Poucas condenações nos tribunais

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o sábado passado, o jornal “South China Morning Post” publicou uma peça crítica sobre a relativa baixa taxa de condenações verificada na “Magistrates Court” de Hong Kong, que não passa dos 50%, segundo dados oficiais. Ou, posto de outra maneira, a acusação ora ganha, ora perde um caso.
Em Hong Kong, a “Magistrates Court” representa o tribunal de justiça mais baixo daquele território, equivalente ao Tribunal de Primeira Instância da RAEM. A taxa de condenações mencionada no primeiro parágrafo deste artigo refere-se à quantidade de vezes que um arguido trazido a tribunal foi considerado culpado. Pode-se então dizer também que o Governo de Hong Kong apenas ganhou metade dos casos considerados neste tribunal, visto serem estes os responsáveis pela acusação.
O departamento responsável por assuntos legais em Hong Kong opera debaixo do título “Department of Justice” (DoJ), sendo dirigido pelo “Secretary for Justice”. Acaba na verdade por ser o equivalente ao Ministério Público da Região Administrativa Especial de Macau, apesar de na RAEHK o departamento encarregue da acusação constituir um sub-departamento do DoJ, sendo este chefiado por Grenville Cross, que ocupa o cargo de “Director of Public Prosecution” (DPP), conhecido também como o número dois do Departamento de Justiça daquele território. Pois foi então este dirigente que se encarregou da autoria do artigo agora por nós analisado.
Duas razões específicas podem ser apontadas como as causas da baixa taxa de condenações descrita por Grenville. A primeira deve-se aos advogados recentemente licenciados, pois recentemente mais e mais casos têm vindo a ser defendidos por indivíduos recém-formados, o que pode pôr em causa os padrões de qualidade da acusação. Todavia, o Secretário para a Justiça da RAEHK manifestou uma opinião diferente, pois segundo este responsável, uma das mais importantes funções do Department of Justice é exactamente treinar novos advogados. O segundo factor apontado por Grenville tem a ver com a saída de procuradores públicos da Magistrates Court. O procurador público é o responsável pela acusação dos processos levados a julgamento neste tribunais, que normalmente requer a contratação de 102 pessoas para esta posição. Porém, o Governo da RAEHK parou de contratar novos procuradores em 2008, havendo agora apenas 80 indivíduos encarregues desta função. Assim, a sua carga laboral é naturalmente muito maior do que a normalmente antecipada.
Mas será justo apontar os advogados recém-formados como a principal causa da má prestação da acusação da Magistrates Court? Este argumento não é fácil de comprovar, mas podemos talvez tecer algumas considerações através da análise do ambiente de ensino de Hong Kong. Hoje em dia, os estudantes da RAEHK têm de investir quatro anos para completar um bacharelato numa universidade local. Depois de completarem este primeiro curso de direito, são então obrigados a frequentar o “Postgraduate Certificate in Laws”, com a duração de um ano. Só depois de completar com sucesso estes dois programas é que os candidatos se encontram aptos para os estágios profissionais, ou treino prático.
Um aluno que acabe o ensino secundário na casa dos 18 anos, tem ainda de estudar mais seis ou sete anos para se qualificar como advogado em Hong Kong, estando nessa altura com cerca de 24 ou 25 anos. Assim, temos de considerar se estes advogados recém-formados, apesar de legalmente qualificados, dispõem ou não da maturidade suficiente para gerir um caso de natureza criminal? A lei criminal lida com o crime, e o crime é praticado por um criminoso. Mas é normal encontrar delinquentes que sabem violar a lei sem porém ficarem sujeitos a nenhuma responsabilidade criminal, ou então sem deixar nenhum indício. Em contrapartida, e na maioria dos casos, um indivíduo com 24 ou 25 anos não está ainda casado, nem tão pouco acumulou nenhuma experiência profissional. Existe então uma grande probabilidade que este jovem advogado não saiba pensar como um criminoso, que se especializa em violar a lei. Mas, se tal for verdade, torna-se então muito difícil para este advogado conseguir ganhar um caso em tribunal.
Nos Estados Unidos, por sua vez, as universidades não oferecem nenhum curso de direito. Assim, uma pessoa tem primeiro de completar um curso universitário para depois poder estudar direito naquilo que são conhecidas como “Law Schools”. Mas, esse mesmo indivíduo, depois de completar primeiro um bacharelato e a seguir enveredar pelo estudo de direito numa instituição académica apropriada, só acaba a sua preparação académica na casa dos 30 anos. Podemos então assumir que seja dotado de mais maturidade do que os seus colegas de Hong Kong, mesmo que igualmente não esteja ainda casado nem tenha acumulado nenhuma experiência profissional. A experiência de vida de um advogado é essencial para o guiar na interrogação de um arguido ou testemunha durante um julgamento. Ao mesmo tempo, serve para o auxiliar quando necessitar de se pôr na pele de um criminoso para explorar possíveis falhas do sistema. Esta é aliás a principal razão pela qual os alunos interessados em seguir direito ou medicina nos Estados Unidos são obrigados a completar primeiro um outro curso qualquer, sendo assim o curso de direito ou medicina a sua segunda habilitação universitária.
Vamos agora então analisar a segunda causa indicada por Grenville – a falta de procuradores públicos. Em Hong Kong, este cargo não é ocupado por advogados. Os candidatos a este cargo têm primeiro que completar outras funções nos tribunais por longos períodos, e só são considerados para o cargo aqueles indivíduos que se distingam por um desempenho exemplar. Assim, apenas alguém com uma vasta experiência legal é que pode vir a assumir a posição de procurador público. Ao mesmo tempo, isto implica que já seja mais velho, assim como que já disponha de muita experiência de vida. Assim, não é normal ver um procurador público perder um caso em tribunal, pois toda esta experiência é vital para o ajudar a pensar como um criminoso.
Ainda assim, e como já mencionamos anteriormente, é vital que o Governo da RAEHK prepare novos advogados através da experiência adquirida em tribunal, ou seja, facilitando-lhes mais casos para levar a julgamento. Esta é sem dúvida uma boa prática, pois se estes recém-formados não conseguirem casos para representar nos tribunais, não vão nunca poder aprofundar os seus conhecimentos jurídicos, nem tão pouco avançar nas suas carreiras. Assim, mesmo que um jovem advogado perca um caso em tribunal, isto representa uma oportunidade para enriquecer a sociedade. Isto é um custo necessário para a sociedade de Hong Kong poder preparar a nova geração de advogados.

Podemos então considerar que a função das autoridades da RAEHK é exactamente balançar a necessidade de obter uma maior taxa de condenações na Magistrates Court com o desejo de oferecer mais oportunidades aos advogados recém-formados.
Talvez seja vantajoso para o Governo da RAEM considerar implementar algumas das medidas utilizadas em Hong Kong – para assim oferecer aos advogados locais mais oportunidades de aprofundar os seus conhecimentos. Esta pode mesmo ser uma das melhores maneiras para melhorar a qualidade dos advogados na RAEM.
O direito é um assunto prático. Não podemos aprender assuntos jurídicos exclusivamente através dos livros de ensino, mas temos sim que aplicar esses conceitos na vida real. Quanto mais praticarmos, mais vamos saber. É por isso que a máxima “a prática leva à perfeição” é sempre verdade no que concerne à lei.

31 Ago 2015

Hackers contra Ashley

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]ecentemente, ou mais exactamente no dia 20 de Agosto, o periódico “South China Morning Post” de Hong Kong publicou uma peça relativa ao website “Ashley Madison”, propriedade da companhia “Avid Life Media”. De acordo com a “wikipedia”, este site tornou-se famoso pois “Ashley Madison, apesar de sedeado no Canadá, fornece um serviço online de procura de parceiros sexuais em todo o mundo, assim como a possibilidade de promoção individual através desta rede social, mas destinado a pessoas que estão ou casadas ou que se encontram envolvidas numa relação séria. O slogan utilizado pela empresa chega mesmo a recomendar ‘A vida é curta, desfrute de uma infidelidade’.
Até Julho de 2015, o site registava mais de 37 milhões de utilizadores, apesar de na Ásia, só se encontrar disponível para residentes de Hong Kong, Israel, Japão, Filipinas, Taiwan, Coreia do Sul e Índia.
Além disso, a “wikipedia” acrescenta ainda que “no dia 15 de Julho de 2015, o site foi atacado por uma equipa de hackers, ou piratas cibernéticos, que se auto-denomina ‘The Impact Team’. Estes indivíduos afirmaram ter roubado a informação pessoal dos utilizadores deste site, e ameaçaram divulgar esta informação, onde se pode encontrar o nome verdadeiro dos utilizadores, caso o site não fosse imediatamente encerrado. Devido à política do site de não apagar a informação pessoal dos utilizadores, incluindo o nome verdadeiro, moradas, detalhes bancários e historial de busca, muitos dos utilizadores recearam vir a ser humilhados em público. No dia 22 de Julho, e conforme havia sido anunciado, os primeiros nomes de utilizadores foram divulgado, ficando prometido divulgar o resto da informação no dia 18 de Agosto.”American Beauty
O que fica por esclarecer é, o que levou este grupo a atacar o site “Ashley Madison”? A resposta pode talvez ser obtida através da análise de posts colocados em “menclub.hk”, que se julgam ser da autoria do mesmo colectivo. Aqui podia-se ler “a Avid Life Media (ALM) não cumpriu a promessa de encerrar tanto o Ashley Madison como o ‘Established Men’ (outro site do género que se especializa em ajudar jovens mulheres a encontrar homens já estabelecidos na vida). Já explicamos o fraude, a mentira e a estupidez da ALM e de todos os seus membros. Agora todos vão poder saber quem estes são na realidade.”
Será possível que algum dos vossos contactos íntimos esteja incluído neste grupo? Não nos podemos esquecer que este site é fraudulento, pois milhares dos seus perfis de mulheres são fictícios. De acordo com processos legais contra si erguidos, podemos concluir que de 90% a 95% dos seus utilizadores são do sexo masculino. O mais provável é que quem tiver se inscrito neste site julgava tratar-se da maior base de dados a nível mundial destinada a facilitar o adultério, porém tal situação não deve sequer ter sido alguma vez realidade.
Os comentários dos hackers acrescentavam ainda “você está aqui inscrito? Foi a ALM que vos deixou mal e que vos enganou. Levem-nos a tribunal e peçam uma compensação financeira. Depois sigam com as vossas vidas. Que esta experiência vos sirva de lição. Agora podem se sentir envergonhados, mas hão de superar este obstáculo.”
Devido à recusa em encerrar o “Ashley Madison”, um total de 9.7 GB de dados pessoais de clientes foram tornados públicos. Só de Hong Kong registaram-se no site 10 mil clientes individuais, tendo alguns destes fornecido o seu email profissional para contacto. E, através destes endereços electrónicos, podemos depreender que muitos trabalham na função pública e no departamento de educação, encontrando-se inclusive entre estes um repórter de uma das maiores cadeias televisivas do território.
Este ataque informático originou muitos comentários por parte dos cibernautas locais, tendo muitos deles optado por gozar com a situação. Um dizia, por exemplo, “que o caso Ashley Madison é uma excelente forma de me relembrar para usar o nome do meu sogro sempre que me inscrevo num site através da internet”. Outro notava que “hoje, os advogados de divórcio, os floristas e os proprietários de joalharias devem ter ganho a lotaria”, visto serem estas as opções normalmente disponíveis para aqueles que são acusados de adultério. Ou “se receberem flores hoje mas esta data não coincidir nem com a sua data de nascimento nem com a data em que conheceram o seu amante, é melhor telefonarem para os vossos advogados”. E, se uns admitiam a impossibilidade de traírem as suas mulheres com “eu não preciso do site da Ashley Madison, pois já disponho do Netflix” (um site de filmes), outros afirmavam talvez já ter ouvido falar do site, “este Ashley Madison é um sítio para descobrir nomes de bebés, certo? No mínimo, era isso que a minha mulher dizia quando estava grávida com a minha filha Tinder” (outro site para conhecer pessoas) ou “temos que contratar os tipos da Ashley Madison para nos ajudar a encontrar ISIS”.
Mas não vamos nos deixar levar apenas pelo cómico da situação, pois o caso “Ashley Madison” merece algumas sérias considerações.[quote_box_left]Esperamos no mínimo que o caso “Ashley Madison” nos ajude a compreender que, caso alguém seja apanhado a trair o seu marido ou mulher, a sua vida será certamente prejudicada e não enriquecida, como promovia o site com o seu já famoso slogan[/quote_box_left]
Primeiro, não nos podemos esquecer que o “Ashley Madison” serve de plataforma para que pessoas casadas possam trair os seus conjugues. Como os conceitos de lei e de moralidade variam de região para região, o negócio deste site pode porventura estar a quebrar a lei em alguns destes locais, ou no mínimo a lei moral. Em Hong Kong, por exemplo, o Governo concedeu uma licença de operação ao “Ashley Madison” em 2013, mas em Singapura, a Media Development Authority anunciou em 2014 não autorizar este serviço na cidade-estado, tendo em conta que o mesmo promovia o adultério e ia contra os valores familiares tradicionais.
As consequências de quebrar a lei são diferentes daquelas a que estão sujeitas os que quebram os ideais morais. Aqueles que quebrarem a lei estão sujeitos a sentenças obrigatórias como penalidade, podendo mesmo vir a enfrentar tempo de prisão, mas a violação dos ideais morais acarreta apenas a crítica da população, podendo nestes casos os arguidos ser obrigados a contrair o divórcio, por exemplo.
Em segundo lugar, os responsáveis por este ataque cibernético violaram com certeza a lei criminal ou no mínimo as leis que regem o ciberespaço, pois acederam aos dados pessoais dos utilizadores. Ao mesmo tempo, violaram o direito à privacidade destes utilizadores, pois os seus dados pessoais foram feitos acessíveis a toda a população. Mas podemos sempre defender que estes hackers pretendiam combater este apelo à infidelidade como forma de evitar o divórcio de muitos casais e assim manter essas famílias intactas, certo? Nesse caso, será que tinham razão ao decidir atacar este site?
Em terceiro lugar, como os hackers tornaram público o número imenso de perfis de mulheres que eram fictícios, será que estes devem ser acusados de ter quebrado a lei ou então aplaudidos por defender os interesses do consumidor?
Tendo em conta todas estas considerações, o que acham então os nossos leitores? Este ataque foi benéfico para a sociedade ou, pelo contrário, foi meramente um acto de vandalismo que deve ser punido de acordo com a lei?
Esperamos no mínimo que o caso “Ashley Madison” nos ajude a compreender que, caso alguém seja apanhado a trair o seu marido ou mulher, a sua vida será certamente prejudicada e não enriquecida, como promovia o site com o seu já famoso slogan.

24 Ago 2015

Inglês, uma linguagem de facto em Macau

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje proponho aos nossos leitores analisar um artigo divulgado pelo “Macau Daily Times” no dia 6 de Julho do corrente ano, intitulado “A de facto official language” e onde era discutida a utilização da língua inglesa em Macau. De acordo com a mesma fonte, “dados divulgados pela Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, mostram que 1.5% da população local indica o inglês como a sua linguagem habitual nos Censos de 2006, enquanto que em 2011 esse número cresceu para 2.3%”. Entretanto, “o Gabinete de Comunicação Social revelou que o Governo tem vindo a publicar uma grande parte do seu Relatório das Linhas de Acção Governativa em inglês desde 2000. Mais do que isso, e para além da informação disponível em chinês e em português, as autoridades emitem também comunicados em inglês quando o assunto for apropriado, mas especialmente no que toca às Linhas de Acção Governativa, saúde pública ou outros assuntos que possam ser interessantes para os meios de comunicação social do estrangeiro”.
Além disso, o artigo discutiu ainda a situação verificada em Hong Kong, avançando que o Governo da RAEHK usou menos o inglês do que o chinês nas suas comunicações com o público e a comunicação social. Ainda para mais, os dirigentes públicos usam sempre o chinês quando falam para a população. Mas, no caso de Leung Chun-ying, e desde Maio de 2014, o Chefe do Executivo utilizou o chinês em 61 discursos públicos, enquanto que o inglês foi apenas utilizado em 28 ocasiões do género.
“De facto” é uma expressão em latim, significando isso mesmo, de facto. Assim, uma língua oficial é diferente do que uma língua considerada “de facto”. De acordo com as leis locais, uma “linguagem oficial” é aquela que deve ser utilizada pelo Governo nas suas comunicações com os residentes. As linguagens oficiais a ser utilizadas em Macau e em Hong Kong são estipuladas pelas Leis Básicas de cada uma destas Regiões Especiais. A Lei Básica de Hong Kong indica tanto o inglês como o chinês como as línguas oficias da RAEHK, enquanto que o artigo 9 da Lei Básica de Macau aponta ora o português ora o chinês como as duas linguagens oficiais da RAEM, não fazendo contudo nenhuma referência ao uso do inglês para esta função.
Mas, mesmo apesar de a Lei Básica de Macau não lhe fazer nenhuma referência, nenhum de nós pode negar o uso do inglês nas nossas vidas quotidianas, sendo este idioma de particular utilidade para o contacto feito entre os advogados do território e os seus clientes. Tendo em conta que muitas empresas estrangeiras se encontram a operar na RAEM, de entre as quais se destacam os casinos, operadoras de seguro e mesmo bancos que aqui estabeleceram uma das suas sucursais, e que as suas chefias são preenchidas por americanos, europeus ou australianos, na sua maior parte, assim se percebe melhor esta necessidade, visto que os mesmos não dominam nem o português nem o chinês. Faz assim sentido pedir que um qualquer contrato seja redigido em inglês, para melhor proteger os seus interesses pessoais. Sofia Capola
Mas há que considerar um problema em particular. Um contrato tem sempre de ser aceite e rectificado (assinado) por pelos menos duas partes, que vamos aqui identificar como X e Y. Se X insistir em ter o contrato em inglês, e Y concordar, não existe aqui nenhuma disputa. Porém, se X e Y optarem em vez disso por redigir o contrato em chinês, e a seguir este documento necessitar de ser traduzido para inglês, então aí é que começam a surgir problemas, devido a eventuais discrepâncias entre as duas linguagens. Como é que se lida então com possíveis diferenças entre os dois contratos, um em inglês e outro em chinês, e qual dos dois é que prevalece sobre o outro?
Voltando outra vez ao artigo 9 da Lei Básica de Macau, e se X constituir o Governo de Macau, então X tem nesse caso o privilégio, pois o artigo 9 da Lei Básica de Macau obriga o Governo da RAEM a usar apenas o português e o chinês nas suas comunicações. Neste caso, o contrato em inglês existe apenas numa natureza suplementar.
Esta discussão fica limitada a contratos em que X é assumido como sendo o Governo de Macau e Y como um estrangeiro. Mas como será a situação se tanto X como Y forem residentes locais? Poderiam estes pedir aos seus advogados para redigirem o contrato em inglês?
Para responder a esta questão, temos primeiro de tecer duas considerações. Primeiro, pode o inglês ser usado para redigir um contrato? E, em segundo lugar, pode um advogado usar o inglês para preparar um contrato?
O artigo 9 da Lei Básica de Macau apenas restringe o Governo de Macau a usar o chinês e o português nas suas comunicações. Já no que diz respeito aos seus residentes, nenhuma restrição do género existe. Assim sendo, não é ilegal o pedido de utilização do inglês nos respectivos contratos.
Mas, em relação à nossa segunda consideração, se desejarmos ver o nosso advogado a redigir um contrato em inglês, existe nesse caso o pré-requisito que esse advogado seja fluente em inglês. Em Macau, os residentes locais estudam este idioma desde a escola primária, e nalguns casos desde o ensino infantil, ou pré-escolar. Mas quando os mesmos se inscrevem no ensino superior para um bacharelato em direito, este curso só pode ser completado em língua chinesa ou portuguesa, não sendo o inglês uma opção. Compreende-se assim que a maior parte dos termos legais são mais facilmente expressos ou em português ou em chinês, e não em inglês. Assim sendo, torna-se mais difícil preparar um contrato em inglês do que em português ou em chinês, e por esta razão é que os advogados preferem utilizar uma das duas línguas oficias na preparação deste tipo de documentos.
Com o constante aumento no número de estrangeiros a residir em Macau, cresce também a necessidade de utilizar esta língua, por isso a importância deste idioma aumenta de dia para dia na RAEM. A constante procura do inglês para a formulação de contratos faz com que este tenha cada vez mais importância em documentos legais. Em casos de disputa envolvendo um contrato em inglês, apenas o tribunal tem poder para resolver a questão, por isso, e nestas situações, o inglês acaba por ser útil para advogados e juízes, assim como para a área legal em geral. No futuro, se quisermos que o inglês venha a ser reconhecido como uma língua oficial, teríamos de considerar rever o artigo 9 da Lei Básica de Macau, e passar a fornecer no mínimo uma parte do ensino do direito neste mesmo idioma.

17 Ago 2015

Gorjeta graciosa

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e, porventura, o nosso leitor ganhar nas mesas de jogo, ou se algum vosso conhecido decidir atribuir-lhe mil patacas como prenda de aniversário, esse montante seria considerado como afortunado ou um símbolo de boa sorte. Ainda mais se tivermos em conta o facto de essa remuneração monetária não ser fruto de trabalho árduo, como seria normalmente de esperar. Quantos dos nossos leitores é que já foram premiados desta forma?
Qualquer um de nós se pode considerar sortudo se tiver dinheiro suficiente para concretizar os seus sonhos pessoais. E você, considera-se uma pessoa dotada de boa sorte?
Sobre este tema, o site “redalertpolitics.com” publicou uma notícia no dia 21 de Julho sobre Brendan Motill, um jovem natural de Illinois, nos EUA, que se encontrava a servir à mesa no “Smokey Barbecue” de Frankfort, no mesmo estado americano. De acordo com a peça, Brendan recebeu uma gorjeta de 1000 dólares americanos, após passar 10 minutos à conversa com um cliente deste restaurante. Para além do dinheiro, o mesmo deixou ainda uma nota a Brendan, onde se podia ler a mensagem seguinte.

Brendan,
Obrigado pelo teu serviço atencioso! Considero-te um “garçon” impecável, por isso deixo-te aqui esta gorjeta. Apesar de não saber o que pretendes da vida, espero que este dinheiro te ajude a concretizar os teus sonhos.
Por vezes, a realidade em que vivemos pode ser demasiado negativa, mas tenho a esperança de vir a viver num mundo em que todos sejam mais cordiais para com os outros. É para esse fim que pratico actos de solidariedade com pessoas desconhecidas, de modo a motivar outros a fazer o mesmo!
Que a vida te dê tudo o que desejas, meu irmão.

[quote_box_left]Qualquer um de nós se pode considerar sortudo se tiver dinheiro suficiente para concretizar os seus sonhos pessoais. E você, considera-se uma pessoa dotada de boa sorte?[/quote_box_left]

Devido à notoriedade que o caso ganhou, Brendan chegou mesmo a ser entrevistado pelo canal televisivo ABC7. Questionado sobre a sua reacção a esta nota, o mesmo salientou que “fiquei de boca aberta, em choque, sem conseguir me mexer nem fazer nada”. Apesar de ter tentado agradecer ao cliente misterioso, Brendan não o conseguiu mais encontrar, pois este saiu mal acabou de pagar a conta, deixando Brendan sem saber o que fazer. Na mesma entrevista, o mesmo adiantou ter ficado “muito emocionado com tudo isto, e precisei de uns momentos para me recompor e acalmar as emoções”.
Brendan reside em Tinley Park, onde acabou o ensino secundário na Tinley Park High School. Assim, pretende que estes 1000 dólares americanos venham a ser investidos no curso de contabilidade que pretende completar numa universidade local. “Este dinheiro vai me ajudar muito a concretizar esse sonho”, rematou o mesmo.
Esta quantia seria equivalente a 7.800 dólares de Hong Kong, ou na moeda local, a 8.034 patacas. Qualquer um de nós pode apenas sonhar em receber tal montante em compensação por uma conversa inócua de 10 minutos com um estranho qualquer. Ou será que os nossos leitores não concordam comigo?
O Brendan tem apenas 19 anos de idade, por isso ainda tem a vida toda pela frente. Mas como irá o mesmo gastar esta quantia? Será que vai acabar por o usar para as propinas da universidade, como tenciona, ou optar em vez por o doar a alguém, num acto de caridade semelhante aquele que recebeu? Ou talvez venha a gastá-lo com a sua família? Só Brendan é que pode responder a estas questões, mas se o mesmo decidir usar o dinheiro em prol da sua sociedade, todos nós temos o dever de o ajudar.
Não há dúvida que Brendan aparenta ser uma pessoa dotada de boa sorte, algo que apenas os deuses podem atribuir. Um ser humano pode apenas pedir aos deuses que lhe atribuam boa sorte, mas só os mesmos é que detêm o poder de decidir quanto cada um de nós é digno de receber. Não vale a pena tentar negociar este facto, é uma verdade imutável que tem apenas de ser aceite.
Este caso trouxe-me à memória uma canção em cantonense intitulada “I am lucky”, cantada por Deanie Ip. Reproduzo aqui parte da letra desta canção.

“Acredito com firmeza poder agarrar a sorte com as mãos,
Ela ajuda-me a voar mais alto,
Quero que vocês sejam felizes comigo,
Sinto-me tão excitada,
Como tenho sempre vindo a dizer,
Hoje o meu sorriso é doce”.

Assim como nesta canção, acredito que Brendan deseja que todos “possam partilhar da sua felicidade”.
Não podemos aqui deixar de focar também a nossa atenção no cliente misterioso que deixou a gorjeta no primeiro lugar. Será que o mesmo é alguém conhecido por todos ou talvez um magnata com muito dinheiro? Apesar de não podermos responder a estas questões, temos a certeza de ser uma boa pessoa, visto ter sido tão generoso com a sua gorjeta e atencioso com a nota em que deseja que Brendan venha a concretizar todos os seus sonhos. Quantos de nós seríamos capazes de tamanha generosidade para com um desconhecido qualquer? Na sua mensagem, o mesmo afirma fazer estes actos de modo a inspirar outros a fazer o mesmo, e assim vir a mudar a sociedade em que vivemos. Não sabemos igualmente se isto é verdade, mas tomando o caso de Brendan como referência, não é impossível acreditar que assim o seja.
Além disto, o cliente abastado ainda tem mais um desejo, que é de poder viver numa sociedade mais tranquila, em que as pessoas se interessam umas pelas outras. Aliás, este desejo tem vindo a ser exprimido por muitos, de modo a que todos possam viver unidos pela paz.
As nossas leis não podem pedir a ninguém para agir da mesma maneira, como também nos podem ajudar na concretização dos nossos sonhos pessoais (excepto talvez para aqueles que pretendam seguir uma carreira ligada ao direito). Pois, ao invés da sorte, as leis não existem apenas para nos fazerem felizes.
O caso de Brendan é extremamente raro nos dias de hoje. Mas, dependendo da sorte de cada um, além também da vontade divina, qualquer um de nós pode um dia vir a conhecer o seu próprio “cliente misterioso”.
Na verdade, este cliente acaba por trazer boa sorte não apenas a Brendan, mas também a toda a população, pois esta caso ajuda-nos a voltar a acreditar na bondade de cada um de nós. Deste modo, contribui então para fazer com que as nossas sociedades se tornem mais pacíficas e maravilhosas.
Vamos então concluir este texto com o desejo de que todas as pessoas deste mundo tenham a mesma boa sorte do que Brendan, e ainda que existam por aí mais “clientes misteriosos” com a boa intenção de mudar o mundo para melhor.

* Conselheiro Jurídico da Associação de Promoção de Jazz de Macau

10 Ago 2015

Importação paralela III

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m artigos anteriores, temos vindo a discutir os recentes casos de importação paralela verificados em Hong Kong, e hoje vou discutir o mais recente desenvolvimento desta polémica.

Nos últimos dias de Julho, a “Magistrate Court” de Tuen Mun foi palco de um processo referente à importação paralela de bens da China para a RAEHK, região especial em que se utiliza um sistema legal diferente do de Macau, registando-se semelhanças apenas no que toca à organização dos tribunais. Neste caso, o julgamento teve lugar numa “Magistrate Court”, os tribunais onde todos os casos-crime se iniciam ou onde se julgam os crimes menos severos, equivalentes ao Tribunal de Primeira Instância da RAEM.

Neste caso em particular, quatro suspeitos foram considerados culpados das acusações contra si apresentadas, estando os detalhes dos mesmos contidos na tabela abaixo:

Réu Crime Sentença
 Ng Lai-Ying  Assaltar agente da autoridade  3 meses e ½ de prisão
 Kwong Chun-lung  Obstrucção de justiça Centro de formação *
 Poon Tsz-hang  Obstrucção de justiça 5 meses e 1 semana de prisão
 Identidade não revelada Assaltar agente da autoridade Centro de reabilitação por ser menor de idade (14 anos) **

* Centro onde os infractores recebem formação profissional para facilitar a sua reinserção na sociedade após o cumprimento da pena ** Centro onde são albergados os indivíduos que não tenham ainda completado 18 anos de idade

Todos os réus foram libertados mediante o pagamento de uma fiança, para aguardar em liberdade o resultado dos apelos à sentença que foram solicitados pelos seus advogados. Quando questionado pela imprensa sobre os motivos que o levaram a permitir esta liberdade provisória, o juiz Michael Chan Pik-kiu defendeu que a apresentação destes apelos era na realidade uma perda de tempo, pois quando estes viessem a ser ouvidos por um tribunal superior, a sentença dos arguidos já teria sido quase comprida na totalidade. Assim, o magistrado achou que seria mais justo o pagamento de uma fiança em troca da redução da pena de prisão em favor de liberdade provisória.

Durante a leitura da sentença, o juiz argumentou ainda que “necessito, no caso em questão, de aplicar uma pena severa para que possa servir de dissuasor para outros no futuro, de modo a que não pensem que agredir um agente da autoridade seja um acto trivial, nem mesmo durante a realização de protestos”. Ao mesmo tempo, o magistrado revelou ainda estar a “temer pela sua segurança”, visto ter recebido ameaças à sua integridade física de parte desconhecida, mas que estas não haviam influenciado a sua decisão, nem tendo sequer chegado a conseguir perturbar o seu estado de espírito.

Desta forma, o magistrado cumpriu com rigor os requisitos da sua profissão, limitando-se a exercer o seu papel e a analisar as provas apresentadas sem pressões políticas e livre de quaisquer ameaças.

Mas que ameaças terão sido a si dirigidas? Sobre esta questão, o site “news.theheadline.com” publicou no dia 31 do mesmo mês uma peça com mais pormenores, onde ficou demonstrado o conteúdo do prenúncio, conforme abaixo descrito:

– linguagem grosseira e abusiva
– ameaças de um acidente envolvendo o mesmo
– possibilidade de danos corporais contra a sua família

Até mesmo durante a realização do julgamento, a audiência foi interrompida por alguém que manifestava o seu desagrado em voz alta, do lado de fora da sala, com palavrões contra o magistrado, que solicitou imediatamente a detenção do prevaricador pelos agentes da polícia, que todavia não tiveram sucesso na detenção. Mesmo assim, o insólito foi o suficiente para justificar a intervenção do Departamento de Justiça de Hong Kong, que prometeu numa notificação pública abrir uma investigação sobre este caso.

Torna-se assim impossível negar o grave impacto social que este tipo de actividade económica tem tido sobre a RAEHK. Entre as reclamações mais frequentes, encontram-se os engarrafamentos frequentes, a deterioração da higiene pública e ainda o aumento em flecha das rendas nos locais onde os mesmos se concentram, por exemplo. Na maioria dos casos, as áreas afectadas estão concentradas junto à fronteira entre Hong Kong e a China, onde uma grande parte dos residentes não hesita em manifestar o seu desagrado para com estas novas agravantes. Tudo isto culminou em negociações entre os responsáveis da RAEHK e os seus colegas de Shenzhen, onde foi decidido mudar os vistos concedidos aos visitantes do continente. Onde no passado os mesmos podiam gozar do “Multiple Entry Visa” (ou vistos de entrada múltipla), estes agora podiam apenas solicitar vistos segundo o “Individual Visit Scheme”, ou vistos de visita individual, permitindo os mesmos apenas uma visita ao território por semana. Mas tiveram estas restrições algum sucesso em impedir a importação paralela de bens? A resposta não é, até ao momento, fácil de fornecer, mas esperamos que as novas medidas consigam solucionar eficientemente os problemas correntes.

Se estas novas políticas de imigração forem suficientes para reduzir o grau de insatisfação manifestado pela população da RAEHK, considero então que o Governo agiu de forma correcta, tendo este encontrado a melhor fórmula para resolver o problema. Mas a questão debatida neste artigo não se limita à importação clandestina empreendida entre a China e Hong Kong, vai mais além e inclui ainda as ameaças feitas contra um juiz da RAEHK, assim como os distúrbios verificados fora da sala de audiências e os palavrões dirigidos a este oficial de justiça.

Se o leitor se colocar na pessoa de Michael Chan, e se imaginar como a pessoa encarregada de presidir sobre este julgamento, estaria preocupado com a sua integridade física, como ainda a da sua família? Se sim, teria demonstrado a mesma integridade pessoal, continuando a desempenhar as suas funções, chegando mesmo a considerar os quatro suspeitos presentes a julgamento como culpados do crime de que tinham sido acusados?

Não é difícil imaginar que, caso o juiz tivesse ficado assustado com esta ameaça, a sentença poderia ter sido diferente e os mesmos arguidos poderiam mesmo ter sido considerados inocentes. Mas caso assim fosse, os residentes desta região especial ficariam com a impressão que obstruir ou mesmo assaltar um agente da autoridade não constitui uma ofensa séria, não passando este acto de uma trivialidade banal. Pior ainda, os mesmos poderiam no futuro vir a assumir que a sentença de qualquer caso-crime pode ser influenciada através de ameaças dirigidas aos magistrados em causa. Agora, podiam estes desenvolvimentos ser aceites numa sociedade que se diz justa e obediente?

A resposta para esta questão é óbvia, e não requer mais nenhuma explicação. Não nos podemos esquecer que todos temos a obrigação de apoiar e defender qualquer juiz que se encontre a desempenhar as suas funções de acordo com a lei. Isto é o mesmo que dizer que o estado de direito (rule of law) tem de estar sempre presente nas nossas mentes, pois todos temos a obrigação de cumprir a lei e não perturbar a ordem pública. Todos desejamos que os magistrados possam desempenhar o seu papel sem pressões externas, e para que isto aconteça é necessário garantir que o sistema jurídico tenha poderes suficientes para garantir a protecção efectiva dos agentes de justiça, sem a qual não seria possível garantir o cumprimento da lei por parte da população.

O estado de direito é uma componente fundamental de qualquer sistema legal, quer se trate de um caso julgado em Macau como num que tenha ocorrido na RAEHK, e no caso em que este não seja defendido, o território ou localidade em questão virá invariavelmente a ser afectado.

3 Ago 2015

Táxis de Macau

[dropcap style=’circle’]No[/dropcap]dia 6 de Julho deste ano, o jornal local “Hou Kong” publicou uma peça que continha a informação mais recente sobre a fiscalização efectuada aos táxis do território, tendo em especial atenção as recentes queixas de comportamento ilegal ou inapropriado por parte dos seus condutores.
Segundo a mesma notícia, durante a primeira parte de 2015, a Polícia Judiciária e o Departamento de Trânsito conduziram operações conjuntas de forma a combater os operadores de táxis ilegais. No total realizaram-se 3.037 processos judiciais, cobrindo ofensas diversas, conforme especificado na tabela abaixo:

Queixas apresentadas Número de casos processados Percentagem
Cobrar em demasia 730 24.04%
Recusar passageiros 919 30.26%
Utilização de outro veículo 124 4.08%
para transporte de passageiros
Recolha de passageiros 100 3.29%
em local indevido
Outras 1.164 38.33%
TOTAL 3.037 100%

A mais recente operação deste género destinava-se não só a combater a operação de táxis ilegais, mas também a realização de ofensas por parte dos condutores devidamente registados, para desta forma melhorar a imagem dos transportes públicos de Macau e ainda para garantir a defesa dos direitos dos utentes deste tipo de transporte.
Uma grande parte da população local tem vindo a manifestar o desejo de se proceder a uma maior inspecção e monitorização desta forma de transporte público. Nos meses transactos, tem sido praticamente impossível obter um táxi à noite, pois durante este período os condutores de táxis conseguem distinguir se o potencial passageiro é local ou porventura estrangeiro, grupo este que constitui o cliente preferencial dos taxistas, visto dirigem-se norma geral a um hotel, casino ou sauna, que são locais de fácil acesso. Já quanto aos residentes locais, nunca se sabe onde estes tencionam ir, e se surgir por exemplo a necessidade de se dirigirem ao Hospital Kiang Wu, o percurso já apresenta um maior número de problemas e de atrasos, tendo em conta as ruas apertadas e congestionadas que rodeiam este centro hospitalar local. Se a viagem for realizada durante o dia, podemos facilmente imaginar o condutor a reclamar, dizendo coisas como “não sei como, mas parece que segui pelo caminho errado, agora vamos ter de dar uma volta maior”. Este tipo de esquema costuma acontecer quando a tarifa a receber não cobre, no entender do taxista, todo o tempo despendido nessa viagem, facto que justifica este solicitar uma compensação maior, mas também por vezes resolvido com umas voltas adicionais de forma a encarecer o trajecto.
Agora, estou convicto que o serviço prestado por estes taxistas tem vindo a registar uma melhoria em virtude da fiscalização recentemente efectuada. Ao que parece, e até mais ver, a maioria dos táxis tem estado a obedecer à lei desde então.
Isto não quer dizer, contudo, que não possam ser feitas melhorias ao serviço, e para o efeito pretendo aqui fazer algumas observações que devem ser resolvidas no futuro. Em primeiro lugar, se observarmos a estação de táxis do Terminal Marítimo do Porto Exterior, assim como a que fica localizada nas Portas do Cerco, verificamos que os táxis seguem sempre em apenas uma faixa de rodagem, que é normalmente a do lado esquerdo. Assim, não é possível apanhar um táxi na faixa do lado direito, pois normalmente não se encontram aqui veículos a aguardar passageiros. Por estas razões, os taxistas costumam ter opiniões diversas sobre qual das duas faixas representa a possibilidade de maiores receitas, preferindo uns a faixa da direita e outros a da esquerda. Mas, regra geral, a faixa da esquerda é a mais procurada, pois regista um maior número de percursos longos, que são obviamente os mais rentáveis. Salientamos, porém, que isto não é uma regra matemática, nem sequer chega o Governo a fazer qualquer diferenciação, por meio de sinais, entre as duas faixas, depreendendo-se então que esta observação é derivada exclusivamente da experiência dos motoristas. Por fim, a dúvida permanece por esclarecer, não sendo possível determinar com exactidão qual das faixas permite um maior encaixe financeiro por táxi, nem sequer perceber se seria vantajoso ou não permitir a recolha de passageiros quer do lado direito como do lado esquerdo, ou se seria possível oferecer mais conveniência aos passageiros caso se invertesse a ordem agora verificada. taxis
Outro serviço que merece uma maior reflexão é o chamado tele-táxi. Muitos residentes têm manifestado o seu descontentamento por não conseguir a marcação de um táxi desta forma, apesar de inúmeras tentativas. Mas, após uma breve conversa com alguns motoristas locais, foi possível perceber as razões que impossibilitam uma melhor oferta deste tipo de serviço. Vamos aqui imaginar uma situação em que um passageiro telefona para reservar um veículo, sendo ao mesmo oferecido um táxi, aqui chamado de A. Porém, quando este chega ao local pré-determinado, este verifica que o passageiro em causa acabou na verdade por apanhar um outro táxi, B, que se encontrava vazio. Neste caso, é o passageiro que se encontra em falta, e não o táxi A. Mas o que pode ser feito para evitar a repetição deste tipo de situações? Se por um lado temos necessidade de combater aqueles motoristas que praticam ilegalidades, temos também a necessidade de recompensar aqueles outros que operam com rigor e pontualidade. Assim sendo, compreende-se que o passageiro em causa, que apanhou o táxi errado, deve naturalmente ser penalizado pelo incumprimento do contrato, mesmo que feito por via oral, pois tal facilitaria a repetição deste tipo de situações.
Ultimamente, um outro tipo de modelo tem vindo a aparecer nas ruas da RAEM, em que carros particulares são utilizados para o transporte de passageiros, em substituição dos tradicionais táxis. Isto é mais frequente em certas zonas da cidade, e varia conforme a hora do dia. Certas manhãs, nas Portas do Cerco, é possível encontrar vários carros particulares a transportar clientes de um lado para o outro, serviço este que é remunerado por via monetária, entrando estes em competição directa com os táxis. Enquanto que certos passageiros preferem esta opção, visto os carros serem na maior parte dos casos mais confortáveis do que os táxis, outros há que não aceitam este desenvolvimento, pois consideram que os tais carros particulares não têm licença para operarem de uma maneira comercial, como aqui mesmo descrevemos. Além disso, as apólices de seguro de um e de outro não são iguais, nem e custo nem no tipo de cobertura oferecida. Regra geral, o seguro de um carro particular não cobre os passageiros, e no caso de um acidente, este não recebem nenhuma compensação por parte da seguradora. Este pode sempre optar por abrir um processo judicial para o efeito, mas não é garantido que venha a receber nenhum dinheiro, mesmo caso o Tribunal lhe venha a dar razão. Tendo isto em conta, sou da opinião que as autoridades não devem permitir o uso de carros particulares para o transporte comercial de passageiros, pois estes não se encontram devidamente assegurados, e também por isto vir na verdade a prejudicar financeiramente os condutores de táxis propriamente licenciados.
Em forma de remate, acrescento aqui o meu agrado pessoal em verificar que a indústria de táxis de Macau está a ser fiscalizada, ao mesmo tempo que se têm verificado melhorias no serviço. Toda a população pretende ver a continuação desta tendência, pois não só os residentes como os próprios operadores de táxis só têm a beneficiar do adicional aperfeiçoamento da indústria.

20 Jul 2015

Licença de parto  

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o dia 6 de Julho, o periódico local “Macau Daily Times” publicou um artigo sobre o pedido que a “Women’s General Association of Macau” apresentou junto do “Standing Committee for the Coordination of Social Affairs” (CPCS), para que a licença de parto seja aumentada de modo a passar a proporcionar um mínimo de 90 dias de férias, em vez dos 56 dias actualmente defendidos pela lei.
De momento, e segundo o artigo 54(1) da Lei de Relações Laborais de Macau nº 7/2008, uma mulher que trabalhe consecutivamente no mesmo local por mais de um ano tem direito a gozar de 56 dias de licença de parto.
Além do pedido para aumentar o número de dias de que a mulher dispõe para se ausentar do trabalho com salário pago, a Associação manifestou também a intenção de, no futuro próximo, poder passar a atribuir aos pais cinco dias de férias pagas para estes acompanharem as suas esposas durante o nascimento dos filhos. De forma a demonstrar que a ideia recolhe o apoio da população, a Associação recolheu 12,000 assinaturas junto de apoiantes desta iniciativa. Ao mesmo tempo, a “Women’s General Association of Macau” sugeriu às autoridades que ponderassem se deve ser o próprio Governo a oferecer este benefício aos trabalhadores, ou se por sua vez esta responsabilidade deva ser acarretada pela entidade patronal.
Para melhor auscultar a opinião da população, a Associação realizou um inquérito nas ruas do território, tendo para o efeito conduzido entrevistas junto de 3.017 residentes locais, todos do sexo feminino, tendo 85% dos inquiridos manifestado o seu apoio à proposta de alargamento do período de licença de parto, passando dos 56 dias actuais a 90 com a maior brevidade possível.
Wong Kit Cheng, o vice-presidente desta entidade, adiantou ainda na mesma peça que “vamos submeter os resultados deste inquérito ao Departamento de Relações Laborais assim como ao “Standing Committee for the Coordination of Social Affairs” (CPCS), para que estas entidades estejam a par da opinião pública quando procederem à próxima revisão da Lei das Relações de Trabalho. A maior parte dos inquiridos mostrou interesse em ver o pai da criança a ser igualmente beneficiado com alguns dias de férias pagas durante a altura do parto, além de desejarem poder beneficiar, no futuro, de 90 dias de licença de parto, tal como acontece em vários outros pontos do mundo”.
Quando um mulher dá à luz, aconselha-se que ambos desfrutem de amplo descanso. Assim, se a mulher tiver de comparecer no local de trabalho durante este período, facilmente se compreende que a sua saúde seria prejudicada. Além disso, caso o seu marido também tenha a possibilidade de gozar de uns dias de férias nesta mesma altura, a mulher beneficiaria de mais apoio durante esta fase tão importante.
Mas o bebé também beneficiará da eventual extensão do período de licença de parto, pois o ideal é este passar o mais tempo possível com a mãe, da qual o mesmo depende para tudo. Tendo tudo isto em consideração, sou da opinião que os pedidos da Associação são perfeitamente aceitáveis. 
Mas quem deve então suportar as despesas decorrentes da atribuição da licença de maternidade e de paternidade? No presente, a nossa sociedade apenas dispõe de subsídios para casamentos e nascimentos. Estes dois benefícios são os mais relevantes quando procedermos à análise da licença de maternidade e de paternidade. Se o Governo decidir suportar por si próprio estas despesas, isto seria o mesmo do que passar a incluir estes dois encargos nas provisões do nosso sistema de segurança social, pois estas férias passariam a fazer parte dos benefícios sociais a que os residentes de Macau estão intitulados. Mas, caso assim seja feito, será então necessário rever a política de atribuição dos subsídios de casamento e de nascimento? 
Para além disso, quando a licença de maternidade e paternidade passarem a ser incluídas no pacote de benefícios sociais da RAEM, estes passam então a assumir um carácter obrigatório. Quando o Governo incluir estas medidas na lei, qualquer residente permanente que preencha os requisitos legais tem então automaticamente direito a estas regalias. Mas nesse momento estas medidas passam também a ser um encargo financeiro para o nosso Governo. Torna-se assim necessário fazer a próxima pergunta – será que as nossas autoridades dispõem de verbas suficientes para realizar estes ajustes ao nosso pacote de benefícios sociais?
Uma outra opção seria pedir à entidade patronal que assumisse este encargo e suportasse por si própria a atribuição de férias pagas, tanto ao pai como à mãe, aos funcionários que tivessem acabado de ser pais. Mas esta alternativa acarreta também uma série de dificuldades acrescidas. Acima de tudo devido ao facto de qualquer companhia ser movida por interesses financeiros, e por isso mesmo se encontrar obrigada a registar lucros sucessivos de forma a continuar em operação. Mas se estes se encontrarem no futuro deparados com a obrigação de oferecer licenças de maternidade e de paternidade aos seus funcionários de modo a cumprir as suas obrigações legais e sociais, isto viria sem dúvida a aumentar os encargos financeiros destas mesmos empregadores. Atendendo a todas as dificuldades que os mesmos têm de enfrentar diariamente, seria então legítimo impor ainda mais esta obrigação às entidades profissionais da RAEM?
Talvez seja exactamente por esta razão que a maior parte das pessoas parece ser a favor de uma solução que estipule que o Governo venha a cobrir estes encargos em nome das entidades patronais, para que estas possam então oferecer as respectivas licenças de maternidade e de paternidade aos seus funcionários. Mas se considerarmos esta questão com mais atenção, vamos sem dúvida perceber que esta opção pode no entanto não ser a melhor solução. Pois, mesmo que os empregadores não sejam obrigados a suportar este encargo, visto o Governo estar disposto a reembolsá-los nessa eventualidade, os mesmos acabam sempre por sair lesados, visto serem obrigados a encontrar alguém que possa substituir os indivíduos que se encontrem de férias. E, se a licença de parto for aumentada para 90 dias, isto implica que o indivíduo em causa se ausente do seu local de trabalho por um período de três meses. Uma lacuna tão prolongada não é fácil de colmatar, ainda mais se os trabalhos tiverem forem altamente especializados ou dotados de uma forte componente técnica, pois nestas situações um trabalhador temporário dificilmente estará preparado para trabalhar por conta própria. 13710P18T1
E estas considerações são igualmente válidas para outras circunstâncias, fora do âmbito das licenças de maternidade e de paternidade. A 12 de Maio de 2014, publicamos aqui um artigo intitulado “Dia da Mãe”, em que mencionamos que as necessidades físicas de um homem e de uma mulher são na realidade bastante diferentes. Aí podiam os nossos leitores encontrar o seguinte parágrafo:
“As necessidades psicológicas e físicas de uma mulher diferem muito das de um homem, pois as mulheres estão sujeitas à menstruação. Durante este período de menstruação, uma mulher pode vir a sofrer de dores menstruais. Quando afligidas por este fenómeno, algumas mulheres não conseguem sequer comer nem beber, limitando-se assim a passar o tempo deitadas na cama. Por esta razão, as mesmas encontram-se impossibilitadas de trabalhar durante este período”.
De forma a poder oferecer mais protecção às mulheres, no dia 17 de Outubro de 2013 analisamos a possibilidade de criar legislações específicas para este mesmo efeito. Na altura, discutimos que Taiwan oferece um bom exemplo nesta matéria, visto este país ter implementado uma lei denominada “Lei para
a Igualdade dos Sexos no Trabalho”, que defende que uma mulher tem direito a solicitar baixa durante a sua menstruação. No total, esta lei estipula um número máximo de 12 dias por ano para estas situações, mas apenas três destes dias são pagos. A partir do quarto dia de baixa causada por menstruação, uma mulher pode na mesma gozar de férias mas o seu salário será deduzido de acordo.
Já que estamos a considerar a possibilidade de rever os parâmetros das licenças de maternidade, assim como de paternidade, talvez fosse boa ideia fazer um estudo sobre esta baixa devido a menstruação para as mulheres, de modo a que as mesmas gozem de protecção adequada nos locais de trabalho. Mas, seja qual for o caso, não nos podemos esquecer de analisar todos os pontos descritos neste artigo. O Governo têm a função de investigar e equilibrar as diferentes necessidades de um homem assim como de uma mulher, nunca se esquecendo dos requisitos do próprio empregador, assim como os das autoridades. Uma lei propriamente dita aparece assim como a fase final destas negociações entre as diferentes partes interessadas.
 

13 Jul 2015

O grau de felicidade

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]“Country Well-Being Rankings Report” para o ano de 2014 foi publicado a 26 de Junho deste ano. Tal como no anos anterior, este estudo baseou-se no “Gallup-Healthways Global Well-Being Index” de forma a apurar o grau de satisfação dos residentes de 145 áreas e países diferentes, fazendo esta edição o segundo ano consecutivo em que este relatório foi publicado.
Desta feita, foi o Panamá que obteve a primeira posição nesta compilação, tendo 53% dos seus residentes dado nota máxima no inquérito a três ou mais categorias diferentes. Pela sua vez, Hong Kong não consegui mais do que a posição 120, enquanto que Macau não chegou sequer a fazer parte dos países analisados.
Este “Global Well-Being Index” constitui então uma espécie de barómetro sobre as percepções dos indivíduos abrangidos relativamente à qualidade de vida em diferentes sítios e é na verdade o maior estudo do género realizado na actualidade. Esta última edição engloba 145 países ou regiões diferentes, incluindo um universo de 146 mil participantes em 2014. A informação está dividida em cinco áreas diferentes.
Além da óbvia pontuação geral obtida no estudo, queria ainda mencionar aqui algumas notas interessantes que observei no relatório. Primeiro, os residentes do Panamá obtiveram a pontuação mais elevada relativamente ao grau de motivação das suas vidas (60.5% – próspera) e quanto ao seu bem-estar físico (52.2% – próspero). Porém, no que concerne à qualidade das suas redes sociais e também das suas comunidades, a sua pontuação foi a mesma do que alguns dos outros inquiridos.
Em segundo lugar, Porto Rico, Noruega e Sri Lanka são os outros países que figuram no topo da tabela, tendo obtido as pontuações que se seguem:
• 63.3% dos habitantes de Porto Rico disfrutam de uma rede-social próspera
• 68.9% da população da Noruega tem uma situação financeira próspera
• 50.1% dos naturais do Sri Lanka consideram viver numa comunidade próspera

Em terceiro lugar, os países europeus são os mais prováveis de beneficiar de uma situação financeira próspera, sendo que nove dos 10 países com melhor classificação nesta categoria estão localizados no continente europeu. E no norte da Europa este facto é ainda mais acentuado, visto que dois em cada três residentes da Noruega (68.9%), Suécia (67.9%) e Suíça (66.1%) declaram gozar de uma situação financeira próspera. Singapura (52.4%) é o único país não-Europeu em que a maioria da sua população beneficia das mesmas condições.
Hong Kong e Macau devem tirar conclusões distintas deste relatório. No que diz respeito a Macau, e tendo em conta que o relatório nunca discute o território, não há comentários a fazer de momento. Mas, se desejarmos ver Macau incluído neste estudo no futuro, seria melhor que fossem feitas preparações antes que isso se verificasse. Tudo para garantir que Macau receba comentários favoráveis quando esta inclusão se tornar realidade.
Já quanto a Hong Kong, a fraca classificação registada neste estudo indica que os residentes da RAEHK se confrontam com inúmeras situações insatisfatórias. Como os problemas a ser combatidos com maior urgência, devíamos considerar os seguintes:
1. o preço elevado das rendas dos apartamentos, que fazem com que um cidadão normal não seja capaz de comprar um apartamento ou casa como residência pessoal (incluído no relatório na categoria referente à área financeira)
2. os pacotes de reforma não satisfazem as necessidades actuais dos reformados (categoria alusiva à comunidade)
3. os comerciantes envolvidos em importação paralela prejudicam o relacionamento entre os residentes de Hong Kong e os de Shenzhen (área social)
4. os longos horários laborais impossibilitam a realização de actividades lúdicas (motivação)
5. a pouca quantidade de terrenos disponíveis juntamente com a alta densidade populacional resultam numa fraca qualidade do ar, o que por sua vez afecta negativamente a saúde da população (saúde física)

Todavia, nenhum inquérito do género é perfeito, e este relatório não constitui excepção à regra, tendo limitações óbvias. Contudo, se atendermos a todas as reclamações aqui cobertas, não podemos também deixar de aceitar que, regra geral, este reflecte a realidade actual de uma forma correcta e fidedigna.
Mesmo que todas as insatisfações expostas venham a reduzir o grau de satisfação pessoal dos residentes da RAEHK, já faz tempo que tanto o Governo como a própria população local devem começar a elaborar estratégias de forma a combater estes problemas de uma forma eficiente. Vamos então continuar a prestar atenção ao desenvolvimento de Hong Kong de forma a acompanhar o progresso verificado nestas áreas, visto a tarefa não apresentar resolução fácil.

6 Jul 2015

Como vai o mega-empreendimento funerário afectar a relação entre Hong Kong e Shenzhen?

[dropcap]H[/dropcap]oje vamos analisar um artigo publicado no dia 18 de Junho pelo site “passiontimes.com”, de Hong Kong, em que foi revelada a intenção, por parte das autoridades locais, de construir um mega-empreendimento funerário na zona de Lo Wu.

De acordo com a Wikipedia, os “serviços funerários” são designados como “negócios especializados em fornecer enterros ou outros tipo de soluções para o armazenamento de cadáveres, assim como a organização de velórios ou outro tipo de serviços religiosos de forma a marcar o falecimento de um indivíduo, assim como o acompanhamento dos seus familiares. Um exemplo normal deste tipo de serviços incluiria o velório do morto, acompanhado do respectivo funeral, contando ainda com a reserva de uma capela para a celebração de uma missa durante o funeral. As agências funerárias coordenam o serviço de acordo com os desejos dos familiares ou amigos da pessoa falecida. Ao mesmo tempo, esta entidade trata de toda a documentação necessária, assim como de eventuais licenças e ainda outros detalhes adicionais, como por exemplo a coordenação com o cemitério ou a comunicação social, para a possível disseminação de obituários”.

De acordo com as notícias avançadas por esta mesma fonte este enorme empreendimento funerário vai começar as suas operações em 2022. Nessa altura, deverão estar disponíveis no mínimo 200 mil jazigos para o armazenamento de cinzas, espera-se ainda que o empreendimento possa suportar 178 mil cremações por ano.

De momento, Hong Kong dispões de 6 locais distintos para cremações, assim como de 134 igrejas onde se possam realizar serviços funerários, tudo isto para albergar os 42.100 falecimentos que se registam, em média, todos os anos nesta cidade. Pode-se assim concluir que a RAEHK dispõe no presente de mais oferta do que procura nesta área.

O mesmo artigo referia ainda que, em 2012, as autoridades locais decidiram fazer uma auscultação pública justo dos moradores de Sandy Ridge, a zona onde vai ficar localizado este empreendimento. E, apesar de nessa altura ainda haver muita gente reticente quanto ao futuro deste projecto, a maioria destes acabou por concordar na sua realização, facto este que foi comunicado ao Legislative Council no dia 9 de Janeiro de 2013. Mesmo assim, foi concordado que mais discussões sobre o assunto viriam a ser agendadas.

Com a concordância dos residentes de Sandy Ridge, o governo de Hong Kong não deve vir a enfrentar nenhuma dificuldade de maior quando começar a construção deste projecto funerário. Porém, outras vozes se levantaram em protesto, sendo que desta vez a maioria da posição é proveniente de Shenzhen. De acordo com Wang Rui, o representante do Comité Permanente do Congresso Municipal Popular, foi entregue uma proposta ao Governo de Shenzhen solicitando a oposição a este desenvolvimento. As principais razões apontadas para justificar esta tomada de posse prendiam-se com o mau cheiro que os residentes de Lo Wu e Shekou teriam de enfrentar, como resultados das inúmeras cremações que iriam aí ser realizadas, especialmente quando estes locais são assolados por ventos provenientes de sudoeste ou de sudeste. Outro factor determinante tem a ver com a possível depreciação do mercado imobiliário nestas zonas, tendo em conta que ninguém gosta de ter milhares de túmulos como eventuais vizinhos.

O caso ganhou entretanto uma grande popularidade e recentemente tem sido alvo de grande discussão em fóruns da internet.

Não é de estranhar que seja o lado chinês a levantar objecções, pois para além das razões já apontadas, para os chineses os funerais não são vistos com bom olhos, sendo mesmo um tópico tabu para algumas pessoas. O impacto psicológico é tal que algumas famílias chinesas chegam mesmo a proibir os seus filhos de trabalharem como agentes funerários.

Até ao presente momento, as discussões e as respectivas objecções existem apenas do domínio da internet. Mas as implicações que motivaram estas tomadas de posição são vitais. A maior parte dos nossos leitores ainda se devem lembrar dos acontecimentos do dia 8 de Fevereiro do corrente ano, em que mais de 100 residentes de Hong Kong realizaram uma manifestação em Tuen Mun contra os comerciantes suspeitos de estar envolvidos na importação paralela de bens. A maioria destes compra os itens em Hong Kong para que os mesmos possam depois ser revendidos na China, o que obviamente cria uma série de problemas aos residentes da RAEHK, tais como o aumento do custo das rendas e o congestionamento do tráfego nessas localidades, além da degradação da higiene pública e a eventual escassez de bens de necessidade diária como o leite em pó e alguns medicamentos, entre muitos outros. Para resolver o problema, o “visto de visita individual” que permitiam entradas múltiplas foram mudados em Abril deste ano, tendo na altura sido substituídos por vistos que permitiam apenas uma visita por semana. Estas novas medidas foram implementadas com efeito imediato, não tendo as autoridades procedido a nenhum tipo de consulta pública prévia.

Os cidadãos de Shenzhen foram os mais afectados por estes desenvolvimentos, especialmente porque a grande maioria de comerciantes envolvidos neste tipo de negócio eram provenientes da RAEHK. Ficaram na verdade bastante insatisfeitos, pois sentiam que haviam sido prejudicados pelos seus vizinhos de Hong Kong, que eram a real motivação para a nova política de imigração. Apesar de na altura não terem sido forçados a aceitar esta nova medida, temos de nos questionar sobre o seu estado de espírito, especialmente por terem permanecido tão silenciosos na altura.

Agora, com um mega-empreendimento funerário destinado a ser construído em Lo Wu, na fronteira entre Hong Kong e Shenzhen, o seu descontentamento parece ser ainda mais difícil de conter, visto este projecto não trazer nenhuma vantagem para os residentes do continente. Ainda mais difícil é de compreender se atendermos ao facto que até alguns residentes de Hong Kong se mostraram reluctantes em aceitar esta iniciativa. Esta nova farpa no relacionamento entre a RAEHK e Shenzhen, ainda por cima depois do escândalo relativo à importação paralela que resultou num maior controle nas fronteiras, faz com que a harmonia entre estas duas cidades passe no futuro a assumir um papel de extrema importância para todos nós.

Nenhum de nós gosta de ver conflictos e discordância. Se usarmos uma família como exemplo, e imaginarmos uma situação em que o irmão mais velho discute com regularidade com o mais novo, podemos facilmente concluir que isto acarretaria um enorme desgosto para os pais de ambos.

Historicamente, Shenzhen tem prestado uma grande assistência a Hong Kong. Mas o esperado aumento na procura de serviços funerários no futuro torna uma recusa deste projecto praticamente impossível. Tendo em conta os desenvolvimentos recentes, talvez este seja um bom momento para os governantes da RAEHK começarem a escutar com atenção os seus conterrâneos de Shenzhen. Mais ainda, o governo de Hong Kong vai ter saber como minimizar ou cancelar os eventuais inconvenientes que este projecto pode vir a trazer aos residentes de Shenzhen. Que tipo de medidas devem então ser tomadas para garantir uma resolução que possa ser vista com bons olhos pelos cidadãos de ambos os lados da fronteira? Esta questão requer não só uma abordagem do ponto de vista legal, mas vai também testar o talento político e ainda as relações interpessoais dos governantes da RAEHK. Seria então uma boa ideia que os mesmos usassem a relação harmoniosa que se verifica entre Macau e Zhuhai como um exemplo a ser estudado.

29 Jun 2015