Dá-me a cidade

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m fenómeno que acontece a quem tem filhos é começar a ver as coisas em várias dimensões. Quando um filho nasce – e sobretudo quando começa a andar –, os autores do pequeno ser ficam maiores e mais fortes, capazes de transportarem todos os quilos e preocupações do mundo, mas tornam-se também mais pequenos. Um metro de gente não vê o que um metro e sessenta ou um metro e oitenta vêem: há que flectir as pernas para se perceber o mundo que é apresentado aos descendentes.
Aqueles que decidiram contribuir de forma activa para as estatísticas demográficas ganham ainda uma particular capacidade de análise do chão que sempre pisaram e que, de um dia para o outro, passa a ter uma enorme relevância: pés grandes não caem em pequenos buracos, nem tropeçam com facilidade em pisos desnivelados; já os pés pequenos têm uma particular inclinação para ajuntamentos de água e gigantes crateras no pavimento dos passeios.
Quem decidiu multiplicar-se descobre ainda um inexplicável talento para detectar o perigo. Em Macau, esta apetência adquirida por via da parentalidade é uma canseira: o perigo está em muitos sítios quando se sai à rua acompanhado por alguém que ainda mal fala. Não é preciso ser-se especialista na matéria – os espaços públicos nesta cidade, com destaque para parques infantis e passeios, são uma miséria. Basta andar na rua com olhos de ver e com uma criança pela mão.
O Comissariado da Auditoria chegou a semelhante conclusão e decidiu puxar as orelhas ao Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais. Num relatório ontem divulgado, diz-se, de forma resumida, que há um grande número de espaços públicos de lazer que representam um risco para a segurança e para a saúde pública. Gasta-se dinheiro em parques infantis e nos equipamentos desportivos, mas há desmazelo, falta manutenção, sobra lixo. Em suma: o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais não está a fazer o que devia para garantir as condições mínimas que estas áreas devem ter.
É difícil encontrar uma explicação para o estado em que se encontram muitos dos equipamentos públicos da cidade, pela simples e nada imaginativa razão de que o dinheiro não é um problema. Não havendo falta de recursos, a situação em que se encontram os locais frequentados essencialmente por crianças e velhinhos poderá ser justificada pelo desleixo, pela ignorância, pela falta de capacidade para a concepção deste tipo de áreas, pelo não-querer-saber.
Um fenómeno que acontece a quem tem filhos é a mudança do modo como se vive na cidade. Mudam-se os horários e os percursos, as zonas que se viam ao longe, da janela de casa, passam a ser frequentadas com muita regularidade. E constata-se, de um modo quase doloroso, que as pessoas que vivem nesta cidade têm uma enorme falta de espaço. Não há parque público, infantil ou não, que não esteja pejado de gente. Não há uma nova área de lazer que não seja rapidamente procurada por pais ciclistas, filhos em triciclos, novos e menos novos que gostam de correr, de andar, de respirar qualquer coisa que não seja o ar condicionado de casa e o cheiro dos casinos.
Ao falhar na manutenção dos equipamentos públicos, o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais comete um pecado maior: priva grande parte da população da aproximação a uma vida mais ou menos normal. Não é preciso ser-se especialista na matéria: googlem, senhores que decidem, googlem. Vejam o que se faz lá fora e leiam, por exemplo, as estatísticas assustadoras sobre acidentes com crianças em parques infantis. Tenham cuidado: o povo é sereno e não se queixa, mas um dia destes há um azar dos grandes e alguém vos vai perguntar por que estava o baloiço enferrujado, o escorrega partido, a vedação incompleta. Descompliquem: deixem os miúdos pisar a relva, voltem a plantá-la as vezes que for necessário, porque o cimento não é amigo de joelhos e narizes de tamanho XS. Invistam: limpem os parques, comprem caixotes do lixo, espalhem-nos pela cidade; nivelem os passeios feitos à pressa em aterros feitos à pressa, lembrem-se das rampas para que os acessos estejam garantidos a cadeiras de rodas e a carrinhos de bebés. Não queiram ser terceiro-mundistas, que o termo não vos fica bem e em nada combina com os fatos escuros, as gravatas e os automóveis de motorista fardado de branco.
Modernizem-se e pensem, pensem só um bocadinho: a cidade é das pessoas e deve ser pensada para elas. A cidade é nossa.

23 Set 2016

Qiu Ju e os outros

[dropcap style≠’circle’]1.[/dropcap] Uma mulher grávida, muito grávida, uma camponesa pobre, muito pobre, à procura de justiça numa China rural, em nome de um marido agredido e injustiçado. Da aldeia para a vila, da vila para a cidade, as escadas todas de um sistema burocrático, uma China surda e muda, uma China com dificuldades em aceitar queixas, em tratar queixas, em reconhecer que erra. O filme é de 1992, é de um Zhang Yimou com Gong Li mas sem cenários vistosos, tem um final mais ou menos feliz, e vi-o pouco tempo depois de ter chegado a Macau, ainda em VCD, formato entretanto falecido.
Lembro-me da história de Qiu Ju com frequência. Há uns dias, lia uma notícia sobre um relator das Nações Unidas que apontava à China o grande pecado de não ser capaz de lidar com estruturas intermédias entre a população e as autoridades, estruturas que possam gerir queixas e críticas.
O relator – que apresentava as conclusões do trabalho que fez ainda a título provisório, porque o documento final só vai ser conhecido para o ano – condenava também a opacidade da China, a impossibilidade de se movimentar no país sem a companhia de representantes do poder, as encenações que viu (e que não o convenceram) de uma impossível harmonia entre etnias, entre estratos sociais, entre quem manda e quem responde às ordens. Deixou ainda um aviso sobre os males que virão das novas regras para as organizações não-governamentais, exemplos das tais estruturas que, não sendo povo nem poder, tocam num e no outro para – se quiserem – poderem ser intermediárias dos interesses de ambos.
Tudo isto a propósito das eleições legislativas de Hong Kong. A antiga colónia britânica é um caso sério há muitos anos, é uma coisa fora dos padrões a que estamos acostumados deste lado, neste pedaço de terra. Hong Kong é muita gente, é muitas coisas, é muita pobreza que não se vê nas idas às compras e nos espectáculos e nas saídas nocturnas e nas fugas à rotina que todos nós vamos fazendo. Hong Kong é muito descontentamento social, é uma grande incapacidade de lidar com o que a história lhe reservou, não é uma história bonita de amor, uma transferência de poder emocionada. Hong Kong é para quem percebe de Hong Kong.
De fora, a sensação de que a relação da China com Hong Kong fica sempre marcada pela crítica, pela incapacidade de gestão dos críticos, dos descontentes. Em certa medida – e com as devidas diferenças – a mesma dificuldade que temos por cá de cada vez que há certas contestações sociais: empolga-se o que não deveria ser empolgado, dá-se protagonismo a quem o procura, faz-se a vontade porque não se sabe encaixar a diferença de pensamento e de acção na prateleira certa. Ao longe, é isso que está (também) a acontecer em Hong Kong: uma China que se crispa quando as coisas lhe escapam, uma China que ainda tem de aprender a ser criticada, dentro e fora de portas, que seja capaz de dar resposta a uma classe média que, depois do dinheiro, vai querer outra coisa qualquer e não vai ficar calada se não a tiver.

2. Por cá, mais do mesmo. Ficámos esta semana a saber que os radiotáxis vão sair à rua só no próximo ano, no primeiro semestre, e vão ser só 50, não 100 como nos tinham prometido. Os outros 50 têm um ano para começar a operar, a contar do dia em que os primeiros começarem a transportar clientes. Dizem-nos que vai ser um serviço bonito de se ver, impecável, cheio de tecnologias. Sucede que aparece dois anos e meio depois de o outro serviço de radiotáxis ter guardado as viaturas na garagem.
Quem percebe de concursos públicos e afins dir-me-á que faz parte, que estas coisas são difíceis, que demoram o seu tempo. Eu não percebo nada de concursos públicos e não quero perceber. Mas entendo das dificuldades em apanhar um táxi, do tempo de espera por um autocarro, da impossibilidade em estacionar um carro nos mais variados pontos da cidade. Percebo ainda do descontentamento – que é meu também – das pessoas que aqui vivem, que têm de ir trabalhar todos os dias, de levar os miúdos à escola, regressarem a casa com os sacos das compras, nos solavancos apertados dos autocarros, com a multa da polícia na carteira porque se deixou o carro parado durante cinco minutos à porta da farmácia.
Percebo ainda qualquer coisa sobre os tempos da comunicação: em semana de fim de Uber – alternativa de muito boa gente nos últimos meses para a garantia de alguma normalidade no quotidiano – não cai bem anunciar que os novos táxis chegam para o ano, um anúncio feito nove meses depois da abertura das propostas. Provavelmente a intenção era fazer passar a ideia de que as coisas vão mudar, de que não tarda nada até vai ser possível chamar um táxi, qual Uber qual carapuça, os futuros táxis é que vão ser, Macau cidade internacional e de lazer.
Entre um guarda-chuva molhado e um autocarro à pinha, numa fila de carros que não andam, entre a casa e o trabalho, fica a Macau surda e muda que não responde à crítica, na incapacidade de perceber que, tal como a Qiu Ju do filme de Zhang Yimou, as pessoas comuns, as que andam por aí na rua, só querem mesmo é ter uma vida mais ou menos tranquila e organizada. Feitas as contas, um final pouco feliz, mas vai tudo dar ao mesmo e não faz mal, que amanhã é outro dia.

9 Set 2016

O estado do sítio

[dropcap style≠’circle’]1.[/dropcap] Vira o disco e toca o mesmo – mais uma ideia apresentada, mais uma ideia contestada. Desta vez não é um hotel, não é um centro de doenças infecto-contagiosas, não é uma biblioteca. É um restaurante. Um res-tau-ran-te. Um sítio onde se cozinha, onde se come e onde se bebe, numa das zonas mais interessantes da Taipa: as Casas-Museu, de traça portuguesa, uma área onde, à excepção da Festa da Lusofonia e das fotografias de casais de matrimónio contraído, mais um ou outro concerto de jazz, não se passa rigorosamente nada.
Para quem gosta de passear por ali, para quem gosta de cidades e para quem gosta de Macau, um espaço de restauração naquela zona faz todo o sentido. Como faria sentido ter bares e esplanadas e sítios agradáveis espalhados por aí, para as pessoas daqui poderem ter uma vida que vá além da casa, do trabalho, da tasca e (para quem pode) dos restaurantes de luxo nos casinos.
As Casas-Museu fechadas não servem a ninguém, assim como não servem a ninguém as trancas das portas de vários edifícios do Governo espalhados pelo território. A antiga Câmara Municipal das Ilhas é outro taipeiro exemplo, transformada que se encontra em algo sem acesso público, em algo sem qualquer interesse.
O secretário para os Assuntos Sociais e Cultura teve uma ideia – mais uma ideia – e achou por bem tentar dinamizar a zona do Carmo, dar outra vida às Casas-Museu, que se encontram em obras, as primeiras desde 1999. A intenção era receber, num dos edifícios, um “projecto de restauração de estilo português”.
Sucede que, à semelhança de todas as intenções de Alexis Tam, também esta causou “uma discussão acalorada na sociedade”. Vai daí, anuncia-se que o projecto fica para depois, não se faz agora. Não há consenso. O chato do consenso. Começamos a ficar habituados a projectos anunciados, para serem cancelados uns dias ou uns meses depois.
Como é claro para quem vai acompanhando a vida política da cidade, não há nada que venha do gabinete dos Assuntos Sociais e Cultura que mereça o consentimento silencioso de interesses diversos que por aí andam. Nem sequer um restaurante.
Dizem-me que a explicação é de cariz ecológico, o que até teria piada se tudo isto não consubstanciasse a tristeza profunda que episódios como este representam: em Macau nada muda, nada muda para melhor, não há uma pequena ideia de melhoria de um espaço – com as repercussões que essas melhorias trazem para o cidadão que só quer beber um café enquanto passeia – que vingue.
Não é por causa do croquete, do bacalhau ou da salada de polvo, perigosas ameaças aos mangais da Taipa, às espécies animais e vegetais da zona. Não é por causa do copo de vinho tinto do Douro, do queijo e do presunto, substâncias altamente poluentes. É por causa do que tudo isto nos deixa perceber.
Chegou a hora de o Chefe do Executivo tomar uma decisão: Chui Sai On tem de pensar se quer ou não um secretário para os Assuntos Sociais e Cultura. Não precisa de fazer declarações à imprensa sobre as qualidades do político que escolheu para o cargo. Não precisa de lhe tecer elogios. Mas precisa de fazer o trabalho de casa. É que, vistas bem as coisas, as ideias de Alexis Tam fazem parte do caderno de encargos assumido pelo líder do Executivo. As Linhas de Acção Governativa são um compromisso anual de Chui Sai On.
Durante anos, as promessas do Chefe não passavam do papel. Agora, com alguém que mostra vontade em materializá-las, também não passam. Deve ser Chui Sai On a garantir, pelas vias com que se faz a política local, que Alexis Tam não chega ao final do mandato como o secretário que mais projectos anunciou e menos conseguiu concretizar, por manifesta falta de apoio. Incluindo o do Chefe do Executivo.

2. Uns querem fazer e encontram obstáculos que não lembram ao diabo; outros não fazem o que já deveria ter sido pensado e feito há, pelo menos, uma década. Esta semana, o Comissariado da Auditoria anunciou que, entre 2004 e 2014, o Governo gastou 5030 milhões de patacas em rendas e obras de remodelação para que 68 serviços públicos tivessem instalações. Há um grande culpado para o organismo de Ho Veng On – dá pelo nome de Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes. Pecou por inércia, por nada ter feito. Uma culpa que, digo eu, deveria ser partilhada com o secretário da tutela e com os chefes do Executivo que mandaram na terra durante o período a que diz respeito a auditoria feita.
A falta de edifícios próprios para acolher os serviços públicos é de uma enorme conveniência para quem detém os imóveis arrendados à Administração. Há muita gente a ganhar dinheiro com esta situação – ou, se preferirmos, pouca gente a ganhar muito, mas muito dinheiro. Negociar renovações de arrendamentos com a Administração deve ser o sonho de qualquer senhorio: estar a mudar o serviço x ou o departamento y é uma maçada e uma grande despesa, sendo que também não cai nada bem em termos de opinião pública. O pobre do cidadão comum já se habituou a fazer as malas de dois em dois anos porque o que lhe pedem de aumento de renda não bate certo com o salário que cai na conta ao final do mês, pelo que toca a procurar uma opção mais em conta. Mas fazer mudanças de serviços públicos requer outra logística – e o arrendatário cede às pretensões do proprietário, como demonstra o gráfico do Comissariado da Auditoria sobre as despesas de arrendamento, com uma linha que sobe de ano para ano, e sobe muito.
Não tenhamos ilusões: um grupo de descontentes com a possibilidade de um restaurante nas Casas-Museu trava um projecto, mas os relatórios da Auditoria não costumam ter repercussões significativas. É o estado do sítio: vira o disco e toca o mesmo, e fica tudo em águas de bacalhau.

2 Set 2016

Ide a pé

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]ideia foi e continua a ser polémica em várias jurisdições, entre elas Portugal, e era mais ou menos óbvio, para quem conhece Macau, que o processo não ia ser simples num território com uma extraordinária resistência ao que é novo, sobretudo se a novidade vier de fora.
O Governo defende-se alegando a ilegalidade da prática desenvolvida pela empresa: como os serviços prestados pela Uber são ilegais, não houve margem para discussão, fecharam-se as portas e, a acreditar no que diz a empresa, inviabilizou-se a possibilidade de implementar, de forma pacífica, um serviço que, como também é óbvio para quem conhece Macau, faz muita falta a quem cá vive.
Uma das primeiras coisas que ouvi dizer na minha breve aprendizagem de Direito é que se legisla a pensar no futuro, para que as leis tenham uma longevidade razoável. Mas aprendi também que a legislação deve ser capaz de acompanhar a evolução das sociedades que organiza – se assim não for, as leis não nos servirão e serão apenas formas de nos trancarem no passado.
O argumento da ilegalidade não convence também porque todos nós conhecemos o modo como os negócios se fazem em Macau, o proteccionismo exacerbado em certas áreas e as formas – nem sempre claras, justas e, diria mesmo, legais – que se utilizam para salvaguardar o que deveria estar garantido apenas pela necessidade e pela qualidade. Não se quis discutir a hipótese de tornar a Uber uma realidade em Macau apenas porque não se quis. Não vale a pena tentar encontrar pretextos.
Tanto não se quis tornar a Uber viável que a polícia se transformou numa espécie de fiscais do tabaco, ao apresentar uns extraordinários resultados no combate à prevaricação. Todos sabemos que há taxistas a desrespeitar a lei todos os dias. Há histórias para os mais variados gostos cinematográficos – de passageiros trancados pelos motoristas dos veículos, a utentes a quem são cobrados valores exorbitantes. Os números estão aí para quem quiser fazer exercícios comparativos – andasse a polícia atrás dos taxistas em falta, como anda atrás dos motoristas da Uber, e o serviço de táxis em Macau seria uma maravilha, uma coisa digna de cidades evoluídas.
Mas, mais uma vez, nem sequer é preciso chamar à colação a questão da legalidade – ou da falta dela – no modo como actuam os taxistas e a ausência de punição. O serviço prestado pelos táxis de Macau não é mau, é péssimo: carros velhos, carros sujos, malas onde não cabem malas, motoristas que não tiram as mãos do volante para ajudarem os clientes a meter as malas na bagageira. Motoristas que não falam outra língua que não a local e não demonstram a mais pequena vontade em perceber as necessidades de transporte do passageiro estrangeiro que visita Macau, esse destino tão internacional.
É o que temos – e o que não temos também. Qualidade à parte, os táxis são coisa rara, difícil de apanhar, não são capazes de atender muitos dos que procuram uma forma de se mexerem numa cidade em que os autocarros são o que são e, para quem opta por ter um automóvel, o estacionamento é o que é.
Macau não é o primeiro local onde a Uber encontra resistência. Portugal, como escrevia no início deste texto, foi um osso duro de roer – e eu até compreendo a resistência da concorrência directa, os taxistas que, em muitas praças portuguesas, esperam pacientemente por clientes que teimam em não chegar. Ainda assim, o Executivo português decidiu estudar uma forma de evitar que empresas como a Uber deixem de operar num vazio legal. Contra factos não há argumentos e o facto é que o mundo muda – quem legisla deve ser capaz de lidar com a mudança, doa a quem doer.
Aqui, num sítio onde apanhar um autocarro pode ser um filme, apanhar um táxi pode ser um filme de terror, o metro vai lento e não existem alternativas para que as pessoas possam organizar a vida e as suas mais variadas necessidades – a ausência de transporte escolar e de empresas dedicadas a esta área é um exemplo – a Uber daria muito jeito. Daria muito jeito que quem decide pensasse no que faz mesmo falta a quem aqui vive e todos os dias, um dia depois do outro, tem de se mexer no caos em que esta cidade se transformou.

26 Ago 2016

Morde aqui a ver se eu deixo

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]coisa acontece assim: eu, residente de Macau, perfeita conhecedora dos níveis de tolerância da polícia local, entro ali num prédio abandonado e decido pendurar uma faixa com um insulto a uma figura pública da terra. Como sei que há vários sentidos que não abundam na cidade – incluindo o de humor, se de uma piada se tratasse –, tenho a certeza de que responderei, pelo menos, por um crime. Ou por dois ou três.
A polícia não brinca em serviço e alimenta as gordas dos jornais, pelo que amanhã estarei, sem dúvida alguma, na capa deste matutino. E nas dos outros, ora pois, que as notícias não abundam. Com sorte, entro no próximo relatório sobre a falta de liberdade de expressão em Macau. Mas eu, que até dei a entender ter estado na origem do acontecimento, não assumo o que fiz, porque há o segredo de justiça e coisa e tal. E, já agora, quem me conhece como jornalista que escreva a notícia sem fazer referência à profissão pela qual meia dúzia de gatos-pingados me identifica: chamem-me outra coisa qualquer que eu às vezes sou isto, outras vezes sou aquilo.
O acontecimento Scott Chiang versus Alexis Tam, com o Hotel Estoril como pano de fundo, tem entrada directa no anedotário político local. Por várias razões, a começar pelo formato e a acabar na intenção. O rapaz da Associação Novo Macau – que, neste episódio, não quer ser conotado com a Novo Macau, embora a Novo Macau aplauda o sucedido – não se ensaia nas palavras e nos actos, diz não ter medo de nada, nem de ninguém, mas não assume a autoria da intervenção activista da semana.
No plano das intenções, Scott Chiang está apreensivo com o património da terra, preocupação que só lhe fica bem e que é partilhada pelas gentes que amam a cidade. Recusa ser protagonista de manobras eleitoralistas, fez a coisa que afinal-não-diz-que-fez por amor à camisola, neste caso o edifício do antigo Hotel Estoril, acusa o secretário de falta de debate público, de homicídio dos bens valiosos da urbe. Como membro de uma associação que, independentemente de gostos e preferências, até há bem pouco tempo era levada a sério por pessoas com diferentes posturas na vida, o activista não debate, não organiza mesas redondas, não chama dois ou três especialistas para uma troca de ideias, não sugere uma alternativa. O activista age. Age mais ou menos – não sabemos se foi ele que agiu, que o protagonista alega o silêncio que a justiça impõe.
Em suma: andam todos a trabalhar para os jornais. Os novos da Novo Macau e a polícia de enraizados costumes. A malta da comunicação social agradece, é assunto para uns dias valentes e daqui a uns tempos volta a ser notícia, quando se for ver o que aconteceu ao processo. Além de estarem a trabalhar para os jornais, uns e outros contribuem para que o debate não aconteça, porque nestas linhas que escrevo o património fica de fora, se ainda houvesse alguma coisa para discutir em torno do Estoril. Assunto mais debatido – para a esquerda e para a direita, por dentro e por fora – não há.
Certo é que estes episódios de provinciana política vêm aumentar a estranha fogueira em que se quer colocar Alexis Tam – e é aqui que Scott Chiang e os parceiros poderão estar a desempenhar um papel mais ou menos consciente e mais ou menos perigoso. Percebeu-se desde o início que o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura não ia ter a vida facilitada. A gestão pública de um ou outro processo não ajudou à missa: o caso Estoril não foi particularmente bem dirigido e esta condução atribulada tem resultados à vista.
Goste-se ou não do estilo, simpatize-se ou não com Alexis Tam: num exercício de distanciamento, é visível, a olho nu, que existe interesse (ou vários interesses) em colocar pedras num caminho já cheio de buracos, por via da inacção do passado e da sobrecarga de tarefas do presente. Goste-se ou não do secretário, basta ler os títulos dos jornais para se perceber que não há movimento respiratório que Alexis Tam faça que não seja alvo de críticas. Se foi é porque não devia ter ido, se consultou não devia ter ouvido, se não ouviu devia ter falado. Se vai fazer é porque vai gastar dinheiro, se deixar tudo como está é porque não se interessa, não faz, é igual aos outros. Se agrada a uns é porque é mais isto, se satisfaz outros é porque é mais aquilo. Em suma: não há pachorra.
Não haveria pachorra se tudo isto não fosse sério, talvez mais sério do que aparenta ser. Pensar que Scott Chiang é um menino nas artes políticas não é um erro total, mas pode corresponder a uma análise pouco aprofundada. Atribuir às eleições do próximo ano a culpa pelos dedos em riste é uma explicação plausível, mas só em parte. Em Macau, há sempre mais qualquer coisa, qualquer coisa mais opaca do que aquilo que nos é mostrado. Andamos todos entretidos com o burburinho activista e, às tantas, o que importa passa serenamente ao lado, entre os pingos da chuva que abunda e é forte. Um dia destes ainda vamos todos perceber o que efectivamente se está a passar, que interesses maiores se erguem por aí. Ou talvez não, talvez não nos contem e a gente nem dê pela ausência de explicação, entusiasmados que estamos, de pipoca na mão, a achar que é com episódios emocionantes como o do Hotel Estoril que o mundo pula e avança.

19 Ago 2016

Do vazio

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ara nos interessarmos pelas coisas temos de acreditar nelas. Há muito que a política de Macau me causa um profundo desinteresse, por descrédito absoluto. Não me refiro às políticas, que essas mexem no quotidiano de todos, mas sim à política, esse conceito que, por aqui, é quase um palavrão mas que, noutros pontos do planeta, tem o seu interesse, por motivos diversos que não faz sentido aqui especificar.
Macau. A política de Macau. Uma lei eleitoral que quer acabar com a corrupção, os almoços e os jantares à borla que, sendo à borla, não são grátis. Uma lei eleitoral que se propõe tolher os movimentos das associações, das que não têm dinheiro para a oferta de massas instantâneas e das que servem barbatana de tubarão na sopa. Uma lei eleitoral que pensa na influência do sector do jogo na política, os junkets na política, os homens e mulheres dos casinos na Assembleia, os políticos mais votados, os que não temem restrições a nada nem vindas de onde quer que seja, os políticos mais bem-sucedidos do burgo. Os políticos mais admirados, a acreditarmos na pureza dos votos. Os votos imaculados que se quer ir buscar a um eleitorado com muitas manchas, sem ter culpa de as ter, ou não, com a culpa toda da ganância pequenina, a ganância da massa instantânea e da barbatana de tubarão no caldo. Nem que seja a cada quatro anos, para se ficar de palito na boca e barriga regalada por uma noite.
A política de Macau. A política que, de tão fraca que é, nem sequer retórica apresenta. A política que se escuda no abrandamento económico para não ser política, não ser nada, não ser debate, e nem por aí vem o interesse. A política talvez como mero exercício legislativo. Um entediante exercício quando desacompanhado de ideias.
A política daqui. Os políticos daqui. Uma Assembleia Legislativa pouco respeitada, um Governo em descrédito parcial desde o início, desde que assumiu funções. Um Governo que talvez, no plano das políticas, das coisas técnicas, possa contribuir para limar uma ou outra aresta das muitas que nos picam quando nos movimentamos na cidade. Mas a quem falta política. A política que tem que ver com a educação para a política, para a coisa pública, a educação para o outro.
A educação. Ou é da paciência que, com o passar do tempo e com o aumento das exigências do meu quotidiano, começa a ficar mais pequena, ou então não é de mim, é mesmo da degradação de um certo modo de estar que não encontrei quando aqui cheguei e que me chateia cada vez mais. É nas pequenas coisas que a falta de educação se sente, se vê, está lá. No modo como os serviços são prestados, os simples serviços. Os taxistas que, naquele primeiro contacto com Macau quando aqui se chega de barco, não se mexem para abrir uma porta, para abrir a bagageira. Fazem-no de dentro do carro e não mexem um dedo, quanto mais uma mão, para ajudar a meter uma mala, um carrinho de bebé, o bafo à chegada que é sempre mais intenso do que o outro, aquele que vem depois, o bafo misturado com o duvidoso cigarro chinês que é fumado na interminável fila de malas que se arrastam pelo chão sujo. O fiscal que está ali não se percebe exactamente com que funções, se tem muitas malas espere aí mais um bocadinho, as crianças aguentam, deixem lá passar quem se despacha mais rápido. Tudo ao contrário, o suor quente e o suor frio a escorrer pelas costas, a educação que falta, a falta de educação. As políticas que, afinal, não funcionam, porque as boas intenções têm de ser acompanhadas de pessoas bem-intencionadas. E educadas.
A irritação do quotidiano nos pequenos serviços prestados fora das horas acordadas, a irritação do quotidiano porque já passaram três autocarros vazios entre as oito e as oito e dez da manhã e vão os três para o mesmo sítio, têm os três o mesmo número, vão vazios e nem param por manifesta falta de interessados, e o autocarro que queremos que não chega. A falta de educação de quem quer entrar no autocarro mais cedo, mais depressa, apanhar o primeiro banco, o mais vazio, não interessa a canelada que se deu. A educação que falta e que, lá no fundo, se contenta com a massa instantânea e se delicia com a barbatana de tubarão mergulhada na água, porque isto está tudo ligado, as coisas estão sempre todas ligadas.
A educação que faz com que só se saia à rua quando em causa está o dinheiro, mesmo que o dinheiro seja coisa que não falte, mas é o dinheiro que está em jogo, não é o ar puro que está em questão, nem o direito a condições laborais mais dignas, ou menos indecentes, é mesmo só o dinheiro. A educação do dinheiro, o dinheiro que não educa e que não compra o que não está à venda.
O descrédito. Ou então o desencanto, primos próximos, demasiado unidos. Somos muitos mais do que éramos há dez anos mas não somos melhores, nós, os que andamos por aqui. Não é o descrédito total. Macau continua a interessar-me, ainda acredito nela, ainda acredito na cidade embora a veja pouco, de pouco acessível que se tornou. Uma cidade que se estica para cima e para os lados e que se enche de pessoas, mas que não pára para pensar no que andamos todos aqui a fazer. É a política, pá. A política que não há, mas que faz falta.

12 Ago 2016

Sopra-lhe com força

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á uma coisa estranha em Macau: nunca nada é importante, sendo tudo de extrema importância. Passo a explicar. O acontecimento da semana? Um tufão. Ou, para ser rigorosa, a polémica em torno da classificação de um tufão.
Uma tempestade tropical é uma coisa séria, como todos sabemos. Aqui à volta, bem perto de nós, há gente a morrer por causa da passagem de tufões, há gente a ficar sem terras e colheitas e o ganha-pão por causa de tufões, há aldeias e vilas e cidades que se destroem em minutos para serem jamais reconstruídas.
Por cá, os tufões são coisas que sopram devagar, mesmo quando são fortes. Nos quase 15 anos que levo de Macau, nunca vi nada de muito grave acontecer. Árvores e tabuletas no chão, uns carros maltratados, lixo pelo ar e, em duas ou três tempestades, pessoas que ficaram sem o negócio por causa das medidas que não se tomaram, anos a fio, para evitar inundações no Porto Interior.
Ainda assim. Um tufão é uma coisa séria, que exige cuidados mais do que mínimos. Por ser uma coisa séria, não se pode transformar numa anedota. Pode, se formos nós, sociedade civil, a puxarmos do sentido de humor e a fazermos umas piadas sobre o que se passou esta semana; mas não pode ser transformado em anedota por quem tem responsabilidades e a obrigação de garantir o interesse público.
Por questões científicas que não interessam ao Menino Jesus, os Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau decidiram não avançar com o sinal 8 na noite de segunda para terça-feira. A possibilidade chegou a ser colocada e a hipótese foi anunciada, foi sendo protelada, e depois arquivada. A decisão de manutenção do sinal 3 foi tomada durante a noite, soprava forte o vento nas minhas janelas. Um vento que afinal não tinha força suficiente para que o sinal 8 fosse içado. Mas a avaliação da força da intensidade dos ventos é coisa que me passa ao lado – preocupo-me com outras coisas mais relevantes e sei que estou longe de ser a única.
A confusão em torno da qualificação do Nida deve ser analisada de vários ângulos, a começar pela questão da segurança – afinal, a mais importante. Mesmo não sendo tufão 8, recomenda-se à população em geral e à mais frágil em particular que se mantenha resguardada, não vá o diabo tecê-las. O diabo teceu-as do seguinte modo, de acordo com as contas dos Bombeiros: entre outras ocorrências, 26 árvores foram ao chão e caíram 32 objectos.
Como Macau é terra de jogos de fortuna e azar, não houve galhos nem tabuletas a fazerem feridos, apesar das pessoas que andaram nas ruas empurradas pelo inconsistente vento. É que, apesar das recomendações oficiais, sucede que, sem sinal 8, o patronato – ou a grande maioria – não manda os trabalhadores para casa, para que possam tomar um banho quente e vestir roupa seca. Está chuva e vento e é difícil a malta mexer-se, mas há que ter paciência e uns chinelos de plástico na mala. É a vida. Uma vida na qual não se pensa quando o único critério para a tomada de decisões é a força dos ventos.
Depois, temos a questão da organização de toda uma sociedade que tem relações de interdependência: com uma decisão a ser adiada pela noite dentro, mais não resta a quem cá vive do que ficar acordado – ou ir acordando com regularidade – para perceber o que fazer no dia seguinte. Com Hong Kong em sinal 8 há várias horas, com Zhuhai em alerta amarelo e Shenzhen em alerta vermelho, não havia razões para acreditar que os Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau iam mandar o povo todo trabalhar à chuva e ao vento na terça-feira, com uma bela tempestade na rua. E aqui não se trata das mais ou menos horas que a malta pode ficar a dormir numa manhã por norma de trabalho; trata-se, isso sim, de saber onde e como se deixam os filhos, se há transportes para ir trabalhar, a que horas se vai trabalhar, se o supermercado ou a farmácia vão estar abertos, se a reunião marcada para de manhã no escritório vai mesmo acontecer ou se é preciso marcar nova data.
Numa perspectiva económica – a área do saber que, mais até do que a ciência, é a favorita do léxico oficial local –, as pessoas estarem à espera de um tufão forte e sair-lhes na sorte um que não deitou ao chão sequer 30 árvores não é uma coisa boa. Pode ser um grande azar. A encomenda que não se entregou de acordo com o que estava acordado, porque estava a chover, mas não estava tufão 8. A reunião que se adiou e não se devia ter adiado, mas às 5 da manhã era tarde para andar a fazer contactos e marcar novas agendas.
Depois do caricato episódio Nida – que me podia levar a escrever também sobre os preços praticados por táxis, acerca das motas aos esses, sobre o mecanismo de protecção civil que só funciona quando o vento sopra com mais força ou ainda sobre o túnel que só abre se houver razões científicas para tal –, vieram as críticas dos mais diversos quadrantes, as justificações científicas e, mais recentemente, o avisado pedido de desculpas do secretário para os Transportes e Obras Públicas.
O Nida, sendo um episódio que, para a semana, se tornou apenas caricato, dá que pensar. No modo como tudo isto está organizado, na forma como se encara a vida dos outros. Que o Nida não se repita. E os tufões sejam inequívocos, para facilitar a vida à malta que decide a que horas e em que condições térmicas vamos nós trabalhar. Para a próxima, que sopre mais forte. Ou mais devagarinho, muito devagarinho, que dispenso mau tempo na cidade.

5 Ago 2016

Má sorte

1. Primeiro foi o troço das antigas muralhas, vandalizado por quem acha que pode fazer o que lhe apetece, onde lhe apetece, quando lhe apetece. Depois foi a Casa de Lou Kao, que levou com uma parede em cima que não lhe pertence, por causa de obras que – dispensa-se o relatório preliminar e também não é preciso esperar por conclusões finais – são feitas às três pancadas, como quase tudo o que diz respeito à construção em Macau. E agora o templo de A-Ma. Um incêndio com causas desconhecidas, em plenas comemorações do ano novo chinês. O património não anda com sorte.
Um incêndio de madrugada, de origem incerta. O Instituto Cultural já veio garantir que foi feita, há pouco tempo, uma inspecção ao local, espaço de peregrinação de centenas (milhares?) de pessoas durante estes dias. À hora a que escrevo, presume-se que se tenha tratado de um curto-circuito, uma daquelas coisas de que ninguém tem culpa – ou às tantas tem.
Mas não interessa a culpa: já se sabe por aqui morre quase sempre solteira e, quando contrai matrimónio, por norma fá-lo com o cônjuge mais fraco que poderia arranjar. O que importa é pensar no que se anda a fazer, no que se vai fazer, como evitar que estas situações aconteçam. No meio da má sorte, a sorte toda: tivessem as chamas começado a outras horas e este texto seria, todo ele, muito diferente. Num edifício com acessos complicados, a má sorte seria uma enorme tragédia.
Macau tem esta estranha condição da má sorte relativa: o mundo vai desabando, mas aqui, neste pedaço de terra crescente, nada acontece. Esta forma de evitar o azar total não se deve à competência das autoridades ou à consciência de quem age no espaço público: deve-se à sorte, que muitos dizem ser divina, apesar de os deuses não serem consensuais.
É bom que o azar total não nos bata à porta: antes cair o revestimento dos corredores, que sucumbiu ao frio, do que o tecto em cima da cabeça. Antes furar um pneu num buraco da estrada que já conta com mais de seis meses de vida, do que estourar o carro nesse mesmo buraco que a chuva tapou. Antes isso, claro está. Mas a má sorte que se vai tendo deveria servir para se começar a exigir mais – das autoridades e de quem age no espaço público. É que um dia destes o panchão rebenta no sítio errado, na hora errada, na mão errada. Não há má sorte relativa que não possa ser, um dia, absoluta.

2. Corro o risco de ser culturalmente intolerante. Corro. Mas as touradas também fazem parte da cultura do meu país e não lhes acho a mínima piada, pelo que não é uma questão de idiossincrasia – é mesmo uma questão de bom senso. Macau continua a ser, em termos de ano novo chinês, uma coisa estranha, bastante primitiva.
Dir-me-ão que faz parte da tradição isto de andar a queimar coisas para o ar, a horas em que há gente que quer, por exemplo, dormir descansada, sem a sensação de acordar no meio da Guerra do Pacífico. Queimam-se panchões nos locais que as autoridades definem mas também noutros sítios, que já sabemos que há sempre quem faz o que lhe apetece, quando lhe apetece, onde lhe apetece.
Dir-me-ão que faz parte da tradição e eu acredito, mas há 300 anos havia outras tradições, aqui e noutras partes do mundo, que se abandonaram por razões lógicas, próprias da evolução da espécie. Os panchões não fazem parte da realidade de muitas cidades da China, que também é tradicionalmente dada a fogos-de-artifício e outros dispositivos ruidosos. Houve alguém, do outro lado da fronteira, que se lembrou da poluição – sonora e sobretudo atmosférica, que isto de andar a queimar coisas não faz nada bem ao ar que se respira.
Por aqui, tudo na mesma. A festa ainda dura mais uns dias, pelo que quem quiser dormir que se aguente, porque até à uma da manhã a festa dura e há tolerância governamental para algumas tradições. Os turistas dão jeito e há que manter o povo contente. E depois – que fique claro porque já nos disseram, vezes sem conta, esta verdade absoluta – a culpa da poluição não é nossa. É só má sorte.

3. Outra sorte tiveram os Serviços de Saúde num caso recente que deu origem a uma das notas de imprensa mais extraordinárias que já tive oportunidade de ler. Chegou pouco antes da uma da manhã, acompanhada de uma mensagem para o telefone. O título diz tudo: “SSM [Serviços de Saúde de Macau] agradecem ao tribunal que julgou improcedente um recurso sobre o levantamento da medida de isolamento obrigatório”.
Quero ter a esperança de que a nota de imprensa original tenha sido redigida em chinês e que em chinês tenha um sentido completamente diferente. É que não fica bem uma entidade pertencente a um Governo agradecer decisões de órgãos judiciais – por mais importantes que possam ser para a saúde pública, como parece ter sido o caso. É a escolha do verbo, bem sei, pode ser só mesmo falta de jeito, admito. Para a próxima, um “congratulam-se” cai melhor. Ou então um título informativo, daqueles tipo “Tribunal dá razão aos Serviços de Saúde”. Por causa daquelas coisas da separação dos poderes e do Estado de direito. É que só falta mesmo o cesto de frutas e o cartão a acompanhar. Em nome da boa sorte, pois.

12 Fev 2016

Da estupidez térmica

[dropcap=’circle’]V[/dropcap]ale tudo depois da explicação oficial que se ouviu, há uns meses, para a lentidão da Internet em Macau. A partir do momento em que se atribui à humidade a culpa para as ligações a passo de caracol, está quase tudo dito. E nada surpreende. Assim sendo, não é um choque ouvir novas justificações governamentais, desta vez na área da construção civil, em que o tempo é, uma vez mais, o culpado. Sem direito a defesa.
Esta semana, caiu parte do revestimento dos corredores do Edifício do Lago. Não se trata de uma novidade para os moradores do complexo de habitação pública, inaugurado há pouco mais de três anos. Este estranho fenómeno da laje em desapego total pela parede já tinha acontecido uma vez.
Apesar de as autoridades admitirem a necessidade de uma investigação, foram logo dizendo que o mais provável é a queda do revestimento ter sido provocada pelo frio, este frio invulgar que nos enche de cachecóis e mantas. A justificação faz-me pensar no Norte da Europa. E até mesmo no Norte de Portugal. E no Norte da China. Ele é azulejos a cair todos os dias, mortinhos de frio. Não há cola que os aguente, não há cola que os console. Vão da parede ao chão sem pensarem duas vezes.
Edifício do Lago interiormente despido à parte, esta vaga de frio veio provar – sem surpresa – que não estamos preparados para o frio. O facto em si, num clima subtropical, não é motivo para indignação. Ninguém estará à espera de casas com lareira e aquecimento central num clima subtropical. O problema é que as construções também não são feitas a pensar no calor a que estamos habituados. Se o vento vem frio, passa pelas paredes de papel; se a humidade vem quente, entranha-se na casa. Não há corpo que aguente sem um aquecedor ou sem uma ventoinha. Há sempre um auxiliar térmico em Macau. Não há conta de electricidade que aguente também.
Paredes sem isolamento, caixilhos colocados às três pancadas, janelas que são só vidro, sem nada que as proteja contra o sol e contra o frio. Critérios de conservação energética que tardam em chegar e a fiscalização que se sabe. Mais a ganância que por aí anda – construir por construir, construir para acabar depressa, para estar pronto, vender, especular, ganhar muito dinheiro, passar para outra, e quem vier a seguir que feche a porta, que está calor. E frio.

29 Jan 2016

Os hipócritas

1. [dropcap style=’circle’]I[/dropcap]sto era tudo muito mais fácil se não houvesse hipocrisia política – pelo menos, ficávamos a saber com o que é que podemos contar. Mas não: a política é hipócrita e de cada vez que se fala do assunto, que não é novo, vem a ladainha do costume. Eles gostam muito de nós, eles todos de nós todos, eles não mudaram as regras, não há qualquer alteração em relação ao passado, continua tudo na mesma, nós é que andamos a sonhar com uma nova situação, com dificuldades adicionais que só existem na nossa imaginação.
Mentira. Nos últimos anos, tem sido cada vez mais difícil contratar trabalhadores em Portugal, porque o processo de autorização de residência passou a ser, em muitos casos, uma impossibilidade. Por várias razões.
O quadro mais optimista é aquele em que a residência é autorizada, mas a demora é tão grande que – a não ser que o futuro contratado se encontre completamente desesperado ou queira muito, mas mesmo muito, vir para Macau – quando os documentos estão prontos o candidato ao cargo já desistiu. No outro cenário, a autorização de residência não chega a ser dada, uma recusa que, frequentes vezes, é feita com fundamentos nada éticos e, nalguns casos, muito pouco em conformidade com a lei.
Um dos argumentos para negar a residência a portugueses é o salário que vêm para cá ganhar. Entendem os responsáveis pela matéria que com menos de 25 mil patacas não se vive, não se vive nada bem, e eu fico sensibilizada com as autoridades da RAEM, que querem que os portugueses que se expatriam estejam muito bem na vida, não querem que de Macau sigam cartas de gente remediada que escreve à família a lamentar a vã emigração. still-of-will-smith-and-jaden-smith-in-the-pursuit-of-happyness-large-picture
Sucede que esta exigência de ordem salarial não bate certo com nada, não tem rigorosamente nada que ver com a realidade de Macau. Ainda esta semana, uma entidade governamental contava que, de acordo com um inquérito feito aos recém-licenciados de Macau, muitos deles entram no mundo do trabalho a ganhar entre 10 mil e 14 mil patacas. Não consta que tenham morrido de fome.
Poder-me-ão dizer que são miúdos que contam com o apoio da família – argumento válido –, mas terão dificuldade em justificar por que razão não se exigem condições salariais melhores para os trabalhadores não-residentes que, ao contrário daqueles a quem é concedida a residência, estão impedidos de acumular trabalhos e remunerações, condenados a viver com as 3500 patacas mensais que a lei dita, se o patrão não for mais generoso.
O requisito salarial é uma hipocrisia. Candidatos a trabalho especializado em Macau, por mais cândidos, puros e inexperientes que possam ser, têm noção para onde vêm, sabem do custo das coisas, vão à Internet, fazem amigos no Facebook e não fazem as malas ao engano.
Há áreas em que é impossível a sobrevivência da actividade sem a contratação a Portugal. O jornalismo é uma delas – e é o sector que conheço bem, razão pela qual o uso aqui como exemplo. Não há órgão de comunicação social em língua portuguesa que possa sobreviver sem jornalistas de língua materna portuguesa.
Sucede que, ao contrário do que algumas autoridades de Macau possam pensar, o jornalismo – aqui e em qualquer parte do mundo – é uma actividade que não dá para enriquecer. A comunicação social é um negócio pouco rentável, quer para os investidores, quer para quem lá trabalha. A hora de um jornalista vale pouco. É assim.
Em Macau, o modelo empresarial dos jornais é especial e há razões de ordem política para a sobrevivência dos media em português, que se faz em moldes muito específicos, sem um mercado que os sustente e sem uma ideia de mecenato em defesa da língua portuguesa que, por essa diáspora fora, é comum encontrar. Os jornais existem com redacções que cabem num carro e é assim que se fazem. Não vendem fichas, nem lavam ouro e diamantes. São empresas pequenas que vivem com as mesmas dificuldades de muitas outras empresas pequenas, com a diferença de que não podem ir contratar às Filipinas por 3500 patacas e os recém-licenciados de Macau, a 10 mil por mês, não lhes resolvem o problema.
Um dia destes, com esta história de tornar difícil a vida aos portugueses que querem vir para trabalhar para Macau, deixa de haver gente em áreas específicas, porque uns reformam-se, outros cansam-se, outros desistem de cá estar e os outros, os outros que os deveriam substituir, estão à espera num aeroporto a Ocidente de uma autorização de residência que jamais chegará. Apesar de nada ter mudado e sermos nós, os que cá estão há mais tempo, que andamos a imaginar dificuldades. E hipocrisias.

2. Ainda sobre o trabalho e o direito ao trabalho. Numa cidade em que há tanta preocupação com o que ganham ou deixam de ganhar os emigrantes portugueses, chumba-se – mais uma vez – um projecto de lei sindical. A preocupação é só mesmo de alguns e destina-se apenas a meia dúzia. De nada adianta este tipo de legislação – um bicho-papão para o grande empresariado local – estar previsto na Lei Básica.
Não vale a pena gastar linhas neste jornal a tentar analisar o que ali se ouviu, o que foi dito por alguns deputados, os suspeitos do costume. Há coisas em que Macau me envergonha e de que Macau devia ter vergonha.

22 Jan 2016

O contrabaixista

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] principal culpado chamava-se Sérgio e tinha mais meia dúzia de anos do que eu, o suficiente para perceber das coisas importantes da vida. Gostava de ir àquela casa porque o jantar era sempre pizza caseira, numa altura em que não havia pizza em lado algum, e porque o Sérgio – Serginho para a mãe brasileira – tinha um órgão, um objecto que até hoje não suporto mas que, na altura, me fascinava.
O Sérgio deu-me uma flauta, daquelas de plástico, quando fiz sete anos. Passado um mês, a meu pedido, entrei para uma escola de música. Passado um ano, tive o meu primeiro violino, um três-quartos de fabrico chinês que produzia um som que os meus pais estoicamente aguentaram até que foi substituído por um violino a sério, antigo, que hoje mora comigo em Macau.
Tive a sorte de crescer numa cidade pequena que tinha cinco escolas de música, uma delas de ensino profissional integrado. Era raro o miúdo que não tocava uma coisa qualquer, que não tinha uma banda, que não passava os finais de tarde na garagem de um amigo transformada em sala de ensaios.
Nunca fui uma violinista dedicada, apesar de ter sido a única responsável pela minha opção musical, e só mais tarde, quando já dividia o tempo entre os jornais e a universidade, é que comecei a estudar a sério, num conservatório, com exames e madrugadoras horas de estudo. Foi também a altura em que me aproximei de um lado mais profissional da música, em que pisei palcos a sério, em que fiz testes de som e tremi antes do início de concertos. Film Title: The Soloist
Por causa do violino que hoje guardo no armário de casa, também os meus últimos anos de Portugal foram de relações alimentadas pela música. Amigos músicos, de todas as idades, dentro e fora do conservatório. Amigos músicos, de todos os instrumentos, do mundo erudito à música de raiz tradicional portuguesa. Com vários deles toquei noite fora, nas casas em que não havia vizinhos, e com vários deles toquei na rua, aquela experiência inesquecível da música que se oferece sem pré-aviso às pessoas que passam apressadas, com as ideias longe, com os problemas perto. Vê-las parar e sorrir. Vê-las parar. Acabar com o barulho dos dias, ao entardecer. Estar ali só porque sim. Estar ali só porque se gosta de estar.
Com a vinda para Macau, o meu violino conquistou um lugar num armário. Rapidamente percebi que nesta cidade o ambiente era diferente. Quase todos os músicos profissionais de instrumentos do género do meu têm limitações contratuais que fazem com que não possam tocar quando querem, com quem querem. Também não podem andar por aí a dar aulas a adultos que já não estão interessados em regressar ao conservatório. Macau não é propriamente uma cidade musical, apesar de todos nós, sem excepção, termos um vizinho pianista, quase sempre uma miúda de oito anos.
Esta semana, ficámos a saber que dois estrangeiros – um por causa de umas fotografias, outro por causa de estar a tocar violino – foram parar umas valentes horas à esquadra. Queixam-se de que foram tratados como criminosos, que não percebem a razão de terem sido levados pela polícia por aquilo que estavam a fazer. Segundo contaram aos jornalistas, foram acusados da prática de uma ilegalidade. E a ilegalidade foi tamanha que não bastou um ó-amigo, arrume-a-tralha-e-vá-se-lá-embora. Às prevaricações fotográfica e musical correspondeu uma visita de estudo às instalações policiais. Um-toma-lá-para-aprenderes. Aprender o quê?
Aprender que Macau é uma cidade em que aquilo que se pode fazer na rua corresponde a estranhos critérios de permissão. Não sei há quantos anos é que anda um homem aos saltos no centro da internacional e turística cidade, a pular entre os automóveis, aos gritos em reivindicações que só ganham dimensão pelo ruído que fazem, altifalante na mão de manhã à noite. Conheço pessoas que trabalham no centro da cidade e que dizem estar prestes a enlouquecer com a moldura sonora que os acompanha. O mesmo acontece com quem tem o azar de morar ali. Dizem que não há descanso e eu acredito.
Com estes episódios aprende-se também (caso ainda não se saiba) que Macau é uma cidade internacional basicamente para o que não interessa, sobretudo internacionais acontecimentos de ilegais contornos com que as autoridades se poderiam ocupar dias a fio. Casos bem mais interessantes e importantes para a Humanidade do que as seis horas que perderam com cada um dos infelizes turistas que tiveram o azar de expor os seus dotes artísticos nas ruas do território.
Não vi as fotos do rapaz russo que anda a dar a volta ao mundo e tenho pena de não ter ouvido o violinista francês, de não ter sido surpreendida com música que se oferece sem pré-aviso às pessoas que passam apressadas, como eu, com as ideias longe, com os problemas perto. Poder parar e sorrir, como parava e sorria quando descobri a música pelo insuportável órgão do Sérgio que, entretanto, cresceu e se tornou contrabaixista.

15 Jan 2016

Livr(o)e

[dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Aprendi a ler muito cedo, porque quis. Na altura não tinha noção de que saber ler era meio caminho andado para o combate ao tédio, porque desconhecia a palavra. Também não sabia o significado de solidão, filha não única mas sem outras crianças em casa. Com os anos, os livros passaram a ser companhia constante, vício, virtude também. Inundavam as tardes abafadas e intermináveis de Verão. Apagavam as noites de insónia.
Os livros. Só mais tarde, muito mais tarde, percebi a libertação que me trouxe o acto da aprendizagem da leitura. Ler liberta. Ler é poder ir a todos os lados, conhecer todas as pessoas, incluindo aquelas que nunca vimos, que falam línguas que não conhecemos. Ler é prepararmo-nos para o que o mundo tem de diferente. Ler é liberdade.
Às tantas é esta liberdade toda que faz com que goste que a minha filha goste de letras, apesar de ainda não ter idade para saber ler. Gosto que ela goste de livros, que me roube os livros das estantes e brinque com eles, que goste dos livros dela. Quero que possa ler tudo, que todos os livros do mundo estejam ao seu alcance. A minha mãe viveu o tempo em que havia leituras proibidas. A mim foram-me dadas toda as letras que consegui apanhar.
Não conheço o teor dos livros que se vendem que nem ginjas em Hong Kong, e em Macau também, e que são proibidos na China. Os livros que, ao que dizem, são os responsáveis pelo desaparecimento de cinco pessoas que viviam num espaço que julgávamos ser de liberdade. Não sei se os livros são bons ou maus, se contam histórias verdadeiras ou falsas. Só sei que são livros. E que tudo o que se escreve – nos livros e nos jornais – é um exercício de liberdade. Uma liberdade que, quando viola os outros direitos que também temos, deve ser avaliada em sede própria. É assim que acontece nos sistemas que, julgávamos, se regem pelos princípios do Estado de direito.
É estranha a história de Lee Bo. Como é estranho o desaparecimento dos quatro colegas, em Outubro passado, que não mereceu a atenção de ninguém: umas quantas linhas na imprensa local e uma silenciosa reacção da comunidade dita internacional e mais livre. É estranha toda a narrativa, tudo aquilo que nos têm dito. E os livros no meio de tudo isto. Ler. Ser livre.

2. Eles dizem que foi uma bomba a sério, os outros desconfiam. Vivemos – nós, aqui perto, e os outros, mais longe – com um problema sério que tem sido olimpicamente ignorado pela tal comunidade internacional defensora da liberdade, não da dos livros, mas de outra liberdade qualquer cujos contornos, frequentes vezes, não consigo perceber.
Desde que vim para Macau que me comecei a interessar pelas questões coreanas. Afinal, é aqui ao lado. No início era a curiosidade que me despertava um regime que parou no tempo; depois, com os livros que fui lendo, a vontade de criar uma imagem de um país que dificilmente conhecerei de outra forma.
A Coreia do Norte é a prova de que o mundo é uma coisa muito mal-amanhada e muito mal resolvida. É a prova também de que o xadrez da política internacional é um jogo sujo que não serve ninguém – nem os povos que alegadamente estão representados, nem os povos sem voz, aqueles que só merecem a preocupação de meia dúzia de organizações não-governamentais e de outros tantos observadores indignados.
Pyongyang tem sido um problema conveniente que a China tem no quintal. Ontem lia especialistas na matéria, todos eles chineses, dizerem que dificilmente Pequim terá uma atitude interventiva em relação ao regime que tem vindo a proteger porque não só tem perdido influência na liderança sem tino de Kim Jong-un, como também passaria a contar com dilemas adicionais resultantes de uma eventual queda do regime. Mas, explicam também esses especialistas, um quintal com competências nucleares não serve a Pequim. E não serve ao resto do mundo.
O mundo tem, aparentemente, mais um problema para resolver – um problema com que os norte-coreanos, esfomeados e perseguidos, vivem há 60 anos. Pois. Essa coisa da liberdade.

8 Jan 2016

Uma terra para ninguém

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]á não sei se foi em 2003 ou em 2004, mas lembro-me perfeitamente do cenário: uma espécie de estação de serviço na China, algures na província de Guangdong, um daqueles sítios em que se fazem paragens para esticar as pernas e fumar uns cigarros. Na altura ainda se fumavam cigarros alegremente e Edmund Ho era um Chefe do Executivo que gostava de conversar com os jornalistas sem os formalismos que hoje conhecemos. As estações de serviço e as pausas para os cigarros serviam para umas conversas que, sem cigarros, não fariam qualquer sentido.
Foi aí que ouvi falar, pela primeira vez, da necessidade de melhorar a qualidade de vida da população. Fazia parte dos objectivos do Governo de então mas, por esses dias, não conseguia perceber exactamente o alcance do desejo: Macau era aquele sossego em que havia gente que, não vivendo bem, também não vivia propriamente mal. Macau era aquele sossego em que tudo ficava a cinco minutos de distância, em que tudo era acessível. Macau era outra coisa que não isto que hoje é.
Os anos passaram e acabaram-se as paragens em estações de serviço na China para fumar cigarros e esticar as pernas. O Chefe que se seguiu não partilha da curiosidade do anterior, mas manteve o discurso da necessidade de melhorar a qualidade de vida das pessoas que estão em Macau (ou de parte delas). O discurso faz-me rir. Por razões agora completamente diferentes, não percebo o que se quer quando se fala em qualidade de vida. Não entendo o conceito que vai na cabeça de quem manda. Acredito que não serei a única.
A qualidade de vida, para a maior parte das pessoas – as que aqui vivem e as dos outros sítios também – passa pelas pequenas coisas. O que nos irrita e o que nos satisfaz não são as grandes questões políticas, as decisões de vulto, os anúncios espampanantes, as grandes negociatas, as tramóias de quem passa a vida em jogos de poder. O que nos irrita mesmo são as dificuldades do dia-a-dia, a dificuldade em estacionar o carro, a impossibilidade de apanhar um autocarro, a hora a mais que se demorou a chegar a casa – aquela hora que tanta falta faz porque, quando passa, já tudo é diferente.
Irritam-nos também os preços do supermercado, que não obedecem à inflação da China, os preços das casas, que não obedecem a qualquer regra de mercado. Irritam-nos ainda os serviços concessionados, lucrativos monopólios que chegam ao fim do ano com os bolsos cheios do que cobraram a clientes que andam ao engano, sempre ao engano, mas sem possibilidade de mudarem para qualquer coisa melhor.
O trânsito. Já se percebeu que não há grande volta a dar. Há anos que percebemos isso. O metro é obra que será motivo para uma expedição a Macau, que muito provavelmente não estarei por cá para a inauguração. Os autocarros são o que se sabe: sardinhas em lata às várias horas de ponta da cidade, a falta de civismo de muitos (mulheres com crianças ao colo, idosos e grávidas podem ter a sorte de um lugar sentado, ou não), ex-condutores de betoneiras que subiram na vida e agora são motoristas, aceleram nas rectas como se o povo fosse cimento, vai para a direita, vai para cima, vai para a esquerda e vem para baixo. Quem quiser que se agarre ao que houver para agarrar.
O estacionamento. Previsivelmente, esta semana os preços do parque privado onde guardo o carro todos os dias, para me dar a esse luxo imenso que consiste em ir trabalhar, subiram mais de 50 por cento, que esta malta precisa de dinheiro e não quis, de modo algum, ficar atrás da iniciativa governamental que tem como nobre objectivo libertar lugares de estacionamento. Uma semana de testes e a ideia não funcionou: sucede que há gente, boa gente, que precisa mesmo de se deslocar e não tem outra hipótese. As filas à porta do meu parque de estacionamento continuam a ser as mesmas. O tempo de espera também. Só a conta ao final do dia é que é bastante diferente. Para mim e para muita gente, em muitos outros parques de estacionamento.
As cabeças quadradas. A falta de ideias para resolver as pequenas coisas que nos irritam. Por altura da promessa de qualidade de vida de Edmund Ho, eu morava no NAPE e não tinha carro, porque não precisava dele – ainda havia táxis e autocarros. O NAPE era, há uma dúzia de anos, um sítio pacífico com meia dúzia de restaurantes, outros tantos bares, dois cafés muito simpáticos e um supermercado. Havia um ou outro karaoke de miúdos que, de vez em quando, se metiam em maus lençóis. Mas a zona era pacífica. Quem tinha carro estacionava na rua e os autocarros ainda se davam ao trabalho de apanhar passageiros nas paragens, porque tinham espaço para eles.
O NAPE mudou e vieram os casinos, as lojas de penhores, os karaokes com portas duvidosas em todas as esquinas. Como Macau é aquela cidade de permanentes contradições, no meio de toda esta confusão instalaram-se (ou já estavam instaladas) várias escolas, creches, uma universidade. E escritórios, negócios às claras e negócios por debaixo do tapete, lojas de vinhos caros e lojas de electrodomésticos, lojas de colchões, lojas de roupa manhosa.
Durante os anos de atribulada expansão demográfico-empresarial desta zona, que um dia se pretendeu nobre, não houve uma única alma nos Serviços para os Assuntos de Tráfego que se tivesse lembrado de encetar conversações com uma alma homóloga da Polícia de Segurança Pública para facilitar a vida aos pais que, diariamente, vão deixar e vão buscar os filhos à escola. Como não há lugar para estacionar nos parques públicos, nos parques privados e nos lugares com parquímetro, quem vai ao NAPE diariamente fazer o exercício de tirar a criança do carro e deixá-la na escola não tem outro remédio que não seja parar nas linhas amarelas das várias paralelas e transversais à avenida principal.
As soluções para este tipo de zonas foram há muito inventadas: abrem-se excepções para quem pára, à hora de entrada e de saída das escolas, em locais onde não é possível estacionar; destacam-se polícias que, em vez de terem como missão multar pais, ajudam na gestão do trânsito, na garantia de que as passadeiras são respeitadas. Facilita-se a vida a quem só está a tentar viver.
Mas por aqui é tudo diferente: a polícia gosta de passar multas a mulheres grávidas com filhos ao colo, no momento em que estão a preparar-se para entrarem nos carros estacionados em linhas amarelas e seguir viagem. Já se fosse à noite, o problema não se colocava: o lobby dos restaurantes e karaokes conseguiu abrir excepções nas linhas amarelas. A malta que bebe uns copos pode parar o carro; aos miúdos de dois anos é melhor dar um MacauPass e eles que se façam à vida, para aprenderem que não é fácil.
O que acontece hoje em dia no NAPE é apenas um exemplo do que se passa noutras zonas da cidade. Já que o conceito de qualidade de vida é algo que o Governo não consegue definir, para depois pôr em prática, que tenha em mente aquilo a que está obrigado: dar possibilidades às pessoas. A impossibilidade da normalidade mina qualquer ideia de vida.
Talvez um dia perceba onde queria chegar Edmund Ho.

18 Dez 2015

Fong & friends

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]inda o que aconteceu na sexta-feira passada. Faz hoje oito dias, ficámos todos a perceber com clareza – se dúvidas ainda tivéssemos – de que massa é composta muita da gente que, directa ou indirectamente eleita, com a bênção do Chefe do Executivo ou sem ela, ocupa um lugar na Assembleia Legislativa. Na realidade, o tema vinha de véspera e foi Tsui Wai Kwan, um dos escolhidos de Chui Sai On, que deu o tiro de partida para um dos mais tristes espectáculos a que assisti em mais de dez anos de plenários.
Resumindo, para depois concluir: há deputados que estão preocupados com o investimento que o Governo, através da tutela de Alexis Tam, está a fazer na saúde pública, no Centro Hospitalar Conde de São Januário e nos centros de saúde do território. Consideram que a intenção é boa, mas já chega, não é preciso ir mais longe. A razão para este travão político? A concorrência às clínicas privadas e ao Hospital Kiang Wu, essa instituição que dispensa apresentações e que todos nós sabemos como é financiada.
Como é hábito naquele edifício ao qual se deu o nome de Assembleia Legislativa, há um deputado particularmente despudorado, conhecido pelos frequentes dislates, de seu nome Fong Chi Keong, que assumiu a defesa da causa: se o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura continuar nesta senda de tentar melhorar o serviço público de saúde, vai acontecer uma catástrofe. (Quem não conhecer o estilo da retórica fonguiana poderá porventura achar que me enganei na redacção da última frase. Não, não me enganei.) Vai daí, o douto tribuno deixou um conselho ao secretário, que “ainda é novo”: há que parar enquanto é tempo, que o Kiang Wu é para ser tratado com amor e carinho.
Os deputados defensores do Kiang Wu – Fong Chi Keong é bom a fazer contas e somou oito, ali todos sentadinhos – explicaram, ao longo de várias e entediantes horas, como é que o Governo, ao estar a melhorar um hospital que é de todos, prejudica o hospital de quem tem dinheiro para pagar contas: há médicos que estão a trocar o Kiang Wu pelo São Januário. Que indecência, que despautério, que grande tolice. E, claro está, se o hospital público um dia destes recupera a confiança da população, as contas mensais do Kiang Wu provavelmente vão ressentir-se. Que vã preocupação.
O que tu queres sei eu, disse Alexis Tam a Fong Chi Keong, e disse muito bem, que todos sabemos o que ele quer: esta situação de concorrência desleal gerada pelo único governante que, até à data, veio defender que o São Januário não deve cair de podre, nem deve ser o hospital dos pobres e desvalidos, só pode ser resolvida com mais uns servicinhos encomendados ao Kiang Wu. Como se já não bastasse o dinheiro todo que, anualmente, entra por várias portas no hospital privado. Como se não bastasse.
Para Alexis Tam, obviamente basta. Não será à toa que, apesar dos cortes orçamentais deste ano, o secretário continua a ter dinheiro para investir, para contratar, para fazer. Apesar da oposição, continua, portanto, a ter apoio político para levar o seu projecto avante. Mesmo havendo um Kiang Wu na cidade. Mas a contestação à melhoria do que é público serve de explicação – queiram os deuses e restantes santos que não seja, de novo, premonitória – das dificuldades que se colocam a quem, de uma forma ou de outra, se atreve a tocar em vacas sagradas, mesmo que com jeitinho.
Falta de vergonha dos deputados à parte, importa reflectir, para memória futura, na postura de Alexis Tam, que fez questão de encerrar os dois dias de debate com uma mensagem clara e inédita na política local: ele está no Governo para servir a população, não uma minoria da população. E espera que os deputados entendam que assim é e assim vai continuar a ser enquanto lá estiver.
Este tipo de mensagem leva-me a pensar que, com o secretário, passa-se uma de duas coisas: sabe bem o que está a fazer, que terreno pisa, e por isso diz o que diz, porque segue um certo alinhamento nacional que não tem, nos dias que correm, o empresariado ganancioso e despudorado em grande conta; ou é simplesmente alguém que quer fazer, que quer cumprir o que promete, que quer ir mais além na vida política e poder continuar a defender o interesse público. Às tantas, são as duas coisas em simultâneo. Fong e amigos, parece que o mundo está a mudar, apesar do lento ritmo local da mudança.
Alexis Tam é uma carta claramente fora do baralho governativo, mas não está só. Noutro registo, com um estilo completamente diferente, o secretário para os Transportes e Obras Públicas protagonizou esta semana mais um momento político nunca visto. Depois da ladainha de comentários e perguntas de uma dezena de deputados, Raimundo do Rosário, com a sua forma de responder sem rodeios, pouco ou nada virada para os novelos retóricos em que os deputados se emaranham, explicou que não pode responder a tudo, nem pode fazer tudo. Ficou sem 300 milhões e o que lhe falta em pessoal, em terrenos e em recursos, tem a mais em problemas, limitações e nós para desfazer que, à medida que os anos foram passando, se foram tornando cada vez mais apertados.
É refrescante ouvir um governante desta terra não prometer estudos para resolver problemas há muito diagnosticados, mesmo que nos diga aquilo que não queremos ouvir. É refrescante ouvir um governante desta terra dizer que está aqui para me defender, a mim e aos outros todos que fazem parte da maioria que não sabe fazer contas com a quantidade de zeros da máquina de calcular de Fong Chi Keong.
Talvez daqui a uns tempos chegue à conclusão de que estas formas de estar não me deram um melhor hospital ou um trânsito menos caótico. Por ora, sabe-me bem ouvir um discurso político de maior elevação.

11 Dez 2015

Porque não me falas

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]icámos a saber esta semana que a Universidade de Macau pretende, a partir do próximo semestre e até ao ano lectivo de 2017/2018, acabar gradualmente com a língua portuguesa como disciplina opcional para os alunos que, frequentando outros cursos, querem ter um contacto com o idioma.
A universidade justifica a decisão com um argumento de ordem economicista, difícil de aceitar: diz então a instituição instalada em grandiosas instalações da Ilha da Montanha que, para evitar “desperdício de recursos”, as aulas hoje dadas neste regime opcional passarão a fazer parte de um “minor” a ser criado no ano em que o Português sai da lista de 13 disciplinas de escolha livre. Alega o estabelecimento de ensino que, “infelizmente, a maior parte dos alunos que escolhiam esta cadeira normalmente paravam quando atingiam o nível 1”, ou seja, a universidade considera que entre um semestre de aulas de Português e nada, nada é bem melhor, porque o que interessa é que a malta seja poupadinha.
Apesar de a instituição de ensino superior – financiada com dinheiros públicos – garantir que a língua portuguesa é de grande importância e que tudo está a ser feito para que sejam cumpridos os desígnios do Governo de Macau em relação à matéria, a verdade é que a aprendizagem da língua vai deixar de ser acessível a quem quer tirar “minors” e “majors” noutras áreas de conhecimento. Ou seja, basicamente, a Universidade de Macau vai passar a ensinar português a muito menos estudantes. Aqueles que, estando em cursos de diferente natureza, queiram ficar com umas noções do idioma, vão ter de recorrer a outras instituições de ensino.
A notícia não surpreende. Ao contrário do que escreveu no comunicado de reacção à notícia desta semana, a Universidade de Macau não é (e nunca foi) conhecida por dar grande significado à língua e às outras dimensões da cultura portuguesa. Este facto – é um facto objectivo, não é uma impressão – não chocaria se a universidade fosse privada. Acontece que não é.
Basta abrir o site da instituição para se perceber como a língua portuguesa é (mal) tratada. Clica-se na opção “português” e o que nos aparece à frente deveria ser motivo de profunda vergonha para quem gere uma instituição que passa a vida a gabar-se dos seus feitos: encontramos então uma mistura de português e inglês, sendo o inglês muito mais presente.
Também na comunicação com os jornalistas de língua portuguesa não há, salvo raríssimas excepções, o menor cuidado com o idioma usado para se tentar passar a mensagem. Para quem não está dentro dos detalhes da profissão, aqui fica o contexto: o Gabinete de Comunicação Social do Governo tem um site de acesso exclusivo aos jornalistas que serve para a divulgação das notas de imprensa dos vários serviços e entidades públicas, site este que tem versão em chinês e versão em português. Ora, a Universidade de Macau envia para o site em língua portuguesa comunicados destinados aos jornalistas de língua portuguesa redigidos em inglês. E aqui vão alguns exemplos, para fundamentar o que escrevo: na passada quarta-feira, fomos todos informados de que a UM Portuguese Debating Team wins 2nd prize at Portuguese debating competition for students in Asia. Na terça-feira, disseram-nos que os UM students win 1st prize at ‘Challenge Cup’ Contest. Na segunda-feira, a UM wins championship at 3rd Macau Model European Union e a UM holds joint conference with United Nations Commission on International Trade Law. Got it?
Dir-me-ão que há coisas mais importantes do que a língua em que chegam as notas de imprensa da Universidade de Macau e eu concordo, mas pouco. A forma diz muito sobre as práticas de uma instituição de ensino que deveria ter orgulho em pertencer a uma terra com uma herança portuguesa que a China quer preservar. E é óbvio que aquilo que é português é uma pedra no sapato universitário da Ilha da Montanha, um fardo que tem de se ir aguentando, um legado muito pouco desejado.
Das coisas que são mais importantes do que a forma: o curso de Direito em língua portuguesa. O desinvestimento que por ali anda e que começou, há já alguns anos, com a nomeação para cargos de chefia e de direcção de académicos sem currículo, nem provas dadas no direito de matriz portuguesa, no Direito de Macau. Independentemente do mérito e dos conhecimentos que possam ter, com a fantástica capacidade de gestão pela qual são reconhecidos, nada têm que ver com o que ali se ensinava, com o espírito do curso. Direito é, acima de tudo, cultura, capacidade de compreensão de uma certa forma de estar. Direito é também língua, por mais que alguns não queiram. Em Hong Kong nunca houve qualquer problema em se perceber que assim é.
Volto ao site da Universidade de Macau e aqui estou eu de novo empancada na forma: clico na portuguesa Faculdade de Direito e aparece-me uma Faculty of Law com um Bachelor of Law in Portuguese Language que, dizem-me, é um program with a purpose of preparing students to be jurists and being familiar with Macau legal system. Salva-se a additional information da introduction – um texto miraculosamente escrito em português. Volto atrás e clico no study plan, que me apresenta uma lista de disciplinas, todas elas com nomes ingleses, sobre cadeiras que são dadas em português. Nem todas têm correspondência com o curso que frequentei há uma década, nesta mesma universidade. Mudou-se o programa, a carga horária das disciplinas e deixou de ser um curso automaticamente reconhecido em Portugal, para ter apenas validade neste 30 quilómetros quadrados. Very useful, portanto.
Regresso ao ensino do português. À incapacidade que tenho em perceber que a língua portuguesa não seja entendida com um grande investimento. À incapacidade que tenho em perceber por que razão não é a Universidade de Macau o maior pólo de formação de Português para estrangeiros na Ásia, porque é que não é reconhecida fora do território como um grande centro de aprendizagem da língua portuguesa.
No meio de tudo isto, há o Governo. The Government. E um chanceler da universidade que se chama Chui Sai On e que é também Chefe do Executivo, o homem que tem a responsabilidade máxima de zelar pelos nossos recursos e pelos nossos interesses. Talvez não fosse má ideia, um dia destes, começar a olhar com atenção para o que se passa lá longe, na Henqin Island.

4 Dez 2015

Parto com dor

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]e boas intenções, dizem, está o inferno cheio, mas eu gosto de boas intenções. Para que o mundo mude, é preciso que alguém queira que as coisas aconteçam; melhor será se a intenção de evolução for boa. É por isso que não alinho no coro de quem condena com veemência as intenções de Alexis Tam para a área da Saúde, por serem demasiado ambiciosas ou anunciadas antes do tempo. São boas as intenções do secretário e há já alguma evolução, dizem, pelo menos ao nível estético, no plano funcional. É positivo que, num Governo que objectivamente não é alvo de avaliação popular, alguém avance com promessas para que se crie um compromisso.
Acontece que as boas intenções de Alexis Tam esbarram no tempo e no espaço que Macau não tem. O tempo foi perdido nos anos que se deixaram passar sem que houvesse qualquer preocupação de modernização, de ampliação dos serviços e de melhoria de resposta a uma população cada vez maior e também em crescente grau de exigência. Este desperdício de anos não é uma mera impressão – o erro foi assumido, ao vivo e a cores, por Lei Chin Ion, o homem que, nestes quase 16 anos da RAEM, ou foi director do hospital público ou foi, como ainda é, director dos Serviços de Saúde.
O espaço que Alexis Tam não tem não é de ordem física: é, digamos, de natureza tradicional ou, se preferirem, de cariz histórico, de matriz cultural, de características sociais profundamente enraizadas. A decisão vem de longe, mas mantém-se forte e foi recentemente reiterada: quem manda entende que o Hospital Kiang Wu, instituição privada dada à beneficência, deve ser apoiado financeiramente pelo Governo. Há vários modelos de transferência do erário da RAEM para o piedoso Kiang Wu, que tanto vai buscar dinheiro à Fundação Macau, como vai buscar ao orçamento do próprio hospital público.
Em terra de muito dinheiro, não me choca que se ajudem as beneméritas instituições – apesar de serem muito pouco caridosas as contas que o hospital privado de Macau cobra a quem passa lá umas noites. O que me indigna é que, à custa do espaço que o Kiang Wu foi conquistando – pelos tratamentos que dá e que não existem no São Januário, pelas instalações que tem e que faltam ao São Januário, pela formação que proporciona e que não há no São Januário –, se tenha ignorado a importância de um hospital público condigno.
Ao princípio, quando as coisas começaram a correr mal na saúde, eram meia dúzia de portugueses mal habituados que batiam o pé – vinham de longe, de um país que, apesar da falta de dinheiro, se pode gabar ainda hoje de um serviço público de excelência. Não é segredo para ninguém que, nalguns corredores, os portugueses – e alguns jornalistas nos quais me incluo – eram conhecidos por serem particularmente aborrecidos, por cometerem o imperdoável pecado da pergunta. Ainda não perderam o título.
Era assim ao princípio, mas deixou de ser só assim: porque a população de Macau passou a ter menos dinheiro para deixar em filantrópicas instituições prestadoras de cuidados de saúde, virou-se para o serviço público que, não sendo gratuito, é mais comedido na hora de apresentar a factura. As queixas – algumas injustificadas, muitas justificadas – começaram a crescer. E os jornalistas que não eram conhecidos por serem chatinhos juntaram-se ao grupo dos muito aborrecidos que fazem perguntas.
Esta semana, uma ouvinte do canal chinês da Rádio Macau aproveitou a presença do director dos Serviços de Saúde no programa de antena aberta da emissora para dar a voz e contar a sua história: teve um filho no São Januário e não correu bem. Deixaram-lhe placenta lá dentro. Teve um problema com a sutura. Teve de se submeter a uma intervenção cirúrgica para corrigir o que não correu bem. Teve um processo doloroso. Queixa-se de ter sido tratada com fracos modos por quem a atendeu. Teve um filho e ter um filho não foi a melhor coisa que lhe aconteceu.
Sei de fonte certa que esta mulher não é um caso único – e qualquer jornalista consegue, sem grande esforço e em meia dúzia de horas, redigir uma colectânea de problemas hospitalares na especialidade clínica que mais alegria deveria dar a quem entra no São Januário. Vistas as coisas, é das poucas salas onde se vai por não se estar doente – está-se ali porque se está a gerar vida, esse acontecimento que deveria ser festivo, bonito, indolor e inesquecivelmente bom. É um desejo mundial: não importa o contexto étnico ou cultural das mulheres que ali estão.
Sem espaço para inverter desejos maiores do que o dele, resta a Alexis Tam pegar no pouco que tem (porque o São Januário e os centros de saúde, sendo muito, são pouco) e, sem pretensões de querer vencer o imbatível, apostar num projecto modesto, mas de excelência, ao melhorá-lo naquilo que faz mesmo falta: melhores equipamentos, melhores tratamentos, pessoas mais bem formadas, pessoas com mais tempo para se dedicarem às pessoas que ali vão parar, gestores que saibam mesmo o que andam a fazer e, já agora, garantir que as mensagens que se passam cá para fora são de uma irrepreensível honestidade. Para que a história da mulher que ligou para a rádio e todas as outras parecidas sejam a excepção e não a regra. Para que as promessas sejam mais do que um compromisso.

29 Nov 2015

Amanhã logo se vê

[dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Eu não cresci no tempo dos meus pais. Não era suposto encontrar um mundo igual. Bem vistas as coisas, quer-me parecer que aquilo que estava reservado para a minha infância foi bem melhor do que as circunstâncias em que os meus pais cresceram. Os meus primeiros anos de vida foram-se somando numa altura de paz, naquele pequeno universo em que nos movimentávamos. Foram anos suaves por aquelas bandas, muito ocidentais e a quererem ser europeias.
Assim como não era suposto crescer no mundo dos meus pais, também não seria de esperar que as minhas filhas nascessem no enquadramento que eu encontrei. Mas não, não estava à espera que o mundo – o mundo de onde venho e que nunca deixou de ser o meu, por mais longe que esteja – regredisse deste modo. Não, não é este o mundo que quero para as minhas filhas. Um mundo que não consigo compreender, por mais que leia e veja e pense.
Os atentados de Paris, que nos dizem mais do que os atentados de outros sítios porque conhecemos Paris e porque temos amigos em Paris e porque temos família em Paris, fizeram muito mais do que mortos. Mas nem vale a pena ir por aí, pelo medo, pela sensação de insegurança que se quer criar e que se consegue efectivamente incutir. Também não valem mais do que meia dúzia de linhas os meninos que decidiram que queriam fazer um Estado Islâmico, essa gente enviesada que anda a brincar às guerras sem regras, sem pudor, que anda a espalhar o terror e a conquistar outros meninos enviesados para uma causa sem causa alguma.
O que aconteceu em Paris deixa-me preocupada com a Europa que temos – desunida e fraca, sem capacidade de afirmação, nem de uma resposta conjunta a momentos de crise. Não teriam sido necessários os atentados de Paris para chegarmos a esta conclusão: a sangria no Bataclan e os dias que se seguiram só vieram confirmar o que já tínhamos aprendido com os anos da crise nos países mais pobres e, mais recentemente, com a ausência de uma solução para o drama dos refugiados.
A aparente impotência europeia não é apenas um problema europeu porque, bem vistas as coisas, a Europa conta e está no centro de quase tudo. E, por contar, de repente dava jeito – a quem é europeu e aos outros também – que a Europa se entendesse e que a Europa percebesse que o mundo está a mudar muito mais rapidamente do que estaríamos à espera quando começámos a somar anos.
No meio de tudo isto, seria bom termos uma ideia de que mundo estamos nós a construir para os nossos filhos. Urge que se encontrem soluções, sendo que serão sempre difíceis.

2.

Nós por cá tudo bem, obrigada. Na noite em que ainda assistia, incrédula, às imagens que foram chegando de Paris, a Torre de Macau e o céu em redor iluminavam-se com um estonteante fogo-de-artifício, talvez em jeito de comemoração de mais uma feira-da-gastronomia-em-cima-de-uma-rotunda, feito que não lembra ao diabo mas que, por aqui, é a demonstração do quão criativo é o nosso empresariado político.
Em semana de feira-da-gastronomia-em-cima-de-uma-rotunda, temos Linhas de Acção Governativa e Grande Prémio, cada um deles à sua velocidade, num contraste que confirma que esta terra é só paradoxos. Do plano anual do Executivo não se poderia esperar muito – eu, pelo menos, nunca espero – até porque Março foi quase ontem e só aí começámos a perceber efectivamente de que material se faz esta equipa governativa.
No espaço de nove meses foram apresentados dois pacotes de medidas e estas últimas mais não poderiam ser do que uma repetição das primeiras que, por acaso, têm tudo que ver com as não-sei-quantas-outras que as antecederam.
Já nos habituámos à ausência de discurso político por aqui. Que venha o trabalho, que os projectos se concretizem, que bem precisamos deles. É bonito ouvir falar de qualidade de vida, mas a Macau falta quase tudo para que se possa falar nela.
Mas nós por cá tudo bem. Haja feiras-da-gastronomia-em-cima-de-rotundas, que o povo gosta. E cheques, claro está, que a austeridade chegou, mas em fórmula vencedora não se mexe. É mais ou menos como o Grande Prémio. Mas mais devagar nas curvas.

20 Nov 2015

O caso do caso

[dropcap style=’circle]C[/dropcap]laro que importa perceber em que circunstâncias morreu Lai Man Wa, directora-geral dos Serviços de Alfândega, titular de um alto cargo do território e com funções particularmente delicadas. Importa perceber porque é um assunto do interesse público. Por ser do interesse da população, fez bem o Chefe do Executivo em chamar os jornalistas para uma conferência de imprensa sobre o assunto, mesmo que essa conferência não tenha sido mais do que uma declaração, sem direito a perguntas e a respostas. Mas a convocatória para esta conferência de imprensa foi a única coisa que Chui Sai On fez bem no modo como geriu, em termos de comunicação, a morte de Lai Man Wa – o Chefe do Executivo quis antecipar-se a boatos.
Não vale a pena sequer recordar os detalhes das primeiras informações oficiais divulgadas apenas quatro horas depois da descoberta de um corpo não imediatamente identificado na casa de banho pública do jardim dos Ocean Garden. Desde o caso Ao Man Long que, muito provavelmente, o comum mortal de Macau não prestava tanta atenção aos pormenores das notícias, que reproduz com rigor nas conversas reais e virtuais que vai tendo sobre o assunto. Porque se trata de uma questão de interesse público, o público interessou-se.
O interesse do público não terá sido, no entanto, aquele de que o Governo estaria à espera.61115P21T1 Bastou a divulgação de dois ou três detalhes da morte de Lai Man Wa para que a desconfiança se tornasse generalizada: parece não haver vivalma que não tenha ficado de pé atrás com as declarações do Governo sobre a matéria – declarações estas que, admito, poderão corresponder à mais cândida verdade e serem de um enorme rigor científico. Mas a desconfiança não torna o caso mais simples.
Há um caso dentro do caso Lai Man Wa. O caso Lai Man Wa, que continua a suscitar pedidos de investigação aprofundada, é um; depois, há a desconfiança em relação à palavra do Governo, dos governantes e das autoridades policiais – uma desconfiança que não foi mantida em sussurro e, por isso mesmo, levou a uma nova conferência de imprensa e à revelação de vários detalhes sobre o que aconteceu, sem que tal tivesse, de modo algum, contribuído para serenar os ânimos, ou seja, para tornar toda esta história mais convincente.
O caso Lai Man Wa, independentemente do que ainda seja apurado, é preocupante: é de uma vida que estamos a falar e é, além disso, a vida de alguém que jurou servir o território.
O caso dentro do caso, de uma natureza diferente, também deveria levar os dirigentes da terra a dois minutos de reflexão, por ser revelador de duas realidades não menos chatas para quem governa a terra, sobretudo nos tempos que correm e com as tendências que chegam de Pequim para este Outono/ Inverno:
1) O Governo não domina a arte da comunicação. Não sabe fazer a filtragem que é essencial para que seja transmitida a mensagem correcta. Não sabe escolher o tempo certo para falar. Diz de mais para depois dizer de menos. Não é uma novidade. O caso Lai Man Wan só veio provar que se trata de um problema crónico.
2) Muitas das pessoas que vivem em Macau não acreditam na boa-fé do Governo, porque não acreditam na palavra dele. É nos momentos críticos que se testa a relação dos que mandam com os que são mandados. O caso dentro do caso Lai Man Wa não trará ninguém para a rua, não será motivo para manifestações, mas é mais uma pedra num sapato que há muito se tornou apertado.

6 Nov 2015

Um presunto e um galo

[dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Como se já não bastasse o ar que respiramos todos os dias. A Organização Mundial de Saúde veio esta semana dizer que as salsichas, o bacon e os enchidos são cancerígenos. A carne vermelha, às tantas, também faz muito mal. Mas certo, certo é que o presunto está no mesmo grupo de substâncias cancerígenas que o tabaco, o amianto e os gases de escape emitidos pelos motores a gasóleo. Quem diria.
Em Hong Kong, onde se fazem as contas às pessoas que morrem por ano vítimas da poluição, também há estudos sobre os hábitos alimentares: os residentes comem três salsichas e meia e quase duas fatias de fiambre por semana. Estão condenados, os pobres coitados. Como se já não bastasse o ar que respiram todos os dias.
Vivemos na era em que tudo faz mal. Comer vegetais faz mal, porque não sabemos de que é que são realmente feitos. Beber leite faz mal, porque não sei o quê. Comer carne faz mal. Comer peixe faz mal. Comer pão faz mal. E depois há ainda o glúten, a descoberta das mil e uma intolerâncias alimentares. E agora as alheiras e o salpicão e o presunto, bens essenciais que não me apetece dispensar – fazem parte do meu código genético. Fumar também faz mal, mas isso faz mesmo. Beber álcool também, embora hoje em dia o mundo científico nutra uma grande simpatia pelo vinho tinto. Em suma: viver faz mal.
Quem vive em Macau – assim como aqueles que vivem em Hong Kong – sabe desde o primeiro dia que corre sérios riscos, sendo que o problema não é o presunto importado, a rara alheira de Mirandela ou o enlatado manhoso. Mesmo que seja vegan, faça 30 minutos de exercício físico por dia e a hora de meditação ao entardecer o tenha tornado completamente impávido e muito sereno, incapaz de se chatear com o trânsito, com a inflação e o mutismo selectivo de parte da população, está condenado o triste residente das regiões administrativas especiais. O problema é mesmo a inevitável respiração – sair à rua é uma coisa complicada, sobretudo por estes insalubres dias. Crianças e velhos trancados em casa, os que têm problemas respiratórios também. Os outros que tenham paciência e respirem o ar insuportável a que temos direito.
Um dia destes o Governo faz um ano e começo a perder a esperança de que alguém se preocupe – a sério – com a poluição. Já sei que esta nuvem que nos cobre a cabeça e não é chuva vem de fora, que a culpa não é nossa, que estamos do Delta do Rio das Pérolas e por aí fora. Mas quem percorre o território diariamente não acredita na culpa externa: basta abrir os olhos e ver os autocarros velhos, as carrinhas e os camiões a desfazerem-se que andam por aí. São os tais gases de escape emitidos pelos motores a gasóleo – e frequentes vezes são gases que nem escape têm, que a viatura já deu o que tinha a dar. São salpicões sobre rodas, portanto.
As autoridades não parecem estar particularmente preocupadas com a situação. Nunca vi nenhuma fumarenta carrinha ser multada. Talvez porque a polícia se preocupa mais com os veículos parados, aqueles que têm donos que se esqueceram da moedinha no bolso, aqueles que têm donos que se esqueceram de acordar às 8 da manhã de domingo para não falharem o parquímetro que, à porta de casa, não lhes dá um dominical minuto de descanso, guardado que está por um zeloso agente das força de segurança.
Quanto ao Governo, falta alguém com vontade de tornar Macau numa cidade habitável, onde se possa respirar fundo e menos fundo, que imponha técnicas de conservação energética e essas invenções modernas que, dizem os especialistas dos outros países, fazem poupar na conta da electricidade, com as devidas consequências para uma vida um bocadinho melhor.

2. A semana começou mal: mais de uma centena de pessoas feridas num acidente com um jetfoil que viajava de Macau para Hong Kong. O barco embateu num misterioso objecto, embateu com força, e aquilo foi sangue por todos os lados. As imagens que nos chegaram são feias – e mais feias são porque podíamos ser nós. Quando a desgraça nos é próxima, torna-se mais forte.
Não foi o primeiro acidente com um jetfoil. Aqui há uns anos falou-se muito na necessidade de melhorar as condições de segurança dos barcos, mas o assunto caiu no esquecimento. Há jetfoils sem cintos de segurança. A maioria tem apoios para os braços feitos de metal. Há várias embarcações com bancos velhos, desconfortáveis, com as marcas de muitos corpos transportados. Não há cintos de segurança, nem sistemas pensados para o transporte de crianças – que pagam como gente grande assim que completam um ano de idade. Em caso de acidente, tudo isto conta. É diferente bater com a cabeça num bocado de ferro ou num pedaço de espuma.
Sabemos bem que o empresariado da região não se distingue por ser generoso nas actividades que desempenha profissionalmente, apesar de haver algum gosto por uma certa filantropia com fins meramente mediáticos. Mas falta a generosidade para com aqueles que sustentam os negócios: de um modo geral, o carpinteiro poupa na espessura da madeira dos armários e nas camadas de verniz, o empreiteiro economiza nos metros de fio eléctrico e de tubos, a companhia aérea da terra resolve o problema do catering com umas bolachinhas oferecidas em troca de publicidade.
A Shun Tak – a proprietária do acidentado jetfoil, com fortes interesses também no imobiliário – triplicou os lucros no ano passado, em relação a 2013. Não é propriamente uma pequena e média empresa com problemas financeiros. Mas é poupadinha nas condições que oferece aos seus clientes, depois de anos de monopólio, sem concorrência no transporte entre Macau e Hong Kong.
Porque o empresariado de Macau não é generoso, o Governo tem de o obrigar a ser, pelo menos, cuidadoso: talvez tenha chegado a hora de termos barcos com melhores condições, para que, da próxima vez, em vez de sangue sejam só galos na testa.

30 Out 2015

Do golfe e da gula

[dropcap style=’circle]T[/dropcap]alvez Steve Wynn não tenha razão. Talvez Steve Wynn tenha razão. Para quem vive fora deste peculiar mundo dos negócios que o jogo é, há razões que a razão desconhece. Steve Wynn queixa-se, basicamente, de não saber as regras do jogo que aí vem.
Quem cá está desde o início disto tudo lembra-se bem da postura eu-quero, posso-e-mando do magnata que baptizou o império que construiu com o seu nome e fiou-se na virgem, neste caso nada virgem e chamada mercado VIP. Mas quem cá está há um bom par de anos também já percebeu que o Governo, salvo raras excepções, não é um exemplo em termos de comunicação e é mestre no fingimento. A lei do tabaco é um bom exemplo, com trocas e baldrocas e intenções de mudança a cada passo, com exigências a cada passo também.
Agora é Sheldon Adelson que, após a divulgação dos descendentes resultados da Sands, veio dizer que não sabe o que esperar de Macau. É uma incógnita, é um ponto de interrogação. O octogenário dono da Venetian que, como bem sabemos, também não fez fortuna pela sua moderação e ponderação, foi menos acutilante do que o colega Wynn, mas não deixou, no entanto, de apontar a incerteza que se vive no jogo. E se há incertezas no jogo, há incertezas no resto de Macau.
Bem-vindos à RAEM, Steve Wynn e Sheldon Adelson. Bem-vindos a Macau. Em traços gerais, nos últimos anos, os que mandam no jogo e nas empreitadas estiveram bem habituados: sabiam com o que podiam contar e aquilo com que puderam contar foi sempre mais, sempre a crescer. Não foi este o caso para o povo, para quem não faz contas aos milhões. static1.squarespace
Depois das incertezas da transferência de administração, das incertezas dos primeiros anos de um novo Governo, Macau cresceu sem que nos explicassem para onde se estava a caminhar. Um crescimento incerto, opaco, sem uma ideia que o orientasse, em que as únicas certezas foram chegando até nós nos números das rendas das casas, nos preços dos produtos mais básicos do supermercado, na conta da luz, na dificuldade em nos mexermos, na dificuldade em respirarmos. E no preço que tudo isto vale, porque tudo nesta terra tem um preço.
Agora são os senhores do jogo que, vindos de fora, não sabem com o que podem contar. Acho mal que assim seja, porque tanto a gente grande no dinheiro que tem, como a gente pequena nas poupanças que não faz devia saber mais ou menos com o que pode contar. Mas bem-vindos a Macau, que Macau há muito que foi nisto que se transformou.
No fim-de-semana passado, um antigo ministro da Economia de Portugal passou por cá para falar de criatividade e deixou a ideia de que se Macau não enriquecer do ponto de vista humano, de nada lhe valerá enriquecer com o jogo. Steve Wynn e Sheldon Adelson têm, como é óbvio, outras preocupações no que toca ao enriquecimento e muitas das pessoas que cá vivem também: isso da riqueza de espírito não enche barrigas, não compra bons carros, nem enche de rechonchudos diamantes os dedos das esposas e menos-esposas.
Agora que o jogo já deu mostras de ser um chão para dar uvas finitas, uvas certas conforme o mês da colheita, façam-se outras contas, para que os próximos anos não sejam tão incertos como foram os últimos 15. Explique-se aos investidores o que se espera deles e diga-se ao povo o que se pode esperar de Macau. Façam-se contas ao que se ganhou, mas reconheça-se que muito se tem perdido – os dedos das mãos não chegam para esta contabilidade.
Da China chegam novas que nos dizem que lá em Pequim o luxo é uma coisa em desuso. Não cai bem. Já sabíamos que era assim e isso reflecte-se nas contas dos casinos e de quem pulula em torno deles. Desde esta semana, a golfe e a gula passaram a ser pecados quase mortais para o Partido Comunista Chinês.
É melhor não mexer no golfe local, actividade predilecta do antigo Chefe do Executivo. Quanto à gula, se Macau ouvir a mãe-pátria, não há na cidade nutricionistas que cheguem. Numa terra de incertezas, em que quase tudo é um ponto de interrogação, sabe-se porém que uma dieta não fazia mal a muito boa gente. E a gente menos boa também.

23 Out 2015

A falta que faz uma BIC

[dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Macau esteve quase, mas muito quase, a escrever mais um capítulo na sua fantástica história política: por pouco, os eleitores do território não elegeram um deputado à Assembleia da República Portuguesa que fez questão de esclarecer previamente que jamais iria ocupar o lugar. Portanto, uma espécie de Manuel João Vieira, mas com muito menos sentido de humor, menos capacidades técnicas ao bandolim, menos jeito para pintar e sem promessas de alcatifar Portugal.
Pereira Coutinho não foi eleito mas, ainda assim, o movimento pelo qual se candidatou ganhou ontem projecção mediática em Lisboa, pelos piores motivos: o deputado do Partido Socialista eleito pelo Círculo da Europa, Paulo Pisco, veio contestar os resultados das eleições por causa de acontecimentos estranhos na mesa de Macau com os votos que, como todos nós sabemos, se preenchem em casa e são enviados pelo correio. Em causa estaria o preenchimento de vários boletins com a mesma esferográfica e até votos com documentos de identificação em anexo.
Paulo Pisco – percebeu-se logo pela reacção da Comissão Nacional de Eleições – não vai longe nas suas reivindicações: os boletins escrutinados objecto de estranheza não foram colocados de lado, pelo que é difícil fazer uma investigação sobre o assunto. É, no mínimo, uma peculiar explicação para um esquisito método de lidar, oficialmente, com acontecimentos invulgares.
Houvesse uma maior variedade de papelarias em Macau e não andávamos todos a roubar canetas uns aos outros e a escrever com material nada criativo. A culpa, no fundo, é do Governo de cá: as rendas estão altas, ninguém põe mão nisto, as papelarias são negócios pequenos sem capacidade para fazerem frente à ganância dos senhorios. Outra explicação para a monotonia na escrita eleitoral poderá ter que ver com a ausência de BICs no território, que há muito tenho vindo a defender, por jamais me terem deixado ficar mal: em futuro acto do género, recomendo vivamente a importação de duas caixas das clássicas, outras tantas de cristal soft, mais umas quatro das laranja e, para o eleitorado mais jovem, algumas shimmers perfumadas. As cristal finas, elegantes no traço, têm pouca visibilidade e ainda se falha o quadradinho.
Porque sou sensível, ainda assim, às preocupações de Paulo Pisco, faço parte do grupo daqueles que acham que não custa nada – ou custa muito pouco – avançar para métodos de voto menos clássicos. O voto electrónico, conjugado com formas mais tradicionais para regiões do mundo afastadas das representações consulares, é capaz de ser uma boa ideia: a malta vai ali ao consulado e vota, sem precisar de BICs.
Em Macau teremos, porém, uma nova exigência a fazer: a tradução para chinês dos boletins. É que, quando se vota no conforto do lar, o Google Translate está ali mesmo à mão de semear. E nós, cidadãos portugueses, não queremos que se perca o nível de envolvimento conquistado nestas eleições. Dos resultados que ontem ficámos a conhecer destaca-se uma grande novidade: há muitos portugueses de Macau que, apesar de não voarem todos os anos de férias para Lisboa e de eventualmente não dominarem a língua, acompanham avidamente a vida política portuguesa.

2. A semana de Macau fica marcada por um episódio quase tão invulgar quanto a quase-eleição de Pereira Coutinho para o Parlamento português: uma destas madrugadas, ia um camião do lixo ali na Avenida Rodrigo Rodrigues e, de repente, começaram a chover documentos do hospital, contendo dados de utentes do São Januário. Como há quem esteja sempre atento a acontecimentos inusitados, há registo em vídeo de folhas de análises e de outras coisas do género a serem levadas pelo vento. E ainda bem que alguém reparou: o hospital mandou funcionários apanhar os papéis que conseguiram encontrar.
O caso foi, naturalmente, objecto de notícia. E alvo de uma imediata reacção do São Januário – reacção muito mais pronta e cabal do que noutras situações que, na minha perspectiva, mereciam reacções muito prontas e imensamente cabais. O hospital lá explicou o sucedido, a troca de cores dos sacos do lixo, isto e aquilo, parece que a culpa é lá de uns funcionários de um dos departamentos, o chefe da rapaziada nem sabia, claro que os chefes nunca sabem de nada, não há que levar a mal. O voo da papelada é chato, mas não vem dali qualquer mal ao mundo.
Nas redes sociais, as críticas multiplicaram-se, sobretudo em relação a Alexis Tam que, nem de propósito, uns dias antes tinha vindo fazer um elogio rasgado aos Serviços de Saúde. Mistura explosiva, esta, a de um elogio precipitado (porque os elogios devem vir dos utentes e ainda não ouvi por aí nada que se assemelhe a um louvor) com um episódio que é sobretudo caricato.
Não se espera, por certo, que um secretário seja capaz de controlar tudo, do papel que é rasgado ao material que é desinfectado. Por agora, e em relação ao caso em análise, fez o que podia fazer – pediu justificações e que a situação fosse corrigida.
Nestas coisas da saúde, coisas tão sérias como a saúde, é bom não nos esquecermos do que é importante: o caso dos papéis ao vento ocupou muitas mais linhas de jornais do que os tratamentos que continuam a não ser disponibilizados, os médicos que ainda precisam de ser contratados, a educação para o que é servir um utente que continua por existir, uma página na Internet que se pareça com uma página na Internet de um hospital de uma terra civilizada, porque a falta de informação também tira anos de vida. Mas o que é caricato tem a capacidade de se sobrepor ao que é importante – é assim no mundo inteiro. Que o caricato não faça rolar cabeças.

16 Out 2015

De não saber o que nos espera

[dropcap style=’cricle’]1[/dropcap]. Desisti. Desisti na medida em que posso desistir, dadas as obrigações profissionais. Não quero saber. Digam-me quando se perceber o que foi isto, o que vai ser isto, o que foram estas eleições em Portugal. Não questiono resultados – cada um vota como quer, à direita ou à esquerda, no centro ou nos extremos. É a beleza da democracia, esta liberdade de ideias, por mais estranhas que nos possam parecer. É a liberdade de acreditar nas politicamente correctas inverdades que melhor nos soam.
O pior veio depois, veio agora, está para vir. Nada é irrevogável. Nem ninguém. As propostas de ontem hoje já não têm qualquer interesse – o poder apaga tudo, condiciona tudo, muda tudo e todos.
Desisti. Desisti de querer saber. Já sei o que me interessa: os próximos dois anos vão ser mais 24 meses de dias perdidos. Vão ser dias perdidos para quem lá está e para quem, como eu, não está mas gostaria que Portugal fosse uma opção, porque não é. Andamos sempre a ir à guerra sem ajuda.

2. Nas contas que alguma imprensa portuguesa tem feito esta semana, Macau entra na equação como sendo a incógnita. Os votos ainda não estão contados e ainda faltam uns dias para se saber do sucesso de José Pereira Coutinho.
Estranho caso este que só as regras da mais deselegante política permitem compreender: um deputado de uma região administrativa especial de um país candidata-se ao parlamento de outro país. Avisa que, se ganhar, não pretende ocupar o cargo. Os eleitores que votaram nele não votaram bem nele, mas sim noutro qualquer que o vai substituir. 91015P22T1
Continuo sem perceber o que ganha Pereira Coutinho com esta candidatura, cabeça de lista de um movimento político sem qualquer expressão. Percebe-se o que ganha a candidatura, ao apostar em Macau num homem com capacidade de mobilização eleitoral. Os lucros políticos de Coutinho poderão ser muitos e vantajosos, mas com tudo isto ficou a perder, ao ser protagonista de uma dança que só lhe fica mal.

3. Mas por cá é mais Nova Iorque, corrupção, Nações Unidas. Ng Lap Seng ocupou a semana à imprensa, o caso está bicudo, afinal já não são só alegadas falsas declarações na alfândega norte-americana, afinal isto já mete corrupção, dinheiro gordo, pessoal diplomático, Macau.
Como seria de esperar, aqui ninguém sabe de nada, o silêncio é um bom parceiro, nos negócios também, eles às vezes é que se esquecem disso. E um dia destes já ninguém se lembra – é o deixa andar a ver se passa.
Ainda bem que vem aí o Grande Prémio, que Macau anda pelas ruas da amargura nas agências de notícias e nos jornais lá de fora, e a gente gosta que a terra faça boa figura. Depois do jogo que já não é infinito, dos junkets e dos escândalos, Ng Lap Seng não veio ajudar ao noticiário local de desgraças. Macau, terra harmoniosa e de gente séria. Ao volante e no Circuito da Guia a coisa vai correr melhor.

4. Antigamente era no salão nobre do Leal Senado, a emprestar alguma dignidade à coisa e à causa lusófonas. Este ano foi diferente – a conferência de imprensa do Festival da Lusofonia foi realizada no auditório do Mercado de São Domingos. Foi um momento oficial num local raras vezes usado para estes fins, sem sequer contar com a presença das associações que também se juntam à festa.
Quem lá esteve diz que foi um acontecimento pouco lusófono e nada feliz. Apesar do cheiro a peixe que pode sempre fazer pensar no mar, o mar que permitiu que a língua andasse por aí, que a cultura andasse por aí, que se construísse este estranho conceito que não entendo. Apesar do cheiro a peixe.

9 Out 2015

Da podridão

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]como se só o dinheiro contasse. Só o dinheiro tem valor nesta esquizofrenia em que Macau se tem arrastado. O dinheiro dos outros é muito e o meu não, o dinheiro que se deu a ganhar aos outros foi tanto e fez o meu dinheiro ser menos. Mas depois vem a austeridade e, afinal, não é nada bom que os outros não façam muito dinheiro, porque se os outros não têm muito dinheiro eu terei ainda menos, eu que conto os trocos que trago no bolso do casaco. Macau vive nesta coisa de não saber como sair da monotonia financeira, a chatice da pataca, a pataca, a pataca, só a pataca. E o dólar de Hong Kong também.
Macau não se diversificou (jargão político número um) e Macau viu o fosso entre ricos e pobres aumentar consideravelmente nos últimos anos (jargão político número dois). Macau não aproveitou os anos do crescimento económico pujante (que agora, ao que parece, as vacas são magras) para trabalhar nas áreas em que mais mudanças são necessárias: a segurança social, o direito do trabalho e a educação sobretudo daqueles que mandam, directa ou indirectamente. Não se aproveitaram os dias de glória para negociar a favor de quem não tem cartas na manga. 25915P22T1
Ainda a protecção da parentalidade. Na semana passada, uma mulher, mãe de filhos, mulher de empresário, caridosa de profissão, deputada à Assembleia Legislativa, veio defender publicamente que a licença de maternidade – esses dois meses incompletos em casa a que as mulheres têm direito – não deve ser aumentada. Melinda Chan tem um argumento: as dificuldades com que se deparam as pequenas e médias empresas. Esta nobre causa económica move-a muito mais do que as dificuldades das pequenas, médias e grandes famílias. O que é preciso é produzir, preferencialmente sem grandes custos. No fim do dia, as patacas é que contam.

[quote_box_left]Agora que órfãos, viúvas e desprotegidos choram sobre as previsões trágicas para a economia local, aqueles a quem não interessa que Macau saia da idade das trevas põem o nariz de fora à descarada e abrem a boca sem pudor. Macau que continue a ser das trevas, que as patacas é que importam[/quote_box_left]

Fosse Melinda Chan um caso raro e estaríamos nós, todos nós, muito bem. Sucede que não é – a filosofia dominante entre quem manda, directa ou indirectamente, consiste na pouca consideração pelos problemas dos mais fracos. É a lei da pataca, que o dinheiro é que conta. Não se aproveitaram os dias de glória dos casinos para se mudar mentalidades na concertação social.
Agora que órfãos, viúvas e desprotegidos choram sobre as previsões trágicas para a economia local, aqueles a quem não interessa que Macau saia da idade das trevas põem o nariz de fora à descarada e abrem a boca sem pudor. Macau que continue a ser das trevas, que as patacas é que importam, os filhos dos outros crescem com mãe ou sem mãe em casa, com o pai presente ou noutro sítio qualquer.
Patrões e trabalhadores não se conseguiram entender, ao longo destes anos, em relação ao que devem ser as contribuições para a segurança social. Patrões e trabalhadores ainda não foram capazes de definir um salário mínimo universal que tenha, entre outras virtudes, a capacidade de disfarçar a desfaçatez. Patrões e trabalhadores não se entendem e o Governo, sujeito passivo nestes processos de negociação, foi deixando correr a tinta como mais jeito deu a quem mais manda.
Depois há casos como o Dore, que revelam a dificuldade em aceitar que o teu Mercedes é muito maior do que o meu. Numa cidade em que o dinheiro é fácil, não há que seguir pelas estradas mais difíceis, atalha-se e isto vai correr bem, há histórias no passado que acabaram mal mas o passado já passou, vou ali remediado e às tantas ainda volto rico. Alguns não voltaram porque se esqueceram que, em mundos de contornos difíceis, as coisas nunca são como parecem e já se sabia que, mais cedo ou mais tarde, algo deste género iria acontecer. Nesta cidade não há santos e a caridade pratica-se ao estilo de Melinda Chan.
A ditadura das estatísticas assusta os mais optimistas e há mesmo quem diga que isto já deu o que tinha a dar. O pessimismo que se instalou é de uma extraordinária conveniência à manutenção da podridão. Este Governo de boas intenções feito vai ter a tarefa dificultada por quem não quer, de modo algum, deixar de ganhar patacas, muitas patacas, dinheiro, imenso dinheiro. Afinal, pobres dos pequenos e médios e grandes empresários que já se vêem em apuros porque as mulheres engravidam e ficam confortavelmente em casa a olhar para desinteressantes recém-nascidos, num desmerecido ócio subsidiado com o suor dos patrões que labutam de sol a sol. E ainda há quem ande por aí a falar de salário mínimo. São as patacas, estúpido.

28 Set 2015

O outro Estoril

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]enho esta coisa de gostar de casas velhas, casas com histórias de pessoas nas paredes, pelo que me arrepio quando ouço falar em demolições. Sei que já não se usa, isto de gostar de casas velhas. Mas dá-se o caso de admirar quase tudo o que vem fisicamente de longe, talvez pela curiosidade que tenho por aquilo que jamais poderia ter vivido. As casas têm as histórias que ficaram por contar.
Por gostar das casas de outros tempos, chocou-me a ideia da demolição do antigo Hotel Estoril, edifício do qual não tenho qualquer memória enquanto espaço vivo. O choque teve que ver, sobretudo, com o facto de Macau se ter transformado naquilo que é hoje, uma cidade onde se perdeu muito do cheiro do passado, das coisas do passado que são importantes para sabermos para onde vamos. Não sei dizer se o Hotel Estoril tem valor patrimonial ou não. Só sei que o conheci sempre fechado e que faz parte do passado. E sei também que gosto do painel da mulher despida que dá vida à fachada.
Mas depois veio alguém, que sabe colocar as coisas em perspectiva como eu não sei, que me lembrou da Casa da Música, no Porto. Lembras-te? Lembro. A polémica em torno da velha remise dos eléctricos, a polémica em torno de um projecto arquitectónico que muitos não percebiam. A Casa da Música – goste-se ou não do resultado – é hoje um projecto inquestionável. É uma obra da cidade, onde acontecem coisas importantes para a cidade. E já ninguém se lembra do que lá estava antes, do passado que foi abaixo para que se fizesse uma obra para o presente. E para o presente que ainda está por vir.
Depois veio outro alguém também que, sabendo de arquitectura como eu não sei (e de Macau também), lembrou aqueles que o quiseram ouvir que é preciso que os arquitectos não se esqueçam que é importante que as pessoas entendam o que se anda fazer, o que se preserva ou deixa de se preservar.
E depois veio o secretário com um projecto que faz falta para a cidade, com um arquitecto de renome internacional, com uma ideia concreta para um espaço que morreu. Uma escola de artes a sério, para que os miúdos tenham uma escola de artes a sério, uma piscina que funcione 12 meses por ano, um parque de estacionamento que iria resolver o problema da falta de espaço para arrumar carros naquela zona.
O secretário diz também que terá em conta a opinião da população e eu percebo a intenção. Sucede que a população, que hoje já não é de consensos como foi noutras alturas, quer coisas impossíveis, por serem contraditórias. O ideal seria Macau ter espaço para preservar edifícios antigos só porque sim e construir, ali ao lado, obras icónicas de arquitectos de renome, mas o ideal não existe e não abunda terra em locais nobres da cidade.
O ideal seria não haver esta sensação de divisão: eu gosto de casas velhas e também de novos projectos e é impossível, muitas vezes, conciliar o que é um dado adquirido, pela sua existência, com a capacidade de ser surpreendida. Ou não: as divisões fazem bem, põem as pessoas a pensar e a discutir e a questionarem-se e a colocarem questões aos outros. E a mudarem de ideias, se preciso for, que não vem daí mal ao mundo.
Esta semana, numa visita guiada à comunicação social, os jornalistas tiveram oportunidade de ver o que está para lá da fachada do antigo hotel. As pessoas com quem falei não vieram de lá particularmente impressionadas com a beleza do espaço e muito menos com o estado de conservação em que se encontra. O edifício está em muito mau estado, dizem-me, a fachada tapa tudo, dizem-me também. O Estoril está morto, acrescentam.
Qualquer que seja o futuro do antigo hotel, o importante é que seja tomada uma decisão – não daqui a cinco ou dez anos, mas agora, amanhã, no próximo mês. Este processo não pode terminar em coisa nenhuma. O Estoril não pode continuar a ser um conjunto de mosquitos, formigas e entulho.
Não haverá unanimidade em torno do projecto e, qualquer que seja a opção que Alexis Tam tomar, vai desagradar ou a gregos ou a troianos. Mas cansados de decisões por tomar andamos todos nós. O pior que pode acontecer a este Governo é congelar projectos por não reunirem consenso, esse palavrão profundamente irritante que impede que as pessoas e as cidades evoluam.

18 Set 2015