Aeroporto ou hotel?

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á pouco tempo atrás, o jornal de Hong Kong “Oriental Daily” publicou um artigo que alertava para o facto de o aeroporto da cidade estar a ser usado por turistas e pessoas sem abrigo para pernoitar.

A notícia centrava-se inicialmente em dois turistas. O primeiro, vindo da Holanda, era um homem de negócios. Este homem afirmava que o aeroporto é um local seguro e com diversas vantagens. É possível ter acesso rápido à internet e passa-se a noite sossegado. Além disso é uma forma grátis de ficar alojado. É o local ideal para ficar. O holandês disse ao jornalista que, desta vez, planeava ficar em Hong Kong por um mês. Já tem vindo várias vezes e, na maior parte delas, fica alojado no aeroporto. Como agora vem em negócios, só conta ficar no aeroporto por três dias. O nosso amigo já criou aqui uma rotina. De manhã, ao pequeno-almoço, come pão com marmelada e, à tarde, delicia-se com uma cervejinha. Já é intímo do pessoal do aeroporto e as senhoras da limpeza cumprimentam-no sempre.

O outro turista, que se chama John, é um inglês com mais de 80 anos. Quando foi entrevistado empurrava um carrinho com sete malas, enaquanto deambuleava pelas instalações. Afirmou ter sido professor de química durante vinte cinco anos. Há cinco anos atrás reformou-se e também se divorciou. Adora viajar pelo mundo fora. Contou que já tinha vindo a Hong mais de vinte vezes. Costuma ficar no aeroporto quase sempre. Desta vez já lá está “acampado” há vários meses. Espera regressar a Inglaterra em Agosto.

John revelou que, noutras ocasiões, já ficou instalado no Aeroporto de Heathrow, Londres, e também no Aeroporto de Sydney. No entanto, neste ultimo todas as noites a polícia fazia a verificação dos bilhetes. Não era permitido passar a noite nas instalações. O Aeroporto de Hong Kong permite muita liberdade. Não existem restrições. Chega a encontrar-se aqui com os amigos. De vez em quando, empurrava o carrinho com as malas até às cabines telefónicas par ver se alguém se esqueceu de uma moeda na ranhura, embora afirme que tem dinheiro que chegue.

Para além dos turistas, existem cerca de vinte sem-abrigo a dormir no aeroporto. Têm todos um entendimento tácito. Cada um deles ocupa um banco, que lhe servirá de cama. Alguns deles estão aqui como em casa. Trazem chinelos, escova de dentes e toalhas.

Os sem-abrigo concentram-se no Terminal 2 do aeroporto. Todas as noites uma fila de bancos vira camarata. Às 6.00h da manhã, levantam-se e vão para a casa de banho tratar da higiene.

Os sem-abrigo são cada vez mais jovens. Um homem de cerca de 30 transporta os chinelos, o pijama, a louça, uma couve e noodles instantâneos num carrinho de bagagens. De dia, vai até ao 7-11 cozinhar os noodles e carregar o telemóvel. Deita-se às 10.00 da noite.

O aeroporto tornou-se um paraíso para quem não tem casa. Os seguranças já estão habituados à situação. De manhã, as patrulhas diurnas cumprimentam-nos um a um, de forma amigável. Entretanto, o jornalista dirige-se a um homem de meia idade. Depois de acordar, este homem vai até à casa de banho lavar os dentes e a cara. A seguir, após mudar de roupa, dirige-se ao restaurante. Depois do pequeno-almoço, sai apressadamente e vai trabalhar.

Alguns sem-abrigo trabalham. Dormem no aeroporto por ser seguro, limpo e climatizado. É muito melhor do que quartos pequenos, sufocantes e caros.

Não é difícil compreender os motivos desta escolha. Devido aos elevados preços das casas e à falta de segurança das áreas urbanas, esta parece ser uma boa opção. Eles não se importam de pagar transportes caros para ir e vir do aeroporto, é melhor do que arrendarem uma câmara mortuária.

No entanto, com o afluxo cada vez maior de pessoas sem tecto ao aeroporto, vão necessariamente surgir problemas de ordem pública e de higiene. Podem criar-se conflitos potenciais entre eles o pessoal do aeroporto e alguns viajantes mais impressionáveis. Os sem-abrigo também vão afectar a imagem do aeroporto internacional de Hong Kong. O Governo deveria pensar numa estratégia para solucionar este problema.

O porta-voz do aeroporto declarou que os seguranças e a polícia patrulham frequentemente os terminais. Quando se deparam com estas situações são normalmente compreensivos. Costumam notificar a segurança social para que seja feito o acompanhamentos destes casos, ou, se necessário, é pedida a intervenção dos agentes. Antigamente, a Autoridade do Aeroporto recebia queixas sobre a estadia nas instalações de pessoas nestas condições. Também costumava ter reuniões com a polícia para discutir e seguir estes casos. De acordo com a secção 17 (1) do Decreto-Lei para a Autoridade do Aeroporto, Cap. 483A, “ninguém poderá ter comportamentos que perturbem de alguma forma as outras pessoas, na área sob esta legislação”.

Processar os sem-abrigo não terá qualquer efeito prático e não vai resolver o problema. Em última análise, este pessoas escolhem o aeroporto para pernoitar porque as rendas são demasiado caras. Se este problema não se resolver, cada vez mais gente sem casa vai escolher o aeroporto para se abrigar.

8 Mai 2018

De olhos postos no futuro (II)

[dropcap style =’circle’] A [/dropcap] semana passada falámos sobre os dois níveis do sistema de Segurança Social de Macau. O Regime de Previdência Central Não Obrigatório (RPSNO) representa o segundo nível. Os dois polos deste sistema proporcionam duas fontes de rendimento aos residentes de Macau durante a reforma. São medidas positivas. Mas é preciso salientar que o Fundo de Previdência Central (FPC) garante apenas uma protecção miníma. Não está aqui em causa analisar se as verbas provenientes dos dois ramos da segurança social são suficientes ou não. Os padrões de vida e as expectativas dos reformados variam consoante os casos, o que está em causa é apelar a que, durante a vida activa, as pessoas garantam esta segunda fonte de rendimentos.

Para além do valor destas contribuições, existem outros assuntos que deverão ser discutidos.

Espera-se que as entidades que gerem o RPSNO cobrem uma taxa. Qual virá a ser o valor dessa taxa, como virá a ser regulada, o que vai presidir a essa regulação, são as principais questões que se levantam. Em primeiro lugar, temos a considerar que Macau possui apenas 600.000 residentes, um número insignificante quando comparado com os 8 milhões que habitam Hong Kong. O Fundo de Previdência Obrigatório (FPO) de Hong Kong obriga assalariados e empregadores a contribuir, mas, em Macau, os descontos para o RPSNO são voluntários. É esperado que, inicialmente, não haja uma grande adesão. É um facto aceite. Nestas circunstâncias, se as futuras entidades gestoras do Fundo forem obrigadas a cobrar uma taxa baixa, provavelmente não se sentirão tentadas a aceitar a função. Se estas entidades forem afastadas da gestão do Fundo, a população de Macau vai sofrer as consequências.

A experiência de Hong Kong mostra-nos que as entidades gestoras devem melhorar a sua acção. Se não se regular a este respeito, até um certo ponto, parte das contribuições passarão a ser propriedade das entidades gestoras. O valor a receber após a reforma será naturalmente afectado. Todos sabemos que o investimento não gera necessariamente dinheiro, mas o lucro destas entidades gestoras está garantido porque as verbas provêm do RPSNO. A taxa será, consequentemente, resultado do equilíbrio entre o lucro das entidades gestoras e a protecção oferecida aos residentes de Macau.

Em segundo lugar, estas entidades gestoras podem auto-regular as taxas. Podem especificar a percentagem que vai ser cobrada ao investidor, no contrato que celebram. A auto-regulação cria mais confiança porque é clara para todos.

Para já, existe apenas uma entidade reguladora que já anunciou a taxa que vai cobrar. É bom que outras entidades lhe sigam o exemplo. A transparência de procedimentos torna o público mais confiante.

Para além da questão das taxas, a lei criou a figura “Propriedade Paritária”. É uma forma de assegurar que os empregados têm direito às contribuições feitas pela entidade patronal, mesmo após o termo do contrato de trabalho. Para que esta situação funcione, o contrato de trabalho terá de ter uma duração mínima de três anos. Nestas circunstâncias, o empregado tem direito a 30% das contribuições do empregador. Ou seja, a Propriedade Paritária dos empregados, após três anos de serviço, é de 30% do total das contribuições da entidade patronal. A Propriedade Paritária aumenta 10% a cada ano de serviço. Ao fim de 10 anos, o empregado tem direito a 100% das contribuições do empregador. Os Artigos 53 e 54 de 7/2017 estipulam que, durante os primeiros três anos de aplicação da lei 7/2017, os assalariados ficam isentos de taxas. Ou seja, as contribuições dos empregados são consideradas como despesas da empresa. Ao calcular a taxa atribuída ao patronato, essa quantia, digamos 20.000 patacas, será processada pelo dobro, ou seja 40.000 patacas. A tabela que se segue mostra a percentagem da Propriedade Paritária.

 

Período de contribuições por percentagem da Propriedade Paritária

Menos de 3 anos 0%

De 3 a 4 anos 30%

De 4 a 5 anos 40%

De 5 a 6 anos 50%

De 6 a 7 anos 60%

De 7 a 8 anos 70%

E 8 a 9 anos 80%

De 9 a 10 anos 90%

10 e mais anos 100%

 

É necessário chamar a atenção para o artigo 34 (2) de 7/2017. Estipula que, se o empregado não tiver direito a contribuições da entidade patronal, pode candidatar-se a receber essas contribuições através da Autoridade para o Fundo da Segurança Social.

Imagine-se alguém que começa a trabalhar numa empresa, sendo que os patrões contribuem com 5% do seu salário para o IANMCPF. Mas, no final do segundo ano é despedido. De acordo com esta tabela, o empregado não tem direito a receber o montante das contribuições da entidade patronal. Se a lei permitir que este montante seja devolvido aos patrões, o trabalhador não fica protegido.

Seja como for o Regime de Previdência Social Não Obrigatório pode proporcionar um rendimento adicional para os anos de aposentação dos residentes de Macau. E isso são boas notícias.

 

24 Abr 2018

De olhos postos no futuro (I)

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] Fundo de Segurança Social de Macau (FSS) é um dos ramos do sistema de previdência social de Macau. O FSS é um sistema que funciona a dois níveis. O primeiro nível assegura as pensões de reforma. A partir dos 65 anos o cidadão de Macau passará a receber 3.450 patacas por mês, incluindo 13º mês. Este valor funciona com o um subsídio de apoio.

O Regime de Previdência Central Não Obrigatório representa o segundo nível do FSS. Este regime foi implementado dia 1 de Janeiro do corrente ano e tem por base legal o sistema 7/2017. Ao abrigo deste sistema, os residentes de Macau que:

  1. tenham atingido os 18 anos de idade; ou
  2. que tendo menos de 18 anos, já estejam inscritos no sistema de segurança social, de acordo com o Artigo 10(1)(a) da Lei No. 4/2010

 

Têm direito a ser titulares de uma conta individual do Regime de Previdência Central Não Obrigatório (CIRPCNO).

Estas contas são compostas por três sub-contas; a subconta de gestão governamental, a subconta de contribuições e a subconta de conservação. Estas contas são usadas para gestão do Fundo de Investimento dos Residentes de Macau, no âmbito Regime de Previdência Central Não Obrigatório (RPCNO).

O RPCNO tem dois planos, o plano de contribuição conjunta e o plano de contribuição individual. O plano de contribuição conjunta engloba a entidade patronal e os trabalhadores. A contribução mensal de ambas as partes é de 5 por cento cada, do salário do trabalhador. Se o salário mensal for inferior a 6.569 patacas, o trabalhador fica isento da contribuição, mas o empregador não fica. Se o salário mensal for superior a 31.200 patacas, quer o trabalhador quer o empregado terão de contribuir apenas com 5 por cento deste valor. As 31.200 patacas são um tecto que não será ultrapassado em termos de percentagem contributiva.

Estas contas do Regime de Previdência Central são permutáveis. Quando um contrato de trabalho termina, o saldo contributivo é transferido para a subconta de conservação. Em circunstâncias normais, o titular da subconta de conservação só pode fazer levantamentos depois dos 65 anos. No entanto, se a pessoa se reformar aos 60, ou tiver uma necessidade urgente, pode ser autorizada a fazer alguns levantamentos.

Os planos de contribuição individual, são usados para trabalhadores por conta própria. Nestes casos, a contribuição mínima é de 500 patacas mensais. Estas disposições levantam algumas questões que merecem ser discutidas.

Em primeiro lugar, o fundo de Segurança Social garante uma protecção mais alargada aos residentes de Macau. Este sistema funciona a dois níveis. No primeiro nível, a entidade patronal e o trabalhador contribuem em conjunto. Cada parte contribui com 30 patacas mensais.

O segundo nível é bastante semelhante ao primeiro. A diferença é que em vez de existir um valor fixo, cada parte contribui com 5 por cento do salário do trabalhador. Esta contribuição gera uma segunda fonte de rendimento que vai beneficiar os trabalhadores depois da reforma. Desta forma, a protecção à reforma aumenta.

Em segundo lugar, embora os residentes de Macau possuam, actualmente, duas fontes rendimento, que asseguram as suas reformas, permanece uma questão. Será que este valor é suficiente para garantir uma reforma digna? Algumas pessoas pensarão que sim. Contudo, outras dirão que estas verbas só asseguram um “dinheirinho de bolso”.

As pessoas têm planos diferentes para a altura da reforma e a protecção necessária varia de pessoa para pessoa, por isso não devemos generalizar. Não podemos adoptar um padrão único. Se tivermos mais dinheiro, estamos naturalmente mais bem precavidos para essa fase da vida. Mas como é que vamos contabilizar se a pessoa tem muito dinheiro, pouco ou o suficiente? Esta é uma pergunta sem resposta.

O exemplo de Hong Kong demonstra que os 5 por cento de contribuição de patrões e empregados apenas cobre uns poucos anos do período da reforma. Este facto é determinado por uma inflação muito alta. Desta forma, é preferível a pessoa fazer o seu próprio plano de reforma. O dinheiro disponibilizado por este primeiro nível serve apenas para garantir os mínimos.

Em terceiro lugar, as contribuições para as contas do Regime de Previdência Central não podem ser movimentadas. Esta é sem dúvida mais uma medida de protecção. Mas há quem ache que uma das melhores formas de garantir uma boa reforma é fazer um seguro. O seguro é propriedade do comprador. Na medida em que é propriedade do comprador, pode ser retido em casos legais, ou perdido para sempre, em caso de falência. Como as contribuições para este Fundo não podem ser confiscadas em circunstância alguma, garantem uma protecção muito maior. Estas garantias serão sem dúvida um incentivo para todos participarem no Regime de Previdência Central Não Obrigatório.

17 Abr 2018

A aposentação de Ka-Shing Li

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a última reunião geral da Cheung Kong Holdings, que teve lugar no dia 16 do mês passado, Ka-Shing Li anunciou que se iria aposentar no próximo dia 10 de Maio. Passou a ser, desde a data do anúncio, consultor sénior da multinacional. O seu filho, Victor Li, passa a ocupar o cargo de Presidente do Conselho de Direcção. Li já fez saber que irá dar ao seu filho mais novo, Richard Li, uma avultada quantia para investir em negócios.

Ka-Shing Li afirmou que, depois da reforma, não vai “despir a farda”, mas sim dedicar-se a tempo inteiro à Fundação de Solidariedade Li Ka Shing, que actua ao nível da saúde e da educação.

Se o leitor tem seguido a actividade das empresas Cheung Kong sob a liderança de Ka-Shing Li, saberá dizer-me que lucro tiveram os accionistas minoritários ao longo destes 46 anos? Pois a resposta é impressionante. Aumentaram 5.000 vezes o seu investimento. E a que se devem estes números astronómicos? Possivelmente ao facto de Li receber apenas uma remuneração simbólica pelo seu cargo de Director, ou seja 5.000 HK dólares por ano.

Ka-Shing Li começou a trabalhar com 12 anos, e labutou arduamente durante 78. No entanto, é um homem feliz, pois embora de idade avançada, ainda mantém o corpo saudável e a mente lúcida. A sua aposentação está marcada para o dia do seu aniversário, quando completar 90 anos.

Este self-made man, teve apenas a educação básica, mas tornou-se no homem mais rico de Hong Kong, devido ao seu trabalho árduo. Foi sempre uma pessoa muito motivada. Muitos dos habitantes de Hong Kong veem nele um herói. Talvez alguns deles se inspirem neste homem para abrir o seu próprio negócio. Quem tiver 40 anos, ou mais, é certo que sente por ele o maior dos respeitos. Ele é o orgulho das pessoas desta região.

No entanto, quem nasceu nos anos 90, ou depois, não partilha possivelmente do mesmo sentimento. Podem ver nele apenas o rei dos negócios imobiliários. Mas ele também detém a hegemonia do vestuário, dos bens alimentares e da habitação. Li foi criticado por querer ter tudo. Porque é que as pessoas têm de comprar no supermercado PARKn SHOP quando vivem numa casa construída pela empresa que é dona desta loja? Porque é que as pequenas lojas e mercados não sobrevivem nas propriedades de Ka-Shing Li? Se o complexo habitacional foi construído por Li, porque é que a sua empresa de telecomunicações se vai aí sediar?

Os grandes feitos da carreira de Li estiveram sempre alinhados com o desenvolvimento económico de Hong Kong, durante o ultimo meio século. Quando a economia da região começou a desenvolver-se, Li era apenas proprietário de uma fábrica de plásticos, mas, com o inicialmente tímido florescimento económico, passou a deter um negócio imobiliário. Entretanto a economia de Hong Kong continuou a crescer e a fortuna de Li também. Tornou-se no homem mais rico da região e num dos homens mais ricos do mundo e, indubitavelmente, num símbolo desta cidade.

Antigamente se um jovem afirmasse querer vir a tornar-se num “Li” quando crescesse, era aplaudido pela sua ambição. Contudo, hoje em dia, tal afirmação despertaria sentimentos contraditórios. A alteração dos valores sociais está na base desta mudança. Antigamente a sociedade de Hong Kong respeitava as conquistas ao nível da carreira e a elite do negócio. Mas agora as pessoas passaram a valorizar conceitos como, igualdade, justiça, equidade e direitos civis.

Depois da aposentação do “Superman Li”, Hong Kong dificilmente voltará a ter uma lenda similar.

Li é conhecido pelas suas “máximas”. Certa vez, falava com jovens que comentavam que as namoradas tinham dito: “Se eles não têm casa, não se podem casar”.

Li riu-se e respondeu: “Penso que os jovens, que ainda não terminaram os seus cursos na Universidade, fazem mal se pensarem comprar casa.”

Noutra ocasião, em que se discutia a possibilidade de dividir apartamentos em quartos para alugar a pessoas pobres, Li comentou: “Os quartos são muito pequenos, sinto-me muito desconfortável.”

Numa discussão durante a eleição de 2017 para o Chefe do Executivo, afirmou: “Não vou citar nomes, porque não quero ofender ninguém. Vocês não vão ficar a saber em quem vou votar, porque eu não vos vou dizer.”

Em determinada altura, Li exprimiu assim o seu amor por Hong Kong: “Vivo em Hong Kong desde 1940. Acho que vou aqui ficar até ao fim dos meus dias. Adoro Hong Kong.

O website “kknews.cc” escreveu em Julho passado que “Li não dá um passo sem o seu advogado. Sem uma opinião especializada, Li não assina nenhum contrato.”

Esta foi a única referência jurídica que encontrei sobre Li. Espero que esta afirmação augure um futuro brilhante a todos os peritos em leis.

3 Abr 2018

Acordo de extradição

[dropcap style=’circle’] N [/dropcap] o dia 17 Fevereiro, a jovem Poon Hiu-wing, de 20 anos de idade, foi assassinada em Taiwan. O suspeito do homicídio é o namorado, Chan Tong-kai, de 19 anos, antigo estudante do Community College de Hong Kong, pertencente à Universidade Politécnica.

Os jornais anunciaram que o casal tinha viajado para Taiwan no dia 8 de Fevereiro, mas que Chan tinha regressado sozinho a Hong Kong no dia 17. Os procuradores de Taiwan afirmaram que Poon foi estrangulada no Hotel Purple Garden, na sequência de uma discussão com o namorado. Suspeita-se que Chan tenha colocado o corpo dentro de uma mala e que o tenha feito sair do hotel. No registo das câmaras de vigilância, pode ver-se o jovem a sair do hotel no dia 17, transportando uma mala pesada. A polícia de Taiwan acredita que o cadáver de Poon estava dentro da mala.

Até ao momento ainda não foi possível apurar o motivo do crime, no entanto correm rumores de que a jovem estaria grávida de um outro homem.

O cadáver de Poon foi descoberto em Taipei, perto da estação de Zhuwei. Esta descoberta deu-se no mesmo dia em que Chan foi preso em Hong Kong por furto.

Chan tinha sido acusado de furto e de posse de bens roubados. Foi acusado de ter subtraído o cartão bancário de Poon, uma câmara, o telemóvel e 20.000 Taiwan dólares. Foi ainda acusado de ter feito dois levantamentos da conta de Poon nos finais de Fevereiro, em caixas automáticas de Hong Kong.

Este caso levanta um problema legal. Como o homicídio aconteceu em Taiwan, estará sob a alçada da jurisdição local e é lá que o julgamento deverá ter lugar. No entanto, o suspeito está em Hong Kong. Como Hong Kong e Taiwan não celebraram um acordo de extradição, não parece provável que venha a sair. Desta forma, poderá nunca vir a ser julgado por este crime.

Hong Kong assinou com diversos países e regiões 29 tratados de assistência legal mutua e 19 acordos de detenção de fugitivos. Taiwan não faz parte desta lista. Sem acordo de extradição, o suspeito pode escapar ao castigo. Como o crime aconteceu em Taiwan, os Tribunais de Hong Kong não têm competência para o julgar. No entanto, o caso seria tratado de forma diferente se parte dos actos criminosos tivessem ocorrido em Hong Kong. Se, por exemplo, se tivesse tratado de um crime premeditado, e o suspeito tivesse comprado em Hong Kong instrumentos para o cometer, estaríamos perante outro cenário. Pela Lei dos Procedimentos Criminais, o Tribunal local só pode actuar se parte do acto criminoso tiver ocorrido na região. Desta forma, a menos que a polícia de Hong Kong encontre provas de que o suspeito cometeu parte do acto criminoso em Hong Kong, o Tribunal local nada poderá fazer. Se o suspeito não voltar a Taiwan, nunca mais poderá ser responsabilizado pelo seu crime.

Sabe-se pelos jornais que a polícia de Taiwan pediu aos colegas de Hong Kong mais provas para o processo. Entre elas encontra-se a gravação do depoimento feito na esquadra local. Espera-se que estes elementos possam ajudar a polícia de Taiwan a determinar mais factos relevantes.

A gravação dos depoimentos é uma forma de provar que as declarações foram obtidas de forma legal, sem recurso a métodos coercivos.

No entanto, deste depoimento não é suficiente para acusar o suspeito de homicídio em Hong Kong. Por seu lado a polícia de Taiwan está impotente devido à não comparência do suspeito.

Mas talvez possa existir uma solução para o problema. Mesmo sem o acordo de extradição, o Governo de Taiwan pode emitir uma carta de solicitação. Quando a solicitação der entrada, o Governo de Hong Kong pode preparar uma proposta de lei excepcional e pedir a aprovação do Conselho Legislativo. Se a proposta for aprovada passa a lei. Nessa altura, poderá ser emitido um mandato de captura e a polícia poderá prendê-lo e entregá-lo ao Governo de Taiwan. Mas este tipo de acordo só será válido para esta situação específica. Se vier a acontecer, será a primeira vez que o Governo de Hong Kong opta por esta solução. Assim, a longo prazo, é vital que se considere o acordo de extradição.

Como já mencionámos, desconhecem-se os motivos que levaram ao homicídio. Mas, pelo que já sabemos, o suspeito parece ter agido com bastante sangue frio. Após estrangular a vítima, colocou o cadáver numa mala, saiu do hotel, apanhou o comboio e largou o corpo no campo. Fez tudo sozinho, aparentemente sem medo e sem remorsos. Será que desconhece a importância da vida? Será que ainda um dia se virá a arrepender? É importante saber a resposta a estas perguntas para compreender os seus motivos e a sua forma de pensar e poder julgá-lo de forma justa.

À semelhança de Hong Kong, também Macau não tem acordo de extradição com Taiwan. Se acontecer algo de género em Macau, o que deveremos fazer? A experiência de Hong Kong é um bom exemplo para nos prepararmos para o pior.

 

27 Mar 2018

Mediatismos no Tribunal

[dropcap style=’circle’] O [/dropcap] antigo Chefe do Executivo de Hong Kong, Donald Tsang Yam-kuen, foi acusado de ter aceitado da Wave Media a quantia de 3,8 milhões de HKD (487.000 USD) para remodelar uma penthouse na China. Em paga do favor, Donald Tsang ter-se-ia mostrado “favorável” à concessão da licença de emissão para a operadora de Rádio, no período em que exercia funções como Presidente do Conselho Executivo. Bill Wong Cho-bau, o maior accionista daquela operadora, era proprietário da penthouse e pagou as obras de remodelação. O caso foi apresentado perante um júri no Supremo Tribunal. Presidiu o juiz Andrew Chan Hing-wai. Como no final não foi possível que 6 dos 8 jurados concordassem com a acusação, Donald Tsang saiu em liberdade.

 

No entanto, a apreciação final apresentada por escrito pelo juiz Andrew Chan incluía muitos comentários sobre o caso. Se ainda estiverem recordados das notícias que saíram durante o julgamento, um dos jurados, então referido como Mr. Q, perseguiu e chegou à fala como uma famosa estrela mediática, que se tinha deslocado ao Tribunal como apoiante de Donald Tsang. Mr. Q era um fã de longa data desta celebridade, pelo que a interpelou e fizeram-se fotografar juntos. O procurador separou imediatamente Mr. Q do resto dos jurados e reportou o caso ao juiz. Temendo uma possível parcialidade do jurado, o juiz afastou-o do júri.

No parágrafo 32 da sua apreciação, o juiz declara,

 

“…… Mr. X (a celebridade) foi introduzido no Tribunal por um elemento de uma empresa de relações públicas, ao contrário dos cidadãos normais que tiveram de esperar na fila para entrarem.  Quando entrou sentou-se na área reservada à família e aos amigos do réu …”

 

Nos parágrafos 36, 38 e 39, o juiz refere,

 

“O processo que levou ao afastamento de Mr. Q, fez-me perceber pela primeira vez que uma empresa de relações públicas e consultoria, tinha sido envolvida neste julgamento. De facto, eles estiveram constantemente presentes, dentro e fora do Tribunal, ao longo do primeiro julgamento e também do segundo, mas na altura eu não tinha tomado consciência das suas funções, já que todos os cidadãos têm direito a assistir às audiências.”

 

“A família e os amigos do réu têm todo o direito de estar presentes no julgamento, para observarem os trabalhos e para o apoiarem. O que não é permitido de forma alguma, a estas ou a quaisquer outras pessoas, é tentar exercer influência sobre membros do júri. Interferir com o júri é subestimar os alicerces do nosso sistema jurídico.”

 

“Antes do início do primeiro e do segundo julgamento, o Réu, através dos seus advogados, pediu o consentimento do tribunal para reservar lugares para os seus amigos e familiares. O pedido foi deferido.  Ao longo do segundo julgamento, especialmente durante a parte final, antigos colegas do Réu, como, os seus antigos Secretário das Finanças e da Justiça, antigos Conselheiros do Partido Democrata, Conselheiros em funções da Aliança Democrática para o Melhoramento e Progresso de Hong Kong, e proeminentes figuras religiosas, estiveram presentes no Tribunal em diferentes ocasiões, introduzidos pela empresa de relações públicas e consultoria, e tomaram assento na área reservada, à semelhança de Mr X.  O objectivo destas presenças era, sem dúvida, mostrar ao júri que o Réu era uma pessoa de bem, apoiado pelas figuras mais destacadas da sociedade.”

 

A “empresa de relações públicas e consultoria” mencionada pelo juiz é normalmente uma empresa ou uma pessoa singular que trabalha a favor da boa imagem do réu.

 

O júri deve ouvir todos os testemunhos que são dados no Tribunal e analisar todas as provas. Estas provas são apreciadas pela Acusação e pela Defesa. Depois de todas as provas terem sido aceites e examinadas, são submetidas à apreciação do júri para que seja emitido um veredicto de inocência ou de culpa.

 

No julgamento de Donald Tsang estiveram presentes muitas celebridades, que se sentaram na área exclusivamente reservada a amigos e familiares do réu, de forma a que todos os jurados os pudessem ver distintamente. Existe a possibilidade de que a presença destas personalidades possa ter influenciado o júri a acreditar na inocência do réu; neste cenário, a hipótese de o réu ter cometido um crime será baixa e, portanto, não é culpado.

 

E porque é que os jurados se deixam afectar por estas disposições? Porque são todos pessoas comuns. Qualquer pessoa que tenha completado o ensino secundário e tenha mais de 21 anos pode integrar um júri. Não são escolhidos entre os famosos, e não podem ser especialistas em leis. Os jurados podem ser facilmente influenciados por estes cenários. Se isto for possível, então pode ser também possível que, perante uma situação deste género, a decisão do júri, ao invés de ser tomada a partir das provas apresentadas, possa partir de factores exteriores ao processo. Se for o caso, o estado de direito está a ser respeitado? Se o estado de direito não for respeitado, a população vai continuar a confiar no sistema jurídico? O Tribunal é um espaço aberto a todos os cidadãos. Em Hong Kong, as pessoas são livres de entrar e de sair de uma sala de audiências, e a presença de pessoas famosas não vai contra a lei. Mas a presença de celebridades pode afectar a decisão do júri e, desta forma, afectar o grau de confiança que a população deposita no nosso sistema jurídico, e assim pode ser encarada como um pouco “imoral”.

 

É preciso contrabalançar os interesses de ambas as partes e ter em consideração o estatuto social de Donald Tsang. Donald Tsang foi Chefe do Executivo de Hong Kong, a maior parte dos seus amigos são pessoas de nomeada. A sua presença em Tribunal pode ser apenas uma forma de lhe demonstrarem o seu apoio. Se assim for, o objectivo não será influenciar o júri, mas sim apoiar um amigo.

 

Mas agora façamos uma visita ao website dos Tribunais de Hong Kong. Na página “Sala de Audiência Tecnológica”, IMAGEM – PROCEDIMENTOS JURÍDICOS E SISTEMAS DE TRANSMISSÃO”, pode ler-se,

 

A Sala de Audiências Tecnológica está equipada com um Sistema de Transmissão para contemplar situações em que o público não cabe todo no Tribunal.

 

Se o juiz assim o desejar, a sala de espera contígua à sala de Audiências Tecnológica pode ser imediatamente convertida numa extensão do Tribunal.

 

Assim que o sistema de transmissão for activado, quem está sentado no exterior pode assistir à sessão através de ecrãs LCD.”

 

Se quisermos evitar o efeito potencialmente pernicioso da presença de celebridades na sala de audiências, poderemos reservar os lugares na sala apenas para familiares e amigos chegados, ficando os VIPs acomodados na sala exterior, onde podem assistir à sessão através dos ecrãs colocados para o efeito.

Macau implementa o sistema jurídico continental e, por isso, os julgamentos dispensam a presença de um júri. O juiz é o único responsável pelas sentenças. A decisão do juiz é a voz da lei, e não a de pessoas comuns. A vantagem é óbvia.

20 Mar 2018

Orçamento de Hong Kong para 2018

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] 28 de Fevereiro o Secretário das Finanças de Hong Kong, Paul Chan, apresentou a sua primeira proposta de orçamento no Conselho Legislativo. No ponto 5 da proposta pode ler-se:

“As iniciativas propostas neste Orçamento são orientadas por três objectivos principais:

(1) Diversificar a economia: é necessário diversificar a economia para criar riqueza em Hong Kong e para permitir que os jovens tenham mais e melhores oportunidades.

(2) Investir no futuro: o surto de gripe deste Inverno veio mais uma vez lembrar-nos da necessidade premente de melhorar o serviço de saúde; uma população envelhecida coloca desafios que teremos de ultrapassar através da disponibilização de recursos e do planeamento; devemos também melhorar o ambiente e tornar Hong Kong uma cidade inteligente, onde seja agradável viver e trabalhar.

  • Cuidar e partilhar: as crianças e os jovens deverão receber mais atenção, protecção e oportunidades; as famílias da classe média devem ser aliviadas do peso dos impostos e os menos privilegiados deverão receber mais apoios. Além disso, uma vida preenchida necessita, não só de condições materiais, mas também de enriquecimento intelectual e espiritual.”

Não restam dúvidas de que este Orçamento reflecte preocupações sociais. Mérito de quem o fez.

A receita do Governo merece uma discussão mais alargada. Em 2016 /17, o Governo arrecadou $6.045 mil milhões, maioritariamente originários de seis procedências. Impostos sobre actividade económica ($1.551 mil milhões), impostos salariais ($148), imposto de selo ($1,000), retorno de investimento ($398), rendimento sobre leilões de terrenos ($1.210), outros ($1.338). A despesa do Governo montou aos $4.065 mil milhões. A principal razão do saldo positivo foi a receita proveniente dos leilões de terrenos, que atingiu os $1.210 mil milhões, excedendo as expectativas.

O saldo positivo nas contas governamentais, permitiu que este ano se possa baixar os impostos, conforme foi anunciado na proposta de Orçamento. Como a taxação sobre os salários está sujeita a diversos escalões é difícil dar um número certo que ilustre a diminuição dos impostos. De qualquer forma, as duas fontes de receita mais estáveis são os impostos sobre a actividade económica e sobre os salários. As receitas originárias dos leilões de terrenos e do imposto de selo dependem completamente da flutuação do mercado imobiliário. Os rendimentos do investimento dependem sobretudo da economia mundial. A partir desta análise conclui-se que só 28% das receitas do Governo de Hong Kong são estáveis, 72% são flutuantes e altamente dependentes de factores externos. Olhando nesta perspectiva, será que a redução de impostos é um bem a longo prazo?

Olhando para o censo de 2013, reparamos que a população entre os 45-54 anos, representava 17.7% do total. O número de homens nesta faixa etária era de 587.900, e o número de mulheres ascendia aos 681.700. As outras faixas etárias apareciam representadas da seguinte forma:

 

Grupo etário % da população homens mulheres
0-14 11.0% 408.000 382.600
15-24 11.7% 424.500 417.900
25-34 15.2% 454.900 639.700
35-44 15.9% 471.500 671.800

A diminuição da população significa a diminuição da força de trabalho, logo a diminuição da receita do Governo em impostos salariais. Ninguém tem vontade de pagar mais impostos. A redução de impostos faz toda a gente feliz. No entanto, estes números mostram a realidade daqui a 20 anos. No futuro, as receitas provenientes dos leilões de terrenos e do imposto de selo continuarão a ser altas, a população e a força de trabalho continuarão baixas e as receitas do Governo vão ressentir-se.

Para além disso, os lucros provenientes dos leilões de terrenos representam aumento de receitas, mas também representam aumento dos preços da habitação. A venda dos terrenos por preços elevados inflaciona o preço das casas. Comprar um apartamento em Hong Kong é, como sabemos, um verdadeiro pesadelo.

A instabilidade das receitas leva a que o Governo de Hong Kong tenha falhado na implementação de algumas políticas necessárias, como o plano de reformas e um serviço de saúde acessível. Se o Governo não conseguir resolver os problemas levantados pelos cuidados de saúde, habitação e reformas, o mal-estar acaba por se instalar.

Macau tem uma situação melhor do que a de Hong Kong porque as receitas do jogo são sempre estáveis. A diminuição da população revela-se menos problemática podendo implementar-se com mais facilidade medidas de protecção social, como a criação de um fundo de garantia.

13 Mar 2018

Olho por olho e ficamos todos cegos

[dropcap style=’circle’] R [/dropcap] ecentemente, ficámos a saber pelos jornais que, nos EUA, um homem tinha sido preso por tentar atacar o agressor sexual das suas duas filhas, o clínico do centro de medicina desportiva da Universidade de Michigan, Larry Nassar. O caso ocorreu durante uma audiência, que teve lugar no início de Fevereiro.

O pai das jovens, Randal Margraves, atacou o réu após as filhas terem prestado depoimento. No Tribunal, Margraves encontrava-se de pé, junto à mesa onde estavam sentados os seus dois advogados. Foi então que Margraves dirigiu um pedido à juíza Janice Cunningham,

“Por favor, conceda-me cinco minutos a sós com o filho da mãe.”

A juíza recusou o pedido, como é natural.

“Então por favor, apenas um minuto.”

A magistrada voltou a recusar.

Nessa altura, Margraves disparou em direcção a Nassar, com o fito de o morder, mas acabou por ser impedido pelos funcionários do Tribunal.

A audiência foi adiada por 30 minutos. Quando retomou, Margraves pediu desculpa. Foi detido por breves momentos, mas o juiz que analisou o caso recusou-se a prende-lo por ofensas ao Tribunal.

Margraves contou ao juiz,

“Não estou aqui para me sobrepor às minhas filhas. Estou aqui para as ajudar a ultrapassar esta situação horrível.”

O juiz retorquiu,

“Não posso tolerar nem pactuar com atitudes vigilantes ou com comportamentos vingativos. No entanto, devido às circunstâncias, este Tribunal não lhe aplicará qualquer castigo.”

“Ninguém está a desculpá-lo. Contudo, existem procedimentos legais, e o sistema judicial faz o que é suposto fazer.”

Dois dias mais tarde, o procurador Douglas Lloyd declarou que Nassar não pretendia processar Margraves.

O comportamento de Margraves no Tribunal é compreensível em face do que aconteceu às filhas. Mas qualquer agressão é inaceitável, sobretudo se ocorrer num Tribunal. Se começarmos a clamar por vingança abrimos as portas a situações incontroláveis. Foi o que a juíza Cunningham quis dizer quando referiu “olho por olho, e ficamos todos cegos”. A vingança é obviamente inaceitável. Para punir o crime existem os Tribunais e nunca devemos ir além disso. A justiça nunca pode passar por vinganças pessoais. O propósito dos nossos sistemas jurídicos é a aplicação de pena pelo Tribunal – para promover a ordem, o direito e impedir a vingança. A vingança só pode gerar o caos.

Mas para impedir comportamentos vingativos, é necessário que exista um sistema jurídico de total confiança. O sistema deve proporcionar justiça às vítimas. Será que neste caso o castigo aplicado a Nassar foi justo? É difícil dizer, até porque o castigo nunca é proporcional ao sofrimento das vítimas.

Se o caso for muito grave, é ainda mais difícil determinar o que é “proporcional”. Em 2005, Chun-kwok, um polícia de Hong Kong patrulhava as ruas sozinho e mandou parar um suspeito, de seu nome Chi-Yung Liu. Nessa altura, o suspeito esfaqueou o polícia no pescoço. Devido à hemorragia o agente ficou em coma, porque o cérebro deixou de ser oxigenado e acabou por ficar em estado vegetativo. Os médicos afirmaram que será praticamente impossível haver uma recuperação.

Como o suspeito se entregou à polícia só foi condenado a 10 anos de prisão. Ao fim de 5 anos e 9 meses, saiu em liberdade condicional, por bom comportamento.

Por ter sido ferido no cumprimento do dever, o Governo da RAEHK foi obrigado a pagar uma indemnização a Chun-kwok, que se traduziu nos seguintes termos:

a. Pagamento de salário e pensão mensais
b. Cobrir todas as despesas médicas
c. Pagamento de uma indemnização avultada à esposa do agente
d. Assumir os encargos do curso superior que a filha de Chun fez na Austrália.

Para além disto, a Força Policial de Hong Kong realojou às suas custas a família de Chun-kwok.

Neste caso o castigo aplicado ao agressor pode ser comparado ao sofrimento causado à vítima? Ter-se-á feito justiça? Terão as avultadas quantias de dinheiro compensado a família por, na prática, ter perdido um ente querido? Mais uma vez, são questões de difícil resposta.

Mas, sejam quais forem as nossas opiniões, nunca podemos aceitar que se faça justiça pelas próprias mãos. O castigo aplicado ao agressor deverá ser proporcional aos danos que causou. Para bem de todos, a justiça nunca pode passar as portas do Tribunal.

6 Mar 2018

O autocarro da tragédia

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ntes do mais, Feliz Ano Novo a todos os meus leitores. Desejo-vos tudo de bom no Ano do Cão. Esperava-se que nesta época todos os chineses estivessem felizes, a celebrar na companhia das suas famílias. No entanto, isso não foi verdade para todos, porque no dia 10 de Fevereiro houve um terrível acidente com um autocarro que provocou 19 vítimas mortais e 67 feridos.

Por volta das 6:15h da manhã, um autocarro da KMB, da carreira 872, vinha de Sha Tin com destino a Tai Po. Alegadamente o condutor perdeu o controlo do veículo numa curva perto de Tai Po Mei, o autocarro despistou-se e capotou sobre um dos lados. Os passageiros afirmaram que o condutor vinha a descer a rua a toda a velocidade. Aparentemente o motorista tinha sido informado que estava a circular com atraso.

“Você está 10 minutos atrasado” terá dito um passageiro ao condutor.

“Ele estava irritado porque algumas pessoas reclamaram do atraso e nessa altura começou a conduzir como se fosse a pilotar um avião.”

Outro passageiro afirmou: “Ele estava a conduzir muito depressa, demasiado depressa para quem vem numa descida.”

O motorista foi detido por condução perigosa, causadora da morte de vários passageiros e de ferimentos graves em muitos outros e aguarda o desenrolar das investigações.

Após a ocorrência deste acidente, o mais mortal dos últimos 15 anos envolvendo um autocarro, a Chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam Cheng Yuet-ngor, cancelou a agenda que tinha programada para o segundo dia do Novo Ano Lunar.

O gerente da KMB, Godwin So Wai-kei, declarou que o motorista, de 30 anos de idade, tinha ingressado na companhia em 2014. Em Setembro passou a trabalhar a tempo parcial. O condutor conhecia bem esta carreira, que só se efectua em dias feriados, e tinha realizado este percurso há três semanas atrás. O condutor tinha efectuado turnos de sete horas nos últimos quatro dias e, no Sábado, tinha um turno de quatro horas.

O administrador da KMB, Roger Lee Chak-cheong, declarou que 560 dos 8300 motoristas ao serviço da companhia trabalham a tempo parcial. Destes, 80 por cento têm mais de 60 anos e foram readmitidos após a reforma.

“Os motoristas a tempo parcial, desempenham um papel importante nas companhias rodoviárias, especialmente durante as horas de ponta, porque ajudam a colmatar as necessidades extra.”

“[Mas] aos olhos da opinião pública … os motoristas a tempo parcial podem causar alguma desconfiança. Nesta altura, esperamos poder proporcionar aos passageiros condições que os façam sentir-se mais confiantes.”

Estas declarações levantam outra questão. Nos dias que se seguiram ao acidente, vários representantes do sindicato dos motoristas criticaram a KMB por não monitorizar mais de perto o trabalho dos funcionários temporários. Estas declarações dão resposta às causas do acidente, às preocupações dos funcionários e do público? Ninguém sabe ao certo, mas a KMB suspendeu temporariamente as escalas de 209 motoristas temporários, bem como a contratação de novos condutores a tempo parcial, para atenuar as inquietações do público.

No entanto, este caso não termina aqui. Neste momento, existe um movimento que reclama melhores salários e melhores condições para os motoristas. As negociações com a administração da KMB não deram bom resultado e ficou marcada uma greve para os dias 24 e 25 deste mês. Mas será que existe uma relação directa entre a greve e o acidente? Por enquanto, ninguém sabe.

Seja como for, as declarações dos motoristas efectivos sobre a necessidade de monitorizar mais de perto o trabalho dos seus colegas temporários, indicam que se deverá dar mais atenção a este aspecto.

Existem vantagens óbvias no recrutamento de pessoal a tempo parcial em Hong Kong. A Lei do Trabalho estabelece claramente que os trabalhadores a tempo parcial usufruirão apenas dos benefícios definidos no contrato. Ou seja, os benefícios estatutários estabelecidos na lei não se aplicam a estes trabalhadores. Desde que o empregador pague o salário mínimo e faça as contribuições para o fundo social não se levantam mais questões. A empresa não terá de garantir férias, nem licenças de maternidade, nem outros benefícios, ao contrário do que é obrigada a fazer com os trabalhadores efectivos. Os custos operacionais com os trabalhadores efectivos são muito superiores àqueles que a empresa suporta com os trabalhadores temporários.

Mas, se por um lado os trabalhadores a tempo parcial ajudam a empresa a reduzir custos, por outro lado levantam alguns problemas. A falta de compromisso da empresa para com o trabalhador gera necessariamente falta de empenho, não existe incentivo para uma dedicação ao trabalho. No final acabam sempre no desemprego.

Além disso, é natural que os trabalhadores temporários tenham prioridade na escolha dos horários. Se não houver horários disponíveis os temporários não trabalham. Mas como a empresa não quer que isso aconteça, a maior parte das vezes é dada aos temporários a prioridade na escolha das escalas de serviço. Numa empresa em que o trabalho tem de ser escalonado, os efectivos devem dar prioridade aos temporários na escolha dos horários. Mas será que a escala preferencial é a melhor escala? A resposta fica em aberto.

Ao contrário de Macau, em Hong Kong os horários nocturnos não são mais bem remunerados. Quem trabalha à noite recebe o mesmo do que quem trabalha de dia. Agora imagine que é um trabalhador efectivo. Nestas condições, permitia que o trabalhador temporário trabalhasse de dia e deixasse a noite para si? Estes problemas existem em todas as empresas com trabalho escalonado e trabalhadores efectivos e temporários. Não são exclusivos da KMB. De qualquer forma vale a pena discutir estas questões, até porque, recentemente, o Governo de Macau anunciou que pretende criar uma nova legislação para regular as relações entre empregadores e trabalhadores a tempo parcial. Segue-se a transcrição do parágrafo 2.2 da proposta:

“2.2. Breve apresentação do regime de trabalho a tempo parcial

Assim como foi referido atrás, quando foi elaborada a Lei n.º 7/2008 (Lei das relações de trabalho), a 3ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, após discussão, concordou que, dada a natureza das relações de trabalho a tempo parcial e a modalidade da sua prestação de trabalho, seria necessário regulamentar esse tipo de relações de trabalho segundo um regime diferente, por isso a “Lei das relações de trabalho” estipula que o trabalho a tempo parcial é regulado por legislação especial. Nessa altura, a 3ª Comissão expressou que o trabalho a tempo parcial só era diferente em termos da duração de trabalho, e que essa diferença deveria ser contemplada por lei, através do princípio da proporcionalidade e da equiparação de conteúdos funcionais.”

Este parágrafo demonstra claramente que o trabalho a tempo parcial só se deverá diferenciar pela duração e que todos os benefícios deverão ser proporcionais a quem trabalha a tempo inteiro. A ideia é boa. Mas será que pode vir a resolver todos os problemas levantados pelo trabalho tempo parcial, necessariamente mais precário? Além disso se os trabalhadores efectivos fizerem horas extraordinárias, como é que serão reguladas? As “horas extraordinárias” equivalerão a trabalho “a tempo parcial”?

Esperemos que a nova legislação venha dar resposta a estas dúvidas.

 

27 Fev 2018

Exame de mandarim II

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o meu artigo, publicado a 30 de Janeiro, analisei a situação dos estudantes da Universidade Baptista de Hong Kong que, devido à alta taxa de insucesso no exame de mandarim (70% de reprovações) ocuparam parte das instalações da Universidade. Este exame é condição necessária para a obtenção do grau de Bacharel, os estudantes têm de comprovar os seus conhecimentos de mandarim.

A prova foi implementada há cerca de 10 anos atrás. Numa votação realizada em Abril de 2016, 90% dos estudantes manifestaram-se contra a realização deste exame como etapa necessária à graduação. Desde essa altura, a Universidade entrou em negociações com os estudantes e, finalmente, em Novembro de 2017 a prova regressou. Durante as várias reuniões que tiveram lugar antes da reactivação do exame, a Universidade garantiu que iria ser uma prova simples, os estudantes precisavam apenas de demonstrar que possuíam as competências para comunicarem em mandarim. Era esperada uma taxa de 90% de sucesso no exame. No entanto, verificou-se o contrário e só passaram 30% dos alunos. A causa do fracasso dos estudantes terá sido a seguinte:

“Você fala mandarim fluentemente, mas o tom não corresponde ao que era pedido na pergunta, por isso não pode passar”.

Este tipo de razões causou um grande descontentamento nos estudantes e deu origem à ocupação das instalações. O género de linguagem com que o presidente da Associação de Estudantes, Lau Tsz-kei, se dirigiu aos professores provocou muitas críticas, porque revelava falta de respeito pelos docentes. Foram também acusados de ter posto em risco a segurança dos funcionários. A Universidade reagiu de imediato e Lau Tsz-kei, Andrew Chan Lok-hang e outros colegas foram suspensos a 24 de Janeiro último. No dia 30, todos eles apresentaram formalmente desculpa aos professores do Centro de Línguas. A 1 de Fevereiro, na sequência do pedido de desculpas, a Universidade anulou a ordem de suspensão dos estudantes. No entanto, dois destes alunos foram sujeitos a um processo disciplinar, que terá lugar no próximo dia 15.

Este incidente deu origem a grandes controvérsias. Em primeiro lugar, poucos dias após a ocupação do Centro de Línguas, apareceu escrito nas paredes “Mandarim, Não”. Os estudantes manifestaram-se para dar a conhecer os motivos do seu descontentamento. Os professores sentiam-se numa posição desconfortável. Mais de 100 docentes escreveram uma carta ao Reitor a testemunhar incómodo devido ao comportamento dos estudantes. Os que estiveram presentes no Centro de Línguas durante a ocupação, afirmaram que a sua segurança esteve em risco. Cheng Chung Tai, membro do Conselho Legislativo, escreveu à Comissão para a Igualdade de Oportunidades no dia 17 de Janeiro, salientando que as políticas adoptadas no exame de graduação poderiam estar em colisão com a lei contra a discriminação, porque os estudantes de Hong Kong são obrigados a estudar mandarim e os estudantes do continente não são obrigados a estudar cantonês. Além disso, os estudantes estrangeiros tanto podem aprender mandarim como cantonês.

A partir destes exemplos, podemos verificar que os estudantes lutaram para defender os seus interesses. Também lhes tinha sido dada uma expectativa de 90% de resultados positivos. Como esta percentagem baixou dramaticamente para os 30%, sentiram-se defraudados pela Universidade. A revolta e a frustração estiveram na origem da ocupação do Centro de Línguas. Mas os comportamentos excessivos provocaram criticas por parte da sociedade.

Será o mandarim uma língua difícil de aprender? A resposta será “provavelmente, não”, sobretudo, para os estudantes de Hong Kong. Eles já a escrevem, da mesma forma que os estudantes do continente. A questão aqui é saber pronunciá-la. Não parece ser muito difícil. A revolta destes jovens deve ter sido provocada pelo grande número de reprovações.

Antes de se fazer o exame, ninguém pode saber ao certo qual vai ser a taxa de sucesso. Apesar disso a Universidade apontou para uma taxa de 90% de êxito. Mas era só uma previsão. Com apenas 30% dos alunos a passarem o exame, é necessário analisar as razões deste fracasso e decidir o que fazer a seguir. O descontentamento dos estudantes é compreensível, mas não justifica a ocupação das instalações. A ocupação perturbou a actividade do Centro e afectou outros estudantes que não estavam envolvidos nesta prova, o que não deixou de ser injusto.

Em segundo lugar, estaremos perante um logro? Será que a Universidade quebrou uma promessa? Ou será que os estudantes falam mal mandarim? Até ao momento não existem respostas a estas perguntas. O melhor a fazer é procurar um entendimento entre a Universidade e os alunos. Os alunos terão de encontrar respostas a estas interrogações e decidir as medidas a tomar. Mesmo que os estudantes percebam que houve algum logro, devem tentar compreender os motivos e procurar um entendimento com a Universidade. Todos os problemas que ocorreram ficaram a dever-se à falta de comunicação e de negociação.

E porque é que os estudantes não negociaram com a Universidade? Talvez porque hoje em dia os jovens são demasiados auto-centrados. A baixa taxa de natalidade em Hong Kong leva as escolas a tratarem os estudantes com mil cuidados. Desde a escola primária, passando pela secundária e, finalmente, pela Universidade, os estudantes são sempre um trunfo. Usam-nos para receber benefícios. Se alguma coisa lhes desagradar, convencem-se que estão a ser maltratados. É natural que existam comportamentos menos razoáveis quando as pessoas acreditam que estão a ser maltratadas.

Mas este caso já assumiu contornos políticos. A carta que Cheng Chung Tai dirigiu à Comissão para a Igualdade de Oportunidades, apontando para uma possível infracção à lei contra a discriminação, pode causar problemas. Uma questão que poderia ter sido resolvida internamente está a complicar-se. Esta queixa não é bem-vinda.

O Ano Novo Chinês está a chegar. Desejo a todos os meus leitores o melhor para este Ano do Cão. Feliz Ano Novo.

13 Fev 2018

Exame de mandarim

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s estudantes Lau Tsz-kei e Andrew Chan Lok-hang foram suspensos na sequência do envolvimento nos protestos contra a obrigação do exame de mandarim. Os incidentes ocorreram no campus da Baptist University, Hong Kong. Inicialmente estiveram envolvidos 30 alunos nos protestos. Os estudantes começaram por abordar os funcionários do Centro de Línguas da Universidade. Um vídeo clip mostra Lau a falar de forma rude e incorrecta.

Este exame é obrigatório há muito tempo e é condição necessária à formatura. No entanto, alguns alunos alegam que o exame é bastante difícil e requerem a sua isenção, se puderem provar que o seu domínio do mandarim é suficientemente bom.

Lau e Andrew eram dirigentes activos de um grupo de apoio à língua cantonesa na Universidade. Lau afirma que nem ele, nem nenhum dos seus colegas, ameaçou qualquer funcionário, no entanto admite que os manifestantes estavam um pouco “acalorados”. “Só queríamos dialogar e colocar dúvidas. Não penso que isto fosse uma ameaça à segurança destas pessoas. Na realidade, eles podiam entrar e sair à vontade do gabinete. Por acaso até os ajudamos a recolher algumas cartas … não houve qualquer contacto físico.”

Mas Roland Chin Tai-hong, Presidente da Universidade, não partilha desta opinião e acredita que os comportamentos dos estudantes puseram em causa a segurança dos funcionários. A suspensão temporária, independente da conclusão do processo disciplinar, foi necessária. “Investigações preliminares determinaram que, nesse dia, a conduta dos estudantes fez com que os professores se sentissem ameaçados e insultados. Este comportamento vai contra o código de conduta do aluno. Todos os estudantes, funcionários e professores se sentiram insultados com este incidente.”

Roland Chin, adiantou que, a partir deste pressuposto, o director dos assuntos estudantis, Gordon Tang Yu-nam, recomendou de imediato a suspensão dos dois alunos. “Ficam impedidos de assistir a aulas e comparecer a exames, mas podem entrar no campus.”

Os estudantes reagiram mal e apelidaram o Presidente da Universidade de “insensível”. Lau declarou: “Estou chocado. Normalmente estas decisões são tomadas depois da conclusão da investigação.”

No seguimento da divulgação deste caso na imprensa, Andrew recebeu mais de 100 mensagens com ameaças de espancamento e morte no Facebook. Acabou por decidir suspender o seu internato de um ano no Hospital de Medicina Chinesa da Província de Guangdong e regressar a Hong Kong, porque o Hospital estava a receber telefonemas com ameaças.

O outro estudante suspenso, Andrew, afirmou: “Continuo a receber inúmeras mensagens com insultos e ameaças e o Presidente não toma quaisquer medidas, só pensa em castigar-nos e não faz nada quanto à nossa segurança.”

Mas o Presidente da Universidade diz que isso não é verdade e que está preocupado com a situação. Afirma que pediu à Escola de Medicina Chinesa que enviasse um professor para acompanhar Andrew no seu regresso a Hong Kong.

Tanto quanto se pode perceber, a maior parte das pessoas condena o comportamento destes estudantes. Só porque não conseguem passar no exame de mandarim, alguns alunos criaram um movimento contra esta prova. Daqui resultaram comportamentos abusivos e, aparentemente, funcionários e professores foram insultados. Os estudantes negam estas alegações e afirmam que ninguém sofreu danos físicos e que é não é aceitável castigar antes da conclusão da investigação.

Mas a que é que se devem estes comportamentos dos estudantes?

Nos anos 90, o Governador de Hong Kong David Wilson alargou o leque de Universidades para combater a saída de estudantes para o estrangeiro. Desde essa altura, existem cada vez mais Universidades de Hong Kong, o que aumenta significativamente a competição entre elas. Os alunos são tratados mais como “clientes” do que como “estudantes”. Diria mesmo que são tratados como “VIPs”. Estão ao dispor serviços de “excelência”, nomeadamente passar o maior número de alunos possível. Um grau elevado de reprovações não é um bom cartão de visita para a Universidade, pode conduzir a um decréscimo de inscrições. Os estudantes apercebem-se desta “condição” e, portanto, esforçam-se pouco. Deixaram de estar concentrados no estudo.

Para além disto, por causa dos preços elevadíssimos da habitação, hoje em dia em Hong Kong a maioria dos casais tem apenas um filho. Os pais concentram todo o seu afecto nessa criança. Quando cresce, pode ser levada a acreditar que é merecedora de toda a atenção deste mundo. Acrescenta ainda uma certa tendência, inclusivamente veiculada através do Conselho Legislativo de Hong Kong, que pode criar nos jovens a ilusão de que têm direito a tudo. Neste enquadramento social, não é de estranhar que os estudantes se sintam à vontade para gritar, protestar e dizer os disparates que quiserem. É também por isto que acham que, se ninguém sair ferido, não fizeram nada de mal.

Tratar os estudantes como VIPs pode dar origem a grandes problemas.

30 Jan 2018

Partilha aduaneira II

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] semana passada falámos sobre a instalação de postos aduaneiros da China continental e de Hong Kong, – responsáveis pelo controlo alfandegário, de imigração e pelos procedimentos de quarentena -, na West Kowloon Station (WKS). Estes postos estarão situados no terminal do troço ferroviário que liga Guangzhou e Shenzhen a Hong Kong e que faz parte da Hong Kong Express Rail Link (XRL). O acordo de partilha aduaneira tem dado muito que falar em Hong Kong.

Ficámos a par dos argumentos apresentados por Li Fei, Sub-Secretário Geral do Comité para a Lei de Bases e Presidente do Comité Permanente do Congresso Nacional Popular (CPCNP). Também acompanhámos as opiniões de Ronny Tong, Conselheiro Sénior e membro do Conselho Executivo, de Eric Cheung Tat-ming responsável pela cadeira de Direito da Universidade de Hong Kong e membro da Ordem dos Advogados e, finalmente, ouvimos Elsie Leung Oi-sie, a primeira Secretária da Justiça após a reunificação de Hong Kong. Hoje continuaremos a analisar este assunto.

O Governo da RAEHK tinha declarado, há algum tempo atrás, que o acordo de partilha aduaneira seria implementado em três fases. A primeira fase passaria pela assinatura por ambas as partes das condições estabelecidas. A segunda fase passaria pela aprovação do Congresso Nacional Popular e, finalmente, a legislatura de Hong Kong criaria por decreto a legislação adequada para implementar a decisão.

A primeira fase concluiu-se dia 18 de Novembro. A segunda a 27 do mesmo mês, dia em que o Congresso Nacional Popular aprovou o acordo. A terceira fase – tornar a decisão parte da lei de Hong Kong – deverá estar concluída ainda este ano. Para essa altura espera-se que haja mais burburinho em redor desta questão.

Maria Tam, membro do Comité da Lei de Bases de Hong Kong (LBHK), afirmou: “A jurisdição de Hong Kong não se deve sobrepor às decisões do Congresso Nacional.”

Estas declarações indicam claramente que o Tribunal de Hong Kong não irá contra as decisões do Congresso.

Maria Tam adianta: “Não podemos ler ou esperar que (a decisão do CPCNP respeitante ao acordo de partilha aduaneira) esteja escrita como as deliberações do Tribunais de Hong Kong.”

Quem tiver acesso ao assento de um julgamento de um dos Tribunais de Hong Kong, pode verificar que são elencadas muitas razões, são referidas muitas leis e são citados muitos precedentes, de forma a apoiar a decisão tomada pelo juiz.

O Professor Johannes Chan Man-mun, antigo Reitor da Faculdade de Direito da Universidade de Hong Kong, afirma que as interpretações da Lei de Bases feitas pelo Congresso Nacional Popular prevalecem sobre os Tribunais locais (ver artigo 158 da LBHK), mas o mesmo não se aplica às decisões tomadas por aquele órgão.

“O CPCNP toma muitas decisões … o princípio ‘um País dois sistemas’ define que as políticas do continente não se aplicam directamente a Hong Kong. Continua a ser uma questão sobre a natureza das decisões do Congresso Nacional.”

Johannes Chan continua: “Num estado de direito, as pessoas ficam desiludidas se as autoridades não conseguirem explicar claramente as bases legais de um projecto que está em curso há oito anos.”

A 30 de Dezembro último, enquanto o debate prosseguia, foi vista pela manhã, na encosta da Kowloon Lion Rock, uma faixa amarela com 30 m de comprimento onde se podia ler “defendamos Hong Kong”. Não se sabe porquê nem quem a colocou. A faixa foi retirada as 11h da manhã do mesmo dia.

O antigo Presidente do Conselho Legislativo de Hong Kong, Jasper Tsang Yok-sing, escreveu na sua coluna, publicada num jornal de língua chinesa, que o acordo de partilha aduaneira não está em conflito com o princípio “um País, dois sistemas”. Mas, se pessoas de responsabilidade continuarem a insistir que este acordo vai contra a Lei de Bases de Hong Kong, só conseguirão fazer diminuir a confiança da população na Lei Básica da cidade.

“A administração irá permitir que os funcionários continentais apliquem as leis nacionais no terminal ferroviário.”

“A Lei Básica não deixa espaço para a implementação do acordo de ‘partilha aduaneira’, o Governo não deve tentar encontrar justificações nas cláusulas da lei, deve sim admitir que esta situação não podia ter sido prevista pelos legisladores há 20 anos atrás. A manter esta posição, vai criar nas pessoas o medo de não continuarem a estar protegidas pela Lei Básica de Hong Kong.”

“O Governo deverá admitir que este acordo é especial e excepcional. As disposições do acordo não contradizem o modelo “um País, dois sistemas” ao abrigo do qual é garantido por Pequim a Hong Kong um alto grau de autonomia.”

Mas, é possível que esta frase de Li Fei elimine de vez as preocupações da sociedade de Hong Kong: “Se está preocupado com a aplicação da lei chinesa na WKS, não apanhe o comboio da Express Rail Link em Hong Kong.”

9 Jan 2018

Partilha aduaneira (Parte I)

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] acordo de partilha aduaneira que permitirá a instalação dos serviços de alfândega, imigração e quarentena, tanto da China continental como de Hong Kong, na West Kowloon Station (WKS), no terminal da linha que une Guangzhou e Shenzhen a Hong Kong (XRL), foi anunciado a 25 de Julho do ano passado. Desde então, este assunto tem dado muito que falar na cidade.

O portal do Governo da RAEHK salienta que “a principal razão que conduziu a este acordo foi a possibilidade de os passageiros fazerem o controlo de entrada e saída no mesmo local, sem mais transtornos. O troço de 26 km da Secção de Hong Kong da XRL, une a cidade à imensa linha nacional chinesa, reduzindo substancialmente o tempo de viagem entre Hong Kong e as principais cidades da China.”. Quem parte, passa logo pelos dois postos fronteiriços na zona de trânsito da West Kowloon Station e, por isso, à entrada na China continental não vai ser submetido a mais nenhum controlo. Por seu lado, quem vem, pode embarcar livremente em qualquer ponto da linha e à chegada faz o controlo de saída e de entrada no mesmo local. Além disso, quem visita Hong Kong não precisa de se preocupar se existe ou não posto fronteiriço na sua estação de embarque.”

Sem o acordo de partilha aduaneira, “os passageiros só podiam embarcar ou sair em estações com serviços de fronteira.” Os inconvenientes eram óbvios.

O Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo aprovou o acordo de partilha aduaneira a 27 de Dezembro de 2017. Li Fei, Vice-Secretário Geral do Congresso e Secretário Geral do Comité para a Lei de Bases, deu uma conferência de imprensa para responder aos críticos que acusam este acordo de infringir o artigo 18 da Lei de Bases de Hong Kong. Li declarou,

“O Artigo 18 aplica-se a residentes de Hong Kong, ao passo que a aplicação das leis nacionais, na secção continental da WKS, é válida para os passageiros dessa zona.”

“É uma situação diferente da que é descrita no artigo 18 sobre a implementação nacional das leis da RAEHK. Aqui não está em causa qualquer infracção ao artigo.”

“A secção fronteiriça continental da WKS está sob a jurisdição do Governo chinês. Os direitos e liberdades conferidos aos residentes de Hong Kong não serão afectados pelo acordo de partilha aduaneira.”

“As decisões do Congresso Nacional do Povo sobre a definição de competências legislativas estão tomadas. Não podem ser questionadas.”

Para além disso, diversos artigos da Lei de Bases de Hong Kong, foram citados para apoiar a legalidade do acordo de partilha aduaneira. Foi o caso do artigo 2, sobre a importância do elevado grau de autonomia; do artigo 7, sobre a importância de administrar o próprio território; dos artigos 22 e 154, sobre a importância de gerir o controlo fronteiriço; e, finalmente, dos artigos 118 e119, sobre a relevância do desenvolvimento, etc.

No entanto, a Hong Kong Bar Association publicou um manifesto a 28 de Dezembro onde declara a ilegalidade deste acordo. A Associação refere que o acordo de partilha aduaneira não é sustentado por nenhuma das disposições da Lei Básica da cidade. Adianta ainda que o Congresso Nacional do Povo aprovou o acordo e declarou-o em conformidade com a lei, sem qualquer base legal. Uma verdade auto-proclamada pelo Congresso.

Ronny Tong, membro da Hong Kong Bar Association, Conselheiro Sénior, e membro do Conselho Executivo, sugeriu que a decisão tomada pelo Congresso Nacional deve ser considerada razão suficiente. Ronny salientou que a lei nacional chinesa deve ser aplicada em todo o território de Hong Kong, e não só em parte dele, como por exemplo em Wanchai. Ronny Tong referiu ainda que os direitos e liberdades dos cidadãos da RAEHK, consagrados no capítulo três da Lei de Bases, não serão infringidos. Tong considera, pois, que a Lei não está a ser posta em causa.

Elsie Leung Oi-sie, a primeira Secretária da Justiça após a reunificação, declarou que, segundo o artigo 67 da Constituição chinesa, o Congresso Nacional tem poder para fazer lei. As suas decisões são lei.

O professor responsável pela cadeira de Direito da Universidade de Hong Kong, Eric Cheung Tat-ming, afirmou que os artigos 118 e 119 estabelecem que o Governo da RAEHK deve proporcionar um enquadramento jurídico e económico que encoraje o investimento, o progresso tecnológico, bem como o desenvolvimento de novas indústrias, e criar políticas que promovam e coordenem o desenvolvimento dos diversos sectores comerciais. Mas,

“Não estamos a discutir o que é preciso fazer para incrementar o desenvolvimento económico de Hong Kong – não é isso que está em causa. A questão é saber se as leis nacionais devem ser implementadas em Hong Kong,”

Eric Cheung adiantou que as bases legais do acordo de partilha aduaneira não estão ainda definitivamente estabelecidas.

Que desenvolvimentos podemos esperar? Continuaremos a analisar esta situação na próxima semana. Até lá, Feliz Ano Novo.

3 Jan 2018

Efeito retroactivo e consulta pública

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo aprovou, a 4 de Novembro último, uma resolução para integrar a Lei Chinesa do Hino Nacional no Anexo III da Lei de Bases de Hong Kong. De acordo com o Artigo 18 desta Lei Básica, a Lei do Hino Nacional será aplicável à Região Administrativa Especial de Hong (RAEHK). A RAEHK tem o dever estatutário de implementar a legislação local adequada, ou seja, uma versão local da Lei do Hino. Este dever está de acordo com a Constituição chinesa e com a legislação local.

Na mesma data, o Congresso Nacional aprovou a introdução de uma Emenda à Lei Criminal Chinesa no Artigo 299. Para além das estipulações originais relativas à utilização da bandeira e do hino nacionais, foram agora identificadas situações em que está interditada a transmissão do hino. A saber:

  1. Alteração maliciosa da música ou da letra
  2. Interpretação do hino de forma distorcida ou depreciativa
  3. Qualquer outra forma de insulto

Se alguma destas situações se verificar, o transgressor será condenado até três anos de prisão efectiva e fica sujeito a controlo ou privação dos seus direitos políticos.

O Gabinete para os Assuntos Constitucionais e do Continente do Governo da RAEHK declarou que durante o processo legislativo, o Governo iria tomar em linha de conta as opiniões dos legisladores e da população.

O projecto de lei é o primeiro passo a dar em qualquer processo legislativo. O projecto começa por ser debatido no Conselho Executivo e, se passar, subirá para discussão à Assembleia Legislativa. Cabe ao Departamento de Justiça a redacção do projecto de lei. O projecto para a criação da versão local da lei do Hino Nacional, deverá estar em consonância com a Lei Nacional.

Este assunto tem dado origem a muitos debates no seio da sociedade de Hong Kong. Um dos temas debatidos tem sido o “efeito retroactivo” desta lei. Se este efeito se verificar, as transgressões ocorridas no período anterior à implementação da lei ficam também sujeitas a sanção.

Por exemplo, toda a gente sabe que em Macau a Lei de protecção dos animais entrou em vigor a 1 de Setembro de 2016. O Artigo 25 estipula que, infligir sofrimento a animais pode implicar uma pena de prisão durante um ano. Esta lei só é aplicável a acções praticadas a partir da data da sua entrada em vigor. Não tem efeitos retroactivos. Desta forma, se alguém tiver incorrido num crime desta natureza, digamos, a 1 de Outubro de 2015, não poderá ser condenado, porque nessa data a lei ainda não existia. Por uma questão de justiça para todos, é habitual as leis não terem efeito retroactivo.

No passado dia 11 de Novembro, Carrie Lam, Chefe do Executivo de Hong Kong, declarou que, de acordo com a prática da RAEHK, as leis não têm por norma efeitos retroactivos, sobretudo no que à lei criminal diz respeito. Estas declarações parecem indicar que em Hong Kong a versão local da Lei do Hino não terá efeitos retroactivos. Espera-se pois que a lei só venha a ter efeito a partir da data da sua implementação.

Mas Carrie Lam também apelou ao respeito pelo hino nacional e condenou qualquer forma de insolência. As suas palavras foram obviamente razoáveis, justas e necessárias.

Outra polémica que envolve esta lei prende-se com a consulta pública. Rita Fan, antiga Presidente do Conselho Legislativo, afirmou que não haveria necessidade de consulta pública porque hoje em dia alguns legisladores discordam sempre dos projectos de lei apresentados pelo Governo. Mesmo que o Governo fizesse uma consulta pública, este tipo de legisladores ia manifestar-se contra a versão local da Lei do Hino.

Antes de um projecto de lei subir ao Conselho Legislativo dá-se conhecimento da sua natureza através de uma consulta pública. Este procedimento está intimamente ligado ao espírito do Estado de Direito. Tem como objectivo notificar a população sobre as matérias legislativas a discutir no plenário. O Hino Nacional é um assunto da maior importância para a sociedade de Hong Kong. Todos os residentes, sem excepção, terão de obedecer à versão local da lei que regula a sua utilização. Como os conteúdos da versão local ainda não foram definidos, a consulta pública chamaria a atenção das pessoas e permitiria que deixassem as suas sugestões. Quanto mais sugestões forem feitas, mais claros serão os conteúdos da lei. Se o primeiro passo da legislação for omitido, estar-se-á a dar uma boa desculpa a alguns legisladores para vetarem a proposta de lei ou para pedirem uma revisão judicial nos Tribunais, alegando procedimentos legislativos incorrectos. Quanto mais tempo demorar a elaboração da versão local da lei, maior será a polémica à sua volta.

A Chefe do Executivo afirmou que em Hong Kong as leis não têm por norma efeito retroactivo. Como tal, esperamos que a versão local desta lei não venha a ser excepção. A consulta pública poderá evitar uma revisão judicial nos Tribunais por procedimento legislativo inadequado.

 

12 Dez 2017

As agruras do negócio

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] publicação “Doing Business do Banco Mundial para 2018” (WB report) foi lançada a 30 de Outubro pelo Grupo Banco Mundial. É o 15º ano consecutivo em que o Banco Mundial publica uma análise periódica sobre a capacidade negocial dos diversos países e regiões.” Este estudo “avalia todos os aspectos das 11 áreas relacionadas com a criação de um negócio etc.”

A comunicação social de Hong Kong divulgou o acontecimento e revelou que o estudo inclui uma classificação das zonas económicas quanto “à facilidade de criar negócio”. Hong Kong aparece classificado em quinto lugar, com uma pontuação de 83.44. Para iniciar um negócio em Hong Kong é necessário possuir um Registo Comercial (Business Registration). Como o Governo não prescindiu da sua taxa sobre este registo as custas vão subir em 2018 enfraquecendo a competitividade da região.

O Secretário das Finanças, Paul Chan Mo-po, defendeu a necessidade da aplicação da taxa e afirmou que as custas anuais do Registo Comercial montam apenas a 2.250 HKD, uma quantia razoável para criar um negócio. O Secretário das Finanças adiantou: “Penso que existem aqui alguns mal-entendidos que é preciso esclarecer.”

O Registo Comercial é um documento obrigatório para quem quer abrir actividade na área de negócios, que terá de ser obtido junto do Departamento de Receitas Territorial, de Hong Kong. O empresário pode criar o registo em nome individual, em sociedade ou em Companhia £da. Sem este documento qualquer transacção comercial é ilícita. O Registo Comercial deve ser renovado todos os anos mediante o pagamento de uma anuidade. Se a empresa encerrar, deve notificar o Departamento de Receitas Territorial para que os serviços dêem baixa do documento.

Como foi dito, a anuidade deste registo é de 2.250 HKD. Este valor divide-se em duas partes, 2.000 HKD são direccionados para os cofres do Governo e os restantes 250 HKD são encaminhados para O Fundo de Insolvência e Protecção Salarial. Este Fundo foi criado para apoiar trabalhadores em situação de insolvência ou de falência.

Quando um trabalhador entra em situação de insolvência (por falta de pagamento dos salários), deve reportá-lo ao Departamento do Trabalho e apresentar uma petição de falência contra o empregador. Nessa altura pode ser reembolsado de salários em atraso e de outros benefícios em falta. No entanto não receberá a totalidade do que lhe é devido. Este reembolso tem um limite.

Mesmo quando o Governo da RAEHK prescindia da aplicação da taxa, o montante de 250 HKD para Fundo de Insolvência e Protecção Salarial sempre existiu.

O valor de 2.250 HKD não é efectivamente excessivo para uma empresa. No entanto, abrir um negócio em Hong Kong custa muito caro, a taxa do Registo Comercial constitui apenas uma de muitas despesas. Imagine-se que íamos abrir uma empresa na forma de Companhia £da. De acordo com o Regulamento Empresarial, a empresa deverá ter uma morada registada. A empresa terá de estar necessariamente sediada em Hong Kong e não no estrangeiro. É uma forma de confirmar que a actividade é exercida na na cidade. Como sabemos, o valor dos alugueres em Hong Kong é extremamente elevado, sem dúvida excessivo para uma empresa acabada de criar. Para reduzir esta despesa, é costume estas jovens firmas adquirirem, em sistema de leasing, um endereço comercial numa empresa de contabilidade ou num centro de negócios. Através de um pagamento anual entre 2.000 e 5.000 HKD, a Companhia £da. pode dar cumprimento aos requisitos estatutários.

Mas o Regulamento Empresarial não se fica por aqui. É ainda obrigatório que a empresa seja “auditada”. As auditorias terão de ser efectuadas anualmente. Todas as facturas, recibos, livros-razão, etc. devem ser apresentados ao auditor. Após a auditoria, as contas serão apresentadas ao Departamento de Receitas Territorial para serem apurados os impostos a cobrar. A taxa de auditoria varia de auditor para auditor, mas representará sempre outra soma que a empresa terá de despender.

A taxa de auditoria, o aluguer do espaço comercial e as taxas do Registo Comercial são despesas a que um jovem empresário não pode fugir.

Somando todas estas despesas compreende-se facilmente que representam um encargo considerável e que ultrapassam em muito os “suportáveis” 2.500 HKD.

Na comunicação de Ms. Carrie Lam, Chefe do Executivo de Hong Kong, por altura da apresentação do programa político para 2018, foi sugerida uma redução de impostos para as pequenas e médias empresas. Propõe-se que o imposto sobre as receitas desça dos actuais 16,5% para 8,25%, para os primeiros 2 milhões de lucro realizado. A implementação de uma série de novos benefícios para os residentes de Hong Kon, vai aumentar as despesas do Governo. Com a redução de impostos e o aumento das despesas, parece improvável que venha a haver redução da taxa do Registo Comercial e esta taxa continua a ser elevada para quem quer começar um negócio.

5 Dez 2017

Critérios de avaliação

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o início deste mês os jornais falaram sobre a história de Julie Yu Hung-hsua, uma professora universitária reformada que, nos últimos três anos, tem tentado processar a Universidade de Hong Kong. Julie desencadeou este processo porque a Universidade atribuiu mestrados a quatro estudantes que ela tinha chumbado. O processo tem desgastado financeiramente a antiga professora.

Em 2014, Julie Yu chumbou quatro estudantes de mestrado, mas após recurso, um painel da Universidade reverteu a decisão da docente. Os alunos tinham obtido a classificação D+ no curso de marketing, uma avaliação feita a partir de trabalhos práticos e teóricos.

Na altura, em resposta às queixas dos estudantes, a professora fundamentou a sua decisão a partir de uma tabela que mostrava a assiduidade e participação nas aulas. Descontentes, os jovens recorreram ao conselho universitário.

Dois meses mais tarde, Yu foi informada que um painel constituído por três membros tinha subido as classificações de D+ para C. A professora afirma que o painel se recusou a justificar a decisão e que apenas comunicou com ela uma vez por mail. No email interrogavam-na sobre o seu sistema de classificação e sobre a clareza com que tinha passado a mensagem aos estudantes.

Depois de ter sido informada da subida das notas, Julie Yu apresentou uma reclamação por escrito à Universidade. Na resposta podia ler-se que a decisão estava tomada e que era irreversível.

Em Abril de 2015, crente no seu “inalienável direito a ser informada e ouvida”, a professora lançou um processo judicial contra a “ilógica, irracional, inconsistente e arbitrária” decisão do painel.

Em Julho de 2017, o Tribunal de Último Recurso recusou o apelo contra a rejeição do caso, tomada pelo Tribunal de Primeira Instância. A rejeição tinha por base a natureza académica do processo e a demora na sua instauração. O Tribunal tem um período de retroactividade de apenas três meses.

Do ponto de vista académico, podemos afirmar que o professor tem o direito inalienável de ser informado e ouvido sobre todas as matérias que dizem respeito ao exercício da sua função. Não existe nenhum motivo para que uma decisão deste foro seja alterada por outrem e, que para além disso, o professor não tenha sido informado das alterações e dos seus motivos. Se não existe um mecanismo legal que permita levar estes casos a Tribunal, porque é que não o criamos? Se deixarmos este tipo de coisas em segredo, não favorecemos a imagem das Universidades, nem das empresas privadas. São situações que afectam a Gestão de Pessoal, no que respeita ao cumprimento do dever dos funcionários, se tomarmos em conta os padrões que lhes são exigidos. Não se pode alterar esses padrões sem uma razão válida.

Mas voltemos a analisar as notícias sobre este caso. Pelo que foi dito, podemos verificar que a assiduidade e a participação contam para a avaliação. Numa cadeira obrigatória, como era o caso, a “Assiduidade” é um critério implícito. Não se pode atribuir notas a alunos que não comparecem às aulas. Mas, por vezes, este critério de classificação traz algumas dificuldades. Por exemplo, numa aula de três horas, se o aluno só estiver presente durante uma hora terá direito a um terço da pontuação?

E se o aluno estiver presente de corpo, mas ausente de espírito, digamos porque adormeceu ou está a sonhar acordado, como é que o professor o há-de classificar?

A “Participação” é outro critério de classificação. De uma forma geral, os professores preparam exercícios para as aulas, por exemplo, apresentações orais, discussões de tópicos específicos, etc. Imaginemos que quando estamos a falar de participação nos referimos a uma “apresentação oral”. Volta a apresentar-se-nos uma dificuldade. As notas serão atribuídas aos alunos porque eles fazem apresentações, ou porque fazem boas apresentações? Se o único critério for a “Apresentação” a nota ser-lhes-á atribuída quer o desempenho seja bom ou mau. Se o critério for o desempenho, as notas dependem da qualidade do trabalho. Como as notícias não foram específicas neste ponto, não podemos acrescentar mais nada à discussão.

Seja como for, estes quatro estudantes tiveram sorte porque depois do recurso viram as suas notas passar de D+ para C. A Universidade poderá ter tido as suas razões para subir as notas, mas nós nunca o saberemos. Mas, a bem das boas práticas universitárias, seria preferível tornar públicas essas razões.

Ensinar é uma arte e tudo depende da relação entre o professor e os alunos. Se os critérios de classificação forem suficientemente claros, e houver boa comunicação, a maior parte das dificuldades são superadas. Este tipo de informação deve ser feita por escrito e mais tarde lida em aula, para se ter a certeza de que todos os alunos a recebem. Também é aconselhável ir lembrando os alunos dos critérios de classificação. Evita que algum deles venha a dizer,

“Esqueci-me, desculpe.”

Recorrer aos Tribunais para resolver disputas académicas não é a melhor solução. Ficam todos a perder, a Universidade, o professor e os alunos. Se não houver harmonia, o professor não quer trabalhar na Universidade e o estudante não quer ter aulas com professor. Não é bom para ninguém.

29 Nov 2017

Selecção do júri (Parte III)

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os dois artigos anteriores analisámos a selecção do júri e a língua usada durante o julgamento de Donald Tsang. Hoje vamos debruçar-nos sobre os bastidores do júri, antes de ter sido revelado o destino do antigo Chefe do Executivo de Hong Kong.

Um dos jurados foi excluído pelo juiz um dia antes do início das deliberações, deixando o Tribunal envolto numa aura de mistério. O juiz Andrew Chan Hing-wai, declarou,

“Registaram-se algumas ocorrências que, no entanto, não nos dão motivo para preocupação.”

O juiz não adiantou mais explicações para a sua decisão. Assim, o júri ficou reduzido a oito jurados. No final da audiência o colectivo retirou-se para deliberar. Após um largo período de debate o júri não conseguiu chegar a um consenso, que no mínimo exige o acordo de seis jurados. Em resultado desta situação Donald Tsang não pôde ser condenado.

Agora que o julgamento acabou, o mistério da exclusão do jurado já pode ser revelado.

Certo dia, durante a hora do almoço, o jurado, a quem nos referiremos como Mr. Q, foi ter com Chip Tsao, uma personalidade mediática apoiante de Donald Tsang. Mr. Q, que era desde há muito fã de Chip Tsao, tirou-lhe fotografias e esteve à conversa com ele por algum tempo. Durante a conversa Tsao perguntou-lhe:

“Você é de Xangai?”

Ao que o outro retorquiu:

“Não, sou de Pequim.”

Um funcionário que se apercebeu da situação, separou imediatamente Mr. Q dos outros jurados e reportou o sucedido ao juiz. O funcionário ficou preocupado com possíveis interferências exteriores na decisão do jurado, até porque sabia que Tsao estava sentado na galeria ao lado da família de Tsang. O apoio de Tsao a Donald Tsang também é do conhecimento público. O juiz, temendo a parcialidade de Mr. Q, exclui-o do júri.

Como referimos a semana passada, a condição de jurado é contínua, só se considerada interrompida quando o julgamento termina. Durante este processo, os jurados não podem ser influenciados por terceiros. Este é um dos motivos pelos quais não estão autorizados a comparecer nos seus locais de trabalho. A conversa de Mr. Q com Tsao origina uma situação idêntica. Antes da decisão ser tomada, o jurado ao serviço do Tribunal, não pode contactar com ninguém. Possivelmente, nem Mr. Q, nem Tsao, tiveram consciência de que a tal conversa informal e as fotos poderiam vir a ter consequências graves, mas baseando-se nos princípios de justiça e de igualdade de oportunidades, o juiz excluiu Mr. Q.

A decisão do juiz foi correcta. A lei tem de ser encarada com seriedade, porque estabelece a regra pela qual todos se regem. Se o juiz não a levar a sério, quem a levará?

Após 14 horas de deliberação, os oito jurados não chegaram a consenso, que pede como foi dito, um mínimo de seis votos a

favor de uma decisão, pelo que não foi pronunciado nenhum veredicto quanto à culpabilidade ou inocência de Donald Tsang. Às 23.05 o júri comunicou ao juiz, por escrito, a impossibilidade de estabelecer um veredicto. O juiz recusou-se a aceitar a situação e pediu que voltassem a reunir. A discussão prosseguiu até às 5.15, altura em que os jurados voltaram a comunicar ao juiz:

“Após debate exaustivo, o júri não conseguiu que pelo menos seis jurados chegassem a consenso. Cada jurado defende firmemente os seus pontos de vista. Decidimos terminar.”

O juiz dispensou os jurados, afirmando:

“Sei que a vossa tarefa é difícil, mas cumpriram-na de forma consciente.”

“Com estas palavras vos agradeço. Estais dispensados.”

É o segundo julgamento que Donald Tsang enfrenta pela acusação de corrupção passiva, relacionada com a troca de favores com uma estação de rádio local. O primeiro julgamento tinha terminado precisamente da mesma forma que este, ou seja, com um empate do júri. Mais uma vez Donald Tsang não pôde ser considerado culpado.

Mais tarde, o Tribunal foi informado que o Secretário da Justiça não pretende repetir o julgamento. O juiz aceitou a decisão e arquivou o caso, que necessitará ainda da aprovação do Tribunal de Primeira Instância, ou do Tribunal de Apelação.

“Não é invulgar que seja pedido um novo julgamento se surgirem novas provas e se for considerado do interesse público.”

Em resumo, o caso de corrupção passiva contra Donald Tsang terminou. Em todas as investigações criminais que decorrem em Hong Kong, os investigadores reúnem o máximo possível de provas, para fornecer à acusação. Neste processo, é muito provável que nem todas as provas reunidas tenham sido entregues à acusação, porque se algumas delas beneficiassem o réu, deverão ter sido entregues à defesa. Portanto, é muito pouco provável que surjam novas provas acusatórias. Além disso, Donald Tsang pode alegar “gravidade extrema” se for chamado mais uma vez a Tribunal por esta acusação.

Seja como for e por agora, para Donald Tsang e para o júri este caso está encerrado.

21 Nov 2017

Selecção do júri (II)

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o artigo da semana passada analisámos parte do processo de selecção do júri presente no julgamento de Donald Tsang, antigo Chefe do Executivo de Hong Kong. A utilização da língua inglesa e um pedido de isenção do dever de jurado foram as questões debatidas. Hoje continuaremos a discussão do caso.

Um dos jurados presentes neste julgamento é uma enfermeira que exerce num hospital do Governo. As suas funções obrigam-na a trabalhar dois sábados por mês. Como o julgamento decorre de segunda a sexta, não está isenta de trabalhar nesses dias. A jurada reclamou formalmente junto do juiz a este propósito.

Quase em cima da hora, a Directora do Departamento de Saúde, Drª. Constance Chan Hon-yee, foi convocada para o banco das testemunhas. Pediu desculpa pelos incómodos causados ao Tribunal, mas, adiantou não poder assegurar que a enfermeira viesse a ficar isenta do trabalho ao sábado durante o período do julgamento.

A Drª. Constance Chan Hon-yee explicou que a enfermeira tem um contrato que a obriga a trabalhar dois sábados por mês. O regulamento da função pública, bem como exemplos anteriores, indica que o sábado não está abrangido pela isenção de prestação de serviço, por isso a enfermeira deve ir trabalhar. Acrescentou ainda que este caso não é simples, e que dependerá da decisão do Secretário da Função Pública, se ela deverá ou não comparecer ao serviço nesses dias.

Mas o juiz ripostou:

“E se a decisão tomada estiver errada?”

Citando a Ordenança do Júri, o juiz esclareceu que o julgamento é um processo contínuo, que não é interrompido quando a sessão diária termina.

O juiz também realçou uma provisão incluída na Ordenança do Júri, que impede eventuais casos de discriminação dos jurados por parte dos seus empregadores. Se o Governo da RAEHK não abrir uma excepção, estaremos perante um caso de “RAEHK versus RAEHK”, ou seja, um processo jurídico em que o queixoso e o réu são a mesma entidade.

O juiz criticou ainda os termos em que estava escrito o fax que a Drª. Constance entregou ao Tribunal. No documento podia ler-se “não nos opomos a que a enfermeira seja dispensada” para prestar serviço como jurada.

“O vosso departamento não está a fazer um favor ao Tribunal, está a cumprir um dever cívico.”

O juiz censurou severamente a atitude do departamento, afirmando que podia incentivar outros empregadores a seguir-lhe o exemplo, deixando assim os membros do júri à mercê da “exploração”.

“Esta atitude não abona a favor da boa política governamental.”

O juiz solicitou que o Governo deliberasse sobre o assunto e que enviasse uma resposta na segunda-feira seguinte.

No dia marcado, o advogado Jin Pao, representante do Governo, informou o Tribunal que a administração concordava com o seu ponto de vista e que a enfermeira seria dispensada de qualquer serviço no Hospital enquanto o julgamento durasse. O advogado afirmou:

“O Governo reconhece a importância do serviço prestado pelos jurados.”

Acrescentou ainda que, posteriormente, não haveria qualquer dedução aos períodos de folga da enfermeira.

Não há dúvida que o Governo da RAEHK tomou uma boa decisão. Seguiu as indicações do juiz. Evitou colocar-se numa situação em poderia ser criticado por não obedecer à lei. Contudo, este caso revelou que a formulação da Ordenança do Júri não é suficientemente clara. É necessária maior clareza. Por exemplo:

“O jurado fica dispensado de se apresentar no local de trabalho durante o período em que estiver ao serviço do Tribunal.”

Por aqui se pode verificar que, independentemente de os jurados não irem ao Tribunal ao sábado, não podem ser convocados pelos patrões para trabalhar nesse dia. A formulação é vital e, como mencionámos a semana passada, os jurados são cidadãos comuns, não são especialistas em leis. A Ordenança do Júri é a única ferramenta em que o jurado pode confiar. É fundamental que o fraseamento deste Regulamento seja simples e directo. O Regulamento é o escudo que protege os direitos do jurado. Esta protecção visa garantir a prestação deste dever. Permite sobretudo que o jurado não sofra interferências do patrão e dos colegas durante a audiência do caso. Estas interferências poderiam, em última análise, influenciar a sua decisão em Tribunal.

Por outo lado, o termo “continuidade” pode ser problemático. Talvez seja difícil para um leigo compreender a natureza contínua de um processo jurídico. O caso de Donald Tsang é um bom exemplo. Se o juiz não tivesse levantado a questão da continuidade da prestação do júri durante o julgamento, não teria sido fácil para o cidadão comum compreender o conceito. A má interpretação desta Ordenança pode repetir-se vezes sem conta.

Mas não é só a Ordenança do Júri que implica a noção de continuidade.  Em certos crimes esta ideia também está presente. Por exemplo, se um criminoso esfaquear a vitima cinco vezes, estaremos a lidar com uma ou com cinco acusações de danos corporais? Podemos dar outro exemplo simples. Se durante um certo percurso, um condutor passar cinco sinais vermelhos, pratica uma ou cinco infracções de trânsito? É uma questão legal de difícil resposta.

Para contornar esta dificuldade, o ideal será criar uma Emenda à Ordenança do Júri.

Professor Associado do IPM
Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
14 Nov 2017

Selecção do júri (I)

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] antigo Chefe do Executivo de Hong Kong, Donald Tsang Yam-kuen, foi acusado de ter recebido da Wave Media, uma penthouse localizada na China continental e avaliada em 3,8 milhões de Hong Kong dólares (487.000 USD).  Em contrapartida, Donald Tsang tinha-se manifestado “favorável” à concessão da licença de difusão, requerida pela Wave Media, proprietária de uma rádio local, durante a sua chefia do Governo. Bill Wong Cho-bau, o maior accionista da Wave Media, tinha a casa em seu nome e pagou do seu bolso as obras de renovação. O caso vai ser ouvido no Supremo Tribunal de Hong Kong. O julgamento será presidido pelo juiz Andrew Chan Hing-wai e contará com a presença de um júri.

Segundo o sistema legal de Hong Kong, sempre que esteja em causa o julgamento de um caso de maior gravidade, será necessária a presença de júri no Tribunal. Esta é a principal diferença para o sistema jurídico de Macau, que não contempla a existência de júri. Consoante a gravidade do caso, assim serão requeridos sete, oito ou nove jurados. Os jurados são escolhidos entre os residentes de Hong Kong. O júri terá apenas de decidir se o réu é culpado ou inocente da acusação. Deverá ser constituído por pessoas comuns. Não devem ser especialistas em assuntos jurídicos, nem personalidades de destaque. Os jurados deverão ser maiores de 21anos e terão de ter o ensino secundário completo. A partir do momento em que um cidadão é seleccionado como jurado, tem obrigação de respeitar a convocatória. É um dever cívico. Os jurados estão dispensados de comparecer nos seus locais de trabalho, enquanto o julgamento estiver a decorrer. Neste período, cada jurado recebe do Governo uma diária de 830 Hong Kong dólares.

Actualmente, em Hong Kong, o réu tem o direito de escolher a língua que será usada durante o julgamento. Pode escolher entre o chinês e o inglês. Neste caso, como o advogado de acusação é originário do Reino Unido, será utilizado o inglês.

Segundo os noticiários, a selecção do júri para este julgamento tem sido muito criteriosa, embora já tenha havido alguns casos a salientar. Em primeiro lugar houve um homem que apelou ao direito de excepção. O homem justificou o apelo, afirmando:

“Não gosto de Donald Tsang.”

O juiz começou por rejeitar o apelo, alegando que o motivo não era suficientemente forte. Mas, depois de o advogado de defesa se ter oposto à inclusão do homem no júri, o juiz acabou por anuir.

O segundo caso assinalado envolveu uma mulher, rejeitada pelo juiz porque não conseguia pronunciar em inglês as palavras, “afirmo, solenemente e veredicto”. A rejeição baseada no mau inglês da potencial jurada, acaba por ser um motivo injusto para o réu.

A terceira pessoa a ser rejeitada foi uma jornalista. A bem da isenção noticiosa, o juiz considerou que a sua profissão era incompatível com esta função.

A quarta, e última rejeição, foi também baseada na má pronunciação do inglês. Desta feita, a senhora em questão, não conseguia pronunciar “almighty” (todo poderoso). O juiz voltou a manifestar a sua apreensão em relação às exclusões baseadas no mau domínio da língua inglesa. Teme que este factor possa afectar o resultado final.

Como se pode ver, o juiz tem sido muito cuidadoso no tratamento dos assuntos relacionados com este caso. Devido à proeminência social do réu, qualquer erro pode resultar numa anulação do julgamento e conduzir a críticas severas ao Tribunal.

No primeiro caso de exclusão, o juiz insistiu na permanência do convocado, e, inicialmente, não aceitou a “antipatia pelo réu” como motivo suficiente para o isentar das suas obrigações. Se qualquer pessoa pudesse alegar esse motivo para ser isentada destas funções, o sistema de jurados deixava de funcionar em Hong Kong. Só motivos muito mais fortes costumam ser aceites.

Mas a recusa do advogado de defesa em aceitar esta pessoa, deu motivo suficiente ao juiz para aceitar o apelo. Deve fazer-se tudo para evitar recursos e aumento das despesas de Tribunal.

No entanto, esta posição pode ser questionável. Será que existe uma boa razão para obrigar alguém a ser jurado, mesmo que o advogado de defesa insista que a “antipatia pelo réu” é motivo para que não possa ser aceite? Imagine-se que num caso futuro o advogado de defesa alega o mesmo que alegou o de Donald Tsang. A decisão vai ser a mesma. O círculo vicioso mantém-se e o problema nunca terá solução.

Outra questão que merece ser discutida é a adopção da língua usada em tribunal. Neste caso dois jurados foram excluídos por não falarem bem inglês. O juiz não tinha confiança do seu domínio da língua. Se os jurados não compreenderem bem inglês, não podem acompanhar o julgamento e não terão bases para tomar uma decisão justa. Por aqui se pode ver como a escolha da língua do julgamento pode ser problemática. Os advogados e o juiz são obrigados a dominar o inglês, mas os jurados não são. Será que o Governo deve acrescentar uma emenda à Ordenança dos Júris, a requer que os jurados falem inglês fluentemente? Se essa condição for exigida por lei, acabará por perder a utilidade se o julgamento for em chinês. A questão parece ser complicada.

Aplica-se o mesmo princípio a qualquer região ou país com um sistema legal bilíngue. Em que circunstâncias se deverá adoptar uma ou outra língua, é a primeira questão, se ambas as partes em confronto dominam a língua escolhida, é a outra. Num sistema legal bilíngue, os juízes e os advogados dominam as duas línguas. Contudo, esse pode não ser o caso das testemunhas e do réu. Nesses casos, poder-se-á recorrer à tradução para solucionar o problema? A sociedade deverá considerar todas estas questões. Se todos os documentos tiverem duas versões, será um desperdício de tempo e de dinheiro e, além disso, implicará mais demoras no julgamento. Será isso que todos nós queremos?

Como o caso de Donald Tsang é complicado, continuaremos a nossa análise na próxima semana. Até lá, despeço-me dos meus leitores.

Professor Associado do IPM
Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
7 Nov 2017

Justiça ameaçada

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ecentemente soube-se por um jornal de Hong Kong que um homem, empunhando uma faca, tinha ameaçado um juiz no Supremo Tribunal.

Operário da construção civil, Yu Zulin, de 53 anos, foi acusado de ameaçar o juiz Wilson Chan Ka-shun, com insultos pessoais, numa tentativa de intimidação. Os acontecimentos ocorreram dia 17 deste mês, nas instalações do Supremo Tribunal. O homem, que se encontrava apenas a dois metros de distância do juiz, empunhava uma faca de 20cm de comprimento. O juiz estava no Tribunal para presidir ao julgamento de um caso de Direito Civil.

Por volta das 10h da manhã, Yu encontrava-se na galeria pública da sala de audiências nº 13, onde o juiz Wilson presidia ao julgamento. De repente, Yu puxou de uma faca e gritou para o juiz em mandarim:

“Vendido! Pensavas que eu não te ia encontrar!”

O juiz não respondeu e abandonou a sala de imediato. Nessa altura Yu também saiu a correr. Os funcionários do Tribunal chamaram a polícia. Quase de imediato chegaram ao local dezenas de polícias que se puseram à procura do homem.

Polícias à paisana fizeram buscas em todos os andares do edifício, inclusivamente no 5º andar, onde o antigo Chefe do Executivo  Donald Tsang Yam-kuen estava a ser julgado por corrupção. A audiência não foi interrompida.

O Inspector-Chefe Dilys Lo Shui-lin, da Polícia Central, comunicou que tinham revistado o edifício por duas vezes, mas que não tinham encontrado ninguém suspeito.

Yu acabou por se render ao fim de oito horas. Na esquadra explicou à polícia as razões do seu comportamento e foi conduzido ao Tribunal de Magistrados, no passado dia 19. O delegado do Ministério Púbico declarou,

“Este crime foi planeado, ao contrário de outras situações de ameaça.”

Yu foi preso pelo crime de intimidação. O apelo para sair em liberdade condicional foi rejeitado pelo Tribunal de Magistrados.

No entanto Yu afirmou que:

“Agi por impulso. Peço desculpa ao juiz e à população de Hong Kong pelos meus actos. Estou arrependido. Não vou oferecer resistência.”

Este caso resume-se à insatisfação de alguém com a sentença de um juiz e que, em consequência disso, o ameaça.

Em Hong Kong, existe um sistema bem estruturado que permite apresentar queixa da actuação dos magistrados, caso a pessoa se sinta lesada por uma decisão injusta. Nessa altura o juiz será sujeito a um inquérito. Teria sido melhor para Yu se se tivesse informado sobre o funcionamento do sistema legal de Hong Kong, antes de ter partido para acções desadequadas.

Agora Yu vai ter de enfrentar consequências graves. Como afirmou o delegado do Ministério Público, este caso excede a acção de intimidação habitual. Foi premeditado e houve intenção de agressão. Em causa está, não só, a ameaça feita ao juiz, mas também o estado de direito em Hong Kong. De acordo com a seriedade da situação, a hipótese de o réu vir a ser preso é elevada. A sentença não se limitará ao pagamento de uma multa. A data para o encarceramento do réu será anunciada posteriormente pelo magistrado.

Como já referimos por diversas vezes, condenamos em absoluto qualquer tipo de ameaças feitas a representantes da justiça. Devemos dar o nosso melhor para que sejam criadas todas as condições que permitam aos juízes deliberar de acordo com a lei. Qualquer demonstração de desagrado em relação às decisões do juiz, dentro ou fora da sala de audiências, ou qualquer tipo de ameaça, são comportamentos condenáveis.

Se o juiz:

for pressionado, ou
sentir que a sua vida corre perigo, ou
sofrer qualquer represália pós julgamento, ou
for despedido na sequência de uma sentença

acabará por ficar condicionado e deixa de haver garantias de que as suas decisões não estão a ser determinadas pelo medo. O interesse da justiça deixará de estar protegido. Será isto a que queremos assistir?

As situações que atrás mencionámos devem ser evitadas, porque só assim o juiz estará livre para deliberar de acordo com a lei, sem qualquer tipo de pressão. O interesse das partes envolvidas estará protegido e as pessoas acreditarão que a lei é um instrumento de que nos servimos para resolver contendas. Se a população confiar nas decisões dos juízes, o estado de direito fica garantido. É preciso que nunca nos esqueçamos que o “estado de direito” não se impõe pelas armas, mas sim pela nossa crença na sua necessidade.

Embora o caso relatado não seja complexo, não deixa de ser muitíssimo sério. Se toda a gente que fica insatisfeita com a decisão de um Tribunal agisse desta forma, imagine-se o tipo de sociedade que teríamos.

31 Out 2017

Liberdade de expressão

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 4 o Tribunal de Apelação de Hong Kong (COFA) rejeitou por unanimidade o caso apresentado por Christine Fong Kwok Shan.

A história conta-se em poucas palavras. Christine combatia o projecto de expansão dos aterros de resíduos tóxicos da South-East New Territories. Integrou um grupo que se manifestou durante as duas sessões do Conselho Legislativo abertas ao público, nas quais o sub-comité das Obras Públicas apresentou o projecto à discussão.

Durante os protestos, Christine despiu o casaco revelando uma t-shirt que tinha escrito “Defendam Tseung Kwan O”. A seguir entregou um cartaz a um companheiro, que tinha desenhada uma suástica e onde se podia ler “Aterro – Campo de Concentração de Gases Venenosos”. O homem, na galeria pública que encima o recinto, exibiu o cartaz. A manifestação foi interrompida pela intervenção dos seguranças que de imediato lhe tentaram arrancar o cartaz, acabando um deles ferido num pulso. O incidente provocou a suspensão antecipada da sessão.

Após a retoma da reunião Christine e os companheiros entoaram vários slogans. Na altura foram avisados pelo presidente do sub-comité das Obras Públicas que seriam expulsos da sala se não se calassem. Como ignoraram o aviso e deram os braços para resistir à expulsão, a sessão voltou a ser suspensa. Os trabalhos prosseguiram passado uma hora, noutra sala de conferências, mas desta vez sem a presença do público.

Christine foi mais tarde condenada por infracção da secção 12(1) das Directrizes Administrativas do Regulamento de Admissão e Conduta Pessoal, que estipula o seguinte,

“Não é permitido a exibição de cartazes e faixas com símbolos ou mensagens, em galerias reservadas ao público ou à imprensa”.

Foi também condenada por infracção da secção 11 que determina que, quem der entrada no recinto do Conselho Legislativo, terá de o fazer de forma ordeira.

Christine foi sentenciada, após julgamento do Tribunal de Magistrados, ao pagamento de uma multa de 1.000 Hong Kong Dólares por cada acusação. Mas Christine apresentou recurso da sentença, na convicção de que o princípio da liberdade de expressão, consignado no artigo 27 da Lei Básica de Hong e no artigo 16 da lei que regula a “Declaração dos Direitos Humanos”, tornam as secções 11 e 12 anticonstitucionais, na medida em que estas disposições violam a liberdade de expressão, ao proibirem a exibição pública de símbolos e mensagens.

O COFA reiterou as decisões dos dois tribunais de instância inferior. Para tal recorreu ao artigo 39 da Lei Básica de Hong Kong e ao artigo 16 da Declaração dos Direitos Humanos, concluindo que se pode proibir manifestações de protesto nas galerias do Conselho Legislativo, desde que exista o risco de criarem desordem e interferência com os direitos dos outros observadores. As restrições impostas pela lei são necessárias para proteger a ordem pública e fazer respeitar os direitos dos outros cidadãos.

O COFA adiantou ainda que os limites da liberdade de expressão nas galerias do Conselho Legislativo são “claramente proporcionados e justificados” permitindo que a legislatura prossiga com o cumprimento das suas funções legais.

Esta argumentação demonstra o equilíbrio que é necessário entre liberdade de expressão e respeito pelos demais. Pelos motivos apontados o recurso de Christine foi rejeitado. Não poderá haver mais recursos na medida em que a decisão foi tomada pelo Tribunal da mais alta instância.

Com a implementação do Direito Comum em Hong Kong, o precedente jurídico desempenhará um papel muito importante no sistema legal. O precedente jurídico aberto pelo COFA fará parte das leis de Hong Kong. Todos os tribunais da cidade estarão obrigados a seguir a decisão. Nesta deliberação o COFA decidiu uma vez mais que a Lei Básica de Hong Kong garante vários tipos de liberdade aos seus residentes. Estes direitos serão garantidos de futuro. No entanto, deveremos ser razoáveis no exercício destes direitos. Foi declarado que “comportamentos desordeiros e exibição de cartazes de protesto” são comportamentos não aceitáveis nas galerias do Conselho Legislativo. Portanto, futuramente, se alguém tiver uma atitude semelhante, será certamente condenado em tribunal.

Os limites da liberdade de expressão foram outro dos argumentos apresentados pelo Tribunal. Estes limites têm de ser estipulados pela lei, de forma a proteger a segurança dos cidadãos, mas também a liberdade de expressão. Será sempre uma tentativa de ajuste entre estes dois direitos básicos. No Conselho Legislativo o público tem de se comportar de forma ordeira e não é permitida a exibição de cartazes de protesto, logo não é permitida qualquer manifestação. O Conselho Legislativo é um local destinado à criação de legislação, abrigo da Lei Básica da cidade. As manifestações podem originar desordem pública, e podem interferir com os deveres dos deputados. Os protestos podem ainda afectar os outros observadores da sessão. No entanto, será necessário que a lei defina o que representa exactamente transgressão a estes regulamentos. O Conselho Legislativo destina-se aos legisladores, não é local para manifestações e protestos.

Ninguém gosta de viver perto de lixeiras, sobretudo se se tratar de um aterro de resíduos tóxicos. Os sentimentos dos manifestantes são compreensíveis. Mas do ponto de vista social, expressar opiniões de forma leviana não é aceitável. Seremos todos afectados. Esperamos sinceramente que não existam mais manifestações de protestos insensatas.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
24 Out 2017

A independência judicial e o estado de direito

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Fraser Institute do Canadá atribuiu o primeiro lugar a Hong Kong no relatório sobre a Liberdade Económica Mundial, publicado no passado dia 28 de Setembro. No entanto, quanto à independência judicial, Hong Kong não foi tão bem classificado, após escrutínio ao funcionamento dos Tribunais da cidade.

Hong Kong tem mantido a primeira posição na alínea consagrada à Liberdade Económica Mundial desde 1980. Singapura continua em segundo, seguida da Nova Zelândia. A China ocupa o 112º lugar.

Num outro relatório, elaborado pelo World Economic Forum, Hong Kong surge em 13º lugar no que respeita independência judicial, classificação registada no último Índex de Competitividade Global, com uma pontuação de 6.1, num máximo de 7. O ano passado tinha obtido o 8º lugar da classificação. O relatório sobre a Competitividade Global para 2016-2017 avalia as diversas vertentes da competitividade de 138 economias, providenciando uma visão sobre os motores da sua produtividade e da sua prosperidade.

O Secretário da Justiça, Rimsky Yuen Kwok-keung, deu a cara em defesa do Governo da RAEHK, afirmando que o Executivo estava preocupado com a descida de classificação, mas salientou que o relatório ainda tinha atribuído a Hong Kong um lugar de topo na alínea da independência judicial na Ásia.

Rimsky acrescentou que factores subjectivos poderiam ter influenciado a percepção da independência judicial das comunidades locais e internacionais de Hong Kong. Quanto a ele, não via qualquer factor objectivo que pudesse afectar a independência judicial da cidade, já que os Tribunais lidam com todos os casos com imparcialidade e sentido profissional.

Rimsky empenhou-se em provar que a independência judicial de Hong Kong nunca é comprometida. E o motivo que o levou a esforçar-se por clarificar esta questão prende-se com a importância do tema. A independência judicial verifica-se quando as decisões dos Tribunais não são influenciadas pelo poder executivo, nem pelo poder legislativo. As deliberações do juiz não deverão estar dependentes de qualquer pressão, de forma a poderem ser justas e rectas. Só desta forma se pode garantir que o interesse das partes em conflito esteja assegurado.

Para garantir a independência judicial, actualmente em Hong Kong a nomeação do juiz é permanente. Não pode ser despedido, salvo se existir algum erro grave que o justifique. Só se retirará quando atingir a idade da reforma. O facto de não temer o despedimento coloca-o à vontade, mesmo em casos que levem o Governo a Tribunal.

Em segundo lugar, é necessário considerar que um juiz é humano e pode cometer erros. Para o proteger a lei confere-lhe imunidade legal. O juiz não pode ser processado por nenhuma das partes em conflito, ou indiciado pelo Governo por ter cometido um erro jurídico. Se algum dos litigantes ficar insatisfeito com a sua decisão terá de recorrer a um Tribunal de instância superior. A imunidade legal protege o juiz. Sem esta protecção poucos aceitariam este cargo.

Em terceiro lugar, garante-se que não existirá qualquer pressão na sala de audiências. Neste sentido, a imprensa nunca deve dar atenção excessiva a casos em julgamento. Devem também evitar-se demonstração de protesto contra o juiz.

Os pontos mencionados não se excluem entre si. Para defender a independência judicial devemos fazer tudo o que está ao nosso alcance.

A independência judicial está também intimamente ligada ao Estado de Direito e à noção de que todos têm de agir de acordo com a lei. A lei deve estabelecer os padrões básicos dos comportamentos sociais. A Lei terá sempre de ser o instrumento de resolução de qualquer contenda. Todos devem ser iguais aos olhos da lei. Se alguma das partes em confronto desfrutar de qualquer benefício, não estaremos a ser governados pela lei e a injustiça imperará.

No entanto, dois relatórios atestam em simultâneo a descida de posição de Hong Kong nesta alínea, e o assunto terá de ser debatido. Embora Rimsky tenha afirmado que não existem factores objectivos que justifiquem a descida de classificação, os comentários dos relatórios parecem muito preocupantes.

Mas poderemos analisar os relatórios de outra forma. A razão que nos leva a recorrer à lei para solucionar contendas é a confiança que depositamos na sua capacidade de criar padrões. Se o nosso comportamento estiver em conformidade com o estipulado, em caso de contenda confiamos que a lei estará do nosso lado. A lei existe para proteger os nossos interesses. Mas a lei não é uma arma com que possamos atacar os nossos oponentes. A lei gera uma crença que orienta os nossos espíritos. Acreditamos que a lei nos ajuda a resolver os nossos conflitos, é-nos, portanto, útil.

Com dois relatórios a criticar a independência judicial de Hong Kong, percebe-se que algumas pessoas não estão completamente confiantes no sistema legal da cidade. Será bom que o Governo da RAEHK clarifique a situação. Quando Rimsky afirma que não existem dados objectivos que comprovem qualquer falha na independência judicial, parece-me correcto. Mas a ausência de clarificação por parte do Governo pode criar mais mal-entendidos.

A longo prazo, é melhor para o Governo da RAEHK dar um passo no sentido de reforçar a confiança do público no sistema legal da cidade. A confiança no sistema legal nunca pode ser afectada.

 

Professor Associado do IPM

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

Blog: https://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog

Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

5 Out 2017

Apelo ao compromisso

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado domingo, dia 17, realizou-se um encontro em Hong Kong de repudio à independência do território. No palco, aos gritos, um homem reclamava a “morte” para os activistas pró-independência. O homem, Junis Ho kwan–yiul, ainda acrescentou, “sem piedade”. Por estas declarações, a população depreendeu que os activistas pró-independência de Hong Kong deveriam ser executados.

O discurso de Ho gerou grande polémica na antiga colónia britânica. Era voz corrente que Ho tinha encorajado as pessoas a matar os activistas pró-independência.

Na sequência destas declarações, Ho deu uma série de entrevistas. O entrevistado alegou em sua defesa que, em cantonês, “morte” pode ser usada em vários sentidos. Não quer necessariamente dizer matar. O que ele queria dizer era que as vozes a favor da independência de Hong Kong tinham de ser travadas, e que Hong Kong nunca se poderia separar da China. Ho também referiu uma série de exemplos para sustentar a sua argumentação. Mas como foram todos formulados em chinês, vamos ignorá-los.

Ho foi Presidente da Sociedade Legista de Hong Kong. Actualmente é membro do Conselho Legislativo. Os seus antecedentes jurídicos e políticos tornaram as pessoas mais sensíveis às suas afirmações. Alguns perguntavam-se, como é que alguém com um profundo conhecimento da Lei pode fazer afirmações desta natureza. Será que isto é legal?

Ainda no seguimento deste caso, o Conselheiro Sénior Ronny Tong Ka-wah deu uma entrevista. Adiantou que Ho poderá ter infringido a secção 26 do Regulamento da Ordem Pública. Esta secção refere que, qualquer pessoa desprovida de autoridade legal, que profira declarações em assembleia pública, ou se comporte de forma que revele intenção de incitar ou induzir outrem a matar ou a atentar contra a integridade física de terceiros, está a transgredir a lei e sujeita-se a uma pena de prisão, que pode ir de 2 a 5 anos, dependendo da gravidade do delito.

O termo “incitar” é referido na secção 26. Em linguagem legal o delito de incitamento verifica-se quando alguém impele outrem a cometer um crime.

Alguns habitantes de Hong Kong pediram que a polícia investigasse este caso. A resposta das autoridades não deixou margem para dúvidas. Ho limitou-se a proferir declarações ao abrigo da liberdade de expressão e, tanto quanto sabemos, não haverá qualquer investigação criminal.

Estas declarações chamaram a atenção do Secretário da Justiça Yuen kwok–kuen. Afirmou que é necessário analisar o contexto em que foram proferidas, para decidir se houve ou não transgressão da lei. Ou seja, não se pode chegar a qualquer conclusão a partir de uma declaração isolada.

Este caso pede aos habitantes de Hong Kong alguma reflexão. Se as incentivas “morte” e “sem piedade” pudessem acabar com os conflitos sociais, tudo bem. Mas obviamente, este tipo de declarações só servem para aumentar a confusão no seio da sociedade e os opositores de Ho vão ficar irados. Nem a cidade, nem os seus habitantes tiram qualquer benefício deste tipo de afirmações.

É possível que a Chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, esteja à altura dos acontecimentos. Antes de dar entrada na reunião do Conselho Executivo, declarou aos jornalistas,

“Independentemente da postura política de cada um, comentários rudes, insultuosos ou intimidatórios, nunca são aceitáveis.”

Acrescentou ainda que a comunidade de Hong Kong deve permanecer calma e que a “polarização” deve ser evitada.

As sugestões de Carrie Lam não solucionam os conflitos sociais de Hong Kong, mas são uma boa forma de prevenir conflitos futuros. Se toda a gente conseguir manter a boca fechada e evitar protestos, Hong Kong ficará em paz. Sem este ambiente, como é que os membros do Conselho Legislativo podem debater de forma razoável as questões sociais? É verdade que “o compromisso facilita a resolução dos conflitos”. Esperemos que todos consigam lá chegar.

26 Set 2017

Jogo demasiado real

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or ocasião do 40º aniversário, o Ocean Park de Hong Kong organizou uma série de eventos em grande escala. Os visitantes tinham à sua disposição 11 atracções fantasmagóricas e podiam experienciar 12 situações totalmente inéditas. Numa destas situações, inspirada no jogo Buried Alive, os visitantes são transportados à Europa Medieval. É o primeiro parque temático de terror da Ásia.

O website do Ocean Park descreve esta experiência nos seguintes termos:

“Os visitantes de Buried Alive iniciam a sua jornada de terror sendo “enterrados vivos” em caixões de madeira. Depois de conseguirem escapar a este pesadelo, a visita solitária prossegue ao encontro de criaturas horríveis. Vão cruzar-se com aranhas, bichos assustadores e fantasmas. Os afortunados que conseguem aqui chegar, reúnem-se aos amigos num trilho comum, ou então têm de enfrentar mais uma fuga a solo, passando por esqueletos arrepiantes, caixões, labirintos, por uma câmara de ossadas e, finalmente, pelo horror da magia negra.”

O Parque é uma novidade em Hong Kong e, como tal, é bastante atractivo. No entanto o Ocean Park encerrou o cenário Buried Alive, depois da morte de um jovem de 21 anos no passado dia 16.

O homem foi encontrado morto cinco minutos depois de ter entrado na Casa Assombrada. Foi dar a uma zona de manutenção reservada aos funcionários, segundo Eva Au Yeung Yee-wah, directora de animação e eventos do Ocean Park.

O Ocean Park encerrou esta atracção e reportou o incidente ao “Departamento dos Serviços Eléctricos e Mecânicos” de Hong Kong. Todas as instalações do Parque, incluindo as do Buried Alive, tinham sido aprovadas nas inspecções oficiais.

Este caso pode não ser exactamente uma novidade, mas merece alguma atenção. Todos sabemos que quando chegam as celebrações do Halloween, muitos jovens vão a Hong Kong à procura de divertimentos. A altas horas da madrugada formam filas enormes no Terminal do Ferry Hong Kong-Macau, para comprar o bilhete de regresso a Macau. Felizmente os noticiários alertam com frequência estes jovens para os perigos que correm, apelando para que tenham muito cuidado nestas saídas.

Até ao momento não foi possível determinar se houve algum erro humano por trás deste incidente. O relatório preliminar do “Departamento dos Serviços Eléctricos e Mecânicos” apontava para a ausência de falhas mecânicas. Este departamento foi chamado à investigação no âmbito da Ordenança para a Segurança das Diversões Mecanizadas, que regula os parques de diversões em Hong Kong. O departamento é responsável pela aplicação da Ordenança.

O Ocean Park tem um seguro que cobre eventuais acidentes que vitimem os visitantes. Desta forma os familiares do falecido serão indemnizados.

Independentemente das causas do acidente, o Ocean Park irá sempre ressentir-se e com certeza irá baixar as receitas nos tempos mais próximos.

Têm aparecido comentários no website a apelar à não participação nos jogos durante o Festival dos Fantasmas Famintos. Também conhecido como “Zhongyuan Festival” ou “Yulan Festival, esta comemoração ocorre a 14 de Julho no calendário chinês, Setembro no calendário ocidental. É uma festa tradicional Budista e Taoista celebrada em vários países asiáticos. Por esta ocasião, os fantasmas e os espíritos, incluindo os dos antepassados, emergem das profundezas e vêm visitar os vivos. Durante o Festival fazem-se ofertas rituais de alimentos, queima-se incenso, joss paper e objectos em papel-mâché representando diversos bens materiais, em homenagem aos espíritos dos antepassados.

Como se acredita na China que neste período os Espíritos estão mais “activos”, os mais velhos lembram os jovens que devem recolher cedo para evitar maus encontros. Ficar em casa é sempre o mais seguro.

Não que eu recomende a crença em espíritos. Mas a tradição desempenha um papel muito importante em qualquer sociedade. Se estivermos na China é bom que sigamos os costumes chineses.

Sabe-se que o jovem que faleceu ia ingressar na Universidade este mês. Será que os pais vão ser reembolsados do dinheiro das propinas? Tudo vai depender do tipo de contrato que foi feito. Claro que do ponto de vista humanitário a decisão correcta será o reembolso.

Professor Associado do IPM

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

19 Set 2017