Pansexualidade não é uma moda

[dropcap]E[/dropcap]ste é o mês do orgulho de tudo aquilo que não é heterossexual. A heteronormatividade está demasiado presente no nosso dia-a-dia. As outras formas de sexualidade continuam escondidas, pouco discutidas, pouco visíveis. A supermodelo Cara Delevingne mostrou recentemente o seu orgulho pansexual numa daquelas revistas que até deve reforçar os sistemas binários e heterossexuais até ao tutano. Ainda bem que o mostrou lá. Não se pode continuar a dividir os espaços. É preciso tornar todos os espaços mais diversos e ricos em auto-definições dos confortos sexuais que existem – que são tantos e múltiplos, mas que ainda são vistos de forma limitada. Outros artistas e figuras públicas já se assumiram como pansexuais, a Janelle Monáe e a Miley Cyrus, são exemplos. Afirmaram-se no mundo binário que gosta de delimitar identidades, vivências e preferências. Um mundo que insiste que existe um “normal” e o resto. E a pansexualidade parece estar agora na boca do mundo.

Pansexual é já um conceito antigo, em tempos denominou uma condição de disfunção, mas agora libertou-se das tontices que sempre amarraram o sexo e o género. Pansexualidade faz parte da conceito guarda-chuva queer e é bastante semelhante à bissexualidade, mas com diferenças. A etimologia da palavra ‘pan’, significa ‘tudo’. Enquanto que a bissexualidade refere-se à forma como se sente atracção sexual e romântica por mais do que um género (que normalmente fica-se pelo feminino e masculino), o pansexual não define o seu interesse romântico e sexual por géneros, isto é, interessa-se por todas as formas de expressão sexual e de género – homens, mulheres, não-binários e além. Assim alinha-se com a ideia de que o sexo de supostos pénis e vaginas não é limitado, nem binário. O género é fluido e múltiplo, tal como a sexualidade pode ser.

Só que a discussão da pansexualidade entre as celebridades, não deve ser confundida com uma moda, da mesma forma como o lilás domina as cores da estação. Falará assim quem acredita na efemeridade de certas ideias, na sazonalidade das ideias, em detrimento de outras. Nunca ninguém julgou a heterossexualidade uma moda. Esta protege-se com a visão conservadora da biologia, da religião, e até da medicina. Poder ver e experienciar a fluidez do sexo e do género implica querer pôr em causa as caixas definidoras da sexualidade humana. Esta fluidez resulta do reconhecimento que o mundo não é imutável, estático ou incontestável. Não existem formas melhores do que outras de viver a sexualidade. A pansexualidade permite abraçar a diversidade, a quem lhe fizer sentido.

A desvalorização diária que tira a legitimidade de se amar ou sentir tesão por quem se quer, não é uma moda, é um facto social demasiado comum. A afirmação categórica da pansexualidade, como outras categorias orientadoras, é um caminho para desconstruir o binarismo que ainda assola o mundo. A sexualidade da libertação deveria oferecer a oportunidade de estar em contacto com o desejo e a intimidade. Estes poderiam manter-se no conforto da casa, mas também precisam de viver na boca do mundo, e nas capas de revista. Há quem acredita que a intimidade deve ser de algum modo secreta, entre quatro paredes. Mas a discussão continua a ser imperativa. Até se normalizar a diversidade sexual, de género e de orientação, interessa, sim, de quem se gosta e como – no mês do orgulho LGBTQI, e sempre.

17 Jun 2020

Pobreza menstrual

[dropcap]A[/dropcap] propósito do dia da saúde feminina no final de Maio, discutiu-se a pobreza menstrual. As pessoas que menstruam (que já percebemos que não são só as mulheres) precisam de lidar com o sangramento mensal e fazer as contas à vida enquanto o fazem. Por este mundo fora há quem tenha que gerir as suas finanças de tal forma, que produtos menstruais não conseguem tornar-se numa prioridade.

A inevitabilidade dos úteros traz custos acrescidos para quem quer continuar com a vida como normalmente, e com dignidade. No mercado existem muitos produtos para lidar com o período – felizmente. Uma média de gastos anual – ou de uma vida menstruante – já são números assustadores – infelizmente. Continua a ser chocante como é que estes produtos continuam a ser taxados como não-essenciais. A discussão da pobreza menstrual deve incluir e estender-se do ocasional pedido para a doação de produtos de higiene íntima para os sem-abrigo. A pobreza menstrual não só aflige os casos extremos de vulnerabilidade socio-económica.

Muitas pessoas são obrigadas, no dia-a-dia menstrual, a improvisar com um pedaço de cartão e papel higiénico, ou até com uma meia. E depois, claro, o baixo poder de compra é influenciado pelo tabu que é a menstruação – e assim se afecta a vida de quem tem úteros. As pessoas que menstruam já têm stress suficiente. Têm medo de ter perdas de sangue, de cheirarem mal, do desconforto de tudo, a juntar o facto não terem dinheiro para comprar o produto que os poria mais confortáveis, é diabólico. O desconforto menstrual tende a ganhar pontos. Não só compromete a saúde, mas também o acesso à educação, formação e trabalho.

Este é um problema global. Para os países desenvolvidos e em desenvolvimento há sempre níveis de pobreza menstrual aqui e ali. O país mais recente a tomar medidas concretas contra a pobreza menstrual foi a Nova Zelândia. Todos os menstruantes em idade escolar vão ter acesso a produtos menstruais gratuitos. Portugal também viu desenhada uma proposta em assembleia muito semelhante. Vários projectos em contextos de países em desenvolvimento, por exemplo, ajudam as comunidades a criar pensos de pano, ou tentam ensinar a usar o copo menstrual. Em todas estas situações, seja na Nova Zelândia, no Uganda ou em Portugal é preciso oferecer produtos e falar sobre os períodos também. Vezes sem conta a menstruação sofre deste mal comunicativo. Ninguém gosta de falar dele, e o desdém pelo sangue mensal cá continua, e perpetua-se.

Só mais um factor complicador para sequer sonharmos em atingir a equidade menstrual; ter-se-ia que resolver um conjunto de vulnerabilidades que giram em torno do preço excessivo dos produtos, do baixo poder de compra das gentes e do pouco à vontade em discutir menstruações.

Cada corpo menstruante deveria ter o espaço e o tempo para explorar as formas com as quais se sente mais confortável, seguro e limpo durante a menstruação. As vozes mais críticas apontam que não basta oferecer produtos. Temos que conversar sobre isso e, na medida do possível, dar a escolher a quem mais precisa. No mercado há pensos descartáveis ou reutilizáveis, tampões, copos, discos e cuecas menstruais. A utilização dos mesmos depende da relação que se tem com o corpo, com a menstruação e até mesmo com a relação que temos com o ambiente. Para resolver qualquer situação de pobreza, não basta oferecer dinheiro ou recursos (apesar de extremamente importante), é também necessário criar condições de empoderamento para que as pessoas menstruantes consigam tomar decisões que as façam sentir que a menstruação não é um obstáculo para ninguém.

11 Jun 2020

O sexo importa-se com o apocalipse

[dropcap]O[/dropcap] mundo está estranho e confuso. A minha tentativa de articular qualquer conteúdo esta semana virá da confusão dos sucessivos eventos da última semana, e dos últimos meses.

O mês do orgulho LGBTQI+ começou agora em Junho. A celebração de uma história de reivindicação e resistência ecoa todos os anos, em muitas partes do planeta. Um lembrete que a transgressão e contestação dos limites das forças normativas são necessárias se queremos ver alguma mudança no mundo. Na mesma altura em que outras vozes dissidentes, contemporâneas, são ecoadas num país norte-americano em particular. Fala-se em racismo estrutural, ou formas de preconceito estrutural, como nunca se falou. O mal do mundo não acontece pelas mãos das pessoas más. A discriminação não é um acto único, psicopata ou desviante, mas o resultado de uma estrutura, de relações sociais e instituições que permitem que as pessoas façam muita parvoíce – como já estamos fartos de assistir. Somos também obrigados a reflectir sobre a globalização de uns problemas, e não de outros. As redes sociais estão cheias de conteúdos de uma particular geografia, e não de outras. Talvez uns contextos estejam mais preparados para discutir coisas difíceis, e outros ainda não. Ninguém ignora o que está a acontecer, mas não sei até que ponto se olha e se analisa o estado do mundo com cuidado, e à forma como contribuímos para isso.

O sexo podia não estar metido nesta confusão de conceitos, mas é o lugar que melhor habita. Talvez porque o sexo desde cedo quebrou as amarras conservadoras e inflexíveis. A intimidade, o sexo e a auto-determinação não vivem num vácuo. O espaço das relações raciais dos diferentes tons de melanina não é um só nó por desembaraçar. É um nó de uma malha complexa, histórica, ligada a muitos outros nós de desigualdade. Uma terapeuta sexual, a Lauren Fogel Mersy, retoma o conceito de interseccionalidade, um conceito chave para perceber o emaranhado da malha, com a clareza que raramente consigo ter. Como ela diz na sua página social: “sabem o que faz decrescer a nossa líbido? Opressão sistémica, racismo, e trauma racial”. Não podemos perceber o que acontece à nossa volta sem tentar juntar várias peças de um puzzle, e perceber o seu encaixe e desencaixe.

Esta é uma forma, como muitas, de mostrar que o sexo se importa com o apocalipse. O apocalipse é entendido aqui como um suposto estado de disrupção e de potencial transformador. Quem me conhece sabe que gosto de olhar para o sexo como centro gravitacional que integra o íntimo e o social. Não desperdiço a oportunidade de reforçar esse argumento em alturas de crise: em pandemia, que nos obriga a uma reorganização de vivências e rotinas, ou num qualquer outro estado de conflito socio-político. Viro-me sempre para a mesma questão: como vemos o sexo dentro e fora de tensões sociais? E como é que, através dele, podemos olhar as malhas indissociáveis de sistemas de opressão? Como é que através da lente analítica do sexo podemos pensar a mudança e a libertação?

Raramente nos mostramos confusos como o mundo, mas é um estado legitimo. Frequentemente esquecemos de dar espaço à transição, e deixarmo-nos no meio de um antes e um depois que ainda não percebemos como é que se irá concretizar. Nesse processo de apocalipse, o sexo não pode ser um escape – como experiência sensorial, única – mas servir a consciencialização que aquilo que carregamos é tanto nosso como do mundo.

3 Jun 2020

Não ponham gelados na vagina

[dropcap]N[/dropcap]ão encontro quem confirme que colocar gelados na vagina é um método eficaz para se refrescar num dia de calor, mas tenho visto muitas fontes a pedirem às vaginas que evitem encontros com natas geladas. Claro que com estes avisos vem um mar de explicações, por pessoas de grande autoridade no tema, reforçando que a ideia é péssima: e é. Os gelados têm açúcar, têm corantes, têm tanta coisa que destroem a fantástica homeostasia da saúde da vagina, com o seu pH e flora perfeitos.

De onde virá tamanha parvoíce? Da desinformação ou de falhas graves de lógica? Comer um gelado faz-nos sentir mais refrescados, por isso, porque não experimentar inserir este pedaço de refresco em outro lugar?

Não sei. A desinformação já é amplamente discutida desde 2016, quando um suposto candidato a presidente conseguiu chegar ao cargo presidencial. Tudo com a ajuda de notícias falsas que alimentavam câmaras de ressonância opinativa – onde aquilo em que se acreditava era mantido, repetido e disseminado. Em tempos de covid-19 tem-se visto por aí muita informação falsa que se faz passar por informação legitima de como mitigar esta pandemia. Até o dirigente da ONU já veio alertar que o problema não é só de um vírus, é o da infodemia de desinformação.

Achar que colocar gelados na vagina pode refrescar ou achar que consumir desinfectante é uma forma eficaz de se proteger do coronavírus resultam de processos bastante semelhantes. A literatura é vasta no estudo da desinformação e na probabilidade em alguém acreditar e partilhar conteúdos falsos. A maior parte deles estuda o perfil das pessoas, se são mais liberais ou conservadores, educados, novos ou velhos e presença de alguns traços de personalidade. A resposta não é simples. Não há um perfil concreto, mas a investigação tem mostrado que a educação pode não influenciar, e que a ideologia política pode ajudar se combinada com outras características. Outros teóricos têm olhado para a forma como o descontentamento no mundo tem fomentado a desconfiança nas instituições e na ciência. Daí vem a dificuldade em olhar para informação de forma crítica, porque resulta num natural alinhamento de crenças já pré-existentes, agora reforçadas.

Eu diria até, antes das redes sociais e das ideias parvas, a desinformação começou logo no sexo. Tanto secretismo e tabu deu azo a mitos ao longo dos tempos. Se as mulheres menstruadas entrassem numa adega estragavam o vinho, é um exemplo. A ciência provou-se útil para desmistificar estas crenças, que são parvas, claro. A ciência tornou-se num recurso importante para perceber o que é real e não é, uma bussola que nos orienta. Mas com isso veio outro perigo: a ciência como único mecanismo capaz de clarificar a realidade, deslegitimando os corpos da sua própria vivência. Temos que combater a desinformação sem nunca esquecer que os espaços de diálogo, discussão, partilha críticos continuam a ser necessários. Sem dogmas ou moralismos.

Injectar desinfectante é uma tontice e é extremamente perigoso. Numa altura de pandemia em que há dúvidas, e uma ciência que vai evoluindo na sua imperfeição de perceber umas coisas e ainda não perceber outras, viu-se aqui um terreno fértil para ideias falsas e teorias da conspiração. São precisas soluções consertadas para repudiar esta tendência crescente de acreditar em que tudo o que se diz nas redes sociais nossas conhecidas. São também necessárias formas democráticas de participação no encontro entre a ciência e o nosso dia-a-dia, seja para lidar com uma pandemia, ou para lidar com a nossa sexualidade. De qualquer modo, não coloquem gelados na vagina.

27 Mai 2020

O Sexo e a Maria-Joana

[dropcap]A[/dropcap] investigação do efeito das drogas no sexo ainda está na sua infância. Há evidência clara de que as drogas psicoactivas afectam a sexualidade de forma negativa – tanto que é uma barreira para a aceitação da medicação psiquiátrica – mas pouco mais se sabe. A criminalização de outras drogas são uma barreira para a investigação e auto-descoberta, à excepção de umas vozes dissidentes que querem ver além. Pessoas, investigadores e terapeutas sexuais querem perceber a relação entre o sexo e a canábis, na sua totalidade de características de alteração de consciência, e o óleo CBD, que não é uma droga, mas que pode ser de aquisição difícil e de uso ainda bastante estigmatizado.

A pouca investigação que existe mostra que o consumo continuado e excessivo da canábis pode levar a disfunção eréctil e a contagem de esperma diminuída (o que não quer dizer que possa ser usado como contraceptivo!). Mas outros efeitos ainda estão longe de ser explorados. Paralelamente, muito se tem questionado acerca do uso da canábis e do óleo CBD para o tratamento de situações de ansiedade e controlo da dor. Não é fácil separar a discussão do sexo e a canábis da discussão global de como esta planta pode ser usada para fins terapêuticos. Aqui falaremos do pouco que se sabe da sua relação com o sexo e as suas especificidades.

No sexo há problemas que já nos são bem conhecidos, como a ansiedade em alcançar a performance perfeita, agradar o outro, ter um orgasmo assim ou assado ou querer apresentar-se da forma que se “julga” normal. A desigualdade do orgasmo também, discriminado por género, é um problema complexo de origens socio-culturais e biológicas. Todas estas dificuldades criam barreiras a uma boa conexão com o sexo, coisa que a canábis diz ajudar a resolver. Um estudo publicado em 2017 mostrou que muitas mulheres reportam um efeito positivo, de aumento de intensidade sexual e do orgasmo, consumindo canábis no pré-coito.

Apesar de, para outras pessoas, o uso de drogas poder ter o efeito completamente contrário – de desconexão e retracção – para outros, parece intensificar a experiência. A teoria é que a canábis ajuda a baixar as resistências mentais e ter uma experiência mais conectada com o corpo, e com o outro.

O óleo CBD, por sua vez, proveniente da canábis e do cânhamo, sem THC (a substância psicoactiva) pode trazer um estado de corpo e mente igualmente interessantes para o sexo e para a saúde sexual. Só que a investigação nessa área é mais escassa ainda. A indústria, contudo, não se retraiu de trazer cá para fora produtos inspirados no potencial deste óleo, que é discutido em teoria, mas que na prática não se sabe quase nada. Já existem lubrificantes sexuais com óleo CBD que dizem ajudar no relaxamento da zona pélvica e ajudar na minimização da dor sexual. Também já existem tampões com óleo CBD que dizem ajudar nas dores menstruais. Para quem sofre de endometriose, parece que o CBD tem um potencial enorme no tratamento dos sintomas. Há pessoas que têm deixado o seu testemunho por aí, mas pouco mais sabemos.

O perigo de não existir investigação que nos ajude a navegar nas incríveis vantagens que estes produtos podem trazer, é que se sabe pouco sobre dosagens e, como todas as drogas, que outros efeitos podem trazer. O uso desta planta e dos seus derivados para efeitos sexuais deve ser ponderada e cuidadosamente analisada. Não deve demorar muito até começar a existir um corpo de literatura mais robusto que nos ajude a perceber as vantagens e desvantagens dos seus efeitos.

20 Mai 2020

Visibilidade lésbica – na pandemia

[dropcap]O[/dropcap] dia 26 de Abril foi oficialmente adoptado para celebrar a visibilidade lésbica em Portugal. Há muitas estórias e histórias que levam a que o dia da visibilidade lésbica seja celebrado em diferentes dias em diferentes lugares do mundo (incluindo países asiáticos?). Dizem activistas e investigadoras que foi em 2008, por causa da ligação e união que a internet possibilitou, que se começou a homogeneizar uma data e a sua (ainda) importância. E agora, como é que se vive a visibilidade lésbica em pandemia?

No mês que ainda se discute a liberdade discutem-se também os direitos e liberdades de amar quem se quer. Na figura da mulher, a assumpção heterossexual continua a ser imediata. Isto é verdade nos contextos interpessoais, e também institucionais, nos hospitais, nas escolas, e em geral, na esfera pública. Assume-se que as sexualidades não-heteronormativas são uma minoria e uma excepção. As mulheres que amam outras mulheres continuam apagadas do discurso e das narrativas. As mulheres solteiras do passado, que se calhar viviam com a amiga, continuam nos armários da história que se conta. Ainda hoje, a mulher continua a sofrer as consequências de obtenção tardia de direitos, de discriminação de género e de pouca representatividade política. Tornar as mulheres lésbicas visíveis ainda é muito necessário.

Por este lado do planeta as lutas são outras, porque as formas de visibilidade são outras também. Na complexidade da globalização dos direitos sexuais e das suas formas de expressão em contextos de repressão política e social, a internet continua a ser um modo de partilha para comunidades re-imaginadas.

No dia-a-dia, lá fora, continua a não se dar visibilidade a formas de afecto lésbicas. Mas, num artigo publicado em 2017 na revista científica Sexualities, relatam-se novas formas de apresentação a contribuir para a visibilidade lésbica em Taiwan. As mulheres que adoptam o estilo masculino coreano mainstream estabelecem uma nova subcultura que está intimamente ligada com as lutas LGBTQI; fazendo uso da sua popularidade, também na China, Hong Kong e Macau.

Em tempo de pandemia esta visibilidade, na rua, nas interacções, e nos símbolos, está ameaçada. Para um lado do planeta, em que a luta toma formas mais expressivas, e em outros lados menos, vai ser preciso redefinir esta visibilidade para a nova esfera pública que a pandemia obriga. A distinção entre esfera pública e privada está cada vez mais comprometida quando somos obrigados a ficar em casa para ajudar a travar a evolução de uma doença infecciosa. Onde colocamos a nossa máscara social de afirmação identitária? Por baixo de uma máscara sanitária, a dois metros de distância? Vai sempre fazer sentido falar da visibilidade lésbica, até quando o conceito de visibilidade não nos é garantido nas formas que nos eram conhecidas.

Ainda é cedo para perceber como é que a pandemia nos vai afectar globalmente e como é que afecta os direitos sexuais em particular – muita gente está obrigada a confinamento em lugares não-seguros onde estes direitos não lhes são garantidos. Os dias de visibilidade vão ser mais necessários do que nunca. Pode ser que neste contexto particular as esferas privadas e públicas consigam formar-se numa nova dicotomia menos contrastante. E assim tornar o conceito de cidadania íntima ainda mais relevante, onde o pessoal, o social e o político conseguem envolver-se para alimentar sociedades mais justas e igualitárias.

6 Mai 2020

Fale-se de liberdade (sexual)

[dropcap]A[/dropcap] liberdade é sempre muito citada em alturas de Abril. Numa altura em que temos menos liberdade de sair, de fazer o que queremos, a habitual conversa de Abril trouxe o sabor amargo da actual limitação das liberdades e dos prazeres. Na terra dos livres, os famosos Estados Unidos da América, fala-se da liberdade em ir ao cabeleireiro e de ignorar as medidas de prevenção de contágio que têm sido adoptadas um pouco por todo o mundo.

Afinal o que é a liberdade em tempos de COVID-19? As liberdades são removidas para proteger os outros (e o sistema de saúde). Mas ‘sacrifiquem os mais fracos e os mais debilitados’, insistem os amantes de liberdades norte-americanas. Empatia e colaboração deve ser um exercício difícil para a senhora que quer ir cortar o cabelo. A premissa de que a liberdade termina quando perturba a liberdade do outro é mais contestada do que parece.

A agressão física como uma ofensa à liberdade é um exemplo óbvio – tal como deveria ser o contágio. E quando são só palavras? Que limites à liberdade vemos reflectidas no pressuposto de que todos têm direito à liberdade de opinião e de expressão? Todos têm mais ou menos direito a dizer o que lhes vai na alma, até em confinamento domiciliário. Porque antes (e em muitos lugares ainda) falar das coisas erradas traria a polícia à porta. Fazia-se (e ainda se faz) amplo uso da censura como mecanismo limitador. Felizmente que essa liberdade foi conquistada em muitos locais do globo.

Só que as pessoas com mais dificuldade em aceitar a redundância da (retrógrada) dicotomia heteronormativa, sentem-se na liberdade de opiniar a sua visão do mundo – porque têm a liberdade para fazê-lo. Quantos artistas gay, lésbicas, bi, trans vêem as suas páginas nas redes sociais saqueadas por opiniões que não precisavam de existir? Como raio é que a liberdade de ser um bully ainda é legitimada? Com o crescimento do populismo, e a legitimação de decisões políticas patéticas, a necessidade de afirmação individual tornou-se ainda mais premente.

Recentemente, no Tribunal de Justiça da União Europeia exercitou-se sobre isso mesmo. Um advogado italiano numa entrevista radiofónica decidiu expor o seu escárnio pela ideia de algum dia trabalhar ou colaborar com alguém que não se insira na caixa heteronormativa. Um grupo pelos direitos LGBTQI faz alguma coisa sobre isso e leva o caso ao tribunal europeu. O veredicto: visto que a pessoa teria poder de contratação, o crime de discriminação sobrepõe-se ao da liberdade de expressão. Foi necessário provar que uma ‘opinião’ teria consequências práticas e criminais. Não foi bem um triunfo da criminalização da discriminação sobre a liberdade de expressão, mas um princípio. Há a assumpção de que o que se diz pode não resultar em comportamento. O que quer dizer que muitas pessoas dizem baboseiras demais: sem respeito pelo outro, sem grande visão de um mundo inclusivo e justo.

Quero pôr no mesmo saco a senhora que quer cortar o cabelo e manifesta-se porque não pode, e o homofóbico que diz o que lhe apetece sem grande medo de represálias (mas que as teve!). As formas como eles exercem as suas liberdades poderiam ser uma forma de empoderamento incrível, mas neste caso só deu em micro-agressões na forma banal e dolorosa de descarte do outro. O que me leva a concluir que ainda precisamos de pensar e falar sobre a liberdade durante muito tempo.

29 Abr 2020

Literatura erótica de quarentena

[dropcap]E[/dropcap]screver histórias eróticas é o que está a dar nesta pandemia. Numa procura na secção erótica, de um site popular de ebooks, usando covid-19 como termo de busca, já existem 44 resultados. Em pouco menos de três meses já houve quem se sentasse, fantasiasse e escrevesse sobre como é que esta pandemia poderia criar cenários apropriados para o sexo. Quem disse que a pandemia não seria produtiva? Há quem já tenha começado colecções de livros eróticos da pandemia, só para perceberem como o negócio deve ser prolífero – ou simplesmente muito satisfatório. Claro que há erótica para todos os gostos, desde a amor incestuoso entre meios irmãos que estão presos em casa, até BDSM mais forte ou leve, heterossexual e homossexual e o covid69 – vocês apanham a ideia. Tudo contextualizado nesta contemporaneidade que ainda temos dificuldade em entender.

O que me leva a uma peça fabulosa da literatura erótica que é objecto de um podcast de comédia. A literatura erótica a ser um adereço de comédia não deve ser o objectivo de nenhum escritor erótico. Mas no sexo, e na escrita, para os corpos e a forma como os entendemos, as palavras importam. Irei elaborar sobre isto mais à frente.

Este podcast, my dad wrote a porno, tem sido o meu companheiro de pandemia para me introduzir à literatura erótica – e aos meandros do sexo cómico. O título diz tudo: um filho descobre que o pai, na sua velhice, decide escrever sobre sexo (sobre as suas fantasias?). O filho, com mais ou menos vergonha, decide ler um capítulo por cada episódio e comentá-lo com os amigos. Et voilá. Um êxito estrondoso no Reino Unido, e em muitos outros lugares por ouvintes que gostam de ouvir em inglês. Um fenómeno cultural, dizem os comentários.

O enredo que sai do Rocky Flintstone, o pseudónimo para o criador desta colecção de livros eróticos, são fabulosos. Desde mamas que são comparadas com romãs, a algemas de plástico vermelhas (que se calhar não cumpririam o seu propósito?), a um pénis, que é tão pequeno que se perde na penugem púbica de quem o pertence. Tudo acontece à heroína desta trama, uma tal de Belinda que é a directora de vendas de uma empresa de panelas e frigideiras, e onde o sexo faz parte do dia-a-dia laboral. Claro que um olhar mais crítico iria horrorizar-se pela objectificação feminina e pela tendência por interacções lésbicas sem explicação prévia. Já a descrição da entrevista de trabalho, é um cenário de exposição absurda, em que a entrevistada tem que se despir totalmente e… abrir as tampas vaginais (em inglês soa melhor, mas juro que é assim que é descrito) como se de uma inspeção ginecológica se tratasse.

Com toda a seriedade do sexo, esta possibilidade de rirmos dele, e destas descrições que poderiam ser melhor conseguidas, cria a possibilidade de o reinventar. Claro que o sexo é passível do gozo, muitas vezes bastante violento e de consequências nefastas, mas há qualquer coisa de maravilhoso quando este gozo não faz mal a ninguém. Quando o sexo não precisa de ser uma referência de seriedade e pode ser gozado de tantas outras formas, como a rebolar da cama, no chão, nos lugares estranhos que se quiserem. E ele pode existir nas palavras, neste exercício literário, entre o escritor, o leitor e até o ouvinte. O imaginário erótico, ainda assim, sobrevive nesta pandemia. Nem precisa de muito enredo, só mesmo de muito sexo.

22 Abr 2020

Em casa não há só conforto

[dropcap]D[/dropcap]urante este período de isolamento todos nós lidamos com o estar em casa da melhor forma que podemos. A casa é um sítio seguro para muitos de nós, e para muitos não é. Venho aqui relembrar do que precisamos de ser relembrados – agora que nem podemos ver o mundo lá fora com os nossos próprios olhos. O isolamento é para quem tem as condições para fazê-lo.

Claro que venho falar-vos do desconforto relacionado com o sexo, relacionamentos e família. Há várias formas como o desconforto do lar é o resultado de desigualdade sociais profundas e estruturais (como não existirem condições dignas de habitação). Mas dentro dos temas que interessam explorar aqui – de sexo e essas coisas – o caso mais alarmante de desconforto é o de violência doméstica. Ficar preso numa casa com um agressor é uma situação extremamente difícil de ser gerida. Há muitas instituições que estão sensíveis a este problema e têm desenvolvido formas de dar apoio, por telefone – e especialmente por mensagem. Quando uma situação de violência poderia ter momentos de pausa, e de privacidade, com a rotina que nos afastava do lugar dilemático que é uma casa, aqui está a pandemia para complicar estas estratégias. Quando nos dizem que para travar esta guerra basta ficar no sofá a ver séries, esquecem-se que esse sofá pode estar cheio de picos. Sentar-se relaxadamente pode não ser uma possibilidade.

Depois claro que há outros problemas que podem surgir. Em Xi’an, assim que o confinamento imposto foi flexibilizado, houve um aumento considerável nos pedidos de divórcio. Depois de meses em confinamento os casais trouxeram as suas dificuldades e não conseguiram lidar com elas. Há quem diga que foram decisões apressadas e que muitos mudaram de ideias. Há quem diga que eram más relações à partida e que mais cedo ou mais tarde estes casais iriam divorciar-se. Não sabemos ao certo qual a resposta certa. De acordo com os depoimentos de casais em confinamento parece que a coisa pode dar para os dois lados: ou criar momentos de re-conexão, ou promover o afastamento, o desentendimento e a confusão. Desde discussões sobre as melhores formas de se protegerem ‘Não toques em maçanetas! Lava as mãos durante 20 segundos! Deixa a roupa suja fora de casa!’ em combinação com ‘Estás a ser paranoico’. Até à dificuldade de criar espaços de comunicação e conexão ao mesmo tempo que se mantêm espaços de privacidade (há quem se esconda no guarda-roupa). A vida ficou em suspenso independentemente das condições. Imaginem quem tinha acabado uma relação amorosa? Não há como mudar de casa, ou mudar de vida. Uma suspensão que até poderia ser boa se fosse noutra altura. Ficar preso em casa com o ex-companheiro soa-me a premissa tonta para uma daquelas comédias românticas que Hollywood já fez.

As famílias, ainda assim, fazem malabarismos com a lida da casa, com os filhos, e com a produtividade que muitos ainda impõem, como se nada de especial estivesse a acontecer – é preciso manter a normalidade, é preciso manter a economia. Se, para alguns, este confinamento deu a oportunidade para respirar e repensar na vida, no sexo, nas relações, nos desejos e anseios, no mundo e no estado das coisas; para outros essa possibilidade não é assim tão óbvia. A casa e o isolamento podem não ser lugares de conforto, e estar ali suspenso, um pesadelo. Vale ficar de mau humor e espernear. Vale contar com a solidariedade dos outros para dar sentido ao desconforto. O isolamento é para quem pode, não consigo repetir vezes suficientes. Não consigo parar de pensar nos países onde a desigualdade é atroz e isto se mostra ainda com mais clareza. Esta pandemia traz o melhor e o pior de cada um de nós, ao mesmo tempo, sem dó nem piedade. Obriga-nos a uma adaptação a um contexto muito particular – finalmente percebendo que uma casa é tão complexa como tudo o resto.

15 Abr 2020

A falta que os preservativos fazem

[dropcap]A[/dropcap] infecção do momento está claramente a afectar várias indústrias. Na Malásia, a maior fábrica de preservativos fechou – onde 20% dos preservativos do mundo são produzidos. O Guardian já alertou para uma possível falta de preservativos, talvez numa altura de grande necessidade. Serão os preservativos importantes nesta pandemia? Uma pergunta muito pertinente para se falar de sexo, como sempre. Os preservativos parecem bastante descartáveis dado o cenário apocalíptico em que vivemos. Muitos dirão que há coisas mais importantes em que pensar.

Talvez ajude se olharmos para o direito ao prazer como um direito humano para justificar o contrário. Os preservativos (masculinos e femininos) são o único tipo de contraceptivo que previne uma gravidez indesejável e a transmissão de infecções sexualmente transmissíveis. Um bem com dupla função para casais heterossexuais em particular, mas igualmente importante para casais homossexuais que queiram sentir-se protegidos. Tudo bem que nesta altura de isolamento social haverá menos sexo casual ao vivo (deleitem-se com o sexo casual virtual, porque não?). E assim assume-se que os casais presos em casa poderão não precisar dos preservativos porque (1) para os casais heterossexuais existem também outras formas de contracepção e (2) o risco de IST’s já deve ter sido resolvido com testes para os casais que estão juntos há muito tempo.

Também podemos imaginar muitos outros cenários onde os preservativos ainda são necessários. Julgar que se pode contar com outras formas de contracepção no mercado pode ser um erro. Os contraceptivos hormonais já mostraram trazer efeitos secundários às vezes até bastante graves e há pessoas que escolhem não os usar. Os preservativos são dos poucos contraceptivos não hormonais do qual imensa gente depende para evitar uma gravidez indesejada. Também posso imaginar cenários de relações ainda verdes ou do surgimento de novas relações românticas que ainda precisam de sexo seguro. Se sair da nossa tendência etnocêntrica então, nos lugares com grandes taxas de transmissão de HIV, o preservativo é quase um bem tão essencial como a comida. A falta de preservativos seria catastrófica.

Mas de certeza que há gente que sugere a abstinência como a opção mais acertada, caso cheguemos a um cenário de falta de preservativos severa. Porque o sexo não é importante, dirão as vozes mais conservadoras. Mas o sexo nunca foi tão importante como agora. O sexo é uma ferramenta e um recurso (para quem consegue olhar para o sexo dessa forma). Em alturas de pandemia como esta, de incerteza e de medo, o sexo é uma forma de prazer e conexão – também podem chamar-lhe de meditação ou de exercício físico. O sexo é simples, barato (pode não sê-lo, mas é altura de reforçar esta opção) e promotor de bem-estar.

A conclusão é simples: os preservativos são importantes até numa altura de pandemia e a sua escassez deve ser evitada. Claro que temos que dar prioridade a outros bens e objectos que nos ajudam a lutar contra o vírus. Mas o sexo deve continuar lá a manter a nossa sanidade e os preservativos fazem parte dessa sanidade também. Por isso é que a fábrica na Malásia, entretanto, já retomou produção a 50% e uma outra fábrica na Tailândia voltou a abrir as portas (espero eu, com as condições de segurança desejadas). Se não o fizessem, chegaríamos a um ponto de diminuição na produção, e de grande procura, levando à inflação deste objecto singelo – e a segurança do sexo tem que ser garantida a toda a gente.

8 Abr 2020

Ficção do Sexo e do Vírus II

[dropcap]J[/dropcap]á há novas estórias de amor – fictícias e verídicas – em tempos de covid-19. Esta é mista. Gentes que contemplam pelas janelas dos seus apartamentos e casas, sonhando com o nervoso miudinho que fica na barriga quando vemos quem nos excita. Há quem veja uma dança da janela, uma rapariga de cabelos escuros ondulados a dançar ao som de uma banda indie rock qualquer.

A rapariga que dança começou agora um diário, o diário da pandemia. Também dança e canta, para espantar os males? Várias culturas ensinaram-lhe que cantar cura coisas, espanta outras. ‘Continuem com as vossas rotinas’, dizem uns, ‘aproveitem para descansar’, dizem outros. ‘É tempo de masturbação’, dizem todas as sexólogas na internet. Quanta confusão mental num espaço tão pequeno que é uma casa. Tantos problemas no mundo que se mostram nus em tão poucos metros quadrados. Se calhar o mundo nunca mais será o mesmo, ninguém sabe ao certo. Ela não é futuróloga e rapidamente deixa de pensar nisso. Ela pensa na redefinição do amor. Mudam-se as crenças, mudam-se as vontades, mudam-se os comportamentos. O isolamento é agora uma prova de amor. Ainda assim sente-se ligada a quem mais ama porque há modernices, e porque tem um caderno e uma caneta em casa. Escreve parvoíces e desenha infantilidades – um diário para se distrair com (e d)ela própria.

Alguém a viu de uma outra janela e apaixonou-se pela dança, pelo cabelo, por qualquer coisa que não sabe. O amor não acontece assim, mas a atracção, sim. Ela não faz ideia a quem pertence a silhueta por detrás da janela. Vive naquela casa há anos e nunca reparou que tinha a vista perfeita para uma rapariga de cabelos escuros ondulados. A vida pré-isolamento era mais atarefada. Agora está parada, com mais tempo para contemplar vidas e janelas. Talvez o isolamento tenha atiçado o tesão, como as forças opostas que constroem os nossos dilemas internos. ‘Quando sou obrigada a estar sozinha, mais me apetece estar com alguém’. Ela deixa um recado na janela, e espera que só ela repare. ‘Rapariga de cabelo escuro e ondulado que gosta de dançar à janela, queres jantar comigo?’. Desenha um arco-íris também, para não destoar das outras janelas. O jantar teria que ser reinventado, depois pensaria nos pormenores. Ela não costuma ser tão extrovertida, mas a visão catastrófica do mundo obrigava-a a arriscar. Esperou que o objecto do seu desejo respondesse positivamente, com uma mensagem na janela, também? Esperou mais um pouco. Enquanto esperava, imaginava cenários de enamoramento em tempos de pandemia. Não tinha medo da rejeição, a solidão já a acompanhava de uma maneira ou de outra. Continuou à espera de um qualquer sinal.

O amor é um alívio – tal como a esperança que nos motiva para pintar um arco-íris, colá-lo à janela e pedir que tudo fique bem. A incerteza é lixada, mas o amor ajuda a encará-la. O amor, que alimenta a solidariedade, empatia e esses clichés todos optimistas, precisa de um objecto, de uma concretização qualquer. Nesta invasão de medos activam-se formas de conexão virtual e mental. Não há formas certas ou erradas, há a redescoberta de uma forma diferente de se ser. Ainda não sei se a rapariga de cabelos escuros e ondulados reparou na mensagem, como é que irá responder, o que irá acontecer. A satisfação está na presença destas duas personagens que, sem uma pandemia, não seriam quem são.

1 Abr 2020

Ficção do sexo e do vírus

[dropcap]E[/dropcap]sta é altura de fazer ficção. A alienação fictícia é bem-vinda quando a realidade é dolorosa. Inventam-se estórias da história, tal como o Tarantino fez algumas vezes. Se se vivem dias difíceis temos a imaginação para torná-los diferentes. Se há alguém a gostar destes cenários onde vivemos e não anda com dificuldade em dar-lhes sentido, das duas uma: ou é um optimista ou é um sociopata.

Há quem julgue que este tempo possa ser usado na criação de grandes obras literárias, grandes projectos que nunca foram concretizados. Sobem-se expectativas de quem não percebe nada de criatividade. A criatividade artística, aquela que cria coisas bonitas e rentáveis, não é a única resposta para lidar com os dissabores da vida. Mas um pouco de parvoíce é bem-vinda. Parvoíce que faz com que uma escrita semanal sobre sexo possa contribuir para estórias virulentas fantásticas. Estórias de heróis e heroínas onde o mal é aniquilado por completo com o acto do sexo.

Era uma vez a corona que conhece a outra corona para fazer filhos e passarem o testemunho de destruição. O sexo é a arma da multiplicação, até com o vírus – que não fazem mesmo sexo, mas no mundo fictício tudo é possível. Depois há o sexo entre humanos, os fluidos que se trocam proporcionam as condições ideais para esta partilha virulenta também. O sexo não é uma arma de destruição, mas podia ser. E se o esperma fosse o melhor dos desinfetantes? E se a masturbação fosse a forma mais eficaz de fortalecer o sistema imunitário e combater o mal invisível? A masturbação que nos dizem fazer crescer pêlos nas mãos ou cegar, podia ser a solução para os problemas do mundo. Uma forma de produção de bem-estar, como já estou bem farta de pregar semanalmente e agora prego neste cenário de ficção.

Nesta fantasia mirabolante, o sexo, dentro de certas condições, seria a solução para a situação que vivemos. O corpo seria passível de invasão, mas estaria apetrechado de formas de luta, de criar barreiras e de tornar a vida do vírus difícil. A capacidade de nos transformarmos seria real. Teríamos uma fonte inesgotável de desinfetante – não adoram a ideia do esperma ter mais do que uma função do que fecundar óvulos? Homens andarem a ejacular por motivos de higiene não seria um cenário bonito. Seria o pesadelo para a luta do patriarcado. Nesta fantasia igualitária os corpos com vulvas podiam contribuir de forma igualmente eficaz, com os seus fluidos protectores e desinfectantes. O orgasmo também seria uma forma de protecção. O orgasmo emitiria radiações capazes de destruir as gotículas transmissoras do vírus, como um morcego com a sua capacidade ultra-sónica. Já que foi um morcego que trouxe o vírus de corona para o mundo humano, nós também contribuímos com a nossa capacidade quasi-morcega para nos desfazermos da praga que nos assola. A forma como sentimos o corpo e o mexemos também seria passível de todo o tipo de inovação. Pálpebras e membranas estariam disponíveis para tapar aquilo que não devia estar exposto.

O sexo desafiaria a tendência isolacionista que este vírus nos obrigou. Só é preciso criatividade para tornar o que nos desconforta em algo menos desconfortável. Criatividade que não precisa de se transformar numa grande peça de dramaturgia como insinuam que o Shakespeare fez. Usemo-la para a re-invenção nestes tempos que nos atiram ora para a preocupação, ora para o aborrecimento.

25 Mar 2020

Sexo (e outras coisas) em tempos de pandemia

[dropcap]O[/dropcap] mundo vive (oficialmente) uma pandemia. Especula-se o quão isto afectará as nossas vidas, as nossas estruturas institucionais e a nossa prática diária a curto, médio e a longo-prazo. Já há uns meses que a Ásia vive em isolamento, um estado de solidão que nos é tão anormal. Agora o epicentro está na Europa, com isolamentos auto-propostos ou recomendados pelo governo. A guerra contra o desconhecido está aí e não se sabe se teremos a estrutura para combatê-la.

O que sabemos é que esta luta necessita de uma orquestrada resposta que navega decisões de teor socio-político e pequenas práticas diárias individuais: como lavar as mãos ou sair de casa só quando estritamente necessário, com particular enfâse no isolamento e no distanciamento social. Mesmo que estas sejam medidas para salvaguardar a saúde física, a saúde mental precisa de cuidado também. A ansiedade colectiva e individual está a níveis catastróficos. O isolamento em nada contribui para minimizar esta ansiedade, nem à tendência de ficar obcecado com as notícias, na espera de actualizações e notificações. Ansiedade que tem alimentado notícias falsas, trocas de mensagens de voz pelo whatsapp falsas e outras actividades que têm deixado as pessoas alienadas pelas razões erradas. O impacto destes meses à saúde mental não é um infeliz efeito secundário, é um efeito que precisa de ser prevenido, acima de tudo. Há investigação feita que mostra que o isolamento contribui para stress pós-traumático, depressões e outros problemas emocionais.

As distracções, nestas alturas, são importantes para as pessoas desligarem-se dos cenários de medo que se montam de momento (principalmente quando ninguém sabe o fim desta situação atípica). Assim serão capazes de se distanciarem da ansiedade, em vez de vivê-la a todo o momento. O sexo é uma tão boa distracção como qualquer outra. E com isso há quem especule que haverá um baby-boom, tal como eu especulei anteriormente quando a epidemia era só do que se falava. Há quem também especule muitos divórcios, porque as famílias terão que ficar em casa, sem estímulos exteriores. De qualquer modo, haverá espaço e tempo para o sexo. Para quem está em casa com alguém com quem pode fazê-lo, e para quem está sozinho. A masturbação deverá ser importante durante estes tempos. Os seus benefícios de tratar o corpo e a mente são nos bem conhecidos: ajuda a relaxar, a melhorar o humor e a fortalecer o sistema imunitário. Mal não fará, especialmente em tempo de pandemia. Não é por acaso que o site da pornhub está a oferecer uma subscrição completa aos italianos que estão em isolamento. Um gesto solidário para quem precisa do escape do sexo. Aproveita-se este momento de impasse social para procurar novas fantasias, novos fetiches e novas experiências sexuais. Encomenda-se o brinquedo sexual que sempre se desejou, ou começa-se os exercícios vaginais que nunca encontraram a disciplina para ser implementados. Tanta coisa que pode ser (sexualmente) concretizada.

Procurar formas de distração em tempos de distanciamento social deve ser visto como um mecanismo de defesa que ajuda a equilibrar os níveis de ansiedade. Níveis que são inevitáveis, perante tanta incerteza. Distrações podem ser o sexo, vídeos de gatos, filmes ou séries. Este é um apelo ao prazer em tempos sombrios. O prazer que não é sinónimo de luxúria. O prazer como potenciador de bem-estar dentro das circunstâncias, e das limitações, em que vivemos.

18 Mar 2020

A protecção que o sexo virtual nos dá

[dropcap]Q[/dropcap]uem se preocupa com o futuro do sexo já previu um interesse desmesurado no sexo virtual. A premissa é de que o sexo real é difícil. Difícil porque necessita da gestão relacional e emocional entre pessoas. O sexo virtual salta esse passo, permitindo-o sem muitas preocupações ou cedências. No virtual concretizar-se-á o sexo de uma fantasia que não se conseguiria na realidade. Até para quem já tem parceiro, o sexo virtual vai ser sempre aliciante. Este não terá que ser o resultado de uma compreensão mútua, adaptação ou cedência. Este capacitará a pessoa a controlar absolutamente tudo. O envolvimento do corpo será mínimo, e, se existir, será mediado por apetrechos. Os algoritmos criarão figuras virtuais que irão responder da forma como a mente sexualizada deseja, sem grandes problemas. Estas inovações, em quantidades saudáveis, até são bastante boas para acordar a nossa libido.

Também há quem preveja que o sexo virtual possa ser uma realidade partilhada, como em jogos de role-play. Mais realistas e mais sexuais, as pessoas poderão ser personagens em universos paralelos e terem sexo. Aqui a questão da negociação também poderá estar presente. O resto estará protegido e pode ser alterado. Cara, sensação, corpo. Poderão escolher-se os corpos que nunca tivemos, e encontrar outros nas mesmas condições. O sexo, continuará a ter o seu ‘quê’ de facilidade. Estas personagens poderão desenvolver grande química por alguém, que se conhecessem na vida real, não teriam interesse absolutamente nenhum. Que tipo de reinvenção curiosa seria esta? Quão real é o não-real – será das perguntas mais difíceis para o futuro do sexo. Assim que estas práticas se tornarem mais comuns, vai ser preciso discutir o virtual no real, onde as consequências da vida são muito claras, ao contrário destes universos onde seriam facilmente contestadas e alteradas. Como é que os dois universos serão capazes de co-existir? Será que o sexo virtual pode ser considerado sexo verdadeiro, de alguma forma?

O sexo virtual e a sua facilidade escondem-nos de medos que são muito legítimos. Mas mantê-los escondidos em nada contribui às nossas individualidades e muito menos às sociedades em que vivemos. Já todos entenderam a importância central do sexo nas nossas vidas. Não é por acaso que a indústria do sexo é das mais prolíficas e estas inovações não param de sair. A procura incessante por estas formas protectoras de sexo talvez sinalizem o inerente medo de errar – de perceber que não existem encontros sexuais perfeitos (como a ficção gosta de insinuar que existem). Talvez normalizando esse risco poder-se-á ter uma atitude mais progressiva. Tal como o vício da pornografia, se consumido em excesso, o sexo virtual pode contribuir para a sua banalidade. Será necessário aferir os limites saudáveis. Serão necessários consumidores capazes de aferir as vantagens e as desvantagens dos universos paralelos.

O sexo virtual auxilia aqueles que não querem enfrentar o sexo sem mediadores, e os que são capazes do mesmo, mas que querem experimentar coisas diferentes nas suas vidas. No sexo, raramente existem práticas inerentemente más. Mas a falta de reflexividade sobre o sexo e de como nos sentimos sobre ele impossibilita o sentido critico que nos ajuda a navegar estas vidas sexuais futuras.

12 Mar 2020

A crise da fertilidade masculina

[dropcap]N[/dropcap]os últimos cinquenta anos os homens ocidentais diminuíram a sua contagem de esperma em 50%. Há quem encare isto com mais alarmismo do que outros. Pode ser o início de um futuro distópico de valores de fertilidade estrondosamente baixos, o início da extinção humana ou a justificação para regimes autoritários se apoderarem dos corpos, como nas estórias da Handmaid’s Tale.

Independentemente dos potenciais efeitos, vivemos uma crise silenciosa da fertilidade masculina. Há pouca investigação científica sobre o assunto e há pouca divulgação nos canais de informação populares. O declínio generalizado do esperma viável no mundo ocidental corre sérios riscos de ser levado a sério quando for tarde demais. Não sabemos ao que se deve à pouca atenção dada ao tema. Não há como não fantasiar as razões para este silêncio.

A culpabilização para uma fertilidade fraca normalmente é de quem a concebe dentro de si, de quem tem úteros e ovários. Esta premissa tem dificultado olhar para o outro elemento da díade na concepção. As pessoas com úteros e óvulos são tradicionalmente responsabilizadas para procriar e são criticadas se não o fizerem. Que pessoa tida como mulher já não foi questionada acerca da sua vontade, e capacidade, para trazer bebés a este mundo? Que pessoa com pénis e testículos já foi interrogada do mesmo? O facto de que se assuma a parentalidade como uma questão mais feminina do que masculina tende a recusar as dinâmicas emocionais envolvidas na procriação também. O declínio na fertilidade masculina pode não ser o grande problema social e de sobrevivência da espécie como alguns insinuam, mas pode ser uma desilusão pessoal.

As pessoas com pénis podem estar a contar participar no mundo dessa forma: assumir-se como pais, contribuir para a formação de um ser, trazer algum pedaço dos seus genes ao mundo. Não ver realizada a expectativa de ter uma criança pode ser muito difícil.

Se nos focarmos nestas expectativas individuais, ainda mais frustrante é saber que nada tem sido feito para perceber como é que esta contagem decrescente de esperma tem acontecido – nem como pode ser evitada.

Talvez tenham sido estilos de vida, roupas interiores (e não só) progressivamente mais justas. A toxicidade não declarada dos produtos que consumimos e com os quais lidamos, ou o consumo de álcool e de drogas ilícitas. Ninguém sabe. Há algo na vida urbana, desenvolvida e híper-conectada que tem contribuído para os espermatozoides se produzirem menos, ou que sejam produzidos com pouca mobilidade.

O facto de se ignorar uma possível crise é um indicador, entre muitos, de dinâmicas enviesadas da fertilidade e do género. O não apoio das estruturas sociais e institucionais para a divulgar e a perceber só mostra que não é (socialmente) expectável que as pessoas com pénis se importem. Os homens também querem ser pais, ainda que não existam representações que o sugiram – não da mesma forma como representações sugerem a maternidade nas mulheres. Este tema também pode continuar a ser tabu porque contesta a hegemonia de uma tal masculinidade impossível e exagerada. A tal que assume que não há espaço para a fragilidade, o desapontamento e até o cuidado. Discutir esta crise – e reunir esforços para resolvê-la – é só mais um passo para desconstruir masculinidades e feminilidades que já não se querem inflexíveis. Contestar estes pressupostos, fazendo uso dos mecanismos biológicos que os trouxeram à luz, é uma boa maneira. Os homens no ocidente não estão a conseguir procriar como antigamente, e não deveria ser surpresa interessarmo-nos sobre isso.

26 Fev 2020

Dia-V

[dropcap]N[/dropcap]os Estados Unidos, o dia de São Valentim de 2020 foi o mais consumista de todos com um gasto de 27.4 mil milhões de dólares. Houve mais jantares, mais presentes, mais dinheiro gasto. Mais amor consumista que se espalhou. Amor é amor. Mas o Dia V pode referir-se a outras coisas.

No Dia-V o mundo também se chateia com a violência contra as mulheres e raparigas. Assédio, violação e mutilação genital feminina. No dia do amor e dos namorados aproveita-se para falar de coisas sérias. E há quem estique a discussão para a violência no namoro em particular, já que é o dia de se celebrar a relação amorosa. O amor é tão inequivocamente claro nas campanhas de marketing. Ninguém imaginaria que com ele também vem outro pacote de emoções e dificuldades que são difíceis de ser identificadas. Por vezes, e infelizmente, o amor é confundido com formas de violência, abuso e controlo. Ainda há pouco tempo decidi ver uma série romântica chinesa onde o amor obsessivo e controlador era de alguma forma legitimado. Um homem cheio de dinheiro faz uma miúda acreditar que ela tem leucemia e que ele é o único dador compatível para se aproximarem. De alguma forma isto foi entendido – depois de alguma zanga – como um gesto romântico. O amor é assim, faz-nos fazer coisas incompreensíveis, como às vezes nos querem fazer acreditar: ‘sempre para o bem do outro’. Amor bem-intencionado, era como se chamava a série em inglês.

As estatísticas sobre a violência no namoro continuam más. A UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) em Portugal fez um inquérito onde 67% dos inquiridos naturalizavam alguma forma de violência no namoro e também onde 58% identificou já ter sofrido alguma forma de abuso. É muito. E como é que se identifica o abuso? Há o erro de pensar que as relações de antigamente é que estavam cheias destas confusões, de papéis de género ultrapassados, do tapa na cara quando o jantar não está pronto a tempo e horas. O amor destas gentes jovens e emancipadas pode não ser ultrapassado, mas carrega alguns legados que são traduzidos para as práticas sociais contemporâneas. Um novo milénio de telemóveis e híper-conectividade que em vez de libertar criou outras formas sofisticadas de controlo e de abuso. Sempre com o pretexto que o amor é bem-intencionado.

Há quem entenda o Dia-V como o dia da vagina, se quiserem ainda o tom reivindicativo, mas menos violento. Um dia para o amor próprio para quem tem vaginas (que não precisa de ser necessariamente uma mulher, já cobrimos isso) e para quem não tem e que se identifica com a causa. Todas as vaginas precisam de uma dedicada atenção se quiserem atingir o seu potencial máximo. Vaginas de dinâmicas complicadas, onde é ainda difícil falar do prazer e de saúde. Onde se possa discutir as menstruações porque são um símbolo de transformação corporal que muitos preferem ignorar (em alguns países do mundo pessoas a menstruar têm que ser isoladas de tudo). Tantos direitos ainda por serem garantidos por esse mundo de gentes com vaginas menstruantes.

Os dias especiais podem ser apropriados para re-significações importantes. No dia catorze de fevereiro, mergulhar na loucura de honrar namoros perfeitos com jantares perfeitos em restaurantes perfeitos é tão antiquado. Celebrar o amor, claro, e discutir abertamente as suas dinâmicas que vão desde à forma como se entende o sexo e o género às suas relações de poder. Discutir o amor até que nos sintamos confortáveis para praticá-lo nas suas formas relacionais, sociais e políticas.

19 Fev 2020

Bolas Ben-Wa

[dropcap]A[/dropcap]s bolas ben-wa são bolas vaginais que ajudam a fortalecer o pavilhão pélvico. Há muitos outros nomes para este utensílio à saúde sexual, como bolas chinesas, bolas de gueixas, bolas do amor, duotones, ou simplesmente bolas vaginais. Nas minhas pesquisas não consegui chegar a uma história muito aprofundada de onde estas bolas vieram e para que propósito. A versão mais citada é que foram inventadas no Japão, por volta de 500 DC, para aumentar o prazer dos homens que penetravam vaginas. Só depois é que se começou a conjecturar outras vantagens. Bolas que podem ser de vários tipos, feitios e pesos.

Quando as bolas já eram comuns no oriente, no mundo ocidental começou-se a falar nos exercícios Kegel no final dos anos 40, desenvolvidos para o tratamento de perdas urinárias no pós-parto, provocadas pela pouca tonificação muscular. O músculo é o pubococcígeo, o chão que sustenta todos os órgãos da zona, como o útero e a bexiga. O mesmo músculo que as bolas dizem tonificar. As pessoas que têm úteros passam por várias transformações ao longo do tempo que podem afectar o seu tónus. Mas isso não quer dizer que o fortalecimento do pubococcígeo seja só recomendado para quem já passou por momentos desafiantes, ou para quem teve um prolapso uterino, ou sofre de incontinência urinária. O fortalecimento muscular serve a todos os úteros e bexigas que se querem melhor apoiados e sentir mais prazer – e que tenham vontade de exercitar músculos que não se exercitam no ginásio.

As bolas são só um auxiliador para o programa de tonificação. Primeiro que tudo, é preciso comprar o apetrecho mais adequado a cada um. Nem todos os chamados sex toys são feitos com os materiais mais simpáticos para o corpo, nem mais higiénicos. É importante evitar materiais porosos para que não contribuam para o desenvolvimento de culturas bacterianas. O silicone é um bom material, de limpeza fácil.

Também há bolas de vários tamanhos ou pesos para diferentes níveis de tonificação. A recomendação é que se comece pelos mais leves e se vá progredindo para os mais pesados.

Ao inserir as bolas dentro da vagina (com ajuda de lubrificante) e se proceder com as suas rotinas diárias, o músculo irá naturalmente reagir às vibrações das bolas – que fará com que contraia ligeiramente e que se tonifique. O melhor será caminhar, correr, andar de um lado para outro enquanto as bolas estão inseridas – não mais do que meia-hora por dia. Nas primeiras vezes sugere-se experimentar em casa, caso a vagina ainda não seja capaz de segurar as bolas convenientemente e estas caírem pelas pernas abaixo (é muito normal se isso acontecer, com tempo e persistência isso irá mudar). Vários especialistas sugerem práticas diferentes, com o cuidado para não forçar em demasia. O mais importante é experimentar, analisar o nível de conforto, e fazê-lo com alguma regularidade. Há quem ainda sugira contracções particulares quando as bolas estão inseridas, para intensificar o exercício. Não faltam por aí indicações.

Não há uma clara evidência científica que as bolas são a melhor opção do que os clássicos exercícios Kegel. As bolas são um método mais ‘antigo’ que usa pesos, enquanto que os Kegel são um método sem a inserção de objectos na vagina. Ainda assim, um e outro têm sido recomendados pelas prováveis vantagens à saúde – na prevenção e tratamento. São os testemunhos individuais que ajudam a corroborar as potenciais vantagens – que vão para além do estado de saúde físico, claro. Não é por acaso que as bolas ben-wa são publicitadas como facilitadoras de orgasmos. Pavilhões pélvicos felizes, também provocam sexo feliz.

12 Fev 2020

Massagem nos genitais

[dropcap]O[/dropcap] sexo tântrico está mais na moda do nunca. Talvez porque as pessoas precisem de encontrar a sua criatividade sexual em algum lugar, e a tradição do sexo tântrico é tão boa como qualquer outra. Uma das actividades desta tradição milenar são as massagens nos genitais. A técnica é tão simples que se torna complexa. Ao contrário do que muitos acreditam, estas massagens não são uma nova forma de nomear a masturbação. A massagem na yoni e no lingam – os nomes em sânscrito para vagina e pénis – são formas de ligação sensual, sensorial, física e espiritual. A massagem não deve ser sexualizada, mas não é de admirar se assim se transformar.

Os ensinamentos do sexo tântrico exploram o relaxamento com o objectivo de criar uma ligação com o corpo. Por isso é que é importante ter a mesma atitude mental tal como se fosse uma massagem às costas. Só que esta é uma massagem centrada nos genitais, e em outras zonas circundantes e erógenas. A barriga, as coxas ou as ancas fazem parte do pacote. Estas podem ser auto-administradas ou administradas por outros.

Ambas as formas permitem a sensualidade do toque – despindo-se das expectativas clássicas e heteronormativas da masturbação ou do sexo, de algum tipo de penetração ou de um ‘final feliz’ com o orgasmo. A forma como a enfase está no processo da massagem e não na sexualidade, pode, na verdade, resultar em imenso prazer e num dos orgasmos mais intensos de sempre. É uma lógica complicada de prioridades, mas é assim que o nosso sexo funciona. A pressão para a performance assim ou assada não existe nestas massagens. A ligação com o corpo, com as sensações, e com o deixar-se levar pelo toque é que cria a disponibilidade para o orgasmo.

Estas massagens podem fazer parte do ritual de bem-estar individual e até colectivo – trabalhando na relação de seres e de corpos. Apesar de não existirem estudos que confirmem muitas das assumpções desta tradição, esta diz-se ter muitas vantagens para a saúde física dos genitais e para a saúde emocional. Da mesma forma que acumulamos tensão nos ombros, também se acumulam tensões, problemas e desafios nos genitais, e que se estendem pelo corpo todo. Diz quem pratica, que as massagens ajudam a manter a saúde do pavilhão pélvico, a compreender melhor a libido de cada um, a tratar casos de ejaculação precoce ou de impotência. Apesar de não existir evidência científica, não vejo que mal faria em experimentar e, quiçá, incluir estas massagens na rotina.

A recomendação é que as pessoas explorem à vontade, e que puxem pela criatividade nas formas de estimulação, fricção e toque (acompanhado por algumas técnicas de respiração). Cada um poderá explorar de acordo com o que lhe mais agradar, e também encontrarão inspiração nos artigos e vídeos alusivos ao tema. A inovação vem da re-interpretação dos genitais, não só como órgãos de sexo, mas como órgãos de sensibilidade. Fujam da tendência de massajar o clitóris de forma circular, ou de estimular o pénis para cima e para baixo. Lubrificantes ou óleos de massagem são extremamente importantes, e convém procurar os produtos com os quais se sintam confortáveis. Não ter medo de guardar um momento para explorar estas massagens quando se está sozinho, com o ambiente preparado para o efeito – velas, óleos ou música. E quando a dois, deixar massajar e ser massajado nestas outras formas de toque, permitindo uma nova relação de confiança e prazer.

5 Fev 2020

Amor em tempos de epidemia

[dropcap]F[/dropcap]ace uma epidemia ninguém deve ter muita vontade de trocar fluidos. Numa altura em que até o ar não deve ser demasiado partilhado, partilhar a intimidade dos fluidos corporais torna-se num risco. Estive estes dias em Nova Iorque onde vi uma peça que explorava extensivamente o fellatio, e esperei que me oferecesse material suficiente para escrever sobre o sexo oral. Mas o coronavírus começou a assombrar-nos e não consigo parar de pensar no assunto. Obsessivamente. Nova Iorque é fabulosa, mas o coronavírus é assustador.

Encontrar o amor ou simplesmente mantê-lo vai ser difícil durante estes tempos, que nem sabemos quão longos serão. Tempos de muita vulnerabilidade que esperariam que o toque e o conforto dos outros nos salvassem de alguma coisa, mas é, na verdade, só mais um facilitador. Um perigo que continua desconhecido nas suas formas e feitios. Este mal tem como único propósito sobreviver de corpo em corpo. Corpos que estarão mais preparados para lidar com o choque que este vírus provoca do que outros. Corpos que poderão estar mais em contacto com o exterior do que outros.

Uma forma de lidar com esta crise é o isolamento, isolar pessoas para isolar o vírus. E assim a epidemia obriga a contrariar aquilo que nos é mais humano: estar com os outros. Milhares de pessoas estão presas nas suas casas sem saber o que esperar, ora por obrigação ora por preocupação. Só que o isolamento não nos é natural. Não contribui para o conforto, como o toque de alguém que nos é próximo. Será preciso amar à distância, manter os metros e até os quilómetros para fugir das tosses e dos ares que contaminam. Andar por ruas vazias, ou andar com medo das ruas cheias de gente. As pessoas tornaram-se num inimigo sem nome.

Os inerentes problemas sociais e políticos dos nossos sistemas vêm à tona, com estas crises. Nota-se que ainda estamos longe de perceber a forma como entendemos as pessoas, a medicina, as liberdades individuais e colectivas, o pânico e o medo – e de como se entende o poder. Em contextos de relações interpessoais (amorosas) por várias vezes explorei a comunicação na resolução de desencontros de intimidades. Sem surpresas, a solução de problemas a nível macro-social precisa de comunicação. As estruturas de poder só serão capacitadoras e eficazes se houver comunicação humilde, transparente e clara – que não seja alarmante nem fantasiosa. Parece fácil, mas é tão difícil. Neste processo de aprendizagem, que tem ocorrido ao longo dos séculos, por muitos continentes de várias epidemias, tenho sempre a sensação que esta aprendizagem dura o seu tempo, à custa de muitas vidas. Não consigo desligar dos micro-cosmos de emoções de quem se sente obrigado a afastar-se da vida normal por um vírus que ataca ainda no seu estado silencioso – e da desconfiança pelas estruturas que deveriam salvar as pessoas de situações de medo e incerteza.

Pelo menos já vi que se faz uso do humor negro pelas redes sociais chinesas. As pessoas que se protegem de formas criativas para não se perder o que nos é mais humano, os jogos, a diversão, a interação com os outros. As tecnologias que nos aproximam e que oferecem algum conforto. O medo que talvez nos faça ainda mais sedentos por toque e atenção, como se o amanhã pudesse ser a nossa sentença de doença (ou de morte). O assunto é tão sério que aparvalhar é só mais um mecanismo de defesa. ‘Talvez daqui a 9 meses haja um baby boom!’, gozava uma amiga. Entretanto, tenta-se esperar, e agir, para que tudo corra bem.

3 Fev 2020

14 Orgasmos

[dropcap]A[/dropcap]s formas como as vaginas podem atingir o orgasmo são das questões mais discutidas nas revistas cor-de-rosa. Na pornografia continua a ser mal representada, na educação sexual continua a não ser explicada, e ninguém parece insistir numa conversa bem-informada de orgasmos, e das vaginas, em particular.

Acontece que os orgasmos para os detentores de pénis são bem mais alcançáveis do que para os quem têm vaginas. Enquanto que a penetração é o caminho preferencial para o orgasmo do pénis, o mesmo não se aplica para as vaginas. A hegemonia cultural do sexo obcecado com a penetração é problemática porque também contribui para as desigualdades no prazer. Ao contrário do que as revistas cor-de-rosa sugerem – a heteronormatividade da penetração não traz, necessariamente, o orgasmo. Ele não vai acontecer só porque ainda não se achou a posição correcta. Na verdade, a penetração é só uma entre catorze formas possíveis para chegar ao orgasmo e as nossas crenças contemporâneas limitam esta descoberta. Parece que nos diz que o prazer do orgasmo é um direito para certos corpos e não para outros, e os outros treze tipos de orgasmos permanecem invisíveis. Há vaginas que se resignaram a estas falsas limitações porque nunca se aperceberam deste cardápio tão variado.

Tudo começa no clítoris, o único órgão no corpo humano que se dedica exclusivamente ao prazer. Um órgão muito maior do que o botãozinho que se consegue observar pela vulva. O seu formato assemelha-se a um meio arco interior, onde só uma pequena parte é que se encontra à descoberta. Para a teoria do orgasmo é importante perceber que não existem dicotomias claras entre orgasmos clitorianos e todos os outros. O clítoris pode ser estimulado através da fricção da sua parte descoberta e não só (o mito do ponto G existe porque há certos tipos de penetração que o conseguem envolver). Depois há o corpo e as suas partes erotizadas que ajudam neste processo. Há quem tenha tido um orgasmo pelos mamilos, pela boca ou pelo ânus. Há quem até se venha com o poder da mente. O que só prova que o orgasmo precisa de corpo, mas também precisa de estados mentais particulares para se alcançar. Se, durante uma actividade sexualizada, se estiver a pensar no que é preciso fazer no dia seguinte, não há dica, posição, ou estimulação que salve o orgasmo. O sexo é tão complexo quanto as suas muitas camadas de (des)entendimento. Os factores facilitadores para as vaginas se virem é tanto sociocultural como corporal. A obsessão com corpos magros, bonitos ou perfeitos, complicam o estado de disponibilidade que é necessária para o prazer. Para se ter um orgasmo é preciso sentir-se merecedor de um. É preciso sentir o conforto do corpo que se apresenta nu a outros e aceitar que também é uma fonte de desejo – independentemente das estórias que se ouvem e da repressão sexual que ainda hoje se sente.

A conclusão que existe um menu de catorze orgasmos por onde escolher (apesar de alguns deles também se aplicarem ao pénis) foi feita pela Lucy-Anne Holmes, no seu recente livro Don’t hold my head down. Não sou grande crente de que todas as vaginas consigam concretizar todos estes tipos. Para cada vagina será necessário explorar as suas formas de conforto e expressão. Pelo menos é um bom número para convencê-las que a exploração vale a pena. São catorze formas que incentivam a masturbação, a penetração, o toque de boca, de mãos e de todo o corpo. Discutir o orgasmo torna-o numa possibilidade real de auto- e alter- descoberta no sexo – que também põe em causa a visão orgasmo-cêntrica na partilha de intimidades, quando ainda é causa para pressão na sua performance. O orgasmo pode não ser o mais importante no sexo, mas para chegar aí precisa que todos os genitais consigam ter acesso a ele de igual forma.

22 Jan 2020

O sexo gosta do oculto

[dropcap]O[/dropcap] lado inocente e puro desta humanidade mostrou-se não ter espaço para o sexo. O sexo é diabólico e veste-se de vermelho, a cor do pecado, e o inferno está cheio de fornicadores que se regozijam com os corpos nus de prazeres incompreensíveis. A dicotomia do bem e do mal – de uma história já muito antiga – reforça a ligação íntima entre o sexo, o oculto e as suas bruxas diabólicas. Mulheres que sabiam demais para o seu próprio bem – da cura, do cuidado e do prazer. Ainda que a bíblia não fale explicitamente sobre a sexualidade, o sexo ainda perpetua uma rigidez estupidamente simples com anos de tradição religiosa. Foram estas as ideias que levaram a queimar mulheres vivas na fogueira. E o sexo alimentou-se da premissa de que há algo de errado em saber mais sobre sexo.

As bruxas mantiveram-se, até de forma bem literal. Em tempos em que o sexo já é mais banal e menos demoníaco, o sexo continua a adorar ultrapassar os limites do razoável – dentro e fora de subjectividades.

Há, por exemplo, a ‘magia sexual’ que é a arte de utilizar a energia sexual para lançar feitiços durante a lua cheia, ou noutras luas que achem relevantes. A prática passa por ouvir a música que desperta erotismo necessário, acender uma vela, masturbar com o auxílio de um dildo de cristal (ou qualquer outro dildo), lançar um feitiço com o poder do orgasmo e esperar os resultados. As bruxas contemporâneas são versadas nestas práticas e partilham a sua sabedoria pelos canais de informação comuns – para os curiosos que queiram saber mais sobre sexual magic ou magick.

Eu diria até que no lado oculto do sexo explora-se bem mais do que a magia. Vejo-o como a plataforma onde se desafia a vergonha e a humilhação do prazer. Os fetiches, e tantas outras fantasias, vivem do oculto, do desconhecido e do incompreensível. Vão além do sexo heterossexual de fazer bebés (a única forma aceitável de fazer sexo, aos olhos de muitos) e encontram-se na criatividade, no inexplorado. Aliás, não é por acaso que os fetiches e as práticas mais kinky fazem uso de apetrechos que poderiam ser de bruxas ou de agentes do mal. O látex preto, o chicote, as botas altas e os corpetes completam a representação do lado ‘negro’. O sexo adora o imaginário do dominador e do dominado, e para muitos, até da vergonha e da humilhação. Estas dinâmicas existem para contestar quem diz que o sexo deve ser assim ou assado, para contestar os mecanismos de opressão do sexo, fazendo uso deles mesmos.

O sexo que gosta do oculto poderia ser só mais uma confirmação que que é no oculto que ele deve permanecer. Mas a proposta é de que haja reinterpretação de conceitos e práticas. O sexo no oculto e a magia do sexo é só mais uma desculpa, como tantas outras, para forçarmo-nos a olhar o sexo dentro e fora das nossas relações, das nossas subjectividades e das nossas expectativas. O voyeur e o exibicionista gozam com a possibilidade de fazer o que é errado. O senso comum de que o fruto proibido é o mais apetecido é uma explicação limitada, mas ainda importante, para algum dos padrões do sexo – os limites existem para serem quebrados e contestados. O oculto nasce da forma como se vê o passado e a nossa contemporaneidade e do que, deliberadamente ou não, deixámos por explorar e escondido. Os persistentes tabus do sexo são o combustível para a reinvenção e exploração. Se o sexo gosta do oculto, nós também vamos gostar.

15 Jan 2020

A vagina precisa de um museu

[dropcap]N[/dropcap]esta nova década, a vagina precisa de um museu. As vaginas sempre foram muito mal compreendidas, e é preciso esclarecer as estórias mal contadas pelas quais as vaginas vivem e, infelizmente, ainda sobrevivem. Os museus têm o dever pedagógico de preencher os espaços do imaginário histórico-social que estão mal preenchidos. Em Londres, aparentemente, tal museu existe. Um espaço de inspiração, pensei eu. Um espaço de verdadeira compreensão, pensei eu.

Só que o museu da vagina não é o museu da vagina como se quer. Grandioso, extenso, artístico, sensorial e de grande profundidade. É um pequeníssimo espaço na zona mais comercial da cidade, com uns painéis informativos – engraçados e úteis, mas simples – e uma loja anexada estilo ode da vagina: com brincos, colares ou decorações de natal inspirados no formato da vulva. Se numa cidade como Londres – que se diz sexualmente progressiva – não encontramos o museu da vagina como deve ser, não sei onde poderemos encontrá-lo. A esperança é de que este projecto se estenda para outras formas maiores – e que este seja só um começo.

Se perguntarem a quem anda com uma vagina por aí, não faltam ideias para a expressar uma história de repressão vaginal de séculos, ainda actual e ainda pertinente. O museu da vagina mostraria as várias realidades da vagina. Os mitos que persistem porque existiram décadas anteriores que os justificassem. Uma história de violência ginecológica, de abortos realizados em casas duvidosas por enfermeiras que talvez soubessem o que estavam a fazer. Uma história onde o prazer nunca foi entendido como legítimo ou verdadeiro – o prazer da vagina, claro está. A contracepção como a rainha da emancipação das vaginas, da libertação da gravidez que o prazer por vezes implica. Mostrar-se-ia como a vagina se tornou detentora de direitos ao prazer. Como se lhe soltassem as amarras da religião, do casamento, ou dos ideais conservadores de uma maneira geral. Mas não quer dizer que tivessem deixado de existir por completo. O museu serviria esse propósito de reflexão, de onde as vaginas vieram e para onde querem ir. Para além da educação básica: que a coca-cola não é, nem nunca foi, um espermicida (não a ponham dentro da vagina!); que é normal as cuecas ficaram manchadas com corrimento; que os produtos de higiene íntima proliferam da pouca consciência dos cheiros e lubrificações vaginais. Um lugar onde se pusesse em causa os conceitos de virgindade e do que é o sexo. Mostraria as vítimas e as heroínas das vaginas guerreiras.

No museu da vagina encontraríamos desejos para a vagina da nova década. Faz tanto sentido como o museu do sexo, o museu do pénis ou o museu queer. Precisamos é de museus que falem do sexo, e da história do sexo para desconstruir a tendência essencialista de que o sexo tem dicotomias redutoras. A heterogeneidade do sexo e dos seus prazeres terá que ser celebrada de alguma forma. Com uma parede de vulvas e as suas múltiplas formas e assim mostrar vaginas felizes, bem-informadas e capazes de se entenderem – com os seus ciclos, as suas menstruações; a naturalidade do sangue que ainda é complicada e incompreendida.

Desejos de prazer que implicam tantas formas de sexo, na nova década que é para as vaginas e para um sexo que é simples e complexo, nestas coreografias de género, desejo, educação, intimidade e possibilidade para abertura.

8 Jan 2020

Disponível para amar

[dropcap]O[/dropcap] amor, numa perspectiva mais madura e complexa, depende de pessoas disponíveis para amar. Há quem esteja mais ou menos disponível para mergulhar nesta confusão. O amor como lugar de encontro de fragilidades – confuso e de difícil gestão.

Aprender a vincular desta forma será, certamente, um processo individual, mas as estruturas culturais parecem não ajudar a oferecer uma visão realista da complexidade deste processo. Como em tudo, na verdade. Há a tendência de julgar que o amor simplesmente ‘acontece’ como uma seta de cupido que nos ataca sem aviso; ou que o amor é para sempre e incondicional, independentemente de quem somos, de como estamos e de como interagimos. O amor está cheio de mitos que dificultam a consciência do seu potencial disruptivo.

O mito do amor como acontecimento mágico tende a gerar muita desilusão. Isto porque existem confusões conceptuais das quais o amor, a paixão, o sexo e o tesão fazem parte. Não que seja necessário definir cada um destes domínios ao milímetro, mas é importante perceber que as sensações que o corpo e a mente sentem vêm de muitos lugares e estão em constante sobreposição. Perceber o amor como um acto de partilha e de ligação é quase um trabalho a tempo inteiro. Este não aparece (somente) como uma reacção fisiológica às circunstâncias à nossa volta. Necessita de trabalho amoroso – e reflexividade – que nem todos têm disponibilidade para fazê-lo.

O mito do amor incondicional é daqueles também bem persistentes. Quando assentamos com um parceiro romântico esperamos que o amor seja uma ligação duradoura e incontestável. Tenta-se usar essa relação como uma rede de segurança caso tenhamos uma queda. Uma queda de qualquer tipo, emocional ou física – porque sabe-se o quanto precisamos dos outros para a nossa sobrevivência. A fantasia é de que as pessoas nos podem amar sem condições ou exigências. Simplesmente. O mais próximo que se está do amor incondicional acontece quando somos bebés ou crianças. Aí por muito (ou pouco) que façamos, os nossos pais amam-nos sem qualquer expectativa. Mesmo que o bebé suje tudo, não interaja muito, não fale ou satisfaça expectativas mais sofisticadas, o bebé simplesmente existe para ser cuidado e amado. Aliás, até mesmo nessas condições, o amor incondicional não é garantido, como se sabe na quantidade de traumas de infância que perseguem muitos até à idade adulta. É desse lugar que depois se procura outro tipo de vinculação. O outro, com os seus medos e desejos, nunca nos pode garantir disponibilidade total às necessidades (e vice-versa). O amor incondicional precisa de ser redefinido para permitir que existam momentos fortes de desencontro que podem não o pôr em causa. Mas para fazê-lo é preciso disponibilidade para lidar com muita confusão, e muita frustração também.

É difícil explicar o que a disponibilidade para amar pode querer dizer para além de que é a condição necessária para encontrar amor nos outros e conseguir mantê-lo ao longo do tempo. Mesmo que o amor se transforme em outras formas de expressão. A disponibilidade a que me refiro não se limita a uma decisão instrumental de que ‘agora estou pronta/o para uma relação’. Trata-se da disponibilidade de cuidar e permitir ser cuidado, e poder estar disponível para mexer com o que aflige e satisfaz. O amor é construído no espaço do desencontro entre humanos, através de pontes e formas de comunicação ao longo do tempo. Um trabalho emocional, por vezes, muito intenso. Daí que a disponibilidade seja muito importante, para garantir que não nos perdemos na intensidade de que o amor nem sempre é aquilo que esperamos.

18 Dez 2019

Guia dos sexos

[dropcap]N[/dropcap]inguém escapa ao sexo. Pensamos e agimos com a consciência que o sexo está por aí, pronto para gozar ou por ser gozado – tantos sexos. Essas fontes inesgotáveis de ideias, apetites e desejos. Não será surpresa que há lugares mais criativos do que outros. Nas grandes metrópoles por esse mundo fora, onde a diversidade fervilha por todas as direcções, o sexo floresce com esplendor. Uma cidade como Londres, por exemplo, tem a oferta mais impressionante de experiências sexuais. Até porque o sexo fora de casa não existe só em bordeis, são centenas de espaços de expressão criativa sexual.

Mas antes de explorar o mundo do sexo lá fora, primeiro temos que responder à pergunta do que é que realmente gostamos. Uma pergunta que muitos de nós não tem a paciência de se perguntar. As fantasias sexuais ou os apetites particulares não nos aparecem só como impulsos inexplicáveis. A disponibilidade para fantasiar e a masturbação produzem as condições necessárias para apanhar o barco da exploração sexual também. Essa exploração, que a maior parte das vezes acontece individualmente, pode ser acompanhada por imensos brinquedos sexuais. Dildos de vários tamanhos, para quem gosta de penetração, varinhas ‘mágicas’ para quem gosta de estimulação do clítoris ou uma tampinha anal para os iniciados e já praticantes na exploração anal.

Depois desta exploração se tornar hábito – a masturbação não produz epifanias sexuais instantâneas, é mais uma prática de auto-cuidado que deve ser estimulada ao longo da vida, com ou sem parceiro sexual (porque não são experiências mutuamente exclusivas) – é que a nossa cabeça começa a explodir de ideias. Ideias que podem exigir mais ou menos recursos porque, infelizmente, as experiências e acessórios sexuais não são para todas as carteiras. Abrimos assim a possibilidade de estarmos atentos para novas formas de sexo. Fetiches são um bom começo, por exemplo. Ao reconhecermo-los torna-se mais fácil encontrar outras mentes que partilhem dos mesmos prazeres, e a internet é uma óptima forma de os juntar. Depois, claro, de certeza que existirão eventos que estimulam a concretização de fantasias. O BDSM aglomera um conjunto de práticas e fetiches que torna mais fácil identificar uma comunidade de gentes que partilham o mesmo fascínio por jogos de submissão e dominação. Pelo que tenho visto, muitas actividades sexuais urbanas são desta natureza. Há festas e speed-dating para amantes do BDSM, há a possibilidade de contratar uma dominatrix na vossa cidade de residência para satisfazer os fetiches mais variados: chuvas douradas, para os que gostam de praticar desportos aquáticos (é mesmo esse o termo) até chuvas castanhas, que não é preciso especificar do que se trata.

Depois também há outras actividades que se cruzam com desejos de BDSM ou não. Por exemplo, um clube de sexo de pessoas anonimizadas com máscaras é, na verdade, uma possibilidade para o mundo real, e não é tão inatingível quanto isso. Aliás, foi com alguma satisfação que me apercebi que existem grupos de mulheres – e.g. Killing Kittens – que organizam festas mistas onde só as mulheres é que podem dar o primeiro passo. Escusado será dizer que este tipo de eventos e serviços vivem da exigência de que todo o sexo é consensual. O grande lema para o sexo verdadeiramente prazeroso.

Ao olhar para esta variedade de sexos não nos é possível cair no erro de que há o sexo normal e o anormal. A decisão é muito mais individual: há sexo que nos interessa e sexo que não nos interessa. Os guias dos sexos criam-se assim, pelos aborrecidos e pelos curiosos, explorando o sexo de forma criativa.

11 Dez 2019