Tânia dos Santos Sexanálise VozesAs trabalhadoras do sexo e eu A propósito da divulgação de uma concentração sobre o direito à habitação em Portugal, vi-me no bairro mais sexual de uma cidade do interior. Nas grandes metrópoles, sei identificar algumas trabalhadoras do sexo. Elas costumam estar em certas ruas para que sejam vistas e interpeladas por quem quiser contratar os seus serviços. Neste lugar a disposição era bem diferente. Fazia lembrar um red light district de Amesterdão ou Hamburgo muito mais modesto. Demorei a entendê-lo, confesso. Quando as vi, pensei que eram mulheres à janela num dia solarengo. Só depois das duas primeiras janelas é que percebi o padrão. Eram quatro apartamentos do rés do chão, em dois blocos sucessivos de prédios. Elas, todas em linha, exibiam-se, tal como uma vitrine se tratasse. Algumas mais produzidas do que outras. Umas maquilhadas e com roupa de cores berrantes e decotes generosos, outras com um fato de treino justinho e curto. Para a divulgação de um evento pelo direito à habitação não me coibi de as interpelar com palavras de justiça social. Nós todas precisamos de um tecto e de rendas justas. Houve quem me pedisse esclarecimentos sobre panfleto: “isto é o quê, exactamente?”. Ela talvez tivesse ficado incrédula pela natureza do assunto. Eu expliquei o melhor que pude. E ela sorriu e concordou com as reivindicações. Fantasiei de como terão sido outras interações ao longo do seu tempo ali. Talvez grupos religiosos sugerindo um caminho para a redenção. Talvez outros com pena ou zanga. A maioria a querer pagar por um serviço sexual. Eu interpelei-as como cidadãs preocupadas. Algumas agradeceram o panfleto timidamente. Outras reagiam em concordância: “sim, sim, isto está péssimo para encontrar casa”. Senti uma admiração imensa por elas. Estavam ali, expostas e visíveis. Elas que estão entre a violência do sistema machista e a luta contra o sistema extrativista e capitalista. Elas que podem ser vistas como vítimas do sistema ou a força da resistência. O trabalho sexual está cheio de dilemas e tensões que poucos querem assumir. No coração está o sexo que naturalmente se cobre de moralismos irritantes e de pouca reflexão. Diria que é preciso disponibilidade para olhar para a complexidade do trabalho sexual. Uma atitude que exige tempo, compreensão, capacidade de escuta e, especialmente, a possibilidade destas trabalhadoras terem lugar de fala. Saí de lá com muita vontade de falar com elas, que partilhassem as suas experiências comigo. Queria aprender mais sobre essa complexidade que teoricamente compreendo, mas que de viva-voz ouvi pouco. Saí de lá também com medo de estar de algum modo a contribuir para o fetiche da prostituição. Há quem viva o fetiche sexual, outros o fetiche intelectual. Fantasiar sobre as possibilidades de desgraça e o possível empoderamento do trabalho sexual não deixa de ser fantasia. Estas são pré-concepções que nos ajudam a dar sentido às múltiplas opressões sociais, mas que em pouco ou nada podem refletir a realidade vivida. Essa realidade que me é distante do dia-a-dia de idas para o trabalho e regressos a casa. Elas provavelmente não querem ser vitimizadas, nem tidas como heroínas, ou se calhar até querem as duas coisas. A verdade é que eu não sei. Só soube que, aquelas trabalhadoras do sexo, concordam que as rendas estão muito caras.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesÁsia, Filmes & Amor A cerimónia de entrega dos Óscares tem um peso demasiado grande na avaliação de bom cinema. Aceitamo-lo como um barómetro de cinema popular, dos temas e cinematografia que interessam no ethos contemporâneo. Avalia-se o cinema das massas que, parecendo que não, influencia as culturas. Na última cerimónia assistiu-se a um momento atípico. Um filme de criação asiática, arrasou a maioria dos prémios. É um filme de ficção científica que faz uso de uma contestada ideia da física quântica: a possibilidade de existir o multiverso, vários universos paralelos. Mas mais que um exercício das muitas versões que podemos ser, o filme explora tradição, migração, família e o amor. Uma ficção científica cómica, certamente escrita durante uma viagem de ácidos, acompanhada por uma profunda reflexão sobre aquilo que é humano. As questões culturais e de género estão irremediavelmente presentes. O que é ser um homem, mulher e menina numa família asiática, num país como os Estados Unidos da América, sofrem uma desconstrução profunda. Muito mais do que utilizar estereótipos, o filme oferece uma visão dura da dificuldade em navegar a complexidade da família entre culturas. A representação do homem asiático em Hollywood tende a ser assexualizada, ingénua e frágil. Ao invés, o filme mostra que a bondade e a empatia, essa que parece mais uma vulnerabilidade do que uma virtude, consegue fazer face aos desafios do dia a dia. A popularidade do filme mostrou receptividade para olhar as personagens asiáticas com toda a complexidade que elas merecem, em vez dos sidekicks a que estavam frequentemente sujeitos. A personagem mais velha do filme, interpretada pelo actor James Hong com 94 anos, falou dos seus 70 anos de carreira na entrega dos (vários) prémios que o filme recebeu. Na altura, os actores asiáticos nem eram precisos, bastava pôr um tipo branco com fita cola nos olhos para uns olhos em bico. Num universo de produção cultural dominado pela cultura caucasiana, os asiáticos tiveram com este filme uma exposição e reconhecimento nunca vista. Michelle Yeoh foi a primeira mulher asiática a ganhar um Óscar de melhor actriz. Sonhos realizados que precisaram muito mais do que a capacidade de sonhar. São precisas oportunidades para gerar conquistas como estas. Os efeitos especiais, a produção estonteante, o amor e empatia foram o cocktail para o sucesso. Esse amor, um clichê que é atirado ao ar, não se mostrou completamente vazio ou superficial. Este filme mostrou o amor de uma forma mais ressonante ainda que num contexto absurdo de universos paralelos de dedos de salsicha. A ingenuidade e a simplicidade foram as armas secretas destes super-heróis que conseguiram conquistar o mal dentro e fora do ecrã. Pode ser que todo o processo não tenha sido tão bonito, empático e cooperante da forma como descrevo. Mas por hoje, fica-se com a alegria do triunfo de uma produção asiática numa indústria maioritariamente branca, que usou o amor como bastão de batalha.
Tânia dos Santos VozesO sexo e a morte Os franceses chamam ao orgasmo le petite mort. Uma pequena morte para os que vivem no limbo da vida, a roçarem os limites da sensação de transcendência. O Freud não lhes conferiu tal ligação. Ao invés dicotomizou duas pulsões que regem a vida. A pulsão da morte ou da destruição e a pulsão do prazer, a libido. Para os que intelectualizam a maneira das coisas, os opostos significam pouco quando coexistem de forma tão inequívoca. Quanto mais sexo se tem, mais vida se ganha. Ou seja, quem tem mais orgasmos reduz a sua mortalidade, dizem-nos os cientistas. Mas quando se fala do sexo a par da morte sugere-se uma visão mais metafórica. Talvez mais animal também. Se a morte é o que devemos à natureza que nos criou de carne e osso, o sexo é o que devemos à nossa natureza. Um com o outro, nunca sem. A velhice é um espaço de receios contaminada pela morte e nem por isso por menos sexo. As pessoas sabem que o seu caminho pode torná-las menos conscientes da civilização que as rodeia. Por consequência, os outros respondem com horror à sua desadequação. O sexo é-lhes apagado porque erroneamente achamos que o sexo só existe na vitalidade da juventude e dos seus momentos fugazes e irrefletidos. O sexo é como se não existisse. Ao ver a minha família a envelhecer e a desaparecer em cognição e pensamento vejo que o sexo continua lá. Talvez não da mesma forma. A minha avó manda beijos aos homens e o meu pai manda piropos às mulheres como nunca o vi mandar. Uma força de vitalidade que tenta contrariar o mundo das profundezas de Hades, o deus da morte. Fazem-se cambalhotas para fintar a negatividade ou a inação que é a degeneração. Um mecanismo para manter a vitalidade animal. Mas na pulsão libidinal está algo ainda mais básico que o sexo: está o afecto, o toque e o carinho. Esse é o sustento mais importante para a nossa sobrevivência, o antídoto da morte. Nos anos 50 realizou-se um estudo que mostrou o poder do toque. Harry Harlow mostrou que para a sobrevivência de macacos bebés era necessário algo mais para além da comida e água. Para a sua sobrevivência precisavam do conforto dos braços da mãe macaca, um outro tipo de sustento. O sustento que aguenta o caminho para o desconhecido. O sustento que é tantas vezes posto de parte, ignorado ou posto para segundo plano, como se a única necessidade humana de sobrevivência fosse um tecto, uma refeição e pouco mais. O vislumbre da morte precisa tanto de sexo como o sexo precisa da morte. Se não fosse a mortalidade, a força libidinal não teria tanta expressão e vontade de contrariar a decadência dos corpos. É também pelo sexo que nos aproximamos desse estado de perda e dissolução, de não sabermos quem somos nem por onde vamos. Como uma dança que transporta simplicidade de se ser, o Freud tinha razão. O Eros, o prazer, e o Thanatos, a morte, podem bem ser as pedras basilares das nossas vidas.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA visibilidade trans As mulheres trans são continuamente excluídas e discriminadas. A probabilidade de um adolescente trans desenvolver ideação suicida, ou tentar o suicídio, é de 5 a 7 vezes maior ao de um adolescente heterossexual e cisgénero, isto é, que se identifica com o género designado à nascença. A discriminação está no acesso ao trabalho, na educação ou na saúde. Uma discriminação estrutural que retira espaço ao direito de se ser trans. No dia 19 de Janeiro, no Teatro São Luiz em Lisboa, uma mulher trans assaltou o palco. Em cena estava uma peça com duas personagens trans em que uma era representada por uma actriz trans, e a outra, a personagem principal, por um actor cis. A Keyla Brasil num acto de coragem saltou para o palco e conseguiu trazer ao holofote teatral uma tendência discriminatória e de exclusão, que ainda não tinha entrado no debate público: as histórias e narrativas trans precisam de ser contadas pelos corpos trans, até nas artes performativas. A produção da peça vai agora contratar uma actriz trans para ser a personagem principal. Uns aplaudiram a coragem. Foi uma batalha vencida pela representatividade e visibilidade que não descura a reforma necessária no processo de selecção de artistas. Outros mostraram indignação pela forma como esta batalha foi ganha. A Keyla apareceu no palco semi-nua, expondo toda a violência a que é diariamente submetida. Falou do sexo oral que faz em troco de dinheiro, pelas poucas oportunidades no mundo do trabalho, falou da arma que lhe apontaram à cabeça, falou dos assassinatos constantes, violentos, nas tentativas de apagamento que ela, e muitas outras, estão sujeitas. Apontou o dedo ao homem que foi escolhido para o papel e quis responsabilizá-lo pelo apagamento das vivências e narrativas trans. A forma poderosa como esta batalha foi ganha, ainda que falte travar uma guerra, foi alvo de intenso escrutínio público. Muitos queixaram-se que foi um método “violento”, apesar de concordarem com a premissa de base: se não é com a história de uma mulher trans que o corpo e a alma trans têm visibilidade, então quando? Muitas activistas trans já tinham contactado a companhia de teatro exigindo respostas e mudança. Sugeriram boicotes e nada aconteceu. A mudança só veio depois, com a acção “violenta” da Keyla, carregada de tensão, antagonismo e conflito daquele que provoca desconforto. Mas esta “violência” é só um sintoma, uma resposta à violência que é vivida. De um lugar onde a outra realidade mundana nada se assemelha porque se vive distante. A “violência” de ver uma peça de teatro abruptamente terminada é que parece mais importante para os proponentes desta discussão. Quando os actores cisgénero recebem papéis trans, eles encaram-nos como o desafio da sua carreira. Jared Leto ganhou um Óscar ao fazê-lo. Mas esta não é uma condição de desafio que possa ser apropriada pela indústria criativa sem uma reflexão profunda sobre o seu papel na contínua exclusão de artistas trans nos seus projectos. A condição trans não é um adereço, como activistas reclamam, para catapultar carreiras. Muitas vezes produtores optam por homens e vestem-nos de mulheres, porque as actrizes trans não reflectem os seus próprios estereótipos ou ideias pré-concebidas. A máquina de exclusão está oleada e em funcionamento, não é a responsabilidade de uma pessoa transfóbica. Desde os produtores, ao encenador e até ao actor que aceita fazer o papel, todos contribuem para isso. Recentemente Hale Berry e a Scarlet Johanson recusaram papeis de homens trans porque foram confrontadas com a pouca representatividade trans em diálogo com as pessoas que mais são afectadas por estas escolhas. Mas a minha voz não é a que mais interessa neste debate, ouçam as pessoas trans que tentam consciencializar sobre as muitas formas de como estão a ser invisibilizadas. Elas lutam de muitas outras formas também, fazem-no na discussão de ideias, na academia, nas manifestações na rua e no seu dia-a-dia. O confronto ou a violência é tão parte desta luta como a diplomacia. Neste caso, a suposta “violência” foi o resultado de uma não-escuta. Do outro lado onde nos situamos, pede-se reflexão. Se vos chocou, confrontem o desconforto e interroguem-se de onde vem. Reflictam sobre as oportunidades perdidas de fazer de forma diferente, e de dar espaço a outras pessoas ou realidades. Nós não vemos pessoas trans em posições de destaque, protagonizando séries, a serem pivots de telejornal ou a contracenarem em peças de teatro. Com os níveis de saúde mental desta minoria sexual absolutamente desastrosos (e vergonhosos nos olhos de qualquer profissional de saúde), as pessoas trans precisam de saber que o mundo deve ter – e tem – espaço para todas.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCongelar óvulos e o direito à fertilidade Em Dezembro 2022 a Jennifer Aniston, numa entrevista muito honesta, falou sobre a dificuldade em engravidar. O insucesso de todo o processo pô-la a pensar nos ‘ses’ da sua vida. Um desses ‘ses’ teria envolvido congelar os óvulos quando era mais nova. Um conselho que ela tentou passar à audiência da sua entrevista. “Façam o favor a si próprias: congelem os vossos óvulos.” Nas redes sociais começou-se a discutir isso. Imediatamente fui falar com uma amiga que estava a passar por um processo de inseminação artificial. Ela disse-me que aconselharia também a todas as mulheres que conhece. O procedimento exige a estimulação de produção de ovócitos, a sua remoção e o congelamento. O processo pode ser doloroso e ter alguns efeitos secundários, mas garante óvulos saudáveis numa fase posterior de vida. Há uns 10 anos só um grupo muito estrito de mulheres é que fazia este procedimento: mulheres a lutar contra doença oncológica. Mas os números são claros de outras motivações que se insurgem. Chama-se congelamento de óvulos social para aquelas pessoas que decidem fazê-lo por razões sociais. Que razões sociais são essas? As mulheres fazem-no porque prevêem que pode ser importante nos seus planos de vida. A mulher nasce com uma quantidade definida de óvulos. Inicialmente, de forma gradual, a reserva começa a reduzir. Mas a partir dos 35 anos há uma aceleração deste processo. Assim, bem informadas, as mulheres decidem congelar óvulos nos 20, ou no início dos 30. Para a mulher dita moderna esta é uma forma de planeamento e controlo da maternidade. A mulher moderna sabe que a estabilidade financeira e emocional só chegará depois dos 35. Também sabe que encontrar uma parceira ou parceiro ideal pode ser um processo lento e moroso. Mas a mulher moderna precisa de ter muito dinheiro para ser assim organizada – uns quantos milhares para assegurar a apólice de seguro da maternidade. Há custos associados à remoção, congelamento e armazenamento. Dado o seu caracter social, é um procedimento não comparticipado. Apesar de ser visto como uma ferramenta de empoderamento das mulheres, para investir nas suas carreiras e conseguir ser mães em diferentes fases de vida, o empoderamento só é acessível a algumas. Para além do mais, há quem discuta que o seguro não é tão seguro assim. O congelamento dos óvulos é uma oportunidade, não é um embrião. Por mais que as celebridades e as amigas aconselhem, há que pensar no grande esquema das coisas. Uma narrativa desta natureza assume que a fertilidade é um problema individual a necessitar de soluções individuais, que só um grupo da população consegue garantir. As condições de trabalho, de estabilidade profissional e financeira que possa garantir o bem-estar de uma criança, vem cada vez mais tarde, e isso não é da responsabilidade de cada uma. Este mecanismo de empoderamento precisa também de refletir sobre os ambientes propícios à fertilidade e à maternidade. Não vos custará muito verificar as fracas políticas de apoio à natalidade que não têm a consideração o tempo ou a exigência financeira que é ter uma criança. Se a decisão de ter uma criança é adiada, muitas vezes não é por capricho, é por necessidade. O direito à fertilidade precisa de ser amplamente considerado nas suas formas multi-facetadas. A possibilidade de escolha de uma maternidade tardia é, claro, maravilhosa. É possível manter essa possibilidade em aberto para quem tenha os recursos para fazê-lo. Mas não deixa de ser uma estratégia que é individual e elitista. O reconhecimento que este é um procedimento de empoderamento, também precisa de vir acompanhado de uma consciência dos contextos em que esse direito à fertilidade é continuamente retirado e descurado.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCliteracia Sophia Wallace, uma artista visual norte americana, desenvolveu a palavra cliteracia para definir o estado de se ser cliterado, ou seja, de saber identificar o clitóris e entender o seu papel na sexualidade feminina. Choquem-se: a anatomia do clitóris só foi descoberta em 1998. Desenvolveu-se a tecnologia para ir à lua, para realização de fertilização in vitro e clonou-se uma ovelha antes de se estudar a anatomia do clitóris. A etimologia do clitóris vem do grego, kleitoris, que significa pequeno monte. O que Helen O’Connell descobriu ao dissecar corpos e ao realizar ecografias a mulheres vivas nos anos 90 é que o clitóris é bem mais complexo do que um “pequeno monte”. O clitóris é como um icebergue, tem toda uma estrutura interior que está associada a vários tecidos pélvicos. Tem uma forma que pode fazer lembrar um pinguim ou uma nave espacial com braços que podem ter até 9 centímetros. Com 8.000 terminações nervosas, é o único órgão dedicado ao prazer e tem sido sistematicamente ignorado e desrespeitado pelas sociedades contemporâneas. Em certas zonas do planeta é objecto de mutilação física, em outros lugares, é objecto de mutilação psicológica e linguística. Foi Harriet Lerner, num artigo na Chicago Tribune em 2003, que alertou para essa dinâmica. A nossa linguagem tenta apagar a complexidade dos genitais de quem tem útero ao focar-se na vagina – o canal interior – ao invés de descrever um complexo genital que tem várias partes e funções. Vagina, significa “suporte de uma espada” e quão frequentemente ouvem esta como a única denominação do órgão sexual? Vulva é a descrição mais exacta para a genitália exterior, de onde faz parte o clitóris e os lábios. O clitóris nem faz parte dos livros de anatomia nem de aulas de educação sexual, pelo menos por enquanto. Cliteracia também implica saber que não é da vagina que vem o prazer. Aliás, se a vagina tivesse terminações nervosas o parto seria incrivelmente mais doloroso. A razão pela qual algumas mulheres – as estatísticas apontam para 18 por cento delas – conseguem ter um orgasmo com penetração é porque o clitóris estende-se por várias zonas. A investigadora Helen O’Connell propõe o termo “complexo clitoriano”, que ainda não pegou na linguagem comum. Uma proposta que melhor nos explica como é que a estimulação vaginal consegue reverberar nesse órgão: desvendando assim o mistério do ponto G. Cliteracia é entender que a ciência já sabia sobre o pénis, e nunca se preocupou com o clitóris – e entender as implicações disso. A cliteracia, de acordo com a artista e muitos educadores sexuais, é a chave principal para uma sociedade mais equitativa. O foco no prazer feminino é essencial para desfazer uma desigualdade milenar de herança cristã, essa de génese em forma de serpente que condenou Eva ao pecado. Cliteracia também é saber que o clitóris não é um simples botão de on-off que se esfrega para obter resultados orgásmicos. O clitóris é um símbolo de emancipação e empoderamento, facilmente reconhecível. A forma do clitóris é partilhada com orgulho e até é tatuada, usada em brincos, colares, usada como bibelot e colocada em altares para veneração. Cliteracia é não deixar que a vagina seja a única parte da anatomia conhecida – o tal suporte de espada – tanto na ciência, como no senso comum.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA naturalidade do sexo Sexus em Latim refere-se ao “estado de ser macho ou fêmea”. Estas categorias são, supostamente, características observáveis de um organismo ou de um grupo. Esta diferenciação não reflecte qualquer qualidade subjectiva relacionada com a identidade de género, mas uma descrição fenotípica que tem o seu quê de complexidade. As hipóteses anatómicas disponíveis a quem vem a este mundo sob a forma humana são bastante limitadas comparadas com a diversidade e fluidez com que se constitui a identidade de uma pessoa. Não obstante, discute-se o espectro intersexo para dar conta que nem sempre, fenotipicamente falando, o binarismo do sexo se aplica. Nos Estados Unidos, um bebé em cada 100, nasce com uma anatomia sexual que não é tipicamente masculina ou feminina. E isso assusta a comunidade médica ao ponto de se apressarem a alterar a sua genitália ou forçarem tratamentos hormonais para encaixarem numa ou noutra. Para um corpo que não “encaixa” na categorização clássica, o corpo é alterado, evitado a ou ignorado em detrimento de uma suposta forma “natural” – quando claramente não o é. Nestas coisas do sexo é comum analisar o mundo animal como um barómetro do que é natural. No mundo animal damos conta do sexo – do macho, da fêmea e de outras formas intermédias – e da capacidade maravilhosa de mudar o sexo, como por exemplo, nos anfíbios. Também damos conta da diversidade estonteante na escolha de parceiros sexuais, nos rituais de corte e acasalamento, nos papeis e funções sociais, nas formas comportamentais de como se relacionam com os pares da sua espécie. Nem a forma biológica ou a função reprodutiva, exclusivamente, determinam a sexualidade de um organismo de forma rígida. Até poderemos refletir se o movimento LGBTQIA+ não será uma amostra pálida da riqueza e diversidade que podemos encontrar no mundo vivo com que partilhamos este planeta. De forma crescente, reconhecemos as muitas formas de identidade, amor, sexo e de relacionamentos que se materializam naturalmente entre as pessoas. Também a vida animal se espraia numa panóplia de configurações e tipologias sexuais que são complexas – e muito naturais. Porque é que ainda existem tantos que moralmente implicam com a identidade de género, com a escolha de parceiros sexuais, com a diversidade de práticas e comportamentos sexuais? Porque é que se torna tão ameaçador reconhecer que existem diferenças agigantadas entre a forma com que uns e outros constroem a sua identidade e vivem a sexualidade? Como é que as pessoas ainda se defendem com crenças do que se considera natural ou não? Claramente que o que é natural só é passível de ser descoberto em pleno sentido de liberdade, esse que nos é negado em detrimento de categorias, expectativas e práticas que nos formatam. Serão estas questões realmente relevantes para dividir, afastar e polarizar as pessoas? Para quando a naturalidade do amor e da compreensão para as pessoas se expressarem exactamente como são? Para quando a naturalidade do sexo?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesTanto que queremos: um ensaio sobre o desejo O desejo é um fenómeno complexo, uma lição à nossa paciência. A experiência mostra-nos que a vida toma o seu rumo com vontade própria, sem grande consideração dos nossos desejos imediatos. Queremos ser alguém que não somos, vivemos num mundo onde não nos encaixamos. Nas sociedades liberais incutem-nos esta sensação de empoderamento. Podemos ser o que bem nos apetece. Só que queremos mais sem grande consciência que os desejos implicam a cuidadosa reflexão sobre o que perdemos: sobre o que nunca será. Não basta querer, é preciso aceitar que não se tem. Uma jovem do Curdistão iraniano foi brutalmente morta pela polícia da moralidade no Irão, porque o seu hijab estava mal posto. Tanto vos queremos que vos perdemos. Uma coisa simples como o cabelo, que mais sabe a um detalhe ridículo, pouco importante. As agências noticiosas também dão conta da brutalidade policial contra os protestantes e da consternação pública que esta morte suscitou. Deste confronto veio mais morte, não veio a transformação social ou política. Nestes anos complicados, de configurações geopolíticas dolorosas e difíceis, faz-se o luto pelo mundo que não existe e que julgámos existir. Fazer o luto implica acalmar a nossa angústia. Permite respirar antes do confronto, evita uma luta sem fôlego absolutamente nenhum e tenta dar alento à sensação de desespero. A eleição de uma mulher primeira-ministra em Itália soube a derrota também. Tanto queremos líderes justos e inclusivos que não os temos. Como é que se aceita uma possível perda do direito ao aborto, como é que se discute o retrocesso dos direitos lgbtqi+, como é que se legitima um discurso que não abraça os direitos de todos, mas só de alguns? Quando nos julgámos protegidos de uma ressurreição do fascismo, quando achámos que concordávamos – todos – em não querer acordar os maiores horrores fascistas da história. Afinal não era bem assim. Quando se deseja o que não se tem, a revolta ou o desconforto deviam ser suficientes. Poucos nos preparam para o sentido de impotência de nunca chegar àquilo que desejamos, nem de encontrar outros que queiram desejar contigo. No sexo não se chega ao orgasmo porque se deseja, mas porque acontece. Encara-se a configuração completa do acto e acredita-se no conforto percorrendo um caminho, sem expectativas. Quem já teve problemas em adormecer também o sabe. Querer dormir não basta para adormecer, só atrapalha. O desejo é uma dança complexa entre paciência, compaixão, guerrilha e vontade. Não basta querer, é preciso aceitar este momento particular da história individual e colectiva. Aceitar que não estamos cá para o orgasmo perfeito, nem para o mundo perfeito. Estamos cá para os desencontros constantes, e para as incessantes tentativas de os resolver. Estamos cá também para o encaixe, para o crescente sentido das coisas, e aceitar que pouco ou nada podemos controlar. O desejo pressupõe empoderamento e acção, mas também implica encontrar conforto nos lugares mais inóspitos, e nas situações mais absurdas, como as que se vivem neste momento. Tanto queremos e tanto aprendemos a perder, mas o desejo é mesmo assim.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA vergonha, o sexo e o riso Quem já tentou falar com jovens sobre sexo certamente se deparou com os risos tontos ou as bochechas rosadas de vergonha. Gostaria que fosse um fenómeno exclusivo dos jovens de hormonas aos saltos. A verdade é que o riso inusitadamente se infiltra nos temas que julgamos mais vergonhosos. Para os jovens, e para muitos adultos, o sexo continua a ser isso: um tema que envergonha. Para alguns teóricos, como o Goffman ou o Billig, a vergonha é útil para a organização social de uma forma geral. A vergonha que, inevitavelmente se associa ao gozo, serve de barómetro do que é aceitável ou não aceitável em contextos sociais. Tudo o que é corpóreo costuma cair nessa categoria: dar puns ou ter ranho no nariz. Da vergonha existe uma relação íntima com o riso, que não é o mesmo que o riso prazeroso que nos oferece todo um conjunto de boas hormonas e bem-estar. Frequentemente a vergonha é gerida pelo riso unilateral, por pessoas com menos empatia, com um grande à vontade para apontar o ridículo. Aí cria-se uma espiral de culpa que a vergonha alegremente atravessa. A ejaculação depois de 3 segundos de penetração pelo rapazinho de 14 anos durante a sua primeira relação sexual pode ser acompanhada do ridículo – do riso desnecessário do parceiro ou parceira. Um exemplo clássico onde a empatia teria sido muito mais produtiva. Mas não é por isso que desistimos do riso por completo. O riso pode ter outras funções bem mais interessantes, um riso que empodera em vez de castrar. Aquele que se faz em conjunto, de uma dinâmica capaz de carregar as nossas vergonhas por outros meios e caminhos. Transformar o condenável com a leveza de uma gargalhada compreendida é capaz de mover delicadamente a vergonha. Aquela gargalhada que não traumatizaria o rapazinho de 14 anos com pressão para a performance. Dessa forma o sexo pode ser tonto ou cómico. O riso como canal de descarga. As pessoas ficam nuas, as peles baloiçam, as pregas criam-se em locais estranhos, os pêlos que ninguém pediu que nascessem, os ruídos abdominais, puns vaginais e os gritos de orgasmo originais. A vergonha é inevitável. Aprendemos com os outros que há limites para aquilo que podemos mostrar. Mas também é com os outros que podemos re-alinhar esses limites, principalmente quando a ligação é feita com sinceridade. Um sexo cheio de tabus e de ensinamentos judaico-cristãos só vê transformação quando há à-vontade para nos rirmos à gargalhada com o que nos limitou no passado. Confiem no vosso acesso de riso porque caíram da cama ao tentar aquela posição difícil. Podem rir-se quando o sexo não é perfeito. Rir do desconforto é o antídoto – mas só e quando existe uma ligação. Atirar com o cliché da “ligação” é vago, reconheço. É demasiado inespecífico para descrever o que acontece entre duas pessoas. Mas nada tem que ver com um estado enamorado, porque o sexo nem sempre precisa de amor. Precisa, sim, da consciência da presença de dois (ou mais) seres, e da sua humanidade. Só com essa conjuntura relacional é que o sexo e o riso podem fazer algum sentido.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesAborto, outra vez Aconteceu o que muitos temiam. A terra dos livres tornou-se menos livre com a decisão do Supremo Tribunal ao reverter o direito constitucional do aborto. As implicações são muitas, e não são boas. Os ingénuos acreditam que é uma luta ganha pelos direitos dos bebés por nascer. A hipocrisia e incongruência é revoltante. Agora, muitas mulheres americanas não poderão tomar uma decisão consciente sobre os seus corpos. Ganham direitos as suas crias por nascer, que nem sempre têm direitos depois. Os mesmos que proclamam a procriação como sagrada são os mesmos que não quiseram garantir o acesso a fórmula para bebés quando houve uma falta grave no país. São os mesmos que se agarram ao liberalismo para deixar o apoio à natalidade à mercê da logica dos mercados. (In)congruências. Mas são todos pelos bebés e pela parentalidade. São os mesmos que assumem o conceito de família com base em repertórios performativos, sem reflexão, muito menos intimidade. Aqueles que se agarram ao conceito de mulher e homem e que os estancam na visão dicotómica do bem. A complexidade da vida humana não é contemplada uma única vez por estes decisores e os seus apoiantes, como se não fosse mais abrangente do que a existência de um embrião. Ignora-se que uma gravidez implica a vida das pessoas. Ignora-se que tirar o controlo das mulheres sobre os seus úteros é um atentado humano muito mais grave do que supostamente “devolver o direito aos bebés por nascer”. Ignora-se a violência sistemática a que as mulheres são sujeitas graças ao patriarcado que se infiltra no dia-a-dia e nas políticas. Ignora-se o trabalho de dissociar a representação da mulher da sua objectificação corpórea, sem a ver para além da sua função para copular, parir e tomar conta de filhos. Uma gravidez indesejada pode acontecer a qualquer uma, e ninguém acredite que o aborto é uma decisão simples e descomplicada. Mas ter acesso ao aborto seguro permite contemplar outras alternativas para além da maternidade naquele momento e naquelas circunstâncias. Vai abortar quem já tem filhos, quem está casada, quem ainda é adolescente, a trabalhadora do sexo, a trabalhadora do banco, a mulher ou a menina que foi violada. Uma escolha que a investigação mostra – e aliada com uma boa educação sexual – reduzir o número de gravidezes indesejadas e promover maior bem-estar em geral. O aborto é uma intervenção médica simples e a OMS defende o seu acesso seguro em qualquer lugar do mundo. Os abortos vão existir sempre, e quanto menos existirem condições para um aborto seguro, mais complicações virão daí. Desde trauma físico e psicológico à morte. Confesso que ando tão desiludida com o mundo que me foi difícil reagir ao que aconteceu recentemente nos Estados Unidos da América. Prefiro evitar ou não ouvir, ficar no conforto que há outros locais onde ainda está tudo bem. Sonhar que eles existem. Sem deixar de estar com medo que a ficção da “Handmaid’s Tale” se torne numa profecia. A vontade de Deus (ou da natureza) é estrategicamente mobilizada para defender umas parvoíces, e não outras. Resta desconstruir e revelar a violência que ainda existe sobre as mulheres. É o momento para acreditar na força popular mais do que nunca e não desvalorizar – e até acompanhar – as pessoas que gritam nas ruas.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO orgulho é a solução Nas primeiras horas de 28 de Junho de 1969 em Greenwich Village, na cidade de Nova Iorque, a polícia fez uma incursão ao bar gay Stonewall Inn. A polícia, ao contrário de outras vezes, encontrou resistência. Esta durou vários dias. O bairro mais gay da cidade de Nova Iorque estava farto que os tentassem invisibilizar. Os seus moradores não aceitavam as incursões de uma suposta polícia ‘da moralidade’ ou que lhes dissessem que não podiam ser como se sentiam ser. A série de eventos desse dia ajudou a impulsionar a luta dos direitos LGBTQI+ como a conhecemos hoje. No primeiro aniversário dos eventos de Stonewall em 1970 protagonizou-se uma marcha em várias cidades dos Estados Unidos, que em 1972 foi transportada para Londres. Anos mais tarde estenderam esta causa a todo o mês de Junho. Junho dedica-se ao tema do orgulho, dos direitos e das constantes lutas da comunidade LGBTQI+. É celebrado em tantos pontos do globo que nem eu, nem a internet, conseguimos precisar quantos. Tive a sorte de estar em Nova Iorque neste mês tão especial para a cidade – ainda que desolada por não ficar para a marcha. As conquistas eram visíveis. Por entre algumas casas de banho que não tinham uma categorização binária de género para maior inclusão, e por entre tantas pessoas que se sentiam verdadeiramente à vontade de serem elas próprias, vi bandeiras de orgulho LGBTQI+ por todo lado, na loja de instrumentos musicais e na loja de donuts. Também as vi pespegadas nas fachadas de igrejas de várias congregações, que tanto me surpreendeu. Poucos dias de observação fizeram-me crer que a aceitação, ali, podia ser sustentada e partilhada. Não me senti testemunha de ‘tolerância’ como muitos acreditam ser a única solução. Pareceu-me testemunhar a solidariedade que só pode vir do reconhecimento que a diversidade sexual e de género são parte integral da experiência humana. Neste caso, e não esquecendo esta particularidade, reconhecendo também que faz parte da história e experiência daquela cidade. Claro que também vi muitas empresas a apoiar a causa, desde a Google, à Starbucks ou a Levi’s. A bandeira do orgulho estava por todo o lado ainda que as políticas empresariais de certas marcas não reflictam os valores ou as preocupações do mês. Se tive a oportunidade de ver igrejas católicas a apoiar a causa, também pude testemunhar o mês de orgulho como parte de um repertório mercantil, circunscrito no tempo. Afinal, onde está a representatividade no resto do ano, nas empresas e nos seus anúncios? Há mais de 50 anos que o orgulho continua a importar. Estamos muito longe de conseguir criar sociedades que consigam resolver a violência sistémica e sucessiva pela qual a comunidade LGBTQI+ ainda passa. Uma em cada cinco pessoas transgénero já se viu sem abrigo nos Estados Unidos. A taxa de suicídio na comunidade LGBTQI+ é três vezes maior à dos heterossexuais. São muitos os dados que confirmam que é preciso marchar nas ruas e revindicar o direito de se estar alinhado com a natureza, desejo e fantasias de cada um. Mas ainda assim, em Nova Iorque há liberdade. Pelos corpos e vozes dos dissidentes que que se revoltaram contra a opressão numa madrugada de Junho de 1969, e de tudo o que veio a seguir, ganhou-se espaço e visibilidade. A história revela-se bem mais complexa e longa, mas na sua génese e sustento está o orgulho, que desafiando tudo e todos, consegue mudar pequenos mundos.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA varíola dos macacos não precisa de promiscuidade A promiscuidade ainda é falada e discutida como se fosse um facto quantificável e verificável. Supostamente: existem os promíscuos e os não promíscuos, dividindo o mundo entre aqueles que praticam muito o sexo e os outros que “respeitosamente” praticam menos. Se o conceito da promiscuidade teve o seu propósito histórico e social, muito por graças da tradição judaico-cristã, agora já não nos devia servir. O seu ressurgimento é infelizmente mais evidente quando se discutem situações médicas, como a da varíola dos macacos na Europa e nos Estados Unidos. Os métodos para a diminuição do contágio deste monkeypox, de acordo com o director de Doenças Infecciosas do Hospital de Coimbra, são simples. Sugere-se evitar o contacto com pessoas com “lesões cutâneas e com grau de promiscuidade sexual”, como se a promiscuidade fosse um indicador de diagnóstico. O dicionário define a promiscuidade como a característica do que é promíscuo. O promíscuo é aquele quem tem vários parceiros sexuais, associado a uma suposta degradação moral. Quantos parceiros, exactamente? Três? Quatro? Sessenta? Ao longo da vida? Numa semana? Ao mesmo tempo durante uma orgia? Não é claro. Só para verem o quão arbitrária a ideia de promiscuidade pode ser. A associação entre a varíola e a promiscuidade foi uma solução fácil para um tema ainda complexo e desconhecido. Tal como aconteceu no início do vírus de imunodeficiência humana. Como a doença tem sido identificada em homens homossexuais e bissexuais as recomendações têm ido pela moralização do sexo – e de tão “problemático” que ele pode ser. O que torna a situação ainda mais caricata é que a varíola dos macacos não é uma doença sexualmente transmissível – pelo que se sabe do comportamento do vírus. O contágio é feito pelo contacto directo com pessoas com lesões cutâneas. O contágio pode ser por interacção social, que é fabulosamente mundano. O contágio também pode ser feito pela partilha de roupa. O sexo, claro, proporciona mais toque comparado com outra situação qualquer. O sexo tem sempre risco, nem que seja o risco de partir o cóccix ou partilhar uma gripe. Mas no que toca a doenças sexualmente transmissíveis, não é a quantidade de parceiros, ou a “promiscuidade”, que prevê a incidência. Ter relações sexuais de risco é que contribui para maior incidência na transmissão, i.e., não utilizar métodos de protecção adequados, como preservativos masculinos e femininos. Foi com alguma surpresa que encontrei uma página no Wikipédia dedicada aos efeitos nefastos da promiscuidade. Efeitos físicos e mentais estão lá descritos para quem tem “muitos” parceiros – que vai contra toda a investigação já feita. Foi com menos surpresa que percebi que a página só existia em língua inglesa. A sexualidade ainda carece de um vocabulário inclusivo e de não-julgamento, e carece de espaços onde se discute a sexualidade de forma aberta, correcta e respeitadora. Esta necessidade torna-se ainda mais urgente quando se discutem doenças sexualmente transmissíveis, ou outras onde o sexo pode aumentar a probabilidade de contágio. Parece que a sociedade procura todas as oportunidades para demonizar o sexo. Só as guardiãs do sexo positivo é que se preocupam em desconstruir estas crenças: a promiscuidade não existe, e não existindo, não é a promiscuidade que faz a varíola dos macacos prosperar.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA maternidade e os vários tons de aborto Passado um fim de semana a celebrar as mães na maior parte do mundo, também veio a avalanche de medo trazido por um rascunho do supremo tribunal americano insinuando diminuir os direitos das mulheres no país. Claro que qualquer questão americana é mais instigadora de debate e consternação do que em qualquer outro local do mundo – reconheço a tendência. Mas retirar o direito constitucional ao aborto não deixa de ser um retrocesso atroz. Um retrocesso que muitos receiam que esteja a abrir precedentes para reverterem outras leis que se prestam à dignidade e bem-estar humanos. Ademais, Portugal também não está livre de certas ideias absurdas. Ainda esta semana se revelou uma proposta para penalizar equipas médicas que tenham utentes que interrompam voluntariamente a gravidez, ou que contraiam uma doença sexualmente transmissível. Este é um claro incentivo para que as equipas médicas não ofereçam apoio a quem realmente precisa. Ainda para mais, este é um contexto onde utentes já reclamaram a forma como os profissionais de saúde oferecem comentários de responsabilização e culpabilização no que toca a estes temas – que são absolutamente desnecessários. Tantas mulheres ao longo do tempo nos partilharam as histórias dos seus abortos ilegais: as celebridades, como agora publicamente relatam, bem como as mulheres da nossa família. Elas reiteram que o aborto é tão natural como o tempo. Sempre existiu, o reconhecimento da escolha das mulheres em relação ao seu corpo é que não. Mesmo que o aborto esteja constitucionalmente contemplado, como é o caso de certos países no mundo, o tema continua a ser fracturante, cheio de polémica e tensão. No cerne da questão está a procura por controlar os úteros das mulheres. Ora porque acham que a maternidade é uma fórmula sagrada – sem nunca reflectir sobre as sérias carências de boas condições para garanti-la por muitas mulheres no mundo. Ora porque querem negar o direito à maternidade por um bem maior, como se assistiu na China. Refiro-me especialmente aos abortos forçados às centenas de milhares de mulheres desde 1980. Uma filha ou filho que talvez fossem desejados, mas que tiveram que desaparecer sob o pretexto da política do filho único. São muitos os espectros sócio-políticos que usam o aborto como ferramenta para controlar as mulheres. Claro que para descomplicar a maternidade e para acomodar a liberdade individual, é preciso descomplicar a sexualidade também. O que impede um olhar reflexivo sobre o sexo e a maternidade são uns tais valores morais, que, honestamente, já nem percebo de onde vêm – certamente que não virão de direitos humanos. Por mais natural que a fisiologia da maternidade seja, um útero que se expande, um ser que cresce, o parto ou o aleitamento, as condições de vida das mulheres para a receber não são ‘naturais’ nem ‘óbvias’. Em casos mais extremos o sexo e a maternidade também fazem parte de relações abusivas, precoces, ou de violência. São tantas as situações que não vale a pena descrevê-las ao pormenor. Não há um perfil típico para quem queira interromper uma gravidez ou avançar com ela. O poder da decisão da maternidade não pode ser contaminado pela opinião e regulação dos outros – como se as mulheres não fossem capazes de gerir as suas próprias vidas.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCelulite e o ódio Quando coloco ‘celulite’ num motor de busca académico, aparecem-me centenas de artigos sobre causas e tratamentos. Não confundir com o termo cellulitis, em inglês, ou celulite infecciosa, em português. Essa é uma infecção bacteriana nas camadas interiores da pele, nomeadamente na camada de gordura subcutânea, provocando vermelhão. A celulite a que me refiro é a comum, a tal que se mostra na pele ‘casca de laranja’. Estes resultados no motor de busca sugerem-me que há imenso dinheiro investido no tratamento de um problema que, de facto, não existe. Leram bem, a celulite é um problema que não existe. A celulite é gordura que as mulheres pós-adolescência – entre 80 e 95por cento das mulheres – vão acumular nas coxas, glúteos e barriga. Um número demasiado grande para ser considerado anormal, ou exigir tamanha atenção dos investigadores. Mas há um irresistível factor que os motiva: é uma área de investigação rentável. Mesmo que a celulite não seja um problema de saúde, para a maioria mulheres é um problema de natureza estética. Há ainda investigação que quer fazer-nos convencer que o problema também é emocional e de qualidade de vida. As mulheres com celulite têm mais vergonha do seu corpo e isso vai afectá-las, até no sexo e em momentos de intimidade. Daí a urgência em procurar uma ‘cura’. O que a investigação talvez não seja tão clara a descrever é como a celulite se tornou num problema e como o lucro que tem gerado tem contribuído para perpetuá-lo. A única diferença entre esta gordura e outras é que a dita celulite está em regiões com estruturas fibrosas que a esmagam e moldam de determinada forma, criando aquilo que imaginamos ser bolhas de gordura debaixo da pele – que ao contrário do que muitos possam querer fazer parecer, não são gorduras diferentes, ou cheias de toxinas, ou sei lá eu. Está sim, a ser ‘moldada’ de forma diferente. Ainda assim, há dezenas de propostas para um mundo celulite-free. Estratégias que até as modelos da Victoria Secret, dizem ter que recorrer, visto que a celulite não é um problema exclusivo das obesas, gordas ou cheiinhas. A celulite é tão normal que até os bebés e as magrelas mais desejadas do mundo a têm. A celulite é tão normal que na verdade não tem tratamento. Criou-se um inimigo que nunca será derrotado. O ódio é por uma coisa que é tão nossa que só pode provocar dissociação e angústia. A vilificação da celulite tem uma história de mercantilização do desespero do corpo normal por detrás. Já que foi criada, a minha esperança é que possa ser destruída ou resignificada. Isso exigiria passos individuais e colectivos de reflexão. Vivemos em função de quê? Do bem-estar? Ou dos lucros? Para mim a resposta é extremamente fácil. Para além do mais, pensa-se que a celulite tem uma componente genética forte. Se a tua avó e mãe tiveram é provável que tenhas também. Os cremes anti-celulite até podem ajudar no efeito ‘casca de laranja’, ajudando que a pele fique mais uniforme, mas não elimina a gordura em si. Essa é uma guerra já perdida, que, com falsos moralismos e optimismo, ainda se acha que vale a pena travar. Em vez de uma entrega ao ódio pela celulite, é radicalmente libertador aceitá-la. É quase revolucionário mostrá-la na praia e com calções. Também é revolucionário mostrá-la em redes sociais, que tendem a apagar publicações por acharem irem contra as regras da comunidade e do bom senso. Encarar a celulite com normalidade é o tabu que precisa de ver a luz do dia. Porque a celulite não pode ser um problema.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesRomance, a obsessão Bridgerton e as mãos Eu nunca tinha realmente mergulhado no mundo dos romances do séc. XIX pelas mãos da Jane Austen, apesar da insistência de uma amiga minha em recomendá-los. Reconheço que ela sempre percebeu melhor do que eu o poder maravilhoso do romance silencioso e do seu lento desenvolvimento. Uma verdadeira fórmula para pôr qualquer coração a palpitar. Eu estou na onda do momento, absolutamente abismada com a forma tão delicada e colorida de mostrar tesão e tensão sexual no retrato da altura. Isto tudo porque uma versão modernizada destes romances – uma coleção de livros deste século a puxar o imaginário do outro – tem chegado a milhares de casas numa adaptação televisiva, diga-se, muito erotizada. Também não podia ficar mais consternada com os clichés românticos que evocam os valores patriarcais, por mais que a autora das obras se considere uma feminista. Existem umas pinceladas de pensamento crítico em alguns diálogos, mas pouco mais. A perspectiva feminina deve ser considerada como complexa e interseccional que é incapaz (e não pode) ser retratada num romance que acha que o casamento e o nascimento dos filhos são os elementos necessários para o final feliz. A característica ‘feminina’ da série reflete-se no espaço que dá ao escalar da tensão sexual, em vez de se focar no sexo puro e duro. Não quero destruir a série a ninguém, por isso não me vou alongar com detalhes do enredo. Mas a obsessão por um romance histórico que nada tem a ver com os nossos tempos parecia um enigma que precisava de desvendar. Sem grandes certezas, mas com alguma reflexão, acho que segredo está… nas mãos. Literalmente, as mãos tornam-se protagonistas com direito a múltiplos enquadramentos. Uma fórmula extensamente reproduzida, principalmente, na cinematografia que retrata essa época. A paixão vivia do toque das mãos nuas, quando era de bom senso usarem-se luvas. Este era o único contacto para todos os que viviam um amor impossível. O erotismo das mãos pode muito bem ser contemporâneo, seja porque crescemos com estas referências de romantismo, ou pura e simplesmente porque faz sentido. Existem imensos nervos nas mãos e nas pontas dos dedos, por isso não vejo porque não seria uma zona erógena como qualquer outra. Se há lição a retirar do erotismo da série e do poder erótico das mãos é que o erotismo pode ter muitas expressões e essa diversidade não está a ser devidamente trabalhada e retratada na cultura popular como um todo. O erotismo sensual, de antecipação ou kinky tendem a ser apagados pelo erotismo explícito. Quanto mais se criar espaço para explorar estas múltiplas valências em série televisivas mainstream, e em livros populares de leitura de bolso, mais espaço se cria para as alternativas. Só assim, em verdadeira diversidade, é que conteúdos poderão ressoar a todos os gostos e, idealmente, a todas as expressões de género e a todas as orientações sexuais.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO sexo e a guerra O sexo e a guerra não estão dissociados. Se há coisa que aprendemos com a vida é que tudo está relacionado com tudo, e qualquer tentativa de colocar os fenómenos humanos em caixinhas só simplifica o que não devia – nem precisa – de ser simplificado. A tese que eu e muitos outros partilham é que o sexo, o género e a guerra estão intimamente ligados. Começa logo com o simbolismo milenar ocidental: Marte é o deus romano da guerra e tradicionalmente está associado ao género masculino. Vénus está no polo oposto, associado à mulher, ao amor e à paz. Esta é uma dicotomia estereotipada que é utilizada ainda nos dias de hoje. A guerra como facto só a torna mais proeminente. A lei marcial ucraniana neste momento proíbe os homens entre os 18 e os 60 anos de saírem do país. Espera-se que eles se prepararem para o combate: como se os homens civis estivessem preparados para pegar numa arma só porque têm um pénis. A associação entre o sexo e a guerra não fica por aqui. A guerra produz o género ao mesmo tempo que o género produz a guerra. É um círculo vicioso em que o género é mobilizado de forma destrutiva, e onde o sexo é usado como uma arma de guerra, um acto de violência, controlo e posse. Se ainda vivemos em sociedades onde a desigualdade de género se expressa de tantas e criativas formas, não é de admirar que a guerra seja uma realidade no ano de 2022. Compreendo que pareça uma ideia rebuscada, mas peço que se foquem um pouco além do que se julga ser a guerra dos sexos. Refiro-me à representatividade feminina e ao espaço que se dá ao cuidado nas sociedades contemporâneas, ao mesmo tempo que se associa a masculinidade à violência. Os que acreditam na paz mundial, acreditam que um estado de igualdade é o preditor mais importante. Seria bom ver mais participação de mulheres nos diálogos de paz já que a investigação mostra que, quando negociado por mulheres, o acordo mantém-se estável durante mais tempo. O desejável é envolver as mulheres, ou se preferirem, a feminilidade e tudo o que representa, na resolução do problema da guerra. Isto porque a igualdade não passa em só incluir as mulheres na frente da batalha. As guerras sempre existiram por todo o lado e em todas as alturas. Há quem as considere uma inevitabilidade. Os mais idealistas, contudo, procuram e discutem soluções de paz que integram as peças do puzzle que se julgavam soltas. As preocupações com o género e o sexo parecem corriqueiras face às imagens de bombardeamentos e de rostos desesperados. Mas desenganem-se. Não se iludam em narrativas que tentam suportar a guerra e a paz de forma superficial. O problema tem sido a legitimação de certas configurações do mundo, um problema do qual o sexo e o género também sofrem. Perguntem-se: de onde vem a violência, como é que é entendida e para que serve? Como e por que é que a violência é masculina? Uma solução mais sustentável tem que passar por criticamente analisar as formas como o sexo e o género participam e contribuem para as dinâmicas da guerra e da paz. O objectivo último é o de compreender o nosso papel – como indivíduos e sociedades – a perpetuá-las no nosso quotidiano.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA desnecessária arte de fingir orgasmos Comecemos pela Meg Ryan e a sua icónica demonstração que os orgasmos podem ser fingidos, no rom-com clássico dos anos 80. Muitos filmes e sitcoms depois apropriaram-se desse facto inabalável que, tendencialmente em relações heterossexuais, as mulheres fingem os orgasmos e os homens parecem não notar. A percentagem, dizem alguns estudos mais alarmistas, é estrondosa. Cerca de 67 por cento a 74 por cento das mulheres já reportaram terem fingido um orgasmo pelo menos uma vez na vida. A pergunta que se impõe é: porquê? Ninguém anda a ensinar que se deve fingir orgasmos. Eu certamente nunca assisti que fosse uma dica a ser passada de geração em geração. É como se o orgasmo fingido fizesse parte de um repertório silencioso, uma estratégia para lidar com as coisas do sexo e da cama, sem ninguém perceber bem como, nem de onde veio. Resta-nos analisar o orgasmo fingido como o resultado de uma interacção que deve ter determinados contornos. Pode ser que o propósito seja despachar o sexo de forma inequívoca, simples, e sem palavras necessárias. Mas também pode ser que seja uma estratégia de lidar e cuidar do ego masculino que julga que a masculinidade é medida pela quantidade de orgasmos que se pode proporcionar à parceira romântica. Ora, como sabemos, o orgasmo feminino necessita de um alinhamento particular, uma profunda delicadeza e grande sentido de descoberta. Só tendo essa abertura e habilidade é que as mulheres atingem o clímax. O orgasmo feminino ainda continua envolto em muito mistério, que ajuda a perpetuar o famoso orgasm gap documentado na literatura. Esta refere-se ao fosso que existe entre a quantidade de orgasmos reportados pelos parceiros. Em encontros heterossexuais de uma noite – e especialmente nesses casos – os homens reportam muito mais orgasmos do que as mulheres. Elas tentam resolver esse problema da melhor forma que podem: fingindo o orgasmo. Isto porque as crenças patriarcais do orgasmo feminino continuam por aí, ideias pré-concebidas, algumas delas mirabolantes. Há quem ache que o orgasmo deveria ser simultâneo ou que depende de penetração profunda, unicamente. Estas e tantas outras crenças contribuem para a pouca flexibilidade e criatividade no sexo, e eventualmente, levando à sua desgraça. Podemos também culpar a pornografia, o educador sexual contemporâneo, para grande tristeza de muita gente. A recomendação é que parem imediatamente de fingir orgasmos. Para todo o sempre. Uma recomendação que se aplica aos homens que, em números muito menores, também fingem orgasmos de vez em quando. Não será por magia que desencantam parceiros que muito eficaz e habilidosamente saibam dos vossos caminhos para o orgasmo. Não vale a pena remediar com os dotes –ainda que impressionantes – de os fingir. Mais vale lidar com o desconforto, com a potencial ferida, com o desfazer de expectativas de uma noite perfeita, a tal digna de um filme pornográfico. Importa que se observe o que nasce do desconforto e que se consiga confrontar com aquilo que não aconteceu. Só assim é que se cria uma oportunidade fabulosa de se transformar, experimentar outra vez, conversar sobre expectativas. Se se achar importante ou necessário, explica-se o que se gosta e como se gosta. Pode-se até desconstruir o peso do orgasmo no sexo, e deixar que ele deixe de ser o eixo definidor de uma relação sexual satisfatória. Flexibilizar, re-criar, transformar, sentir o prazer em vez de o assistir, como se fosse um filme ou um romance – não é essa a mudança desejável? Fingir o orgasmo só atrapalha o sonho de um sexo diferente. Pensem nisso na próxima vez que sentirem que devem fingir o que quer que seja.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO corpo perfeito não existe: o mito que complica o sexo Há um determinado número de condições para que o sexo faça bem. Sexo é demasiado vago para ser esse poço de benefícios que eu tento apregoar. No caso das pessoas que foram socializadas e que se identificam como mulheres, a questão da imagem corporal é um importante factor que pode bloquear ou desbloquear todos os benefícios do sexo. Quanto mais te sentires confortável na tua pele, quanto mais te sentires confortável sem roupa, expondo a celulite, as estrias, as banhas e os outros supostos demónios que foram incutidos, mais confortável te sentirás com o sexo. Isto não sou eu a dizê-lo de forma gratuita, isto é o que a investigação confirma. Há investigação científica que sugere que é preciso resolver este problema – e obsessão – do corpo perfeito se queremos educar para uma sexualidade mais livre e prazerosa. Mas esta questão do corpo não vai lá só com livros e vídeos de auto-ajuda que de forma débil, e um tanto ou quanto incompleta, tentam ensinar as pessoas a aceitarem o seu corpo tal como é. Não quero soar pessimista, mas procurar uma solução milagrosa no trabalho individual e cognitivo – apesar de ajudar – é ingénuo. Vivemos desde sempre em sociedades que gostam de cristalizar um ideal de beleza. A indústria – e o tão poderoso marketing por detrás – suscita o consumo de produtos e serviços com um propósito absolutamente indigno: que não deveremos querer ser quem somos. Por isso é que parte deste processo de libertação tem que passar por escrutinar todas as mensagens que são transmitidas por várias vias, desde o seio familiar, até às narrativas mais gerais de como é que podemos apreciar o corpo. Por exemplo, os ginásios escolhem promover os seus serviços com uma ênfase desmesurada nas 300 maneiras de como se pode esculpir e tonificar o corpo: um objectivo que a maior parte das pessoas não irá conseguir alcançar. Desafio-vos a encontrar um espaço de exercício físico que o publicite como um importante promotor da saúde e bem-estar, em vez de focar-se no controlo do corpo. Se existem situações em que estas narrativas são óbvias e muito condenáveis – por exemplo, ao pensarmos que meninas de 8 anos já andam preocupadas com a gordura e com o seu visual – existem outras formas em que as narrativas operam de forma mais subtil. A associação entre excesso de peso e a saúde é um daqueles mitos que aos poucos começa a ser desconstruído. Não há evidência científica que o peso ou o índice de massa corporal seja um indicador de melhor ou pior saúde. O estigma que as pessoas com excesso de peso passam na sociedade e no acesso a serviços é que está associado a crescentes problemas de saúde. Aliás – e isto vai vos surpreender – a investigação parece mostrar que o défice de peso está mais associado a problemas de saúde do que o excesso. Disto ninguém fala, não é? O sexo só faz bem se nos sentirmos bem. A forma como nos relacionamos com o nosso corpo é importante para a sexualidade positiva. Não podemos, contudo, assumir que está nos nossos ombros a responsabilidade de resolver um problema que vai existir ainda por muito tempo. Os mitos e as histórias do corpo perfeito e sensual precisam de muita desconstrução ainda. No entretanto, tenta-se viver o maravilhoso mundo do sexo sabendo que o corpo perfeito nunca irá existir.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesComo escolher um vibrador? Para as que querem abraçar o novo ano a experimentar novas formas de obter prazer, os brinquedos sexuais são uma boa forma de o conseguir. Para quem já espreitou as lojas online ficará certamente assoberbada com a quantidade de artigos existentes no mercado. Há tudo para todos os gostos sexuais e todas as carteiras. Este é um pequeno guia para quem gostaria de comprar o primeiro brinquedo sexual, mas que nunca conseguiu decidir-se por qual. Por razões de natureza algo evidente, focar-me-ei nos brinquedos sexuais para as pessoas com vulva. A variedade é muita porque há apetites diversos, que reflectem as diferentes formas como nos relacionamos com o sexo, com o nosso corpo e de como ele se comporta. Focar-me-ei nos vibradores, esse feliz ícone da cultura pop, com a ressalva de que a variedade de brinquedos para pessoas com vulvas ou pénis – ou para diversão a dois – dão uma dissertação. Os vibradores têm a incrível capacidade de estimular toda a zona da vulva, incluindo o clitóris, o órgão do prazer, ajudando a atingir o orgasmo. Um dos mais populares estimuladores clitorianos é a magic wand. Apresentado como um massajador para o corpo no final dos anos 60, aumentou em popularidade desde que a Betty Dodson, a educadora mais fervorosa dos orgasmos para a libertação humana, publicitou o seu uso comum na zona da vulva. Ao contrário do que muita gente pensa, a wand – que tem a forma de uma varinha e acaba com uma ponta grande e arredondada – não serve a penetração. Várias marcas já puseram no mercado a sua versão da wand, apesar do original ser da marca Hitachi que se viu surpresa ao ver o massajador muscular transformado em brinquedo sexual. Quando foi mencionado num episódio d’O Sexo e a Cidade em 2003, as fãs esgotaram o stock. Os vibradores de forma fálica já servem a penetração. Um dos mais populares tem o formato que lhe chamam de ‘coelhinho’ (bunny) por ter uma dupla forma fálica e fazer lembrar as orelhas de um coelho. Esta serve para ajudar a estimular a vagina bem como o clitóris, simultaneamente. Há outras ainda mais complexas, que até estimulam a zona do períneo ou penetram o ânus. Dependendo da sofisticação do brinquedo, ele pode vibrar e mexer-se rotativamente para o prazer garantido. Uma inovação mais recente são os estimuladores de ar que de algum modo simulam sexo oral. Estes brinquedos terminam numa forma em donut, isto é, com um buraquinho no centro onde ‘encaixam’ o clitóris. Coloco-os na categoria de vibrador, porque a maior parte deles pode vibrar também. Estes podem ter dois motores, um de estimulação de ar, e outro de vibração e podem controlá-los como bem vos apetece. Para alguns destes brinquedos, este controlo pode ser tão mais sofisticado com a ajuda de uma aplicação – ao ponto de poder vibrar ao som da vossa música favorita. A marca que tem popularizado estes estimuladores de ar é a Satisfyer, com a melhor relação qualidade-preço. O seu sucesso é tão grande que a marca já descreve o objecto, tal como acontece com Chiclete, Gillette ou Tupperware. Para as que quiserem experimentar, existe a versão one night stand. É baratinha e tem a duração máxima de 90 minutos, sem possibilidade de trocar pilhas ou recarregar baterias. Uma proposta interessante para quem quer fazer o test-drive sem esgotar o orçamento mensal. Para as que se convertem, podem depois investir num brinquedo mais duradouro. A escolha, por isso, depende muito do que se gosta. Procuram algo para estimulação do clitóris e da zona da vulva? Querem um brinquedo para penetração? Querem um foco mais preciso no clitóris? Mantenho a ressalva que precisam de confirmar se as marcas e os fabricantes utilizam produtos seguros para as partes íntimas. Há muitas marcas com todas estas propostas que vos referi, e como devem calcular, brinquedos sexuais mais baratinhos podem não ter tanta qualidade. Felizmente que há quem se ocupe a experimentar e opinar sobre artigos sexuais, caso queiram dicas mais especificas. Estas são as sortudas que recebem nas suas caixas de correio muitos brinquedos para uma opinião honesta para mais tarde publicarem nas redes sociais. A Scarlet O’Hara é uma dessas pessoas, e recomendo o visionamento caso já tenham um brinquedo sexual em mente, e gostassem da opinião de alguém que já experimentou há volta de centenas brinquedos sexuais. É isto. Votos de Good Vibrations.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesResoluções Sexuais 2022 O Ano Novo de 2022 pede resoluções sexuais. Inspirada nas propostas de muitos investigadores e terapeutas sexuais para o ano de 2022, sistematizei aqui alguns dos desafios que as pessoas poderão abraçar para uma sexualidade feliz e saudável no novo ano. Descobre o que te dá prazer. Esta é uma dica útil para dois tipos de cenários. Primeiro, para os que não têm prática de masturbação para perceber que tipo de caricias e intensidades são prazerosas. Para os que erradamente julgam que a masturbação é algum motivo de vergonha, é importante reiterar que é um importante veículo para a auto-descoberta. Outras vantagens já foram descritas na literatura, como ajudar a dormir, aliviar o stress e até fortalecer o sistema imunitário. Segundo, há quem até saiba o que lhe dá prazer e, ainda assim, pode aumentar o repertório de experiências e técnicas. As pessoas e as relações estão sempre a mudar, e estar disponível para (re-)explorar novas experiências sensoriais é um dos segredos para uma vida sexual satisfatória a longo-prazo. Não há limites para esta descoberta. Os brinquedos sexuais são ferramentas que podem otimizar esta exploração. Em breve farei um guia de como comprar brinquedos sexuais: que são muito diversos e para muitas carteiras e objectivos. Descobre que o sexo é muito mais do que a penetração. Se se começar a interiorizar que o sexo tem muitas formas e práticas, só há vantagens em abraçar esta diversidade. Assim é possível acomodar vários apetites e vontades sexuais em vários momentos das nossas vidas. Há alturas em que pode apetecer umas coisas, em vez de outras. Existem muitas formas de ligação e intimidade que até podem não envolver o toque nos genitais. Só a oportunidade de sentir a pele dos outros, com intenção e consciência, pode ser uma experiência sexual muito gratificante. Aprende a comunicar o que te dá prazer. Esta dica é muito cliché, mas difícil de ser concretizada. A comunicação tem muito que se lhe diga, principalmente sobre temas sexuais. A investigação é clara que comunicar sobre as fantasias com as parceiras e parceiros está associado com maior prazer sexual e com maior qualidade da relação. Mas também se sabe que é preciso alguns cuidados na comunicação. Comunicar não é atirar as frustrações sexuais para o outro. Uma boa dica é de que estas conversas devem acontecer fora da cama. Também é preciso ter algum tacto na forma como se fala, começar com as coisas boas da relação sexual e depois explorar alternativas ou partilhar fantasias que gostariam de ver concretizadas. A comunicação é como dançar o tango, precisa de duas pessoas. Mas também precisa que as pessoas estejam em alguma sintonia, para que seja possível ouvir o que outro precisa na cama (ou fora dela). Estas sugestões são apoiadas por terapeutas sexuais na sua prática diária, bem como pela evidência científica. As dicas são gerais. Prometo rever em breve dicas mais práticas para uma mão cheia de truques na manga. Por exemplo, aprendi no podcast sobre sexo e psicologia do Dr. Justin Lehmiller que há investigação que comprova que gemer e vocalizar com volume durante o encontro sexual está associado a mais prazer. Só com disponibilidade para perceber que o sexo não é um script biologicamente programado é que se abrem as oportunidades de aprender e transformar o sexo, e de como ele é vivido no dia-a-dia. E assim viver um 2022 com mais prazer, por consequência.
Tânia dos Santos VozesUma genealogia simples da violência obstétrica Toda a gente tem medo da violência obstétrica. As parturientes, claro, mas também a Ordem dos Médicos (OM) em Portugal. A OM tem tanto medo da violência obstétrica que quer negar-lhe qualquer tentativa de definição. Não querer defini-la não quer dizer que a violência não exista. Se uma árvore cai no bosque, e ninguém estiver por perto para ouvir, emite algum som? Será que a resistência das instituições em nomear a violência obstétrica é porque ela não existe num país desenvolvido como Portugal? A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto inquiriu várias mulheres acerca do seu parto e da sua interação com a equipa médica. O inquérito mostrou dados preocupantes sobre práticas não consentidas ou de práticas que não têm suporte científico – uma desatualização atroz entre a investigação e a prática. O resultado para o mau-estar das parturientes mostrou-se notório também. A necessidade de desenvolver mais investigação na área é urgente, porque existem vozes, realidades e perspectivas que parecem estar obscurecidas no suposto “normal” de realidades institucionais. A OM pega nos resultados deste inquérito para tirar uma conclusão diferente. No parecer sugerem que os dados não reflectem práticas de violência obstétrica, mas revelam insatisfação na relação entre parturientes e as equipas médicas. Esta é uma re-significação, no mínimo, interessante. Na visão da OM, as mulheres não são vítimas de violência obstétrica, mas estão insatisfeitas com o serviço prestado. Sim, o termo violência obstétrica é forte, pressupõe agressores e vítimas. Para a comunidade médica que tem como preocupação máxima a vida humana parece uma ofensa insinuar que as práticas diárias nas maternidades portuguesas – os sistemas – estão a promover práticas de violência. Mas reduzir estas experiências a uma disposição da parturiente é querer continuar a não ouvir quem deveria estar no centro de tudo o que o parto envolve: as mulheres a parir. A presente polarização deve-se muito em parte a esta incapacidade para o diálogo. Numa situação em que as pessoas se insurgem contra a falta de humanismo no parto, a OM tenta deslegitimar em vez de tentar dialogar. Não é surpreendente. As culturas institucionais parecem insistir num parto altamente medicamentado sem criar o espaço para as parturientes terem voz ou vontades. Das práticas referidas são as episiotomias de rotina e a manobra de Kristeller – que são contraindicadas na literatura e pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Também a posição ginecológica/litotomia (posição deitada) não é a mais indicada para parir e muitas instituições não permitem outras. A violência obstétrica tem no seu coração uma visão exclusivamente médica do parto e de uma relação hierárquica – de poder e autoridade – sobre o que o parto pode ser, infantilizando a parturiente e despindo-lhe de qualquer vontade, ou até sabedoria sobre o seu próprio corpo. A violência obstétrica mostra que é preciso construir uma visão do parto onde a parturiente é ouvida e onde as intervenções médicas são informadas, discutidas e consentidas. A argumentação da OM parece ter resquícios de uma visão do conhecimento médico como o propulsor do desenvolvimento. Num país onde a mortalidade materna e infantil tem vindo a diminuir a olhos vistos, agarram-se a esse indicador para justificar as práticas correntes. O contexto português, diz a OM, não tem problemas com direitos humanos, e a violência obstétrica é coisa dos “bárbaros”, parecem insinuar. Só que os gritos por ajuda são outros. Não se trata de recusar todo o desenvolvimento científico até agora, mas exigir melhores cuidados médicos no parto. É preciso reconhecer que a redução da mortalidade não é o único indicador de sucesso. O bem-estar das parturientes – que é tanto físico como emocional e psicológico – tem que ser considerado no desenho institucional de intervenção no parto. Até porque esse bem-estar ajuda no processo do parto em geral. Esta conversa pode ser estendida para as outras especialidades médicas. Mas a situação do parto é especialmente caricata porque tem sido construído como um evento de alto risco, com necessidade de intervenção médica obrigatória, uma visão, dizem alguns profissionais, um pouco exagerada. Outros países desenvolvidos mostram que há outras formas de abordar a questão. No Reino Unido, o Sistema Nacional de Saúde prevê que as mulheres saudáveis, sem uma gravidez de risco, podem ter o parto em casa se assim o desejarem. Podem estar rodeadas por quem quiserem e parirem na posição que quiserem. A genealogia da violência obstétrica exigiria muito mais tinta e papel, não tenho dúvidas. Esta uma visão simplificada para a tensão que hoje assistimos: a falta de diálogo nas salas de parto é um dos muitos sintomas da contínua falta de diálogo protagonizado pelas instituições médicas. E os dissidentes resistem ao trazer para a esfera pública uma visão do cuidado que é fundamentalmente humana: com capacidade de escutar os gritos de desconforto e de trauma das parturientes – com muitavontade de mudança.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesOutubro Rosa Quando o meu professor de psicologia da percepção de risco disse-nos em aula que um terço das mulheres presentes teria cancro da mama, achei um exagero. Um exemplo claro sobre a importância desta disciplina. Por vezes os dados comprovam que há um risco elevado de contrair uma doença, mas as pessoas nem sempre o entendem assim. O Outubro rosa, ou o mês de prevenção do cancro da mama, tenta reverter a tendência. De acordo com a organização mundial de saúde, o cancro da mama é o cancro mais prevalente de todos. Um dos factores de risco mais claro e consistente na literatura é a idade. Quanto maior a idade, maior a probabilidade de contrair a doença. Mas a minha experiência começou a ver outros padrões. Pessoas jovens com mamas que se viram confrontadas com o flagelo do cancro. Cirurgia, quimioterapia e radioterapia antes dos 40. Há outros factores de risco como predisposições genéticas. A Angelina Jolie decidiu fazer uma mastectomia de prevenção por isso mesmo. Depois, há factores hormonais, uma menstruação precoce ou uma menopausa tardia por exemplo. O uso de contraceptivos hormonais também está associado a algum risco. E claro, os culpados de sempre: consumo de álcool, tabaco e pouco exercício físico também aumentam a predisposição à doença. Com esta conversa não quero provocar medo. O medo pode ser muito contraprodutivo e levar ao evitamento. Produtivo é espalhar que as práticas preventivas e o diagnostico precoce levam a resultados muito positivos. As pessoas com mamas que não se desliguem delas. A apalpação mamária é algo que todos deveriam fazer com alguma regularidade: mulheres, homens, pessoas não binárias. Neste ano e meio de pandemia, de confinamentos frequentes e acesso a cuidados de saúde limitados, muitos cancros ficaram por diagnosticar. O tempo, nestas situações, é crucial. Recentemente uma radialista portuguesa – Joana Cruz – sentiu um nódulo na mama, foi ao médico que sugeriu uma avaliação daí a 6 meses. Ela não ficou satisfeita com a resposta e a sua intuição levou-a a pedir uma segunda opinião. Agora está a ser tratada para um tumor agressivo na mama. Seis meses teria sido tempo demais. Ela tem 42 anos. Há um trabalho imenso que tem que ser feito neste mês de prevenção. Mas claro, a sexualização dos mamilos femininos torna esta conversa pouco fácil. Não há muitos vídeos reais, descomplicados, com mamas verdadeiras a ensinar a fazer a apalpação, por exemplo. Felizmente que há quem tenha tido a ideia genial de substituir mamilos de mulheres por mamilos de homens, para ajudar a que – pelo menos visualmente – se possam discutir mamas na esfera pública. Também não sei se o lacinho cor-de-rosa e a feminilidade ajudam a contextualizar o tema. Parece que há uns anos atrás, nos Estados Unidos da América, decidiram sexualizar a campanha reforçando o lado “divertido” das mamas. Resultou numa campanha, no mínimo, mediática. Se resultou em mais informação sobre o risco, os sintomas e diagnostico é que a investigação mostra ter estado muito aquém. Ainda é preciso muito trabalho para que as campanhas consigam concretizar aquilo que se propõem: ressoar em todos. Apesar de nunca ter sentido na pele qualquer problema, as mulheres à minha volta têm mostrado que a estatística do meu professor não é totalmente descabida. Como um cerco que se aperta, o cancro da mama tornou-se numa conversa inevitável na minha vida. Se antes o lacinho cor-de-rosa suscitava empatia e pouco mais, agora é acompanhado por um aperto no coração. Já vi colegas, amigas, familiares, amigas de amigas a terem que enfrentar esta desagradável surpresa. Não existirão fórmulas milagrosas para se estar livre de cancro – viver é estar sempre em risco. Mas podemos estar de olhos postos em nós e em quem nós gostamos.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSex Education Depois de um hiato de dois meses, o regresso a este espaço de escrita vem divulgar a série que melhor caracteriza o sexo e os relacionamentos românticos em muitas das suas valências, tensões e dificuldades. A série Sex Education, da vossa plataforma de streaming mais popular, proporciona o espaço de discussão para os temas mais prementes do sexo na esfera do entretenimento – que como já sabemos, não é dos espaços mais críticos ou inclusivos da sexualidade. Ainda nos dias que correm, comediantes fazem uso de estereótipos de género e de excepções à heterossexualidade como se fossem alvo de gozo e de comédia. Um comediante disse recentemente que ser trans é um predicamento “hilariante”. Felizmente que muitos já lhe caíram em cima. Já começa a ser hora de produzir conteúdos televisivos que consigam ser mais inclusivos do que os clichés televisivos dos anos 90. A série Sex Education é uma lufada de ar fresco comparada com outros conteúdos onde a heteronormatividade continua a ser a representação de base da imaginação colectiva do sexo e dos relacionamentos. A série foca-se em adolescentes na escola secundária, o que poderia insinuar que é uma série para uma faixa etária particular. Diria que é uma escolha estratégica para explorar o período de vida em que o sexo parece ocupar a maior parte das preocupações das pessoas. Mas esta exploração é tão relevante nessa altura como depois, e a série mostra isso também. A íntima relação entre o amor, o sexo, a paixão e o tesão continuam a ser explorados ao longo da vida. Os pais dos jovens que por lá aparecem mostram que toda a gente tem espaço para crescer, ora no sexo, ora na intimidade. Só mantendo a saudável curiosidade sobre o mundo é que é possível percorrer esse caminho de aprendizagem: que é tão relevante na adolescência como no resto da vida. Porque a série foca-se no sexo em contexto educativo em particular, explora-se também o que é a educação sexual. O sistema educativo formal consegue ser opressor ao enquadrar a sexualidade única e exclusivamente na forma como se previnem bebés e infeções sexualmente transmissíveis. O foco no prazer – e de como é que se pode dar espaço a esta dimensão – é relevante para todos. A série consegue puxar a necessidade de se falar abertamente do prazer nas salas de aula, bem como em conteúdos de entretenimento. Todos sabem que o sexo dá prazer, mas se há coisa que o legado judaico-cristão ensinou é que o prazer não é um direito, é um desvio, uma tentação da pureza da essência humana. Estas representações precisam de ser desconstruídas, e a série faz um bom trabalho ao não moralizar o sexo. O prazer está sempre lá, não fossem as dezenas de cenas de sexo que a compõe. Esta série também faz um trabalho decente em mostrar diversidade de constelações familiares, românticas e de expressões de género. Há uma naturalidade muito bem-vinda. A série remete para as dificuldades que muitos jovens não-heterossexuais e não-binários sofrem no seu dia-a-dia – mas não as tornam problemáticas. Todos abraçam esta diversidade na utopia que podia ser reflexo dos dias de hoje, mas que ainda não é. Se se podia fazer mais e melhor em termos de representatividade televisiva? Claro que sim, a verdade é que as personagens principais continuam a ser brancas com tendências heterossexuais. Ainda assim, os escritores desta série tentam explorar o tutano das experiências diárias destes jovens e dos seus pais, até em contexto de terapia sexual e de casal. Os autores expõem dados com base na evidência, tentam desconstruir estereótipos e preconceitos, ideias que foram guiadas pelo consumo de pornografia: ideias erradas sobre o corpo, as formas das vulvas e o tamanho do pénis. Discutem sobre o orgasmo feminino e as muitas formas de sexo que podem existir. Há uma tentativa de criar um ambiente verdadeiramente sex positive. Também é verdade que há quem se chateie com o nível de inteligência emocional que estas personagens mostram: a maioria delas mostram uma maturidade relacional e sexual fora do normal. Pelo menos que nos sirva de referência que maturar a nossa relação com o corpo, o sexo, e os outros pode ser bem possível. Dentro e fora do ecrã.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO acelerador e o travão do desejo sexual feminino A complexidade e a falta de compreensão à volta do desejo sexual feminino não são fáceis para ninguém. Estas ideias levam à assumpção de que algo de errado se passa com as mulheres. A Emily Nagoski apercebeu-se disso quando dava aulas de psicologia e sexualidade em contexto universitário. Muitas mulheres lhe confidenciavam as suas aflições. Esta investigadora assim trabalhou para desmistificar o desejo sexual à luz dos vieses actuais. Até publicou um livro para partilhar o que se sabe sobre o assunto (“Come as you are: the surprising new science that will transform your sex life”). A sua investigação mostra que há um duplo sistema responsável pelo desejo, ou seja, não se trata de um só termómetro que aquece e arrefece mediante factores específicos. São sim dois sistemas: um que acelera e outro que trava o desejo sexual. Ambos os sistemas trabalham com sensações e percepções. Ver, sentir, cheirar ou pensar. Estar enroscada com outra pessoa pode estimular o acelerador, mas, por exemplo, preocupações ou stress podem pôr o travão a fundo. Os aceleradores podem ser múltiplos: ambiente, preparação, antecipação, velas, erotismo, sensualidade. Os travões podem ser múltiplos também, até podem ser narrativas culturais do que se acha do sexo ou do nosso corpo. Não vivemos num tempo especialmente sex-positive. A educação sexual continua presa à prevenção da gravidez e das doenças venéreas sem abordar o prazer. A constante critica ao corpo também continua bem de saúde, não fosse a gordofobia internalizada em tudo o que se faz hoje em dia. Todas estas ideias podem transformar-se em travões. As sociedades contemporâneas também oferecem pouco tempo para se estar, pouca disponibilidade para parar. Andamos entre velocidades estonteantes que nos impossibilitam a conexão. Mas os travões não funcionam com toda a gente da mesma forma, nem são consistentes. Dependem muito do contexto. E deixem-me clarificar que esse contexto é mental, um estado de espírito a que o nosso ambiente nos proporciona. A autora costuma dar o exemplo das cócegas. Há alturas em que cócegas nos entusiasmam e até nos fazem enrolar para mais uns beijos e amassos. Há alturas em que as cócegas são mais irritantes do que outra coisa. Por isso, não há fórmulas perfeitas para os aceleradores e travões, a verdade é que estes exigem experimentação e auto-conhecimento. Nem as narrativas sociais tão complicadoras do sexo são determinantes para o que quer que seja. O importante é que haja consciencialização acerca destes processos. A autora sugere fazer listas dos nossos momentos sensuais. Perceber quais são os nossos aceleradores e os nossos travões. Perceber também que eles não vão funcionar da mesma forma ao longo da nossa vida. O corpo e a mente passam por muitas transformações. A menopausa tende a ser um período menos propício ao desejo sexual, por exemplo. O período pós-parto também. A medicação anti-depressiva faz com que a líbido se vá abaixo, entre outros factores. Os ingredientes perfeitos para o desejo sexual são muitos e personalizáveis. Importante referir, contudo, que quando há menos vontade para o sexo normalmente é o travão que está mais reactivo, e não uma falha do acelerador. Em vez de se acreditar na incapacidade de sentir desejo, a verdade é que pode existir um bloqueador do desejo. É esse que normalmente precisa de ser tratado. Os estilos de vida em que tudo era suposto estar pronto para ontem, as preocupações que aí advêm, a dificuldade em ser mulher de carreira e uma mulher de família podem tornar o travão mais sensível. O ideal, segundo a autora, é ligar o acelerador e desligar o travão. Uma perspectiva simples na teoria, difícil na prática, mas que ajuda a perceber a dinâmica do nosso potencial sexual.