mais do que isso é tortura) a olhar para as capas de revistas ditas ‘femininas’ que tentam auxiliar as mulheres por esse mundo fora na sua prática de identidade de género. Do ridículo ao castrador se sentem as sugestões que perpetuam pura estupidez que muita revolta provoca. ‘O que os homens gostam’. Puff.

Com os homens, as inseguranças são outras. Queria encontrar paranóias anedóticas das inseguranças do corpo, mas com pouco sucesso. Parece que a preocupação se deita na performance sexual e no medo de ficar nu só com meias. Não acho absolutamente terrível tal imagem mental, mas para os que se preocupam: é tirar as meias assim que se tirar as calças. Garantias de não ficar preso no ‘sock gap’. Mas no Verão talvez não seja tão problemático, talvez usem chinelos e sandálias mais regularmente.

Sabemos também que os homens são percebidos como mais visuais que as mulheres, ou seja, dependem mais do estímulo visual para pô-lo para cima e as mulheres menos, para ficarem molhadas. A evolução explica o fenómeno pela necessidade das mulheres copularem, não com genes bonitos, mas com os indivíduos mais capazes de assegurar a protecção no complicado processo que é criar filhos (no tempo em que o sexo era só para isso). Os homens, por seu lado, na futilidade evolutiva, procuram meninas de carga genética invejável, para ter a certeza que a linhagem continua. Se hoje isto faz sentido, deixo ao vosso critério. Mas que não é fácil viver com o fantasma da futilidade e superficialidade quando se quer ter uma relação sexual saudável, não é.

A praia para estes lados ocidentais, de uma forma terapêutica, corta com qualquer pudor que os corpos que menos se assemelham a cartazes publicitários possam ter. Há um orgulho especial entre homens e mulheres de todas as idades, na celulite, no peito mais ou menos caído, numas barrigas mais ou menos cheias de cerveja. De uma beleza natural, de um desenvolvimento natural, torna-se num alívio saber que HÁ diferenças, lindas de morrer. Todo o orgulho transportado neste veículo potenciador de orgasmos influencia toda a e qualquer actividade sexual. Porque o sexo precisa de uma entrega total, da sensualidade feminina ao vigor masculino, pela sua dinâmica e comunicação. Nesta minha reflexão semanal, onde todos e todas exibiam tudo o que de melhor tinham, pensei no sexo, no seu corpo, e nas suas limitações físicas, mas que de pouca realidade são encaradas. Pensa-se no pénis e no clitóris – sim, partes extremamente importantes – mas que se possa estender para todo e qualquer pormenor do corpo, com mais ou menos interesse. Pés, pulsos, joelhos, cocuruto, de homens e mulheres. Pensem nos vossos corpos como templos eternos de prazer onde esse órgão enorme, a pele, se aproveita de toda e qualquer carícia que haja para oferecer. Sim, os homens têm um tecido adiposo mais grosso e talvez não se arrepiem tanto como as mulheres o fazem. Mas também gostam de festinhas. Festinhas, lambidelas, apalpões. Com os nervos da performance do casal igualmente, pessoas atacam única e exclusivamente as zonas erógenas nesse momento tão crucial pré-coito – os preliminares. Não totalmente errado, mas aborrecido. Aproveitem o calor e desfrutem (quiçá com umas rapidinhas ou lentinhas ao ar livre). Mais preliminares em breve.

25 Ago 2015

Hackers contra Ashley

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]ecentemente, ou mais exactamente no dia 20 de Agosto, o periódico “South China Morning Post” de Hong Kong publicou uma peça relativa ao website “Ashley Madison”, propriedade da companhia “Avid Life Media”. De acordo com a “wikipedia”, este site tornou-se famoso pois “Ashley Madison, apesar de sedeado no Canadá, fornece um serviço online de procura de parceiros sexuais em todo o mundo, assim como a possibilidade de promoção individual através desta rede social, mas destinado a pessoas que estão ou casadas ou que se encontram envolvidas numa relação séria. O slogan utilizado pela empresa chega mesmo a recomendar ‘A vida é curta, desfrute de uma infidelidade’.
Até Julho de 2015, o site registava mais de 37 milhões de utilizadores, apesar de na Ásia, só se encontrar disponível para residentes de Hong Kong, Israel, Japão, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul e Índia.
Além disso, a “wikipedia” acrescenta ainda que “no dia 15 de Julho de 2015, o site foi atacado por uma equipa de hackers, ou piratas cibernéticos, que se auto-denomina ‘The Impact Team’. Estes indivíduos afirmaram ter roubado a informação pessoal dos utilizadores deste site, e ameaçaram divulgar esta informação, onde se pode encontrar o nome verdadeiro dos utilizadores, caso o site não fosse imediatamente encerrado. Devido à política do site de não apagar a informação pessoal dos utilizadores, incluindo o nome verdadeiro, moradas, detalhes bancários e historial de busca, muitos dos utilizadores recearam vir a ser humilhados em público. No dia 22 de Julho, e conforme havia sido anunciado, os primeiros nomes de utilizadores foram divulgado, ficando prometido divulgar o resto da informação no dia 18 de Agosto.”American Beauty
O que fica por esclarecer é, o que levou este grupo a atacar o site “Ashley Madison”? A resposta pode talvez ser obtida através da análise de posts colocados em “menclub.hk”, que se julgam ser da autoria do mesmo colectivo. Aqui podia-se ler “a Avid Life Media (ALM) não cumpriu a promessa de encerrar tanto o Ashley Madison como o ‘Established Men’ (outro site do género que se especializa em ajudar jovens mulheres a encontrar homens já estabelecidos na vida). Já explicamos o fraude, a mentira e a estupidez da ALM e de todos os seus membros. Agora todos vão poder saber quem estes são na realidade.”
Será possível que algum dos vossos contactos íntimos esteja incluído neste grupo? Não nos podemos esquecer que este site é fraudulento, pois milhares dos seus perfis de mulheres são fictícios. De acordo com processos legais contra si erguidos, podemos concluir que de 90% a 95% dos seus utilizadores são do sexo masculino. O mais provável é que quem tiver se inscrito neste site julgava tratar-se da maior base de dados a nível mundial destinada a facilitar o adultério, porém tal situação não deve sequer ter sido alguma vez realidade.
Os comentários dos hackers acrescentavam ainda “você está aqui inscrito? Foi a ALM que vos deixou mal e que vos enganou. Levem-nos a tribunal e peçam uma compensação financeira. Depois sigam com as vossas vidas. Que esta experiência vos sirva de lição. Agora podem se sentir envergonhados, mas hão de superar este obstáculo.”
Devido à recusa em encerrar o “Ashley Madison”, um total de 9.7 GB de dados pessoais de clientes foram tornados públicos. Só de Hong Kong registaram-se no site 10 mil clientes individuais, tendo alguns destes fornecido o seu email profissional para contacto. E, através destes endereços electrónicos, podemos depreender que muitos trabalham na função pública e no departamento de educação, encontrando-se inclusive entre estes um repórter de uma das maiores cadeias televisivas do território.
Este ataque informático originou muitos comentários por parte dos cibernautas locais, tendo muitos deles optado por gozar com a situação. Um dizia, por exemplo, “que o caso Ashley Madison é uma excelente forma de me relembrar para usar o nome do meu sogro sempre que me inscrevo num site através da internet”. Outro notava que “hoje, os advogados de divórcio, os floristas e os proprietários de joalharias devem ter ganho a lotaria”, visto serem estas as opções normalmente disponíveis para aqueles que são acusados de adultério. Ou “se receberem flores hoje mas esta data não coincidir nem com a sua data de nascimento nem com a data em que conheceram o seu amante, é melhor telefonarem para os vossos advogados”. E, se uns admitiam a impossibilidade de traírem as suas mulheres com “eu não preciso do site da Ashley Madison, pois já disponho do Netflix” (um site de filmes), outros afirmavam talvez já ter ouvido falar do site, “este Ashley Madison é um sítio para descobrir nomes de bebés, certo? No mínimo, era isso que a minha mulher dizia quando estava grávida com a minha filha Tinder” (outro site para conhecer pessoas) ou “temos que contratar os tipos da Ashley Madison para nos ajudar a encontrar ISIS”.
Mas não vamos nos deixar levar apenas pelo cómico da situação, pois o caso “Ashley Madison” merece algumas sérias considerações.[quote_box_left]Esperamos no mínimo que o caso “Ashley Madison” nos ajude a compreender que, caso alguém seja apanhado a trair o seu marido ou mulher, a sua vida será certamente prejudicada e não enriquecida, como promovia o site com o seu já famoso slogan[/quote_box_left]
Primeiro, não nos podemos esquecer que o “Ashley Madison” serve de plataforma para que pessoas casadas possam trair os seus conjugues. Como os conceitos de lei e de moralidade variam de região para região, o negócio deste site pode porventura estar a quebrar a lei em alguns destes locais, ou no mínimo a lei moral. Em Hong Kong, por exemplo, o Governo concedeu uma licença de operação ao “Ashley Madison” em 2013, mas em Singapura, a Media Development Authority anunciou em 2014 não autorizar este serviço na cidade-estado, tendo em conta que o mesmo promovia o adultério e ia contra os valores familiares tradicionais.
As consequências de quebrar a lei são diferentes daquelas a que estão sujeitas os que quebram os ideais morais. Aqueles que quebrarem a lei estão sujeitos a sentenças obrigatórias como penalidade, podendo mesmo vir a enfrentar tempo de prisão, mas a violação dos ideais morais acarreta apenas a crítica da população, podendo nestes casos os arguidos ser obrigados a contrair o divórcio, por exemplo.
Em segundo lugar, os responsáveis por este ataque cibernético violaram com certeza a lei criminal ou no mínimo as leis que regem o ciberespaço, pois acederam aos dados pessoais dos utilizadores. Ao mesmo tempo, violaram o direito à privacidade destes utilizadores, pois os seus dados pessoais foram feitos acessíveis a toda a população. Mas podemos sempre defender que estes hackers pretendiam combater este apelo à infidelidade como forma de evitar o divórcio de muitos casais e assim manter essas famílias intactas, certo? Nesse caso, será que tinham razão ao decidir atacar este site?
Em terceiro lugar, como os hackers tornaram público o número imenso de perfis de mulheres que eram fictícios, será que estes devem ser acusados de ter quebrado a lei ou então aplaudidos por defender os interesses do consumidor?
Tendo em conta todas estas considerações, o que acham então os nossos leitores? Este ataque foi benéfico para a sociedade ou, pelo contrário, foi meramente um acto de vandalismo que deve ser punido de acordo com a lei?
Esperamos no mínimo que o caso “Ashley Madison” nos ajude a compreender que, caso alguém seja apanhado a trair o seu marido ou mulher, a sua vida será certamente prejudicada e não enriquecida, como promovia o site com o seu já famoso slogan.

24 Ago 2015

ISIS e a falência do modelo das liberdades e prosperidade

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]final, o que é o Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS, na sigla inglesa)? Como é que se explica que, em pleno Século XXI, uma organização terrorista que se transformou numa entidade política que administra um território com acesso a recursos estratégicos como o petróleo, recorra a práticas tão violentas como a decapitação? Que apelo é que tem esta entidade que leva alguns milhares de pessoas a deixarem a sua vida pequeno-burguesa nos subúrbios de Paris e de Londres, para ir combater ao lado dos insurgentes? Dito de outra forma, em que estado se encontra a sociedade “ocidental” para que alguns de nós deixem tudo para trás – família, irmãos, pais, nalguns casos, mulheres e maridos – para se juntarem a um grupo de criminosos?
Antes de analisar as condições que permitiram o florescimento do Estado Islâmico, duas notas sobre a forma como a chamada “comunidade internacional” tem lidado com esta ameaça. O ISIS continua a controlar um vasto território entre a Síria e o Iraque devido, em parte, à incapacidade dos serviços de informação em avaliarem com rigor a ameaça que poderia constituir para as potências mundiais um movimento que se construiu no terror, na brutalidade exibicionista, sobretudo em relação às mulheres e a minorias étnicas e religiosas, e que procura na internacionalização a sua principal fonte de crescimento. ULI EDEL, The Baader
As posições públicas do presidente norte-americano sobre o ISIS são um bom exemplo de como os principais líderes ocidentais não conseguiram identificar atempadamente o que se estava a passar no Médio Oriente, nem o “caldo de cultura” que permitiria à organização crescer. No mesmo mês em que o ISIS conquistou a cidade de Faluja, no Iraque, em Janeiro do ano passado, Obama minimizou o movimento comparando-o a uma equipa de basquetebol júnior do campeonato universitário norte-americano. Após ter afirmado que a melhor estratégia para combater organizações terroristas não seria a invasão de países terceiros e de ter autorizado a formação de movimentos rebeldes moderados na Síria, Obama acabou, mais tarde, por dar luz verde a ataques aéreos a alvos estratégicos do ISIS. Pelo meio, quatro americanos foram mortos pelo Estado Islâmico.
Enquanto a administração norte-americana ziguezagueava sobre a resposta a dar, o ISIS foi consolidando posições e tornou-se numa plataforma de acolhimento de ocidentais, em parte devido a uma poderosa máquina propagandística que divulga eficazmente na internet os seus apelos e ideias.
O investigador indiano Pankaj Mishra, autor, entre outros, do livro “From the Ruins of Empire: The Revolt Against the West and the Remaking of Asia” (2013), vê na capacidade do Estado Islâmico em atrair ocidentais uma nova expressão da falência do modelo ocidental de organização político-económica. Nas páginas do britânico The Guardian, Mishra escreveu recentemente um ensaio em que detalha que o ISIS explora para a sua vantagem o facto de muitos de nós vermos o mundo a preto e branco. Um aproveitamento que muitos fizeram no passado e muitos outros fazem no presente: basta ver e ouvir políticos em campanha eleitoral. Um mundo de uma aflitiva pobreza narrativa, que se resume a nós e eles. A nós contra eles.
Esse mundo mostra que a perspectiva da prosperidade e da liberdade para todos – uma ambição das democracias liberais ocidentais, construção que os Estados Unidos da América e a Europa ousaram exportar para a Ásia e África, assente num conjunto de liberdades e numa organização económica capitalista – não passa de uma promessa inalcançável. De certa forma, é a própria construção europeia que está afectada. Afinal, a União tem sido construída na premissa da paz e da prosperidade. O que é facto é que as diferenças socioeconómicas são profundas, não apenas entre os diversos Estados, mas sobretudo no interior dos Estados. E a integração das minorias não tem sido totalmente eficaz.[quote_box_right]A promessa de paz e prosperidade associada às democracias liberais parece já não convencer todos. A prosperidade tem tido os seus revezes. E a disparidade de rendimentos e das condições sociais não tem diminuído, sobretudo após anos de crise económico-financeira[/quote_box_right]
Cada vez mais pessoas sentem que existe uma enorme diferença entre as promessas de liberdade e prosperidade e a incapacidade das estruturas político-administrativas, de que fazem parte, em as concretizar. Como se um certo modelo se tivesse esgotado.
A promessa de paz e prosperidade associada às democracias liberais parece já não convencer todos. A prosperidade tem tido os seus revezes. E a disparidade de rendimentos e das condições sociais não tem diminuído, sobretudo após anos de crise económico-financeira. O que leva muitos de nós a pensarem “O que faço eu aqui?”, e a terem dúvidas sobre a capacidade de subirem a escada social.
Este é, em traços muito gerais, o universo de recrutamento do Estado Islâmico. A sua capacidade de recrutamento é considerável no mundo árabe, naturalmente. Segundo as estimativas conhecidas, no seu todo, 17 mil pessoas – sobretudo jovens –, oriundas de 90 países, terão viajado para a Síria e Iraque para combater. Da Tunísia, onde a Primavera Árabe começou (e que ambicionava a construção de um novo Estado, mais igualitário, mais justo, mais tolerante), terá partido o maior contingente. Um recente inquérito online do canal árabe da Al-Jazeera recolheu 81 por cento de votos favoráveis sobre a relevância da acção do Estado Islâmico.
Essa capacidade de recrutamento é menor no mundo ocidental, mas segundo alguns cálculos, 3400 pessoas deixaram as liberdades e a prosperidade do Ocidente para se voluntariarem no Estado Islâmico. Embora estes números indiciem uma certa crise de um modelo incapaz de enquadrar e motivar todos, há um quadro de valores morais que subsiste e que ainda é a referência para a grande maioria. Até quando persistirá?

24 Ago 2015

Para um conceito de “internacional”

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m navegação inconsequente no Facebook deparei-me com o seguinte artigo, que mereceu milhares de likes e resmas de comentários: “Benefits of Being Bilingual”.
E a minha primeira reacção foi: mas, o quê, então ainda existem pessoas que não falam mais do que uma língua?..
Não me entenda mal, caríssimo leitor, não se trata de arrogância da minha parte. É claro que essas pessoas ainda existem, sobretudo as que pertencem a uma geração mais antiga. E não há nada de errado aqui, pese embora a minha avó ter 90 anos e ser bilingue.
O que me levou a ter aquela reacção foi o facto de (1) o artigo ser escrito por uma jovem universitária, (2) o visível e assumido entusiasmo e show-off pelo facto de ser bilingue, como se fosse algo do outro mundo, e (3) a autora do artigo ser norte-americana.
Uma das experiências mais ricas da minha vida foi o meu 4º ano da faculdade que foi em Nápoles, em conjunto com cinco colegas do Porto, ao abrigo de uma bolsa do programa Erasmus da União Europeia.
Foi um ano de (alguma) absorção académica e (muito) convívio com colegas universitários dos vários cantos da Europa. E, naturalmente, também com colegas locais, já que a nossa língua veicular era o italiano. Muitas são as histórias desses tempos que, infelizmente, não podem ser aqui contadas.
Não obstante, o que merece a pena ser aqui contado é que nós, portugueses em Nápoles, ganhámos rapidamente a fama de ser os que mais línguas estrangeiras falavam. E junto de toda a gente: na faculdade, junto dos professores e dos alunos; na noite, junto da comunidade dos bolseiros Erasmus onde se contavam espanhóis, alemães, austríacos e gregos, entre outros.
Por incrível que possa parecer, na faculdade os professores e alunos com quem tivemos contacto dominavam apenas uma língua: o italiano. Pelo que, quando vieram a saber que nós, portugueses, falávamos também inglês e algum francês – tendo-lhes até explicado que em Portugal era normalíssimo, já que no nosso sistema de ensino são duas as línguas estrangeiras – ficaram pasmados pois, em conjunto com o italiano, isto fazia de nós trilingues (e quadrilingue no meu caso, com o chinês).
Mas será que isso acontece pelo facto de nós, portugueses, termos mais inclinação para línguas? Não. Fundamentalmente, existem aqui, para mim, dois factores que devem ser analisados.
Em primeiro lugar, há que perceber que Portugal é um país pequeno, com uma população de 10 milhões de habitantes. O nosso mercado doméstico tem pouco peso, pelo que em muitos aspectos consumimos e dependemos do que vem de fora.
Na faculdade, por exemplo, habituei-me a estudar com livros em francês, espanhol ou inglês, pois era vulgar não existir versão em português das obras dos grandes mestres. Aliás, que me lembre, os poucos livros em português que tive na faculdade eram na verdade traduções de português do Brasil. Este sim, um país com um grande mercado.
Em segundo lugar, talvez pelo facto de sermos originários de um pequeno país, somos humildes e temos um comportamento que se calhar os outros povos nem sempre têm: raramente adoptamos a atitude do “és tu que tens de me compreender”, pois funcionamos ao contrário, “sou eu que tenho de te compreender”.
Ora, que língua fala o português quando está em Espanha? Fala portunhol, certo? E o espanhol em Portugal, tem a mesma atitude? Não, não tem.
Pelo que, em Nápoles, éramos seis portugueses em Itália e procurámos falar italiano desde o início e sem complexos. Muito improvisámos no começo, tipo portunhol, já que nenhum de nós tinha tido aulas de italiano, ao contrário dos alemães ou espanhóis, enfim, mais bem preparados e organizados que nós.
Mas isso nunca nos impediu de avançarmos sem medos, não fossemos nós, portugueses, os campeões no campo da improvisação. Estou-me a lembrar de um amigo meu que disse uma vez “quarta-fieri” no lugar de “mercoledí”. Foi uma risota total.
Há também a história de andarmos na faculdade à procura do “gabineti di relazioni internazionali” e, seguindo as informações de um funcionário que nos indicou o caminho, fomos parar a umas casas de banho. Ora, em italiano correcto o que procurávamos era o “ufizzio dei rapporti internazionali”. Pois “gabinetto” em italiano significa casa de banho…
Demos as nossas cabeçadas, é verdade. Mas em pouco tempo tornámo-nos verdadeiramente fluentes em italiano e perfeitamente integrados no meio.
Não sei se o Mourinho passou pelo mesmo. O que sei é que duas semanas após a sua chegada a Itália como treinador do Inter, surpreendeu tudo e todos quando se expressou fluentemente em italiano na sua primeira conferência de imprensa.
Em contrapartida, Fabio Capello, na qualidade de treinador da selecção nacional inglesa de futebol, sempre se demonstrou incapaz de se expressar em inglês nas conferências de imprensa, explicando caricatamente aos jornalistas ingleses as suas opções e tácticas futebolísticas em italiano, dando origem a um cenário hilariante no mínimo.
Coitadinho. Há que compreender que, em Itália, tudo funciona em italiano.
Um dia, os meus amigos italianos convidaram-me a ir ao cinema para assistir a um filme chamado “Il Miglio Verde”. Pensava que se tratava de uma produção local. Qual quê. Era na verdade o “The Green Mile”, um filme americano.
E foi tudo dobrado: pela primeira vez na minha vida vi Tom Hanks a falar italiano. Incrível. Posteriormente, foi-me explicado que em Itália a dobragem é em si uma arte reconhecida e a voz em italiano de determinada estrela de Hollywood é sempre interpretada pelo mesmo artista. E esse artista é, em seu pleno direito, uma estrela em Itália – porque é a voz “oficial” daquela estrela de Hollywood.
Ou seja, se fosse assistir ao “Foresta Gump”, iria ouvir a mesma voz em italiano da boca do Tom Hanks. Surreal, não?
A verdade é que é assim em muitas partes do mundo. Ouvi histórias semelhantes dos meus amigos espanhóis. Aliás, todos nós já ouvimos falar do “Juanito Andante” nos bares espanhóis e dos grupos musicais “Las Pedras Rolantes” ou “Las Chicas Piri-piri”, certo? (*)
No entanto, como nós, portugueses, temos a sorte de vir de um pequeno país com pouca importância no palco internacional, e dada também a humildade acima explicada, habituámo-nos a não poder contar com a nossa língua para muita coisa. Pelo que falamos também as línguas dos outros. (**)
Porque muitos desses outros estão habituados a ter um comportamento diferente que se define por uma certa arrogância na imposição da sua língua como critério universal a seguir. Tornam-se então extremamente redutores e, em particular, no que concerne aos ilustres de língua materna inglesa, tendem a camuflar a coisa toda com um conceito de “internacional” globalmente estabelecido o qual, para mim e até certo ponto, não passa de uma grande treta.
Não há dúvidas de que o inglês é a língua comum mais vulgar quando indivíduos de línguas maternas diferentes têm de interagir entre si. Contudo, estou farto de pessoas que me vêm dizer que no passado recente Macau se transformou numa cidade “internacional”. E depois há também as escolas “internacionais”.
Ora, esse conceito de “internacional”, quer me parecer, prende-se unicamente com o uso da língua inglesa e nada mais. Por essa razão, para esses ilustres monoglotas, Hong Kong e Singapura são cidades “internacionais”.
Assim, para provocar, vou até ignorar o facto de Hong Kong e Singapura serem praças financeiras internacionais e deixar aqui escrito que muitos consideram essas cidades “internacionais” pelo simples e superficial facto de o inglês ser uma língua comum nesses territórios, do domínio de todos. Pelo que, o gwailou que não fala outra língua senão o inglês, integra-se bem nessas cidades que, por conseguinte, são por ele classificadas como “internacionais”.
Em contrapartida, como em Macau nem todos falam inglês – e mais, alguns nativos até falam uma língua estranha que se chama português e que ninguém consegue mesmo entender para que serve – essa cidade já não é “internacional”.
Talvez daí, por isso, todo o fogo-de-artifício da autora do “Benefits of Being Bilingual”. Pois no universo fechado e simultaneamente “internacional” da autora, falar mais do que uma língua é algo de transcendental e motivo de celebração flamejante no Facebook.
Caríssimo leitor, seja justo e diga-me aqui, entre nós, em português e com sinceridade: afinal, no meio disto tudo, quem é que é o verdadeiro “internacional”?
Vou lançar um foguete.

Sorrindo Sempre

Em tempos dediquei um artigo às caricatas e absurdas situações que tenho de enfrentar pelo facto de o meu nome não bater certo com a minha cara.
A saga continua, mas agora trata-se do meu filho que, com apenas 4 anos, já atura o que o papá atura.
Interacção entre um funcionário de um hotel na cidade “internacional” de Hong Kong, o meu filho e eu:

– Hello little boy! What’s your name?
– Diogo.
– Diego?
– No! Diogo!
– Should be Diego, right?
– Well, Diego is Spanish and Diogo is Portuguese.
(devolvi simpaticamente)
– Oh, I see… And what made you give him a Portuguese name?
(com ar de engraçadinho e sorriso cínico)
– Because we are fu**ing portuguese.
(dito em segredo, a 32 cm do ilustre e com os olhos nos olhos)

Sorrindo sempre.

(*) The Rolling Stones e Spice Girls.
(**) No entanto, o português em Macau não fala chinês. Por motivos particulares que vou deixar para outro artigo.

21 Ago 2015

As meninas más vêm de fora

[dropcap= ‘circle’]E[/dropcap]u gostava de ter uma revista, daquelas que as pessoas lêem e guardam até deixarem de ter espaço em casa. Também gostava de ter um jornal. Uma revista e um jornal. E uma rádio, que sem rádio não vivo. Gostava de ter estas coisas que são o meio em que trabalho porque gosto de projectos, de ver os projectos a assumirem contornos, a ganharem conteúdo, a tornarem-se mais do que projectos.
Mas eu não tenho nem uma revista, nem um jornal, nem uma rádio. Acontece assim. O patronato não é para todos, é só mesmo para alguns, e estas coisas dos projectos têm muito que se lhe diga, a começar pelo capital. Os jornais e as revistas precisam de gente que os faça, as pessoas que fazem os jornais e as revistas precisam de salário para viver, e isto de ser empresário não é para todos. Apesar de, em Macau, os requisitos serem outros. As regras do jogo aqui são diferentes.
Acho imensa piada ao discurso de quem, tendo um negócio aberto, luta contra os direitos mais básicos dos trabalhadores por causa do impacto que essas pequenas regalias terão na folha de Excel no final do ano. Têm a tenda aberta, mas são contra uma licença de maternidade digna desse nome e opõe-se à criação de uma licença de paternidade. Fazem um chinfrim de cada vez que se fala na revisão da lei das relações de trabalho – pior, mandam os seus na Assembleia Legislativa dizer em voz alta que é preciso mudar a legislação, para que o patronato seja verdadeiramente protegido.
Não que as preocupações do patronato me passem ao lado, apesar da minha falta de vocação para mandar: é inegável que as empresas de pequena e média dimensões têm sofrido com os aumentos das rendas, com o aumento dos custos, com o aumento de quase tudo o que faz mal ao bolso de quem tem a porta aberta. Quem anda à chuva corre sempre o risco de se molhar. Tenho uma notícia: a vida também ficou mais cara para quem trabalha por conta de outrem. E tenho ainda outra notícia: há quem queira muito ter o seu negócio e não o possa fazer. Eu não tenho a minha revista. Nem o meu jornal. Nem a minha rádio. Escrevo e falo nos dos outros. É uma chatice? Não. É a vida.
Em Macau existe uma certa mania da perseguição aos trabalhadores, vinda de alguns sectores que não consigo classificar – até porque existe, cada vez mais, uma certa promiscuidade social a alguns níveis. Esta mania da perseguição aplica-se aos trabalhadores locais, em questões como aquelas que já aqui escrevi, e também – ou sobretudo – aos trabalhadores que chegam de fora.
Esta semana, os jornais contaram-nos que a União dos Empregadores Domésticos de Macau – cuja existência desconhecia e cujo trabalho continuo a desconhecer – vai fazer uma manifestação contra as empregadas domésticas. Na origem deste invulgar protesto está um caso complicado: um bebé de dois meses terá sido maltratado por uma empregada doméstica que, à data em que este artigo é publicado, é inocente. O julgamento ainda não aconteceu.
Os patrões das empregadas domésticas vão, portanto, sair à rua para se manifestarem contra as pessoas a quem deram trabalho. Seria mais ou menos a mesma coisa que eu sair para a rua a gritar contra a redacção da minha hipotética revista. Pelo que me foi dado a conhecer, esta união de gente preocupada com as pessoas que mete em casa considera que deve haver legislação especial para as empregadas domésticas. E uma lista negra das meninas más. São a favor de uma diminuição dos direitos, algo que não consigo sequer imaginar: como toda a gente sabe, os direitos das empregadas domésticas são quase nenhuns e os que existem são frequentemente violados.
Há histórias de empregadas internas a dormir com cães. Há histórias de empregadas domésticas que são obrigadas a devolver parte do salário que lhes é depositado, a forma esperta que os patrões encontraram de contornarem a obrigatoriedade do depósito bancário. Há histórias de empregadas domésticas que não descansam as horas suficientes que constam da lei. E há outras histórias, piores ainda. Às empregadas domésticas nem sequer é dado o direito de mudarem de patrão se estiverem descontentes. Se saírem à rua contra os patrões, podem começar a fazer as malas e a preparar o passaporte, se estiverem na posse dele.
A história do bebé maltratado é trágica, como todas as histórias de maus-tratos, principalmente aos mais indefesos. Levam-nos sempre ao umbilical pensamento de que podíamos ser nós as vítimas da situação. Mas sobre esta história ainda há muito para perceber e não compete a ninguém que não a um colectivo de juízes julgar quem tem de ser julgado.
Quem não quer correr riscos ou sabe que não os pode correr, não corre. A gente unida contra as empregadas domésticas tem bom remédio: recambia quem contratou e dedica-se a esfregar sanitas, lavar-estender-e-passar a roupa a ferro, fazer as camas, aspirar, lavar a frota automóvel da família, fazer o almoço e o jantar, ir buscar as crianças à escola, dar banho às crianças e ao cão, ir passear o cão, ir passear as crianças, aturar a birra das oito da manhã do mais novo, tão queridinho e tão chatinho, aturar a birra das oito da noite do mais velho, tão bonitinho e tão parvinho, pôr as crianças a dormir e lavar a louça do jantar, que esta noite houve convidados e é tudo a quadruplicar.
A vida é assim: até para se ser patrão é preciso ter jeito. Pena que os desta terra nem mandar saibam que, para se mandar com resultados, é preciso saber, antes de mais, o que significa o respeito.

21 Ago 2015

O imbróglio de Calais

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]egundo relata o diário ‘Le Figaro’ os ministros do Interior da França, Bernard Cazeneuve e da Inglaterra, Theresa May, deverão assinar esta semana um novo acordo de cooperação bilateral visando responder à crise humanitária no porto de Calais, decorrente do afluxo de centenas de migrantes africanos que procuram chegar à Grã-Bretanha.
Nos termos do acordo, revelado nas suas linhas gerais, visa-se conjugar esforços na ‘luta contra as redes criminosas de passadores, traficantes de pessoas e emigração clandestina’. O acordo prevê o reforço do dispositivo humanitário existente no local (centro de acolhimento Jules-Ferry) em articulação com autarcas locais e associações humanitárias. O centro providencia socorro de primeira necessidade aos migrantes que intentam chegar a solo britânico por ferry ou através do túnel do Canal da Mancha.
Neste momento, centenas de migrantes vivem no centro de acolhimento que lhes oferece duche e uma refeição diário apesar das difíceis condições de acolhimento. Um reforço do contingente policial e das vedações no cais de embarque foi já feito mas os peritos duvidam que as medidas tomadas resolvam o problema que apresenta uma dupla dimensão: humanitária e de segurança. A Europa não tem logrado encontrar uma resposta conjunta e sustentável para a onda de emigrantes no seu litoral os quais em Julho passado atingiam as 107 000 pessoas (o triplo de há um ano) segundo a agência europeia Frontex.
Talvez em nenhum outro ponto se acentue o fracasso das políticas comuns como na política de justiça e assuntos internos. Aquilo que ficou chamado como o terceiro pilar da União Económica e Monetária do Tratado de Maastricht. Ela previa a concertação de esforços comuns no capítulo do terrorismo, da imigração clandestina, da política de asilo, do tráfico de drogas, da delinquência internacional, das alfândegas e da cooperação judicial. Vinte anos depois de ter sido equacionada os resultados são confrangedores.
As razões para esta implosão são várias. Desde logo o irrealismo da política; segundo, a falta de liderança numa vertente essencial à segurança interna e externa da União Europeia; terceiro, a questão da identidade europeia. Irrealismo da política porque os conceptores do modelo de cooperação reforçada imaginaram que com a dotação dos Fundos Estruturais e a canalização de substanciais ajudas humanitárias aos países donde prov(inham)(êm) esses emigrantes o problema ficaria solucionado na origem. Como? Criando-se postos de trabalhos e programas de assistência aos grupos sociais que buscam emigrar a qualquer custo.
No período de 2000 a 2005, cerca de 440 000 pessoas emigraram de África para solo europeu. Em 2007, a BBC noticiava que segundo dados fornecidos da Organização Internacional de Migrações cerca de 4.6 milhões de emigrantes africanos viviam na Europa. Segundo o Instituto para a Política de Migração, um think-tank baseado em Washington, esse número deveria ser, pelo contrário, de 7 a 8 milhões de pessoas. Em 2014, a operação de protecção das costas marítimas europeias chamada ‘Operação Triton procurou, sem sucesso, impedir a chegada de vagas de emigrantes à ilha de Lampedusa, ilha italiana situada entre a Europa e África. No ano transacto cerca de 170 000 pessoas aportaram a Itália por via marítima, sendo originárias da Líbia, da Síria, do Corno de África e da África Ocidental.
O balanço da política europeia de emigração é calamitoso. Não só os postos de trabalho nos países africanos não foram criados como os fundos de assistência desapareceram nos interstícios das agências governamentais e das cliques que governam esses países africanos. Por outro lado as redes criminosas de passadores de migrantes cresceram, em exponencial, interligando-se a organizações criminosas que operam em solo europeu como a Comorra italiana, a Mafia Corsa, os gangs do Magrebe francês e os ‘French Black’, este último gang formado por imigrantes da África subsaariana e das Caraíbas que controlam o tráfico de haxixe e cocaína em Paris.
A questão do controlo da emigração e do acolhimento de refugiados foi sempre uma questão da exclusiva soberania nacional. As autoridades nacionais nunca largaram mão do poder de abrirem ou restringirem o acesso aos estrangeiros, consoante as necessidades de mão-de-obra não especializada, das empresas. Países de forte emigração de África como a França, a Espanha ou a Itália, habitualmente favoráveis à emigração, viram-se a braços com crises humanitárias quando os novos emigrantes preferiram organizar-se em guettos do que integrarem-se nos bairros, ao lado das comunidades metropolitanas. E se atitudes de xenofobia ou racismo podem explicar, em parte, os fenómenos de marginalização, não pode ser menosprezada uma opção calculada pela marginalidade e pelos grupos criminosos que operam em grandes cidades europeias.
Naturalmente há a questão humanitária e todos nós somos sensíveis às imagens que nos chegam pelas televisões, de barcos afundados com centenas de pessoas amontoadas, entre as quais mulheres e crianças, bem pelos que por fortuna conseguem sobreviver. Mas a Europa não tem capacidade para receber todos os que querem chegar às suas costas e viver nas suas sociedades. O problema é multifacetado. É um problema de segurança; é um problema de solidariedade para quem padece; mas é também um problema da Europa que queremos nos tornar. Multiracial, seguramente, mas em que todos tenham o seu papel e sintam que estão na pátria que ajudam todos dias a construir. Foi esse o segredo da integração de outras vagas de emigração em séculos passados.
Precisamos por isso de gente com outro discernimento a solucionar estes problemas. A Comissão Barroso nunca teve gente, nesta área, com perfil adequado. Franco Fratinni e Jacques Barrot foram opções de circunstância, empurrados pela política interna dos seus países. As iniciativas do Presidente do actual Conselho Europeu, Donald Tusk, em matéria de uma Agenda Europeia de Migração, dão sinais interessantes para um maior entrosamento comum neste domínio.

20 Ago 2015

Silly Season (Stuffing Sausages)

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m Macau teimamos em não ter uma “silly season”, e por mais forte que o sol bata nas cabeças que não estejam “protected with umbrellas” (ora aqui está um produto imune às crises e que vende todo o ano: “umbrellas”!), não dá para ficar mais “silly” do que o habitual – pode-se mesmo dizer que nem uma “silly season” digna desse nome Macau consegue produzir, mantendo-se o ano inteiro numa constante “silliness”. Em matéria de “stuffing sausages” para fechar a edição da imprensa, é “the same thing the whole year”, e “what’s the big deal” se o que não for dito hoje pode sair na edição de amanhã? Não há nada de muito importante que aconteça agora em “London town, for example” que não se fique logo a saber cinco minutos depois “in the freaking Papua New Guinea”, portanto “who cares, whatever”. Tempos houve em que para se ficar a saber de um golo numa partida de futebol “in real time” era necessário sintonizar um aparelho que captava hondas hertzianas, das quais era necessário encontrar uma que estivesse dar o relato, enquanto agora basta “checking the livescore.com”. Digam lá se não é “fudging awesome”, mesmo tendo em conta que a mensagem é muito mais personalizada quando transmitida pelo saudoso Jorge Perestrelo?
O problema é que aqui não se “vai a banhos”, ou seja, os mesmos tipos que aparecem na televisão em Novembro ou em Abril são os mesmos de agora, em pleno Agosto. “Nothing changes, same crap”. Reparem no “timing” da notícia de que o Governo enviou para o CCAC aquele famigerado processo da permuta de terrenos, onde se suspeita terem sido cometidas ilegalidades: no início do mês de Agosto! O Ocidente fala da corrupção na Ásia e no resto do mundo “with a mouth full” porque não têm que andar a vasculhar no fertilizante natural que é a corrupção com um calor destes, “God damn it”! A corrupção, o tráfico humano, a pirataria “and such” combate-se “as seen on TV”, com “gloves and detective hats”, e gabardines, tudo muito “Sherlock Holmes meets James Bond meets the FBI and sh*t”. Queria ver o que diria a Scotland Yard ou a Interpol se tivessem passar “the whole damn day” debaixo deste calor e humidade, secando depois debaixo do artificial frio polar dos “air-conditioners”. Ia ser ser “hilarious”.
Como se não houvesse “better things to talk about”, falou-se durante o último mês de “what the do” com o edifício do antigo Hotel Estoril – “a real pain in the butt”, desculpem-me a sinceridade. Suspeito que o tal edifício, que fora atirado “to the dogs” e andou tantos anos “completely forgotten” pertenceu em tempos à SJM, e agora está na posse do Governo, “I couldn’t care less”, mas pela conversa parece que pertence a toda a gente, tantas são as cabeças que debitam as sentenças. “In the end” acredito que vai prevalecer a máxima “money talks and bullsh*t walks”, mas no entretanto não tenho visto ninguém falar da autoria do tal painel que alguns querem ver deitado fora, qual “dirty diaper” (no programa de rádio do canal chinês das manhãs dedicada à peixeirada houve quem tivesse sugerido que a imagem no painel é “pornográfica”, “imagine that”). É possível que tenha sido eu “who was distracted”, e não escutei “a living soul” referir que o autor da peça é Oseo Acconci – “enough said”. Não é bem a mesma coisa que um Picasso, “but”…
“Last but not least”, a polémica que envolveu os Serviços de Saúde da RAEM, que rejeitaram a candidatura de uma médica natural de Macau e “made in Coimbra”, que tivemos conhecimento “in first hand” através deste mesmo “newspaper”. Só posso dizer que o enredo é um tanto ou quanto confuso, mais com contornos de “pissing contest” do que outra coisa, mas “nonetheless” não pude deixar de ficar apreensivo com a facilidade com que se “cry wolf” – falo do factor da “descriminação” com base na origem da candidata, que foi a primeira lebre solta antes que se soubesse mais “about the story”. Pessoalmente não tenho muita razão de queixa, e já me habituei a ser olhado como um “alien”, “here and there”, mas não excluo na totalidade a possibilidade de isto acontecer pontualmente. “But seriously, people”, isto nunca seria feito de forma tão descarada, tão “in your face”. Até porque para essa tarefa requer-se alguma imaginação, “something special”, e aqui já sabemos o que a casa gasta: nem uma “silly season” das pequeninas, nem que fosse só para sentirmos saudades “of being normal”. E assim concluo: “I’ll be damned!”.

20 Ago 2015

Stomachus Nostrum

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]arece-me pacífico afirmar que a situação dos refugiados que diariamente escapam do Norte de África em direcção à Europa é insustentável. Também me parece tranquilo dizer que a Europa, e o mundo em geral, não estão a fazer ou conceber nada verdadeiramente relevante para que a situação melhore. Parece-me ainda que a determinada altura até os mais liberais na Europa vão também começar a alinhar com os radicais que pretendem construir muros ou organizar deportações maciças como o idiota do Trump a quem podemos juntar Viktor Orbán e Netanyahu. Parece-me igualmente claro que as pessoas apenas fogem do Norte de África porque ou têm o país em guerra, ou são perseguidas ou vivem na mais abjecta das misérias sem oportunidades de trabalho. Normalmente as pessoas só abandonam os seus países em situações extremas ou por turismo, e as migrações à procura de melhores condições de vida são absolutamente vulgares, até naturais. Qual a solução então? Apesar de tudo, a experiência Europeia e o próprio bom senso, dizem-nos que integrar é melhor que ostracizar, miscigenar é melhor do que ‘racializar’. [quote_box_left]No fundo, em qualquer parte do mundo, em qualquer civilização ou cultura, queremos todos o mesmo: paz, comida, ar puro, tempo para estar com a família e os amigos e um futuro agradável para os nossos filhos[/quote_box_left]

Volto um pouco atrás no tempo para recordar um conversa que tive em Hanoi há uns anos: num bar falava com um fulano que se apresentou como “meio vietnamita, meio francês” – Estava de volta ao Vietname depois de muitos anos em Marselha. Eventualmente, a conversa descambou para a comida e mais precisamente para o molho de tomate, vindo eu a descobrir que a filosofia do lado marselhês dele para o molho de tomate em muito pouco diferia da minha. Este detalhe fez-me pensar mais tarde na minha condição de imigrado e na minha própria identidade. À distância, especialmente vivendo numa civilização diferente da nossa como é a Chinesa, as diferenças que sentimos na Europa (até entre nós e os espanhóis) esbatem-se ao ponto de descobrirmos muito mais afinidades culturais com um sueco do que com um coreano. Então, depois de viver na China ficou muito mais fácil de me definir como um Europeu porque há, de facto, uma história conjunta e uma partilha cultural que se revela nos livros, na música, nos hábitos… Mas eu quis ser mais preciso na minha identificação cultural e foi aí que entrou o estômago e a conversa com o marselhês vietnamita porque quando mudamos de civilização, ou mesmo de cultura, os nosso hábitos alimentares são os mais difíceis de alterar, especialmente o pequeno almoço, segundo afirmam alguns especialistas, e isso pode fazer um mundo de diferença na nossa percepção de bem estar e na capacidade de integração. Por experiência própria, todos nós que vivemos longe da nossa cultura de origem sabemos o que isso é. Em Macau, para os portugueses, quase não se nota nos dias de hoje, mas se vivermos em Zhuhai, Pequim ou Tóquio a coisa fica diferente. Um dia visitei o Toni quando ele treinava na China e pensei que diabo havia de lhe levar de lembrança. Estando ele Shenyang resolvi-me por bacalhau e vinho.maxresdefault Foi uma festa para ele e para o Carlos Azenha, contou-me mais tarde. Assim, nesta procura da identidade quando o estômago entrou em cena rapidamente percebi que sou Europeu, sim, mas Europeu do Sul porque os meus hábitos alimentares definem-me mas do que uma língua, mais do que a cor da pele, mais do que quase tudo porque estão intimamente ligados com a minha experiência como ser vivo. Assim, a minha identidade define-se no Mediterrâneo e os hábitos alimentares foram o que me levaram lá. Senão, caro leitor, mesmo que como eu, se adapte bem a um regime alimentar diferente, quanto tempo consegue passar sem um bom tinto, umas azeitonas, queijo, pão, fumados, azeite, um sumo de laranja e, claro está tomate? Não muito sem sentir umas ânsias, não é? Mas a verdade é que não estamos sozinhos nisto. Acontece o mesmo aos espanhóis, aos franceses, aos gregos, aos croatas, aos turcos… Tenho andado a perguntar-lhes sim, sempre que encontro alguém dessas bandas. Esta semana conheci um libanês e quis saber como era para ele, e é a mesmíssima coisa – choramos todos pelo mesmo. Foi então que me surgiu a ideia para resolver o problema dos refugiados do norte de África: integrar. Não na comunidade Europeia mas num comunidade mediterrânica. Razão tinham os Césares quando estabeleceram o Mare Nostrum apesar dos pressupostos serem errados pois a questão era de poder imperialista e não de convivência cultural, mas ainda foram 600 anos… o problema foi precisamente o facto de os romanos não estarem interessados na diversidade dos povos mas sim na sua dissolução no império e isso não funciona, porque uma união forte só o é se respeitarmos e apreciarmos a diversidade como factor de desenvolvimento e renegarmos a uniformidade porque não nos abre caminhos novos.
Chamemos então a esta ideia Stomachus Nostrum. Usemo-la como tema de trabalho, como leitmotiv se assim pretender, e imaginemos uma União Mediterrânica entre os países do Sul da Europa e os Países do Norte de África. Os países da Europa mantêm-se na UE mas, numa primeira fase, os países do Norte de África não. Será uma espécie de zona tampão, ou melhor, uma antecâmara de descompressão, uma fase preparatória, mais tarde permitiria a integração dos Países do norte de África na UE mas, no imediato, criava-se uma zona de livre circulação à volta do Mediterrâneo e, claro está, a UE e o resto do mundo desenvolvido e não apenas os países do sul da Europa teriam de colaborar no processo de desenvolvimento dos Países do Norte de África. Evidentemente, para que este processo seja possível, aqueles países terão de cessar no imediato todas as hostilidades, resolver questões fundamentais como a instituição de Estados laicos de Direito, liberdade religiosa, igualdade entre sexos, eleições livres… etc. porque nós mediterrânicos temos mais em comum do que a separar-nos e não é só a comida que nos une… É um processo difícil porque existem hábitos arreigado difíceis de mudar mas se as perspectivas de futuro forem boas tudo muda. No fundo, em qualquer parte do mundo, em qualquer civilização ou cultura, queremos todos o mesmo: paz, comida, ar puro, tempo para estar com a família e os amigos e um futuro agradável para os nossos filhos. É óbvio que não existem soluções perfeitas e esta terá os seus problemas mas parece-me ser o caminho, assim haja coragem politica para sensibilizar os povos e reunir os meios para o fazer.

MUSICA DA SEMANA: Anouar Brahem – “Astrakan Café”

19 Ago 2015

O preço da inércia

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]uitas têm sido as vozes que em Macau se têm lamentado do constante e inexplicável aumento de preços em relação a bens e produtos de consumo corrente, sejam bebidas engarrafadas ou alimentos, pacotes de sumos, vegetais, legumes, queijo, iogurtes, carne ou peixe, sendo indiferente que estejamos a falar de supermercados, mercados, restaurantes ou de bares e cafés.
Há quem explique esse aumento de preços com a pressão especulativa do imobiliário, argumentando que a carestia excessiva reflecte os altos valores das rendas. Esta poderá ser uma parte da verdade. Todavia, não a esgota, nem serve de justificação para que o mesmo produto, e tanto podem ser iogurtes como queijos, sumos de frutas ou conservas, de uma semana para a outra sofra um aumento de 20, 30 ou 40% no mesmo estabelecimento.
O alto valor que os cidadãos estão a pagar por produtos de supermercado, de pastelaria e café e refeições de má qualidade nos restaurantes, torna-se mais incompreensível quando se tem a possibilidade de comparar aquilo que é oferecido em Macau com o mesmo tipo de produtos e serviços em cidades cuja qualidade de vida é idêntica ou superior, mas em que a carga fiscal é muitíssimo mais alta.
Se em relação a Portugal é possível justificar as diferenças de preços com o empobrecimento verificado nos últimos cinco anos, devido às exigências da troika e à acção do seu governo, o que introduziu um factor de distorção das habituais regras do mercado, já no que respeita a outros países essas diferenças são absurdas. Para melhor se perceber do que falo tomemos alguns exemplos.
Estamos em pleno Agosto, há muita gente de férias e a viajar. Na semana que findou, depois de uma breve passagem por Tóquio, estive em Shimizu, município de Shizuoka, onde fiz várias refeições nos restaurantes locais. O preço por refeição – almoço ou jantar – variou entre 1300 (almoço) e 3714 ienes (jantar), ou seja, entre MOP 84,00 e MOP 239,00.
Pegando no segundo caso, que foi a refeição mais cara, esse valor diz respeito a uma steakhouse, serviu para pagar uma imperial, um bife de vaca (prime US beef filet), com cerca de duzentos gramas, acompanhado de batatas fritas, dois copos de vinho tinto de razoável qualidade e um leite-creme. O valor pago por esta refeição não chegava em Macau para comer apenas um bife, mesmo de qualidade inferior, numa das cantinas da praxe. Prova disso está no facto de depois de regressar ter almoçado num conhecido restaurante português da Taipa, dos económicos, e por um almoço para duas pessoas, composto por uma salada de polvo, dois nairos grelhados, um jarro pequeno de sangria, um pudim e dois cafés ter sido cobrada a quantia de MOP 694,00, em linha com os preços praticados em estabelecimentos similares de Coloane ou Macau. Um bife da vazia custa em regra mais de MOP 200,00, ainda sem taxas, e se for de lombo, quando há, cerca de MOP 300,00 ou mais.
Em Shimizu, um jantar com uma entrada de duas espetadas pequenas de espargos verdes e bacon, um prato principal composto por duas espetadas de camarões, lulas e vieiras, uma dose de batatas fritas e duas cervejas, num restaurante médio recomendado no meu hotel, custou 2440 ienes. Quer dizer, esta refeição ficou por menos de MOP $ 160,00.
Numa cervejaria da Taipa, só uma cerveja de pressão custa cerca de MOP 50,00, a que haverá que acrescentar as taxas respectivas. A mesma cerveja no Japão custou 518 ienes, isto é, MOP 33,00! Uma garrafa de vinho que em Portugal custa menos de 5 euros, custa cá num supermercado MOP 150, e num restaurante mais de MOP 250. Não é o transporte ou o seguro que a encarecem. Um café expresso em Narita fica em 200 ienes, qualquer coisa como MOP 12,80. A mesma bebida num café da cidade custa facilmente mais do que isso. Há dois meses, no Aeroporto de Barajas, em Madrid, paguei menos de MOP 80,00 por um hambúrguer grelhado (que não era de pacote) com batatas fritas e salada. Falo de aeroportos onde em regra os preços são mais altos do que no exterior.
Não vou incomodar os leitores com mais números e exemplos (os preços praticados nos mercados locais em relação ao peixe, ao marisco ou até um a simples ramo de salsa, bem como nalguns estabelecimentos de congelados quanto à carne importada ou em supermercados em relação a vinhos ordinários ou enchidos portugueses são obscenos). Estes chegam para demonstrar como os preços praticados em Macau estão claramente acima do que seria aceitável. E já não vou ao ponto de comparar a qualidade da confecção de muitos restaurantes de Portugal ou do Japão com os congéneres locais que praticam o mesmo nível de preços.
E há, ainda, mais uma agravante nisto tudo: a qualidade e simpatia do serviço prestado em Macau estão a anos-luz do que se pratica noutros locais de veraneio da Ásia. Aqui é vulgar ser necessário pedir – não me refiro a restaurantes de hotéis de 5 estrelas – para se trocarem pratos e talheres, como se fosse normal que depois de se petiscar uma entrada de camarões fritos ou um prato de peixe os mesmos talheres devessem depois ser directamente depositados em cima da mesa ou da toalha para a seguir se comer a carne de porco à alentejana…
Numa cidade que tem uma escola superior de turismo, que aposta nesta indústria como uma bandeira e cujos governantes fazem juras de preocupação com a qualidade de vida dos residentes e a oferta turística, é inaceitável que se pratiquem preços como os que estão a ser seguidos e que não haja fiscalização eficaz em relação àquilo que se oferece. É inaceitável que num estabelecimento de hambúrgueres com pretensões modernistas, na zona do NAPE, os clientes se quiserem limpar a boca tenham de pedir e pagar à parte um simples guardanapo de papel, como se o normal fosse uma pessoa usar a toalha da mesa ou a manga do casaco.
Sei que há quem esteja milionário com o desvario que por aí vai, tirando partindo da ausência de fiscalização, da inércia, do conúbio entre os poderes fácticos que impõem as suas regras à revelia e na ausência de leis adequadas. Desconheço as razões para o descontrolo dos preços em mercados, supermercados e restaurantes, embora saiba que nada justifica uma tão grande inacção por parte de quem tem a obrigação de zelar pela qualidade de vida dos residentes e pela oferta turística. O preço que os cidadãos de Macau pagam hoje pela inércia de alguns responsáveis é demasiado elevado para que essa atitude continue a passar despercebida.
Viver numa cidade com qualidade de vida, com um bom nível de oferta e uma procura adequada, com preços fiscalizados e serviços aceitáveis, não pode ser um luxo numa cidade como Macau que pretende que a aposta num turismo diferenciado seja para valer. Convenhamos que só labregos e pacóvios sem termo de comparação estão dispostos a pagar muito para serem mal servidos. E se por acaso os que aparecem não o são, e por aqui passam uma vez, depois não regressam. Cidades de dimensão similar, sem casinos, com receitas públicas infinitamente inferiores às de Macau e cargas fiscais mais pesadas, conseguem fazer muito melhor. Porquê?
Seria bom que quem governa pensasse nisto. E que os cidadãos se tornassem mais exigentes para com aqueles que lhes prestam maus serviços. Dos seus governantes e deputados aos restaurantes, dos cafés aos supermercados. Isto sem esquecer a péssima limpeza das ruas e a oferecida em muitos edifícios – cheiro a urina dos cães junto aos acessos, elevadores sujos, patamares imundos, condutas de lixo a tresandar, baldes com esfregonas desfeitas mergulhadas em águas sujas e sem detergentes, etc. – pelas empresas de condomínios, cujos miseráveis serviços são na maioria dos casos realizados sem prestação de contas e sem correspondência nos altos preços cobrados aos condóminos.
O preço pago pela inércia e a falta de exigência de quem o paga está a ser demasiado elevado. Com o arrefecimento das receitas do jogo, a curto prazo, os danos infligidos à RAEM podem tornar-se irreversíveis.

18 Ago 2015

Analtecendo

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]creditem ou não quando pensei no nome ‘Sexanálise’ para uma rubrica sobre sexo, tinha em mente o trocadilho freudiano para clarificar que o meu objectivo era o de dissecar ao tutano alguns aspectos da sexualidade humana. A reacção alheia era, no entanto, a surpresa e a jocosa expressão de quem tivesse visto em luzes neon as palavras SEXO ANAL. Sexanálise, sexo anal. Estou agora bastante ciente da semelhança. O momento chegou para todo um artigo sobre o tema.
 Sexo anal, uma prática de todo não exclusiva a casais homossexuais, é um tema surpreendentemente complexo. Chamar-lhe-ia polémico se não fosse a forma politizada do vocábulo que de uma forma exagerada nos leva à violência do que é ser enrabado social, política e sexualmente. Fico-me pelo enranbanço sexual-literário de quem se debruça (debruçar – linda escolha de palavra) pelo tema. Vi-me obrigada a falar sobre a referida actividade quando num romance do Jorge Amado há uma referência a sexo ‘por trás’. Uma aula de literatura numa Universidade chinesa levou a toda uma conversa que em muitas semelhanças teve com uma aula de educação sexual. ‘Há vários tipos de sexo’… etc, etc. Que não haja surpresa que, no romance, sexo anal era usado como o método de preservação de uma muito afamada ditadura da virgindade. Prática ainda comum para as que temem o coito pré-conjugal ou para quem prefere jogar pelo seguro, gravidez-wise. Para outros, o olho do cu é de uma santidade imaculada. Nas minhas informais observações, o mundo tendencialmente divide-se entre um puritanismo exagerado ou uma instrumentalidade do acto, ou seja, ou és essencialmente contra ou és a favor porque convém, pelas razões supracitadas. Existe, contudo, toda uma terceira categoria que nas formas sociais se dá menos a mostrar. Sexo anal, como parte de uma sexualidade normal e prazerosa por todos os envolvidos, é mais difícil de encontrar. Sexo
Aliás, é daquelas perguntas clássicas naqueles jogos parvos de objectivo a humilhação ou vanglória, tipo verdade ou consequência. ‘Gostas de levar no cu?’ Acho que conseguem sentir o peso das palavras a ecoar no universo do embaraço. Culpo o desenvolvimento semântico e morfológico da sodomia de toda a apreensão acerca do ânus. Em geral, há toda uma reacção visceral quando se pensa no corpo humano, qualquer parte que seja. O sexo ajudou a amenizar toda a feiura do corpo para algo digno de ser louvável e venerado, se mudou a nossa representação da nossa parte de trás, talvez não. James Joyce nas suas cartas de amor a Nora, de uma grande natureza erótica, até que é bem gráfico e honesto nas suas fantasias anais: ‘glorying in the very stink and sweat that rises from your arse’. Nem me atrevo a traduzir para português, só para não perder a sua genialidade. Mas isto do sexo anal anda a tornar-se cada vez mais mainstream, e graças às novas vozes de uma geração de um empoderamento sexual feminino, há dicas e discussões que se vêm à tona. Para quem tiver curiosidade, a Beatriz Gosta, o novo fenómeno no youtube, no seu último sketch da primeira temporada faz um ABC esclarecedor ao sexo anal, para todos os interessados em desenvolver a prática, bem informados. Até porque branqueamento anal já é uma preocupação em certos círculos, normalmente pornográficos, mas que demonstra toda uma nova consciência pela parte traseira que vai para além de umas bochechas jeitosas. 
A temática torna-se ameaçadora, até, se falarmos de sexo anal em homens heterossexuais. Para além de uns comentários parvos, o sexo anal não é falado de todo. Obviamente que mulheres não estão fisicamente preparadas para tal actividade, mas damos todos graças pela existência de sex shops e brinquedos que possam satisfazer qualquer fantasia. Os homens que poderiam achar alguma graça a tal ideia são muito poucos, sem surpresa. E agora perdoem-me porque vou me perder em raciocínios mais abstractos. Gosto de reflectir sobre simbolismos de todo o tipo de práticas e não consigo abstrair me do facto que a perseverança da virgindade anal heterossexual tenha mais do que se lhe diga. Para uma mente inocente como a minha que se prende pela tão pratica essência das coisas, anatomicamente falando, homens deveriam estar mais do que satisfeitos com uma proposta assim. Mas não estão. Rejeitam e repudiam. O porquê seria muito interessante de perceber. A resposta mais simples seria de uma inerente homofobia ou a descoberta de uma escondida homo-simpatia. Ou será um medo de perda de controlo que relações heterossexuais normalmente preconizam? Medo porque julgar-se-á frágil e indefeso. Numa posição de vulnerabilidade nunca antes vista ou sentida. Senhores, talvez uns exercícios de disrupção e contestação psicossocial façam bem à humanidade. Analtecendo o que o sexo tem de melhor. 


18 Ago 2015

Inglês, uma linguagem de facto em Macau

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje proponho aos nossos leitores analisar um artigo divulgado pelo “Macau Daily Times” no dia 6 de Julho do corrente ano, intitulado “A de facto official language” e onde era discutida a utilização da língua inglesa em Macau. De acordo com a mesma fonte, “dados divulgados pela Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, mostram que 1.5% da população local indica o inglês como a sua linguagem habitual nos Censos de 2006, enquanto que em 2011 esse número cresceu para 2.3%”. Entretanto, “o Gabinete de Comunicação Social revelou que o Governo tem vindo a publicar uma grande parte do seu Relatório das Linhas de Acção Governativa em inglês desde 2000. Mais do que isso, e para além da informação disponível em chinês e em português, as autoridades emitem também comunicados em inglês quando o assunto for apropriado, mas especialmente no que toca às Linhas de Acção Governativa, saúde pública ou outros assuntos que possam ser interessantes para os meios de comunicação social do estrangeiro”.
Além disso, o artigo discutiu ainda a situação verificada em Hong Kong, avançando que o Governo da RAEHK usou menos o inglês do que o chinês nas suas comunicações com o público e a comunicação social. Ainda para mais, os dirigentes públicos usam sempre o chinês quando falam para a população. Mas, no caso de Leung Chun-ying, e desde Maio de 2014, o Chefe do Executivo utilizou o chinês em 61 discursos públicos, enquanto que o inglês foi apenas utilizado em 28 ocasiões do género.
“De facto” é uma expressão em latim, significando isso mesmo, de facto. Assim, uma língua oficial é diferente do que uma língua considerada “de facto”. De acordo com as leis locais, uma “linguagem oficial” é aquela que deve ser utilizada pelo Governo nas suas comunicações com os residentes. As linguagens oficiais a ser utilizadas em Macau e em Hong Kong são estipuladas pelas Leis Básicas de cada uma destas Regiões Especiais. A Lei Básica de Hong Kong indica tanto o inglês como o chinês como as línguas oficias da RAEHK, enquanto que o artigo 9 da Lei Básica de Macau aponta ora o português ora o chinês como as duas linguagens oficiais da RAEM, não fazendo contudo nenhuma referência ao uso do inglês para esta função.
Mas, mesmo apesar de a Lei Básica de Macau não lhe fazer nenhuma referência, nenhum de nós pode negar o uso do inglês nas nossas vidas quotidianas, sendo este idioma de particular utilidade para o contacto feito entre os advogados do território e os seus clientes. Tendo em conta que muitas empresas estrangeiras se encontram a operar na RAEM, de entre as quais se destacam os casinos, operadoras de seguro e mesmo bancos que aqui estabeleceram uma das suas sucursais, e que as suas chefias são preenchidas por americanos, europeus ou australianos, na sua maior parte, assim se percebe melhor esta necessidade, visto que os mesmos não dominam nem o português nem o chinês. Faz assim sentido pedir que um qualquer contrato seja redigido em inglês, para melhor proteger os seus interesses pessoais. Sofia Capola
Mas há que considerar um problema em particular. Um contrato tem sempre de ser aceite e rectificado (assinado) por pelos menos duas partes, que vamos aqui identificar como X e Y. Se X insistir em ter o contrato em inglês, e Y concordar, não existe aqui nenhuma disputa. Porém, se X e Y optarem em vez disso por redigir o contrato em chinês, e a seguir este documento necessitar de ser traduzido para inglês, então aí é que começam a surgir problemas, devido a eventuais discrepâncias entre as duas linguagens. Como é que se lida então com possíveis diferenças entre os dois contratos, um em inglês e outro em chinês, e qual dos dois é que prevalece sobre o outro?
Voltando outra vez ao artigo 9 da Lei Básica de Macau, e se X constituir o Governo de Macau, então X tem nesse caso o privilégio, pois o artigo 9 da Lei Básica de Macau obriga o Governo da RAEM a usar apenas o português e o chinês nas suas comunicações. Neste caso, o contrato em inglês existe apenas numa natureza suplementar.
Esta discussão fica limitada a contratos em que X é assumido como sendo o Governo de Macau e Y como um estrangeiro. Mas como será a situação se tanto X como Y forem residentes locais? Poderiam estes pedir aos seus advogados para redigirem o contrato em inglês?
Para responder a esta questão, temos primeiro de tecer duas considerações. Primeiro, pode o inglês ser usado para redigir um contrato? E, em segundo lugar, pode um advogado usar o inglês para preparar um contrato?
O artigo 9 da Lei Básica de Macau apenas restringe o Governo de Macau a usar o chinês e o português nas suas comunicações. Já no que diz respeito aos seus residentes, nenhuma restrição do género existe. Assim sendo, não é ilegal o pedido de utilização do inglês nos respectivos contratos.
Mas, em relação à nossa segunda consideração, se desejarmos ver o nosso advogado a redigir um contrato em inglês, existe nesse caso o pré-requisito que esse advogado seja fluente em inglês. Em Macau, os residentes locais estudam este idioma desde a escola primária, e nalguns casos desde o ensino infantil, ou pré-escolar. Mas quando os mesmos se inscrevem no ensino superior para um bacharelato em direito, este curso só pode ser completado em língua chinesa ou portuguesa, não sendo o inglês uma opção. Compreende-se assim que a maior parte dos termos legais são mais facilmente expressos ou em português ou em chinês, e não em inglês. Assim sendo, torna-se mais difícil preparar um contrato em inglês do que em português ou em chinês, e por esta razão é que os advogados preferem utilizar uma das duas línguas oficias na preparação deste tipo de documentos.
Com o constante aumento no número de estrangeiros a residir em Macau, cresce também a necessidade de utilizar esta língua, por isso a importância deste idioma aumenta de dia para dia na RAEM. A constante procura do inglês para a formulação de contratos faz com que este tenha cada vez mais importância em documentos legais. Em casos de disputa envolvendo um contrato em inglês, apenas o tribunal tem poder para resolver a questão, por isso, e nestas situações, o inglês acaba por ser útil para advogados e juízes, assim como para a área legal em geral. No futuro, se quisermos que o inglês venha a ser reconhecido como uma língua oficial, teríamos de considerar rever o artigo 9 da Lei Básica de Macau, e passar a fornecer no mínimo uma parte do ensino do direito neste mesmo idioma.

17 Ago 2015