Estados Unidos | Donald Trump é o novo Presidente eleito

As sondagens davam a vitória a Hillary Clinton, os jornais estiveram ao lado dela, o resto do mundo também – ou quase. Mas os norte-americanos foram às urnas e votaram diferente: escolheram um homem que, até há bem pouco tempo, nem sequer se imaginava que pudesse chegar a candidato. Agora, é o Presidente eleito. Donald Trump é sinónimo de que em política tudo pode acontecer

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ito anos depois de terem escolhido o primeiro Presidente negro da história do país, os Estados Unidos elegeram ontem um candidato que fez uma campanha dirigida, sobretudo, aos homens brancos – deixando de fora os de outras cores e as mulheres, brancas ou não. A vitória de Donald Trump surpreendeu meio mundo, e o outro meio mundo talvez, que a confiança depositada nas sondagens era muita. Apesar de uma recuperação de terreno na última semana e meia, o republicano estava atrás da candidata democrata. Ontem, quando chegou a hora de contar os votos, foi Hillary Clinton que perdeu.

“Eu sei que nós, cidadãos americanos, estamos descontentes com o actual sistema, mas jamais poderia imaginar uma maioria desta dimensão incapaz de se sentir incomodada com a óbvia falta de qualificação e com a ausência de princípios morais de Donald Trump”, reage Linda Switzer, a viver há nove anos em Macau. “Estou profundamente triste e zangada com a ignorância”, acrescenta a vice-presidente de uma das operadoras de jogo do território.

Ardyth Comper, residente de Macau há oito anos, mostra-se menos surpreendida, apesar de partilhar o estado de choque. “Não posso dizer que estivesse à espera, mas também não fui propriamente apanhada de surpresa. Podia ser para qualquer um dos lados”, diz, justificando com o facto de Hillary Clinton não ser uma “candidata arrebatadora”. Compter, que veio para Macau trabalhar para uma empresa especialista em software de casinos, confessa estar “envergonhada” com o sentido de voto do seu país.

“Não sou fã de Clinton, mas sinceramente acho que o Donald Trump é um ser humano aterrorizador. Não é o exemplo que eu quero para os rapazes americanos. Ele enfatiza o medo e o ódio, não a oportunidade e o desenvolvimento”, considera. Para a americana, os dois candidatos eram maus, mas venceu claramente o pior: “É uma pessoa terrível”.

Ashley Sutherland-Winch, especialista em marketing, também não estava à espera do desfecho de ontem. “A minha única esperança é que o Presidente eleito seja capaz de respeitar os direitos da comunidade LGTB, [a decisão do Supremo Tribunal sobre o aborto] Roe v Wade, e mantenha as relações entre a China e os Estados Unidos”, desabafa. “Estou muito preocupada com o que isto significa para o nosso futuro.”

Mentir para as sondagens

Para Rui Flores, especialista em relações internacionais, os resultados da eleição “são uma surpresa, naturalmente”. Uma surpresa maior quando se tem em conta o que as sondagens nos foram dizendo e uma lição para a ciência política. “As sondagens não se dão bem com o populismo. Foi agora sim, nos Estados Unidos, foi assim em Junho, foi em Maio na Áustria. Sempre que o populismo se mexe, sempre que candidatos populistas estão quase a ganhar eleições, as sondagens não o demonstram”, diz. E porquê? “As pessoas têm alguma vergonha em dizer que vão votar no deputado populista, porque o media mainstream faz, de facto, campanha pelo outro candidato.”

Na lógica de comunicação que hoje temos, “o candidato populista fica fora, não recebe o apoio do media mainstream, e como a narrativa construída é a de que há um candidato que é muito pior do que os outros – é um candidato que não tem formação, que não tem capacidade, que não tem experiência –, as pessoas não têm coragem, têm vergonha de dizer que vão votar nesse candidato”. Na hora de votar, sem ninguém a ver, votam em quem querem, sem pruridos. “Não me parece que o problema seja a capacidade técnica dos institutos de sondagens, mas sim a incapacidade que têm de avaliar a dimensão da popularidade dos candidatos populistas”, vinca Flores.

O analista dá um exemplo: ontem de manhã, o New York Times tinha como previsão inicial a vitória de Hillary Clinton com 322 votos eleitorais. O jornal enganou-se redondamente. “Isto é também uma derrota para o media mainstream. No caso dos Estados Unidos, em que há a tradição de os jornais apoiarem um dos candidatos, há um dado significativo nestas eleições: a eleição de Trump foi apoiada por um jornal nos Estados Unidos, um jornal do Texas. Todos os outros apoiavam Hillary Clinton, apoiavam terceiros candidatos e houve até alguns jornais que disseram ‘não votem em Trump’.” Feitas as contas aos votos, “há aqui um desfasamento total entre os media mainstream e o que a população quer”.

Rui Flores alerta para uma outra questão que esta análise suscita: saber-se quem é que controla os jornais. “Vimos curiosamente Julian Assange, praticamente na véspera das eleições, a dar uma entrevista à Russia Today em que afirma que a política norte-americana, nomeadamente Hillary Clinton, é de certa forma controlada pela grande banca internacional, pela finança internacional. Essas entidades provavelmente conseguem ter algum poder para irem construindo uma narrativa em que o apoio a um candidato é melhor para o sistema do que o apoio a outro candidato.”

Os dois países

Ardyth Comper olha para os resultados eleitorais e diz, sem hesitar, que demonstram que “as pessoas votaram com as emoções”. “Não havia nada em Hillary Clinton que fizesse os eleitores dizerem ‘Sim! Queremos votar nela!’, como aconteceu com Obama há oito anos”, aponta a norte-americana.

“Parece-me que este voto demonstra que as pessoas estão fartas”, analisa Rui Flores. Estão fartas do sistema, “estão fartas desta questão de haver duas ou três famílias nos Estados Unidos que vão sucedendo no poder – estou a pensar nos Kennedy, nos Bush, nos Clinton. Este voto parece-me um grito contra isso”.

Para o especialista em relações internacionais, a vitória de Trump permite ainda outra leitura: “Parece-me que há claramente uma divisão nos Estados Unidos entre o mundo rural e o mundo urbano”. A eleição deste Presidente demonstra que “é um país dividido ao meio, entre uma América mais tradicional, mais agrária, mais rural, e uma América mais progressista, mais moderna, mais cosmopolita – são dois mundos completamente à parte”.

Ana Borges, antiga residente de Macau a viver no Kansas, é mais incisiva: a vitória do republicano, um facto que a deixou profundamente desagradada, demonstra que os Estados Unidos não são aquilo que parecem. “Os norte-americanos consideram-se a maior nação do mundo mas, em termos sociais, estão ao nível do terceiro mundo”, atira.

E agora? Agora há medos, vários. Linda Switzer entende que “a vitória de Donald Trump tem ramificações a longo prazo para o país por muitas razões, mas sobretudo no que diz respeito aos assentos que vão ficar vagos no Supremo Tribunal”. A norte-americana acredita que “os fundamentos religiosos vão fazer regredir o direito de escolha das mulheres e os direitos da comunidade LGTB”. Em suma: “É um dia muito triste para os nossos filhos e os nossos netos”.

Noutro plano, Switzer destaca o impacto imediato nos mercados financeiros de todo o mundo – as bolsas europeias abriram ontem em queda, as asiáticas fecharam a perder. “As relações internacionais com a China e com a Rússia vão ser ainda mais ténues. São tempos assustadores.”

Ardyth Comper mostra-se ligeiramente mais optimista, até porque “Donald Trump é o tipo de rico viciado em Wall Street”. “É do interesse dele que tudo continue como está para poder continuar a fazer dinheiro.” Mas há aspectos em que os Estados Unidos deverão mudar: “Vai ofender muita gente, provavelmente, ao estilo de Duterte, mas não acredito que vá fazer grandes ondas”. A americana destaca que a máquina governamental é enorme. “Sim, o Presidente é a pessoa mais poderosa, mas é apenas uma pessoa.”

Os republicanos conquistaram também ontem o controlo do Senado norte-americano, depois de já terem assegurado a Câmara dos Representantes. “São todos do mesmo partido de Trump, mas vão alinhar no mesmo discurso? É difícil dizer”, continua Comper. “Quando se olha para áreas como o Pentágono e a Defesa, há muitas coisas que estão de tal modo enraizadas que é difícil alterá-las de um dia para o outro”, acrescenta. Ardyth Comper partilha, no entanto, do receio de Linda Switzer em relação à justiça e ao modo como vai ser constituído o Supremo Tribunal.

Como emigrante, Ana Borges não teme alterações sociais no modo como vive, mas acredita que em breve começará a caça aos ilegais, sendo que “será mais difícil para quem quiser emigrar para os Estados Unidos”.

Caixa de surpresas

“A única certeza que fica destas eleições é que vivemos num mundo cada vez mais imprevisível”, nota Rui Flores. A imprevisibilidade é a nova tendência: “As surpresas eleitorais vão continuar a acontecer, o fenómeno do populismo está a aumentar no mundo. A imprevisibilidade política vai ser a grande questão para o futuro e as bolsas de valores a caírem um pouco por todo o mundo demonstram isso”.

A eleição de ontem foi, de algum modo, a abertura de uma caixa de surpresas. E “as surpresas vão suceder-se, sobretudo com a implementação de possíveis políticas trumpianas”. Resta agora saber se o vencedor vai avançar com as promessas que tantos eleitores moveram. “Vai o muro ser construído, a separar a América do México? Quem vai pagar? Como é que vai pagar? Os muçulmanos vão poder deixar de entrar nos Estados Unidos? Como? O que é que vai acontecer aos que lá estão? O Estado Islâmico vai ser derrotado, como prometeu Donald Trump? Como? Com tropas no terreno? Os Estados Unidos vão sair da Europa?”, lança o analista.

Num futuro difícil de imaginar, os Estados Unidos deverão regressar “ao isolacionismo, que é uma escola que tem história nos país”. Numa perspectiva mais abrangente, há que observar como vai ser o relacionamento com Moscovo, alerta Rui Flores. “É a questão essencial de tudo isto. Donald Trump diz que é preciso dialogar com a Rússia – vamos ver como é que ele vai tentar levar a bom porto essa lógica do relacionamento mais próximo com a Rússia”, afirma, recordando que muitos julgam que se trata de uma ameaça para os Estados Unidos.

E a China? A China dizia ontem, através de um editorial do Global Times, que Trump serve melhor a Pequim do que a adversária derrotada. Já depois de eleito o 45o Presidente norte-americano, a diplomacia chinesa declarou que acredita que poderá trabalhar com os Estados Unidos no sentido de manter um “desenvolvimento estável e equilibrado” das relações bilaterais e uma gestão “responsável” dos desacordos.

Na campanha eleitoral, recorda Rui Flores, Donald Trump “foi dizendo que era preciso aumentar a presença militar norte-americana no mar do Sul da China, que é preciso investigar e punir a China por práticas comerciais desleais, que quer designar a China como um manipulador da divisa e que quer garantir que os Estados Unidos conseguem travar os ataques cibernéticos oriundos do gigante asiático”. São estas as grandes políticas de Donald Trump para o relacionamento sino-americano. Se vai mudar de ideias e perceber que são um erro, um grande erro, só o futuro o dirá.

10 Nov 2016

Reunião | Médicos debatem importância e cuidados a ter com os fármacos

 

 

Várias associações de médicos de Macau juntam-se no próximo sábado para falarem de medicamentos. Os cuidados a ter com os fármacos e o modo como lidar com a medicina tradicional chinesa são alguns dos temas de uma iniciativa da Associação dos Médicos de Língua Portuguesa

 

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ão dos melhores aliados que médicos e pacientes têm: os comprimidos, as injecções e os xaropes certos, nas doses certas e nas horas certas, aliviam dores, curam maleitas e salvam vidas. Mas os fármacos são um assunto complicado, exigem cuidados e vigilância. É a pensar na utilidade dos medicamentos que a Associação dos Médicos de Língua Portuguesa (AMLP) organiza, no próximo sábado, o 3º Fórum das Associações Médicas de Macau, uma reunião com o tema “Fármacos: Há mar e mar, há ir e voltar”.

Jorge Sales Marques, presidente da AMLP, explica ao HM a importância de um debate sobre medicação: “Tem que ver fundamentalmente com a vigilância, os efeitos secundários, os problemas de alergia, alterações ao nível da coagulação”. Em debate vão estar questões como os riscos do envenenamento, as reacções adversas e a chamada polifarmácia. “Hoje em dia é muito comum as pessoas levarem muitos medicamentos para casa, o que pode aumentar o risco de efeitos secundários”, alerta o médico.

Pensar diferente

A reunião abre com uma intervenção sobre medicina tradicional chinesa, da responsabilidade de Savio Yu. Este é um dos pontos principais do fórum. “Queremos fazer uma reunião em que estejam médicos ocidentais e médicos de medicina tradicional chinesa precisamente para trocarmos ideias, o que é muito importante”, indica Jorge Sales Marques.

Numa altura em que há várias tendências de fuga à medicação convencional, e tendo em conta o contexto cultural de Macau, torna-se pertinente chamar à discussão outros métodos e formas de lidar com a doença, para que se evite estar de costas voltadas. “Na cultura chinesa, foram sempre utilizados medicamentos de várias espécies que, ao nível ocidental, não foram reconhecidos, mas que, nalgumas situações, sabemos agora que poderão ter algum interesse terapêutico em certas situações”, aponta o presidente da AMLP. “Hoje em dia, temos de olhar para a medicina tradicional chinesa de uma forma um bocadinho diferente – nem tudo faz mal, nem tudo faz bem.” O médico sublinha, no entanto, que “é preciso ter muito cuidado” – e daí a importância da vigilância. “Tudo isto tem de ser feito com muita prudência e, acima de tudo, com indicação terapêutica.”

A influência dos fármacos na função renal, com uma apresentação de Kuok Un I, as lesões no fígado, numa abordagem de Sheeva, e a histopatologia, a cargo de Di Fang, são os temas que se seguem ao debate sobre a medicina tradicional chinesa. Ainda durante a manhã, vai falar-se de envenenamento, com Tse Man Li, e de farmacovigilância, com Venus Li.

Já durante a tarde, cabe a Ricardo Coelho pronunciar-se sobre alergias aos medicamentos e Monica Pon vai debruçar-se sobre a polifarmácia. Depois, Francis Chan faz uma intervenção sobre anticoagulação e hemorragias do sistema digestivo. O fórum encerra com o tema “Além dos fármacos”, por Lao Kun Leong.

A iniciativa conta com a colaboração de cinco associações médicas do território.

 

9 Nov 2016

Hong Kong | Assembleia Popular Nacional impede tomada de posse de deputados pró-independência

O Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional decidiu ontem que Sixtus Leung e Yau Wai-ching, os dois deputados protagonistas de uma controversa tomada de posse no Conselho Legislativo, vão ser afastados do órgão. Resta saber se é o início do fim de uma saga política em Hong Kong ou se o drama vai agora começar

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi a quinta vez, em 19 anos, que Pequim decidiu fazer uma interpretação da Lei Básica de Hong Kong – e, desta feita, a decisão de intervenção do Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional (APN) pode ter efeitos para a vida política da antiga colónia britânica que vão além do esclarecimento constitucional.

Em causa estava o Artigo 104o da Lei Básica de Hong Kong, que dispõe sobre o juramento de fidelidade. O artigo é em tudo semelhante ao que dispõe a Lei Básica de Macau: basicamente, determina que o Chefe do Executivo, os titulares dos principais cargos e os deputados ao Conselho Legislativo devem defender o diploma fundamental da região, serem fiéis a Hong Kong e prestarem juramento de fidelidade à China.

A interpretação feita pelo Comité Permanente da APN, um documento com oito páginas, veio determinar que os princípios de fidelidade não constam apenas da Lei Básica – devem ser incluídos no acto do juramento, por serem “requisitos legais e condições prévias” da participação nas eleições. “Alguém que preste juramento e que intencionalmente diga palavras que não estão de acordo com o guião definido por lei, ou que preste juramento de um modo que não é sincero ou solene, deve ser tratado como estando a declinar prestar juramento”, cita a Agência Xinhua. “Deste modo, o juramento é inválido e a pessoa fica desqualificada de assumir o exercício de funções.”

Concluindo e resumindo: Sixtus Leung e Yau Wai-ching, os dois jovens deputados eleitos protagonistas de uma controvérsia inédita em Hong Kong, não vão poder ocupar os assentos para os quais foram escolhidos nas eleições de Setembro último.

No tempo certo

Sixtus Leung e Yau Wai-ching não só não seguiram o guião – ao utilizarem expressões insultuosas para a China –, como ainda levaram para a cerimónia de tomada de posse uma faixa onde se podia ler que “Hong Kong não é a China”. Li Fei, o presidente da Comissão da Lei Básica da região vizinha, comentava ontem que os dois activistas “violaram seriamente o princípio ‘um país, dois sistemas’, a Lei Básica e as leis de Hong Kong”, acrescentando que o Governo Central “está determinado em confrontar firmemente, sem qualquer ambiguidade, as forças pró-independência”.

“A explicação do Comité Permanente sublinha a forte determinação do Governo Central contra a independência de Hong Kong”, reiterou Li Fei. A interpretação vai ao encontro do “desejo comum” das pessoas de Hong Kong e da China Continental, “é totalmente necessária e é feita em boa altura”, disse também.

O político fez ainda alusão “à minoria de pessoas que, nos últimos anos, tem desafiado o princípio ‘um país, dois sistemas’ e distorcido a Lei Básica”. “Desde as eleições legislativas, algumas pessoas têm vindo a defender a independência, dizendo que querem obtê-la através do Conselho Legislativo. A interpretação veio ajudar a defender a segurança nacional e a soberania.”

Citado pela imprensa de Hong Kong, Li Fei contestou a ideia de que o Comité Permanente da APN só pode interpretar a lei fundamental da região após solicitação da justiça local. Quanto aos efeitos da interpretação ontem tornada pública, “são retroactivos, porque [a interpretação] reflecte a intenção legislativa”. O presidente da Comissão da Lei Básica preferiu, no entanto, não fazer qualquer comentário sobre a possibilidade de outros deputados serem desqualificados por causa do modo como tomaram posse e prestaram juramento.

A decisão de Pequim em relação à interpretação da Lei Básica surgiu depois de, em Hong Kong, o caso Sixtus Leung e Yau Wai-ching ter assumido proporções complicadas, ao deixar de ser um assunto meramente político e passar ao domínio das questões judiciais.

Depois da polémica cerimónia de juramento, o presidente do Conselho Legislativo, Andrew Leung – também ele novo no exercício do cargo – decidiu dar uma segunda hipótese aos dois activistas pró-independência. O Chefe do Executivo, C.Y. Leung, não gostou da ideia. O líder do Governo e o secretário para a Justiça, Rimsky Yuen, avançaram então para tribunal, questionando a decisão de Andrew Leung.

O Supremo Tribunal de Hong Kong ainda não se pronunciou sobre a matéria. A decisão ontem tomada pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, dizem as vozes mais críticas, veio colocar em causa a autonomia judicial de Hong Kong, e esvaziar a decisão que venha a ser tomada pela justiça local. O politólogo Éric Sautedé não tem dúvidas de que houve uma jogada de antecipação de Pequim.

“Porque é que houve esta acção tão rápida? Acredito que Pequim está muito desconfortável com o sistema judicial. No passado, houve várias decisões do Supremo Tribunal sobre a independência de poderes”, recorda ao HM, lembrando que também esta é uma questão fracturante na antiga colónia britânica. “Se olharmos para uma das primeiras interpretações do Comité Permanente da APN, sobre o direito à residência, vemos que a justiça se tinha oposto à decisão do poder executivo.”

Ontem, o presidente da Comissão da Lei Básica rebateu os efeitos da atitude de Pequim em relação ao sistema judicial local: “O significado essencial da independência judicial é agir de acordo com as leis e não existe uma independência judicial que vá contra a Lei Básica”.

Desconfiança aumentada

A saga da cerimónia de juramento – é assim que o caso é descrito pela imprensa de Hong Kong – passou da esfera política local para a judicial e, depois, para o domínio político nacional. Mas há também “um lado moral” em todo este incidente, com repercussões que se desconhecem: é preciso esperar para ver. “Levantou-se uma questão moral”, comenta ao HM o politólogo Sonny Lo. Em Hong Kong, a ideia de uma intervenção do poder central foi aplaudida por quem pertence ao campo pró-Pequim porque “as acções dos dois deputados eleitos são consideradas inaceitáveis”.

Para o analista, o Governo Central não tinha outra hipótese além desta intervenção para acabar com “o estado de paralisia que levou ao impasse total” do Conselho Legislativo. Sonny Lo acredita que houve um erro de cálculo de Sixtus Leung e Yau Wai-ching – que tiveram “um comportamento altamente provocatório” – quando decidiram apostar nesta estratégia de ruptura com o sistema. “Provavelmente não calcularam bem a forte reacção de Pequim. Também não conseguiram antecipar a decisão do Comité Permanente da APN. Pequim acredita que o Conselho Legislativo de Hong Kong está num impasse. Pequim acredita que este tipo de acções e comportamentos dos dois novos deputados eleitos são inaceitáveis”, observa.

Já Éric Sautedé considera que Sixtus Leung e Yau Wai-ching estavam perfeitamente conscientes de que os actos teriam consequências. “Não digo que tivessem o controlo absoluto de todo o processo, mas estavam a testar os limites”, afirma o professor universitário. “Não acho, de modo algum, que tenham subestimado as reacções. Queriam marcar uma posição logo desde o início, mostrando que foi para isso que foram eleitos”, continua. Os dois jovens activistas pretendiam demonstrar que o sistema tem falhas, que “o rei vai nu” e, nessa medida, conseguiram atingir os objectivos.

Além de uma série de questões técnicas que agora terão de ser resolvidas, há em termos políticos um impacto a longo prazo que, para Sonny Lo, é claro: “Tudo isto aumentou muito a falta de confiança entre todos os lados, a um nível que faz com que a única solução seja recorrer a meios legais para resolver problemas políticos. Todo o processo ilustra uma desconfiança política profunda”.

No domingo, na antecipação da interpretação do Comité Permanente da APN, Hong Kong voltou a ser palco de protestos, sendo que, pelo menos, quatro pessoas acabaram detidas. “Acredito que, no futuro imediato, iremos assistir a mais confrontos. É muito difícil prever se poderá acontecer algo com a dimensão do Occupy, considerando que, em Setembro de 2014, também ninguém conseguia imaginar o que acabou por acontecer”, aponta Sautedé. “Mas, desta vez, a tensão é muito maior, e existe a ideia de que tudo é possível”, diz o analista, a viver na região vizinha. “Essa é a grande lição do Occupy e, depois, dos confrontos em Mogkok: basicamente, tudo é possível, tudo pode dar origem a um incêndio, existe electricidade no ar e, quanto mais tempo passa, mais a electricidade é de alta voltagem.”


Vem aí o Artigo 23?

O Governo de Hong Kong “apoia” a interpretação da Lei Básica feita pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional (APN), declarou ontem de manhã o Chefe do Executivo da região vizinha, numa conferência de imprensa sobre a decisão do poder central em relação ao caso da cerimónia de juramento protagonizado pelos deputados eleitos Sixtus Leung e Yau Wai-ching. “Enquanto Chefe do Executivo, tenho o dever de implementar a Lei Básica de acordo com o Artigo 48o”, declarou C.Y. Leung. “Eu e o Governo da RAEHK vamos implementar a decisão de forma plena.”

O líder do Governo destacou ainda que o Comité Permanente da APN “só interpretou” a Lei Básica por cinco vezes, o que demonstra que “Pequim tem sido muito cuidadoso ao exercer esta prerrogativa”. A interpretação ontem tornada pública “não teria acontecido se não fosse necessária”, defendeu, acrescentando que “o Governo Central tem total consciência do que está a acontecer em Hong Kong”.

Questionado sobre a necessidade de se avançar para a polémica legislação prevista pelo Artigo 23o da Lei Básica, que dispõe sobre a segurança nacional, C.Y. Leung – que, em tempos, disse não ver necessidade urgente na sua adopção – parece agora ter mudado de ideias. “A RAEHK deve legislar [sobre o Artigo 23o]. No passado, não víamos ninguém a defender a independência, mas agora vemos. Isto merece efectivamente a nossa atenção.”

O politólogo Éric Sautedé recorda que, para que uma legislação deste género seja aprovada, é preciso fazer contas aos votos no Conselho Legislativo. “O que é realmente claro é que existe uma interferência de Pequim nos assuntos internos de Hong Kong”, observa. O analista acredita que todo este caso veio precipitar a “lenta, mas certa, erosão do alto grau de autonomia” de Hong Kong.

“Claro que, em Macau, este alto grau de autonomia há muito que desapareceu – não sei se alguma vez existiu –, com Macau completamente alinhado com o que Pequim quer. Mas, em relação a Hong Kong, isto é preocupante, é um ponto de viragem muito mais importante do que 2003, porque na altura foi a constatação de que não havia apatia política, ao contrário do que muitas pessoas pensavam. Desta vez, existe a noção de que estes jovens têm apoio”, conclui.

Em 2003, mais de 500 mil manifestantes saíram à rua contra o Artigo 23o – desde a transferência de soberania que não se via protesto de tal dimensão. A legislação acabou por ser engavetada. Em Macau, a lei foi aprovada em 2009, sem problemas de maior.

8 Nov 2016

EUA | Incertezas sobre candidato vitorioso nas vésperas da eleição presidencial

Nem uma, nem o outro são figuras mobilizadoras. Ela porque é a continuidade de um certo sistema; ele porque rompe com tudo, sobretudo com valores que, aos olhos de muitos, devem ser preservados. Na contagem decrescente para a eleição mais importante do ano, há dúvidas sobre os resultados. Ainda assim, tudo aponta para que a democrata Hillary Clinton seja a sucessora de Barack Obama

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] um homem com tanto carisma que mereceu, quase a título de incentivo, o Prémio Nobel da Paz. Nas últimas eleições em que os Estados Unidos mudaram de Presidente, era só certezas: Barack Obama conquistou multidões, dentro e fora do país, e a escolha para ocupar a Casa Branca representava uma certa América, mais livre, mais contemporânea, mais despida de preconceitos.

Desta vez, a história é outra. Há desilusão nos Estados Unidos com o processo que termina – ou começa – amanhã, dia 8 de Novembro. É o que sente Ricardo Alexandre, jornalista da Antena 1, que por estes dias está nos Estados Unidos a acompanhar a recta final da campanha e a tentar perceber o que é que, afinal, vêem os eleitores norte-americanos em Hillary Clinton e Donald Trump.

“Há desânimo, sim”, conta o jornalista ao HM. “Por um lado, todo o processo é muito longo e, por outro, os dois principais candidatos são uma espécie de mal-amados.” Ricardo Alexandre desdobra a ideia: o candidato republicano “não sabe ser político”; já a candidata democrata “está na política há muito tempo”. “Foi uma imagem que me transmitiram e que, creio, ilustra bem o ambiente geral”, diz o repórter que, entre outras paragens, foi a El Paso, no Texas, e à vizinha Ciudad Juárez para saber o que pensam as pessoas que ali vivem de uma das ideias mais polémicas de Donald Trump – a construção de um muro na fronteira com o México para impedir a entrada de ilegais.

Deste lado do mundo, atento a todas as informações que vão sendo publicadas sobre a eleição presidencial norte-americana, o especialista em relações internacionais Rui Flores concorda com o problema da falta de empatia dos dois principais candidatos: Donald Trump é “um caso de amor ou ódio” e Hillary Clinton é vista como “mais do mesmo”.

“As sondagens também demonstram isso. É a campanha que mais ódios levanta. Os eleitores vão votar sem grande convicção. Vão provavelmente mais convictos os eleitores de Donald Trump – ele fez a sua campanha claramente para o homem branco, que tem sofrido com a crise económica, com o fecho de fábricas no centro dos Estados Unidos”, observa Flores. Ricardo Alexandre acredita que será Hillary Clinton a vencedora mas, se o desfecho for outro, então será “a vitória do homem branco”. Do homem como palavra para ser do sexo masculino. “É que nem sequer é o homem e a mulher brancos. É apenas o homem branco porque ele, de facto, alienou muito do voto feminino”, vinca Rui Flores.

Do contra ao igual

Donald Trump ganhou tempo de antena com um discurso do contra: contra o livre comércio, contra a emigração, contra muitos dos valores que são dados como certos – ou que, até à data, eram dados como certos – pela maioria dos norte-americanos em particular e pelo mundo em geral. “É um discurso de isolamento da América e esse discurso tem chão por onde crescer porque, de facto, destina-se a um eleitorado que tem sofrido muito com a globalização nos últimos anos”, nota Rui Flores.

O discurso sobre a emigração foi, provavelmente, o que mais chocou, continua, para recordar que não se está perante um fenómeno novo, exclusivo dos Estados Unidos. “As pessoas revêem-se nesse discurso, que é feito também na Hungria, com Viktor Orbán, que é feito em França, com Marine Le Pen. O populismo associado ao nacionalismo veio para ficar, muito como consequência da crise financeira, económica e social que começou em 2008. Isso tem-se visto um pouco por todo o lado – quer a extrema-direita, quer a extrema-esquerda a subirem nos parlamentos, em várias eleições que têm decorrido um pouco por toda a Europa.”

Nem o populismo de Trump, nem a promessa de profissionalismo político de Hillary Clinton foram, no entanto, capazes de se traduzirem em discursos dinamizadores de massas, concorda o analista. “Não me parece também, ao mesmo tempo, que haja uma mensagem de esperança num mundo melhor nestes dois candidatos. Hillary Clinton será mais do mesmo, Donald Trump tem um discurso de ruptura mas que não mobiliza mais do um segmento – importante, naturalmente – que é o homem branco”, diz.

Oh Ohio

A possibilidade de o discurso destinado ao homem branco vencer num país que, há duas eleições, se congratulava por ter escolhido um Presidente – o primeiro – negro não está, nas vésperas do sufrágio, totalmente eliminada. O jornalista Ricardo Alexandre acredita que Hillary Clinton sairá vencedora e Rui Flores também, mas a vida da candidata democrata complicou-se na passada semana.

Num processo com contornos muito específicos – o sistema é indirecto e colegial –, são necessários 270 votos eleitorais para se ganhar a eleição. “Até este momento, as coisas estão a correr bem para Hillary Clinton”, aponta Rui Flores, numa análise feita durante este fim-de-semana. “Após uma semana de algum desgaste, por causa da reabertura do inquérito do FBI [no caso dos e-mails] à candidata, há basicamente dez estados onde não é claro quem poderá ser o vencedor. Desses dez estados, há cinco verdadeiramente importantes”, prossegue.

Rui Flores olha para os dados e destaca a importância das sondagens ao nível estadual, para explicar que a democrata venceria sem os dez estados indecisos, aqueles que “podem cair para um lado ou para o outro, para o campo democrata ou para o campo republicano”.

O especialista não deixa de ressalvar que, “nos últimos anos, internacionalmente, tem havido algumas surpresas com as sondagens” e dá o exemplo recente do Reino Unido com o Brexit. Mas, para que Donald Trump seja eleito, acrescenta, serão necessárias muitas surpresas eleitorais em alguns estados essenciais.

“O estado mais fraco para Hillary Clinton – daqueles em que as sondagens mostram que ela está à frente – é o Colorado, que dá apenas nove votos eleitorais para o colégio eleitoral. É um estado interessante, porque Donald Trump fez campanha na semana passada e focou a sua atenção”, anota. “Para Donald Trump ganhar, era preciso que o Colorado caísse para o seu lado e todos os tais dez estados onde não é claro quem vai ganhar caíssem todos para o lado dele.” À hora a que Rui Flores falava ao HM, Hillary Clinton tinha assegurados 272 votos eleitorais, “o suficiente para ganhar”.

Neste exercício de contabilidade e previsões cabe ainda um fenómeno interessante das eleições presidenciais norte-americanas: o Ohio. “É um estado que tem sido, desde 1964, o barómetro da América. O estado não é muito grande – tem apenas 18 votos eleitorais – mas, desde 1964, o candidato que ganha no Ohio é o candidato que ganha as eleições.” Ora, no caso em análise, as sondagens mais recentes demonstram que, nesse estado, provavelmente Donald Trump irá ganhar. “É por isso que muitos candidatos fazem campanha no Ohio, porque quem ganha lá, ganha as eleições. A acontecer a vitória de Trump no Ohio e a de Hillary Clinton a nível nacional, as eleições terão essa piada: acabar com o mito de que quem ganha no Ohio, ganha as eleições”, alerta Rui Flores.

Apoios e jornais

Ainda na análise às sondagens, o especialista em relações internacionais vinca que demonstram uma enorme diferença entre os dois campos no que toca ao eleitorado. “Hillary Clinton é mais popular nas grandes cidades, tem sondagens muito favoráveis em Nova Iorque, na Califórnia, em Massachusetts, na Pensilvânia, no Illinois, no Michigan. São estados democratas em que as sondagens demonstram que vão votar massivamente em Hillary Clinton e são estados que quase lhe garantem a eleição”, indica. Já Donald Trump “é um candidato mais rural, tem os estados mais pequenos da América rural, são quase todos sólidos republicanos, e tem o Texas – que é o maior –, é um estado sólido para ele.”

“Se tivéssemos de apostar, diríamos que Hillary Clinton vai ganhar”, diz Rui Flores, que enumera também outros factores a ter em conta nisto de se tentar ser Presidente da primeira economia do mundo, como o facto de a candidata democrata “ter gasto muito mais do que Donald Trump”. “Conseguiu movimentar mais dinheiro e receber mais fundos para a sua campanha, o que é um sinal da capacidade que tem de atrair apoiantes que lhe dão dinheiro para a campanha.” Não deixa de ser curioso o facto de vários artistas plásticos terem contribuído para o movimento pró-Hillary, com dinheiro e com a organização de leilões de obras em que Clinton aparece retratada.

Rui Flores fala ainda de “outro sinal importante de que Hillary Clinton continua à frente”: o número de jornais que estão com a candidata. São 53 a favor da democrata, contra um que apoia expressamente Trump. “Desde 1998, a tendência dos jornais é estarem do lado do vencedor. A excepção foi a reeleição de George W. Bush, em 2004, em que mais jornais apoiaram John Kerry do que o então Presidente.”

E depois?

A eleição acontece depois de uma campanha rica em acusações mútuas, umas mais graves do que outras. Mentiras e verdades, sexo, o (des)respeito pelas mulheres, o caso dos e-mails – houve de tudo nos confrontos entre os dois candidatos principais. Nos 90 minutos de um dos debates televisivos entre Hillary Clinton e Donald Trump, o candidato republicano acusou 26 vezes a adversária de estar a mentir. Já a democrata recorreu ao argumento dez vezes.

“O grande desafio do vencedor destas eleições é congregar a nação americana, que vai sair daqui muito dividida. Vamos ver se, no caso de vitória de Hillary Clinton, Donald Trump vai cumprir a promessa de não reconhecer os resultados eleitorais”, diz Rui Flores, acerca da possibilidade levantada, no mês passado, pelo candidato. “Isso trará muitos problemas ao sistema político, à credibilidade internacional dos Estados Unidos e poderá fazer prolongar a instabilidade no país.”

Depois, há ainda a investigação do FBI aos e-mails de Hillary Clinton. “Há quem considere que director do FBI violou as regras que dizem que deve ter um comportamento equidistante e deve tentar não influenciar politicamente o resultado das eleições. Ao reabrir a investigação pôs em causa, de certa forma, a independência desta instituição. E isto vai ter consequências para o futuro: a investigação não vai estar concluída até terça-feira. O que vai acontecer a essa investigação quando Hillary Clinton for eleita, se for eleita?”, lança o analista. “Toda esta campanha afecta as instituições americanas.”

Os chineses gostam dele

É um fenómeno que tem sido acompanhado de perto nas últimas semanas pelo South China Morning Post: há muitos chineses a viverem nos Estados Unidos que são fervorosos apoiantes de Donald Trump. O facto poderá colocar em causa o retrato deixado por estudos e pesquisas, que indicam que cerca de 50 por cento dos asiáticos a viverem em solo norte-americano são democratas ou simpatizantes, sendo que apenas 28 por cento dizem ser republicanos. A euforia em torno de Trump, lê-se nas declarações que o jornal de Hong Kong foi recolhendo, tem que ver sobretudo com o tipo de valores que o empresário candidato a Presidente tem estado a defender durante a campanha: “a família” e “medidas fortes contra a emigração ilegal” são ideias que agradam aos sino-americanos que fazem parte, por exemplo, do movimento “Chinese Americans for Trump”. Também têm caído bem na comunidade as promessas de cortes fiscais e “pôr os cidadãos americanos em primeiro lugar”. Há quem entenda ainda que o republicano representa “valores asiáticos” como “o pragmatismo, o trabalho árduo e a honestidade”. O receio de que os Estados Unidos possam vir a ser palco de um ataque terrorista, a inércia atribuída à Administração actual na luta contra os inimigos e a oposição a Obama também funcionam a favor de Trump no seio dos sino-americanos – muitos deles pensam que o Partido Democrata, com as suas políticas em relação à homossexualidade, minou os valores tradicionais. A “política aberta de emigração” arruinou a economia e a ordem do país, dizem estes chineses com nacionalidade americana, que têm saído à rua para demonstrar o entusiasmo pelo candidato republicano.

Tanto faz para Pequim?

A China é um tema clássico nos debates entre candidatos e Pequim tem consciência disso. Nesta corrida, a questão chinesa colocou-se logo no primeiro confronto televisivo entre Hillary Clinton e Donald Trump. Nenhum deles poupou a China – terá sido, de resto, o único assunto em que estiveram de acordo. De repente, eis a pergunta: qual será o mal menor para a segunda economia do mundo? Li Keqiang, o primeiro-ministro chinês, não tardou a dar a resposta: a relação entre Pequim e Washington é para ser cada vez melhor, independentemente de quem saia vencedor das eleições de amanhã. É nisso que, pelo menos publicamente, o Governo Central está interessado. No exercício de crítica à China, os analistas entendem que Donald Trump é o melhor: acusa o país de ter roubado postos de trabalho aos Estados Unidos, de ter contribuído para a desvalorização da moeda no âmbito do comércio global e de ter falhado no controlo exercido sobre a Coreia do Norte. Já Hillary Clinton não surpreendeu – ao contrário do oponente, há muito que se sabe que censura o modo como Pequim lida com os direitos humanos e até mesmo a forma como a China está organizada em termos políticos. Na Administração de Obama, foi vista como sendo uma figura essencial nas tentativas de controlar a influência crescente de Pequim na Ásia.

7 Nov 2016

Fundação Macau anuncia distribuição de subsídios. Kiang Wu lidera lista de apoios

O Hospital Kiang Wu continua a ser a entidade que mais beneficia da Fundação Macau. Os valores distribuídos no terceiro trimestre deste ano foram ontem dados a conhecer

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]ais de 292,549 milhões de patacas distribuídos em apenas três meses a uma vasta lista de entidades. A Fundação Macau publicou ontem os subsídios concedidos no terceiro trimestre deste ano, período em que financiou diversas associações para apoiar “a distribuição de sobrescritos auspiciosos no Festival de Chong Chao”, tendo ainda distribuído bolsas de estudo e de mérito a estudantes de vários níveis de ensino.

Quanto aos montantes mais significativos, a Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu continua a ser, de longe, a que mais dinheiro recebe: o subsídio no terceiro trimestre deste ano ultrapassou os 32,921 milhões de patacas. Logo a seguir vem a Associação Geral das Mulheres de Macau, que teve um duplo apoio: 12,89 milhões para as obras de construção do novo edifício da escola da associação e mais 12 milhões para as despesas com o plano de actividades da entidade e das suas 19 unidades de serviço.

À Federação das Associações dos Operários de Macau chegaram 20,797 milhões de patacas e à União Geral das Associações dos Moradores de Macau 16 milhões, destinados ao plano anual.

Já a Fundação Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau recebeu 12,5 milhões para financiar o plano anual de 2014/2015 de várias instituições de ensino.

Ainda no que diz respeito às associações tradicionais, à Obra das Mães foi atribuído um subsídio de seis milhões, mais um milhão do que à Associação Geral dos Conterrâneos de Fujian de Macau.

Lusófonos e Lei Básica

Da lista de apoios da Fundação Macau entre Julho e Setembro, destaque ainda para os cinco milhões que chegaram à Casa de Portugal em Macau. Outra entidade de matriz lusófona, a Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM), teve direito a receber 330 mil patacas, ainda como apoio financeiro para o plano anual de 2015 da instituição e do Jardim de Infância D. José da Costa Nunes. A entidade presidida por Wu Zhiliang pagou já à APIM a segunda prestação para este ano, no valor de 1,32 milhões de patacas.

A Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau também consta da lista publicada ontem em Boletim Oficial, com um apoio de 920 mil patacas.

Quanto a instituições com trabalho na área do ensino, o Instituto Português do Oriente recebeu 60 mil patacas (a primeira prestação para custear parcialmente as despesas com o plano de actividades de 2016) e o Instituto Internacional de Macau encaixou 3,85 milhões, para o corrente plano anual.

Referência também para o facto de Associação de Divulgação da Lei Básica de Macau ter merecido um subsídio de 3,25 milhões de patacas, o valor da última prestação para custear as despesas com o plano de actividades.

O jornal Ou Mun levou 490 mil patacas para custear parcialmente as despesas com a realização da 34a edição da “Viagem dos Estudantes Distintos de Macau”.

4 Nov 2016

Coisas à Macau

 

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]ais um relatório, mais um puxão de orelhas, mais umas resmas de papel – do Comissariado contra a Corrupção e dos jornais – para deitar ao lixo um dia destes. A gente já se habituou a que este tipo de coisas dê em nada, porque Macau é assim e pronto. A malta resmunga, os apanhados em falta pedem desculpa, dão rapidamente a mão à palmatória e prometem fazer tudo direitinho. O assunto passa ao esquecimento. Até à próxima.

Desta vez, os parques de estacionamento, assunto que já deu um processo em tribunal. Entre outros aspectos censurados, o Comissariado contra a Corrupção lamenta o facto de os Serviços para os Assuntos de Tráfego não terem fiscalizado de forma devida a cobrança das tarifas dos parques de estacionamento. Algumas empresas atrasaram-se na entrega das receitas provenientes das tarifas, mas os serviços nada fizeram. Assobiaram para o lado e ficaram à espera, que a terra é rica e, pelos vistos, não há pressa com acertos de contas. Somos todos amigos, irmãos e primos uns dos outros.

Os parques de estacionamento. Se pudesse, não os frequentava com esta assiduidade diária que me desgasta a paciência e o orçamento. Sucede que faço parte do grupo de pessoas a quem é, por razões profissionais e pessoais, impossível prescindir de uma coisa com quatro rodas e cinco portas que transporte gente de várias idades lá dentro. Sucede assim e, enquanto aqui viver e enquanto Macau não tiver transportes públicos decentes, não há volta a dar.

Precisamente porque Macau tem transportes públicos de duvidosa qualidade – com motoristas que fecham portas ainda os utentes não acabaram de sair, com motoristas que transportam gente saudável, gente doente, velhos e crianças como se fossem cimento em betoneiras –, quem tem poder para decidir deve deixar de encarar esta coisa dos parques públicos como um luxo para alguns, uma coisa que está entregue a umas empresas que fazem o que bem entendem, uma coisa que é para ir deixando estar. Auto-silos em autogestão.

Os parques de estacionamento. São do mais miserável que há e a experiência, em muitos deles, é quase tão má quanto andar de autocarro às quatro e meia da tarde com um bebé ao colo e uma criança de três anos pela mão. A maioria não tem ventilação, não tem sistemas inteligentes que ajudem na tarefa de encontrar um lugar para estacionar. A maioria tem lugares tão apertadinhos que mesmo aqueles que optam por carros pequenos têm uma certa dificuldade em abrir as portas. A maioria cheira mal. A maioria tem acessos sujos, mal cuidados, assim como caixas sujas, mal cuidadas. Ir pagar o parque pode ser um sofrimento. Cada um faz o que quer, mi casa es mi casa, o silo é deles e eles é que sabem, o Governo ainda por cima não chateia, não há cá critérios, os clientes pagam e é se querem, se não quiserem que andem nos autocarros à pinha e aos solavancos, com motoristas que fazem rotundas como se corressem na Guia, mas só em duas rodas.

Os parques de estacionamento. As irregularidades de que não sabíamos e aquelas que são públicas, mas ninguém quer saber. Os Serviços para os Assuntos de Tráfego, essa estranha direcção cujas tarefas ainda não consegui perceber exactamente quais são: Macau tem má sinalização nos dias normais, tem ainda pior sinalização quando há obras, tem rotundas mal feitas, enfeitadas com verduras e bonecos que não deixam ver quem lá vem, tem soluções de trânsito impensáveis, tem parques mal geridos. E tem – se o Comissariado contra a Corrupção lê os jornais, que se acuse, que ando há mais de uma década a falar disto e começo a ficar cansada – milhares de parquímetros que não dão recibo, em claríssima violação do Código Civil e do que dispõe sobre a quitação. Enfim, tudo pequenas coisas com que os Serviços de Tráfego se poderiam entreter, para que Macau tivesse alguma ordem.

As coisas do trânsito chateiam, chateiam muito. Chateiam quem anda a pé, de carro e de autocarro. Chateiam porque o trânsito rouba-nos tempo e o tempo são horas de vida que nos tiram. O trânsito aumenta a poluição e a poluição tira-nos vida, em qualidade e em quantidade. As coisas do trânsito chateiam e há muito que se poderia já ter pensado numa direcção de serviços com os melhores dirigentes, os melhores consultores e as melhores soluções. É que os nossos problemas, vendo bem, são coisas de junta de freguesia, mais ou menos fáceis de resolver como são todas as coisas das juntas de freguesia.

4 Nov 2016

Instituto de Estudos Europeus organiza conferência sobre múltiplas modernidades

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]asceu da “necessidade intelectual interna” do Instituto de Estudos Europeus de Macau (IEEM), que quer estar com os sentidos alerta, e dos contornos que o mundo tem assumido nos últimos tempos. Amanhã, numa sala da Universidade de Macau, vai falar-se de múltiplas modernidades, um conceito que não é novo – deve-se ao sociólogo Shmuel Eisenstadt –, para se perceber até que ponto é que continuam a ser relevantes nos dias que correm.

“Decidimos que seria muito interessante trazer uma discussão sobre aquilo que é o mundo hoje, com todos os problemas que temos à nossa frente, com todas as contradições e conflitos que vemos por aí, e fazer uma reflexão a partir de Macau”, explica ao HM o presidente do IEEM, José Luís Sales Marques. “Aqui no instituto sempre pensámos – e continuamos a pensar – que, apesar de Macau ser uma terra com uma dimensão geográfica pequena, foi sempre muito mais do que isso: historicamente falando, com algumas excepções, somos um ponto de referência no mundo de uma certa abertura à diversidade”.

Para este palco historicamente tolerante foram chamados académicos dos Estados Unidos, da Europa e de Hong Kong que se juntam aos do território para debaterem “os novos paradigmas de diálogo e convivência entre culturas diferentes, de aceitação da diversidade”. Sales Marques sublinha que “o mundo hoje está muito intolerante”: “Basta vermos o que se está a passar nas eleições americanas”. A incapacidade de aceitação do que é distinto “está também noutras partes do mundo, inclusive na velha Europa e na própria União Europeia, que antes dava a ideia de uma grande tolerância e de uma grande solidariedade, mas que, nestes últimos anos, tem dado alguns maus exemplos, nomeadamente em relação à questão dos refugiados”.

Os pontos da reflexão

Com a duração de apenas um dia mas com um programa intenso, o seminário começa com intervenções em torno das modernidades e culturas. Julia Tao, professora em Hong Kong, traz a perspectiva confucionista sobre a harmonia e a dignidade humana. Jack Snyder, dos Estados Unidos, fala sobre as modernidades iliberais. “Começam a aparecer cada vez mais sinais de ideias, no que diz respeito à governação, pautadas por um liberalismo um bocado invertido”, anota Sales Marques. Em foco vai estar a questão do desenvolvimento das nações, assim como o modo como está relacionado com o liberalismo de ideias. “São reflexões importantes”, afiança o presidente do IEEM.

Depois, debate-se a boa sociedade e as múltiplas modernidades, com a presença de Henning Meyer, do Reino Unido, e de um consultor da Aliança das Civilizações das Nações Unidas, Hanifa Mezoui, com uma intervenção sobre a construção de sociedades inclusivas no século XXI. Tak Wing Ngo, da Universidade de Macau, completa a reflexão ao falar sobre as variantes do modernismo.

Para a tarde, é esperada a presença de Thomas Meyer, que vem da Alemanha, que se debruça sobre a boa governação e as múltiplas modernidades.

O painel que fecha a conferência é sobre segurança humana, um conceito que vai além de preocupações como o terrorismo. “Hoje em dia, quando falamos de segurança, falamos nas várias dimensões do conceito. Parece-me um tema muito importante”, diz José Luís Sales Marques. No debate de Macau, vai ser abordado por Amitav Acharya, dos Estados Unidos, a dar aulas em Pequim, e por Inge Kaul, de Berlim.

“De certeza que não vamos encontrar uma resposta, mas vamos reflectir em conjunto e dar um pouco o nosso contributo para procurarmos encontrar algumas pistas para respostas que todos nós procuramos, hoje em dia, no mundo conturbado em que estamos a viver”, remata o presidente do IEEM.

3 Nov 2016

Salão de Outono e VAFA a partir do próximo sábado

 

Eram mais de 250 candidatos, mas deu-se o caso de os cinco melhores trabalhos terem sido feitos, todos eles, por artistas do sexo feminino. O VAFA – Festival Internacional de Vídeo 2016 chega à Casa Garden no próximo sábado, dia em que abre portas o Salão de Outono. Há muita arte na delegação da Fundação Oriente para ver até ao final deste mês

 

[dropcap style≠’circle’]“F[/dropcap]oi um ano espectacular”, resume José Drummond, artista plástico e director do VAFA, o festival internacional de vídeo que nasceu modesto, pela mão da Art for All, e que chega à sexta edição cheio de candidatos e com qualidade acrescida. O ano foi espectacular, continua Drummond, porque à organização do FAVA chegaram 266 trabalhos, de 136 artistas ou colectivos de artistas de 42 países e territórios. São números recorde. E o festival de Macau é assumidamente internacional.

Diz o director da iniciativa que “a qualidade também subiu”, assim como aumentaram as apresentações de artistas da China Continental. Macau recebeu ainda candidaturas de “países muçulmanos, como o Irão”, e este ano foram muitos os trabalhos feitos por artistas mulheres.

Os trabalhos no feminino acabaram por conquistar o júri. “Dos oito finalistas, um é um casal, os outros dois são homens e os restantes são mulheres – e as cinco mulheres são todas premiadas”, explica José Drummond. “Os trabalhos delas são todos bastante diferentes no género e no contexto. Tende-se a estereotipar o trabalho no feminino como sendo feminista, mas penso que a prova de que isso é um estereótipo são os cinco trabalhos em questão, em que apenas um poderia considerar estar mais próximo de questões feministas. Os outros trabalhos são bastante mais gerais”, explica o director do VAFA.

O primeiro para a China

Chama-se Ariane Loze e vem da Bélgica a artista vencedora, com o vídeo vencedor “Les Colombes”. “Fez um trabalho fantástico. Enviou três filmes. Acabou por ganhar um que aborda questões muito contemporâneas, do mundo dos nossos dias, da necessidade de amar, a cada vez maior falta de valores”, antecipa Drummond. Loze aborda questões como o problema dos refugiados na Europa e a possibilidade de uma guerra nuclear, num “trabalho bastante interessante”.

Além do convite para vir a Macau participar na cerimónia de abertura do festival e do Salão de Outono – que acontece às 17h30 do próximo sábado –, a vencedora recebe ainda um prémio de mil dólares americanos.

Nesta sexta edição, decidiu-se ainda distinguir mais candidatos – ao todo, são oito, sendo que quatro receberam menções honrosas: “O que nós falamos quando falamos sobre o aborto”, de Zihui Song, da China; “Iris 2.0”, de Isabella Gresser, da Alemanha; “Diários da Morte: degradação suave”, de Mariana Rocha, do Brasil, e “Os filhos saem aos pais”, de Lina Selander, da Suécia. Cada menção honrosa vale 500 dólares americanos.

José Drummond destaca o trabalho de Zihui Song – para começar, é a primeira vez que o VAFA tem um vencedor da China Continental. Quanto ao vídeo, é aquele que tem “um lado mais feminista”, por abordar uma questão social protagonizada por mulheres. “Foi feito com um grupo de apoio a mulheres que fazem abortos. Tem todo esse lado bastante intenso, política e socialmente, sobre a posição da mulher na China, e especialmente das mulheres que passam por esse tipo de experiência, de que modo é que são depois vistas na sociedade. É um lado muito cruel da sociedade chinesa”, sintetiza.

Da Rússia com esplendor

À semelhança do que tem vindo a acontecer em edições anteriores, o VAFA fez um convite este ano a um festival similar – a organização de Macau também tem participado em eventos lá fora. Desta vez, Macau vai contar com a presença de Hong Kong, do festival da Videotage, “uma organização que existe talvez há já três décadas, dedicada à arte multimédia, e que irá apresentar um screening em conjunção com um festival paralelo do Reino Unido”.

O trabalho que vai ser exibido na Casa Garden “é feito exclusivamente por artistas que viveram em ambos os sítios, no Reino Unido e em Hong Kong”. O director do VAFA diz que tem também “um cariz de actualidade em relação a tudo aquilo que se tem passado nos últimos dois anos na região vizinha, com alguns conflitos sociais e políticos com a China Continental”.

Porque o melhor fica para o fim, eis o ponto forte do festival deste ano – o artista convidado. Para o FAVA de 2016, trata-se de um quarteto russo, um grupo criado em 1987 que dá pelo nome de AES+F. “Tem um trabalho absolutamente fascinante, uma junção entre o digital e o real, e que é imperdível. É uma produção esplendorosa, não existe ninguém a trabalhar como eles”, diz José Drummond acerca deste colectivo que ganhou muita projecção internacional a partir do momento em que Veneza, com a sua bienal, lhe abriu as portas.

Entre os preparativos do VAFA e a antecipação do que se vai pode ver na casa onde está a delegação da Fundação Oriente, o director do evento não se esquece de dizer que o “festival não seria possível sem a FO, que acreditou na proposta desde o início, e sem o apoio do Instituto Cultural”.

 

 

 

O espaço que ainda temos

Pelo sétimo ano, a Art for All e a Fundação Oriente organizam o Salão de Outono, uma colectiva em que se pretende mostrar a arte que se faz em Macau. Desta vez, a curadora do evento, Alice Kok, decidiu olhar para a cidade, “este pequeno sítio considerado a ‘Las Vegas da Asia’, cheio e hotéis e casinos”, para lançar uma pergunta à comunidade artística local: “Ainda nos resta algum espaço?”. A resposta pode ser vista na Casa Garden, a partir do próximo sábado, nas 67 obras de 32 artistas locais: Cai Guo Jie, Chan Ka Lok, Chan On Kei, Cheong Cheng Wa, Fan Em Kuan, Fok Hoi Seng, Francisco Ricate, Ho Si Man, Ieong Man Pan, José Lázaro das Dores, Keong Wan Wai, Lai Kit Sio, Lao Sin Heng, Lee On Yee, Lee I Fan, Lei Ieng Iong, Leong Cheng I, Leong Chi Hou, Leong Wai Lap, Lin Bo Xiang, Ng Fong Chao, Ng Lai Seong, Sofia Bobone, Sou Leng Fong, Tang Kuok Hou, Todi Kong de Sousa, Wan Ieng Meng, Wong Ka Long, Wong Weng Io, Wu Hin longo, Yves Etienne Solonet e Zhang Ke. Os trabalhos seleccionados incluem pintura a óleo, aguarela, desenho, escultura, fotografia, porcelana e gravura.

3 Nov 2016

Poluição | UNICEF congratula-se com esforços feitos pela China

É sempre possível fazer mais, mas o Governo Central está no bom caminho no combate à poluição atmosférica. Na semana em que a UNICEF publicou um aterrador relatório sobre os efeitos do ar sujo nas crianças, a delegação em Pequim diz estar satisfeita com os progressos alcançados

[dropcap style≠’circle’]“A[/dropcap] UNICEF louva o Governo chinês pelos passos que foram dados no combate à poluição, ao introduzir sistemas de quantificação do problema, implementando padrões rigorosos para as emissões e prestando atenção às indústrias mais poluentes.” É assim que a delegação de Pequim da agência das Nações Unidas comenta a situação actual do país, em declarações feitas ao HM na sequência da publicação de um relatório, no início desta semana, sobre as consequências da poluição atmosférica para as crianças ao nível mundial.

O estudo – o primeiro do género a ser feito pela UNICEF – indica que cerca de 300 milhões de crianças vivem em locais onde os níveis de poluição são tão elevados que podem ter consequências graves para a saúde. Em termos globais, uma em cada sete crianças respira ar na rua que é, pelo menos, seis vezes mais poluído do que o recomendado nas directrizes internacionais. A poluição atmosférica é, neste momento, um dos principais factores para a mortalidade infantil.

Ao contrário do que tem vindo a ser norma, a China não é retratada no estudo como sendo dos casos mais problemáticos – Shenzhen é, de resto, apontada como uma cidade que soube trabalhar para ter um ar mais puro e que continua empenhada para atingir níveis melhores.

A UNICEF China confirma os progressos alcançados um pouco por todo o país. “As metas definidas no 13o Plano Quinquenal, o compromisso com os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável e a ratificação do Acordo de Paris são passos que irão permitir que a China se torne mais saudável.”

De pequenino

A delegação da agência explica que está a colaborar com as entidades governamentais do país para estudar os efeitos da saúde ambiental nas crianças, prometendo ainda apoiar o desenvolvimento de um plano de acção para a saúde ambiental infantil como parte do plano nacional sobre a matéria. A UNICEF participa também em actividades de educação dos jovens, “aumentando a consciência sobre as alterações climáticas, dando assim instrumentos às crianças para que possam ser futuros líderes na resolução dos problemas relacionados com o ambiente”.

Rana Flowers, representante da UNICEF para a China, defende que as autoridades não podem ser as únicas entidades públicas chamadas à colação quando em causa está o combate ao ar difícil de respirar. “É preciso fazer mais para proteger as crianças das consequências da poluição atmosférica, não só pelos governos, mas por todos nós. Reduzir a poluição ao ar livre é um objectivo a longo prazo, mas podem ser dados passos imediatos para diminuir a poluição nos recintos fechados”, sustentou ao HM.

“A utilização de combustíveis limpos, a boa ventilação, a construção de casas e escolas com eficiência energética, e o fim do consumo do tabaco em espaços fechados” são alguns exemplos apontados por Rana Flowers. “Os pais também podem dar passos para proteger as crianças contra os efeitos da poluição, ao evitarem expô-las ao fumo do tabaco e prevenirem a má nutrição”, continua, alertando para os benefícios da amamentação exclusiva dos bebés até aos seis meses de idade, e das vantagens no investimento em vacinação e tratamentos para a pneumonia.

3 Nov 2016

Centenário do padre Benjamim Videira Pires – Uma vida dedicada a Macau

Tereza Sena*

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntendo não ser o calendário que determina ou regula a evocação, a celebração, a reprodução da memória. Mas ajuda. Sobretudo se for democraticamente gerido. Porque há que conciliar disponibilidades, recursos, oportunidades, mesmo numa era dita de informação, cada vez mais desinformada pela atoarda da ilusão de que toda ela está acessível à distância de um “click”.

A memória, a sua reprodução, o apelo que lhe fazemos são processos selectivos, e muito, todos o sabemos. Como indivíduos, cidadãos, profissionais, afiliados, amigos, precisamos, utilizamos e reproduzimos pedaços de memória(s), nela nos visitando, revisitando e representando, quer individual, quer colectivamente. Uns mais, outros menos.

E Macau é um local de memórias, de muitas diversas memórias, nem sempre partilhadas, nem sempre plenamente conhecidas, nem sempre unanimemente aceites ou reconhecidas por todos, a ela arribados de um sem número de proveniências e por outras tantas vias. Memórias nem sempre evocadas, ou dados a conhecer por aqueles que reclamam o direito à cidadania e à intervenção num espaço que também assumem como seu.

Vem tudo isto a propósito da passagem, neste 30 de Outubro, do centenário do nascimento do padre jesuíta Benjamim Videira Pires (1916-1999), um homem que dedicou a sua vida a Macau, onde permaneceu de 1949 a 1998, e nela se afirmou pela acção educativa, criando uma instituição de ensino de elite, vocacionado para a instrução da população chinesa, mas também pelo contributo intelectual honesto, rigoroso, e marcante nas décadas de 50 a 80 do século passado.

Antropologia e outros estudos

Ensaísta, versou sobretudo temas antropológicos, como é o caso da sua conhecida obra Os Extremos Conciliam-se (1988), que foi vertida para chinês; e históricos, de que destaco a história da Companhia de Jesus, Ordem na qual ingressara jovem, em 1932, e o estudo da actividade marítima de Macau. Recorreu para isso a fontes primárias, pesquisando e disponibilizando documentos até então inéditos, anotando-os e comentando-os profusa e cuidadosamente, deixando obra de relevo, em grande parte ainda hoje dispersa. Mas foi também poeta, dramaturgo, jornalista e interventor político, para além de pedagogo e de sacerdote, naturalmente.

Menos conhecida é actividade de Videira Pires em prol do estudo, classificação e perservação do património edificado de Macau, realizada no seio da Comissão de Estudo do Património Artístico e Histórico de Macau, criada em 1960 e reformulada em 1962, que integrou, sobre o que lavrará relatório em 1963. Coube-lhe o estudo detalhado das igrejas e cemitérios antigos (o que constituí uma novidade), o que é testemunhado pela bibliografia que produziu neste domínio, onde pontuam, entre outros, textos sobre vestígios e achados arqueológios. Também será chamado a integrar a comissão incumbida da recuperação e reorganização do espólio do Arquivo do Leal Senado, após os incidentes do 1,2,3, em 1966 — onde aliás teve um papel activo na defesa das Escolas Católicas de Macau, cujo Conselho secretariava —, embora a tarefa tenha sido maioritariamente realizada por Luís Gonzaga Gomes (1907-1976), à época (1962-1967) director da Biblioteca Pública Municipal, situada no edifício da mesma câmara de Macau, como se sabe.

É certo que, de quando em vez, o nome de Videira Pires vem sobretudo à baila nos escritos de António Aresta e de Jorge Rangel, um dos poucos a relenbrarem o centenário e a promover, através do Instituto Internacional de Macau, discreta sessão assinalando a efeméride e relembrando o homem, o padre e o intelectual, Benjamim Videira Pires, na qual foi oradora Beatriz Basto da Silva. Tratou-se, tanto quanto julgo saber, da única homenagem institucional que a memória e o legado de Benjamim Videira Pires suscitaram, pelo menos em Macau. Não que os seus méritos não tenham sido reconhecidos, entre outros, pela Academia Portuguesa de História, que o fez sócio correspondente em 1988, quando já era sócio-efectivo da Academia de Marinha de Lisboa.

É de lamentar.

Relembro a forma esforçada e proveitosa como a Biblioteca Central de Macau, do Instituto Cultural, assinalou a passagem do 90º aniversário de Monsenhor Manuel Teixeira (1912-2003) com iniciativas que se prolongaram até 2004, tal como aconteceu com outras instituições, ou grupos ad-hoc, em Portugal.

Manuel Teixeira foi indubitavelmente o mais mediático e célebre de todos os estudiosos de Macau nela residentes do Século XX. Não pretendendo aqui estabelecer comparações entre as personalidades, contributos e legados destes dois homens de vulto, Teixeira e Videira Pires, que partilharam interesses comuns, conviveram, colaboraram (rivalizando um pouquinho é certo, de quando em vez), trilhando caminhos idênticos e atravessando os mesmos tempos. Apenas pretendo sublinhar que não pode a nossa memória colectiva, não podem as nossas instituições, não devemos nós pautar-nos pelo brilho das luzes da ribalta e pelo volume do eco com que esses nomes soam na cidade a partir de além-fronteiras.

Macau tem uma palavra a dizer sobre o valor e a utilidade destes e de outros legados, deve relembrá-los e ensiná-los como homens de Macau e do seu património, cultural, histórico, literário e historiográfico, para nos ficarmos por aqui.

Quero com isto dizer que instituições públicas como o Instituto Cultural e a sua Biblioteca, ou privadas como a Companhia de Jesus e o seu Instituto Ricci de Macau, estabelecimentos de ensino superior como, por exemplo, a Universidade de S. José, entre outros, e para apenas citar os mais óbvios, deviam uma palavra e um gesto de atenção a Benjamim Videira Pires.

Ignoro se o seu tão querido colégio, rebaptizado de “Mateus Ricci” em detrimento de “Melchior Carneiro”, e não obstante todos os tristes percalços por que passou nos finais dos anos 1990, relembrou ou não o homem que com tanto esforço e dedicação o criou em 1961.

Por fazer

Mas, para além da evocação e da homenagem, muito há a fazer:

Urgentemente ― não sou a primeira a dizê-lo, mas nunca será de mais repeti-lo ―, a inventariação e localização da obra de Benjamim Videira Pires, sobretudo a que se encontra dispersa pelas muitas revistas e jornais que dirigiu ou onde colaborou, assim acontecendo também com as inúmeras entradas que preparou para a Enciclopédia Luso-Brasileira, da editora Verbo. E, neste campo, a Biblioteca Central podia e devia oferecer o seu prestimoso contributo, na pesquisa de todo este acervo, tal como o fez para Monsenhor Manuel Teixeira, actualizando o trabalho que iniciou em 1992 e desenvolveu em 1997, se bem que ainda bastante lacunarmente, como reconheceu o mesmo Jorge Arrimar, que à época dirigia a instituição e assinou as notas introdutórias desses dois pequenos catálogos.

Há ainda a considerar a reunião de manuscritos, alguns eventualmente inéditos, levantando-se aqui a magna questão da localização presente do espólio(s) do próprio Videira Pires, sobre o que não me detenho, a que acresce toda a informação iconográfica e registo audio-visual que lhe respeitem.

Depois, a reunião em volume(s) dessa obra dispersa, e a reedição de alguns dos seus livros, hoje já inacessíveis, sem pôr de lado, a eventual tradução para língua chinesa, ou até inglesa, do que se considerar mais relevante para o desenvolvimento dos “estudos de Macau”, em que se empenham grupos e instituições, domínio em que o contributo de Benjamim Videira Pires tem lugar de direito próprio.

Finalmente, o próprio estudo da vida, obra e pensamento de Benjamim Videira Pires, na suas diversas vertentes, para o que já dispomos de textos biográficos, mais ou menos emotivos, como é o caso de P. Benjamim Videira Pires, Meu Irmão, da autoria de Francisco Videira Pires, dado à estampa pelo Instituto Internacional de Macau em 2011, e alguns contributos de António Aresta, de que destaco “A Identidade Cultural de Macau no Pensamento de Benjamim Videira Pires, SJ”, incluso no seu livro, Macau Histórico Cultural, que acaba de ser dada à estampa pela editora Livros do Oriente. Mas há certamente muito a dizer sobre o pedagogo, o pensador, o mediador e o político.

Uma ressalva final, esta sim, contendo talvez alguma novidade, e que reputo da maior importância. Qualquer edição ou reedição da obra de Benjamim Videira Pires deverá ser cotejada com os exemplares dessas mesmas obras que lhe pertenceram já que, atendendo ao rigor e seriedade intelectual que o caracterizavam, tudo anotava, corrijia, acrescentava, mesmo após a publicação dos textos, o que, naturalmente, merece e é de justiça ser considerado, para além de ser urgente recuperar. E isto enquanto tivermos acesso àquela que foi, pelo menos em parte, a sua biblioteca pessoal ou/e da residência dos jesuítas (outro tema a merecer a atenção de especialidade, tanto mais que anotava e criticava profusamente o que lia e consultava), e que integra hoje o espólio do Instituto Ricci de Macau.

Exemplifico apenas com um conjunto de textos, profusamente documentados, que o nosso autor preparou sobre os “Jesuítas e Macau”, tema de investigação que o ocupou desde cedo mas que terá ganho maior fôlego quando pretendia assinalar a passagem do IV centenário do estabelecimento dos inacianos na cidade, em 1964, dando então à estampa um pequeno volume sobre o assunto.

Sabe-se que o Padre Videira Pires preparava a edição de vários volumes sobre o tema, o que tudo já estaria mais ou menos delineado em 1994, tratando-se muito possivelmente da reunião dos artigos que vinha publicando desde os inícios da década de 1950 nas páginas da “Religião e Pátria”, do “Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau”, da Enciclopédia Luso-Brasileira, da “Brotéria” e noutras sedes.

Por onde andará tal trabalho desconheço, mas talvez valesse a pena indagar. O padre Videira Pires teria certamente em mente uma versão revista e anotada desses textos, contemplando as aludidas correcções, acrescentos e actualizações bibliográficas, que atrás referi e de que junto exemplos que bem atestam da relevância do legado que temos entre mãos e de que urge cuidar.

* Historiadora


Um homem na cidade

[dropcap]C[/dropcap]hegou a Macau em 1948 e aqui passou grande parte da vida. “Foi um homem de Igreja, mas foi um homem com impacto social”, diz Luís Sequeira. É assim que o jesuíta começa por descrever Benjamim António Videira Pires, um retrato que “não é fácil de fazer para conseguir ser objectivo”. É que Videira Pires, cujo centenário do nascimento se assinalou ontem, 30 de Outubro, foi um homem com várias dimensões.

Transmontano nascido em Mirandela, saiu de casa cedo, como acontecia à época, para estudar. Depois de passar pelo seminário em Guimarães, entrou na Companhia de Jesus, em 1932. Quatro anos depois, concluiu o curso superior de Humanidades Clássicas e de Literatura Portuguesa. Já em Braga, estudou Filosofia e, em Granada, Teologia. A ordenação enquanto sacerdote aconteceu em 1945. Três anos depois chegou a Macau.

Luís Sequeira conta que Videira Pires se “impunha pelo seu valor intelectual e sensibilidade aos problemas da sociedade”. Foi este lado do jesuíta que o levou a ser voz activa na Macau administrada então por Portugal. “Mantinha num jornal uma série de textos chamada ‘Calçada das Verdades’, escrevia artigos de opinião”, explica. “Sendo um homem da Igreja, era um homem com impacto e tinha presença na sociedade de Macau. Ao mesmo tempo, recordo que era uma pessoa com um temperamento delicado, respeitoso, com muito boas relações humanas, expressando-se até na recolha de fundos, ao nível internacional, para as suas obras” no território.

À chegada a Macau, Benjamim Videira Pires estudou chinês e foi professor do Liceu Nacional Infante D. Henrique, além de exercer funções pastorais. “A sua grande obra foi o Instituto Melchior Carneiro – foi ele que lançou esse grande colégio – embora na parte final da sua vida tivesse sido transformado no Colégio Mateus Ricci”, contextualiza Luís Sequeira.

O padre jesuíta faz referência à vertente das humanidades e literatura que Videira Pires cultivava: deixou obra poética, “era um homem sensível, delicado, era culto, lançou-se na poesia e fazia-o bem”. Depois, há a dimensão da história, “com muita repercussão ao nível internacional, com pequenos artigos ligados à presença portuguesa no Oriente – sempre manteve esta linha – e teve uma postura que lhe granjeou respeito no campo da história”. Luís Sequeira repara que, “por vezes, era demasiado patriótico, embora fosse uma pessoa com o sentido da interculturalidade”.

A espiritualidade é outro lado recordado: “Foi sempre um homem muito dedicado, atento à comunidade cristã, particularmente à de língua portuguesa”. Benjamim Videira Pires deixou Macau em Agosto de 1998. Morreu no ano seguinte em Portugal.

POR Isabel Castro

31 Out 2016

Subdirector do Rota das Letras fala em Bali da experiência de Macau

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]alou-se de Macau por estes dias em Ubud, onde se realiza um dos mais importantes festivais literários do Sudeste Asiático. Hélder Beja, co-fundador do Rota das Letras, esteve em Bali. Uma viagem que se pode reflectir nas próximas edições do evento do território

Sempre que pode, Hélder Beja faz as malas e viaja até à cidade onde está prestes a acontecer um festival literário. Foi assim com o festival literário de Paraty, em 2014, e foi assim também há uns meses, quando viajou até à Colômbia para a Feira do Livro de Bogotá. Desta vez, o destino foi mais próximo, mas há muito desejado. “Era um festival a que queria vir há muito tempo”, conta ao HM, ao telefone a partir de Bali.

“Vim à semelhança da forma como estive nos outros festivais. A decisão de vir aos encontros literários é minha, venho por minha conta. Mas como sou um dos organizadores do festival literário de Macau, acabo por ter um tipo de envolvimento diferente nos festivais do que tem um visitante normal”, explica o subdirector do Rota das Letras. “No caso de Ubud, quando entrei em contacto com os organizadores fui convidado para fazer parte de um painel precisamente sobre festivais literários.”

Hélder Beja participou, no final da semana passada, numa das muitas sessões que constituem o intenso programa principal do Festival de Escritores e Leitores de Ubud, uma iniciativa organizada na ilha indonésia há já 13 anos. O subdirector do Rota das Letras partilhou a mesa com a directora do festival de Bali, a australiana Janet DeNeefe, a escocesa Jenny Niven, responsável pelo aparecimento do festival literário de Pequim, e com Michael Williams, director do Wheeler Centre na Austrália, para uma sessão sobre “a vida secreta dos festivais” em torno dos livros e da escrita.

Das ideias que deixou na sessão acerca do Rota das Letras, Hélder Beja destaca o facto de ter causado muito interesse a particularidade de ser trilingue – em Ubud, apesar de haver tradução para bahasa, a língua mais usada acaba por ser o inglês. “As pessoas ficaram muito curiosas com essa parte, com a parte linguística”, relata, assim como com a duração mais prolongada do festival de Macau, em comparação com outros eventos do género.

A ideia da “memória palpável”, com a publicação dos livros de contos no âmbito do Rota das Letras, também foi um aspecto que mereceu atenção: “Acharam muito curioso o convite que lançamos aos escritores, todos os anos, para escreverem sobre Macau e depois traduzirmos tudo”. O festival literário de Macau é ainda diferente da maioria dos certames do género pelo facto de a grande maioria dos conteúdos do programa ser de entrada livre. “Expliquei porquê, porque é de facto bastante diferente do que acontece aqui, em Paraty ou em Bogotá.”

O outro universo de escritores

Sobre a experiência em Ubud, Hélder Beja refere ainda a possibilidade de conhecer escritores do Sudeste Asiático – e aqui a viagem até Bali poderá ter influência em futuras organizações do Rota das Letras, sobretudo no que toca à lista de autores convidados.

Este ano com o tema “Tat Tvam Asi” – qualquer coisa que, em português, poderá ser traduzida como “eu sou tu, tu és eu” – o festival de Ubud juntou centenas de escritores, pensadores, artistas, analistas e activistas. Num dos painéis desta edição, que terminou ontem, esteve em análise o trabalho da jornalista e escritora portuguesa Susana Moreira Marques, autora do livro “Agora e na Hora da Nossa Morte”, uma obra que resulta da experiência ao lado de uma equipa de prestação de cuidados paliativos ao domicílio, em Trás-os-Montes.

A diversidade de convidados vai ao encontro do objectivo da organização – reforçar “a identidade colectiva da Indonésia” – num palco que, avalia Hélder Beja, é “o sítio ideal para um festival cultural de qualquer natureza”. “Dizia na sessão que, depois de chegar, um organizador de um festival literário de qualquer parte do mundo fica um bocadinho deprimido com o seu próprio festival, porque a localização é imbatível. São indiscritíveis os espaços, só comparáveis – mas até superiores – aos que vi em Paraty, e não comparáveis a nada do que tenha visto noutros sítios. Ubud é um sítio especialíssimo”, afirma. Macau não tem o mesmo cenário, é “menos idílico”, mas o subdirector do Rota das Letras espera que o festival de cá possa vir a ser também “uma referência no mapa dos festivais literários da Ásia”.

31 Out 2016

Rogério Miguel Puga, académico: “Há muita investigação ainda por fazer”

São histórias de mulheres com olhares muito diferentes, que completam o vazio sobre o quotidiano da Macau do século XVIII. O investigador Rogério Puga voltou ao território para participar na conferência internacional “Discursos memorialistas e a construção da história”, que termina hoje na Universidade de Macau. E explica-nos o que se descobre sobre o passado desta cidade quando se vai de Boston a Filadélfia.

[dropcap]T[/dropcap]rouxe a Macau o caso do diário de Caroline H. Butler Laing, uma norte-americana, escritora, uma mulher de família também, que passou por cá no século XIX em viagem com o marido. Que diário é este? Que escritas femininas são estas?
São escritas protestantes, um olhar protestante sobre Macau, que estranha quer o chinês, quer o português católico. É uma mulher que vem de Nova Iorque, muitas vinham de Boston, e nunca tinham visto católicos. O português católico é tão exótico para estas mulheres quanto o chinês. Elas têm de descodificar esses dois outros que encontram em Macau. São exercícios religiosos: os católicos confessam-se, os protestantes não, pelo que escreviam diários como exames de consciência para ver o que tinham feito bem e o que tinham feito mal. Estas mulheres passam o ano todo em Macau, os maridos estão em Cantão seis meses, elas ficam sozinhas aqui com os empregados e os filhos, aborrecidas até à morte, rodeadas de católicos e de chineses, e descrevem desde o cão que está a latir aos cortinados e às cadeiras. Para se reconstituir a história do quotidiano da Macau do século XIX estas fontes são riquíssimas, são muito melhores do que as fontes portuguesas. Elas eram tradutoras culturais, porque tinham de explicar tudo ao mínimo pormenor sobre a China. Estes diários eram epistolares, em forma de carta, eram enviados para os Estados Unidos, e a rua e o bairro inteiro liam aqueles diários. Foram também responsáveis pelas primeiras imagens americanas sobre a China. São quase ferramentas da sinologia norte-americana.

Porquê esta mulher? O que tem de especial Caroline H. Butler Laing?
Tem o que todas as outras têm, mas há neste diário uma coisa muito interessante: o dia-a-dia da mulher protestante em Macau. Ela no fim faz uma espécie de um esquema do quotidiano de uma mulher norte-americana: as orações, a hora a que se levanta… Há outro diário, da Rebecca Kinsman, que enviuvou cá em Macau – o marido, Nathaniel Kinsman, está enterrado no cemitério protestante. Eles, por exemplo, trouxeram uma vaca dos Estados Unidos da América. Como os chineses não bebiam leite, as vacas não eram leiteiras. Se traziam crianças, traziam uma vaca. Quem ia embora deixava a vaca leiteira aos amigos que cá ficavam, assim como mobília – ofereciam ou faziam leilões. Este diário tem isso de especial: ela descreve o quotidiano da mulher de língua inglesa, protestante, em Macau: se ia visitar as amigas, se ia passear a pé até às Portas do Cerco, se ia visitar uma aldeia chinesa. Há todo este ponto de vista dos estrangeiros que chegam a Macau. Por exemplo, estranham o repicar dos sinos de hora a hora, que é uma coisa que não acontece nos países protestantes. É um olhar muito diferente do de uma mulher portuguesa que visitasse a Macau católica do século XIX: não estranharia o repicar dos sinos porque em Portugal também soam para dar as horas. É muito interessante esta focalização protestante sobre um território simultaneamente português e chinês.

Porque observa pormenores que seriam dados adquiridos para portugueses e chineses. É, portanto, uma fotografia mais completa.
É. Muitas vezes permite encontrar os vazios das fontes portuguesas, certas práticas que não estão descritas nas nossas fontes e que eles descrevem. Acontece muito, nas fontes oficiais, aquilo que interessava aos portugueses esconder do Rei de Portugal, os americanos ou os ingleses falarem abertamente, e vice-versa – o que interessava aos ingleses esconder, as fontes portuguesas muitas vezes revelam. Esse cruzamento das fontes de línguas diferentes permite encontrar vazios quer numas fontes, quer noutras.

Destacou o facto de serem fontes de religiões diferentes também, num contraste com os escritos de residentes e viajantes católicos. Existe uma diferença muito grande na abordagem do mundo, certo?
Existe, a cosmovisão é diferente. Estas mulheres americanas, quando vão para festas portuguesas até às quatro da manhã, sentem-se culpadas, há o peso da seriedade protestante. Os hábitos são diferentes, quase que se sentem forçadas a justificar porque é que ficaram até às três da manhã numa festa na casa do Governador. Há esse peso religioso. Há as práticas dos quakers e dos unitarianos em Macau, que casavam entre primos. Os próprios americanos espantam-se com os hábitos uns dos outros, o que não deixa de ser curioso. Existiam várias Macau – não eram só a portuguesa e a chinesa, havia também uma norte-americana, uma britânica. Esta visão caleidoscópica de um território tão cosmopolita como Macau era e continua a ser muito importante no cruzamento destas fontes.

Era uma Macau interessante, esta que a Caroline H. Butler Laing descreve?
Era. Sobretudo até à fundação de Hong Kong, era a única porta de entrada para a China e foi esse o segredo de Macau. Por isso é que ficamos tantos anos aqui: também era útil para as autoridades chinesas manterem os estrangeiros todos em Macau, delegando nos portugueses a responsabilidade de os administrar. Nenhum estrangeiro estava mesmo na China – ia de Macau para o complexo das feitorias de Cantão, que também era fechado como Macau, que funcionou um pouco como tubo de ensaio, desde o século XVI, para o comércio da China, nos séculos XVIII e XIX. Replicou-se o formato encerrado de Macau com as Portas do Cerco nas feitorias de Cantão. E daí a utilidade: manter os estrangeiros com um pé fora e outro dentro da China, encerrando-se as Portas do Cerco quando os portugueses e os outros estrangeiros não respeitavam o desejo das autoridades chinesas.

Na outra intervenção nesta conferência, que faz hoje, traz uma descoberta que revelou em 2012, que tem que ver com o primeiro museu da China e que foi criado precisamente aqui em Macau.
Foram exactamente estes diários que me permitiram fazer esta descoberta. Parece impossível como é que só em 2012 é que se faz esta descoberta, mas deve-se ao facto de ter sido uma iniciativa completamente anglófona, de língua inglesa. Este museu foi fundado por funcionários da Companhia das Índias inglesa e por missionários protestantes, e era sobretudo frequentado pelos visitantes estrangeiros e pela comunidade anglófona. Por isso, não aparece muito nas fontes portuguesas – quase ninguém lhe fez referência. Quando começo a ler estes diários de mulheres norte-americanas, aqui e ali encontrei frases como ‘Fui ao museu britânico de Macau’, ‘Fui ao museu de Macau’. Comecei a juntar uma linha ou duas, em vários diários, o que depois me permitiu, com o tempo, ir chegando à conclusão de que aquilo, para a época, era um museu representativo. Juntei várias referências, investiguei em revistas da época, e cheguei à conclusão de que entre 1829 e 1834 tinha sido inaugurado o ‘British Museum of Macau’ e que, ao contrário do que toda a gente dizia e do que a história da museologia da China defendia, foi o primeiro museu que abriu portas, e não um museu fundado por um jesuíta francês, Pierre Heude, em 1868. Portanto, o primeiro museu da China de cariz ocidental não abriu as portas em 1868, em Xangai, mas em 1829, em Macau, e fecha depois com o final do monopólio da Companhia das Índias em 1834.

Sabe-se qual era a localização?
Não. Foi uma das coisas que me perguntaram, quando a revista da Cambridge University Press avaliou o meu trabalho. Também queria saber. Penso que seria na zona onde hoje é o Palácio do Governo, porque era na Praia Grande que estava a sede da Companhia das Índias. Penso que seria algures entre a Penha e o actual Palácio do Governo mas, até à data, não encontrei ainda nada. Era uma casa arrendada e os comerciantes ingleses e chineses traziam peças para esse museu, havia um guarda, e as peças estavam legendadas.

Dois anos depois desta descoberta, escreveu sobre a primeira biblioteca de língua inglesa na China. Que biblioteca é esta?
É uma biblioteca itinerante. Todos os estrangeiros que vinham para Macau traziam livros – da América, de Inglaterra, da Irlanda –, deixam-nos ficar, trocam-nos. Esses livros vão sendo depositados na sede da Companhia das Índias em Macau e na feitoria inglesa e norte-americana em Cantão. Os livros viajavam Rio das Pérolas acima, Rio das Pérolas abaixo, com os comerciantes ingleses, que passavam o Verão e a Primavera em Macau, e o Outono e o Inverno a comprar chá, porcelana e outras mercadorias nas feitorias de Cantão. Alguns livros ficavam lá, outros voltavam, e a maioria, com o final do monopólio da Companhia das Índias, foi para a biblioteca que é hoje a Biblioteca Robert Morrison na Universidade de Hong Kong. A Companhia das Índias tinha também de defender o seu bom nome – o museu e a biblioteca [aparecem nesse contexto], até porque em Inglaterra eram cada vez mais acesas as críticas ao monopólio. A Companhia das Índias tinha de se preocupar com a sua imagem pública e provar que também se preocupava com o local onde fazia negócios. Essa era uma forma de o fazer e depois não houve nenhuma estrutura que substituísse a Companhia das Índias – as firmas norte-americanas já cá estavam – e isso acabou por influenciar o tipo de presença britânica aqui. Esse desregulamento da presença britânica vai dar lugar mais tarde à Guerra do Ópio. Mas estas duas actividades relacionam-se com as diaristas femininas de Macau. É necessário também estudar esta presença, não apenas a presença portuguesa, mas de todas estas comunidades que contribuíram em larga escala, no século XIX, para a vida cultural de Macau. Havia peças de teatro organizadas pela comunidade de língua inglesa, os cenários eram pintados pelo George Chinnery, que ainda chegou a fazer algumas personagens.

Como é que decidiu dedicar-se ao estudo das fontes em língua inglesa e não ao estudo das tradicionais fontes portuguesas?
Percebi que havia um vazio enorme que era não só o estudo dessas fontes americanas e inglesas, como também o cruzamento com as fontes portuguesas. Tendo estudado Estudos Portugueses e Ingleses, poderia fazê-lo, casar as duas línguas e culturas que estudei. Fiz o doutoramento em Estudos Anglo-Portugueses exactamente sobre um romance inglês cuja acção se passa em Macau: ‘City of Broken Promises’, de Austin Coates. Apercebi-me de que havia muita coisa a fazer e que estas fontes eram importantíssimas para o estudo do quotidiano da Macau portuguesa. Uma das razões pelas quais pude fazer essa descoberta e ajudar a reescrever a história da museologia na China foi porque os estudiosos estrangeiros não dominam, a maioria deles, o português, e fogem de Macau – estudam Hong Kong, Xangai, são fontes francesas e inglesas. Os historiadores portugueses, até há bem pouco tempo, também não se debruçavam sobre as fontes em língua estrangeira, porque estavam manuscritas, era preciso ir para Inglaterra e para os Estados Unidos. Tive de correr a costa toda, desde Boston até Filadélfia, em busca de diários de mulheres, não publicados. Contactei com familiares. A relação dos norte-americanos com este tipo de fontes é completamente diferente: emprestam tudo, fotocopiam, enviam-nos livros, criei em certa medida uma relação com os descendentes destas diaristas. Adoram ver estes estudos publicados. Há depois o medo em relação à referência ao tráfico de ópio – digo sempre que me interessa a história cultural, não a do comércio nem do tráfico, e aí ficam mais descansados e o tipo de relação é outro. Mas há muita investigação ainda por fazer.

28 Out 2016

Os cobardes

 

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]erdi a conta aos textos que já escrevi sobre o assunto, mas aqui vai mais um, apesar de saber que a expressão da minha indignação é um exercício completamente inútil. Ainda assim. Há coisas que são difíceis de aceitar. O desprezo pelos mais fracos, por aqueles que não têm sequer a possibilidade de se defenderem, é uma delas.

Ng Kuok Cheong sugeriu esta semana, na Assembleia Legislativa, a criação de mecanismos de caça aos ilegais. O deputado teve uma ideia: vamos lá fazer, todos juntos, cercos aos locais onde trabalha gente sem os papéis que a lei manda. De acordo com o esquema do auto-intitulado democrata, quando houvesse a suspeita de um trabalhador ilegal em determinado sítio, convocavam-se os residentes para cercar o espaço em questão. Só depois de se garantir que dali ninguém saía ou entrava é que se comunicava o facto às autoridades. Tudo isto em nome da defesa do operariado de Macau, o grupo de pessoas que tem a sorte – a sorte grande – de ter um BIR na mão.

Não vale a pena sequer discutir a legalidade da proposta. A um ano das eleições legislativas, não espanta que comecem a surgir ideias peregrinas e, sobretudo, perigosas. Quem acompanha a retórica de alguns deputados à Assembleia Legislativa já se habituou aos disparates que por ali se dizem; daqui para a frente, há que aguentar, em dose dupla ou tripla, o registo da parvoíce. Sabemos bem que há um certo eleitorado que alinha neste tipo de pensamento porque, infelizmente, há uma certa Macau que continua com palas nos olhos que toldam a visão e outros sentidos. Ng Kuok Cheong está a fazer pela vida. Da pior maneira.

O ilustre tribuno, com anos de Assembleia Legislativa suficientes para ter decorado, várias vezes, de cima para baixo e de baixo para cima, a Lei Básica de Macau, não é um homem valente. Não propôs cercos para outros tipos de crime. Não vai encabeçar um grupo de bons e legais homens que suspeitam que, num certo quarto de hotel, vivem duas ou três miúdas obrigadas a prostituírem-se. Não vai andar atrás do alegado agiota para descobrir se, no quarto de hotel ao lado do das miúdas, está um apostador caído em desgraça que dava tudo para voltar para casa, mas perdeu tudo numa mesa de um casino.

Não, Ng Kuok Cheong não é um homem valente. Ou então há certos tipos de crimes que não o incomodam, porque não vendem. Afinal, os crimes relacionados com prostituição ou com dívidas de jogo raramente têm como vítimas residentes de Macau, com a sorte grande do BIR na mão. São crimes que não contam para efeitos eleitorais.

Ng Kuok Cheong dispara, assim, sobre quem não tem modo de se defender: aqueles que não conseguem sequer obter autorização de trabalho. São tão miseráveis que nem sequer sabem que Ng Kuok Cheong fala deles na Assembleia, porque nem sequer sabem quem é Ng Kuok Cheong. Não vieram para Macau para roubar, explorar, matar. Andam por aí nas obras, às vezes caem de andaimes e partem pernas e o coração, a hipótese de uma vida menos miserável sai cara às viúvas e aos filhos e ao resto da família que deixaram para trás. Os trabalhadores ilegais são só trabalhadores – e ilegais porque o destino não teve mais para lhes dar.

Acho muito bem que se combata o trabalho ilegal, porque resulta, a maioria das vezes, em situações de exploração. Mas o trabalho ilegal combate-se de outra forma, pelo castigo de quem, para pagar menos, emprega sem garantir as condições exigidas pela lei. O combate deve ser contra os mais fortes e não através do cerco aos mais fracos.

Escrevi há uns anos que falta a pró-democratas e Operários – os dois grupos que perdem horas de sono com a mão-de-obra importada, ilegal e legal também – a capacidade de perceber que os trabalhadores que vêm de fora só deixarão de ser uma ameaça no dia em que se garantir que têm as mesmas condições que são dadas aos locais. Só quando estes dois grupos estiverem em pé de igualdade é que um empregador deixará de despedir um residente para dar trabalho a um não-residente que, neste momento, lhe sai mais barato.

Inocência a minha. Pró-democratas e Operários sabem bem que é melhor continuar a disparar no alvo errado, naquele que não se mexe porque nem sequer sabe que está na mira. É um alvo fácil. O exercício não requer perícia e vai dando votos. Muitos votos.

28 Out 2016

Cassia Schutt, designer de eventos | Querer que dê certo

[dropcap style≠’circle’]“V[/dropcap]amos? Então está, vamos.” Foi assim que aconteceu Macau na vida de Cassia Schutt, brasileira, carioca, menina do Rio. Já lá vão dez anos, “agora mesmo, no final deste mês”, e foi por acaso. Podia ter sido outro sítio qualquer, mas foi Macau, “uma vinda muito tranquila e uma mudança desejada” para dar início a mais um episódio na vida de uma mulher que procura ver o lado positivo dos locais por onde vai passando.

“A empresa do meu marido faliu”, recorda. “Era uma empresa grande de aviação no Brasil e Macau foi a primeira opção que apareceu. Não tínhamos a mínima ideia onde era”, confessa.

Cassia Schutt era, na altura, produtora de casting no Brasil e sair do país foi uma opção que nem todas as pessoas que a rodeavam conseguiram perceber quando receberam a notícia. “Tinha uma vida muito confortável. Tinha acabado a universidade, estava realizando um trabalho que adorava e que me dava frutos e rendimentos, tinha uma empresa no Brasil. As minhas amigas, quando falei que vinha, disseram ‘O quê, você está louca? Vai viver para a China? Está tudo certo aqui’”, relata.

O facto de estar “bem resolvida profissionalmente” no Rio de Janeiro não foi um obstáculo à adaptação a Macau, antes pelo contrário – permitiram-lhe encarar a pausa que iria fazer com mais conforto. E se, por um lado, esta licenciada em Comunicação Social, da área da Publicidade, gostava do que fazia, o tempo para a vida pessoal era pouco. Sem filhos à chegada ao território, decidiu então que era altura para parar, “curtir o casamento” e pensar em ter filhos. “Com o trabalho que tinha no Brasil, não me conseguia imaginar a ser mãe. Era uma coisa que me angustiava”, diz. “Os filhos vieram, os dois nasceram em Macau, foi planeado dessa forma.”

Depois do nascimento do primeiro filho, surgiu a vontade de voltar a trabalhar – Cassia Schutt é a responsável em Macau pela Meemo, uma empresa em que se juntam vários serviços prestados a quem quer fazer uma festa, da concepção do conceito à decoração temática do espaço, passando pela execução, venda e aluguer de acessórios. O projecto apareceu “naturalmente”: “As pessoas diziam ‘que legal que você faz isso, foi uma coisa que surgiu e que me preenche. Estou abraçada a um trabalho de que gosto”.

Cassia Schutt explica que há procura em Macau deste tipo de serviços, até porque há pouca oferta, mas identifica dificuldades. “Sinto muita falta de fornecedores, de materiais, apesar de a gente morar na China”. No Brasil, exemplifica, há empresas que se dedicam a fornecer produtos específicos para festas, “produz-se uma muito depressa, com alguns telefonemas de casa, ao computador, já se alugou e se entregou o material, aqui não existe isso”. É aqui que tem de haver criatividade em dose dupla: “Quando o cliente está disposto a fazer uma coisa mais bacana, tem de se comprar o material e fazer a produção”.

Nas vésperas de completar uma década longe do Rio de Janeiro, Cassia Schutt diz continuar a viver com a mesma tranquilidade com quem encarou a mudança. E analisa Macau com esse mesmo estado de espírito: “Várias pessoas reclamam do trânsito. Olho para Macau e penso ‘que bom que tenho cinema com pipoca, que bom que tenho restaurantes novos’. Acho que, em qualquer lugar, o crescimento vai trazer coisas boas e coisas ruins também. Consigo ver muita coisa boa”. Apesar de todas as transformações destes últimos dez anos, a designer de eventos encontra em Macau “um lugar tranquilo, que dá a facilidade de fazer as viagens que gostamos, onde se vive uma vida sem violência”. “Acho que quando a gente faz essa mudança, tem de querer que dê certo, tentar ver o lado positivo das coisas”, remata.

28 Out 2016

José Salgueiro, músico: “Tenho o grande desejo de voltar a Macau com os Trovante”

 

Percussionista, baterista e trompetista, José Salgueiro é um músico que Macau se habitou a ver por cá, em vários projectos e também como agente de outros artistas. Em mais uma passagem pelo território, nas vésperas do Festival da Lusofonia, fala-nos da música em Portugal, da ligação a Macau e da vontade de regressar, numa viagem a lembrar 1987

 

Vem a Macau agenciar o grupo português – HMB – e outras formações que actuam no Festival da Lusofonia. Mas começando pela música, que está no início de tudo. Em que projectos está neste momento envolvido?

Estou com o Tim Tim Por Tim Tum, um grupo que tenho há já muitos anos, de quatro bateristas. Fazemos uma performance muito curiosa, que dá para públicos dos sete aos 77 ou dos dois aos 92 – é um espectáculo para toda a família. Depois tenho um espectáculo meu, o Aduf, que tive oportunidade de apresentar aqui em Macau, na Fortaleza, a convite do Instituto Cultural. Tenho esse projecto em standby, para quando é possível fazê-lo, porque a logística é um pouco mais complexa. Toco com pouca frequência com o Trovante, que ainda existe, de vez em quando ainda se reúne para fazer um concerto ou outro. Um dos meus grandes desejos era voltar a fazer Trovante em Macau, era uma coisa que adorava conseguir, e vou ver se consigo. Depois, toco também com o Resistência. Além disto, ainda tenho o lado do jazz, toco com o projecto Lokomotiv e com outros grupos de jazz em Portugal.

Ser músico em Portugal continua a ser complicado ou a situação é agora mais fácil do que tem sido nestes últimos anos?

Há uma nova geração de músicos que é enorme. Vem das escolas que, entretanto, foram criadas, sobretudo por pessoas da minha geração. Começaram a dar aulas, a abrir escolas e agora há imensos jovens a saírem formados que, por sua vez, também já dão aulas. De repente, abriu-se um leque enorme de possibilidades para músicos em Portugal. O talento existe em grande quantidade, o problema continua a ser muitas vezes os circuitos em que os músicos se mexem.

Independentemente dos vários projectos musicais pessoais que foi tendo, manteve sempre colaborações com outros músicos, até porque se distingue por ser bastante versátil. Como é que está, neste momento, a procura por espectáculos em Portugal?

Existe um mercado grande mas, com a nova fornada de músicos, os mais antigos começaram a perder trabalho e os músicos novos começam a aparecer, a marcar a sua posição. Mas existe cada vez mais movimento artístico em Portugal e há realmente mais capacidade para espectáculos. Lisboa está repleta de turistas e de ofertas culturais, mas também com muita oferta cultural que vem do exterior. Compra-se muita coisa fora, há muitos festivais, muitos grupos também que ninguém conhece de lado nenhum, mas que já são muito conhecidos em Portugal. Há toda uma indústria para movimentar a cultura em Portugal. Se é a cultura mais certa ou menos certa? A verdade é que ainda há muitas coisas que chegam do estrangeiro e somos muito influenciados pelo que vem de fora.

E em relação à evolução da música portuguesa, que análise faz?

Obviamente foi evoluindo também, digamos que não estoirou, mas já existem muitos grupos. Muitos deles têm vindo a Macau, quando há Festival da Lusofonia e não só, o Instituto Cultural também traz imensos grupos. Há uma apetência grande para ir buscar sempre as raízes para a música comercial.

E isso agrada-lhe.

De alguma forma sim, desde que seja bem feito – é uma questão também de gosto. Mas temos os casos dos Virgem Suta e Diabo na Cruz, que são grupos que vêm do rock mas que, ao mesmo tempo, incorporam não só literatura portuguesa, como as próprias raízes musicais: os ritmos, as formas. Há muita coisa a acontecer e isso agrada-me bastante.

Vem ao Festival da Lusofonia há já vários anos, vem a Macau com alguma regularidade. Como é que avalia a evolução do festival?

Sinto que o festival está cada vez mais ligado aos interesses políticos aqui vigentes. Sinto que há maior abertura para que a língua portuguesa venha a estabelecer-se de alguma forma aqui em Macau e acho isso muito positivo, já que estivemos aqui 500 anos sem nunca conseguirmos ser influentes junto da comunidade chinesa. Agora, parece haver mais abertura, mas também há, politicamente, mais interesse do Governo Central em fazer essa fusão. É bom para todos os lados.

Vem a Macau desde 1987, altura em que, segundo diz, se apaixonou pelo território. Que ligação é esta?

Não sei, é muito mística. Quando entrei na escola primária e na escola secundária, tínhamos as colónias e as ex-colónias e Macau fazia parte. Tinhas de decorar Macau, Goa, Damão, Diu, tinhas de decorar isto para estares por dentro da história. Era assim que se ensinava e havia sempre a mística de que nós, portugueses, estivemos tão longe, pelo gostava de conhecer. Quando conheci Macau, fiquei fascinado pela brutalidade de estar tão longe do centro. Só que Macau, entretanto, sofreu grandes transformações. Já não sinto nada daquilo que senti quando vim a primeira vez. A terra acabava junto ao Hotel Lisboa, o resto era mar. O prédio mais alto era exactamente o do Hotel Lisboa, não havia mais do que isto. Felizmente, consegui vir periodicamente a Macau e fui sentindo sempre a evolução disto.

Além da evolução física da cidade, sente que há uma nova comunidade portuguesa? Vai sentindo isso nos concertos, nas passagens por cá?

Continua a haver muita gente nova por Macau, que voltou a ser atractivo até porque, em Portugal, não há assim tantas oportunidades para trabalhar. Quando as há, elas são agarradas e há muita gente que fica de fora e depois procura destinos mais longínquos para poder continuar a vida. Macau está a voltar a ser um desses destinos.

27 Out 2016

Parques infantis | Estado de degradação de alguns equipamentos preocupa pais

Há equipamentos novinhos em folha, mas outros encontram-se num estado de degradação que deixa apreensivo quem tem filhos que frequentam escorregas e baloiços. Fomos tentar perceber como devem ser pensados os parques infantis. Uma designer e um arquitecto dão-nos as respostas

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] caso que tem dado mais que falar diz respeito à zona de lazer dos Jardins do Oceano (ver texto nesta página), mas há mais equipamentos destinados a crianças colocados em zonas públicas que preocupam quem tem filhos em Macau. O Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) tem responsabilidade directa em quase 50 zonas de lazer, entre a península, Taipa e Coloane. Em várias destas áreas coexistem parques infantis e equipamentos destinados à prática desportiva – alguns foram sendo objecto de remodelação nos últimos anos, com a colocação de novas peças de mobiliário urbano; outros encontram-se em avançado estado de degradação.

É a situação em que está o único parque infantil público que serve os moradores dos Jardins do Oceano. Maia Sampaio, designer, mãe de dois filhos pequenos, não vive no local mas conhece bem as instalações. “Tendo como exemplo o parque do Ocean Gardens, temos um parque velho e degradado, que – além das dimensões desproporcionais para o tamanho das crianças mais pequenas, com o seu grande ‘tubogan’ e escadaria de acesso –, é feito com materiais desadequados.” “A madeira envelhecida e o metal enferrujado”, aponta a designer, “colocam em risco a segurança e até a saúde das crianças. Hoje em dia há soluções óptimas em termos de material durável, seguro e de fácil limpeza para utilizar no fabrico destes parques infantis.”

aviso_sofiamotaAo contrário de Maia Sampaio, o arquitecto Mário Duque não frequenta com assiduidade os parques infantis do território, mas explica como é que este tipo de projecto se faz: “Os equipamentos infantis e desportivos são especialidade de determinadas empresas. Associadas à competência dessas empresas estão a homologação de segurança, certificados de segurança em relação ao materiais – que estão homologados para determinados fins –, que é isso que dá a segurança a quem compra e instala esses equipamentos.” Em suma, “são peças que não se projectam” – compram-se feitas a quem é especialista na matéria.

“Há equipamentos de diferentes origens e qualidades”, nota o arquitecto, sendo que compete a quem as adquire fazer as melhores opções. “Esses equipamentos escolhem-se em função da confiança que oferecem, em função dos certificados que já reúnem, escolhem-se em função da apetência para as actividades que se fazem com eles – aquelas que as crianças mais gostam ou nem por isso –, e escolhem-se inclusivamente pelo seu aspecto visual.”

Estas peças isoladas compõem depois um projecto. “Aquilo que Macau tem são projectos que integram esses equipamentos”, continua Mário Duque. Compete depois aos autores do projecto local tomarem decisões sobre “os pavimentos, as vedações, outro tipo de pormenores que têm que ver com lancis, com tudo o que não é o equipamento”. Mário Duque destaca que, por norma, “são equipamentos públicos que já fazem parte de uma sequência de outros equipamentos” e que “quem acompanha estes projectos, pelo facto de já ter experiência nessas áreas, começa a tomar opções, para que aquilo que se faz hoje seja melhor do que aquilo que se fez ontem”.

Ao lado dos pandas

Um dos projectos mais recentes relacionados com o entretenimento de crianças em locais públicos fica perto do túnel de acesso à Ilha da Montanha, com equipamentos que, em termos estéticos, se destacam do resto das estruturas que se encontram noutras zonas de lazer do território – as placas colocadas nos escorregas indicam que o fabricante é espanhol, foram produzidos este ano e estão de acordo com as normativas europeias.

O conforto e a segurança que este espaço parece oferecer contrastam com o que se encontra no Parque de Seac Pai Van. A poucos metros do local onde vivem os pandas – uma casa que custou 90 milhões de patacas – há duas ofertas distintas para crianças: duas estruturas com escorregas e uma roda metálica. Um deles aparenta ser mais novo; no outro são visíveis as marcas do tempo e a falta de manutenção.

Num destes equipamentos, existe uma placa em que se indica que se destina a frequentadores com, pelo menos, cinco anos; no outro não existe qualquer referência em relação a idades. Em ambos o acesso é difícil – ora porque não existem escadas e apenas uns tubos metálicos que permitem subir até à plataforma que liga ao escorrega, ora porque existe uma rede de malha larga na estrutura propriamente dita.

“É importante que os parques infantis sejam pensados de outra forma e que se dê oportunidade tanto às crianças mais velhas e com mais destreza, como também às mais novas e indefesas – mas que também podem e devem, e querem, usufruir da brincadeira num parque infantil”, defende Maia Sampaio. “Um grande espaço entre degraus ou uma ‘ponte’ esburacada não significam que se esteja a ajudar a criança a desenvolver a sua condição motora, mas sim que se está a pôr em risco a sua segurança”, observa a designer. “São exercícios que se podem fazer a 10 centímetros do chão, sem se correr o risco de quedas”, vinca.

261016p2t1“Como mãe de duas crianças pequenas, confesso que nestes três anos [de frequência deste tipo de espaços] tenho descrito as idas ao parque como necessárias – pois os miúdos adoram ir –, mas muito stressantes. Tenho vindo a perceber que todos os parques têm sempre qualquer coisa de desajustado à idade dos meus filhos, o que me deixa sempre ainda mais atenta ao risco de acidentes”, sublinha Maia Sampaio.

A designer faz questão de frisar que “não se trata de tentar proteger as crianças em redomas, mas dar-lhes a oportunidade de crescerem, desenvolverem as suas capacidades motoras, em ambiente seguro”. “No fundo, o que todos queremos é que eles se divirtam, gastem muita energia e voltem inteiros para casa”, remata.

Do metal à madeira

Muitos dos parques infantis de Macau têm equipamentos em madeira, os materiais mais comuns neste tipo de peça e que obedecem a uma certa “escola ecológica”, contextualiza Mário Duque, que puxa pela memória para os tempos em que era criança. “Quando era miúdo tudo era metálico: baloiços, escorregas, etc. Comecei a projectar coisas e muitos materiais já tinham componentes de plástico. Houve um determinado momento em que se começaram a fazer certas opções que tinham um impacto ambiental diferente e que eram mais afáveis – começaram a vir as madeiras, preparadas para poderem estar à intempérie”, enumera. “Face a estas três gerações de materiais de que falei, é difícil dizer se um é melhor do que o outro, é mais o facto de, em determinado momento, haver materiais que são mais pertinentes.”

Importante é que, independentemente do tipo de material, seja feita a manutenção adequada – e que “não é propriamente pelo uso, é pela exposição à intempérie”. O caso da estrutura do escorrega dos Ocean Gardens ou a roda metálica em Seac Pai Van demonstram o que pode o clima fazer a este tipo de equipamento: corroer a madeira e enferrujar peças metálicas. Mais uma vez, trata-se de fazer a escolha mais acertada: “São materiais que, pela via das exigências daquilo a que estão sujeitos, quem tem a experiência faz as opções, para simplificar a manutenção”.

O HM tentou saber, junto do IACM, se há planos de requalificação dos parques infantis que gere mas, até ao fecho desta edição, não foi possível obter uma resposta.


IACM ainda não fez obras no parque dos Ocean Gardens, mas promete trabalhos para breve

Quase meio ano depois de um grupo de residentes dos Ocean Gardens ter enviado uma carta ao Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) a alertar para o estado de degradação do parque infantil do complexo habitacional, continua tudo na mesma. A entidade responsável pela manutenção deste tipo de equipamentos ainda não tomou qualquer iniciativa visível para resolver os problemas assinalados na missiva, da iniciativa de Andreia Martins, da qual o HM deu conta, em Junho passado.

Em resposta a este jornal, o IACM garantiu, no final da semana passada, que “está a acompanhar a situação da zona de lazer dos Jardins do Oceano, para responder da melhor forma às preocupações dos cidadãos”.

Quanto à resolução concreta das questões apontadas pelos residentes, a entidade sob a alçada da secretária para a Administração e Justiça diz que vão ser “plantados arbustos que vão funcionar como separação entre a zona verde e a estrada”. Junto ao parque infantil existe uma área relvada onde as crianças brincam – o perímetro não está completamente vedado e já aconteceu crianças irem para a estrada para apanharem bolas que saltaram para a via.

O IACM adianta ainda que “vai realizar trabalhos de manutenção e reparação nos equipamentos do parque infantil para que sejam resolvidos os problemas de segurança”. O parque é composto por uma estrutura de madeira e metal, em visível estado de degradação, com um escorrega onde acontecem acidentes frequentes. Por um lado, o escorrega tem uma grande inclinação e, por outro, é um tubo tapado, o que faz com que não seja possível, a quem monitoriza as crianças, ver se existe alguém dentro da estrutura. Além deste equipamento, no local existem apenas mais três pequenos baloiços.

Limpeza e mosquitos

Na carta enviada a 6 de Maio deste ano pelo grupo de moradores dos Ocean Garden era ainda lamentado o facto de, mesmo ao lado do parque infantil, se encontrarem vários equipamentos para a prática de desporto, todos eles em metal, sem existir uma separação que garanta a segurança das crianças. Desconhece-se se, em relação a esta questão, o IACM vai adoptar alguma medida.

Já no que diz respeito à limpeza do espaço, o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais explica que uma equipa da entidade “esteve a desinfectar o parque todo para controlo dos mosquitos”. Logo à entrada do parque é possível ver ainda um aviso em que se alerta para o encerramento, no passado dia 21, entre as 6h e as 9h, para “desinfestação destinada a combater os mosquitos portadores da febre de dengue”.

A estrutura onde se encontra o escorrega tem estado vedada desde então. Desconhece-se a razão – se por uma questão de segurança, na sequência de mais um acidente de que o IACM teve conhecimento, ou se ainda no âmbito das acções de limpeza.

O parque infantil em causa é o único equipamento público do género nos Jardins do Oceano, complexo habitacional onde vivem centenas de crianças. Apesar do estado em que se encontra, e por falta de opções, é muito procurado por quem vive naquela área. Para se chegar ao parque mais próximo, é necessário andar a pé cerca de 20 minutos.

A 29 de Junho deste ano, um dia depois de o HM ter dado conta do estado de degradação do parque junto ao Sakura Court e do alerta feito pelos moradores, o IACM garantia que já estava a acompanhar o caso e dizia-se pronto para solucionar a questão.

26 Out 2016

ATFPM pede actualização de vencimentos na ordem dos seis por cento

 

 

Melhores salários para a Função Pública, cheques mais gordos para a população em geral e vales que não sejam apenas destinados a aliviar as despesas com a saúde. Estas foram algumas das ideias deixadas ontem a Chui Sai On por José Pereira Coutinho. O Chefe do Executivo continua a ouvir associações para preparar as Linhas de Acção Governativa de 2017

 

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi um encontro de quase uma hora para o líder do Governo apontar as principais pretensões da Associação de Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM). Pereira Coutinho explicou ao HM que, além dos problemas relacionados com os funcionários públicos no activo, houve ainda oportunidade para falar das preocupações em relação aos aposentados e das expectativas dos cidadãos quanto às próximas Linhas de Acção Governativa.

Começando pelos trabalhadores da Administração: “Propusemos a actualização salarial na ordem dos seis por cento, passando para 85 na tabela indiciária”. E o que disse Chui Sai On? “O Chefe do Executivo demonstrou abertura”, garante o presidente da ATFPM.

Ainda em relação aos funcionários públicos, o também deputado à Assembleia Legislativa pediu que sejam reservados terrenos para a edificação de habitação destinada aos trabalhadores da Administração, “na medida em que, nestes quase 17 anos desde o estabelecimento da RAEM, não foi construída uma única casa”.

Outra sugestão deixada ao líder do Governo tem que ver com a “extensão das pensões de aposentação para o pessoal das Forças de Segurança, aproveitando a revisão do Estatuto dos Militarizados”. A ATFPM voltou a sublinhar a necessidade se “prestar mais atenção às classes da Função Pública com maiores dificuldades”, sobretudo às que “não estão abrangidas pelo regime de pensões de aposentação”.

Os pensionistas estão também na lista de preocupações da associação. “Levantámos a questão, que já dura há bastante tempo, dos aposentados que recebiam subsídios de residência e que, entretanto, deixaram de os ter”, afirma Pereira Coutinho, que espera que o Chefe do Executivo possa resolver a questão o mais rapidamente possível e tenha em conta “as dificuldades dos aposentados com o aumento do custo de vida, das rendas e da inflação”.

Vales para mais

O deputado defendeu também junto de Chui Sai On a actualização de vários subsídios, desde logo o aumento do valor atribuído no âmbito do plano de comparticipação pecuniária: 12 mil patacas para os residentes permanentes, mais três mil do que este ano.

Em relação aos vales destinados à saúde, a ATFPM tem uma ideia mais abrangente para este tipo de apoio, ao propor “a extensão dos vales para o consumo, permitindo que as pessoas, além de recorrerem à assistência médica, possam utilizá-los na aquisição de bens de primeira necessidade”.

A associação liderada por Pereira Coutinho tem sido chamada todos os anos à Sede do Governo para dizer de sua justiça em relação ao que deve ser a prestação do Executivo. Sobre a utilidade deste exercício, o presidente da associação não tem dúvidas: “Tem havido uma lenta evolução [da acção governativa] mas, por outro lado, há um avolumar dos problemas, de ano para ano, o que contribui para a falta de motivação dos trabalhadores da Função Pública”.

Coutinho considera que “as várias secretarias lutam com dificuldades para enfrentarem os problemas na raiz, dando a sensação de que estão a protelar as questões, fazendo com que os problemas, que já são muitos, sejam guardados para o próximo Chefe do Executivo e a sua equipa governativa”. O deputado afiança que não duvida da boa vontade de quem está no poder, mas os líderes da ATFPM são do entendimento de que “este elenco governativo, salvo uma ou outra excepção, não tem capacidade para enfrentar os problemas e encontrar soluções”.

 

 

Dos salários à imagem

O Chefe do Executivo recebeu ainda ontem os representantes da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Origem Chinesa (ATFPOC), que chegaram à sede do Governo com duas propostas de actualização salarial. Os membros da estrutura associativa gostariam que cada ponto da tabela indiciária passasse das 81 para as 83 patacas, com o subsídio de residência a ser aumentado das actuais 30 para 40 patacas. Mas a associação admite que esta sugestão iria implicar duas alterações legislativas diferentes, pelo que, em alternativa, sugere o aumento do índice para 84 – na prática, uma actualização de 3,7 por cento.

Ao HM, a ARFPOC contou ainda que defendeu, junto de Chui Sai On, a necessidade de atribuir novas competências à Comissão de Avaliação das Remunerações dos Trabalhadores da Função Pública. O organismo tem apenas, neste momento, carácter consultivo. A associação entende que, uma vez que é amplamente representativo da sociedade, deve passar a ter capacidade de decisão.

Ao líder do Governo foi ainda dito que é preciso encontrar uma solução para que os trabalhadores da Administração com 36 anos de serviço possam pedir a aposentação sem que percam garantias.

Por último, e salientando o trabalho feito desde o estabelecimento da RAEM, os representantes da associação lamentaram o facto de os funcionários públicos continuarem a ser alvo de críticas pela população. Consideram que ainda não existe uma noção da importância do que é feito no âmbito da Administração, propondo medidas para que os cidadãos possam conhecer melhor o trabalho da Função Pública.

26 Out 2016

Joaquim Franco, artista plástico: “Quero muito internacionalizar o meu trabalho”

Deixou a gravura no estúdio que um dia teve e que o preço das rendas já não lhe permite suportar. Agora só pinta. E pinta quadros com outras cores, influência das viagens, de paragens diferentes. Joaquim Franco tem um ateliê no Macau Art Garden, na Avenida Rodrigo Rodrigues. No quarto andar de um espaço cheio de luz e de silêncio encontramos um artista que se fechou no trabalho para um dia destes chegar lá fora, a outros destinos

[dropcap]H[/dropcap]á dez anos dizia que o ambiente artístico em Macau é sempre muito individual. Continua a ser assim?
Sim, embora as coisas tenham mudado bastante nestes últimos dez anos. Julgo que a mentalidade local abriu um bocadinho, até por influência do exterior, porque há mais estrangeiros. Mas, de facto, ainda continua a ser muito cada um no seu quintalzinho, cada um no seu cantinho.

Mas hoje partilha um espaço com outros artistas plásticos.
Sim, tive esta hipótese fabulosa que foi o James Chu ter-me ligado um dia destes a convidar-me para eu vir para aqui, porque sabia que eu não tinha estúdio, que está muito complicado ter um em Macau por causa do preço das rendas. Arranjei então este espaço. É pequenino, mas é simpático, estou concentrado no trabalho que estou a fazer e é muito bom.

O facto de estar num ambiente com outras pessoas – e, claro está, ter um estúdio – veio dar outra dinâmica ao seu trabalho?
Talvez possa considerar que sim. O que se passa é o seguinte: os artistas que estão aqui instalados neste edifício são, quase todos eles, jovens. São jovens que acabaram os cursos aqui de Macau, no Politécnico, há um ou outro que estudou fora na China, sobretudo –, mas são jovens. É engraçado e interessante conversar com eles sobre arte, sobre pintura. Não falam muito, porque a maior parte não domina o inglês, mas é interessante e simpático falar com eles, sobretudo porque são jovens e estão a começar.

Está cá há 26 anos. Como é que se faz, no caso de um artista plástico, para não ficar naquilo que estava a fazer quando chegou cá, dada a dimensão do meio?
É preciso ter a cabeça muito arrumada, na realidade. É preciso um grande esforço, muito trabalho e tenho lutado muito para chegar ao nível mais alto possível.

Veio para Macau fazer um trabalho completamente diferente daquele que tem hoje: arqueologia nas Ruínas de São Paulo.
A ideia era ficar 10 meses em Macau e já cá estou há 26 anos.

Como é que olha para estes 26 anos?
Olho bem, são simpáticos. Podiam ser melhores, podiam ser piores. É sempre uma questão à qual não conseguimos responder, porque se não tivesse sido aqui, teria sido noutro sítio e as coisas teriam sido com certeza diferentes. Agora, há uma coisa muito interessante, que gostava de focar nesta conversa: estes 26 anos não me transformaram num chinês ou num oriental, mas influenciaram muito o meu trabalho. Digamos que me aculturei e essa aculturação é extremamente importante perceber e digerir. Julgo que o meu trabalho foi muito influenciado pela arte chinesa e pela arte oriental.

E como é que essa influência se traduz?
Quando se olha para um quadro meu, à primeira vista, provavelmente as pessoas não se apercebem mas, na realidade, em termos de composição… Por exemplo, a composição da arte tradicional chinesa é vertical, da direita para a esquerda. Porquê? Porque tradicionalmente os chineses escreviam – e escrevem – de cima para baixo e da direita para a esquerda. Nós, no Ocidente, escrevemos horizontalmente e da esquerda para a direita, de cima para baixo. Resultado: a composição da pintura abstracta ocidental é normalmente muito horizontal, por essa influência, e, na minha pintura e no meu trabalho, a influência oriental existe, sinto-a e isso é interessante.

Esta aculturação não foi um processo deliberado…
Todos nós somos influenciados pelo meio, seria uma cobardia dizer que não, ninguém me influencia, eu sou o maior – isso não existe. No jornalismo, em todas as profissões, as pessoas são influenciadas pelo meio que as rodeia. É evidente que um artista plástico também sofre influências do meio. De repente, um dia acorda de manhã para um quadro e diz assim: ‘olha, afinal, que interessante, não tinha reparado nisto, mas isto é oriental’. É um pouco isto, é assim que acontece, não é ir à procura da influência. É um processo natural.

Nesta nova série em que está a trabalhar sente essa influência?
Sinto bastante. O mais interessante foi quando estive na Colômbia, no ano passado, em que aí se notou muito porque, na América Latina – apesar de terem a sua própria cultura –, a cultura deles é muito mais próxima da europeia do que a cultura asiática. Foi muito interessante porque, nos meus trabalhos, essa influência existia e nas conversas que tive com artistas lá discutiu-se muito isso, o que foi, de facto, interessante. Foi das coisas mais interessantes de verificar.

Tem uma nova série de trabalhos. O que é esta nova série?
Vem no seguimento do trabalho que já faço há dez anos – não parece, mas é verdade que já passaram dez anos e continuo a fazer mais ou menos a mesma coisa. Agora, a realidade, a influência da minha estadia na Colômbia – ainda foram quatro meses e meio em Medellín – ajudou a abrir outras portas, provavelmente. Ainda não estou muito certo disto mas penso que ajudou, talvez em termos de outras cores. A cor latino-americana é muito viva, muito brilhante, e eu usava muito laranjas e azuis, uns azuis muito escuros. Ainda uso, mas penso que, nesse aspecto, ajudou, influenciou.

Há quadros de grande dimensão?
Não, neste momento não tenho espaço suficiente para quadros de grande dimensão. Tenho uns quadros muito pequeninos, com 20 centímetros, 30 centímetros, e depois tenho uns maiores, com um metro por um metro, um metro e oito por oitenta. Gostaria de fazer coisas de grande dimensão, mas não é possível neste momento.

Está mais focado na pintura.
Só trabalho em pintura neste momento.

Onde é que ficou a gravura?
A gravura ficou no tinteiro, porque não é possível fazer gravura sem ter um ateliê. Eu tinha um ateliê montado, com prensa de gravura, com sala de ácidos, com tudo isso, mas é impossível manter, porque as rendas são muito caras e infelizmente não vendemos trabalho todos os meses. Do ponto de vista económico, a gravura é muito interessante, porque é a democratização da arte. Quando faço uma pintura é uma única; com uma gravura faço 30 provas e são 30 provas da mesma imagem. Todas elas têm o mesmo valor, mas o leque de pessoas que vão usufruir dessa imagem é muito maior. Por isso é que os artistas dizem que a gravura e a serigrafia são a democratização da arte. Mas infelizmente não é possível fazer gravura sem um ateliê, uma oficina, e neste momento não tenho espaço.

O que tem que ver com as mudanças também destes últimos anos. Dizia ainda há dez anos que o Governo e as instituições públicas não encomendam trabalho aos artistas.
Sim, isso continua mais ou menos na mesma. É pena – estão a fazer, por exemplo, o metro de Macau, podiam convidar os artistas para fazerem a decoração das estações de metro. Há uma questão em Macau que não existe: equipas interdisciplinares. Fazem-se casinos, fazem-se estações de metro, faz-se tudo, mas não se inclui um artista plástico numa equipa de engenheiros, arquitectos e, no caso dos casinos, designers de interiores. E é pena, porque poderia acontecer um trabalho muito mais interessante, mas não há essa tradição.

Algumas operadoras do sector do jogo têm trazido até Macau trabalhos de artistas de renome. Outras têm chamado para a curadoria de iniciativas um ou outro artista local, mas não há um investimento claro dos casinos nos artistas que vivem no território.
Tive a sorte, por exemplo, de fazer quatro painéis para um casino, em 2015, mas foi só isso. Fiz os painéis e pronto, não aconteceu mais nada. Conheço um casino que tem uma sala enorme cheia de quadros que foram comprados na China e na Tailândia mas que não podem ser usados, porque não estão de acordo com o ‘feng shui’, porque são quadros a óleo quando deviam ser a acrílico, por causa da questão da segurança, etc. Se convidassem artistas locais, provavelmente não teriam este tipo de problemas, mas é esta a realidade. De qualquer forma, tudo bem. Estou sempre aberto a propostas – venham elas.

Uma das áreas em que tem trabalhado é a formação. É uma vertente que continua a interessar-lhe?
Muito. Fiz arte-terapia por causa do tufão em Taclóban e da guerra em Zamboanga [nas Filipinas]. Fiz durante quase toda a minha vida, quando tinha um ateliê grande, workshops de formação. Há 20 anos – quando conheci este meu amigo colombiano com quem estive no ano passado – fiz um projecto exactamente ligado à educação, de intercâmbio internacional de artistas. Trazia artistas de fora a Macau, que fariam workshops e exposições, que trabalhariam em residência, e esse contacto com outros artistas, numa altura em que não havia escola de artes – hoje em dia já há o Politécnico, mas não há uma universidade de artes em Macau –, seria interessante. Talvez tenha sido muito cedo para as pessoas entenderem a dimensão de um projecto deste tipo e, portanto, acabou por não ser apoiado e desisti, porque lutei durante quase 15 anos e os resultados foram um bocadinho desastrosos. Não tive capacidade económica para continuar a custear o projecto.

Ainda assim, nomeadamente na Casa de Portugal, desenvolveu muito trabalho na área da formação.
Sim, sim. Dei aulas, fui o primeiro artista a dar aulas para a Casa de Portugal, a abrir os workshops, e durante uns anos dei aulas lá.

Sente que aquilo que foi passando durante estes anos a quem foi tendo contacto consigo deu frutos? Não digo necessariamente na formação de artistas, mas na sensibilização para a arte, na formação de público.
Acho que sim. Sempre que dou workshops não tenho na ideia que estou a formar artistas plásticos e que todos os meus alunos vão ser artistas plásticos. Por exemplo, durante 18 anos dei aulas no curso de Verão de Língua e Cultura Portuguesa da Universidade de Macau e é evidente que tive milhares de alunos durante esses anos, porque cada ano eram 60, 70, e julgo que não andei a formar artistas. Mas sensibilizá-los para as técnicas, para a arte em geral, isso sim, acho que foi um trabalho que fica sempre.

Projectos para o futuro?
A internacionalização do meu trabalho. Neste momento, à revelia de tudo, fechei-me a pintar e estou muito concentrado no meu trabalho. Quero muito internacionalizar o meu trabalho.

Sente que se estão a abrir portas para que isso possa acontecer?
Acho que sim. Por exemplo, estive na Colômbia numa cidade que era considerada, há uns anos, a mais perigosa do mundo: Medellín. Depois da captura do grande chefe da máfia colombiana, as coisas apaziguaram bastante, o Governo colombiano entrou em conversações com as FARC para estabelecer a paz no país, porque a guerra civil já dura há imenso tempo. Medellín, em 2014, foi considerada a cidade com maior desenvolvimento cultural do mundo. Porquê? O alcaide de Medellín – e o Governo da Colômbia também – apercebeu-se de que pela educação é que vai conseguir apaziguar a situação. Estão a investir imenso na cultura e na educação, porque perceberam que a cultura pode influenciar e abrir portas para que a paz se estabeleça no país. Foi bastante interessante ver isso. Por exemplo, a Feira de Artes de Medellín, na qual tive dois trabalhos expostos, é neste momento uma das maiores feiras internacionais da América Latina. Não vendi, mas saiu um artigo sobre o meu trabalho numa revista, o meu trabalho entrou nas exposições, fiz também enquanto lá estive uma pintura mural num complexo de restaurantes onde uma fundação tinha uma grande exposição de arte. Convidou-me para fazer um painel e ofereci-o a essa fundação. Fiz imensos contactos, fiz imensos amigos e vamos ver os resultados disto tudo. É preciso semear para depois colher.

24 Out 2016

Macau a brincar

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] jornal que tem nas mãos contou esta semana uma história sobre a qual vale a pena reflectir: um licenciado em Macau que pretenda dar aulas, independentemente da formação de base que tenha, garante facilmente o acesso à carreira de docente com uma pós-graduação de apenas um ano. O curso é leccionado na Universidade de São José e fortemente incentivado pelos Serviços de Educação e Juventude, que contribuem com parte substancial das propinas.

Não discuto a qualidade da universidade e da pós-graduação, o modo como o programa é dado ou o sentido de oportunidade de quem, não tendo estudado para professor, aproveita para mudar de vida através deste curso. Tenho a certeza de que há pós-graduados com uma indiscutível vocação para o ensino – e por isso mesmo é que voltam aos livros, depois de terem concluído licenciaturas em áreas como o Marketing e o Design, para poderem abandonar os computadores e as reuniões de adultos chatos, e ganharem instrumentos para lidarem com crianças, os únicos seres mais ou menos puros que encontramos por aí.

Já as intenções dos Serviços de Educação e Juventude me suscitam dúvidas, das mais profundas. É óbvio que o Governo, ao apoiar de forma tão expressiva a pós-graduação em causa, tentou (e aparentemente conseguiu) uma saída airosa para um problema grave de Macau: a falta de professores. E está a dar a volta a este difícil texto indo ao encontro dos desejos proteccionistas de alguns sectores – formam-se professores à pressão e evita-se, deste modo, a contratação ao exterior.

Por melhor que seja o curso, um ano não são quatro nem cinco, o tempo que um professor passa numa universidade. Noventa horas de estágio não são um ano de estágio. Por melhor que seja o aluno da pós-graduação e por muito talento que tenha, é impossível que termine o curso da Universidade de São José com o mesmo nível de preparação de pessoas que passaram vários anos a estudar para depois poderem ensinar.

A questão política: ao não exigirem um elevado nível de preparação académica aos docentes de Macau, os Serviços de Educação e Juventude estão a banalizar a profissão. E ao banalizarem a profissão, estão a desvalorizar uma das áreas mais importantes do funcionamento de uma sociedade. A educação é tão importante quanto a medicina, porque um aluno sem uma boa formação jamais poderá salvar vidas; a educação é tão importante quanto o direito, porque um aluno mal formado jamais poderá ser um juiz ponderado; a educação é tão importante quanto a engenharia, porque jamais um aluno com dificuldade em fazer contas será capaz de pensar numa ponte ou num prédio. A educação é importante porque sem ela é difícil termos boas pessoas e bons cidadãos.

Eu, jornalista de profissão mas também de formação, posso frequentar uma pós-graduação em Direito. No entanto, este curso não me garante – e ainda bem que assim é – o acesso à advocacia, nem faz de mim jurista. Seria um escândalo se tal acontecesse. Não consigo entender por que razão não é um escândalo que a formação dos nossos filhos e dos filhos dos nossos vizinhos possa estar nas mãos de quem – mais uma vez, independentemente do talento, vocação e conhecimentos – não passou uns bons anos a estudar para ser educador de infância ou professor.

A história da pós-graduação da Universidade de São José é, de certo modo, um bom exemplo de como Macau funciona em diversos aspectos: isto é tudo mais ou menos a brincar, que a malta é porreira e não se passa nada. Assobia-se para o lado e para se tapar um buraco destapa-se outro, que a manta é curta. Mas isso depois logo se vê – aqui entre nós que ninguém nos ouve, pode ser que passe entre os pingos da chuva.

23 Out 2016

Paulo Alexandre Ferreira, Secretário de Estado: “Noto um forte interesse da China na aproximação a Portugal”

Lidera a delegação portuguesa que veio este ano à Feira Internacional de Macau (MIF). O secretário de Estado Adjunto e do Comércio de Portugal, Paulo Alexandre Ferreira, acredita que há condições para uma presença mais forte no mercado chinês, sejam os empresários de ambos os países capazes de perceber os diferentes contextos em que se movem. A grande aposta é feita nas novas tecnologias.

[dropcap]E[/dropcap]stá em Macau para participar na MIF, que tem Portugal como país parceiro nesta edição. O que é que se pode esperar desta parceria, da forma como Portugal se apresenta este ano?

Espero que haja um reforço dessa parceria e que seja algo mais, primeiro em termos daquilo que é o sector mais representado – o sector agro-alimentar. Mas espero que se reforce a presença de Portugal noutros sectores de actividade. Temos, por exemplo, a participação de empresas tecnológicas e isso permite catapultar a imagem de Portugal – não só as empresas que participam, mas também todas as outras que não estão representadas – também como um parceiro na área tecnológica. Esperto que isso possa ser visto pela China e pelos outros participantes da Feira com uma visão de que Portugal tem mais para oferecer do que aquilo que são os produtos que tem trazido habitualmente à Feira.

Foi visível na recente reunião ministerial do Fórum Macau um interesse diferente de Portugal pela China. Chegou o momento de Lisboa aproveitar e apanhar um barco que, de certa forma, perdeu, em relação à presença no Fórum Macau e à própria China?

Não sei se perdeu. Neste momento, há uma grande vontade do Governo em afirmar Portugal como uma ponte entre a China e a Europa, entre a China e os países de língua oficial portuguesa, e é nesse sentido que estamos a trabalhar. Esperamos que, em face desse esforço que estamos a desenvolver, isso possa dar frutos e a curto prazo.

Mas houve uma altura, sobretudo nos primeiros anos do Fórum Macau, em que Portugal se colocou, de certo modo, à margem daquilo foi sendo a relação entre a China os países de expressão portuguesa. Nota-se agora, por parte da China, também um novo interesse por Portugal. Sentem isso nos contactos que vão tendo por aqui.

Sim. Mesmo na esfera que tutelo, ao nível da economia, seja em sectores como o consumidor, as actividades económicas e mesmo no domínio da ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), noto um forte interesse da China e de instituições ligadas ao Governo chinês em ter essa aproximação a Portugal. Há já uma série de protocolos assinados connosco nestes domínios e que demonstram uma apetência da China pela aproximação a Portugal – e Portugal tem todo o interesse em fomentar esse espírito de cooperação.

Voltando à MIF e à questão do sector agro-alimentar que, em Macau, tem uma presença forte. Portugal tem sempre o problema da capacidade de produção para um mercado com a dimensão da China. Com as novas tecnologias essa questão já não se coloca.

Não, consegue-se chegar a todo o lado. Aliás, na semana passada, estávamos a discutir num fórum que se realizou entre a ACEP – a Associação de Comércio Electrónico em Portugal – e a congénere chinesa que pequenas empresas portuguesas nas áreas tecnológicas conseguem colocar-se no mundo de forma plena e ter a pretensão de alimentar um mercado como o chinês. Espero que não haja esse problema e que as empresas portuguesas – não só do sector tecnológico, mas de todos os sectores – vejam a China como um mercado que podem tentar agarrar. É para isso que estou aqui, também para passar a palavra e dar um incentivo às empresas nacionais.

 Ainda no sector tecnológico, existia um grande receio por parte do Ocidente em relação ao modo como a propriedade intelectual é tratada na China. No contacto com as empresas portuguesas, sente que esse problema já foi ultrapassado e que não é assim tão difícil chegar ao mercado chinês?

Sim, não noto isso nos nossos empresários. Não é uma restrição. Consideram que o mercado chinês é um mercado com potencial, não só em termos de dimensão, como em termos qualitativos. Há já uma classe média chinesa que pode revelar apetência por aquilo que são os produtos e serviços portugueses. Não vejo isso como um impeditivo, nem me tem sido assinalado como um problema.

E qual será o problema efectivo para uma aproximação maior entre aquilo serão as potencialidades portuguesas e a China? A distância? As diferenças culturais?

Acho que é perceber a dinâmica do mercado chinês, as particularidades – e penso que é um problema ou um desafio recíproco. As empresas chinesas também têm de perceber o contexto europeu em que Portugal se insere. Os aspectos culturais aproximam-nos, não nos afastam. Agora, as realidades dos mercados em que nos movemos são diferentes – não é um obstáculo, mas constitui um desafio. Penso que há hoje condições para ser ultrapassado da melhor forma. Lá está: é preciso haver cooperação e proximidade entre entidades não só públicas, mas também entre empresas.

Temos assistido nestes últimos anos a um grande investimento por parte de grupos estatais chineses em Portugal, através da aquisição de empresas em áreas fulcrais. Existe, portanto, uma grande presença no país. O contrário tem também de acontecer, com as devidas diferenças em termos de dimensão e numa outra proporção? Portugal não pode ficar à espera, mas sair também do país para captar outro tipo de investimento?

Espero que, neste momento, a porta de entrada seja uma porta para o mercado e, a partir daí, logo se verá. Não podemos ter a veleidade de querer ter uma presença na China como a China consegue ter, neste momento, em Portugal, em termos de aquisição de activos. A minha preocupação é também contribuir para que possa existir uma presença de empresas portuguesas no mercado chinês. Não a colocaria ao nível da aquisição de activos, mas de acesso e de presença no mercado.

E em relação ao que poderá ser a presença chinesa no futuro? Já houve a aquisição de activos em sectores fundamentais. Como é que poderá ser a presença da China em Portugal – e que não colida com aquilo que é a posição manifesta do Partido Socialista em relação a áreas estruturais da economia?

Não colocaria a questão em termos do Partido Socialista; neste momento são os termos que foram definidos pelo Governo. Um sector que pode beneficiar do que a China pode oferecer é a área da logística. Também aí Portugal pode ser uma porta de entrada na Europa e tirarmos partido de alguns activos que temos – como o Porto de Sines, as boas ligações ao resto da Europa –, e permitir centrar novamente o país naquilo que é a sua posição no mundo. Colocá-lo, mais uma vez, como porta de entrada de mercadorias – seja da China, seja de outros sítios – na Europa, e também aí ganharmos competitividade face a outras portas de entrada que neste momento existem.

20 Out 2016

Medidas anunciadas pela CTM não satisfazem cidadãos, diz Si Ka Lon

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s medidas anunciadas pela Companhia de Telecomunicações de Macau (CTM) em relação à redução das tarifas e ao aumento da velocidade da Internet não deixaram os residentes satisfeitos, disse ontem na Assembleia Legislativa o deputado Si Ka Lon.

Numa interpelação totalmente dedicada à relação entre o Governo e a CTM, o tribuno afirmou que, de acordo com as opiniões que lhe foram transmitidas, “as tarifas e a velocidade dos serviços de banda larga continuam insatisfatórias em comparação com Hong Kong e Zhuhai”.

Para Si Ka Lon, chegou a hora de a Administração agir em relação ao que acontece no sector das telecomunicações e avançar com uma “verdadeira liberalização”.

Segundo o contrato de concessão celebrado com a CTM, a empresa “tem o direito de cobrar aos outros operadores interessados no acesso aos activos da concessão a despesa de aluguer dos serviços de circuitos na rede fixa”. O deputado vinca que os preços praticados pela Companhia de Telecomunicações de Macau são “elevados”, pelo que “não se conseguiu criar concorrência neste mercado”.

Si Ka Lon diz mesmo que as pessoas consideram que, no que toca à liberalização do sector, “o Governo está a falar e a agir de forma contrária”. Por isso, espera que o Executivo possa tomar medidas para atrair mais operadores para o mercado e “criar mecanismos, de longo prazo, de afectação justa dos activos da concessão”.

O contrato com a CTM tem a duração de dez anos – até Dezembro próximo o Governo tem de decidir se vai ou não renová-lo. O secretário para os Transportes e Obras Públicas alertou já que só se ocorrerem “infracções graves ou imperiosas razões de interesse público” é que o contrato não será automaticamente renovado.

19 Out 2016

Deputados defendem monocarril em Macau

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] tempo e o transtorno das obras na Taipa devem levar o Governo a adoptar outras soluções para o trânsito na península. Aproveitar a linha costeira pode ser uma mais-valia, dizem tribunos com ligações à construção civil.

Três deputados à Assembleia Legislativa defenderam ontem, no período de antes da ordem do dia, que o Governo deve repensar o plano que tem para o metro ligeiro do território. Kou Hoi In, Cheang Chi Keong e Chui Sai Cheong entendem mesmo que não vale a pena avançar com o metro em Macau: basta fazer a ligação entre a Taipa e a estação da Barra.

Os tribunos sustentam a teoria com a morosidade e transtorno causados pela construção do projecto. “As obras do traçado do metro ligeiro da Taipa são lentas e a população tem de tolerar, mais três anos, um período negro de trânsito”, salientaram. “Se a mesma situação acontecer na península de Macau, é de crer que serão mais graves os congestionamentos de transeuntes e de carros.” Vai daí, os deputados afirmam que “não vale a pena a construção [do metro] na península de Macau e basta ligar o troço da Taipa à estação da Barra”, sendo que pedem ao Governo que “pondere com cautela” a sugestão deixada.

Kou Hoi In, Cheang Chi Keong e Chui Sai Cheong deixam uma alternativa para a península, para que o trânsito possa ser “melhorado com urgência”: “Macau pode aproveitar as vantagens costeiras e tornar a Barra como centro, construindo à beira-mar na península uma ‘via circular exterior’”. Esta opção iria permitir, para os deputados, fazer a triagem de veículos para várias zonas, aliviando a pressão do trânsito no centro da cidade.

Depois, e seguindo a mesma lógica de aproveitamento da linha costeira, os três membros da AL – todos eles com ligações ao sector da construção – propõem que se faça um monocarril. Os deputados deixam uma noção do que poderia acontecer: “Os vagões podem percorrer, continuamente, a ferrovia em torno da cidade, permitindo aos cidadãos chegarem da circular exterior a várias zonas da península de Macau”.

Além da contribuição para a resolução do problema do trânsito, Kou Hoi In, Cheang Chi Keong e Chui Sai Cheong encontram nesta ideia mais uma atracção turística, pois poderia servir de “carril de excursão em torno da península”.

Que andem a pé

Igualmente preocupada com o trânsito está Chan Hong, que dedicou a interpelação que ontem fez na Assembleia Legislativa ao problema dos autocarros de turismo na Rua de D. Belchior Carneiro, junto às Ruínas de São Paulo. O assunto não é novo, mas a deputada achou por bem voltar a discuti-lo, uma vez que não há novidades sobre uma matéria que, de acordo com as promessas da Administração, seria estudada e resolvida ainda este ano.

Chan Hong começou por recordar que os Serviços para os Assuntos de Tráfego prometeram apresentar em 2016 um plano de reordenamento do trânsito para a Rua de D. Belchior Carneiro, para depois dizer que “até agora nada se vislumbra”. A circulação ininterrupta de autocarros que transportam turistas para a zona das Ruínas de São Paulo, prosseguiu, “há muito incomoda os residentes das proximidades e cria grave pressão para o trânsito nas vias circundantes”.

Para a deputada, a solução do problema passa pela interdição da circulação de autocarros de turismo: “Os visitantes podem descer no silo da Praça do Tap Seac e andar a pé até às Ruínas, visitando pontos turísticos na freguesia de São Lázaro”.

O sector do turismo tem, no entanto, uma perspectiva diferente, que Chan Hong não esqueceu na interpelação. Os representantes da indústria argumentam que “em Macau há mais de 1800 guias e mais de 100 agências de viagens que aceitam turistas da China Continental, havendo dificuldade na coordenação e orientação dos turistas para irem a pé até às Ruínas de São Paulo”.

A falta de consenso em torno deste problema, continuou, “vai pôr à prova a sabedoria do Governo”. A deputada insiste, no entanto, na utilização da Praça do Tap Seac como ponto de largada e tomada de turistas, propondo a criação de mais instalações de apoio às pessoas que visitam a cidade.

19 Out 2016

A cidade dos outros

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau não é fácil. Não é fácil para quem é de cá, não é fácil para quem chega, não é fácil para quem vai contando os anos de vida ao ritmo das edições do Grande Prémio. Ou da apresentação dos relatórios das Linhas de Acção Governativa. Presumo que as outras cidades sejam igualmente difíceis para quem vive nelas, mas acontece que não vivo nas outras cidades: é aqui que sou.
Para quem veio de fora e já conta alguns anos disto, houve um momento – ou vários – de dúvida sobre a lógica da continuidade por cá. Mas há um momento – e não vários – em que é preciso decidir, para ser possível viver em paz com quem se foi, com quem se é e com aquilo que se pretende ser. Estar aqui e noutro sítio qualquer ao mesmo tempo não dá jeito e tem efeitos extraordinariamente prejudiciais, sobretudo para a alma, que fica desasada. Que se decida onde se quer estar, hoje, mesmo que a decisão não dure mais do que as vinte e quatro horas do dia e, nas vinte e quatro horas seguintes, se faça a mala e se apanhe um barco para longe, muito longe.
As cidades são como as pessoas, porque são feitas de pessoas. E porque são feitas de pessoas, convém que as cidades tomem decisões sobre as pessoas que nelas vivem. Cidades indecisas geram cidadãos confusos, causam situações desagradáveis, porque a incerteza é chata, mói devagarinho. Cidades sem um projecto tornam-se insuportavelmente insulares, arredondam-se e fecham-se. Não têm qualquer serventia.
Macau teve um problema grave de indecisão com a transferência de administração – um dilema que, de certo modo, continua por resolver, embora atenuado pelo discurso oficial da harmonia e coisa e tal. Nos anos que se seguiram a 1999, quem cá estava e lidava com a teoria política (e com a prática política) tinha a clara sensação de não saber para onde é que tudo isto ia. A cidade. As pessoas. As pessoas na cidade. Os portugueses daqui e os portugueses que para aqui vieram.
Os bois pelos nomes: foi preciso Pequim bater o pé e inventar um desígnio que vários bons rapazes da política local não estavam dispostos a aceitar. Pequim deu um murro na mesa, deu força ao Chefe do Executivo de então e tomou-se uma decisão para a cidade: Macau ia ser um plataforma entre a China e a lusofonia, pelo que a lusofonia da terra e das pessoas era para preservar.
Todos nós sabemos que a China não precisa de Macau para chegar ao Brasil, para aterrar em Luanda ou em Cabo Verde. E todos nós sabemos também que é fraco o lado visível de mais de uma década de fórum sino-lusófono. Mas quem cá está e se lembra do quão indecisa andava a cidade no início do milénio sabe que há figuras de estilo que são muito mais do que palavras, apesar de, como figuras de estilo que são, não entrarem na contabilidade dos negócios.
Esta semana, Macau voltou a ser uma cidade virada para a lusofonia, com ministros e políticos e empresários e muita gente vinda de fora, dos países onde se fala português e do país onde se fala um chinês com diferente significado do chinês local. Li Keqiang passou por cá para recordar que as dúvidas mal resolvidas na cabeça de certos bons rapazes devem ser resolvidas quanto antes, porque Pequim inventou um projecto para Macau que vai além das fichas de jogo em dólares de Hong Kong que se atiram nos casinos da cidade.
De Portugal também veio gente: Lisboa quis trazer um primeiro-ministro para a ocasião. No meio dos discursos de circunstância, entre a retórica politicamente correcta e as intenções de aproximação à China, a ideia que muitas vezes falha a quem parte da Portela e aterra ali em Chek Lap Kok: os portugueses que aqui estão, que aqui vão sendo, interessam. E porque interessam, que se acarinhem.
Macau não é fácil e há alturas em que as decisões pessoais não bastam: é bom que quem manda na cidade e que aqueles que, mesmo ao longe, vão olhando para ela nos digam o que querem de nós, porque inventar solitariamente destinos para cidades arredondadas nunca fez bem a ninguém.

14 Out 2016

Da casa a caminho do tempo

[dropcap style=’circle’]G[/dropcap]osto de casas velhas. Gosto de casas velhas porque nas paredes das casas velhas está a memória do que desconheço. As casas velhas guardam silenciosamente nascimentos e mortes, beijos proibidos e abraços consentidos, jantares de mulheres e homens elegantes, velórios de lágrimas e carpideiras, homens a fumar nos jardins e donzelas perdidas em amores interditos. As casas velhas são o passado das cidades e o passado das pessoas: são o outro tempo colectivo que, nas vinte e quatro horas dos nossos dias, pouco importa.
Gosto ainda de casas velhas por razões de natureza arquitectónica. As casas velhas de que gosto são bonitas, mais bonitas do que a maioria das casas novas. Em Macau, as casas velhas são as mais bonitas de todas, porque são as únicas em que se respira, as únicas com portadas que protegem do calor, as únicas de paredes grossas, capazes de preservarem sussurros. Porque gosto de casas velhas, não gosto de casas a cair de podre.
Pouco tempo depois de ter chegado a Macau, percorria diariamente parte da cidade a pé, logo de madrugada, às vezes ainda de noite. No caminho de casa ao trabalho, passava por duas casas velhas abandonadas, quase mortas. Duas casas velhas fechadas sem pretexto, sem desculpa, sem qualquer justificação. Casas mais bonitas do que todas as outras em redor. Mas fechadas, sem sequer se poder adivinhar a cor do outro lado das paredes.
Uns anos mais tarde, uma das casas foi reconstruída: uma reconstrução mal-amanhada. As portadas de madeira foram substituídas por estruturas de alumínio e o chão, que imagino de madeira nobre, deu lugar a um pavimento em linóleo, uma coisa com um ar barato e vulgar. A casa velha, cor-de-rosa, manteve-se cor-de-rosa, apesar da mudança de tonalidade, e passou a ser o centro de tuberculose da cidade. Ainda hoje é cor-de-rosa, com um aspecto duvidoso.
A outra casa velha do meu caminho diário – a minha favorita – continuou a cair de podre. Durante alguns anos deixei de a ver todos os dias mas, sempre que por ela passava, pensava nas madrugadas, às vezes ainda sem luz, em que matei o tédio dos passos com as histórias que jamais me contaram sobre ela. E o futuro que imaginei que pudesse ter.
Há coisa de um mês, as alterações dos meus percursos diários levaram-me, de novo, a estas duas casas. Na casa velha esquecida, comecei a perceber alguma agitação. Janelas abertas, portas abertas, sinais de uma possível nova vida, que se veio a confirmar: a casa verde está a ser reconstruída e sabe-se já que não vai ter janelas com caixilhos de alumínio.
A casa verde a caminho da Guia é do Governo e vai acolher uma fundação. Não são os planos que tinha para ela, naquelas madrugadas de recém-chegada, ainda a lembrar-me de todas as casas velhas da cidade onde vivia, uma cidade em que o património é tão comum que as pessoas trabalham dentro dele, jantam dentro dele e bebem copos dentro dele – e com ele. A casa verde de Macau vai ter um destino que não é aquele que quero, mas isso não interessa: vai ter um futuro para poder continuar a ser parte de um outro tempo colectivo.
Era isto que gostava que acontecesse com o resto da cidade que está à espera: levante-se a cabeça e veja-se, bem no centro de Macau, a quantidade de edifícios que pedem ajuda, num lamento já muito perto do chão. São prédios sem o interesse da casa verde a caminho da Guia, mas são pedaços de outras vidas, que deviam ser mantidos. E depois temos o antigo tribunal, que não está a cair de podre, mas que corre o risco do desespero de quem espera por aquilo que lhe prometeram, sem que nada aconteça, depressa e bem.
Que não se ausculte mais, que não se esclareça mais. Que se faça: de acordo com as leis, de acordo com o bom senso, de forma transparente, com algum gosto, de preferência muito, sem esquemas que envolvam amigos, tios e padrinhos. Que se faça, já, depressa, antes que o velho morra de inseguro e o outro tempo colectivo, aquele em que raramente pensamos, deixe de ter qualquer significado.

30 Set 2016