Dos aniversários

All these places had their moments
With lovers and friends, I still can recall
Some are dead, and some are living
In my life I’ve loved them all
The Beatles, In My Life

 

[dropcap]O[/dropcap]lhem, amigos: gosto de celebrar os meus aniversários. Sempre terá sido assim mas sei que não é assim com todos. Quer dizer: no fundo acredito que o que muda são as nuances festivas porque na verdade ninguém fica imune às manifestações de estima que nessas alturas se recebe, independentemente da quantidade.

O aniversário, o único dia do ano que também tem o nosso nome, tem a extraordinária propriedade de crescer connosco. Adapta-se, ano após ano, ao que somos, a quem amamos e ao modo em que vemos o que nos rodeia. É uma espécie de fato à medida que os anos oferecem e mesmo que por vezes tenhamos a sensação de que nos está curto nas mangas, não está: somos nós que o teremos mal vestido.

No momento em que vos escrevo a minha data passou mas ainda está próxima – só que de forma suficientemente distante para a poder ver com um retrovisor que dá para a vida. Estou à mesa com os meus mais próximos no lugar do costume, pouco mais do que meia dúzia. Rimos, brincamos, salteamos conversas – nada que aparentemente se distinga de um jantar de todos os dias. E é nesse preciso momento que penso: a procura foi essa.

Crescemos com os aniversários de forma diversa. Quando crianças, mal damos por eles, apenas pela festa e pelas prendas (o que já não é pouco). Na juventude e anos imediatos a coisa tende a tornar-se mais grandiosa: cada celebração não pode estar abaixo de uma produção do Cecil B. De Mille. Todos os amigos e conhecidos e amigos de amigos de amigos e está certo. Tragam a cascata de gambas!

Depois, à medida que os anos passam e se tivermos sorte, fica apenas um ténue pretexto para privar com quem amamos, no sossego da nossa inquietação. Se é festa? É. Mas a parte boa é que às onze horas da noite podemos estar todos a dormir. Pela minha parte é uma suspensão bem-vinda do que penso todos os dias: a finitude, o cepticismo, etc. E sempre é nova a emoção com que essas certezas de barro se derretem perante o reencontro com a amizade e o amor.

Este ano – como o próximo, se lá chegar – não foi diferente. A não ser nisto: não há tempo para balanços ou nostalgia quando o presente nos oferece presentes. Vejo ao meu lado os meus filhos e o meu Pai reunidos e percebo o que o tempo é no seu melhor: memória, legado e respeito por tudo isso. Nesta constatação consigo parar e olhar para uma mensagem de um grande amigo que me pergunta: “No meio da vida acelerada ninguém percebe o tempo que uma flor demora a crescer. Para uma flor ficar intacta tem que sobretudo saber viver sem pressa. Corremos para onde, Nuno?».

Para onde não sei. Ou melhor, sei e suspeito que isso será das coisas que mais me inquietam. Mas é nestes dias que percebo onde podemos parar: na amizade, no amor. É o pouco que nos vale e é tudo – exactamente o mesmo que estaremos sempre em risco de desperdiçar. Pelo menos até ao próximo aniversário, que deveria ser já amanhã.

13 Out 2020

Lucidez versus Conhecimento

[dropcap]A[/dropcap] escritora alemã Clara Casper Krieger publicou em 1977 um ensaio sobre o acto de escrever, «A Arte da Previsão», que rapidamente se tornou um clássico entre as minorias de leitores de vários países. Leia-se à página 16: «Escrever, para mim, por um lado aproxima-se da filosofia: iluminar o que não se sabe, que mantemos escondido de nós ou nem suspeitávamos que nos rondava. Assemelha-se à apresentação de fantasmas. Escrever é apresentar aos outros, e antes de mais a nós mesmos, fantasmas, corpos invisíveis que nos rondam, que pressentimos, um para além da apresentação. Apresentar aquilo que não há, mas que existe. Por outro lado, escrever separa-se claramente da filosofia porque não traça um mapa de conhecimento para chegar a iluminar esse desconhecido que apresenta. O mapa que traço é ele mesmo desenhado a desconhecido e vou apagando os vestígios do que possa conhecer. Escondo o mais que posso o conhecido, para que o desconhecido possa brilhar melhor. Não se escreve com o que se sabe. Aquilo que se sabe é para esconder, para ser alicerce do desconhecido que queremos mostrar. Quem quer mostrar conhecimento, sabe bem que deve dedicar-se à ciência ou à filosofia. Por isso, há sempre mais acções de uma personagem do que aquelas que mostro. Há sempre mais que eu sei acerca das personagens do que escrevo. Não se trata, claro, de um saber teórico, mas de factos, como saber quantas colheres de açúcar põe no café ou até se prefere chá a café. São dados que tenho acerca da personagem, mas que não vejo interesse nenhum em revelar. Aliás, as minhas personagens são construídas em torno de uma tentativa de fuga do quotidiano ou da angústia de depararem-se com a impossibilidade de escaparem dele.» Aqui, os leitores de Clara Krieger rapidamente se lembram de Anna, a protagonista do romance «A Máquina de Lavar», que fazia psicanálise desde os seus 21 anos (tinha 39), porque não conseguia aceitar a sua necessidade de vida social. Anna tinha vergonha de gostar de estar com os outros. Mais: tinha vergonha de ter vontade de estar com outras pessoas. Há anos que tentava, em vão, livrar-se, não da vergonha, mas da necessidade de vida social. Ambicionava conseguir um dia libertar-se dessa necessidade, pois estava convencida de que isso seria o início de conseguir libertar-se de todas as coisas mais comezinhas da vida.

Anna não apenas tenta fugir do quotidiano como se confronta com a sua impossibilidade. O romance é impressionante, como sabem todos aqueles que o leram. Regressando ao ensaio de Clara Krieger, escreve:

«Escrever não é apenas fazer contas fictícias, contas entre a possibilidade e o sonho, é acima de tudo fazer contas acerca do medo que temos de não saber. A escrita não se aproxima da descrição do que é o mundo, não trata do que vê. A escrita aproxima-se da experiência de tentar explicar a um surdo o que é a música, explicar as cores a um cego. Porque escrever um sentimento ou um pensamento é precisamente isso. A escrita que não tente alargar impossíveis pode existir, mas não me interessa.»

E como não lembrar aqui, nós leitores dos romances de Clara Casper Krieger, da personagem de «A Pintora», Julia Scholz, que não reconhecia as cores, as confundia. O livro passa-se todo na cabeça, nos pensamentos de Julia, e a um dado momento lemos: «Para inventar cores e formas não preciso de saber se é verde ou vermelho.»

A escritora alemã faz assim, no seu ensaio, um exame sobre o que é para si o acto de escrever, uma espécie de «ars poetica», o que faz com os seus leitores estejam ao mesmo tempo a lembrar os seus romances, à medida que avança nas páginas do ensaio. Se a citação anterior do ensaio nos levou para aquela frase e para a Julia de «A Pintora», muito mais nos leva a citação seguinte, pois aquilo que a escritora diz acerca da escrita poderia – e foi dito – ter sido dito pela pintora, se trocarmos escrever por pintar. Leia-se: «O que me move a escrever é não ter a mínima ideia do que me leva a escrever. Ou o que move um humano a casar-se e a ter filhos sem perguntar seriamente por que o faz, mas aceita viver daquela maneira como se tivesse de ser, como se casar e ter filhos fosse como a rotação da Terra, as estações do ano ou beber água. O que me move a escrever é não saber o que é isto de ser humano, embora conviva com eles há décadas e seja uma ínfima parte do conjunto da totalidade deles. O pior dos pecados é julgar que se sabe. Os gregos antigos sabiam bem disso, se bem que não tivessem a palavra pecado. Não sabemos nada. Sabemos transformar tempo em dinheiro, pelo menos alguns sabem, e trocar uma lâmpada do tecto da sala.»

A meio do livro, Clara Krieger cita um poeta alemão seu contemporâneo e seu amigo, Hans Magnus Enzensberger, e cita estes versos do livro «Mausoléu», a propósito de um poema sobre o primeiro antropólogo moderno, o espanhol quinhentista Bernardino de Sahúgun e o livro «Descrição de Todas as Coisas da Nova Espanha», para explicar aquilo que a autora chama de lucidez: «“[…] O que lhe interessa de facto / nelas (logo em nós) não é o que se pode comparar, / mas aquilo que não compreende. // Uma ciência que vê o ser humano / como qualquer coisa de diferente. É o incompreensível / que mete medo, e é a única esperança.” Enzensberger dialogando com esse longínquo primeiro antropólogo, apropria-se da experiência dele para mostrar o que é o mister do poeta: “A caverna / Ali estende-se, ali torna-se longa e funda, / abre-se, estreita. É um lugar apertado, um lugar de angústia. Ali é intransitável, áspera. É um lugar terrível, um lugar de morte, um lugar de trevas. Ali é sombria, / escura. A sua boca está escancarada, fauces abertas. / Fauces largas, fauces estreitas. / Eu vou ficar na caverna. / Entro. Estou aqui. Estou na caverna.” A comparação entre escrever e estar isolado numa caverna não é difícil de entender, assim como a comparação que faz da escrita um lugar de morte, de trevas. Porque a escrita é como a noite, sombria, escura, traz à flor branca do papel os nossos maiores medos, os maiores temores. Escrever é adentrar a noite, habitar a noite da caverna. Desencantar todos os nossos medos, fantasmas. Também Kafka compreendeu bem este paradoxo da escrita, esta necessidade de excesso de escuro de modo a iluminar o que não se vê, quando escreveu: “Já muitas vezes pensei que, para mim, a melhor maneira de viver seria estar com utensílios para escrever e um candeeiro na divisão mais interior de uma cave fechada.” Enzensberger termina o seu poema com os seguintes versos: “e não se pode pôr um pé na terra do México / sem pisar o cadáver de um índio. // O massacre ‘em si, até se compreende’. / Tudo previsível, de fio a pavio / de cabo a rabo / pela segunda natureza, pela ganância / e o zelo – ordens, não é? Entendemo-nos todos / muito bem, pela situação de classe e economia. / Se a expressão ‘Um mundo diferente’ significa alguma coisa, / então significa qualquer coisa que não podemos prever.” No acto de escrever, o que é único, diferente, é a lucidez com que ilumina o que é a vida, de uma forma muito singular. Lucidez não é o mesmo que conhecimento, não é o mesmo que saber. Lucidez é ver sem conseguir explicar, ver sem saber. Nunca devemos escrever como quem sabe, mas como quem tem visões, como quem alucina. Devemos escrever como um profeta, não como um filósofo. Curiosamente, é isto a lucidez.»

E uma vez mais somos convocados pela memória para um romance de Clara Krieger. O livro não pretende verdades, mas antes, como diz o título, «previsões».

12 Out 2020

Perpetuum mobile

[dropcap]E[/dropcap]ntre 1926 e 1939, ainda na União Soviética, Béla Bartók compôs 153 peças progressivas para piano, em seis volumes, uma colecção famosa intitulada Mikrokosmos, organizada por ordem de dificuldade e destinada principalmente ao estudante de piano. Mikrokosmos, Sz. 107, publicada em 1940, é um dos marcos no repertório pedagógico do piano mas, no entanto, é muito mais do que um manual de piano “clássico”. As peças envolvem não apenas os aspectos técnicos da execução do instrumento, mas também os fundamentos da composição – como em “Ostinato”, “Variações livres” e “Imitação e inversão”, técnica composicional e ideias programáticas como em “Do diário de uma mosca” ou a famosa “Seis danças em ritmo búlgaro”, peças que formam a conclusão apaixonada desta obra única.

As peças progridem de estudos para iniciantes muito fáceis e simples a exibições técnicas avançadas muito difíceis, que são hoje em dia usadas na pedagogia moderna de piano. Segundo Bartók, a obra “surge como uma síntese de todos os problemas musicais e técnicos que foram tratados e em alguns casos apenas parcialmente resolvidos nas obras para piano anteriores “. Os Volumes 1 e 2 são dedicados ao seu filho, Peter, enquanto os Volumes 5 e 6 são concebidos como peças de concerto executáveis ​​profissionalmente.

Bartók indicou que essas peças também poderiam ser tocadas noutros instrumentos; a cravista Huguette Dreyfus, por exemplo, gravou peças dos Volumes 3 a 6 num cravo.

Este trabalho está em linha com outras obras didácticas de compositores pedagógicos como Pyotr Ilyich Tchaikovsky, Dmitri Kabalevsky e Sergei Prokofiev. Algumas peças são homenagens directas a teclistas, incluindo Robert Schumann, Johann Sebastian Bach e François Couperin. Outras são inspiradas na música folclórica, são estudos de ritmo ou de técnica pianística. No prefácio, o próprio Béla Bartók recomenda que os alunos pianistas não se contentem em aprender o instrumento tocando apenas as peças de seus Mikrokosmos, mas sugere também abordar os famosos Estudos de Carl Czerny, ou o Pequeno Livro de Anna Magdalena Bach, de Johann Sebastian Bach. Assim, a colecção educativa de Bartók não deve ser considerada como um método de piano, mas sim como uma colecção complementar às peças técnicas tradicionais.

Em 1940, pouco antes de emigrar para os Estados Unidos, a fim de aumentar o repertório que podia tocar com a sua mulher, Ditta Pásztory-Bartók, o compositor arranjou sete das peças de Mikrokosmos para dois pianos, intitulando-as Sete Peças de Mikrokosmos. Perpetuum Mobile , do Volume 5 de Mikrokosmos, e o número três do conjunto, é uma das obras mais exigentes da colecção, usando a peça anterior, Estudos em Notas Duplas, como trampolim de inspiração, principalmente nos seus aspectos rítmicos. No entanto, há trabalhos ainda mais difíceis à frente no Volume 6, o último livro de Mikrokosmos.

Perpetuum Mobile abre com um ritmo motriz que é a fonte do material temático. Motórico e implacável, adquire maior intensidade na subida e torna-se mais calmo à medida que desce no teclado. A música repete-se e incha, contrai-se e fica mais suave, sempre, porém, parecendo inquieta e nervosa.

 

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Perpetuum mobile, de Mikrokosmos, Sz. 107
3 Pianos, Bernardo Sassetti, Mário Laginha, Pedro Burmester – Sony, 2007

12 Out 2020

Organização da Polícia em 1867

[dropcap]Q[/dropcap]uando a 26 de Outubro de 1866 o Governador de Macau José Maria da Ponte e Horta (1866-1868) tomou posse, as circunstâncias determinavam a urgência de reformas nos vários serviços da Administração da colónia. Assim, logo em Novembro começou a nomear uma série de comissões para estudar e elaborar as necessárias reformas a empreender e entre elas constava uma nova organização para o Corpo de Polícia.

N’ O Boletim do Governo de Macau de 12 de Novembro de 1866, o Governador determinava:
O Corpo da Polícia desta cidade tinha então como comandante Francisco Justiniano de Souza Alvim Pereira, pertencente ao exército de Portugal e capitão adido ao Batalhão de Macau; como Tenente ajudante, Frederico Guilherme Freire Corte Real, tenente adido ao Batalhão de Macau pertencia também ao exército português; e como Tenente, Francisco Augusto Ferreira da Silva, tenente do Batalhão de Macau.

Corpo da Polícia de Macau

Uma nova força de Polícia fora organizada em 1857, a princípio exclusivamente do Bazar e depois geral de toda a cidade, pelo macaense Bernardino de Senna Fernandes (1815-1893), que o comandou até 1863, primeiro no posto de Capitão e depois como Major de segunda linha, de que hoje (1866) conserva ainda as honras. Mas a ideia inicial proveio do negociante chinês Aiong-Pong, com propriedades e lojas no Bazar, que em 1857 engajou por conta própria uma pequena guarda composta por europeus, à semelhança do que se fazia à noite com os “quartos chinas – vigias nocturnas. Todos os que tinham propriedades no bazar acharam boa ideia. Foi assim que Bernardino de Senna Fernandes e alguns chineses principais se uniram para aumentar essa guarda, de maneira a poder vigiar e guardar também os seus bens. Essa guarda devia ser paga por meio de subscritores chineses e para lhe darem existência jurídica, solicitaram a aprovação do governo, que lha deu pela portaria n.º 41, de 29 de Setembro de 1857 e publicada no n.º 50, do Boletim Oficial de 3 de Outubro. Ficava sob uma comissão de três negociantes chineses, que cobravam dos outros negociantes uma determinada quantia para manterem os 50 portugueses, que policiavam o bazar”, segundo o Padre Manuel Teixeira.

A 2 de Janeiro de 1859, o produto das licenças provenientes dos espectáculos de autos-chinas, realizados na Porta do Campo de St.º António, foi destinado à aquisição de armamento para a Força de Polícia, cujo comandante Bernardino de Senna Fernandes mandou vir da Inglaterra. Este criou também “a Polícia de Mar, que salvou muitas vidas e propriedades no tufão de 27 de Julho de 1862; com um dos seus vapores e mais duas embarcações de vela aprisionou, à testa de 25 homens da força do seu comando, quatro embarcações de contrabandistas chineses, guarnecidas cada uma com 87 homens e seis a oito peças de artilharia de grosso calibre; apreendeu ainda uma embarcação de piratas com $5230, remetendo tudo à Fazenda Pública; prendeu mais três embarcações de piratas, que andavam roubando as aldeias próximas de Macau”, segundo o padre Manuel Teixeira, que refere, “Tendo sido proibida a importação de víveres para Macau em 1858 depois da retirada dos chineses, ordenada pelos mandarins em consequência da guerra entre a China e a Inglaterra [2.ª Guerra do Ópio], conseguiu ele que os mandarins de Heong-shan e Ching-Shan suspendessem essa proibição.”

Por Portaria de 11 de Outubro de 1861, o Governador Izidoro Francisco Guimarães determinou a criação da Força da Polícia, e deu-lhe um Regulamento, com que se devia reger o Corpo de Polícia do Bazar que passou a chamar-se Corpo de Polícia de Macao. No extenso Regulamento, o Capítulo 1.º Artigo 2.º refere, . Assim Bernardino de Senna Fernandes tornou-se Major Comandante do Corpo de Polícia de Macao.

Já a 4 de Setembro de 1853, o Capitão Ricardo de Melo Sampaio atestara que Senna Fernandes em 15 de Agosto de 1849 acompanhara sempre a força que foi guardar a Porta do Cerco, servindo de meio de comunicação entre essa força e o Conselho do Governo, arriscando-se sem temor das balas. Foi também Presidente da Comissão Administrativa da Santa Casa da Misericórdia e superintendente da Emigração Chinesa, prestando ainda outros serviços à Colónia.

12 Out 2020

Das lamentações

[dropcap]D[/dropcap]e vez em quando mais alguém, que parte para outro lado do tempo, nos reúne. Na amizade, na melancolia, na companhia necessária ao que parte e a quem fica de mãos vazias e alma triste. E depois vamos comer. É importante comer juntos. Divergir para histórias e memórias e gafes recentes e carinhosas de amigos, na circunstância em que trocamos os pés pelas mãos. A perda de alguém que nos é querido ou que é querido a alguém que nos é querido. Uma cadeia em que nos situamos tristes, de um modo ou de outro.

Ali estamos, de frente para os três. Ele que partiu, Ele que talvez esteja e que preside a tudo e em quem, mesmo se não acreditamos, gostaríamos de acreditar e que queremos sentir atento, e que, se ajuda for necessária, mande um sereno par de anjos para mostrar o caminho da eternidade. E ele, o clérigo que, entre ambos, se dispõe a mediar em representação de quem lhe é superior. Que depressa nos faz sentir vermes abaixo. Como estando num anfiteatro enorme. Em cima aquele a quem desejaríamos ser, mesmo que momentaneamente, conduzidos como conforto e elevação, mais abaixo, o imponente representante, um pouco mais abaixo o que vai a caminho do céu e muito mas muito mais abaixo estes seres colocados no palco, quando diz que é para nós que se deve virar a atenção. Estávamos enganados. Pensávamos vir pelo que partiu ou está de partida para o céu. E pelo céu em si. Pelo espírito que tanto nos transcende destes corpos e que esperávamos que nos fosse apontado como quem nos mostrasse uma estrela.

Abespinhado pelo ínfimo atraso de quem veio desfalcada de atravessar noite de vazio e em branco, e pela congregação que nem toda se benzeu nem respondeu, que admoestada e já com a voz a sumir lá fez das tripas coração e amén. Tal e qual como crianças que quanto mais se lhes ralha menos respondem.

Ali estamos, em despedida, em companhia e numa certa nostalgia de crer que o momento inspira. Em algo que acompanhe quem parte, para um lugar utópico, que conduza serena e suavemente quem vai. E no respeito pela espiritualidade que, ansiamos, perpasse nas palavras, sobretudo nas que são espontâneas e livres do espartilho anacrónico das escrituras, e liberte ou suavize a dor de quem fica e fica com um enorme M de morte na alma, um pesado V de vazio a querer ganhar espaço e um enorme N que é a pessoa que não estando estará para sempre. E nos ouvidos as palavras de quem supostamente sabe. Sabe? Mas tropeçava sempre na leitura do nome inteiro, que não memorizou, como se a ler pela primeira vez e a custo e como se não o conhecesse de lado nenhum. E não conhecia. Desejamos para dentro que não se engane a encomendar-lhe a alma.

Vou dizer umas breves palavras – enunciou ao sair das escrituras – que não são para acusar ninguém. Acende-se uma pequena luz de alerta. Interrompemos-lhe mentalmente o fio condutor e paramos brevemente a perguntar-nos de que vamos ser seguramente acusados. Como miúdos da escola. Porque não soubemos ou não quisemos responder amém nos sítios próprios e mesmo depois de advertidos de que o tínhamos que fazer. A revolver na memória as palavras de estilo que nos competiam mas já as vozes sumidas e contrafeitas e tristes. Ficou zangado. Diz-nos que muitas pessoas não são cristãs, simplesmente baptizadas. Aí está. Desenvolve e acusa. Desenvolve e acusa. Cegamos porque não conseguimos ensurdecer. Aquilo é connosco. Não nos conhece mas não gosta de nós. E não quer que tenhamos ilusões de que Cristo também não gosta de nós. Mas não foi ao que viemos. Viemos por sentimentos, por anseio espiritual face à morte de alguém e à nossa futura em construção. Viemos por respeito. Qualquer coisa em que acreditar mesmo que por momentos, mesmo que seja uma metáfora bela que conforta quem está triste.

Que aponte uma luz, uma chama, uma ideia holística, uma harmonia no estar e no partir. Qualquer coisa. Ali, como em qualquer outro lugar de culto. Num templo budista ou à beira de uma falésia. Depois penso confortada que talvez o Cristo dele seja outro que não o nosso. A cada um o seu anseio. Um Cristo, ou outro.

Mas ali estava ele de figura imponente a desinfectar as mãos esguias e longas de minuto a minuto. Eu acho, dizia P. depois, enquanto caminhávamos ao longo do muro liso da cidade dos mortos, que ele, de cada vez que tinha um mau pensamento, desinfectava as mãos.

Algo sobe em mim e sei que num momento qualquer sem eu dar por nada, vai sair em palavras que não cabem ali. Não quero ouvir mais nada não quero ter mais nenhuma palavra daquela voz para lembrar não quereria que a minha amiga tivesse que ouvir mais nada. Saio. Longa pausa de silêncio e três cigarros.

Espreito discretamente e ainda oiço aquela voz maldosa. Recuo para o exterior de segurança. Volto a tempo de ouvir outra voz, uma voz de quem soube amar e cuidar e amou e ama, a dizer as últimas palavras e belas, antes da partida para a última morada. A voz e as palavras – aquelas – as únicas que valem a pena.

12 Out 2020

A forma mais correcta de encarar o mundo

[dropcap]O[/dropcap] meu pai sempre me disse: primeiro eu, depois eu, depois os meus, depois os outros. Por vezes dizia-o com alguma angústia, outras em tom sarcástico. Outras vezes parecia ser mesmo a sua explicação do mundo. O meu pai, no entanto, não é completamente egoísta nas suas acções. O que o faz defender esta ideia? Parece que é a razão que o leva a essa conclusão. No entanto, no exercício do seu dia-a-dia, ele é bastante mais benevolente do que o que pensa de si próprio.

O amor exclusivo a si próprio e a defesa de interesses meramente pessoais, parece um modus operandis perfeitamente legítimo no pensamento contemporâneo. Por um lado, porque o capitalismo nos ensinou que tudo deve ser um meio para um fim e, por outro, porque a racionalização de toda a interpretação do real impera nos recursos argumentativos como possibilidade única. Isaiah Berlin criticava os filósofos do iluminismo por acharem que para todas as questões, mesmo as filosóficas, existia uma única resposta, que devia ser a correcta e à qual chegaríamos aplicando um método inteligível: a razão. Através da razão, seria possível descrever toda a realidade de uma maneira completamente coerente e organizada. Era uma concepção monista da realidade. Mas porque utilizo aqui o pretérito imperfeito, como que se este tipo de interpretação da realidade política e social estivesse já ultrapassado? Não nos libertamos tão facilmente da Jaula de Ferro de Max Webber enquanto a racionalização e o desencantamento do mundo forem o principal eixo de pensamento à volta do qual organizamos o mundo. Mas não precisamos de ser tão ocidentais e modernos.

Meng Zi (traduzido para Mêncio em português), já alertava para os problemas da excessiva racionalização. Proclamava a benevolência e a integridade da natureza humana – e é fascinante ver como era já tão preciso sobre o papel da construção social no desenvolvimento da natureza. “Aquele que não tem compaixão, não é humano. Contudo, o homem nem sempre consegue concretizar o seu potencial de benevolente. Está na natureza de um pessegueiro ter pêssegos, mas sem um bom ambiente, ele não os dará. Todos temos potencial para a benevolência e para a rectidão, mas devemos concretizar esse potencial para nos tornarmos completamente virtuosos.” (Meng Zi, 2A6, 6A10). O confucionismo é, no ocidente, mais conhecido pela sua conceptualização da organização social através da piedade filial. No entanto, a “virtude” e o ser “virtuoso” são conceitos operacionais fundamentais para o pensamento confuciano. Esta é uma perspectiva milenar que já se referia à necessidade de se encarar o outro com benevolência – não porque isso iria ser benéfico num cenário pós-morte, como no cristianismo – mas antes porque a natureza humana é benevolente e é essa é uma vantagem igualmente lógica para a sociedade.

Não sei se algum dia poderei apresentar o Meng Zi ao meu pai. Provavelmente, de entre os filósofos chineses, iria antes apresentar-um dos precursores do egoísmo ético, Yang Zhu. Meng Zi dizia sobre ele “Mesmo se ele pudesse tirar um fio de cabelo para proteger um império inteiro, não o faria”. (Meng Zi, 7A26) Yang Zhu, o filósofo do “cada um por si”, escrevia que todas as acções que beneficiam exclusivamente quem as faz são naturalmente éticas. Na realidade, Yang Zhu era apenas um naturalista que acreditava que qualquer forma de interferência com a vida alheia, poderia ser prejudicial para todos. Focar-se em si, não tentar ajudar ninguém, nem tentar magoar ninguém.

Por vezes, gosto de pegar na visão que as pessoas que me rodeiam constroem do mundo, com a sua longa experiência de vida que me ultrapassa, e começar a enquadrar aquela perspectiva em filósofos que eu tenha lido. Descubro que há sempre duas ou três directrizes variáveis onde se pode enquadrar qualquer afirmação mas não gosto de chegar a uma única e correcta resposta. Nunca fui boa nas perguntas de escolha múltipla porque conseguia ver muitas vezes várias respostas correctas e ficava confusa. Se alguém diz ser egoísta mas é na verdade benevolente, o mais sensato é abraçar o paradoxo e vê-lo expandir-se em todas as direcções. Provavelmente, é esta a forma mais correcta de encarar o mundo: não ter uma forma correcta de encarar o mundo.

9 Out 2020

O activista desejável

[dropcap]É[/dropcap] mais fácil do que parece. O activista desejável não precisa de ser inteligente. Pelo contrário. O seu desconhecimento face ao assunto em que milita é uma vantagem. O seu desconhecimento é, aliás, inversamente proporcional à força das suas convicções. Um activista preocupado com apreender a diversidade de pontos de vista disponíveis sobre um mesmo assunto pode paralisar sob o peso da escolha. Ou tornar-se moderado. A moderação está para o activismo como chantilly para a sardinha. Não combina.

A criação de um activista depende de uma série de factores contextuais e esses dependem em última análise do tempo em que o sujeito vive. Não é possível condicionar o sujeito a adoptar uma causa demasiadamente datada, por mais justa e moral que esta pareça ser. Cada época tem o seu caleidoscópio de activistas e activismos e é dentro desse registo que se deve empurrar o sujeito para a escolha. Algumas causas são praticamente intemporais, indo e vindo em ciclos de indignação consoante a opinião pública as coloca mais ou menos em foco. Há assim períodos em que a floresta amazónica é o epicentro da revolta. Noutras ocasiões, uma catástrofe em África recorda-nos momentaneamente de que há fome no mundo. Algumas causas são circunstanciais e existem apenas enquanto o problema não se resolve ou enquanto a indignação não encontra melhor ninho. É o caso de uma guerra, por exemplo, ou de uma espécie exótica ameaçada.

Embora este tipo de activismo seja incapaz de mobilizar o sujeito para além do tempo da causa que lhe subjaz, é no entanto uma porta de entrada para o mundo da indignação geral onde o recém-formado activista pode rapidamente encontrar terreno mais fértil para a sua pulsão justiceira.

Mas as causas fundamentais são aquelas contemporâneas ao sujeito. Um dos pilares do activismo é a sua forte componente moral. O activista tem de sentir que está do lado certo da história e que de algum modo participa no gesto geral da criação de um mundo melhor. Tal como no caso da inteligência, não é necessário que de facto o sujeito se encontre mesmo do lado certo. Precisa apenas de acreditar que está. A complexidade moral e as subtilezas éticas são dispensáveis. Só iam confundi-lo. E a confusão pode levar ao esclarecimento ou ao imobilismo, sendo qualquer um deles prejudiciais à manutenção do moralismo justiceiro que move o activista.

Há que alimentar-lhe diariamente a indignação. No início convém ministrar-lhe doses generosas de injustiça. Podem ser requentadas. Basta colhê-la das páginas da história. Com o tempo, o paladar do activista torna-se mais refinado e já não aceita senão indignação fresca. A sorte é que nesse período da sua evolução, o activista precisa de muito menos alimento; qualquer espinha de iniquidade serve. O activista transforma a mais pequena das ocorrências num manjar capaz de saciar uma mesa de cardeais.

O que o activista não dispensa é a companhia da causa. Podem não ser muitos, mas têm de ser engajados. Para o activista, todos os aspectos e momentos da vida reflectem de algum modo a causa a que se dedica. O activismo é um oásis à volta da qual se estende um imenso deserto, mesmo que nesse deserto vivam e cresçam pessoas. Enquanto o mundo não reflectir com precisão quântica o modo como o activista o deseja ver reflectido, está fundamentalmente errado. Para tal é preciso converter a mole ignara para a causa que assume o primeiro lugar no pódio dos males do mundo. A companhia reforça o activista, ampara-lhe as crises de fé e escuda-o da iniquidade que vê por toda a parte.

Por último, convém que que o activista seja relativamente cego para a distinção do mundo em que vive e da realidade da sua causa. A maior parte dos activistas não habitam nos motivos da sua indignação. Felizmente, o humano vem equipado de série com a má-fé necessária para ser ambliope face à mais evidente contradição. Sigam-me para mais receitas.

9 Out 2020

Os donos da verdade

[dropcap]O[/dropcap] que é a verdade? A pergunta não pode ser isolada da pergunta no sentido contrário: o que á a falsidade? Encontramos várias respostas na filosofia. Verdade é que acontece, da maneira que acontece e, na versão negativa, é o que não acontece da maneira que não acontece. Mas a definição da falsidade implica um olhar que é enganado. Achamos que acontece o que não acontece ou que não acontece o que, de facto, acontece. Ou então achamos que é de uma maneira diferente que acontece o que acontece.

Do ponto de vista de Copérnico, o sol está parado e é a Terra que se move. Mas nós vivemos no mundo de Ptolemeu. Vamos ver o pôr-do-sol e não o levantar da Terra ou vamos ver o nascer do sol e não o baixar da Terra. Há evidências científicas ou experiências altamente sofisticas que nos comprovam que a Terra é esférica, mas localmente a Terra é plana ou assim o parece. Achamos que estacionamos o carro num sítio de uma determinada maneira e afinal o carro está noutro sítio e mal estacionado. Enganamo-nos nos dias, horas, sítios de encontros.

A verdade é real e objectiva. A falsidade resulta de uma ilusão da lucidez. Com efeito, também a verdade está implicada num olhar de reconhecimento. Sabe-se da verdade, do que acontece e do modo como as coisas acontecem. Este “sabe-se” é uma forma de acesso à realidade, acesso de que somos portadores. Sabemos como as coisas são. Ainda que não saibamos tudo, temos noção das coisas, temos percepção das coisas. É por isso também que podemos ser iludidos e enganados. Quem estiver fora da realidade não pode ser enganado. A falsidade está implicada na realidade. Na mentira, dizem-nos coisas, na aparência, aparecem-nos coisas. Somos atraídos por fantasias, ilusões e coisas que não existem.

Outra das definições da filosofia diz então que há uma adequação entre o que se pensa da realidade e a própria realidade, entre a nossa compreensão e as situações que acontecem na realidade. Falsidade é uma desadequação, um desfasamento, sem que tenhamos, porém, noção de que há um desfasamento. Só tem noção da desadequação quem mente. Quem mente diz que algo que acontece, quando não acontece ou se acontece não acontece do modo que diz que acontece. Quem mente diz coisas, mostra-as de alguma maneira.

A miragem aparece. De outro modo, não nos enganava. A aparência existe. De outro modo não nos iludíamos.
Sem nos apercebermos não existem verdades nem falsidades apenas quando somos chamados a tomar posição acerca de verdades e de falsidades. Não estamos sempre numa situação crítica em que temos de ver melhor para saber o que acontece ou de que modo acontece. Estamos continuamente no modo indicativo, sabemos o que acontece e o que não acontece, sabemos do modo como acontece e do modo como as coisas não acontecem. Não nos apercebemos também que se produz em nós uma adesão e colagem ao que acontece ou rejeição total da realidade. Onde estamos, que horas são, quem somos, o que estamos a fazer, a realidade dos objectos e a fantasia da imaginação, tudo é sabido sem que o digamos de nós para nós.

E há situações em que estamos metidos e não percebemos que são fantasias produzidas por mestres prestidigitadores, mágicos poderosos, que sabem de que gostamos e de que não gostamos, das pessoas com quem queremos estar e são amigas e dos outros com quem não queremos estar e são nossos inimigos.

As “fake news” são mentiras que se fazem insinuar nas nossas vidas sobretudo a princípio sobre matérias das quais não temos uma prova imediata, apenas remota. Mas depois são mentiras descaradas para quem não se deixa enganar e vê os outros, mesmo uma maioria ser enganada. Basta trabalhar com o ressentimento e todos temos motivos para estarmos ressentidos com a vida que é uma maneria de dizer que estamos ressentidos com os outros. Outro motivo fortíssimo é a inveja, o ciúme, a cobiça. Queremos ter mais e são os outros todos que têm tudo e nós não temos nada. A culpa é dos migrantes, das minorias étnicas, dos que não acreditam no que acreditamos ou dos que acreditam no que não acreditamos: se acreditam ou se não acreditam em Deus, se acreditam no meu Deus ou no Deus dos outros. E mexe connosco quem diz mal do nosso clube, da nossa orientação política. Porque são os outros e não os nossos que estão errados. Já não se pergunta pela verdade. Quer ter-se razão. Quer ser-se dono da verdade.

9 Out 2020

Duelo ao Sol: Barcelona 5 – Real Madrid 1

[dropcap]F[/dropcap]ixei uma antologia que sairá em 2021. Há sempre textos de que se têm pena que não estejam no lote dos salvados, como estes quatro:

NA VERDADE NÃO PODE HAVER UM ARMISTÍCIO

Na verdade, que armistício entre o que fui e o que sou? Fui pedra, fui fisga, fui uma lâmina intrometida entre o selo e a carta, fui aquele relógio que aparvalhou o Stockhausen, capaz até de florir. E fui quem que se esqueceu de retocar as cabrinhas de Giotto meio delidas, porque me entretive com a filha do curandeiro; e fui, meu Deus, o ignorante que não compreendeu que a poesia é o que na ciência se chama “um atractor estranho” – uma orelha para onde converjem cerejas.

Nada disso me amnistia: nunca me alistei na imensa vaga dos que anseiam pertencer, fundir-se, nem quis amarrar-me ao amor como se amarra ao cachorro um jardim que ele arrasta em corrida. Todavia que armistício, se me converti à clorofila? Se derrotar os hábitos é o mais difícil (cresça a criança entre ervilhas e julgar-se-á um gafanhoto) tinha o dever de lembrar: nenhum medíocre é inocente!

Vivo num país onde o riso é privado, embora o escândalo seja universal: não sairemos vivos dos incorporais com que engomamos os colarinhos do tempo. Quem nos arranca à automoribundia do alheamento?

Como pude esquecer-me que só respiramos no singular, que os pais de Sócrates se chamavam Sofronisco e Sefarete, e que, isso não lhe bastando, arranjou uma mulher com nome de palha-de-aço: Xantipa, onde depositou três ovos: Lampoclés, Sofronisco (um júnior, quem diria?) e Menexeno (a ferrugem que dá às algas). Depois deste descalabro (bem sei que em grego), aonde poderia o pensamento conduzi-lo senão ao cárcere?

Ser campeão de pingue-pongue aos oitenta, poderia ser um desígnio, declarado, apesar de ser sabido: os hamsters são reféns do destino. Mas o que fica é isto: não fui suficiente incisivo a lembrar que nenhum medíocre é inocente!

MESSI E RONALDO: DUELO AO SOL

Pende-lhe a franja sobre uns olhos de ratinho almiscarado – a fraca figura. O outro é só peitaça, o cabelo em crista, é esplêndido – em brilho e manicura. Mas no combate é Aquiles o primeiro e o segundo Heitor.

A assistência a Di Maria foi um primor de engenharia, o segundo foi já assinatura.

É uma pepita Cristiano, na orbe dos terrenos, mas Messi é selenita e precipita a sua alma na rota dos Deuses.
Há que ter calma, não humilhar mais o madeirense, ainda um astro na sua ilha mesmo que não mais que um amanuense no universo. A glória é só uma, para quê insistir na vilania de ver Cristiano depenado pela melancolia?

Abriram-se-lhe as pernas de espanto ou susto?
O treinador é que o topou e por isso o tirou, estava o herói embargado – assim ao menos caiu calçado.
Sempre que Cristiano encontra o argentino confunde os hinos e diante d’el gran sedutor a ialma lhe falece como o sangue a Heitor: Olé, olá, olé, olarilolé!

OS PONTOS NEGROS QUE NOS MAPAS INDICAM OS CEMITÉRIOS

Subia as escadas a matutar na urgência de despachar as provas do livro da Hilda Hilst, quando ouvi salmodiar.

Tinha quatro anos. Uma menina. Bonita e airosa como a mãe. Morava no 12º andar e encontrava-as na escada, borboletas arquejantes, lamentando sorridentes a eterna avaria do elevador. A menina era propensa às laringites e decidiram operá-la. Jaz agora na hirta rigidez da tumba.

A operação degenerou em espíritomiríade e tornou-lhe avaros os dedos, prometidos a búzios e pianos. A mãe lembra agora uma formiga preta consumida por dois canhões nos olhos.
Negligência médica. Foi o mês passado.

O de hoje tinha treze anos. Era tão gordo que na sua alma ouviam-se os batuques que afastam os hipopótamos. Mas era um bom menino, amigo dos seus amigos, e estivesse o céu crivado de estrelas ou de chuva não faltava aos seus deveres de guarda-redes.

Na véspera de começar a gabar-se “gosto de estar entre miúdas nices” (desconheço se tinha o afinco para isso), deslocou um pé. Coisa mais grave quando se não é mais leve que um cedro libanês. Vi-o três vezes a arrastar-se com o gesso para descer ou subir ao quarto andar, a mãe no comando da operação de desmantelamento & resgate, e desejei-lhe as melhoras.

O gesso foi mal colocado. Provocou uma ferida que gangrenou. Depois o sangue tomou antenas invisíveis e a locusta decapitou-o. Há quatro dias que se sucedem os cerimoniais, e até os degraus da escada se consternam sem saber que fazer sem todo aquele pólen que o miúdo carregava.
Deus, nestas paragens, tem mais mortos que dentes: eis o desdentado padrão, em fundo.

AS COISAS QUE IMPORTAM

As televisões anunciam: revólver de Al Capone leiloado em Londres.
E eu em Maputo. Serei sempre como a figueira, molenga, uma alma que é uma espelunca-de-aluger e incapaz de frutificar a tempo de ter as raízes pisadas pelas olorosas sandalinhas de Cristo.

Já perdi por um fio a guilhotina de Robespierre, um tufo da melena de Hitler, uma sela marchetada a marfim de Bush, o texano, um selo exortativo da Grã Perenidade de Mugabe e dois botões de punho de Kadhaffi.
Só nos últimos 6 meses.

É isto, sem nada para deixar aos filhos. Talvez um 123 para porem as farófias no ponto, mas, é lá o mesmo!
A minha vida deslaça sem que eu adira, ainda que simbolicamente, a um crime de monta, uma crueldade com estardalhaço que vergue de medo a própria sombra.

Que tristeza ó minha mãe, que me erodiste a ruindade: eis-me um podengo do bem! Uma revoluçãozinha, onde eu pudesse fuzilar os refractários e alguns poetas mais burgueses!
Chamava-lhes um figo. Hum!

Não há aí quem queira leiloar esta minha incapacidade para estar onde as coisas que importam acontecem?
Eu vendo, por muito dinheiro!

7 Out 2020

O apetite da moralidade

[dropcap]N[/dropcap]a sua juventude, o artista e esteta inglês John Ruskin (1819-1900) apaixonou-se pelo jacente do túmulo de uma mulher que em vida se chamou Ilaria di Caretto. O brilho dos lábios, a liquidez oval do rosto e a lascívia com que as mãos se abriam na pedra perseguiram-no a vida toda. Já velho apaixonou-se por uma rapariga de dezoito anos, de nome Rose, que viria a morrer pouco depois. Nos derradeiros poemas que dedicou à amada, confundiu-a sempre com escultura de Ilaria.

Ruskin amou toda a vida uma entidade inesperada e, mesmo quando amou alguém de carne e osso, voltou a fazê-lo praticando a inversão. Há algo de profundamente irrespondível e tocante neste facto que é também o ponto de partida de todas as fábulas, sobretudo as que remontam a Esopo: convocar o mundo animal como uma alegoria, mas recorrendo a inversões que, ao fim e ao cabo, funcionam como perguntas para as quais não há respostas claras.

Quer Heródoto, quer mais tarde Plutarco colocam Esopo na ilha de Samos como um escravo frígio que terá vivido no séc. VI aC. Contador exímio de histórias e cultor de uma longa sabedoria popular, o autor – se é que fisicamente existiu (a questão é similar à de Homero neste ponto) – deu origem a uma tradição com grande continuidade e particularmente respeitada. Sabe-se, por exemplo, que, durante os últimos dias de vida, Sócrates se ocupou a traduzir em verso algumas das fábulas de Esopo (No Fédon, Cebete toma a palavra para lembrar que “diversas pessoas já me têm falado a respeito dos poemas que escreveste, aproveitando as fábulas de Esopo”).

As fábulas terminam sempre como uma espécie de lição de moral, como se a explicação (o uso de metalinguagem) fosse necessária para se compreender o que é dito, ainda que amiúde conduzam o leitor para um espaço de ambiguidade (porventura intencional). Sem qualquer traço conceptual, a linguagem orienta-se pelo concretismo da natureza e recorre a imagens de fundo com que os humanos metaforizam a vida dos animais. O registo é simples, seco e projecta quase sempre questões essenciais.

Vejamos três exemplos que navegam ao sabor da questão especular da inversão e do sentido, como se a nossa imagem ao espelho nos segredasse que a transgressão é a única forma de apetite ao nosso alcance para que nos possamos, um dia, realizar.

A fábula “A raposa e a máscara” dá conta, de um modo irónico e gracioso, da importância daquilo que compreendemos através da contiguidade (ou da metonímia). Quando se diz que “ando a ler um Eça”, sabe-se perfeitamente que se trata de um livro e não de um fantasma. Ou quando digo que “bebo um porto”, sabe-se perfeitamente que bebo um vinho e não uma cidade inteira. Mas o princípio pode inverter-se e, de repente, como que se fica sem chão para pisar. Leiamos o texto:

“Uma raposa entrou na oficina de um escultor e pôs-se a examinar uma por uma as coisas aí existentes, até que descobriu uma máscara de actor trágico. Agarrando-a, disse: “Que cabeça esta, mas não tem cérebro.” (…) “A fábula é oportuna para o homem com corpo magnífico, mas de espírito insensato.”.

Já na fábula “Os caracóis”, a ideia é a de colocar face a face o que é e o que não é adequado (ou, se se preferir ‘o que faz sentido’ versus ‘o que pode não fazer sentido’). O trecho é curto, enxuto e preciso: “O filho de um lavrador que grelhava uns caracóis, ao ouvi-los crepitar, disse: “Animais estúpidos, as vossas casas estão em chamas e ainda cantais?” (…) “A fábula mostra que tudo o que se faça fora do tempo é reprovável.”

Por fim, a fábula “Démades, o orador”, coloca em cena o próprio autor, Esopo, e as fábulas que ele vai contando. O fascínio reside, mais uma vez, na inversão, já que aquilo que se conta (e sobretudo o sentido daquilo que se conta) é posto em causa pelo próprio relato, servindo a mensagem de uma espécie de balão que por si mesmo rebenta como se fosse essa a sua única finalidade:

“Démades, o orador, a dada altura falava ao povo de Atenas, mas como os atenienses não prestavam muita atenção, pediu que lhe permitissem contar uma fábula de Esopo. Então, tendo eles assentido, começou por dizer: “Deméter, uma andorinha e uma enguia seguiam pelo mesmo caminho. Ora, tendo elas chegado à beira de um rio, a andorinha levantou voo e a enguia mergulhou…” E, dito isto, calou-se, pelo que lhe perguntaram: “E Deméter, o que fez?” Aquele respondeu: “Ficou furiosa convosco, que abandonais os assuntos da cidade e ficais presos às fábulas de Esopo.” (…) “Da mesma forma, também são insensatos os homens que desprezam o que é necessário e preferem sobretudo o prazer”.

Concluindo, diríamos que o filho do lavrador que grelhava caracóis, Deméter e a raposa, os três vertidos em texto, a que acrescentamos a maravilhosa Ilaria di Caretto, esta última esculpida em pedra, são todos, na sua diversidade, personagens que encaram os humanos olhos os olhos. Que o diga John Ruskin. No entanto, o apego às fábulas ao longo dos séculos não é devedor de um amor menor, talvez porque se trate de um amor desprendido de moralidades. Numa fábula escrita por Fernando Pessoa, em 1915, sobre uma bordadeira que teima em bordar uma rosa (na pressuposição de vir a casar com um príncipe), o final é, a todos os títulos, esclarecedor: “No fabulário, onde vem, esta fábula não traz moralidade. Mesmo porque, na idade de ouro, as fábulas não tinham moralidade nenhuma.”.

Ferreira, Nelson Henrique da Silva, Aesopica: a fábula esópica e a tradição fabular grega. [Em linha] 2014. Ed. Imprensa da Universidade de Coimbra. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316.2/29852 [Consult.25-Sep-2020 11:40:14].
Pessoa, Fernando. Ficção e Teatro. Introdução, organização e notas de António Quadros. Mem Martins. Publicações Europa-América, 1986, p. 69.

7 Out 2020

Da decência

I get the news I need from the weather report
The only living boy in New York, Paul Simon

[dropcap]D[/dropcap]e quando em vez vejo-me saudavelmente forçado a levantar os olhos dos livros e daqueles que estimo para olhar o mundo. E mesmo sabendo que muitos dos que estimo são por mim estimados por terem mundividências diferentes ou antagónicas da minha vejo que essa atitude, pessoal e involuntária, tende a desaparecer na generalidade.

Há muitos anos vi um programa de Sir David Attenborough em que o homem e a sua equipa avançaram pela floresta para filmar os únicos duzentos e cinquenta gorilas que restavam da sua espécie. Mal foi exibido a reacção foi espantosa: graças a esse episódio houve movimentos e dinheiro para salvar os animais, o que foi conseguido – hoje existem mais de mil gorilas no seu habitat e protegidos de todos os predadores.

Esta vinheta de abertura encaixa na perfeição nestes tempos em que muitas vezes a vida não humana vale mais do que os velhos Sapiens. Mas se aqui a resgato é pela analogia tão forçada como evidente. Há mais coisas à beira da extinção. Valores, atitudes, nós. Uma delas, tentarei dizer eu por aqui, é a decência.

Uma boa palavra. Por tanto tempo e agora ainda atribuída a comportamentos que a ortodoxia religiosa europeia associou a modos de ser e de estar e de mostrar. Isto terá atravessado os séculos e se por aqui ficássemos quase que poderíamos agradecer: toda a modernidade necessita de um confronto com que o há e houve e muitas vezes o que se julgou “indecente” (ou assim foi catalogado) é a primeira pegada do que irá acontecer.

Mas divago e quase deixo escapar a palavra e a polissemia. Esta decência de que vos falo não é a que obrigava a cobrir as pernas das senhoras até ao tornozelo. Trata-se de facto de algo ausente, culpa destes tempos. É uma categoria ética esvaziada da vida pública e logo por isso assustador. O étimo latino da palavra – decens – significa, entre outras coisas, airoso ou justo. Gosto de ambos mas vejo o segundo mais urgente.

Esforcei-me por assistir no devido tempo ao primeiro debate das eleições presidenciais americanas. Não esperava tamanha confirmação dos tempos em que vivemos: a confrontação de ideias destruída a argumentos ad hominem e sem sentido de – lá está – decência que parece ter sido retirada dos decisores públicos. E de nós. Culpa nossa.

A dúvida e o respeito pelas ideias são tão raros hoje em dia como os gorilas de Sir Attenborough. Não parece haver tempo para adversativas. O “sim” ou o “não” nunca estão acompanhados do “mas”. A dúvida morreu ou está escondida nos moderados que por sua vez fazem o que podem para fazer ouvir o seu fio de voz fora das arenas das redes sociais. É um combate justo, necessário e galante, em que me incluo. Mas custa, custa.

Sem dúvida não pode existir decência ou seja, justiça nas ideias. Sem curiosidade pelo outro ou confronto intelectual não pode haver progresso. Um truísmo? Talvez mas haja quem o pratique para eu não ter de o escrever. Agora mesmo estive a ver e a ler o que dois enormes amigos e rivais disseram um do outro, no caso Ruth Bader Ginsburg e Anthony Scalia, ambos nomeados para um dos cargos mais poderosos dos Estados Unidos da América – juízes do Supremo Tribunal – e amigos e adversários que sempre compreenderam a falta que as ideias de um fazia ao outro. Neste mundo de trincheiras só os moderados se lembraram de louvar Bader Ginsburg não apenas pelos valores que corajosamente defendeu mas também pela sua capacidade de ouvir o outro e – imagine-se – aprender com ele. Na maravilhosa elegia que fez a Scalia, homem do outro lado da rua política de Ginsburg, ela lembrou o que uma vez perguntaram ao seu adversário: “Como é que duas pessoas com ideias tão antagónicas podem ser tão amigas?” Scalia respondeu com o que agora parece em extinção: “Eu ataco ideias. Não ataco pessoas.”. E remata nessa altura Ruth: “Muitas boas pessoas têm muito más ideias”. A sala riu.

Se lembro isto é porque a memória me é mais próxima. Mas o que dizer, por exemplo, dos diálogos magníficos (e publicados) entre o então cardeal Ratzinger e o filósofo marxista Habermass em 1968?

Um mundo e um tempo não tão distante e não tão impossível em que as ideias são discutidas apenas por isso mesmo – serem ideias e logo motor de progresso. Tenho por crença e escolha uma forte resistência às utopias, sejam elas quais forem. Mas se este mundo passar a ser utópico e deixar de vez o pragmatismo e a decência estou bem tramado. Passo a seguir o conselho de Paul Simon e o estado da humanidade bastar-me-á no boletim meteorológico. Por mim há muito que estou preparado para a chuva.

6 Out 2020

Respirar fundo

Horta Seca, Lisboa, quarta, 30 Setembro

[dropcap]A[/dropcap]umenta com bruteza a lista dos meus mortos, íntimos de aqui longe. Não trouxe cada um, e razões havia, para evitar fazer destas entradas portas de cemitério, obituário constante. Neste ano miserável ficaram por evocar Pierre Guyotat e Rubem Fonseca e Claire Bretcher e Richard Sala e Maria Velho da Costa e Ernesto Cardenal e Juan Marsé. Ponho, em loop, a macieza de Juliette Gréco (1927-2020) de Bonjour Tristesse, ela que me foi mulher e cidade, promessa e acesso, voz e intensidade. «Tu es mon seul amour/ J’ai trop de faiblesse/ Pour te quitter/ Bonjour tristesse.» O sussurro de bons dias soa a conto de encantar os medos, um nada de conforto, pequeno sol de cada dia. O beijo da tristeza nem sempre morde. E assim trago mortos. Ou nem tanto assim, que estes souberam dar nós no tempo.

Quino (1932-2020) foi celebrado com justeza e em vida, raro caso de encontro de talento e popularidade. O seu desenho era rico e claro, mas tal clareza era de mil tons, alguns de profundo negrume. Foi extraordinário cronista do parvo quotidiano. Enfrentou deuses e demónios, escolhendo para maior o dinheiro, o negócio, o capitalismo. Mostrou, como poucos, o rosto da pobreza. E do seu espelho maldito, a riqueza. E da humana miséria, a dos sem sonho. Chicoteou com proverbial bonomia cada um dos poderes, pequenos e grandes.

Mistério, para mim, como consegue a mais extrema severidade sem perder a doçura. Tal como faz sínteses visuais onde se esconde grande complexidade. A política e a burocracia eram, mais do que alvos, objectos de fina análise. O bom humorista é cientista social, desenha ao microscópio. Execrava a censura, as milhentas com que ajardinamos as nossas cidades. Não se devia dar bem com o ar dos tempos, e não falo de poluição. A Mafalda esteve sempre por perto, daquele modo de único de ser tão crucial como o oxigénio sem ar de coisa importante. Por cada fase adolescente a bandeira foi um desenho de Quino, mas os ícones caem com facilidade das paredes porosas. O meu amor de sempre, e que de cada vez que me beija faz manhã, nublada, mas manhã, outro não é que o absurdo. Recordo um pequeno homem de chapéu de coco, mala clássica cruzando o viajante com o vendedor ambulante, em frente a um pedaço de linha de caminho-de-ferro esperando de olhar no vazio alinhavado pelo horizonte. Ou aquele, com todos os detalhes de classe média, outros dos seus queridos objectos, a sonhar-se no tecto espelhado tal e qual, sono profundo da sobrevivência mediana. (Outro exemplo, algures na página). O essencial sobre o essencial para nosso bel-prazer e não menos inquietação.

Espelho d’Água, Lisboa, segunda, 5 Outubro

Associámo-nos à Nova Mymosa para, por estes dias deslassados, marcar regressos lançando, presencialmente e via online, doze livros que deviam ser treze (claro!). No que à abysmo/arranha-céus diz respeito, ficou-nos a faltar «A Grande Dama do Chá» e o Fernando [Sobral], por força de circunstâncias que também afastaram alguns mais. A doença faz-se convidada destas nossas horas, e de mão dada o medo.

Antes dos três títulos que aguardavam lançamento em Lisboa desde Fevereiro, o Paulo [José Miranda] fez o favor de uma leitura do meu mínimo «Navalha no olho», que dediquei à Isabel, por todas as razões e mais uma: «Pudera/ o meu dia ser/ uma peça só/ de alegria/ o teu corpo:/ em que parte/ me encontro/ neste relâmpago?» Assinalou o leitor-maior dois «elementos enganadores», no título e no uso das palavras obscenas, pois, segundo ele, não se trata de livro surrealista nem de poesia erótica-satírica. Estou bem capaz de discordar, mas é preciosismo. Uma vez publicado, o gosto do autor deixou de ser chamado, mas agrada-me a classificação do José Emílio-Nelson: cubista. «Um olhar que se nega a abordar o acto sexual como ideia de realização plena, e o refere de diferentes ângulos num mesmo plano envolvidos.» De qualquer modo, o encontro do corpo e da palavra, das várias peles da língua, brilhando no olhar do Paulo sensibilizaram-me. «Há no livro a devolução do sentido às palavras que banalizamos e do modo como elas agem sobre nós, os corpos. À força de tanto banalizar, os corpos já não reagem às palavras e estas esqueceram-se de si mesmas. Neste sentido, é um livro político, como todos os livros que se debatam com a falência do sentido das palavras e com a falta de acção que isso carrega. O corpo e a palavra estão, e seria realmente assustador se nos déssemos conta disso, a ficar esvaziados de sentido. Assim, foder, subentende-se, não é um exercício espiritual, mas um exercício de salvação. Este livro alerta-nos para esta nossa situação através de um lirismo invejável, ao arrepio do que parecem ser os nossos dias.»

«Cálice», do Luís [Carmelo], que na tarde se deu a ler mais duas vezes em verso livre, «Adius», do Vasco [Gato], e «Aaron Klein», do Paulo, foram atravessados nas respectivas alegações pela assombração da relação entre vida e literatura, da impossibilidade de uma sem outra.

Em «Cálice», a viagem à memória, e que a usa como meio de transporte, servirá para reconstruir a figura do pai, afinal um lugar. «Desde a Poética de Aristóteles», afirma Miranda, «que sabemos que a poesia é precisamente este território móvel entre o sonho e a possibilidade, isto é, não um comboio em andamento, mas escrever num comboio em andamento, onde o presente passa depressa e, à medida que a viagem se alonga, o passado se torna mais apetecível. Alguns séculos antes de Aristóteles, Heraclito disse panta rhei, tudo flui, tudo é devir. Com este tudo flui, queria dizer que estamos junto com todas as coisas num tapete de tempo. O tempo leva-nos. Tudo flui. O mundo, o universo é um comboio imparável.»

Tenho para mim que «Adius» devia ser lido que nem comédia de enganos, se virmos nisso apenas exercício de destilada ironia. O escritor como personagem parece prometer romance de carácter diarístico mas será atravessado por sucessivos planos, espelhos que o rasgam e baralharão os modos e lugares da escrita.

Vasco pôs o narrador a afirmar que Vasco escreve: «não acho que a escrita tenha de obedecer a essa regra de ser a digestão da própria vida. No caso deste livro, foi de facto uma imagem forte que me impeliu, sem nada que a ligasse à minha história de vida». Ao ler para a assembleia as primeiras páginas do livro, em curioso efeito espelhado (ainda ele!), o que nelas se diz ali aconteceu: «A sala permanece em silêncio. A leitura demorou o tempo de trinta, quarenta pessoas se aperceberem que não conviria aplaudir, não conviria agir como se fosse um livro e fosse possível celebrá-lo».

E tudo acabou em paroxismo com «Aaron Klein». Com agudeza, escreveu a Rita [Taborda Duarte], que não pôde estar também por causa da sombra, que «sendo ficção, este livro é, também, um tratado, um ensaio, sobre o humano, a maldade, a ética, a lucidez da infelicidade, também sobre a responsabilidade, sobre a comunicação e sobre a literatura, numa dobra borgesiana acerca do que é a ficção e do que é a vida dentro e fora da literatura, da ficção. (…) É na lâmina da navalha da ficção, se quisermos no rebordo da página afiada, que nos fere o dedo, ao folheá-la, que nos apercebemos que a ficção é afinal vida e real. E Helder Macedo, a sua interpretação da personagem de Aaron, mas também seus poemas, o seu conhecimento ensaístico, tudo é convocado para o limbo que indistingue o que está dentro e fora do livro, dentro e fora do real.» Ora Helder, bem como outra personagem-maior, Ricardo Ben Oliel estavam presentes. E dialogaram com o seu autor. Palavra tangível, espanto lúdico, literatura em acção. Em directo, também na rede. Sem rede.

6 Out 2020

O popular Concerto para Orquestra

[dropcap]E[/dropcap]m 1940, já durante a Segunda Guerra Mundial, em virtude da ascensão do nazismo na Hungria, Béla Bartók decidiu abandonar o seu país e emigrar para os Estados Unidos, estabelecendo-se em Nova Iorque. No entanto, o compositor decepcionou-se com a vida norte-americana. Havia pouco interesse pela sua obra e as suas apresentações, nas quais a sua segunda mulher, Ditta Pásztory, também participava, deram pouco retorno financeiro. No entanto, ajudado por amigos, Bartók prosseguiu a sua carreira de compositor. Já nessa altura sofria da doença que viria a vitimá-lo em 1945, aos 64 anos, a leucemia.

O Concerto para Orquestra, Sz. 116, uma das suas últimas obras, composta em 1943, é uma obra de síntese e de superação. Nela, temas e procedimentos composicionais inspirados em tradições populares e na música erudita convivem, de forma orgânica, num tecido composicional exuberante. A obra, pela sua riqueza de atmosferas, de contrastes e, particularmente, pela sua força e vitalidade, não deixa entrever as provações e o sofrimento pelos quais passava o compositor.

Apesar disso, o Concerto dá mostras de transcendência diante das adversidades, como podemos depreender dos comentários do próprio compositor, em nota de programa, na qual ressalta o percurso dos cinco andamentos. Para Bartók, a obra, apesar do espírito extrovertido do segundo andamento, “apresentava uma transição gradual da severidade do primeiro andamento” e da “lúgubre canção de morte do terceiro” para a “afirmação de vida” que marca o andamento conclusivo.

O Concerto para Orquestra, em cinco andamentos, é uma das obras mais conhecidas e populares de Bartók. Deve o seu nome ao facto de um instrumento, ou um grupo deles, frequentemente se opor, como solista, à orquestra. Esta composição de Bartók é talvez a mais conhecida das obras que levam o contraditório título de Concerto para Orquestra, em contraste com a forma convencional do concerto, que apresenta um instrumento solista e acompanhamento orquestral. Bartók referiu que chamou a esta peça concerto em vez de sinfonia devido à forma como cada secção de instrumentos é tratada de forma solista e virtuosa. O trabalho combina elementos da música erudita ocidental e da música folclórica, especialmente húngara, e afasta-se da tonalidade tradicional, muitas vezes combinando modos tradicionais e escalas não convencionais.

Nesta obra, o andamento central, Elegia, é precedido e seguido por dois andamentos curtos, em modo de scherzos, que são, na verdade, interlúdios dentro do conjunto da obra, que tem uma estrutura essencialmente sinfónica.

O primeiro andamento, Introduzione. Andante non troppo – Allegro vivace, começa com uma introdução lenta e misteriosa que parece preludiar muitas das ideias que surgirão mais tarde. A introdução dá lugar a um allegro com numerosas passagens fugadas. Está estruturado na forma-sonata.
O segundo andamento, Giuoco delle coppie. Allegretto scherzando, consiste em cinco seções, em cada uma das quais há um par de instrumentos tocando em conjunto. Em cada uma dessas passagens, o intervalo entre os dois instrumentos é diferente: uma sexta entre fagotes, uma terceira entre oboés, uma sétima entre clarinetes, uma quinta entre flautas e uma segundo entre trompetes com surdina. Depois de um coral a cargo da secção de metais, a música dos pares reaparece.
O terceiro é outro andamento lento, marcado Elegia. Andante non troppo e é típico da chamada música nocturna de Bartók. A apaixonada secção central é baseada num tema de ar húngaro extraído do primeiro andamento.

O quarto andamento, Intermezzo interrotto. Allegretto, consiste numa melodia que flui com mudanças de compasso, misturada com um tema que parodia a marcha da Sétima Sinfonia de Shostakovich. O tema é interrompido por glissandos nos trombones e instrumentos de sopro.

O quinto andamento, Finale. Pesante – Presto, também é escrito na forma-sonata. A sua música é caracterizada pelo virtuosismo e pela presença de contraponto, com secções fugadas. Começa com uma música brilhante com ares de dança, com interlúdios suaves a modo de contraste e passagens fugadas baseadas num tema apresentado pelos trompetes.

O trabalho foi encomendado pela Fundação Koussevitzky, dirigida pelo maestro russo, então radicado nos Estados Unidos, Serge Koussevitzky. A obra foi estreada no dia 1º de dezembro de 1944 no Symphony Hall de Boston, pela Boston Symphony Orchestra sob a direção de Koussevitzky, e foi um sucesso imediato. Bartók reviu-a logo depois, alongando o último andamento. O seu sucesso animou Bartók, que recebeu outras encomendas, mas infelizmente não pôde apreciá-la por muito tempo, pois viria a falecer dez meses após a estreia.

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Concerto for Orchestra, Sz. 116
The Philadelphia Orchestra, Christoph Eschencbach – Ondine, 2005
5 Out 2020

Suicídios

[dropcap]N[/dropcap]a continuação da leitura do livro «Abismos», da escritora alemã Sabine Ulbricht, que se propôs investigar a relação entre a literatura e o suicídio, não no sentido das suas causas materiais ou amorosas – como lhe chama –, mas estéticas. Assim, na semana passada estivemos por dentro da análise que a autora faz a «O Náufrago» de Thomas Bernhard e também como ela vê o suicídio de Wertheimer como a consciência de uma impossibilidade de futuro estético. Passamos então hoje à análise que autora faz a «Van Gogh O Suicidado da Sociedade», de Artaud.

Segundo a autora, este livro de Artaud é traçado sob duas perspectivas distintas: a psiquiatria como defesa da normalidade e, neste sentido, entrave ao génio, à criação; e a essência da obra de arte como revelação do mundo e da sociedade. No centro de tudo isto está Van Gogh, com o qual Artaud estabelece uma ligação visível – o internamento psiquiátrico – e uma invisível – o génio artístico. Escreve: «Se em “O Náufrago”, Bernhard colocava Glenn Gould acima de todos os pianistas, em “Van Gogh O Suicidado da Sociedade”, Artaud coloca Van Gogh acima de todos os pintores. E apesar de ambos serem livros onde paira a nuvem do suicídio, as posições de Bernhard e de Artaud em relação a este assunto são muito diferentes. No livro do austríaco há um suicídio inventado, o de Wertheimer, no livro do francês um suicídio real, o de Van Gogh. O que leva Wertheimer ao suicídio não é da mesma ordem do que leva Van Gogh a retirar-se da vida. São causas bem distintas. A de Wertheimer é de ordem pessoal, a difícil relação consigo e com a irmã, e a sua frustração com Glenn Gould. Van Gogh, não. Van Gogh é o Glenn Gould que se suicida. Para Artaud o que levou Van Gogh a suicidar-se, e esta é a tese forte que dá logo título ao livro, é a de que ele foi levado ao suicídio, foi suicidado pela sociedade. Escreve Artaud: “Pois não foi para este mundo, / nunca foi para esta terra que todos trabalhámos sempre, lutámos, / bramimos de horror, fome, miséria, ódio, escândalo e nojo, / que fomos todos envenenados / apesar de todos termos sido por ela enfeitiçados / e estarmos, enfim, suicidados / embora nem todos sejamos, como o pobre Van Gogh, suicidados da sociedade!” Esta passagem é central no livro. E, curiosamente, parafraseia a Bíblia, mais especificamente o Novo Testamento, no Evangelho Segundo São João, 18, onde se lê: “O meu Reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus servos teriam lutado para eu não cair nas mãos das autoridades judaicas. Mas o meu reino não é daqui. […] Nasci e vim ao mundo para dizer o que é a verdade. Todos os que que vivem da verdade ouvem aquilo que eu digo.” Assim, Artaud ao escrever que o nosso reino não é deste mundo, isto é, que não foi para este mundo que viemos, que trabalhámos, lutámos, está também a dizer que o nosso mundo deve ser um mundo de verdade, embora o mundo para o qual viemos não esteja no além, porque não há além. A terra prometida é esta a que chegámos. E fizemos deste terra um mundo de corrupção, de mentiras, de quotidianos intoleráveis, isto é, suicidámo-nos, porque somos todos desistentes de mudar este mundo, de torná-lo naquilo para que viemos.»

Ulbricht, diz que nenhuma mãe traz um filho à luz do dia para a mentira, para a corrupção, para a fealdade dos gestos. E, por isso, Artaud faz ainda uma distinção fundamental entre o ser-se suicidado como somos, por inépcia e conservadorismo, e o suicidado da sociedade como Van Gogh. Para Artaud, segundo a autora, nós todos decidimos matar-nos, matar a vida que poderíamos ser; Van Gogh foi suicidado pela sociedade, por esta não querer o mundo que merecemos, o mundo que uma mãe promete ao filho no momento do nascimento. É neste sentido, de termos feito desta terra um inferno, que Sabine Ulbricht identifica esta passagem lúcida e violenta de Artaud: «Nunca ninguém escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu, inventou, sem ser para sair do inferno. E para sair do inferno prefiro as naturezas deste convulsionário tranquilo às fervilhantes composições de Brueghel o Velho ou de Hyeronimus Bosh, que ao pé dele não passam de artistas, no em que Van Gogh não passa de um pobre ignaro preocupado em não se enganar.»

Para Ulbricht, Artaud defende que a arte é o modo de fugir do inferno que fizemos da Terra. E o inferno maior, adivinha-se, será ver tudo isto com muita claridade e sentir uma total incompreensão por parte de todos. Escreve a autora: «Também no livro Eu, Artaud, podemos ler, numa carta a Anne Manson: “A minha Via é a Via verdadeira […] Estar comigo é abandonar tudo o resto. Quem não puder abandonar tudo o resto não pode estar comigo […] e terá de escolher entre estar comigo ou contra mim.” Estamos uma vez mais perante uma clara alusão ao Novo Testamento, mais precisamente a uma passagem de São Lucas e da dificuldade de se ser discípulo de Jesus.

Ao escrever sobre Van Gogh, Artaud toca a essência humana, aquilo para que fomos feitos. Mostra que é a arte que nos forma. A revolução que Artaud defende é uma revolução artística, no sentido de uma abertura do humano, de cada um de nós, às suas expressões. Por isso, em Artaud, o combate à sociedade passa por um combate aos médicos “[…] porque foi com os médicos e não com os doentes que a sociedade começou.”, escreve em «Eu, Antonin Artaud». Independentemente de estarmos diante de um ajuste de contas, de alguém que foi fechado por 9 anos em asilos psiquiátricos e electro-choques, há um fundo de verdade na oposição entre psiquiatra e génio. Porque é na arte que génio e loucura se confundem e que os guardiães da sociedade mais sentem dificuldades em destrinçar.» Ainda que Ulbricht nunca cite Heidegger, no sentido de podermos ver a loucura como um modo de ser mais real, veja-se estas palavras do filósofo da Baviera, acerca da poesia: «O poeta não dá seguimento às suas vivências interiores, mas está colocado “sob as tempestades de Deus” – “de cabeça descoberta”, colocado à sua mercê sem qualquer protecção e afastado de si próprio. O ser-aí [o ser-se humano] não é outra coisa senão “o estar colocado à mercê do poder esmagador do ser”, isso não corresponde a um divagar pelas próprias vivências interiores, não se trata de um contexto vivencial situado algures dentro de si, mas sim do exterior mais extremo da nua exposição às intempéries. […] O poeta é o fundador do ser. Assim, o que chamamos real no nosso dia-a-dia acaba por ser o irreal.» E Artaud pode ser comparado a Hölderlin, de quem Heidegger escreve.

Desviando-me um pouco do texto de Sabine Ulbricht, talvez o mais importante que aprendi com Artaud, com a leitura dos seus textos em geral e este em particular acerca do qual a autora alemã escreve, é que a condição fundamental e determinante para se compreender um texto, um autor, é apaixonar-se por ele. Sem isso não sabemos nada do texto. Depois, mais tarde, podemos desapaixonarmo-nos, ver a nossa visão alterar-se e até rejeitar a leitura que fizemos. Mas entendemo-lo. Sem paixão não se entende nada, nem a relação entre os números. É isso que Artaud faz com a vida e com os autores: apaixona-se. Assim, através deste distúrbio que é a paixão, uma afectação desmedida, a obra de Artaud mostra-nos, e talvez melhor que qualquer outra, o desespero pelo infinito, que Ulbricht também identifica na obra do autor francês. E identifica deste modo, no qual me revejo: «Por desespero pelo infinito pretendo dizer a abertura que acontece em nós para um além que desconhecemos, mas sentimos ou pressentimos e nos angustia a sua ausência ou a sua intangibilidade. Quando mais tarde na vida sentimos nostalgia por uma música que ouvimos e era comum ouvirmos na juventude, esse sentimento não é tanto por um tempo que já foi, mas antes por um tempo em que havia possibilidades, um tempo em que o infinito nos era mais familiar. Numa carta a Peter Watson, inserida em “Eu, Antonin Artaud”, escreve: “Todos os grandes livros, desde os Vedas aos evangelhos, passando pelos Upanishad, os Brama-putras // e a imitação e Cristo, são […] a busca de um estado-lacuna como estiagem do infinito.” Ou seja, a religião é uma tentativa de interromper essa falta de infinito que se faz sentir, ao passo que a poesia é a exposição dessa mesma falta.

Ao falar acerca de um livro específico de Artaud, a autora acaba por ir mais longe no autor francês do que foi no autor austríaco. Ficamos a ver que, no fundo, o suicídio foi um pretexto para nos mostrar a obra de Artaud. Apesar de pôr como oposição os suicídios artísticos de Wertheimer e Van Gogh nas obras que nos mostra. Apesar de um ser de ficção e outro real, o que mais importa a Ulbricht é a diferença entre um suicídio «que vem de fora», como o de Van Gogh, e um «que vem de dentro», como é o caso do de Wertheimer.

5 Out 2020

Os impressionantes quartetos de cordas

[dropcap]H[/dropcap]á 75 anos, no dia 27 de Setembro de 1945, menos de três semanas após o dia oficial da rendição formal do Japão, 2 de Setembro, que marcou o final da Segunda Grande Guerra, falecia em Nova Iorque o compositor, pianista, etnomusicólogo, e professor húngaro Béla Bartók, considerado um dos mais notáveis compositores do séc. XX. As suas obras principais têm um sabor notoriamente húngaro e incluem peças orquestrais, quartetos de cordas, peças para piano solo, várias obras para o palco, uma cantata e vários arranjos de canções populares para voz e piano.

Béla Bartók, cujo nome na forma húngara é Bartók Béla, nasceu no dia 25 de Março de 1881 em Nagyszentmiklós, na Áustria-Hungria, hoje Sânnicolau Mare, na Roménia. Bartók passou a infância e a juventude em várias cidades do interior da Hungria, estudando piano com a mãe e posteriormente com uma sucessão de professores. Começou a compor pequenas peças de dança aos nove anos, e dois anos depois tocou em público pela primeira vez, incluindo uma composição sua.

Seguindo o exemplo de outro eminente compositor húngaro, Ernö Dohnányi, Bartók realizou os seus estudos profissionais em Budapeste, na Academia Real Húngara de Música, em vez de estudar em Viena, o centro musical da Europa por excelência. Desenvolveu-se rapidamente como pianista, embora menos como compositor, mas a descoberta em 1902 da música de Richard Strauss estimulou o seu entusiasmo pela composição. Ao mesmo tempo, um espírito de nacionalismo optimista varria a Hungria, inspirado por Ferenc Kossuth e pelo seu Partido da Independência. Como outros membros da geração de Bartók demonstraram nas ruas, o compositor, então com 22 anos, escreveu um poema sinfónico, Kossuth, retratando num estilo que lembra Strauss, embora com um toque húngaro, a vida do grande patriota Lajos Kossuth, pai de Ferenc, que liderou a revolução de 1848-49. Apesar do escândalo na primeira apresentação, ocasionado por uma distorção do hino nacional austríaco, a obra foi recebida com entusiasmo.

Pouco depois de Bartók terminar os seus estudos em 1903, ele e o também compositor húngaro Zoltán Kodály, com o qual viria a colaborar extensivamente, descobriram que o que consideravam música folclórica húngara e utilizavam para as suas composições era, em vez disso, música cigana. Um vasto repositório de música camponesa húngara autêntica tornou-se posteriormente conhecido pela pesquisa dos dois compositores. A colecção inicial, que os levou aos cantos mais remotos da Hungria, teve início com a intenção de revitalizar a música húngara. Ambos não apenas transcreveram muitas canções folclóricas para piano e outros media, mas também incorporaram na sua música original os elementos melódicos, rítmicos e texturais da música camponesa. Fundamentalmente, o próprio trabalho de Bartók foi inundado pelo espírito popular.

Bartók foi nomeado para o corpo docente da Academia Real de Música em 1907 e manteve esse cargo até 1934, quando renunciou para se tornar membro activo da Academia das Ciências. Passava as férias a recolher material folclórico, que depois analisava e classificava, e depressa começou a publicar artigos e monografias. Ao mesmo tempo, expandia o catálogo das suas composições, com muitas obras novas para piano, um número substancial para orquestra e o início de uma série de seis quartetos de cordas que constituiria uma das suas realizações mais impressionantes. O seu primeiro quarteto numerado, Op. 7, composto em 1909, mostra já alguns traços de influência folclórica, mas nos restantes essa influência é totalmente assimilada e omnipresente. Os quartetos põem em paralelo e iluminam o desenvolvimento estilístico de Bartók: no segundo quarteto (1915–17), elementos berberes (Amazigh) reflectem a viagem de recolha do compositor no Norte de África; na terceiro (1927) e no quarto (1928) há um uso mais intensivo da dissonância; e no quinto (1934) e no sexto (1939) há uma reafirmação da tonalidade tradicional.

Ano interessante, 1909, em que o Terceiro Concerto para Piano de Sergei Rachmaninoff, a ópera Elektra dc Richard Strauss, a Nona Sinfonia e Das Lied von der Erde, de Gustav Mahler, Klavierstücke, Op. 11 e a ópera Erwartung de Arnold Schoenberg, e os primeiros quartetos de cordas de Béla Bartók e Zoltán Kodály foram escritos e/ ou estreados. Entre as conclusões que podem ser tiradas deste breve catálogo estão que 1909 foi um ano de começos estilísticos, com a atonalidade de Schoenberg e as inovações folclóricas dos húngaros, e o fim de uma era, misturada com uma forte dose de tradição a ser homenageada, através de Rachmaninoff.

O Bartók de 1909 é recordado pela primeira mulher, nascida Marta Ziegler, com quem era então recém-casado: “Compôs principalmente à noite. Durante o dia, estava ocupado a transcrever e a organizar as suas colecções de canções folclóricas gravadas em cilindros de cera… para publicação ”. Temos também o testemunho de Hugo Leichentritt, que mais tarde viria a ser um académico musical internacionalmente respeitado, que encontrou “Bartók, um jovem compositor e pianista de Budapeste” em Berlim, e que tocou para ele as Bagatelles, Op. 6, compostas em 1908, “um conjunto de peças para piano com as harmonias mais estranhas que já haviam chegado ao seu ouvido. Não davam a impressão de um requinte polido, mas de um sentimento instintivo primitivo, rústico, forte e instintivo… Esse primeiro e breve encontro com a música de Bartók revelou a sua característica nacional básica, originada no seu solo húngaro nativo. Todos naquela época tinham uma noção clara da música húngara, derivada das rapsódias de Liszt e das danças de Brahms.

No entanto, a música húngara de Bartók era muito diferente desses modelos bem conhecidos. Diferente porque Bartók cavou muito mais fundo do que o hungarianismo pop e a música cigana para encontrar o elemento nativo. Já em 1904, ele e Kodály, se haviam convencido de que a “verdadeira” música húngara não se encontrava nos cafés ou nas salas de concerto de Budapeste, mas no campo que eles frequentemente visitaram durante os anos seguintes. Recolher, registar, catalogar e, por fim, publicar os sons das pessoas. O estilo húngaro de base popular inicial de Bartók é exemplificado nas Bagatelles, Op. 6 e no Primeiro Quarteto.

O estudioso e biógrafo de Bartók, Halsey Stevens, observa que “a liberdade contrapontística característica do tratamento de Bartók do quarteto de cordas, a extrema plasticidade com que as linhas individuais giram, mudam, combinam e se opõem” já são perceptíveis no Primeiro Quarteto. Além disso, “cada jogador é considerado um indivíduo, com o seu próprio fio de tecido; esta autonomia traz uma riqueza textural comparável aos últimos quartetos de Beethoven…”

Sugestão de audição:
Béla Bartók: The String Quartets
Guarnieri Quartet – RCA Red Seal, 1995

30 Set 2020

Encontro Magik

[dropcap]U[/dropcap]ma história extraordinária que começou em 1929 e deu origem a artigos vários e a uma atmosfera de espionagem numa Lisboa já “amansada” pelo novíssimo Estado Novo. O início dela está num poeta que manda requisitar dois livros ingleses e promete fazer o horóscopo do autor por lhe parecer estar errado, este interesse serve certamente de isco a tudo o que irá unir dois homens em novelísticas manobras, ou por tédio a uma Lisboa onde nada mais se passava, ou por o outro ser espião inglês, ou, quem sabe, por puro passional, pois que o poeta caiu de amores pela sua mulher , tanto, e de tal forma, que até escreveu o seu único poema erótico. O que é certo é que aquele mês de Setembro de encontros e desencontros, culminando na Boca do Inferno com uma rocambolesca carta de despedida iria levantar celeuma público nos dois países. E claro está, falamos então de Aleister Crowley e Fernando Pessoa!

O repto que Pessoa lança com a averiguação da carta do céu não será apenas uma mera curiosidade pessoal, mas, quem sabe, uma aproximação à edição inglesa, e desde o início desse ano passam então a trocar correspondência com projetos de idas e vindas o que deixa Pessoa um pouco aterrado e que tudo faz para averiguar o tempo mais propício para tal encontro, por outro lado ele era avesso a compromissos, o outro, mundano e desgarrado, não deve ter entendido tanta objeção – e eis que veio e Pessoa foi esperá-lo ao cruzeiro onde tinha ficado ainda, algures, parado, por causa do mau tempo, e o nosso poeta é logo interpelado de forma surpreendente: «olhe lá, porque mandou o nevoeiro lá para cima?» Verdade ou não, é que parece que o encontro foi simpático e para aqueles tão interessados na sexualidade de Pessoa, este encontro, mais não seja, deita por terra muitas teorias acerca dela, diz assim o poema inspirado na tão almejada Dama Escarlate: « Dá a surpresa de ser/ é alta, de um louro escuro/ faz bem só pensar ver/ seu corpo meio maduro/ Seus seios altos parecem (se ela estivesse deitada)/ dois montinhos que amanhecem/ sem ter que haver madrugada/ …apetece como um barco/ tem qualquer coisa de gomo/ ó fome, quando é que eu embarco? Ó fome quando é que eu como?» Só por isto já tinha valido a pena. Alguns ainda dirão: que não, que não…..! Problema deles.

E vamos então viajar com os nossos Magos, um Negro, outro Branco, mas certamente muito competentes para virar a cabeça aos Cinzentos, e sempre lembrando o grande interesse do nosso poeta por literatura policial, aliás, os únicos romances que gostava, só que estes efeitos passavam agora por um protagonista real que se achava a reencarnação de um chinês nascido há três mil anos de seu nome Tu Li Yu, e que nesta reencarnação era apelidado de Besta- isto por causa da mãe que sendo irrascível dizia então que ele era uma besta- como lia muito a Bíblia pensou que fosse a do Apocalipse. Pessoa estava muitos graus de iniciação acima, e a sua mais alta demanda se bem que não o separasse do seu congénere, tinha trilhos mais apertados. É certo que sempre deixou o outro suspenso com a leitura da dita carta que nunca chegou a fazer, mas creio que o ajudou a virar costas a algumas contas que deixou atrás de si, que por pressa de se suicidar, ou porque teve de se “raspar” abruptamente para Berlim, ou fatal homicídio, o pusera a dar entrevistas e depoimentos nos jornais e na polícia.

Suponhamos que ambos se divertiram com o estranho caso em que se falou até de assassinato devido ao universo inglês altamente criminalista, mas o certo é que a Dama Escarlate embarca antes de Crowley com uma mais enigmática cigarreira pertencente a Pessoa (no interrogatório é assim que é descrita) e sabe-se lá o que eles andaram a fazer no insólito mundo que os catapultou para aqui?! Acho que ainda se escreveram para além da “morte” agora com o Mago Negro submetido às vantagens de Pessoa, que lhe traduziu o «Hino a Pã» mais as notícias que saíam no Jornal de Notícias e na revista Girassol. Afinal, o Bem vence sempre se quisermos tirar elucubrações do caso. E já de bem com a sua talvez inusitada e brilhante jogada, o poeta encerra a comunicação e assim se separam para sempre.

Tinha passado o tempo. As vantagens esgotaram-se e creio que o outro se lamentava amargamente com derrocadas financeiras o que para o nosso poeta seria assunto que ele não conseguiria jamais responder – amargurava-se agora ele mesmo de estar com posições tensas no seu próprio horóscopo para se ocupar de outros.-

O Hino a Pã, magistral poema deste fauno, foi enviado para a revista Presença, mas creio que nem isso lhe chegou. As mãos do Mago ficariam vazias de promessas feitas pelo nosso que já muito se tinha esforçado para uma história bem guardada nos Infernos e nos Céus. Era gente singular! Em Lisboa se não olharmos para o bom tempo podemos bem morrer de tédio e os portugueses também não incitam ao despacho do inesperado, e esta Inglaterra de espíritos do outro mundo sempre esteve muito presente na pessoa de Pessoa, que nunca tirando a máscara, se revelou infalível em matéria criminal.

«…..Assim sei que sou quem sou, e terei que o ser separadamente.
A alta lição do escárnio alheio alberga astros em seu futuro».

A propósito desta jornada.

29 Set 2020

Respirar fundo

Centro Cultural, Lisboa, quinta, 10 Setembro

[dropcap]N[/dropcap]ão escreverei a palavra que se insinua. O dia começou com gesto que me faz chorar apenas de um olho, o mais próximo da narina sujeita à prospecção da vareta com cabeça de algodão, no lado oposto com que outra me vasculha o lado de lá do céu-da-boca. Está uma daquelas manhãs indistintamente belas dos romances, e os reflexos nos equipamentos de guerra química não alteram em nada o sabor do dia.

A rotina do mundo inteiro virou teste, não temos por onde chorar. Ou antes, enxaguemos as lágrimas mecânicas, filhas de nenhum sentimento, antes de recolocar a máscara e seguirmos em frente. Atentos ao pôr dos pés.

Horas depois vejo-me em pleno «Diário de uma Pandemia», exposição de muitas páginas, repartidas por cinco partes, da novíssima associação de fotojornalistas CC11, que até me desafiou para escolher e comentar algumas primeiras da nossa tão pouco entusiasmante imprensa. A poeira ainda não assentou, os ventos varrem a cidade com mais vozes e medos além dos habituais no verão alfacinha, e os olhares já se vão cristalizando em testemunho brutal. Mal entramos e o cansaço reencontra-se em instalação que amplia ao exagero os noticiários sobre a Covid-19 e as várias emergências do estado em que fomos ficando. Isto antes de nos perdermos em 90 das mais de 600 fotos oriundas do «Everydaycovid», projecto criado no instagram por Miguel A. Lopes e Gonçalo Borges Dias, que foi recolhendo as diárias deambulações de 119 fotojornalistas. Segue-se o trabalho dos correspondentes estrangeiros, as tais primeiras páginas e a subtil instalação da Luísa [Ferreira], «Claro e Escuro. A dimensão do que nos foi acontecendo está patente no ambiente tonitruante que por ali se respira. Não falta carga simbólica, homem só com bandeira, as farmácias e os hospitais feitos palco, a coreografia dos novos gestos pó-de-talco, toques de cotovelo e zaragatoas.

Uma parede ergue-se enorme com os retratos simples e pujantes que Rui Oliveira fez a profissionais de saúde, gente com marcas, das máscaras e do cansaço, da apreensão e da dúvida. Não arrisco dizer que está lá a realidade toda, até por sentir falta de alguma sujidade, algum desfoque, enquadramentos mais movediços, mas estarão muitos ângulos do sofrido. A Luísa multiplica as maneiras de ver, chamando a atenção para detalhes, aqueles do chão, ou os da hesitação, estes de súbito habituais de não sabermos o que fazer com as mãos. Ou por onde ir.

Horta Seca, Lisboa, sexta, 18 Setembro

O que desatámos a fazer com o telemóvel será auto-retrato? Ou papel de forrar as paredes em que nos vamos encerrando no labirinto do quotidiano? Nesse espelho contínuo não paramos de simular uma alegria de beijos suspensos, frios, paralíticos que nem cinema parado. Falta-nos ar. O volume 05 da importante colecção PH, dirigida pelo Cláudio [Garrudo], saiu dedicado a José M. Rodrigues, senhor de obra irrequieta que se apresenta em retrospectiva mínima, cronologia invertida que parte do presente para chegar aos anos 1970, como que a querer confundir partida e chegada, nascente e foz. Tem muitas pontas por onde se pegue, esta maneira de rasgar perspectivas. Aliás, creio que um dos seus lados mais desafiantes está na multiplicações de linhas a perseguir, de horizontes a alcançar. Sigamos a da sombra do corpo na parede de papel. Não é a primeira foto que vemos, mas é a que abre a série (algures na página): ao baixo e a cores, declinadas da madeira, duas sombras sobrepostas projectam-se sobre canto de parede tintado com textura miúda e pontuada nos extremos superiores por duas molduras vazias, se não contarmos o reflexo de outras tantas molduras. Cartões de legenda em branco brilham paralelos aqueles fragmentos de objecto comum. A figura está de costas e acentua o rasgo onde a superfície se desdobra em fenda. Eis sublime auto-retrato do fotógrafo: sombra perdida na fronteira dos reflexos, imagens aplicadas em superfícies que se espelham dizendo, a um tempo, matéria densa de construção mas volátil assim a espessura da luz. Pode a fotografia existir sem lugar que a revele? O corpo do artista pode ser ecrã. Quase nas últimas páginas, as do início do percurso, em clássicos quadrado e preto e branco, pedaço de parede forrada de motivos florais sobre o qual assenta moldura com reflexos desfocados do mesmo motivo. Por não ser uniforme, a luz permite que o chiaroscuro vá revelando as subtilezas, as marcas da natureza morta, do tempo. De súbito, rasgada pelo enquadramento, uma tomada. A presença eléctrica do humano faz-se flor, vivifica a matéria inerte. De igual modo, o espelho dialoga com o espectador, quando vemos o objecto torna-se distinto. Outro século agora, de novo ao baixo e a cor, com a paginação em dupla página acentuando a cadência. Sobre fundo hipnótico de florões com dominância de roxos, com vibrações distintas, do muito vivo ao esbatido, parece tombar uma moldura barroca que acolhe foto de mulher vestida sobre a relva, de pose e olhar oferecidos. A parede há-de estar erguida, mas ao alto entrega-se um corpo deitado em chão de ervas. O fotógrafo revela deitado sobre o seu objecto e expõe quase sempre ao nível dos olhos. A fotografia será sempre janela excessiva rasgando a possibilidade de dimensões e narrativas. Esta investigação do José M. sobre a pele do mundo passa por inúmeras texturas e matérias, muitas águas e rochas, mas encontra constância nesta tentativa de fazer da parede, do papel, ou seja, do suporte também ele substância, carne. Há ainda outra onde o corpo do artista se sobrepõe sobre costas de cadeira e o fundo outro não é senão parede com tomada de vários canais, eléctricos, telefónicos, de antena? E nisto desembocamos em presente mais próximo, para já a mais perturbadora das fotos aqui incluídas. Cor, ao baixo, impressa ao alto na ímpar. O artista está arrumado ao canto de duas paredes com frescos emoldurados por sancas de gesso, encimadas por fios eléctricos de cores distintas e colocados também sobre florão pintado no início do tecto que se deixa ver. O enquadramento propõe um desequilíbrio dinâmico que faz do centro o artista de olhos fechados e boca aberta, sorvendo ar. Enquadram-no paisagens campestres com grande presença de céu e azul, de água, visões irreais de um bem-estar composto para o olhar. O fotógrafo respira ou diz em voz alta? Na página par, acontece correspondência, a modos que curto-circuito. No negro puro rasga-se um pequeno rectângulo com homem de costas, a mesma camisa aos quadrados da seguinte: o fotógrafo no estúdio em trabalho de revelação? Ali respira-se luz. O corpo do artista, o seu rosto, pertence a esta pele do mundo que se prolonga, que tatua as construções, a natureza paisagem íntima, que assombra os muros. O olhar, como a luz, define superfícies, estabelece contactos e possibilidades. O fotógrafo, como a sombra, está em todo o lado. O ar é a grande razão de ser.

29 Set 2020

Suicídios

[dropcap]A[/dropcap] escritora alemã Sabine Ulbricht propôs-se investigar a relação entre a literatura e o suicídio no seu ensaio «Abismos», partindo do livro de Thomas Bernhard «O Náufrago» e de «Van Gogh O Suicidado da Sociedade», de Antonin Artaud. Para a autora, «[…] o suicídio é um tema existencial por excelência, que desde a antiga Grécia que aparece na literatura. Mas há suicídios e suicídios. Aqueles que importam aqui ver não são os suicídios que advém de uma contrariedade material, como uma súbita falência, ou uma contrariedade amorosa, como a perda do amado ou amada. O que importa aqui ver é a relação entre a arte, o artista e o suicídio […]».

Em Portugal não parece ser um tema que nos interesse particularmente. Curiosamente, o filósofo espanhol Miguel de Unamuno escreveu um livro chamado «Por Terras de Portugal e Espanha» onde se pode ler um texto – hoje editado separadamente, como um pequenino livro – «Os Portugueses, Um Povo Suicida», em que são abordadas várias figuras da nossa história, com Camilo e Antero representando os suicídios nas letras. A análise do amigo de Pascoaes vai mais longe e analisa o comportamento suicida de «esse povo triste, mesmo quando sorri», nós, portugueses. Apesar da questão do suicídio português, para o autor espanhol, estar mais ligado a uma ausência de futuro, a verdade é que temos vários suicidados: Camilo, Antero, Manuel Laranjeira, Sá-Carneiro, Florbela Espanca. E outros menos reconhecidos, em maior número certamente, que podemos ligar à análise de Sabine Ulbricht acerca do suicídio em «O Náufrago», visto a autora ligar o suicídio de Wertheimer com a frustração artística. «Bernhard faz com que Wertheimer se suicide porque o Glenn Gould existe ou, na tese mais trágica, porque não pode ser o Glenn Gould.» A escritora alemã não esquece o título do livro e as relações com o livro «Naufrágio com Espectador», de Hans Blumenberg, que mostra como a metáfora do naufrágio está amarrada à existência, pelo menos desde Tales de Mileto, esse que é considerado o primeiro filósofo. Diz-nos Blumenberg, que a despeito do humano ser um habitante da terra, a metáfora da existência ligada ao mar e à situação de embarcado surge-nos já na Grécia Antiga e torna-se comum na reflexão filosófica ao longo dos séculos. Contudo, a metáfora que ficou mais conhecida na história do ocidente foi a de Lucrécio em «De Rerum Natura / A Natureza das Coisas».

Aqui, Lucrécio traça uma metáfora do naufrágio com espectador, cujos elementos constituintes são o navio, a sua tripulação, o timoneiro e o mar, encontrando-se os navegantes em perigo de vida. A este cenário é acrescentada a figura do espectador que está em terra firme –na praia – e que observa, à distância, a calamidade do naufrágio. Neste sentido, Lucrécio fazia a defesa de um viver em ataraxia, isto é, fazia a apologia de que devíamos viver afastando de nós as afectações, as paixões. Assim, estava bem de ver, que o naufrágio não era a existência, mas um particular modo de a efectivar, que seria o entregar-se aos prazeres desmedidos e às paixões. Não podemos esquecer que Lucrécio era epicurista e defendia que o melhor que se podia alcançar na vida era ser espectador dela. Não devemos esquecer que os epicuristas além de condenarem os excessos condenavam também qualquer actividade política, pública. Devíamos abstermo-nos de participar da vida. A vida foi feita para o espectador. Para aqueles que leram Pitágoras, lembrar-se-ão da poderosa metáfora que usa ao defender a vida contemplativa, ligando isso à filosofia. A fonte é Diógenes Laércio, leia-se: «A vida, dizia Pitágoras, é como um festival; tal como alguns vêm ao festival para competir, outros para fazer o seu negócio, enquanto os melhores vêm como espectadores, assim os homens servis vão à caça de fama ou de lucro, e os filósofos, da verdade.» Fica aqui, para sempre na história ocidental, a ligação estreita entre procura de conhecimento e verdadeira vida. E esta vida é a do espectador. Isto será recuperado por Epicuro, e será o centro do seu pensamento ético. Embora não fosse neste sentido que Lucrécio usasse a metáfora do espectador, ela foi também usada para defender o ponto de vista de Epicuro; a de uma vida longe da acção. Acção que é a do homem que embarca.

Sabine Ulbricht escreve ainda acerca das interpretações de Pascal, de Schopenhauer e de Nietzsche acerca da metáfora do naufrágio, tal como aparece no livro de Blumenberg, para então escrever: «Mas a metáfora da existência em ligação a náufrago, em Bernhard, contrariamente a Nietzsche [para este somos todos náufragos, mas podemos alcançar terra firme tornando-nos naquilo que somos, criando os nossos valores] , não tem terra firme a que se chegue. Não há a possibilidade de transfiguração dos valores, de construir novos valores, porque a existência é assim mesmo e não admite inovações ou transfigurações. Assim, para Bernhard, existir é ser náufrago e sem possibilidade de chegar a terra firme, a não ser talvez com o génio, como é no livro o caso de Glenn Gould, mas que se estende a Horowitz, a Mozart, a Bach, a Schoenberg, a Berg, a Mahler, a Handel… Mas para além ou aquém do génio, toda a existência é a de um náufrago em alto mar. É assim com o narrador e é assim com o Wertheimer, embora de modos distintos. Ambos são náufragos, mas cada um deles vive a situação à sua maneira. O Wertheimer desiste de continuar a nadar, a manter-se à tona da existência, assim que percebe que não há terra firme a que chegar. O narrador embora saiba que não há terra firme a que chegar não desiste de se manter à tona, pois entende que existir é manter-se à tona, sem a ilusão de uma terra firme a que chegar. É o ponto de vista mais aterrador da existência, a de que existimos para nada, a não ser para as migalhas que o dia traz. Assim, mais do que Nietzsche, é a Schopenhauer que Bernhard e o seu livro mais devem. Em a metáfora do naufrágio, Schopenhauer torna o náufrago espectador de si mesmo.»

Adiante no livro, a autora alemã escreve que, «[…] partindo de um ponto de vista estético, Bernhard descreve um profundo drama existencial, o de alguém que nunca esteve bem consigo e com o mundo, que nunca se viu a si mesmo, mas apenas uma projecção que fez de si mesmo. Se isso é suficiente para levar ao suicídio é outra questão. No modo como Bernhard descreve, sim. O náufrago deixa de nadar, por não conseguir ver terra firme a que se possa chegar. O suicídio advém de não se ver futuro. Advém de que a vida é um eterno presente naufragado em alto mar, sem possibilidade de chegar aonde quer que seja, embora este futuro não seja um vínculo temporal com acontecimentos materiais, e sim com uma vontade estética. Não é falta de um futuro concreto, material, mas a perda irremediável – é assim que é sentido – da possibilidade de se viver segundo um sentido estético»

No fundo, segundo Ulbricht, o suicídio acontece por um curto-circuito com o futuro. E nos artistas esse curto-circuito é o rompimento com uma vida para a estética. O existente não deixa apenas de se ver no futuro, de não conseguir imaginar-se adiante, não consegue imaginar a sua vida sem uma vivência plena na estética, que julga ter terminado para sempre, seja por que razão for. Literalmente, a vida acabou, deixa de nadar. «Wertheimer mata-se porque vê que a estética deixa de fazer sentido na sua vida. E, sem isso, não vale a pena viver.» Continuaremos na próxima semana a seguir este livro de Sabine Ulbricht.

29 Set 2020

Menos infinito, mais infinito

[dropcap]S[/dropcap]empre tão injusta, humana e imperdoável, a tentação de quantificar a veemência com que um dado acontecimento nos colhe. Sobretudo se o fizermos no sentido de ordenar, nesse eleger, o que mais ou melhor ou com mais intensidade nos tocou. Esquecendo como um se pode sobrepor a outro pela simples acção do tempo. É talvez falsa, essa cristalização absurda, aquitectada num tempo qualquer e aceite sob pressão como um dado a viver para sempre. Como amar. Alguém, ou os pais, por exemplo. Pode não se amar como se julga ou decide. Ou pode-se amar mesmo quando o desconforto nos faz rejeitar. E deixar de amar e voltar a amar e isso não ser compatível com a organização molecular de cristais e rochas em que gostamos de inscrever sentimentos.

Fazer listas, idiossincrasia comum, é a necessidade de arrumação, ordenando em decrescendo, como na fila para um autocarro que partiu vindo e indo para parte incerta. Paixão coleccionista por uma ordem na catalogação e quantificação, como a dos números naturais, sempre contaminada pela da ordem mais subjectiva dos números reais. Quem conheça os números, sabe que a ambição de ordem de preferências e afectos, nos inclina mais para os números reais, esses que também dizem das perdas, do que para os naturais. Situamo-nos entre menos infinito e mais infinito, em pleno abismo de enormidade positiva e de desmesura negativa.

Fujo a essa delimitação como ao mergulho no abismo da ordem indominável. Mas a inconsequência da imperfeição traz-me sempre, como registos soltos, pessoas, obras, imagens. Que quadro alguma vez me tocou, pelos acasos do momento, da focagem ou da predisposição? Que quadro me acompanhou por décadas como uma persistência na memória e sabe-se lá porquê? Se existe um, esse.

E, se algum foi amado como nenhum, ou se se ama um quadro, esse foi o mais amado. Ínfimo, na acumulação da memória, mesmo esquecido, aparece ao primeiro esboço de lembrança. Perene como folha que não é de natureza de cair em estação nenhuma. Que se inscreveu para ficar e para sempre.

Aceitamo-nos como parte da natureza que nos transcende e a essa que nos transcende. Olhamos de alto aquilo que é enorme, não com sobranceria mas com apaziguamento. De o conseguirmos incorporar mentalmente muito para além dos constrangimentos físicos a que estamos destinados. Admitimos o temor e arriscamos o confronto. Parados no nosso lugar, varanda sobre o mundo. Entrevisto, mesmo se de janela pequena, acresce em desmesura ao espaço interior. Face ao indominável, serenamos a alma em contemplação. Um fotograma pontual por onde se espreita a liberdade de caminhar como na rua conhecida, por um ponto de um vasto lugar além, sem se perturbar a sólida sensação de harmonia com a escala do momento. Pontos num universo de pontos sem quantificação possível. Parte da teia universal. Que nos ultrapassa. Sem que daí venha problema de maior.

Wanderer above the Sea of Fog. C. D. Friedrich cruzou brumas quase sólidas na paisagem ante a vista, como flechas apontadas ao coração do caminhante. Um caminho em perspectiva que de algum modo o direcciona para a vastidão do horizonte. O centro do universo nesta apologia do indivíduo e das emoções. E de reserva, nessa persistência de figuras de costas. Tão nórdico o frio, como cortantes são as formas do nevoeiro. Tanto como as placas de gelo de outros quadros. Um rigor inóspito a tornar mental aquilo que não é para ser expresso mas encerrado no coração da figura. Uma procura de unidade entre o ser e o universo, com que se identificam muitas décadas depois os expressionistas abstractos. Com a mesma ascese que se encontrava na interpretação romântica da paisagem como campo mental. E em que a personagem central – neste caso – se apresenta como um falso obstáculo, já que é o lugar dela que tomamos, como outras vezes quando exista uma figura de costas voltadas.

Cada apropriação é privada. Esquecer teses. Não adianta adulterar o testamento do artista, prendê-lo a interpretações, associando-o a ideias de nacionalismo, como o fizeram. Quem sabe o que lhe passou pela cabeça naqueles dias? Aquele é um lugar que não existe. Aquelas nuvens nunca existiram assim.

Exactamente delineadas em vapor de água naquele específico e imortalizado recorte. Aquele nevoeiro e aquelas escarpas. Perdido de vista o número exacto de texturas e reentrâncias. E, no entanto tão reais quanto síntese de uma observação intensa de outras como aquelas. Se existiram já não o eram quando a pincelada tentou definir. Uma imprecisão visceral em tudo, como agarrar o tempo. Aquele homem é qualquer e nenhum que se conheça. Porque nenhum se conhece e não adianta ver aquele senão como espelho. Em que nunca o homem se vê de costas. Mas é tentar prender o homem à impossibilidade de ver mais do que aquilo que se lhe depara em frente. Para além dele e excluindo-o. Ou para trás dele e incluindo-o. Como bagagem que se transporta do passado. Esse é o ser excluído da ordem universal. Aquele que se se centrar em si cega para tudo o mais. Assumir esse desconhecido dramático, é a janela ampla que o romantismo histórico abre ao ser humano, pequeno a tentar fazer-se ser. Pode-se imaginar o herói. O pequeno temível e arrojado herói. Ou Narciso, deixando para trás as águas delimitadas do regato primaveril, a ver-se no espelho infinito do mundo. E do alto da montanha. Ou simplesmente um eu esquecido de si.

Visto nos livros. E, depois disso, tatuado na memória como uma marca na parte detrás do pescoço e que nem nos lembramos de ter, quantas vezes o revi reproduzido em fazenda de lã. Esses ombros a voltar costas mesmo antes de o fazer. Ou esse território de nuvens como espaço a perfazer. A natureza, escarpada com todo o seu esplendor e o caminhante, aquele que por natureza vai caminhando. A imagem é afirmativa como um ponto de chegada, mas ele está de passagem, sem arrogância de conquista. Uma coisa que só a mente consegue. Neste combate desigual.

Somente ao longe se distingue. Também nós podemos virar costas. À paisagem. Mas fechamos os olhos e inteira se nos apresenta como um universo amplo para vaguear.

27 Set 2020

Procurador nomeado entre os bacharéis de direito

[dropcap]O[/dropcap] Relatório dirigido ao Governador José Maria da Ponte e Horta (1866-1868) com o parecer sobre a espécie e extinção das atribuições que cumpre tenha o tribunal da Procuratura dos Negócios Sínicos da Cidade de Macau, apareceu na Parte Oficial do Boletim da Província de Macau e Timor de 25 de Março de 1867. Fora redigido por a comissão nomeada em portarias, a de 22 de Novembro de 1866, com João Ferreira Pinto como presidente, Dr. Alexandre Meireles de Távor e A. Marques Pereira, secretário relator e após exonerados dois vogais da comissão, por portaria de 6 de Fevereiro de 1867 juntaram-se Thomaz José de Freitas e Francisco António Pereira da Silveira.

“As circunstâncias que se davam quando V. Ex.ª tomou o governo, determinavam a urgência de um regulamento para a Procuratura dos negócios sínicos da cidade de Macau. Considerou V. Ex.ª atentamente essa urgência, e a letra do decreto que a reconhecera; mas considerou também que eram já aquelas circunstâncias em grande parte diferentes das que ditaram o mesmo decreto, pelo que, para a eficácia da reforma, convinha antes de se proceder à organização de um regulamento propriamente dito, se definissem as bases sobre o que tinha de ser feito, isto é, se demarcassem as funções e jurisdição da repartição de que se tratava. Este foi o assunto sobre que V. Ex.ª incumbiu a comissão de formular um parecer, enumerando-lhe com esclarecido critério quais as condições que eram indispensáveis se acordar para a sugestão de uma mudança legal e profícua.

A comissão em breves termos formulará as opiniões em que unanimemente assentou não só porque V. Ex.ª lhe deu a honra de assistir às suas principais discussões, mas também porque lhe parece que é geral o convencimento das necessidades que diligenciou atender.

O Procurador, que sempre teve de se corresponder em nome do governo com as autoridades do vizinho império chinês, a comissão crê de utilidade que se mantenha, não só porque na Procuratura existe o pessoal habilitado para tal serviço, que aliás é hoje pouco oneroso, mas também porque dificilmente se habituariam aquelas autoridades a dirigir-se a outro funcionário, tendo-as nessa prática a tradição de longo tempo.

É da mais incontestável necessidade, em Macau, a existência da Procuratura, pela insuprível utilidade que dela resulta como tribunal privativo de uma população especial. Entende porém igualmente que, para todos os casos em que tal especialidade se não dê, e também para que se vá gradualmente, e quanto possível, educando a população chinesa em nossas leis e modos de julgar, (…) deve o mesmo tribunal ser assimilado aos nossos de primeira instância, em tudo o que não ofenda a razão da sua existência. Neste sentido é indispensável que a forma de tribunal se lhe complete, desembaraçando-o das funções administrativas que ainda hoje desempenha e que necessariamente prejudicam o seu exercício, e dando-se-lhe o respeito e isenção que convêm à boa administração de justiça.”

Assim, resumindo, a comissão tem a honra de submeter à ilustrada consideração de V. Exª as seguintes indicações para a reforma da Procuratura dos negócios sínicos da cidade de Macau: 1.º- Que a Procuratura seja constituída como um tribunal português, com jurisdição ordinária, regulado ad instar dos tribunais portugueses de primeira instância. 2.º- Que para a sua jurisdição, processo e recursos, se sigam, além dos regulamentos especiais, as leis gerais portuguesas. 3.º- Que a alçada, nas causas cíveis, e comerciais, seja de duzentos mil reis em bens móveis e de cento e cinquenta mil taéis nos de raiz, e, nas causas crimes, de três meses de prisão e multa correspondente. 4.º- Que nas causas crimes, e nas de fazenda, de órfãos, ausentes e mais pessoas de privilegiada condição, intervenha um magistrado do ministério público, ao qual pertençam todas as atribuições que conferem aos delegados do procurador da coroa e fazenda o respectivo regulamento e leis subsequentes. 5.º- Que as causas comerciais sejam decididas, sob a presidência do Procurador, por três jurados, tirados à sorte, em cada sessão de julgamento, de uma lista de quinze dos principais comerciantes chineses, cuja nomeação anual pertença ao governador da província. 6.º- Que para todos os crimes se adopte o processo estabelecido por lei, competindo ao Procurador o julgamento deles, com excepção dos da pena de morte. 7.º- Que o tribunal superior para os recursos em causas cíveis continue a ser o Conselho do Governo, fazendo parte dele, nessas sessões, o delegado do ministério público junto à Procuratura, e, na sua falta, o delegado da comarca cristã. 8.º- Que o tribunal superior, nas causas crimes, seja o da Junta de Justiça, atribuindo-se-lhe o julgamento dos chineses incursos em crime de pena de morte, cujos processos deverão ser completamente instruídos na Procuratura, e a decisão de todos os recursos legais. 9.º- Que, nos casos de crime de pena de morte, seja relator na Junta de Justiça o Procurador; e, nos de apelação ou agravo, o substitua um chinês, cidadão português, nomeado para cada biénio em Conselho do Governo. 10.º- Que o processo de conciliação, exigido pelo artigo 210.º da novíssima Reforma Judicial, continue a fazer-se no tribunal da Procuratura. 11.º- Que para a decisão das questões menores entre chineses haja dois ou três juízes de paz, com atribuições de juízes eleitos e determinada alçada, nomeados pelo governo bienalmente, e do modo estabelecido no artigo 86.º do Regimento para a Administração da Justiça nas províncias de Moçambique, Estado da Índia, e Macau e Timor, de 1 de Dezembro de 1866. 12.º- Que as funções de secretário diplomático do governo da colónia, em sua correspondência com as autoridades do império chinês, continuem a cargo do Procurador.

Procuratura separada do expediente sínico

Por decreto de 20 de Dezembro de 1877 apareceu a primeira organização decretada pelo Governo da Metrópole para a Procuratura, instituindo-se que o Procurador seria nomeado d’ entre os bacharéis em Direito (nesse ano, Pedro Nolasco da Silva e Leóncio A. Ferreira), sendo adoptadas então nesse tribunal as fórmulas dos tribunais judiciais. E continuando com o padre Manuel Teixeira, esse regimento sofreu modificações acidentais pelo decreto de 22/12/1882, até que, por decreto de 2 de Novembro de 1885, da Procuratura foi separado o Expediente Sínico, cujo chefe até 1892 foi Pedro Nolasco da Silva.

A Procuratura foi suprimida pelo decreto de 20 de Fevereiro de 1894, porém o de 2 de Julho do mesmo ano declarou ainda vigente o Regimento na Procuratura, apesar da suspensão do dito tribunal, não só pelo que respeita a penalidades, mas ainda no que contém em matéria de prisão por dívidas, fiança às custas, ou qualquer outra que não seja propriamente de termos e formalidades de processo.
Em 1883 o tribunal de Procuratura passara já para o prédio da Rua de Sta. Clara pertencente ao Mosteiro, cujos bens a Junta da Fazenda administrava.

27 Set 2020

A livre circulação de meio milhão

[dropcap]N[/dropcap]ão consigo regressar à minha casa em Pequim. As fronteiras estão fechadas desde Março. O único país a não deixar entrar pessoas com vistos de trabalho e autorizações de residência no Império, agora ao Meio, cheio de virtude, produção viral, agora pandémico. Lembro-me de quando era eu que lhes dava autorizações de residência e vistos dourados. Trabalhava em pequenas e médias empresas e era assim que eu falava disto aos amigos:

Há pessoas a imitarem biombos nas pequenas e médias empresas. Ocupam uma cabine mas não precisam de separador, partes de si são documentos na mão, fios de telefones controlados, sorrisos chapa cinco a felicitar clientes como doentes em recuperação. Quem compra, recupera. Da boca informativa circula sangue comum. Laranja é a cor do poder porque não usa farda. Estantes derretidas em arquivos, emoções por ordem alfabética. A administração acampa no edifício, sorriso administrativo na altura de usar a boca. Braços para agarrar folhas, dedos furados profissionalmente. Empresas que são expansões de objectos subjectivos com exemplos que sobem por folhas de excel em flash. Computadores inquilinos em secretárias baratas. O vídeo do Turismo de Portugal mas com legendas em chinês, ou lá o que aquilo é. O chefe-general pede uma reunião e o exército feminino senta-se com frio na sala de reuniões, onde o ar condicionado está a 16 graus.

O chefe-general está de fato. As mulheres de saia. Têm frio mas apanham balas de perdigotos como quem só não trabalha no Dona Maria porque é demasiado forte. O chefe explica: “Um círculo, dois SSss, um cliente chinoca, um edifício na baixa. A armadilha é a seguinte: queima-se-lhes as papilas gustativas na carrinha mercedes e põe-se os gajos num quintal. Não sabem onde estão. É Lisboa, claro.” Mas é no Montijo. A proprietária em stilettos rosa chanatos da feira (made in China) multiplica as comissões ou divide (made in China), não sabe ainda bem. Mas sabe que a ela ninguém lhe tira os órgãos num alçapão. Aqui, o alçapão é ela. A família chinesa trouxe os avós e os irmãos: vai haver negócio. A área bruta do quintal tem imensos benefícios fiscais e por isso o preço a pagar permite uma percentagem de retorno ao ano, pago de antemão pelo comprador. Tem que se inflacionar por causa da Caderneta Predial, obviamente. Mas isso pronto, é assim. O agente chinês traduz. Como se trata de um Edifício Classificado mais o marisco em Cascais, o agente precisa de uns 20% de comissão. Mas a proprietária tem na manga o Imposto do Selo. A ela não a enganam, tem várias leads. Foi o general que lhe disse. O exército vai operando, umas nas trincheiras, outras no acampamento. Há uma empresa de advogados premiados aberta trinta e oito horas por dia – não falha.

Tragam os avós, os primos, o Union Pay, dinheiro vivo de gente morta. O mercado imobiliário está à mesma altura da livre circulação no espaço Schengen. Ao fim de cinco anos, têm a cidadania, claro. Sim, claro. Ao fim de cinco anos. Quem compra, salva-se. Uma cabo-adjunta leva a família para o Casino enquanto a Coronel se reune com o agente secreto. “Vão comprar a quinta ou o edifício na baixa?” “Eles querem o edifício da baixa mas querem mudar a fachada.” “Não podem.” “Dizem que é velha” “É antiga!” “E aquele T3 no Parque das Nações?”

24 Set 2020

O político desejável

[dropcap]J[/dropcap]á foi muito mais complicado entrar para a política. Tempos houve em que os titulares dos cargos de topo faziam gala das suas habilitações, dos seus doutoramentos nas mais reputadas universidades mundiais, de terem escrito ou revisto códigos civis, penais ou a própria constituição. Outros ainda chegavam à política por de algum modo se terem distinguido socialmente: empresários de sucesso, desportistas notáveis, artistas que mudaram a nossa forma de ver, ouvir e sentir. A política era um microcosmo elitista com regras inconspícuas de admissão.

Hoje em dia é muito mais fácil dar vazão a necessidade de poder que pauta a existência de certos humanos. Criaram-se inclusivamente clubes – funcionando ao modo de escolas – para ensinar aos futuros governantes as múltiplas artes pelas quais se conquista e se mantém o poder. As juventudes partidárias são uma espécie de academias de formação em futebol à volta das quais gravitam uma série de olheiros prontos a identificar o próximo secretário de estado da energia. A competição é naturalmente renhida, mas não exige as competências excepcionais que outrora fechavam as portas a tantos candidatos infinitamente mais sequiosos de poder do que a maior parte daqueles que lá andavam. As habilidades apreciadas são muito distintas, até. Ao jovem promissor é exigida uma fidelidade canina ao partido e um respeito religioso pela hierarquia, coisa que a maioria dos candidatos cumpre com afinco, dado estas características os dispensarem de mostrar quaisquer outras competências. A calhandrice, não sendo um requisito eliminatório, é praticamente indispensável para progredir no sistema, cuja forma labiríntica e mal sinalizada exige do jovem promissor uma capacidade de leitura dos mais variados duplos sentidos, das mentiras sistemicamente disseminadas e da hipocrisia dos grupos que se fazem e desfazem ao sabor dos interesses e das circunstâncias. O candidato que almeje ser mais do que um mero agitador em vésperas de eleições tem de investir com pertinácia no jiu-jitsu da rasteira ao próximo, no terrorismo do carácter alheio e na disseminação de toda a sorte de boatos. Mas não chegará longe se não se rodear de quem possa oferecer o peito às balas por ele, i.e., de quem se dedique a assumir as responsabilidades pela ignorância ou pela canalhice dos seus actos. Os candidatos têm a força do grupo a que pertencem, pelo que escolher bem o grupo onde se quer progredir é fundamental. Dá igualmente jeito ter uma consciência tão mansa como um golden retrivier vegetariano. É esta que permitirá ao jovem promissor dormir uma noite descansada depois de ter cumprido o ritual de esfaquear o melhor amigo pelas costas. É também esta que lhe permitirá mentir descaradamente numa conversa ou num debater sem levantar qualquer alarme moral interior. A consciência é um peso e o candidato, se quer chegar longe, tem de se aliviar dela o mais depressa possível. Tudo o resto se joga no reino das aparências, no qual o candidato tem de gerir a sua imagem da melhor forma possível. E gerir, neste contexto, é um eufemismo generoso para a extrapolação hiperbólica de si próprio necessária para galgar a escadaria do sucesso. O prestígio vestigial tem de ser convertido numa notoriedade ampla e concreta, nem que para isso o candidato empole a importância da mais pequena banalidade académica, profissional ou pessoal. Quem estiver minimamente preocupado com a equivalência das aparências com a realidade não tem lugar no ecossistema das juventudes partidárias, nas quais a trivialidade envernizada é a moeda de troca mais comum entre egos concorrentes. Como nota final, realçar a importância do killer instinct, ou seja, da capacidade de perceber o momento ideal, dentro de um determinado contexto, para fazer tombar a criatura ocupando o galho para onde o candidato quer subir.

Sigam-me para mais receitas.

24 Set 2020

O momento de felicidade

[dropcap]A[/dropcap] filha de Clarisse, no filme “As horas”, pergunta-lhe qual tinha sido o momento mais feliz da sua vida. Depois de algum tempo de reflexão em que tenta lembrar-se, responde-lhe. Ou terá respondido logo? Disse-lhe que sabia. Tinha sido há muito tempo. Como o tempo passa! Nem percebemos como, pela sua passagem, morrem não só pessoas como desaparecem coisas. Épocas inteiras são apagadas da face da terra para emergirem à superfície da consciência na sua ausência, quando nos lembramos delas ou elas nos aparecem sem saber como, vindas não se sabe de onde. Acenam-nos de lá de onde têm estado ausentes, numa presença fantasmagórica, morto que tudo está. O lado de nós que assiste a essa ausência está presente e dá conta de que tudo isso que agora nos aparece tem estado desaparecido e que estão mortas as pessoas de que nos lembramos tão vividamente que dá a sensação de que estão vivas. Mas é só a sensação.

O lado de nós próprios que esteve imerso na vida com tudo o que desapareceu já não existe. “Eu sei! Eu sei. Foi há anos”. A resposta obriga a um mergulho. Clarisse sonda a vida que viveu. Não será já feliz ou não sabe se ainda o é, se o foi. Saber-se-á sempre quando se é feliz? Sente-se a felicidade muitas vezes por causa de coisas que existem e que nos acontecem. Outras vezes sente-se a felicidade, sentimo-nos felizes: o facto de se estar vivo. É por causa do sentir-se feliz que qualquer conteúdo está ganho. A felicidade projecta-se sobre nós, e tudo, toda a gente, todas as coisas são atingidas. É uma atmosfera em que se está mergulhado. O clima certo em que se caiu. A felicidade é volátil, volúvel, gasoso, inconsistente, momentâneo, incontrolável, existe independente como um capricho dos deuses ou só da meteorologia. “Já fomos jovens”. “Era eu jovem”.

A filha escuta e olha para Clarisse com atenção. Sabe lá ela o que é a felicidade. Sabemos lá nós o que é a felicidade da nossa mãe. Sabemos lá nós o que é a nossa mãe uma miúda jovem. Nem quando vemos uma fotografia da nossa mãe recém-nascida vemos uma menina. Vemos sempre uma metamorfose. “Mãe, estás a dizer que foste jovem um dia”. A juventude é uma atmosfera temporal, uma época da vida. Não foi para lado nenhum. O tempo não vai para espaço nenhum. O tempo vem do futuro e do presente vai para o passado.

Há, contudo, uma data de vivências que se soltam do passado e chegam até nós no presente. Há locais que só existem geograficamente mas já não podem ser frequentados. Há pessoas que não vemos há tanto tempo. Há os mortos. O tempo em que outrora coincidimos todos vivos é breve, brevíssimo. A felicidade não é um estado de espírito. Não existe estagnada. Não é também só uma emoção nem é um afecto. É um sentimento. Faz-se sentir a partir de si. É um horizonte que se abre. Pode estar ligada a pessoas, com as quais partilhamos a vida. A ser com outros tudo muda. Não se sente o tempo a passar, pois sente-se haver futuro. “Lembro-me de uma manhã”. “Acordei cedo com aurora”. “Havia aquele sentimento, sabes?” O sentimento de possibilidade. Lembro-me de pensar de mim para mim: “Então é isto o princípio da felicidade”.

“É agora que a felicidade começa”. Naquele momento, em que pela primeira vez se sente a felicidade o futuro acena-nos e antecipamos a sua possibilidade.

E foi isso, então, nessa altura. A felicidade era e foi só isso. Um aceno do futuro como futuro, o sentimento da possibilidade que nos deixa antecipar a sua própria possibilidade. Não havia mais nada, porque tudo o que havia existia na atmosfera desse sentimento. A felicidade foi aquele momento impermeável a qualquer conteúdo ou talvez dependente apenas da juventude, o tempo da possibilidade, a encharcar a praia, a casa de férias de Verão, os outros todos que ainda estavam a dormir mas viriam para a praia, a tarde, o serão.

24 Set 2020

O medo do delírio

[dropcap]D[/dropcap]esde os inícios do século XX que se tornou corrente criar um texto literário e, ao mesmo tempo, concebê-lo como um vórtice que se recorta, que se adia e que se procura. Um texto à procura de si mesmo no modo como se organiza, como se desmonta e como se repõe diante dos olhos do leitor. Se as teorias desconstrutoras, como a de Derrida, parecem por vezes muito próximas do delírio, ainda que sejam paradoxalmente realistas (o delírio advém da dificuldade em expor de modo racional o que não cabe na expressão necessariamente lógica), na sua aplicação à leitura literária, contudo, elas reaparecem com alguma nitidez.

Deixo para reflexão um conto de José Cardoso Pires, intitulado ‘Uma Simples Flor nos teus Cabelos Claros’, publicado no ano de 1963 no volume Jogos de Azar*. O conto propõe um esquema de montagem alternada e faz lembrar as aventuras visuais que Jean-Luc Godard estava a experimentar na época. Trata-se de um processo de ‘mise en abyme’ que vai colocando face a face situações diferenciadas, embora surjam sequencialmente entremeadas. Dois casais cruzam as suas histórias: Quim e Lisa estão no mesmo quarto a horas tardias: “[S]ão quase duas horas da manhã…”. Paulo e Maria, por sua vez, são personagens de uma história que Quim está a ler. Deambulam numa praia, em final de Inverno, durante o entardecer: “[…] os dois numa arrancada, correram pelo areal, saltando poças d’água […]”. O contraste entre as duas situações é radical. Lisa e Quim partilham um universo de angústia (percorre-os um ambiente de corte, de alheamento e de acenos rudes), enquanto a poética e uma conjunção quase ideal de afectos dominam o ambiente em que Paulo e Maria se enunciam.

Ao fim e ao cabo, nenhuma das duas histórias se impõe à outra. Antes se misturam e caminham para uma espécie de indefinida fusão em que o sentido se subentende e se interroga mais do que se clarifica. O início da enredo (o único ‘incipit’ que conheço que se inicia com a adversativa “mas”) situa a leitura de Quim e é aí que surge em cena o que, para ele, são personagens que saltitam em modo duplo: Paulo e Maria (ainda que a personagem feminina não apareça com iniciativa própria, mas apenas de uma maneira indirecta). Afinal, temos sobretudo Paulo que se debate com um outro interveniente não menos importante: a natureza abrupta e imprevista do mar.

O texto avança e reflui, tal como as marés, e constrói-se ao mesmo tempo que se cinde consigo mesmo. Para que este objectivo se vá materializando, é de crucial importância a presença de uma poética rica e de uma potente afirmação das ferramentas e dos materiais literários. Ao contrário da teoria (que se enclausura nos seus sintagmas rígidos e que passa o tempo a augurar legitimidades), a autonomia do texto artístico permite diluir identidades, complementar remissões, gerir as mais diversas elipses, jogar com o plano das decisões aparentemente definitivas, flutuar a bordo da instabilidade do discurso e, em primeiro lugar, nunca visar um desígnio ou um final derradeiro.

A grande literatura, no fundo, consegue levar a cabo a orquestração turbulenta da nossa própria consciência. É nesse interface que a denegação, a cesura, a sobreposição súbita e o ‘não dito’ integram a fluência de uma mesma equipa. Por outras palavras: é a flutuar nas águas agitadas da nossa consciência que a mais genuína expressão do delírio leva a cabo as suas travessias naturais, sem que o medo e o preconceito nos agarrem com a mão e nos afoguem em tabus e preconceitos. Leiamos este trecho do conto que serve de clister e de expiação ao mesmo tempo:

“Quim…/  Outra vez?/ Desculpa, era só para baixares o candeeiro. Que maçada, estou a ver que tenho de tomar outro comprimido./  Lê um bocado, experimenta. / Não vale de nada, filho. Tenho a impressão de que estes comprimidos já não fazem efeito. Talvez mudando de droga… É isso, preciso de mudar de droga./ – Tão bom, Paulo. Não está tão bom?/ – Está óptimo. Está um tempo espantoso./ Maria continuava sentada na areia. Com os braços envolvendo as pernas e apertando as faces contra os joelhos, fitava o nada, a brancura que havia entre ela e o mar, e os olhos iam‐se‐lhe carregando de brilho./ – Tão bom – repetia./– Sim, mas temos que ir./ Com o cair da tarde a névoa desmanchava‐se pouco a pouco. Ficava unicamente a cobrir o mar, a separá‐lo de terra como uma muralha apagada, e, de surpresa, as dunas e o pinhal da costa surgiam numa claridade humilde e entristecida.”.

Pires, José Cardoso. ‘Uma Simples Flor nos Teus Cabelos Claros’ em ‘Jogos de Azar’. Lisboa, Dom Quixote, (1963) 1999.

23 Set 2020