Isabel Castro VozesQuerido Mio [dropcap]8[/dropcap]4. Já não sei o que aconteceu para que daquela tarde não tivesse nascido um texto. Não sei em que ano foi, mas sei que aconteceu numa sexta-feira, uma sexta-feira à tarde, de muito calor. As usual. A ideia era ir e ali ficar uma hora. Lembro-me que essa hora levedou para quatro. Lembro-me de entrar e de pensar na invulgaridade da situação: não são muitos os entrevistados que abrem as portas de casa, sobretudo quando não nos percebemos. Erro, essa coisa do entendimento ou da falta dele. Perceberia depois. Naquele momento, o momento inicial, ele queria falar-me dele, mas antes queria que visse as outras paredes da casa, aquelas que eram feitas pela companheira de uma longa travessia. Ele sabia que me faltava esse contexto e carregou-me de livros, fez-me olhar para as outras cores. E depois veio a vida, a vida toda de um homem único. O homem que pintou e destruiu muito daquilo que pintou só para poder continuar a sobreviver. A infância, a adolescência. O pai, a Xangai dele, a partida da Xangai dele. A vida a transformar-se porque o país onde nasceu não o deixou ser quem queria ser. Os livros de fora que contemplava às escondidas. Os desenhos que fez às escondidas. A arte como um crime, a arte como libertação, a arte que o manteve em pé, em linha recta. Eu sentada numa ponta do sofá. Ele na outra. Eu a falar numa língua. Ele a responder noutra. Um tradutor pelo meio, um miúdo simpático, a olhar para o relógio e a ver o dia a passar. E eu a perceber o sentido das coisas apesar de me afogar facilmente num idioma que me continua a ser estranho. Eu a pensar que, apesar dos milhares de quilómetros de distância, entre aquele homem e o meu pai só os separava o orientalismo e mais umas quantas coisas de pormenor. Tinham idades aproximadas, a mesma forma de cruzar a perna e a mesma forma pausada de falar. E um passado de amarguras engolidas para salvar a pele. Eu a pensar que as pessoas podem ser todas muito o mesmo, apesar de serem todas inacreditavelmente diferentes. Ele já não pintava grandes telas. Mas continuava a pintar grandes quadros. E continuava a emocionar-se quando se recordava do quanto chorou quando finalmente aterrou em Paris e viu, numa parede, o que durante muitos anos decalcou às escondidas. Para aprender das artes dos outros. No ano em que eu nasci, ele, do outro lado do mundo, percebeu que a espera tinha sido em vão. Pouco depois, pegou nas malas e saiu. Macau era, nos planos originais, um stop over, mas acabou por ser mais, houve quem tivesse tropeçado nele, neles, naquele casal de pintores, naquele homem que reinventou a arte porque a pintou por dentro. Dizem que é o pai do neo-orientalismo. O tradutor, o miúdo simpático, já se havia impacientado e não esperou pela boleia de regresso, despediu-se e apanhou um autocarro. Ele disse-me para ficar mais um pouco. Bebi um chá e ouvi-o falar. Saí dali atordoada e na rua fazia calor, tanto calor. Uma hora que foram quatro e há momentos em que certas páginas são para ficar em branco, por ser impossível escrevê-las. Às tantas foi por isso que não escrevi. Desculpe, querido Mio, devo-lhe um texto. Querido Mio.
Isabel Castro VozesO último acto [dropcap style≠’circle’]1.[/dropcap] Este texto devia ser, em rigor, sobre as eleições do próximo domingo. Devia ser um texto de análise, profundo e revelador de algum conhecimento sobre a matéria, um texto acerca das diferentes opções ao dispor do eleitor. Não é. Não sei se sei e, mesmo se soubesse, não me apetece. Também não é um texto baseado em teorias da semiótica das artes visuais, uma abordagem à estética eleitoral, ao modo como se pretende passar as mensagens políticas do momento. Este texto devia ser sobre o momento político mais importante do território, mas não é. O momento não se dá à importância, não se dá ao respeito. Não se dignifica, nem dignifica os outros, os cidadãos comuns pelos quais deveria ter consideração. O que temos visto por aí é um pequeno circo ao ar livre, por entre os escombros do vento, as árvores e as tabuletas que continuam pacificamente derrubadas. Sendo certo que, independentemente da geografia, as campanhas eleitorais tendem a ser excessivamente burlescas, as da terra estão cada vez mais trágico-cómicas. Cómicas porque são arlequinescas; trágicas porque tudo isto é sério. Demasiado sério. O que guardarei desta campanha eleitoral. Um candidato que acha que Che Guevara reencarnou junto ao Mar do Sul da China. Uma candidata que acha bonito andar por aí, na televisão, a falar dos filhos dos outros. Uma polícia que gosta de demonstrar o quão musculada é. Um IACM que diz que respeita os tribunais, como se tivesse outra opção. Umas carrinhas podres com uns cartazes fraquinhos. Uma Comissão de Assuntos Eleitorais que precisa de amadurecer. Promessas dirigidas única e exclusivamente a determinados sectores profissionais, como se andássemos todos a baralhar cartas em casinos. O que guardarei desta campanha eleitoral. A conversa vaga e vã do costume. O que resultará destas eleições. Uma Assembleia Legislativa mais pobre, mais fraca, menos interessante. Ainda menos interessante. Não sabendo o que vai acontecer no próximo domingo, aposto um avo em como sairão vencedores aqueles que mais arroz distribuem, mais ajudam os necessitados e mais palmadinhas nas costas dão a velhinhos e crianças, como se política e beneficência se misturassem, como se melhor político fosse aquele que mais dinheiro tem. Este texto devia ser, em rigor, sobre as eleições do próximo domingo. Não é. É sobre aquilo que eu não gostaria que Macau passasse a ser. Ainda assim. Quando o próximo domingo chegar, vote, senhor eleitor, vote em consciência, coisa que falta à grande maioria dos candidatos. Mas vote, vote sempre. Ponha o carimbo no quadrado que a alma lhe indicar. Se não houver caminho para nenhum dos quadrados, vote na mesma, não escolha nenhum. Compreendo a indecisão, mas vá lá e vote, faça tudo como vem nos livros. 2. Há precisamente 20 anos, em Setembro de 1997, entrei numa redacção e nunca mais de lá saí, apesar de ter vindo para o outro lado do mundo e de ter conhecido algumas redacções, das quais também nunca mais saí. Muitas voltas dadas, este jornal. Casa de portas abertas onde cheguei uma e outra vez, sempre de maneiras diferentes. Que me ensinou o que é pensar nos outros, que me pôs a discutir, a perguntar, a perguntar muito, no desassossego constante sem o qual não é possível ser-se jornalista. Que me ensinou que tudo isto vale a pena, mesmo que amanhã já não tenha qualquer importância e estas páginas sirvam para embrulhar os copos em mais uma mudança de casa, para limpar vidros ou embrulhar peixe, funções todas elas nobres dos matutinos e vespertinos deste mundo. Não sei como vim aqui parar, a esta redacção e às outras todas. Aconteceu e nem sequer consigo precisar o momento. Talvez tenha acontecido por gostar das palavras, do acto da escrita, e depois a vida e as pessoas que se atravessaram nela fizeram o resto. Ensinaram-me o resto. E ensinaram-me que, nisto dos jornais e do jornalismo, não se é, nem se está pela metade. Quando as palavras nos custam, nos doem, mesmo que nos escorram pelos dedos às centenas, aos milhares, é porque só já somos metade de nós. E eu não sei ser só meia-eu. Este é o meu último texto. Obrigada aos que me ensinaram a ser em contramão.
Isabel Castro PolíticaLegislativas | Analista critica duração da campanha eleitoral Ao limitar o período de campanha eleitoral a duas semanas, o Governo não está a garantir condições para que os residentes compreendam as propostas apresentadas pelos candidatos, alerta Bruce Kwong. O politólogo não arrisca previsões sobre resultados, mas não esconde receios em relação à corrupção [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m exercício, para começar. Imaginemos que cada programa eleitoral para as legislativas de 17 de Setembro tem dez páginas. Há 25 listas candidatas. Suponhamos que há eleitores indecisos – parece que são muitos – e que se dão ao trabalho de ler as propostas políticas dos aspirantes a deputados. Façam-se as contas: terão 250 páginas para ler em duas semanas, isto se conseguirem reunir os cadernos de encargos eleitorais logo no primeiro dia. Se não for esse o caso, terão de apressar a leitura. O facto de Agosto ser um mês em que é proibida toda e qualquer forma de propaganda eleitoral não faz qualquer sentido para o politólogo Bruce Kwong, especialista em eleições. O académico da Universidade de Macau é do entendimento de que os 15 dias reservados à campanha são claramente insuficientes. “Os candidatos podem fazer pouco para promover as suas plataformas políticas e promessas, apesar de Macau ser um território pequeno comparando com outros locais, como Hong Kong”, defende, olhando para a região vizinha. “O período de campanha em Hong Kong para o sufrágio directo foi de quase dois meses numa única circunscrição como Kowloon East, que não é maior do que Macau”, aponta. Porque o sufrágio directo das legislativas é o único momento em que a população é chamada a pronunciar-se sobre a vida política do território, as eleições adquirem outra relevância. “São um dos momentos mais importantes de participação política das pessoas”, analisa Kwong. “Se o Governo encara com seriedade o facto de as eleições para a Assembleia Legislativa (AL) representarem a possibilidade de as pessoas monitorizarem o poder público, é obrigação do Executivo garantir um ambiente que permita às pessoas examinarem as plataformas políticas.” Jovens e atentos Para o sufrágio indirecto de 17 de Setembro, apresentam-se a votação 25 listas, com mais de 190 candidatos. Para o politólogo, os números só significam um maior interesse pelas lides políticas numa primeira análise, uma observação superficial. “Sabemos que há sempre alguns candidatos que concorrem por terem outras questões em consideração, que não servirem a população ou terem uma participação política”, diz. As 25 candidaturas não correspondem, como se sabe, a 25 ideias diferentes. Há listas que são oriundas das mesmas famílias políticas, que se desdobraram na expectativa de conseguirem mais assentos, dadas as especificidades do método de conversação de votos em mandatos. Bruce Kwong interpreta este milagre da multiplicação de candidaturas como sendo uma prática de “políticos experientes, dividem-se ou tentam cooperar com aliados políticos”. “Os candidatos aprenderam muito desde as eleições de 2009 e também com a experiência de Hong Kong. Mas, claro está, é preciso ter cuidado e calcular com muita precisão a probabilidade de ganhar o maior número possível de assentos”, acrescenta. À semelhança de outros analistas – e até de alguns candidatos – o académico concorda que chegou a altura de se ponderar, para actos eleitorais futuros, uma mudança no método de conversão de votos em mandatos. Quanto a previsões para as eleições de Setembro, Bruce Kwong não arrisca cenários. Este ano, há mudanças no eleitorado, com uma nova geração a poder exercer o direito de voto. Macau tem uma característica que atrapalha as contas a quem se dedica a este tipo de análises: “As tendências de voto alteram-se de legislatura para legislatura, pelo que tudo depende da estratégia da campanha, das competências pessoais dos candidatos e da atmosfera política”. Já no que toca ao interesse dos eleitores pelo sufrágio, o professor da Universidade de Macau considera que as camadas mais jovens da população são as que estão mais atentas. São também estes eleitores aqueles que ainda percebem a utilidade da AL. “O comportamento político dos eleitores sofreu alterações desde as legislativas de 2005. Alguns deles, sobretudo os que pertencem às novas gerações, ainda acreditam que a AL pode ajudar as pessoas a resolverem os seus problemas e que, de algum modo, os deputados os representam na relação com o Governo”, sustenta. Atenção à corrupção Serão também os eleitores mais novos aqueles que maior consciência têm da importância do voto. Bruce Kwong confessa estar “um pouco pessimista” em relação à corrupção eleitoral. “Prevê-se que haja corrupção porque alguns dos candidatos aprenderam a ocultar o comportamento ilegal dos órgãos que monitorizam as eleições”, afirma. “Os eleitores mais conscientes da importância do voto serão os das gerações mais novas ou aqueles que já têm alguma participação cívica e política, por exemplo, em manifestações.” O politólogo avalia com nota positiva o trabalho feito, até agora, pela Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa, mas deixa um aviso. “Os trabalhos administrativos parecem estar a correr bem. As pessoas preocupam-se sobretudo com a compra de votos e com outros comportamentos ilegais, e como é que os órgãos de fiscalização das eleições vão lidar com esses incidentes”, observa. “Ouve-se com frequência as pessoas a pedirem mais para que as eleições sejam relativamente limpas.”
Isabel Castro PolíticaO valor do silêncio [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s eleições estão marcadas para 17 de Setembro. Nas últimas semanas, todos os dias, escrevo esta frase. As eleições estão marcadas para 17 de Setembro. Escrevo-a com variações e parece-me estranha, é um conjunto de palavras que me parece desfasado da realidade. Há legislativas daqui a um mês e não se dá por elas, eu não dou por elas, mesmo quando escrevo que acontecem a 17 de Setembro. Um mês menos um dia na contagem decrescente. As eleições não andam por aí por imposição legal, por formatação política, por incapacidade de percepção da importância do acto, por necessidade de se privilegiar quem pode mais, quem manda mais, quem tem mais dinheiro na conta bancária. Este é o resultado de um período de campanha curto, muito curto, que se resume a duas semanas. É o resultado de um período de proibição de propaganda eleitoral longo, demasiado longo, cuja razão de ser não compreendo. Há eleições e não se fala delas, e eu não percebo por que temos nós um mês de silêncio, um mês de coisa nenhuma. Há eleições a caminho. São o único momento da vida política de Macau em que os residentes com capacidade eleitoral são chamados a dizerem qualquer coisa, a escolherem um candidato, a pensarem numa ideia ou noutra que gostariam que fosse realidade na cidade onde vivem. É um momento que só existe a cada quatro anos e que deveria ser aproveitado para pôr as pessoas a discutir, a ler, a ouvir. Não sei se iriam fazê-lo, mas seria bom se houvesse esse esforço, se esse esforço pudesse ser feito de forma mais prolongada, se houvesse essa oportunidade. Concedo. Sabemos todos que a Assembleia Legislativa e os seus deputados já conheceram melhores dias, já tiveram outro grau de credibilidade. Há um desânimo em relação à política em Macau que se prende com o sistema e com o modo como as pessoas não foram educadas para a política. Todas elas: quem elege, quem é eleito e quem gostaria de ser. Mas não é tarde, gosto eu de pensar. Não é tarde para as pessoas começarem a olhar para os políticos de outra forma, com melhores olhos ou então com piores, para não votarem ao engano. Um mês de silêncio não faz bem a ninguém. Não contribui para nada. Ajuda a que se fure o sistema com os métodos mais perniciosos. Coloca nos primeiros lugares da grelha de partida aqueles que têm os carros com melhor motor, os carros mais caros, aqueles que têm maior capacidade de arranque. Quem anda a pé fica apeado, no fim da linha. O que aí vem não vai ser melhor.
Isabel Castro Manchete PolíticaAL | Chan Meng Kam, Si Ka Lon e Song Pek Kei fazem balanço Foi bom, mas podia ter sido melhor. A chamada bancada de Fujian passou ontem em revista o trabalho feito durante a legislatura que agora chegou ao fim. Chan Meng Kam, de partida do hemiciclo, apresentou números sobre 12 anos como deputado [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá de saída, uma vez que não se recandidata nas eleições de 17 de Setembro, mas não foi embora sem deixar sugestões sobre o que pode ser feito em termos legislativos. Chan Meng Kam e os outros deputados da sua equipa – Si Ka Lon e Song Pek Kei – chamaram ontem a imprensa para um balanço sobre a legislatura. Para o líder político da comunidade de Fujian, foi também uma revisão do trabalho feito nos últimos 12 anos. Ao longo de mais de quatro mil dias na Assembleia Legislativa (AL), contabilizou Chan Meng Kam, fez mais de 110 interpelações, cerca de 400 intervenções no período de antes da ordem do dia, e propôs três debates. Na condição de deputado, recebeu quase 40 mil solicitações por parte dos residentes. Há um momento que o deputado guarda como sendo uma vitória: na primeira sessão de perguntas e respostas com o Chefe do Executivo na AL, Chan Meng Kam falou da questão dos filhos maiores de residentes oriundos da China Continental. Hoje, o problema da reunião familiar está praticamente resolvido. Ao longo das três legislaturas em que esteve na AL, contribuiu para a discussão de 165 diplomas. O deputado destacou que várias destas leis contribuíram para o avanço da sociedade: a lei da habitação económica, a Lei de Terras e o regime de previdência central não obrigatório foram exemplos dados. No entanto, nem tudo satisfez Chan Meng Kam. “O regime de sorteio, medida definida na lei da habitação económica, faz com que haja candidatos que só estão ‘a ver corrida’”, disse. “A lei do planeamento urbanístico é de 2013 mas, além de ainda não haver um planeamento geral, há uma série de regulamentos complementares que não entraram em vigor”, lamentou igualmente. O que faltou Já Si Ka Lon analisou a legislatura que agora chegou ao fim, quatro anos que serviram para apreciar 52 leis. O deputado gostava que se tivesse feito mais e destaca a lei de bases dos direitos e garantias dos idosos como um dos diplomas em que gostaria de ter trabalhado. De resto, fez 55 intervenções no período de antes da ordem do dia, e assinou 205 interpelações escritas e 17 orais. Além disso, esteve na origem de duas propostas de debate. Habitação, trânsito, serviços médicos, educação e despesas do Governo foram algumas das questões que abordou. Em relação aos serviços sociais, a equipa de Si Ka Lon atendeu um total de 19.469 casos: 13.850 consultas de cidadãos e 5619 situações que precisaram de ser acompanhadas. Numa análise às necessidades actuais do território, o deputado defende que é preciso afastar os funcionários públicos que não reúnem os requisitos necessários e garantir que os cidadãos recebem os frutos da indústria de jogo, ajudando na aquisição da primeira casa através da criação de um fundo de partilha. Song Pek Kei fez referência aos casos que geraram polémica nos últimos anos, como a escolha do local para o edifício de tratamento de doenças transmissíveis, as irregularidades na contratação de funcionários públicos e a futura Biblioteca Central, assuntos que abordou enquanto deputada. Congratulando-se com o trabalho feito em prol do bem-estar social, como o aumento de instalações comunitárias na zona de Seac Pai Van e o combate ao alojamento ilegal, matéria que precisa de ser melhorada, Song Pek Kei lamentou que não tivesse sido aprovada a medida que permitiria ao Chefe do Executivo limitar o aumento das rendas.
Isabel Castro China / Ásia MancheteAnálise | Relações sino-japonesas em mudança? Um passo tímido à frente, dois atrás. É assim que a China e o Japão lidam um com o outro há já várias décadas. Mas há observadores internacionais que olham para movimentos recentes com esperança de que o relacionamento melhore. Quem está mais perto não acredita numa súbita mudança. O passado continua por resolver e a sociedade civil não ajuda [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]uang Youliang tinha 90 anos e morreu no sábado passado. Levou com ela um pedaço amargo de história: aos 15 anos, foi violada por soldados japoneses. Viveu os dois anos seguintes num bordel, como escrava sexual da tropa nipónica. Muitos anos depois, processou o Governo de Tóquio pelo que lhe aconteceu. Histórias como a de Huang Youliang fazem parte de um passado conjunto entre a China e o Japão que continua demasiado presente: a invasão japonesa continua a marcar as relações entre os dois países, tanto na perspectiva oficial, como em termos sociais. A juntar a um azedo passado que teima em não ser ultrapassado, Pequim e Tóquio têm diferendos frequentes em relação à soberania de certas zonas marítimas, com as ilhas Diaoyu (ou Senkaku, dependendo da perspectiva) a serem motivo de acusações pouco simpáticas entre ambas as partes. No final da semana passada, o chefe da força aérea chinesa veio a público defender manobras levadas a cabo no Mar do Japão, alegando que as águas não pertencem a Tóquio, depois de um relatório da Defesa japonesa ter destacado o aumento da actividade militar da China naquela zona. O Governo de Shinzo Abe teme que a acção da força aérea dos vizinhos seja um esforço para aumentar a influência militar numa zona controlada por Tóquio, a sul de Taiwan. Não obstante a tensão que se sente sempre que as palavras China e Japão se escrevem na mesma frase, há quem note melhorias nas relações entre os números dois e três da economia mundial. Recentemente, a Foreign Affairs chamava a atenção para uma mudança no panorama do noroeste da Ásia, para constatar algumas alterações no modo como Pequim e Tóquio se têm estado a relacionar. A China tem estado a avançar, rapidamente, com a modernização do seu poderio militar e a ser cada vez mais assertiva nas reivindicações que faz acerca da soberania nos mares do Este e do Sul da China. A relação dos Estados Unidos com os aliados na região passou a ser uma incógnita, apesar das promessas de Donald Trump em relação à defesa das nações amigas num eventual ataque norte-coreano. E a Coreia do Norte torna-se, de semana para semana, uma ameaça cada vez mais real, com o regime a testar armamento que muitos acharam que só existia na imaginação de Kim Jong-un. Neste contexto, acredita a revista norte-americana, a China e o Japão terão de avaliar cautelosamente a relação que têm mantido. Não existe confiança entre os dois Estados – e é pouco provável que, nas próximas décadas, esta noção seja uma realidade –, mas nos últimos meses foram dados alguns passos para a estabilização de um diálogo que, grande parte das vezes, não existe. Os analistas da Foreign Affairs acreditam que Pequim e Tóquio chegaram à calculista conclusão de que o padrão de relacionamento que têm mantido nas últimas décadas lhes custa demasiado e acrescenta uma segurança desnecessária à região. Sem ilusões Martin Chung, académico que tem as relações sino-japonesas como uma das áreas de investigação, não se ilude com os recentes sinais que podem levar a uma aparente aproximação das duas potências asiáticas. “Existe a impressão de que há uma mudança, especialmente com o aperto de mãos entre Xi Jinping e Shinzo Abe, no G20, em Hamburgo”, nota, referindo-se à reunião do início do mês passado. “Parece que, para se preparar o caminho para um bom entendimento, é necessário demonstrar muito boas intenções”, ironiza. Quem lê as notícias e vê as fotografias poderá tentar encontrar sinais de alguma vontade de entendimento, apesar do ar pouco feliz de ambos os líderes. Mas a realidade é diferente, avisa o professor da Universidade Baptista de Hong Kong. “O Japão está a reforçar o seu arsenal de defesa”, exemplifica Chung. A região está cada vez mais dotada de poder militar. “Parece que é dado um passo em frente mas, no dia seguinte, há uma ou outra manobra que parece apontar para a degradação das relações.” O facto não é novo: “Temos visto isto há já alguns anos.” O pouco efusivo aperto de mão de Hamburgo não será o sinal mais forte de uma eventual aproximação. Tóquio está a tentar retomar os encontros de alto nível com Pequim. As reuniões entre os líderes dos dois países têm sido raras nos últimos anos devido à tal história por sarar e à competição geopolítica. Só em 2014 é que o primeiro-ministro japonês e o Presidente chinês tiveram um encontro oficial. Tinham ambos tomado posse há já dois anos. Em Maio último, à margem do Fórum “Uma Faixa, uma Rota” realizado em Pequim, um emissário de Shinzo Abe entregou uma carta em que foi demonstrado o interesse na realização de uma reunião bilateral, a acontecer ainda este ano. No mês seguinte, o primeiro-ministro japonês deu conta da intenção da realização de um encontro trilateral com a China e a Coreia do Sul. Finalmente, a 8 de Julho, Shinzo Abe e Xi Jinping estiveram a falar, à margem da cimeira do G20. A troca de ideias não resultou em nada que seja mensurável, mas tratou-se do primeiro encontro em quase um ano e poderá permitir que outras reuniões se realizem nos próximos tempos. Num nível mais baixo da hierarquia, foram retomadas em Junho as conversações sobre assuntos marítimos, depois de meio ano de suspensão. A China e o Japão concordaram em adoptar mecanismos de gestão de crises que permitam evitar que acidentes no mar se transformem em conflitos armados. Este entendimento tem importância sobretudo em relação às Diaoyu. “De um ponto de vista estratégico, ninguém quer começar um conflito”, afirma Martin Chung. “Estas reuniões são úteis porque permitem a afirmação da soberania, sem se chegar a um confronto militar real”, prossegue o analista, afastando, porém, “sinais de optimismo”. “Estes encontros servem apenas para que ambas as partes brinquem com o fogo de forma mais segura. Mas continuam a brincar com o fogo.” As disputas territoriais são “uma ameaça útil para os dois regimes” e, sublinha o investigador, “mais uma razão para a alteração da Constituição do Japão”. Os defensores da revisão do Artigo 9.o do diploma fundamental nipónico – que prevê a não intervenção do país em cenários de guerra – vão buscar às aspirações chinesas motivos adicionais de argumentação pela causa que abraçam. Da inevitabilidade Ao nível económico, o Japão depara-se com uma realidade pouco auspiciosa para os seus planos: a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, através da qual a China pretende ganhar ainda maior afirmação, numa estratégia que vai além dos puros negócios. Tóquio teve, em tempos, planos semelhantes, que pecaram pela timidez. Em Junho, Shinzo Abe deu uma cautelosa bênção ao projecto de Pequim, mas há preocupações que são difíceis de ultrapassar: as autoridades nipónicas estão apreensivas com o facto de não haver detalhes sobre o modo como a China pretende pôr em prática os investimentos e como serão estruturados os empréstimos chineses que financiarão muitas das infra-estruturas a construir no contexto desta política de expansão. As implicações geopolíticas de “Uma Faixa, Uma Rota” têm um efeito directo na importância regional do Japão, que foi perdendo predominância na última década, com antigos aliados a aproximarem-se de Pequim, em troca de ajuda financeira. Como contra factos, não há argumentos, o Governo de Shinzo Abe terá mais a ganhar com uma aproximação a Xi Jinping do que com uma política de distanciamento, acredita a Foreign Affairs. O Banco Asiático de Investimento em Infra-estruturas (AIIB, na sigla inglesa) terá funcionado como uma lição: quase todas as nações na região se juntaram ao projecto liderado pela China, assim como muitos dos países desenvolvidos. Recentemente, o Banco Asiático de Desenvolvimento, uma instituição dominada por Tóquio, começou a trabalhar em alguns projectos com o AIIB. Juntos na desgraça? Numa perspectiva económica, parece haver alguma vontade de uma aposta no pragmatismo por parte do Japão. Mas “esta nova Guerra Fria” que se vive entre a China e o Japão também tem vantagens para os decisores políticos, explica Martin Chung. “Os detentores do poder beneficiam desse antagonismo”, vinca o analista. Do lado nipónico, o facto de a relação ser tremida é favorável a uma eventual mudança da Constituição, uma das metas do primeiro-ministro Shinzo Abe. “Quanto maior for a percepção, junto da opinião pública japonesa, de que a ameaça chinesa é real, maiores são as possibilidades de alteração à Constituição”, diz. Também para o lado de Pequim este “antagonismo pode ser um trunfo”, acrescenta o investigador. “Depende da altura.” E vem aí, pelo Outono, um momento decisivo para a reafirmação da liderança de Xi Jinping, com um encontro do Partido Comunista Chinês muito importante para a definição do que vai ser o futuro político do país. O professor da Universidade Baptista de Hong Kong tem estudado o envolvimento da sociedade civil chinesa e japonesa no âmbito deste desentendimento de décadas. Martin Chung acredita que a chave para a resolução deste tipo de problemas está no modo como os cidadãos gerem as suas expectativas e anseios. “As iniciativas da sociedade civil japonesa demonstram uma grande vontade de proteger o Artigo 9.o da Constituição japonesa, mas há cidadãos preocupados com o poder crescente do Exército Popular de Libertação, e não se pode fechar os olhos a isso”, alerta. “Do lado da sociedade civil chinesa, não existe uma oposição à militarização crescente da região”, continua Martin Chung. “Os democratas de Hong Kong criticam o regime comunista por não haver avanços em termos de democracia, mas não estão contra o aumento do orçamento do exército ou a crescente militarização.” Em Macau, diz o académico natural do território, a questão passa igualmente ao lado da opinião pública. A grande preocupação regional do momento passou a ser, nos últimos tempos, a Coreia do Norte. À China não convém um quintal nuclear sem rédeas, como não agrada a ninguém na região – e no resto do planeta – um regime descontrolado e incontrolável. Mas Pequim e Tóquio têm modos muito diferentes de lidar com Pyongyang, como se tem visto nas últimas semanas. No entanto, “quanto maior é a ameaça da Coreia do Norte, maior é a oportunidade de os países envolvidos trabalharem juntos” e “a China tem estado a distanciar-se” de Pyongyang, comenta Martin Chung. “Poderá estar, de alguma forma, a preparar o caminho para uma aliança com os inimigos tradicionais”, admite o académico. Sempre com a distância regulamentar.
Isabel Castro Manchete SociedadeNotários | Concurso para admissão ao curso com discrepância entre versões Não batem certo as versões portuguesa e chinesa do aviso relativo ao concurso para admissão ao curso de notários privados. Os Serviços de Assuntos de Justiça negam a disparidade e garantem que está tudo bem. Também não temem ser mal interpretados por terem aberto o processo numa altura em que muitos interessados estão ausentes do território [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] um assunto que tem dado muito que falar nos escritórios de advogados de Macau. Depois de vários anos à espera, o Governo avançou finalmente com o processo que vai permitir a formação de mais notários privados, mas o modo como a questão está a ser gerida é motivo de descontentamento para alguns profissionais da área com quem o HM falou. O concurso para a admissão ao curso de notários privados foi publicado em Boletim Oficial (BO) no início deste mês, sendo que os candidatos tinham 20 dias para entregar “pessoalmente” a documentação exigida. O timing escolhido coincide com as férias judiciais, altura em que muitos interessados se encontram ausentes do território, uma vez que aproveitam a pausa de Verão dos tribunais para fazerem férias. O concurso em causa é de natureza documental, ou seja, é obrigatória a apresentação de vários certificados e declarações, e são estes papéis que contam, antes de mais. Só serão admitidos no processo os candidatos que entregarem a documentação exigida, elencada no aviso em BO que a Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça (DSAJ) fez publicar no passado dia 2. Acontece que, de acordo com o que HM apurou, existe uma discrepância na lista de documentos a apresentar. Em português, exige-se uma “cópia do certificado de exercício efectivo de funções emitido pela Associação dos Advogados” mas, em chinês, não é pedido este certificado – faz-se apenas referência à cédula profissional. A DSAJ nega a existência de uma divergência entre versões. Contactada pelo HM na passada sexta-feira, a direcção de serviços liderada por Liu Dexue respondeu ontem. “Estes serviços entendem que não se verificou uma discrepância entre as versões chinesa e portuguesa relativamente aos documentos referidos no aviso da abertura de concurso”, responde, por escrito, a Divisão de Relações Públicas da DSAJ. “Se o interessado tiver qualquer dúvida sobre o procedimento do requerimento e os respectivos documentos necessários, é favor contactar a DSAJ durante o horário de expediente para mais informações”, lê-se ainda, afastando-se assim a hipótese de rectificação do erro identificado por vários advogados do território. Calhou Agosto O HM quis ainda saber junto da DSAJ por que razão foi escolhido o mês de Agosto para a abertura do concurso, sabendo-se de antemão que muitos advogados interessados em participar não estão em Macau. Na resposta, a DSAJ garante que não faz escolhas atendendo a “situações individuais”. “O Governo procedeu à abertura do concurso para admissão ao curso de formação de notários privados conforme o plano previamente definido”, começa por esclarecer a DSAJ. Importa esclarecer, a este propósito, que “o plano previamente definido” não era do conhecimento público. “Não adiantou, nem atrasou o processo por situações individuais, e aliás, não foi escolhido especialmente um determinado mês para a abertura deste concurso”, afiança ainda. “Todos os respectivos trabalhos preparativos foram desenvolvidos de acordo com a ordem definida, com vista a que a formação dos notários privados fosse bem sucedida”, adita a DSAJ, que dá a entender alguma urgência em relação a todo este processo, ao dizer que, “assim sendo, os candidatos aprovados e graduados nos primeiros 40 lugares poderão começar a exercer as funções de notário privado o mais cedo possível”. Ainda sobre a questão da oportunidade do período em que decorre o concurso, quisemos saber se a DSAJ não teme que, com a escolha do mês de Agosto, se pense que existe a intenção de excluir candidatos portugueses por não poderem entregar “pessoalmente” a documentação exigida. Serão os advogados portugueses aqueles que, por razões óbvias, se encontram mais longe do território por altura das férias judiciais. Ninguém sabia, até ao passado dia 2 de Agosto, que o concurso iria começar no dia 3. Na réplica, a DSAJ volta a insistir no “plano previamente definido”, acrescentando que “todas as pessoas com habilitações adequadas são tratadas de forma igual”. “Os candidatos podem apresentar a candidatura desde que preencham os requisitos. Os candidatos interessados que se encontrarem fora de Macau poderão encarregar outrem para efectuar a entrega do requerimento”, assegura a DSAJ. A direcção de serviços aproveita para fazer um esclarecimento: “Caso não seja possível apresentar todos os documentos necessários à candidatura, estes poderão ser entregues na altura da publicitação da lista provisória”. É tudo o mesmo? Podem candidatar-se a este concurso os advogados que estejam a trabalhar no território há, pelo menos, cinco anos consecutivos. As regras ditam que não podem ter sido pronunciados, ou não tenha sido designado dia para julgamento, ou condenados pela prática de crime doloso gravemente desonroso. Este elenco de possibilidades é motivo de reservas. “Ter sido pronunciado é o mesmo que estar a aguardar julgamento ou ter sido condenado?”, lança um jurista que falou ao HM em anonimato. “Um candidato pode ter sido pronunciado, e pode ter sido pronunciado e estar a aguardar julgamento, e depois ser absolvido. Isto será a mesma coisa que ter sido pronunciado, julgado e condenado por um crime doloso?”, aponta. A DSAJ decidiu ainda impedir os profissionais que se encontrem suspensos preventivamente ou que tenham sido condenados, nos últimos cinco anos, pelo órgão competente da Associação dos Advogados de Macau. Também este aspecto merece críticas. “Suspenso preventivamente é o mesmo que condenado? Pode estar suspenso preventivamente e depois ser absolvido”, observa a mesma fonte ao HM. Desde a criação dos notários privados, na década de 1990, apenas foram realizados cinco cursos, de onde foram aprovados 99 notários. Mais de 50 ainda exercem, a maioria deles portugueses. No final do ano passado, havia mais de 200 advogados que reuniam os requisitos para poderem frequentar a formação cujo concurso está agora a decorrer.
Isabel Castro MancheteO manicómio Claro que houve sempre doidos. Não é de hoje. A história está cheia de alucinados, lunáticos, parvos, arrogantes, gente má, feia e de higiene duvidosa. Lemos todos os livros sobre malta perniciosamente desvairada porque nos quiseram ensinar o oposto. Fomos educados, muitos de nós, com uma clássica distinção entre o bom e o mau. Não faças o que não queres que te façam e por aí fora. Blá blá blá. Há várias classes de doidos. Sempre houve. Há os doidos inofensivos que, para efeitos deste texto, não interessam. Depois, temos os tontos, aqueles que são aparentemente inócuos para o bem-estar mundial, mas que podem ser carraças comunitárias difíceis de exportar para outras paragens. Não há tontos bons, mesmo aqueles que se acham bonzinhos porque não são tontos – são tontinhos. Os tontos têm sempre qualquer coisa escondida na manga, mesmo quando é curta. Os tontos são chatos e a chatice contribui para que o mundo não evolua. Os lunáticos também não são recomendáveis, apesar de poderem ser confundidos com idealistas. Porque são doidos, deixam-se ir na cantiga de outros doidos que têm os pés mais na terra. Os lunáticos são, de todos os doidos, os mais manipuláveis. Por isso mesmo, têm um lugar de relevo na galeria dos mais perigosos. Os alucinados são aqueles que devemos, a todo o custo, evitar, sobretudo quando há eleições. Os alucinados são sempre parvos e arrogantes. Há alucinados inteligentes e outros inacreditavelmente idiotas. Têm em comum uma característica que poderia ser uma virtude, não fosse a alucinação: são honestos na sua afirmação identitária. Não é difícil detectar um alucinado, por mais disfarçado que esteja de pessoa normal. Doidos sempre houve e gente boa também. A história do mundo faz-se de pessoas que tentaram melhorar este sítio redondo onde calhou vivermos. E depois a história faz-se de doidos que estragam o trabalho dos outros e jogam às cartas com pessoas: atira uma para aqui, atira outra para ali, baralha e volta a dar, se não interessa esconde, se o jogo já não dá prazer, acaba-se com ele, com as cartas, com os outros jogadores, vai tudo para o lixo e o mundo evoluiu tanto que, em vez da fogueira, usa-se a reciclagem. Fomos educados, muitos de nós, com uma clássica distinção entre o bom e o mau. Entre o que se deve defender e o que se deve combater. Sucede que não nos prepararam para isto, apesar de nos darem todos os livros de história. Enganaram-nos na medida em que tentaram vender-nos a ideia de que o mundo está a evoluir. O mundo não se qualifica pela quantidade de apps disponíveis. Temos hoje dois grandes doidos alucinados que, neste momento, trocam aviõezinhos de papel com promessas de guerra. Vou fazer-te um inferno de fogo. Isso vai arder como tu nunca viste. Larga o nuclear. Não largo, larga tudo. Não faças bombas. Cala-te. Cala-te tu. Ele mandou-me calar. Não te queixes que é feio. Isto seria engraçado se tivessem três anos. Não têm, mandam em muita gente, têm muita força: um tem a força suficiente para manter esfomeado um país que é uma prisão; o outro tem o poder suficiente para pôr o mundo em cuecas à distância de uma twittada azedada, depois de uma noite de televisivas insónias. Estes dois alucinados, sem idealismo que os sustente para sequer poderem ser considerados lunáticos, brincam com os milhares de pessoas que, pelo meio, têm medo de levar com uma bomba na cabeça, por mais que os analistas digam que isto é tudo a fingir, os aviões são de papel e as bombas são só de mau cheiro. No meio de tudo isto, há as lesmas que, vendo bem as coisas, são as menos inofensivas. São doidas mas não muito, não o suficiente para se aventurarem a cavalo à procura de novos reinos. Ao contrário dos outros dois, não acreditam em rainhas com dragões ao ombro. E quando estão todos juntos no sofá em frente à televisão, as lesmas são as primeiras a, inofensivamente, procurarem um buraquinho para poderem fechar os olhos e não verem o sangue, que as enoja. É nesses momentos que os outros dois se entusiasmam, acham que o Inverno está a chegar, esquecem-se que mundo há só um, vestem as peles de lobo e lá vão eles, a assustar o povo que, apesar de menos poderoso, sabe que, no fim da história, a alucinação acaba extraordinariamente mal.
Isabel Castro PerfilPerfil | Rui Barbosa, engenheiro civil [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] um número redondo. Dez anos é uma vida, até podem ser mais, dependendo do que se viveu e daquilo que fez. É o caso de Rui Barbosa, engenheiro civil, residente do território há uma década, comemorada este ano. Veio porque a namorada recebeu um convite de trabalho, a história clássica de muitos casais. Duas mãos cheias de anos depois, tem dois filhos, uma empresa e uma vida cheia. Pelo meio, ainda está o desporto. A voz que se empresta ao desporto. Pelo início. Rui Barbosa nasceu em Lisboa, aventurou-se pela Engenharia Informática quando chegou a hora de entrar na universidade. Foi “uma experiência frustrada” que durou dois anos, até decidir fazer aquilo em que tinha pensado quando era “mais miúdo”. Troca uma engenharia por outra, sempre tinha gostado de matemática, de física e de desenho, e assim aconteceu um engenheiro civil. Os primeiros anos de trabalho foram passados em Portugal. Macau foi um acontecimento de que não estava à espera, numa altura de contrastes: em 2007, a situação laboral portuguesa começava a degradar-se; por cá, multiplicavam-se estaleiros de obras. Rui Barbosa trabalhava com um empreiteiro e não estava contente com a situação. “Falava-se da crise, mas muita gente não se apercebia. A construção acaba por ser um barómetro bastante importante para se perceber como está o estado da economia”, nota. Com a namorada de malas feitas a caminho de Macau, não hesitou e enviou um ou dois currículos. “Dois meses depois de ter vindo, estava a trabalhar.” A adaptação não foi difícil, até porque não atribuiu um significado especial à ideia das “experiências”. “Vou em frente”, explica. Veio. Não chegou sozinho e vários amigos aterraram em Macau pouco tempo depois, o que ajudou à integração. “Foram dois ou três anos em que houve um grande boom de gente com 20 e muitos, 30 anos. Tivemos também a sorte de criar logo um grupo de pessoas que tinham chegado há pouco tempo e que estavam necessitadas de se sentirem enquadradas”, recorda. Desses tempos, uma conclusão: “Macau é uma cidade onde é importante as pessoas não se fecharem. Se o fizerem, se ficarem em casa, se não tentarem criar amizades, pode ser complicado.” Obras da casa O arranque profissional em Macau aconteceu bem mas, passados dois anos, o engenheiro civil ouvia, de novo, uma palavra que conhecia bem: crise. No território, teve uma dimensão diferente daquela que conheceu em Portugal, mas o projecto em que estava a trabalhar foi suspenso. Corria o ano de 2009. “Estive algum tempo em projectos mais pequenos que não me satisfaziam tanto profissionalmente como aquele que agarrei quando vim para cá”, conta. Entretanto, recebeu uma proposta. “Na altura, não como sócio, mas para alavancar uma empresa que estava na ideia de alguns investidores. Achei a ideia interessante.” Dois anos mais tarde, acabou por ficar a liderar o projecto. A KPM Project Management “tem sido a minha criança aqui em Macau, que vai crescendo com os passos que tem que crescer – às vezes devagarinho, às vezes um bocadinho mais”. A “criança” profissional de Rui Barbosa vai procurando um posicionamento no mercado local. “Começámos muito mais virados para o ‘project management’, na área da construção. Depois começámos a abordar a parte do design, da arquitectura. Ultimamente, a KPM decidiu voltar um pouco às raízes, porque quando estive em Portugal estive sempre muito ligado à construção.” Em termos concretos, a KPM faz, por exemplo, o design de um apartamento que precise de ser reformulado. Depois de conceber o projecto, trata também da obra, numa lógica de serviço individualizado. “A área onde estamos mais presentes acaba por ser a residencial e a corporate, os escritórios”, diz. Mas não só: “Ultimamente, estamos a tentar entrar mais na área do retalho, portanto, para outro tipo de clientes”. Projectos e obras à parte, Rui Barbosa vai ainda tendo tempo para dar voz a comentários de programas desportivos. Foi mais um acaso, mais um resultado de se “atirar de cabeça para as coisas”. Um par de anos depois de ter chegado a Macau, um amigo convidou-o para para fazer comentários na televisão a um jogo de futebol. Foi uma experiência de madrugada, às três ou quatro da manhã, que correu bem. Passou a ser uma presença mais ou menos assídua em jogos de Mundiais, Europeus, campeonatos italianos, espanhóis, e depois veio ainda o Grande Prémio. Sozinho ou acompanhado, a um microfone da TDM. Hoje em dia, já não acorda às duas da manhã com tanta frequência para fazer comentários a uma partida da Liga dos Campeões. “Agora com filhos é mais difícil, mas vou fazendo com prazer.”
Isabel Castro PolíticaAMCM | Chan Sau San sucede a Anselmo Teng [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]ionel Leong garantiu ontem que a saída de Anselmo Teng da Autoridade Monetária de Macau é um processo natural. O sucessor terá pela frente a responsabilidade de criar condições para uma nova fase do desenvolvimento da área financeira do território Foi ontem publicada em Boletim Oficial a nomeação do novo presidente da Autoridade Monetária de Macau (AMCM). Chan Sau San assume funções no próximo dia 26, com um mandato que tem duração de um ano. Desde Agosto de 2015 que é membro do conselho de administração da AMCM. Em declarações à margem do plenário de ontem na Assembleia Legislativa, o secretário para a Economia e Finanças explicou que se trata de “uma mudança normal”. “Não há nada de especial”, referiu, acerca da saída de Anselmo Teng, que esteve quase 18 anos na liderança da Autoridade Monetária. Quanto às razões para a escolha de Chan Sau San, Lionel Leong referiu que, “em termos de desenvolvimento da área financeira”, Macau vai “entrar numa nova fase”. “Durante esse processo, as autoridades têm de corresponder aos novos modelos de desenvolvimento para que haja um plano de longo prazo, sobre a estrutura, em termos de recursos humanos, para podermos ter uma programação melhor”, acrescentou o governante. Algumas horas antes, em comunicado, o gabinete do secretário para a Economia e Finanças tinha destacado que o sucessor de Anselmo Teng exerceu funções em vários serviços governamentais, entidades públicas e privadas, tanto em Macau, como em Hong Kong. Além disso, Chan Sau San leccionou em estabelecimentos do ensino superior, dedicou-se durante vários anos à investigação sobre as economias das duas regiões administrativas especiais, e publicou diversas obras académicas sobre esta matéria, “possuindo assim uma significativa experiência em gestão financeira”. “Chan Sau San, juntamente com os colegas da AMCM, vai assumir uma missão que é fundamental para garantir a segurança do sistema financeiro de Macau e promover a construção do sector financeiro com características próprias do território”, refere-se no comunicado. A experiência de Hong Kong Nascido em Macau, Chan Sau San é doutorado em Economia e Finanças pela Universidade de Hong Kong, e tem um mestrado em Economia pela Universidade de Warwick, no Reino Unido. O novo presidente trabalha na AMCM desde Fevereiro de 2001, onde começou por ser director do Gabinete de Estudos e Estatísticas. Há dois anos, foi promovido a membro do conselho de administração do instituto público. Simultaneamente, Chan Sau San tem também desempenhado, em regime de acumulação, outras funções: é membro da direcção do Instituto de Formação Financeira (entidade de formação subordinada à AMCM), vice-presidente da Comissão Consultiva de Estatística e membro do Conselho para o Desenvolvimento Económico do Governo. Em 2001, foi escolhido pelo Chefe do Executivo para membro da comissão do concurso público para a atribuição de concessões para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino. Quanto ao percurso académico, em 1998, Chan Sau San passou a ser docente da Universidade de Macau, onde desempenhou várias funções. Foi coordenador do Business Research and Training Centre e de cursos na área da economia e finanças internacionais, ambos da Faculdade de Gestão de Empresas, assim como vice-presidente do conselho desta Faculdade. Na região vizinha, foi economista da Câmara Geral de Comércio de Hong Kong, investigador e director do departamento de estudos económicos de uma instituição bancária e director dos Serviços de Estudos Económicos da Autoridade Monetária de Hong Kong. Governo valoriza Macau Jockey Club [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] secretário para a Economia e Finanças declarou ontem que “o Governo da RAEM dá grande importância à existência do Macau Jockey Club (MJC) para diversificar o entretenimento e o jogo do território”. Lionel Leong respondia assim aos jornalistas que o inquiriram acerca da prorrogação por seis meses do contrato de concessão com a Companhia de Corridas de Cavalos de Macau, que opera o espaço na Taipa. Lionel Leong disse acreditar que o meio ano extra dado à empresa será o suficiente para analisar “o plano de grande investimento” apresentado pelo MJC. “Vamos analisar de forma detalhada e com cautela”, garantiu. O governante explicou que a companhia apresentou uma proposta de investimento a longo prazo, para funcionar não só como “um suporte” à indústria do jogo, mas também como contributo para o centro mundial de turismo e lazer. Leong reiterou as explicações dadas pela Direcção de Inspecção e Coordenação dos Jogos para a dilatação do contrato, ao dizer que, para a análise à proposta do MJC, é necessária a coordenação entre vários serviços públicos. “A DICJ terá de recolher opiniões de outros serviços. O prazo era muito apertado”, notou. O secretário não divulgou detalhes sobre o plano que está em cima da mesa, mas garantiu que “inclui a recuperação e manutenção das instalações”. Legislativas | Atenção às informações sobre assembleias de voto [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa (CAEAL) começou ontem a enviar informações aos eleitores sobre os locais de votação para as legislativas de Setembro. Em conferência de imprensa, o presidente da CAEAL, o juiz Tong Hio Fong, sublinhou que os eleitores devem “observar as indicações no aviso [que vão receber] sobre os locais de votação”, lembrando que os mesmos podem ter sido alterados apesar de os cidadãos manterem a mesma residência. Caso existam dúvidas, os eleitores podem contactar os serviços por telefone, deslocar-se directamente ao centro de informação sobre os assuntos eleitorais ou usar quiosques automáticos existentes nos Serviços de Identificação ou nos Serviços de Administração da Função Pública. Tong Hio Fong repetiu que as candidaturas devem cumprir a lei eleitoral, sublinhando que a CAEAL “não proíbe todas as conversas sobre eleições”, mas os candidatos devem “conhecer a lei e saber o que podem, ou não, fazer”. “Não proibimos os cidadãos de falar do assunto [das eleições] com amigos (…) o objectivo é não influenciar os eleitores”, disse. A CAEAL proibiu os candidatos às eleições legislativas de 17 de Setembro de fazerem propaganda eleitoral entre o passado dia 3 e 2 de Setembro, data em que se inicia a campanha eleitoral. Entretanto, Tong Hio Fong indicou que a assembleia de apuramento geral definiu já “a qualificação de votos válidos e nulos”. A CAEAL informou ainda terem sido disponibilizados, este ano, 23 locais para afixação propaganda eleitoral, mais três do que nas eleições anteriores, e 19 lugares públicos para fins de campanha eleitoral das candidaturas, também mais três do que em 2013. Na próxima semana vai decorrer o sorteio da utilização destes locais pelas candidaturas, indicou. Banca | Novo Banco Ásia com prejuízos, BNU com lucros [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Novo Banco Ásia fechou o primeiro semestre do ano com um prejuízo de 5,53 milhões de patacas, indicam dados publicados ontem em Boletim Oficial. Segundo o balancete, de 30 de Junho, o banco registou proveitos de 13,6 milhões de patacas e custos de 19 milhões de patacas. No mesmo período de 2016, o banco registou prejuízos de 551 mil patacas. Em Maio foi anunciado que o Novo Banco concretizou a venda de 75 por cento do capital social do Novo Banco Ásia a um grupo de investidores liderado pela Well Link Group, com sede em Hong Kong, por 145,8 milhões de euros. Já o Banco Nacional Ultramarino (BNU) em Macau, do grupo Caixa Geral de Depósitos, terminou os primeiros seis meses deste ano com lucros de 320,9 milhões de patacas. De acordo com os dados publicados em Boletim Oficial, os lucros do primeiro semestre representam um aumento de 15,2 por cento em relação ao mesmo período de 2016. De acordo com o balancete, de 30 de Junho, o BNU registou proveitos de 879,6 milhões de patacas e custos de 558,7 milhões de patacas. O BNU em Macau encerrou 2016 com lucros de 560,5 milhões de patacas, mais 9,8 por cento do que em 2015.
Isabel Castro Manchete PolíticaRendas | Projecto de lei vai hoje a votos com plenário dividido Parecia ser consensual mas, a dada altura, deixou de ser. O projecto de lei sobre o regime jurídico do arrendamento vai hoje a votos. Leonel Alves, um dos proponentes, admite que o plenário poderá estar empatado. Já Pereira Coutinho espera que haja consciência colectiva. Nas últimas semanas, quem tem interesses no sector imobiliário tem insistido na ideia de que a lei não presta. A ver se pega Era quase uma improbabilidade. Há coisa de dois anos, nove deputados de áreas políticas completamente diferentes juntaram-se para elaborar um projecto de lei que visa a alteração do regime jurídico de arrendamento previsto no Código Civil. Por essa altura, as rendas eram já um drama para muitas famílias e pequenos negócios em Macau. Foi a pensar nestas circunstâncias que o grupo se formou, agregando juristas, deputados com ligações aos Operários, outros à comunidade de Fujian, um pró-democrata e vários empresários. Deputados eleitos pela via directa, outros por sufrágio indirecto e um nomeado pelo Chefe do Executivo. Diferentes formas de acesso à Assembleia Legislativa (AL) e interesses distintos, mas um só objectivo: fazer com que a lei da selva faça menos vítimas. À época, a ideia foi recebida com um misto de entusiasmo e cepticismo fora da AL. Lá dentro, recorda Leonel Alves, um dos nove proponentes, parecia haver consenso. “É um projecto interessante, que visava resolver um problema de precariedade das situações, quer nos arrendamentos habitacionais, quer também nos comerciais para as pequenas e médias empresas. A iniciativa foi muito boa”, defende o deputado. “Na altura, houve o apoio de todos os quadrantes da AL. Até houve um jantar comemorativo”, conta ao HM. Nas últimas semanas, a imprensa em língua chinesa tem dado voz – com muita regularidade e crescente intensidade – aos críticos da intenção legislativa. Estão todos eles ligados ao mundo do empresariado, ao sector da construção civil e do imobiliário. Garantem que ninguém vai escapar às perdas causadas pela alteração do Código Civil. Este alegado pessimismo, que pode ser entendido como vontade de não querer mexidas nas regras do negócio, estará a surtir efeito dentro do hemiciclo. Ou tem nele origem. “Há uns tempos, parece que alguns deputados começaram a mudar de ideias e tentaram introduzir argumentos, alguns relativamente válidos, outros totalmente destituídos de sentido”, constata Leonel Alves. “Aproveitam também alguns desentendimentos, má percepção da legislação ou má compreensão do objectivo deste projecto de lei”, acrescenta. “Enfim, é política, serve-se de tudo. Uns para denegrir, outros para tentar salvar o projecto que, para mim, tem um fim social enorme.” No dedo de Ho Iat Seng? Perante os factos, não há volta a dar: Leonel Alves admite que se trata de “um projecto relativamente fracturante”. “Neste momento, as previsões são 50/50: 50 por cento de hipótese de passar e outros tantos de não passar”, contabiliza. E os argumentos que possam ser hoje utilizados para demover os mais cépticos talvez não cheguem para fazer com que o diploma seja aprovado. O deputado concede que “há o risco de o presidente da AL ter de desempatar”, um cenário que, a acontecer, é um momento extraordinariamente raro num plenário que, por norma, tende sempre para o mesmo lado. José Pereira Coutinho também integra o grupo dos nove. Devolve a bola para o outro lado do campo porque a bola, agora, está nos pés de quem tem de votar sim ou não. “As expectativas em relação à votação são as maiores, na medida em que os deputados – se analisarem com alguma frieza, deixando as emoções de fora –, perceberão que este diploma irá ajudar o simples cidadão que pretende arrendar uma fracção, sem estar sujeito a andar com a mobília às costas a cada seis meses.” O deputado vinca que, “ao elevar o prazo dos arrendamentos habitacionais e comerciais para três anos, está a dar-se estabilidade familiar e a ajudar a criar uma justiça social”. Nem todos os seus pares na AL concordam com esta perspectiva. Cá fora também há quem entenda que o aumento do tempo de duração dos contratos terá efeitos contraproducentes. David Chow, empresário e antigo deputado, faz parte daqueles que se opõem à mudança. Num texto de página inteira publicado esta semana no jornal Ou Mun, não assinado mas identificado com uma fotografia sua, argumenta que os proprietários terão em conta a questão dos três anos para aumentarem os valores das rendas, logo aquando da celebração dos contratos. David Chow é presidente da Associação Comercial Federal Geral das Pequenas e Médias Empresas de Macau. É também marido da deputada Melinda Chan. A Associação de Construtores Civis e Empresas de Fomento Predial de Macau está igualmente contra a intenção de Leonel Alves, Pereira Coutinho e os outros sete proponentes do projecto de lei. Sobre a estabilidade de três anos que se pretende dar aos inquilinos, a associação liderada por Paulo Tse fala em “injustiça para os proprietários”. Tse alertou também para consequências aborrecidas para os inquilinos: quem detém as fracções pensará duas vezes antes de as arrendar, uma vez que vai ter de aguentar o mesmo inquilino durante três anos. Por isso, avisa a associação, é bem provável que se assista a uma diminuição do número de lojas e apartamentos disponíveis para arrendamento. E se há menos oferta, os preços sobem. Em conferência de imprensa realizada há cerca de duas semanas, a associação defendeu que o projecto de lei deveria ficar em banho-maria, para que pudesse ser estudado com rigor na próxima legislatura. A AL não lhe fez a vontade. A Associação Industrial e Comercial de Macau está igualmente contra. Argumenta que as pequenas e médias empresas, assim como o sector do imobiliário, dizem que a alteração proposta ao regime do arrendamento pode ser melhorada. Caso seja aprovada, avisam os responsáveis, haverá muitos empresários “com problema graves no funcionamento e na sobrevivência”. Explicação da anormalidade A oposição à intenção legislativa também torce o nariz à possibilidade de o Chefe do Executivo fixar um coeficiente máximo para a actualização das rendas em momentos de crise. No texto publicado no Ou Mun, David Chow até cita o economista Adam Smith para defender que o Governo não deve interferir na liberdade do mercado. A questão estará precisamente no conceito: liberdade ou libertinagem? “Há muita falcatrua no meio disto tudo”, atira, directo, José Pereira Coutinho, quando confrontado com o coro de críticas ao projecto de lei. Leonel Alves encontra “muito exagero” nas interpretações que têm vindo a ser feitas nos jornais. E contrapõe também com a imprensa, com os artigos em que economistas de Macau mostraram estar de acordo com a iniciativa legislativa. O ponto de fractura do diploma tem que ver, assinala, com o modo como se vê a política. “Em termos de perspectivas ou de análises económicas, tenho ouvido muitos economistas – uns a apoiarem, outros a desapoiarem. Há todas as percepções possíveis, isto também tem que ver com as convicções políticas e filosóficas de cada um. Mas o objectivo fundamental não é assim tão confuso”, salienta. Alves recua no tempo para recordar que, inicialmente, o projecto previa a fixação de um coeficiente máximo para a actualização da renda, que teria um carácter permanente. “Em termos práticos”, desdobra, “o Chefe do Executivo teria de anualmente fazer publicar no Boletim Oficial um determinado coeficiente”. “Esta ideia foi arredada, os proponentes aceitaram as críticas da comissão, porque poderia bulir com os hábitos de mercado de Macau. Mas também todos nós percebemos que esses hábitos tradicionais de Macau têm de ser relativamente alterados em virtude de uma situação anormal, anos atrás”, contra-argumenta o deputado. “Com o boom da economia e dos casinos, todos nós sabemos que houve casos de aumentos das rendas de 100 ou 200 por cento do valor. O que temos de confessar, reconhecer ou, pelo menos, constatar, é que é uma anormalidade.” Não só os aumentos que se verificaram são uma anormalidade, como representam “uma situação de crise”. Muitos residentes viveram – e alguns ainda viverão – situações de aflição. A crise chegou também aos arrendamentos comerciais, com uma alteração profunda dos padrões do comércio local. Perante o desconforto manifestado por alguns deputados, os proponentes introduziram alterações, “para que o diploma não seja tão fracturante ou mal compreendido”, continua Leonel Alves. Se a lei for aprovada, o Chefe do Executivo só intervirá na fixação do coeficiente máximo em situações de crise. “Muitos deputados perguntam: ‘O que é isto de situação de crise?’”, cita o também advogado, que dá a resposta. “Obviamente que cabe ao número um, ao primeiro responsável da RAEM, de acordo com a sua análise política, económica e social, saber quando é que ocorre esta situação anormal de crise de subidas abruptas e exponenciais do valor das rendas.” O projecto de lei fixa alguns critérios e Leonel Alves afasta os receios de quem possa achar que o líder do Executivo vai desatar a fixar coeficientes a torto e a direito. “Como já estamos habituados, o Governo pede sempre muitos estudos, muitas análises, é um Governo muito científico, obviamente que irá sugerir ao Chefe do Executivo, depois de uma análise muito profunda da realidade socioeconómica e financeira de Macau.” Ou seja, “não há qualquer risco de perturbação do mercado, porque isto tudo será muito ponderado pelo primeiro responsável da RAEM, com toda a assessoria que ele tem, e também porque a lei só permitirá esta intervenção em situação de crise.” Esquemas e maroscas Pereira Coutinho acrescenta, por seu turno, outra vantagem da possível futura legislação: “Este diploma vai ajudar a equilibrar a justiça fiscal”. O projecto de lei tem também como objectivo combater a fuga ao fisco. O deputado faz um retrato da realidade local nesta matéria, ao dizer que há muitos proprietários das fracções que omitem o que recebem às Finanças. “Isto é, de facto, uma evasão fiscal muito grave. Os valores são exorbitantes e não pagam impostos. Isto não está correcto.” As alterações ao Código Civil prevêem que as assinaturas constantes do contrato passem a ser reconhecidas em notário. “O reconhecimento notarial e a comunicação aos Serviços de Finanças vão fazer com que tenham de pagar os seus impostos, em igualdade de circunstâncias com qualquer outra pessoa que faça negócio aqui em Macau”, diz o deputado. Nem este ponto escapa aos críticos: Iau Teng Pio, professor de Direito da Universidade de Macau, considerou publicamente que tal não é viável, argumentando com o tempo que vai ser preciso esperar por um notário. Para Pereira Coutinho, à semelhança dos restantes proponentes, a situação não pode continuar como está. E é preciso acabar com os maus hábitos, com “o sistema lacunoso, que permite todo o tipo de prevaricações e situações menos correctas”. Não faltam histórias de agências que cobram rendas superiores ao valor que é dado ao proprietário, exemplifica Coutinho, algo que se evitará com as assinaturas reconhecidas. O importante, resume, é lutar contra as falcatruas.
Isabel Castro PolíticaSaúde | Kou Hoi In e Chui Sai Peng propõe unidade na Grande Baía Macau não tem técnicas suficientes, mas tem queixas e dinheiro de sobra. Para resolver os problemas da saúde, dois deputados propuseram a criação de um hospital na futura área metropolitana de que a RAEM vai fazer parte. Até imaginam onde poderá ficar: é só ir a Zhongshan É uma ideia para o Chefe do Executivo estudar, com a assinatura de Kou Hoi In e Chui Sai Peng, que entendem que há que aproveitar a oportunidade gerada pelo projecto da Grande Baía Guangong-Hong Kong-Macau para ajudar o “desenvolvimento sustentável urbanístico” e as gentes do território. “Como diz o ditado, ‘quem tem saúde, tem tudo’. Por isso, começamos por abordar a saúde”, explicaram ontem os deputados na Assembleia Legislativa, numa intervenção feita no período de antes da ordem do dia. Kou Hoi In e Chui Sai Peng admitem que o Governo tem feito um investimento grande nos serviços de saúde públicos, mas alertam que os recursos financeiros aplicados não têm bastado para sossegar quem aqui vive. “Os residentes continuam a exigir o melhoramento da qualidade dos serviços médicos especializados”, observam. A justificação para esta insatisfação popular tem que ver com a dimensão do território. “O ponto fulcral é que Macau tem uma população pequena. O pessoal médico até pode resolver facilmente as doenças vulgares, mas é mais difícil obter experiência para as doenças menos vulgares”, prosseguem os deputados. “O Governo está sempre constantemente a investir em equipamentos médicos, mas isso não resolve o problema de Macau ‘ter equipamentos sofisticados, mas sermos atrasados na técnica’, e por isso é difícil transmitir confiança aos doentes que precisam de consultas de especialidade.” Já Hong Kong e Shenzhen são realidades completamente diferentes, que devem servir de referência para Macau, sugerem os tribunos. A Universidade de Hong Kong tem um hospital na vizinha Shenzhen, um caso que deve ser estudado pela RAEM. Através do investimento em instalações médicas, vincam, pode ser promovida a cooperação regional, criando-se ainda uma “plataforma para formar a equipa médica de Macau”. “Com o nível salarial de Macau, podem introduzir-se médicos de alta qualidade do Interior da China para ensinar os nossos médicos”, exemplificam. Kou Hoi In e Chui Sai Peng assinalam também que, com 60 milhões de pessoas na Grande Baía, “acredita-se que o conhecimento sobre doenças é muito maior do que em Macau, com apenas 600 mil habitantes, o que contribui para dar mais conhecimentos à equipa médica” do território. Ir ali e voltar A criação de um hospital da Grande Baía é também, para os dois deputados – um deles empresário, o outro engenheiro –, uma oportunidade para Macau se afirmar no contexto da futura zona metropolitana. A ser feito um investimento numa unidade hospitalar de alta tecnologia além-fronteiras, “a RAEM deve ter um papel dominante”. Sugerindo a realização de “estudos inovadores” sobre a matéria, numa altura em que o Governo de Chui Sai On está a planear a sua participação na Grande Baía, Kou Hoi In e Chui Sai Peng propõe, desde já, a localização do investimento: Zhongshan. Há várias razões para a escolha desta cidade chinesa, argumentam: está posicionada como um centro modal regional, tem uma localização adequada e beneficia das vantagens do corredor de ligação Zhongshan-Shenzhen. Além disso, “está a orientar o seu desenvolvimento para a indústria dos cuidados gerais de saúde”. Além da formação de quadros médicos, Kou Hoi In e Chui Sai Peng imaginam um hospital que possa oferecer serviços de qualidade aos residentes de Macau, a preços idênticos aos praticados na RAEM. “Por outro lado, pode também prestar esses serviços médicos aos doentes de outras cidades da Grande Baía, como forma de acelerar, melhorar e fortalecer o processo de integração regional”, rematam. Porto Interior | Leong Veng Chai lamenta degradação de edifício [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] número dois de José Pereira Coutinho fez ontem uma curta intervenção na Assembleia Legislativa para condenar o facto de um edifício antigo de arquitectura portuguesa, localizado no Porto Interior, estar desocupado há muitos anos, sem que a Administração se tenha preocupado com a sua recuperação. Segundo explicou Leong Veng Chai, o prédio em causa, situado entre a Ponte 16 e a bomba de gasolina, foi a sede do Departamento de Fiscalização Aduaneira da Polícia Marítima e Fiscal, tendo ficado “desocupado face ao desenvolvimento social e aos aterros”. O deputado apontou que “as portas e janelas do edifício têm estado fechadas e ninguém sabe que planos tem o Governo”. A fachada “apresenta-se em estado de ruína, com musgo e plantas”. Atendendo ao facto de ter sido construído há muitos anos, Leong Veng Chai acredita que a estrutura se reveste de valor e significado históricos. “Os serviços competentes, por exemplo, o Instituto Cultural, devem proceder a estudos sobre a sua eventual conservação, recuperação, replaneamento ou até ao seu reaproveitamento como local de trabalho do Governo”, defende. Para o deputado, o caso deste edifício do Porto Interior tem um significado mais lato acerca do modo como actua o Executivo. “Os terrenos ocupados ilegalmente, desaproveitados ou cuja concessão foi declarada caducada foram retomados, sucessivamente, pelo Governo que, entretanto, não prestou atenção, nem acompanhou o desaproveitamento dos lotes e das construções de domínio público.”
Isabel Castro Manchete SociedadeCavalos | DICJ justifica prorrogação da concessão com planos da empresa Terminava no final deste mês mas, afinal, o contrato foi prolongado até Fevereiro do próximo ano. A Companhia de Corridas de Cavalos de Macau continua a poder operar. O Governo diz que a prorrogação se deve à necessidade de analisar a “proposta revista” feita pela empresa A justificação foi dada pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) no dia em que se ficou a saber, através do Boletim Oficial, que a Companhia de Corridas de Cavalos de Macau, pertencente ao universo da Sociedade de Jogos de Macau, vai poder continuar a explorar as corridas no Macau Jockey Club (MJC) até 28 de Fevereiro de 2018. “O Executivo da RAEM decidiu prorrogar por seis meses o contrato de concessão do Macau Jockey Club porque a mais recente proposta revista pelo MJC contém planos de desenvolvimento que envolvem vários departamentos do Governo”, explicou a DICJ, através de resposta enviada por email ao HM. “Considerando que a proposta revista foi submetida já muito perto do termo do contrato, o Governo decidiu prolongar o contrato por um tempo adequado para que os departamentos envolvidos possam estudá-la e analisá-la”, refere-se ainda no esclarecimento enviado por indicação do secretário para a Economia e Finanças, a quem tinha sido dirigida a pergunta sobre a razão da extensão da relação contratual. O contrato de exploração terminava no final do corrente mês. Ontem, em Boletim Oficial, uma ordem executiva de Chui Sai On veio delegar poderes ao secretário para a Economia e Finanças para representar a RAEM na escritura pública de prorrogação do prazo por seis meses do contrato com a empresa. Lionel Leong será também o responsável pela alteração do contrato de concessão do exclusivo da exploração de corridas de cavalos celebrado entre a RAEM e a Companhia de Corridas de Cavalos de Macau. O HM tentou saber, junto do gabinete de Lionel Leong, se foi pedida alguma inspecção às condições em que se encontram os animais antes da dilatação do prazo do contrato. O gabinete do secretário para a Economia e Finanças não respondeu a esta questão, mas o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) esclareceu este jornal acerca dos procedimentos que, por norma, são levados a cabo. “Os veterinários e fiscais do IACM inspeccionam o estado de saúde dos animais e as condições de higiene do Macau Jockey Club semanalmente, em dias da semana diferentes”, referiu o instituto. Recorde-se que a forma como a Companhia de Corridas de Cavalos de Macau trata os animais tem sido alvo de críticas no passado, com a ANIMA como principal contestatária às práticas do Macau Jockey Club. Plano atrás de plano A empresa que continuará a explorar corridas de cavalos na Taipa por, pelo menos, mais meio ano terminou 2016 com prejuízos acumulados superiores a quatro mil milhões de patacas. Desde 2005 que a exploração do negócio na Taipa tem resultados negativos, mas sabia-se já que a Companhia de Corridas de Cavalos de Macau não pretendia desistir da renovação da concessão. O HM procurou saber junto do secretário para a Economia e Finanças por que razão foi prolongada a concessão a uma empresa que parece não ser capaz de gerir, de forma equilibrada, o negócio a que se propôs. A resposta estará implícita na informação dada pela DICJ: a companhia terá novos planos para o Macau Jockey Club e o Governo entende que merecem ser analisados. Em 2015, aquando da revisão do contrato que agora será prorrogado, o Jockey Club anunciou uma estratégia de desenvolvimento do espaço que, de acordo com o que foi então anunciado, seria desenvolvida nos dois anos seguintes. Na altura, a companhia pretendia aumentar o número de cavalos, e investir no mercado de apostas online da Austrália e da Nova Zelândia. À época, Albano Martins, presidente da ANIMA, reagiu à renovação da concessão pedindo ao Comissariado contra a Corrupção uma investigação ao processo que permitiu a continuidade da exploração do negócio. A contestação ao modo como são feitas as corridas de cavalos não surtiu qualquer efeito. O HM tentou ontem chegar à fala com Albano Martins, mas tal não foi possível. IACM | Seac Pai Van com mais estruturas [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] zona de Seac Pai Van já conta com vários equipamentos. Os moradores já têm perto de casa um banco, um supermercado, uma clínica, uma farmácia e restaurantes. Está ainda em fase de vistoria uma farmácia de medicina chinesa. A informação é dada pelo Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) em resposta ao deputado Ho Ion Sang. Mas há mais. Das 18 lojas do edifício Ip Heng, 14 já completaram o processo de adjudicação e assinaram contrato. Os serviços prestados por estes estabelecimentos vão desde o apoio pedagógico com serviços de explicações e formação de adultos a restaurantes fast-food, passando por serviços de apoio logístico e de compras on-line. De acordo com o presidente do Conselho de Administração do IACM, José Tavares, está afastada a possibilidade de realização de actividades públicas, como a promoção de feiras, naquela zona. “Trata-se de uma área próxima de residências, pelo que não pode ser afectada pelo comércio”, refere. Por outro lado, e relativamente à dinâmica comercial, o IACM aponta os trabalhos feitos pela Direcção dos Serviços de Economia com as várias visitas que fez, sendo que, diz, têm sido considerados os pedidos feitos pelos comerciantes com mais necessidades. Questionado acerca dos apoios às PME em Seac Pai Van, o responsável do IACM afirma que os processos estão em andamento. Ho Ion Sang colocou ainda uma questão referente ao alargamento das passagens cobertas para proteger os transeuntes da chuva. O IACM responde dizendo que, actualmente, não é possível avançar com obras nesse sentido. A razão, apontou José Tavares, tem que ver com a necessidade de trabalhos de grande envergadura.
Isabel Castro PolíticaAL | Assinado parecer sobre lei de enquadramento orçamental Começou por ser um documento com três dezenas de artigos. Terminada a discussão em sede de comissão, a proposta regressa a plenário, revista e aumentada. Chan Chak Mo acredita que a discussão será pacífica [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ra a última proposta de lei que a 2.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa (AL) tinha em mãos. Os deputados do grupo liderado por Chan Chak Mo assinaram ontem o parecer sobre a proposta de lei de enquadramento orçamental. Resta agora levar o assunto a plenário, para a apreciação na especialidade. “O parecer estava bem, só foram feitas pequenas alterações”, resumiu o presidente da comissão permanente. “Da versão inicial da proposta de lei constavam 31 artigos. Agora, passaram a ser 75”, sublinhou. “As matérias foram aperfeiçoadas e a nossa comissão ficou satisfeita. Muitas das nossas opiniões foram acolhidas pelo Governo”, congratulou-se Chan Chak Mo. A proposta de lei tinha sido alvo de críticas por alguns deputados, que a consideravam incompleta. A complexidade técnica deste tipo de diploma não se coadunou com o timing escolhido pelo Executivo para a apresentação do articulado, com o presidente da comissão permanente a fazer reparos sobre esse aspecto durante a análise na especialidade. Ultrapassadas as dificuldades, Chan Chak Mo considera agora que “a nova versão da proposta de lei reflecte bem as competências da AL na análise e na aprovação do Orçamento, e também as competências do Chefe do Executivo na alteração orçamental”. Na conferência de imprensa que se seguiu à assinatura do parecer, o deputado destacou ainda que o diploma inclui “figuras jurídicas como o PIDDA [Plano de Investimento e Despesas de Desenvolvimento da Administração] e o relatório de execução orçamental, que o Governo tem de entregar, o mais tardar, até 15 de Outubro do ano em causa”. Apesar do grande número de artigos aditados, Chan Chak Mo afiançou que a discussão em torno da proposta de lei foi tranquila. “A nossa assessoria teve uma perspectiva diferente em termos contabilísticos em relação à visão da assessoria do Governo”, exemplificou, para dar conta do tipo de divergências. A lei e o resto Questionado sobre a capacidade de a lei ajudar a evitar derrapagens orçamentais, o presidente da comissão permanente salientou que, depois da aprovação do diploma, “o orçamento trimestral do PIDDA tem de ser entregue à AL e o Governo tem de submeter o respectivo relatório de execução”. Além disso, “também a AL dispõe dos seus mecanismos para fiscalizar a operação orçamental do Governo”. Chan Chak Mo entende que as interpelações escritas e os trabalhos levados a cabo pelas comissões de acompanhamento podem ter essa função. “Se a AL não concordar com o que consta do relatório, ainda dispõe de outros meios, como interpelações escritas ou oportunidades em plenário para o Executivo prestar esclarecimentos”, rematou. A proposta de lei de enquadramento orçamental foi aprovada na generalidade em meados de Outubro do ano passado. Na altura, o debate ficou marcado pela questão das derrapagens, com deputados a defenderem a criação de um sistema de fiscalização capaz de controlar o despesismo, sobretudo nas obras públicas de grande envergadura.
Isabel Castro PolíticaRegime sobre partes comuns dos condomínios está pronto [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara Chan Chak Mo, tratou-se da discussão mais complicada desta legislatura, mas a tarefa foi ontem dada por concluída. O presidente da 2.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa (AL) anunciou que está assinado o parecer relativo ao regime jurídico da administração das partes comuns do condomínio. De acordo com as explicações dadas por Chan Chak Mo, o parecer contém todos os pormenores: a versão chinesa tem mais de 220 páginas. O documento em português só está pronto hoje, quinta-feira, um ligeiro atraso que se deve ao processo de revisão do texto. O parecer tem mais de 480 páginas, indicou o deputado. O presidente da comissão permanente explicou que o parecer inclui as perguntas dos deputados feitas aos representantes do Executivo, bem como as respectivas respostas dadas pelo Governo durante as reuniões mantidas na AL, à porta fechada. Esta pormenorização dos trabalhos, explicou, tem que ver com o facto de ser “um regime jurídico complicado”, ao qual os residentes estão muito atentos. “Concordámos com esta metodologia sugerida pela assessoria jurídica, uma forma de dar a conhecer aos outros deputados e à sociedade quais foram os processos de alteração deste regime jurídico se transforma”, esclareceu Chan Chak Mo. O responsável pela comissão permanente fez ainda referência aos aspectos mais sensíveis da nova legislação, ao recordar que os agentes imobiliários, vendedores e as companhias de administração do condomínio têm obrigação de avisar os compradores das despesas de administração em falta nos dois anos anteriores à transacção. Chan Chak Mo concorda com a intenção do Governo e diz acreditar que a nova lei vai tornar mais fácil a gestão dos condomínios. O deputado lembrou ainda que, de acordo com as novas regras, têm de ser comunicadas ao Instituto de Habitação as alterações na administração dos condomínios, medida que visa evitar a existência de mais do que uma gestão no mesmo edifício. Quanto à discussão na especialidade que agora se segue, o presidente da comissão permanente acredita que a questão da responsabilidade solidária vai gerar alguma discussão em plenário. No entanto, Chan Chak Mo vinca que a medida pode ajudar a acabar com os pagamentos em falta, com o problema a ser resolvido no momento de transacção. O regime jurídico da administração das partes comuns do condomínio prevê que o adquirente do direito de propriedade sobre a fracção autónoma seja responsável pela dívida dos encargos de condomínio do imóvel em causa, sempre que o registo da dívida seja anterior à sua aquisição.
Isabel Castro Manchete PolíticaAnálise | Chefe do Executivo vai hoje à Assembleia Legislativa É a última deslocação antes das férias de Verão e, este ano, coincide com a recta final da legislatura. Chui Sai On está hoje na Assembleia Legislativa, mas espera-se pouco da sua intervenção. Dois deputados e dois observadores comentam a utilidade e o modelo destes encontros no hemiciclo. Há quem proponha que se adopte um sistema semelhante para os secretários [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara uns chega três vezes por ano, para outros não – mas só porque se fala muito e pouco se diz. O hábito foi iniciado por Edmund Ho, bastante mais ágil no improviso e na comunicação do que o homem que o sucedeu. Mas Chui Sai On deu continuidade à prática, que já passou a tradição. Hoje à tarde, o líder do Governo vai à Assembleia Legislativa (AL) responder a perguntas dos deputados sobre a acção governativa, com destaque para as questões de âmbito social. Não sai do Palácio sem uma resma de folhas, as respostas para as questões que lhe foram enviadas. Para Leonel Alves, deputado há 33 anos prestes a afastar-se das lides legislativas, o número de deslocações do Chefe do Executivo à AL é suficiente. Mas deixa uma sugestão: “O ideal seria que os secretários fossem periodicamente à Assembleia para responderem às perguntas dos deputados, isto para além das tradicionais interpelações orais”. Alves entende que deveria ser introduzida uma “nova metodologia de diálogo”, com uma periodicidade mais ou menos estabelecida. “Tirando os meses de férias, temos praticamente dez meses úteis. Havendo cinco secretários, não seria má ideia cada um deles ir à AL duas vezes ao ano responder às perguntas colocadas pelos deputados”, propõe. “Seria uma nova maneira de interagir entre a Assembleia e o Governo.” Também Albano Martins, economista, considera ser boa ideia ter os secretários presentes na AL com uma regularidade diferente da actual. “Quem devia ir mais é quem sabe do assunto – e quem sabe do assunto são os secretários”, atira. “Embora sejam apenas representantes do Chefe do Executivo, os secretários é que deviam ir mais vezes, porque são eles que estão, de facto, a par das questões.” Para Albano Martins, tardes como a de hoje servem para “o Chefe do Executivo dizer coisas muito bonitas, às vezes sem muita lógica, que não adiantam muito”. Concedendo que compete a Chui Sai On abordar “questões de política geral”, vinca que o território precisa de uma abordagem pragmática. “A política e, sobretudo, a política económica são necessariamente terra a terra, não podem ser demasiado vagas, e o Chefe do Executivo vai limitar-se a dizer coisas vagas.” Já o advogado Sérgio de Almeida Correia tem uma perspectiva diferente sobre o assunto: as três deslocações anuais não bastam. A razão para esta insuficiência é apenas uma: “As dúvidas são muitas e, muitas vezes, o Governo não dá os esclarecimentos que devia dar”. “Fica-se sempre com a sensação, quando [os governantes] querem dar esclarecimentos, de que pretendem esconder alguma coisa, como aconteceu há pouco tempo com a substituição dos tubos da Estação de Tratamento de Águas Residuais de Macau”, continua o advogado. “Depois, há muitas perguntas que ficam por responder. Há dúvidas legítimas por parte dos cidadãos que não deviam ter cabimento e que acontecem porque continua a haver o culto do secretismo”, critica. Para Kwan Tsui Hang, deputada que dá este mês por encerrada uma carreira política de mais de duas décadas, “é aceitável” o número de deslocações anuais de Chui Sai On ao edifício do Lago Nam Van. Venha o próximo A sessão obedece sempre aos mesmos moldes: os deputados lêem as perguntas que enviaram antecipadamente a Chui Sai On; o Chefe do Executivo lê a resposta que leva escrita. Não há lugar a novas perguntas. Quem ficou esclarecido, ficou; quem continua com dúvidas, terá de esperar por melhor oportunidade. “A transparência deve ser cultivada entre governantes e governados. Só assim pode haver confiança em quem governa”, começa por comentar Sérgio de Almeida Correia, que não resiste a olhar para o caso português, em que o primeiro-ministro vai à Assembleia da República quinzenalmente, e os temas de debate são escolhidos alternadamente entre o Governo e a oposição. O modelo de Macau, prossegue, “não é o adequado para todas as questões”. O advogado admite que, para assuntos de natureza técnica, seja necessário preparar dados e números. Sucede que há também os temas de natureza política e, nessas situações, o caso muda de figura. “Devia ser seguido o modelo da pergunta-resposta imediata, sem prejuízo de se fazerem chegar as perguntas ao presidente da AL, por escrito, mas imediatamente antes de serem colocadas”, propõe. “E, evidentemente, permitindo réplica, uma ou mais vezes, porque se não a interpelação acaba por se tornar num monólogo. As respostas vêm preparadas de casa, são precisos mais esclarecimentos e já não são feitos.” Leonel Alves concorda com a ideia de que há espaço para rever o actual formato da sessão. “Traria maior dinamismo havendo um diálogo, não digo de improviso, mas havendo um diálogo mais dinâmico, com perguntas e respostas, e perguntas adicionais”, afirma. “Seria mais benéfico para a transmissão ao público das ideias da governação.” A forma tem impacto na transmissão da mensagem, nota o deputado. “Esta prática de perguntas escritas e de respostas maioritariamente já feitas, por escrito, poderá não transmitir com tanta vivacidade e com tanta objectividade aquilo que se pretende num diálogo mais aberto entre órgão legislativo e Governo.” Kwan Tsui Hang compreende que, sem perguntas remetidas com antecedência, seria difícil assegurar respostas. O que mais a preocupa é o tempo que o Chefe do Executivo dedica a cada questão, “devido ao número elevado de perguntas a que vai responder”. Ainda assim, para a deputada, o que hoje existe “é suficiente”. Albano Martins tem uma forma muito diferente de olhar para o modo de se fazer política. “Em qualquer parlamento onde vai um membro do Executivo, as pessoas são confrontadas com perguntas ‘in loco’. Em Macau, parece que se quer saber tudo de antemão para alguém preparar as respostas.” O economista considera que “este tipo de política não é autêntica e é uma maneira de fomentar o aparecimento de lideranças que não sabem muito do assunto”. Habla con elle Da próxima vez que Chui Sai On for à AL, em Novembro deste ano, terá como interlocutores novos deputados, uma vez que a legislatura termina daqui a menos de 15 dias. Nestes quatro anos que estão prestes a terminar, a comunicação entre a AL e o Governo e o Chefe do Executivo melhorou, piorou ou ficou na mesma? Kwan Tsui Hang não dá uma resposta taxativa, preferindo passar a bola para a capacidade de iniciativa dos membros da Assembleia. A deputada recorda que, em matérias urgentes, pode ser solicitado um encontro que conte com a presença de Chui Sai On. “É um meio a que muitos deputados já recorreram e eu também”, diz. A ainda presidente da 1.a Comissão Permanente da AL também não vê necessidade de haver uma alteração nos canais de comunicação com o líder do Governo, preferindo uma abordagem aos secretários – são, na sua leitura, aqueles que devem resolver as questões. “Não é viável que o Chefe do Executivo ande o dia inteiro à volta de dezenas de deputados. Só quando houver assuntos que têm de ser decididos por ele é que devemos a ele recorrer”, defende. “Praticamente não houve nem avanços, nem recuos”, sentencia Leonel Alves. “Seguiu-se a metodologia tradicional, não houve impulso por parte da Mesa [da AL] para que houvesse uma alteração significativa”, constata o deputado. “Parece-me que foi uma legislatura de continuidade e de arrastamento. Espera-se que futuramente algo de novo possa ser trazido nesse diálogo.” Na percepção de Albano Martins, o modo como os órgãos legislativo e executivo dialogam demonstra que “a política em Macau é muito pouco transparente, muito opaca”. “Provavelmente, muito do que o Chefe do Executivo vai lá dizer alguns deputados já sabem por portas travessas”, afirma o economista. Sérgio de Almeida Correia tem a sensação de que a comunicação entre o Governo e a Assembleia “terá melhorado um pouco, do ponto de vista formal”. Mas há um problema: “Na maior parte das vezes, essa comunicação é de sentido único, porque continua a existir limitações a um verdadeiro diálogo e isso inquina a comunicação”. Em termos práticos, “o Governo acaba por responder ao que quer e quando quer, na linha daquilo é em Macau a cultura predominante: a cultura de súbdito”. O advogado descodifica o conceito, referindo que “existe uma conexão entre governante e governados que é orientada para o elemento administrativo, uma relação passiva, em que são dadas poucas respostas”. Trata-se de uma herança do passado, agravada pela cultura predominante em Macau. “É o resultado de um sistema colonial mas, nas últimas décadas, com influência socialista e também com reminiscências mandarinais. Em matéria de comunicação, ainda há muito a fazer”, remata Sérgio de Almeida Correia. Tarde de frases feitas [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] um clássico: o anúncio das grandes políticas – ou das políticas possíveis – esgota-se em Novembro, por altura das Linhas de Acção Governativa (AL). Destas deslocações de Chui Sai On à Assembleia Legislativa (AL), pouco se espera. O facto de se estar em contagem decrescente para o fim da legislatura faz com que se espere ainda menos. Leonel Alves não perspectiva grandes novidades. “A legislatura está a terminar, trata-se de cumprir o calendário. Tradicionalmente, o Chefe do Executivo vai à AL antes do fecho da sessão legislativa; desta vez, é o termo da legislatura. A haver novidade, também não seria esta a altura politicamente propícia para a anunciar”, defende o deputado. “Talvez mais para o final do ano, quando for a altura das LAG.” Sérgio de Almeida Correia separa, antes de mais, dois factos: “Estamos na recta final da legislatura, mas não estamos na recta final do mandato do Chefe do Executivo”. O advogado “gostava de poder esperar alguma coisa”, mas não espera “nada de diferente daquilo que se tem visto, porque aquilo que se tem visto não inspira muita confiança”. Fica, deste modo, a lista de desejos, que têm que ver com uma acção a níveis diferentes. “Por um lado, medidas concretas para melhorar a qualidade de vida dos residentes, em matéria de trânsito, transportes, habitação, qualidade do ar, qualidade das águas do rio, saúde, higiene urbana e controlo de preços, que são coisas que hoje em dia afligem a maior parte dos residentes”, elenca Sérgio de Almeida Correia. O advogado destaca ainda a necessidade de reforçar “a confiança dos cidadãos nas instituições, em especial no sistema de justiça, na economia e nos dirigentes”. “São áreas críticas em que o Governo não tem feito muito, no sentido de as melhorar e de reforçar a confiança dos cidadãos.” A descrença da população não tem que ver apenas com o Executivo, estende-se também à própria AL, diz. “Era importante fazer alguma coisa. As pessoas têm também pouca confiança no que os serviços andam a fazer. As críticas que se ouvem em relação à acção dos tribunais são mais que muitas – basta andar na rua, ir aos tribunais e falar com as pessoas que lá têm processos”, nota o advogado. “Era importante fazer algo a esse nível, que acho que é onde se tem notado uma quebra maior. Além de uma certa inacção do Chefe do Executivo, há a quebra de confiança nas instituições. E isso é muito mau.” Albano Martins alerta para o risco de o rol de assuntos desta tarde ser um exercício de repetição do que já foi dito. “É muito mais importante ir lá uma vez e dizer coisas com cabeça, tronco e membros, do que estar constantemente a lá ir e não acrescentar muito. Faz-se muito mal política em Macau, nos sentidos estrito e lato do termo. Os nossos governantes deixam muito a desejar”, conclui. Kwan Tsui Hang escreveu ao Chefe do Executivo a propósito da habitação pública, tema que, acredita, deverá ser levado ao plenário por vários colegas seus. Quer saber por que razão ainda não foi anunciada a abertura das candidaturas para a habitação económica. Não diz se está à espera de obter resposta.
Isabel Castro Eventos MancheteVisita guiada | Margarida Saraiva, curadora do Museu de Arte de Macau Naqueles rostos e corpos está a história da arte e das pessoas de Macau. O MAM apresenta “Representações da Mulher”, uma exposição feita a partir da colecção do museu. Viagem com Margarida Saraiva, a curadora da mostra, a um passado mais ou menos distante, a partir do universo feminino [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo é que surgiu esta exposição? Havia a ideia, do director do Museu de Arte de Macau (MAM), de renovar completamente a forma como a nossa colecção tem sido apresentada. Fui incumbida dessa missão. Quando se faz uma exposição, a nossa primeira preocupação é efectivamente saber qual é o seu propósito. A segunda são os objectos: o que temos e que história é que podem contar. Depois, num terceiro nível, como é que esses objectos se relacionam com o mundo contemporâneo. Neste caso, são antigos, são obras do século XIX e do século XX. Comecei a ver a colecção toda e tive o desejo de fazer uma abordagem que fosse interdisciplinar, o que era uma inovação em relação às exposições que o MAM tem feito sobre a sua colecção, porque costumamos apresentar pintura a óleo, gravuras, serigrafias ou cerâmica de Shiwan. Aqui, o que tentei foi pegar num tema e, através dele, atravessei todas as formas de expressão que estão incluídas na nossa colecção. Por isso, temos pintura a óleo, temos desenhos, livros, temos gravuras, cerâmicas, aguarelas e posters, tudo na mesma exposição. E tudo sobre mulheres. Tudo sobre mulheres. Nunca tinha sido feito no nosso museu um trabalho sobre as mulheres. Têm sido feitos noutros museus, no mundo inteiro: o MoMA fez uma exposição sobre a mulher e a forma como é representada na sua colecção, o Louvre e o Prado também. Há uma tendência internacional para se olhar para as colecções e tentar perceber qual é o lugar da mulher no mundo da arte, não só a forma como a mulher é representada, mas também as artistas. Esta exposição é a primeira parte de uma investigação que terá uma segunda parte. Nesta parte, estudamos apenas a forma como a mulher é representada na história de arte e pela história de arte. O que encontramos aqui são representações da mulher e ainda não as mulheres artistas, que é a segunda parte da exposição, que há-de ser no próximo ano. Atendendo ao espólio que existe no MAM, como é que a mulher é representada? Temos aqui duas representações: aquelas que são feitas pelo olhar ocidental, mas também temos obras de artistas orientais. Liga-se à história da própria colecção do MAM. Este museu herda a sua colecção do Museu Luís de Camões, que originalmente não era um museu de arte – era um museu comercial, etnográfico, histórico. Só em 1933, com a aquisição do espólio de Manuel da Silva Mendes, é que o museu ganha uma componente propriamente artística que, até então, não tinha ou era pequena. Havia algumas obras de arte, mas eram poucas. A colecção de Silva Mendes começava com obras de arte de artistas ocidentais. Tínhamos Chinnery, Boswell Watson, Borget, e essas são as primeiras obras que apresentamos aqui e as primeiras representações de mulheres que nos surgem. E também Lam Qua, cujas obras já faziam parte da colecção também de Manuel da Silva Mendes. Efectivamente, a maior parte dos retratos que apresentamos da mulher, aqui nesta primeira galeria, que é sobre o século XIX, são pintados por Lam Qua. Um neto dele desenha também mulheres numa outra galeria mais à frente. Por isso, esta exposição acaba por ter vários níveis de leitura: não só conseguimos ver a forma como a mulher é retratada ao longo da história da arte, como também conseguimos acompanhar a história da colecção do museu, como ainda conseguimos acompanhar um bocadinho da história da arte de Macau, e até a relação que existe entre uns artistas e outros, às vezes relações que são também de natureza familiar. Falando do século XIX. A forma como se representa a mulher no Oriente e no Ocidente é substancialmente distinta? Através da nossa colecção, temos Chinnery que marca o início da forma como a mulher é representada, uma tradição puramente europeia, e seguimos com Lam Qua, que é um discípulo informal da obra de Chinnery, no sentido em que Chinnery nunca admitiu ter ensinado pintura a Lam Qua. Mas, de alguma forma, as obras mostram que há uma aproximação na forma da pintura. As primeiras representações que temos de mulheres chinesas são feitas por via de uma tradição que é fundamentalmente ocidental: Chinnery e os seus discípulos. São mulheres de uma classe social mais abastada, as senhoras dos mandarins que aparecem representadas, mulheres europeias, mulheres chinesas, macaenses. Esta obra é uma das mais antigas do espólio artístico deste museu que não fazia parte da colecção de Silva Mendes: é uma Senna Fernandes. Em princípio, o quadro deve ser de Lam Qua. Como é que este quadro chegou ao MAM? Existem os inventários antigos do espólio do Museu Luís de Camões e, a partir de 1926, existem registos de todas as obras que entraram no museu. Um dos directores teve a intenção de fazer uma exposição de quadros históricos e pediu a várias famílias importantes da cidade de Macau que cedessem obras para essa exposição. Muitos dos registos não são suficientemente detalhados para sabermos a que obra se referem, mas há outros que permitem. Neste caso particular, existe o recibo de entrada de uma obra de uma pintura a óleo de uma senhora da família Senna Fernandes. Esta é a única senhora da família Senna Fernandes que está no nosso espólio. Aquele recibo deve muito certamente corresponder a esta obra. Conseguimos, nestes casos, saber exactamente o dia, o mês e o ano em que a obra dá entrada no espólio do museu que, depois, herdámos. É possível perceber por estes retratos que histórias tiveram estas mulheres, o que é que significaram no século XIX em Macau? Fizemos um primeiro esforço de identificação das personagens que estão representadas. Não é possível identificar todas. Quando conseguimos identificar estas mulheres, muitas vezes temos pouquíssima informação sobre o papel que elas efectivamente tiveram na sociedade de Macau por falta de registos. Mas penso que este foi apenas o primeiro passo nesse sentido. Eventualmente, com a ajuda de outros investigadores que se dedicam ao estudo da mulher na cidade de Macau nos séculos XX e XX, vamos continuar a tentar saber mais histórias sobre estas mulheres. Nesta galeria do século XIX, além deste quadro de Ricardina Senna Fernandes, que outras obras destaca? Destaco a primeira obra de um macaense: Marciano Baptista, um artista nascido em Macau, que estudou cá, também é um dos discípulos de Chinnery. É a primeira representação a óleo de uma mulher do povo. O que acho engraçado neste quadro é o sapato. Normalmente, as senhoras do povo não tinham os pés enfaixados. Não é normal que uma mulher, que pode ser uma criada que vai ao mercado comprar coisas, leva o filho ou o irmão às costas, tenha os pés enfaixados. Este pormenor é o ponto exacto em que o artista expressa a sua visão sobre aquilo que é a condição feminina. Este sapato está fora de contexto. O sapato é a coisa mais pequenina neste quadro, quase não se vê, e é a mais importante. Além da pintura a óleo, há também desenhos. Sim. Estas são as famosas tancareiras, que foram muito representadas porque eram as primeiras mulheres que os homens viam quando chegavam a Macau de barco. Se nas pinturas a óleo temos sobretudo mulheres de uma classe social mais abastada, que resultam, penso eu, de encomendas, na maior parte dos casos, os artistas desenhavam as mulheres do povo, usando o desenho. É o esboço rápido daquilo que viam na rua. Aqui, conseguimos ter uma visão do papel da mulher de um outro estrato social. Mais uma vez, neste caso, George Chinnery tem uma relevância grande. Tem uma relevância grande porque não havia esta tradição na China de se desenhar cenas da vida quotidiana. Era uma tradição já bastante desenvolvida na Europa. O desenho à vista, rápido, das cenas da vida quotidiana, é quase antropológico. Chinnery às vezes punha notas nas suas obras. Como raramente assina os seus trabalhos, esta é uma forma que hoje se usa para saber que a obra é autêntica. Funciona como uma assinatura da obra. São pequenos apontamentos porque às vezes estes desenhos são estudos de composições de obras maiores. Apesar de sabermos pouco sobre estas mulheres, ainda assim é possível perceber que papel representavam. A mulher é representada como deusa, como mãe, como criada ou concubina. Todas essas funções estão aqui representadas. Passámos à frente de um dos quadros a óleo em que se vê uma mãe a amamentar o filho. Aqui temos uma concubina. É uma peça de cerâmica. É uma peça de cerâmica de Pan Yu Shu, um artista chinês, do final da dinastia Qing. Esta obra não é uma encomenda de Silva Mendes, ao contrário daquela ali, uma velhinha encomendada para decorar a sua vivenda, que faz parte de um conjunto só em cerâmica. As obras de Shiwan são em cerâmica, era uma tradição muito antiga que depois foi abandonada em favor desta técnica que vemos aqui, que usa o vidrado para as roupas e todo o corpo é deixado em barro. Hoje, a maior parte da cerâmica de Shiwan tem esta característica. Silva Mendes reiniciou a tradição antiga de Shiwan e houve alguns artistas em Shiwan que continuaram esta tradição. Quanto a esta concubina, é uma história linda, um clássico. Conta a história de um imperador que tem uma concubina, que se chama Yan Guifei, a favorita. Nessa condição, aqui é representada depois de prestar os seus favores ao imperador, a ver-se ao espelho, e o imperador manda o eunuco presenteá-la com pérolas. Ela começou a exercer cada vez mais influência sobre o imperador e a colocar na corte imperial todos os seus familiares. Outras pessoas da família do imperador começaram a achar que ele estava a ser manipulado por ela e fogem da corte. No percurso, todas estas pessoas que estão a fugir conseguem convencer o imperador de que a responsável por tudo é a concubina. O imperador mandou matá-la, mas nunca mais foi feliz. Passamos agora para esta sala, que ainda nos mostra obras do século XIX. São gravuras do final do século XIX, de Thomas Allom, um arquitecto inglês que se julga nunca ter estado na China, mas que a representou em função de coisas que leu, que estudou. Não é muito significativo que tenha estado na China ou não, se é uma ficção ou não, porque na realidade a publicação destas gravuras é responsável por uma certa visão que a Europa teve da China no final do século XIX. O livro onde estas imagens foram publicadas chama-se “China: In a Series of Views, Displaying the Scenery, Architecture and Social Habits of That Ancient Empire”. O que temos são cenas de casamentos, o dote que as famílias recebiam, as mulheres de uma família de mandarins a jogar às cartas. Expomos aqui o livro em que as obras foram publicadas, neste ‘touch screen’, para as pessoas poderem ter outra visão. Agora, estamos no século XX. Esta galeria tem obras incríveis porque são aguarelas, pinturas originais, de um artista de Macau, que são a base dos cartazes publicitários do início do século XX. Aqui temos as aguarelas; daquele lado temos os cartazes. Eram estas pinturas que, depois, davam origem àqueles cartazes. O que é mais raro é expor-se a aguarela, porque normalmente nas exposições usa-se o cartaz impresso. As mulheres que encontramos aqui já são completamente diferentes. Isto é importante do ponto de vista histórico. Estamos em 1912, aboliu-se o enfaixamento dos pés das senhoras. Nesta primeira república, surgem todas as ideias de que a mulher deve ocupar socialmente um lugar paralelo ou igual ao homem, todas a reivindicações de sufrágio universal, de direitos das mulheres. São criadas as primeiras escolas femininas, as mulheres começam a poder ir à escola, a escolas de arte, e há o primeiro jornal feminino na China. É também o momento em que, pela primeira vez, as mulheres entram numa exposição oficial chinesa, com um alto número de representação, juntamente com homens. Entramos na história da China. Em Macau é difícil fazer essa história, mas estas obras, de alguma forma, contam um bocadinho toda uma alteração da visão da mulher. É uma mulher que usa salto alto, que tem manga cava, as saias vão ficando cada vez mais curtas e os sapatos cada vez mais altos. Nestas duas peças, temos uma mulher que está de calças e outra a beber vinho, de calças também. Encontramos agora a propaganda de meados do século XX. É a primeira vez que este trabalho é exposto no MAM. É uma encomenda do Sindicato dos Trabalhadores de Macau à Associação de Artistas de Macau, foram doados ao museu em 2010. Servia para exibir no Sindicato dos Trabalhadores de Macau, para ensinar às mulheres e aos trabalhadores em geral como é que elas se deviam comportar e qual o papel que devem desempenhar. Neste quadro temos uma crítica: “A trabalhadora Ling era supersticiosa, com uma mentalidade antiquada, que adorava vestir-se”. Esta pintura refere-se a tudo o que aconteceu na galeria anterior. Toda aquela ideia da mulher feminina, que pode usar o decote e que, apesar de ser mãe, também pode exercer a sua feminilidade, vai acabar. Aqui neste quadro temos a nova mulher: todas as suas formas físicas desaparecem debaixo do uniforme maoísta, o cabelo não tem nenhum acessório. Esta mulher aprendeu o pensamento do Presidente Mao. Isto faz parte de toda época em que os cartazes de propaganda maoísta estavam em toda a China. Há um aspecto extraordinário: nesta altura, usava-se sobretudo xilogravuras, que eram enviadas para todas as províncias da China. Nessas províncias eram pintadas e, depois, distribuídas e usadas. Aqui, é pintura. É um trabalho extraordinário: alguns são a tinta-da-china; outros, a tinta-da-china com aguarela e guache. E aqui termina a exposição. Contámos um bocadinho da história da colecção, que tenho andado a estudar há já alguns anos. Apesar de ser uma abordagem sintética, quis fazer aqui homenagem a Manuel da Silva Mendes e ao seu contributo para que o MAM seja aquilo que é. Se não fosse esta colecção, o Museu Luís de Camões não se tinha transformado num museu de arte, e como herdámos este espólio, herdámos toda esta história que acaba por ter início na obra deste homem, que era um português.
Isabel Castro Entrevista Manchete PolíticaEntrevista | José Tavares, presidente do conselho de administração do IACM A criação de órgãos municipais sem poder político será uma oportunidade para reestruturar o IACM e torná-lo mais compatível com a realidade de Macau, mas não deverão ser introduzidas alterações significativas ao que hoje é feito. José Tavares, presidente do instituto, acredita que, apesar de a casa ser grande, é possível dar conta do recado sem a multiplicação de organismos. Em entrevista, confessa que não estava à espera de dirigir o sucessor do Leal Senado, casa onde começou a trabalhar há mais de 30 anos [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá há mais de um ano na presidência do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM). Como é que está a ser a experiência? É uma experiência nova de gestão. Estamos a falar de um serviço público que é o terceiro maior em termos de pessoal, são mais de 2600 funcionários, com 11 departamentos e 33 divisões. Engloba muitas áreas e cada uma com a sua especificidade. É um desafio e, ao mesmo tempo, uma experiência aliciante, apesar de já conhecer a casa – o meu primeiro emprego na Função Pública foi no Leal Senado, num cargo entretanto extinto, o de secretário-dactilógrafo. Regressou então a casa, mas com uma responsabilidade completamente diferente, o que é um desafio. Sempre gostei de desafios. Venho do desporto. Estou habituado a desafios. “Reduzir o número de obras não é uma solução – leva a apenas a uma acumulação de pedidos. A cidade obriga a estas transformações.” Quais são as áreas que considera prioritárias no IACM? Para mim, são todas prioritárias, mas posso destacar algumas, como a segurança alimentar. É uma área que temos tratado com maior intensidade nos últimos tempos. Temos acertado alguns parâmetros e índices alimentares para que Macau possa estar de acordo com as práticas internacionais. Em 2016, foram publicados quatro novos índices e normas, incluindo os relativos ao leite em pó, e nove novas orientações. Agora, estão em fase de elaboração várias normas, sobre os limites máximos de metais pesados e de resíduos de pesticidas nos géneros alimentícios, e para a utilização de conservantes e antioxidantes. Isto quer dizer que estamos cada vez mais a elevar os nossos padrões e exigências para os alimentos importados. Macau é uma cidade de turismo e de lazer – temos toda a preocupação de fazer a protecção logo na primeira linha. Tudo isto é uma prevenção para reforçar a nossa segurança alimentar. Depois, há o investimento feito nos nossos laboratórios. Há uma atenção acrescida no que diz respeito a esta área. No início deste ano, foi feita aqui uma conferência internacional sobre aditivos alimentares, com mais de 300 participantes de mais de 50 países. Isso significa alguma coisa. São organizações internacionais que conseguimos trazer, através do apoio da China. É um sinal de que Macau quer elevar os seus padrões ao nível internacional. A par da segurança alimentar, que outras áreas é que o preocupam? Muitas áreas. As vias públicas são uma realidade que temos de enfrentar. O crescimento acelerado da cidade obriga a ter valas sempre abertas. É uma consequência da realidade do crescimento da cidade. Reduzir o número de obras não é uma solução – leva a apenas a uma acumulação de pedidos. A cidade obriga a estas transformações. O que pode ser feito é reforçar a coordenação, que tem que ver com os diversos serviços e também com os concessionários. A coordenação poderá ser melhorada. Juntamente com a secretária para a Administração e Justiça e com o secretário para os Transportes e Obras Públicas, conseguimos melhorar esta coordenação. Antes de tudo, é preciso haver um aviso prévio da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT) para podermos emitir uma licença. Sem o parecer deles, não há emissão de licença, isto para presumir, logo à partida, que a montagem e o percurso da obra sejam delineados conforme a indicação da DSAT. “[As duas câmaras] tinham posturas diferentes e isso torna bastante difícil a execução de algumas políticas. Esta fusão faz todo o sentido.” Para garantir mais fluidez no trânsito? Sim, e para reduzir ao máximo os distúrbios que possam afectar a cidade durante as obras. Foi uma melhoria conseguida. O assunto foi abordado pelo Comissariado da Auditoria (CA), uma chamada de atenção feita acerca do período 2014-2015. Vimos o relatório. Achamos que há partes em que existe margem para melhorar e estamos a trabalhar nesse sentido. Outra preocupação tem que ver com os mercados e os vendilhões. Queremos alterar as leis sobre esta matéria porque já são muito antigas, vêm ainda da Administração Portuguesa. É um assunto urgente para resolvermos. As duas câmaras – o Leal Senado e a Câmara das Ilhas – tinham posturas diferentes. Nas ilhas fazia-se de uma maneira, aqui fazia-se de outra. Até hoje continua a ser assim porque a lei não foi mudada. Para nós, é muito difícil essa gestão. Depois, há ainda as zonas de lazer, que também foram alvo de um relatório do CA, que apontou algumas deficiências nos jardins e também nos espaços destinados às crianças. Tivemos essa preocupação e tudo foi composto em oito meses, conforme aquele relatório. Só que, durante este tratamento, verificámos outros problemas que não constavam da auditoria. Estamos agora a resolvê-los e espero que, até ao final do ano, o trabalho esteja concluído. Mas é um trabalho constante, porque a casa é grande. Estamos a falar de Macau inteiro. Em 2001, quando acabaram as Câmaras Municipais Provisórias, o Cotai não existia, era apenas um istmo. Faria algum sentido voltar a ter duas câmaras, atendendo a que hoje a Taipa e o Cotai têm uma dimensão muito maior do que quando foi pensado o IACM? Ou é preferível ter só uma estrutura? Acho que faz sentido ter só uma estrutura. Outrora, quando existiam duas câmaras, isso trouxe alguns problemas para a Administração, como referi. Tinham posturas diferentes e isso torna bastante difícil a execução de algumas políticas. Esta fusão faz todo o sentido. O IACM tem uma postura para todo o território. A nossa população e a nossa dimensão não justificam ter duas câmaras. Aliás, o IACM já não é uma câmara – a figura da câmara era um poder local que, agora, já não existe. O IACM precisa de ter maior autonomia, atendendo às funções de proximidade com a população? O IACM consegue satisfazer todas as necessidades da população com a sua estrutura actual. Temos uma grande proximidade com a população. Temos reuniões regulares com o Conselho Consultivo do IACM, colóquios nas freguesias, com os Conselhos Consultivos de Serviços Comunitários por Zonas, sessões abertas com a Administração, temos Centros de Prestação de Serviços ao Público, Postos de Atendimento e Informação, linhas telefónicas de atendimento ao público, com sistema de gravação de mensagens fora do horário de expediente, contas no Wechat, etc.. Não há outro serviço que tenha uma abertura junto da população como o IACM. Achamos que a actual estrutura do IACM é suficiente para dar resposta à realização de uma relação de proximidade com a população. Nos últimos tempos, o IACM perdeu competências em duas áreas – no desporto e na cultura. O desporto é uma área que lhe é muito próxima, trabalhou muitos anos neste campo. Que balanço faz destas alterações em termos orgânicos? Atendendo à complexidade de Macau, uma cidade muito densa, fez sentido libertar o IACM destas duas pastas? Fez e não fez. Fez, em certo sentido, por temos funções amplas e contacto próximo com a população. Mas também por isso os eventos culturais e desportivos podiam servir de elo de ligação com a população. Davam uma margem de manobra para o IACM poder ter um papel mais interventivo nas actividades recreativas, numa ligação mais imediata com a população. O que é que deverá ser o IACM no futuro? Acho que o IACM não deverá ser muito diferente do que é agora. O trabalho vai ser sempre feito por alguém. A criação de órgãos municipais sem poder político está prevista pela Lei Básica. São órgãos incumbidos pelo Governo de servir a população, designadamente nos domínios da cultura, recreio e salubridade pública, bem como dar pareceres de carácter consultivo ao Governo da RAEM em relação a essas matérias. Ou seja, o IACM, no futuro, não deverá ser muito diferente daquilo que conhecemos hoje. Julgo que essa mudança não traz grandes alterações em termos de prestação de serviços. Pode mudar o nome, pode mudar internamente alguns aspectos mas, por fora, o trabalho será o mesmo. Haverá um nome diferente, com uma estrutura eventualmente diferente, poderão ser feitos alguns pequenos ajustes, até porque já passaram 15 anos, aproveitando também para se adaptar à nova realidade de Macau. Com a introdução dessa figura poderemos então esperar que haja um aproveitamento do que é hoje o IACM? É uma reestruturação do IACM, porque já passaram 15 anos desde a sua criação. É preciso ter-se também em conta a nova realidade de Macau. “[A criação de um órgão municipal] pode mudar o nome, pode mudar internamente alguns aspectos mas, por fora, o trabalho será o mesmo.” Voltando ao trabalho que tem estado a desenvolver. Há planos para mais colaborações com entidades de fora de Macau, à semelhança da que estabeleceu com a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) de Portugal? Temos colaborações com várias entidades, quer aqui em Zhuhai, Cantão, Pequim, China e também em Portugal. É uma colaboração estreita, sobretudo na área da segurança alimentar. Isto é muito importante porque esta integração permite a troca de informações, há uma colaboração muito próxima em termos de tecnologias que estão a ser implementadas para a detecção de problemas. Além da segurança alimentar e do CEPA, temos uma colaboração constante com outras organizações internacionais, como na área da importação de animais e plantas em vias de extinção – que é muito importante, porque há muita prática de contrabando nesta área –, e Macau é obrigada a cumprir estas normas porque faz parte dos tratados neste âmbito, e nas áreas de inspecção fitossanitária e sanitária, e de prevenção e controlo de epidemias animais. Isto também está dentro do nosso pelouro. A colaboração com a ASAE está a ser muito frutífera, porque mal a secretária para a Administração e Justiça assinou o protocolo com o ministro, foi logo desencadeada uma série de iniciativas. O inspector-geral da ASAE esteve aqui comigo, traçámos metas, logo a seguir fizeram-se três seminários, para o ano vamos lá para acertar outras coisas, pelo que acho que está a resultar. Mas há mais ideias deste género para o futuro? A colaboração não pára aí. Estamos agora a implementar uma plataforma de transacções electrónicas online do Centro de Distribuição de Produtos Alimentares dos Países de Língua Portuguesa. É muito importante, quer para nós, quer para eles. Vem na linha da política “Uma Faixa, Uma Rota”. Iremos criar um mecanismo permanente, sincronizado e mútuo, de inspecção para produtos lusófonos que passam por Macau. Vai permitir que os produtos sejam colocados à venda no mercado com maior brevidade. É macaense, presidente do conselho de administração do IACM, um órgão com uma importância grande na cidade. Há uns anos, esperava que isto fosse possível? Sempre foi possível. O secretário Raimundo do Rosário é macaense. É nomeado pelo Governo Central. Tudo é possível. Só que eu não esperava. Foi uma surpresa para mim – agradeço o convite feito pelo Chefe do Executivo, agradeço à secretária para a Administração e Justiça, pela confiança que me foi depositada, porque nunca pensei que um secretário-dactilógrafo do Leal Senado fosse, um dia, presidente do IACM. Comecei a minha carreira aqui, tenho 33 anos de serviço, tive esta grande oportunidade. Para retribuir, vou dar o meu máximo. Sente saudades do Instituto do Desporto? Sou um homem do desporto. Continuo a ser um homem do desporto.
Isabel Castro VozesA partida [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] primeira perda que tive foi a morte. Tinha oito anos e a morte foi-me comunicada tal como ela é, sem paninhos quentes. Ainda não se pensava muito na psicologia das coisas e ainda bem, porque há assuntos em que os rodeios não cabem. A morte é a morte, eu não percebia o que não tinha de perceber, entendi mais tarde, uma semana ou duas talvez, quando compreendi que morrer era perder para sempre. A minha primeira perda foi também um chocolate com passas e frutos secos, de tamanho gigante, nas minhas mãos de tamanho mínimo, uma espécie de pedido de desculpas antecipado pelos olhos que, à minha volta, se acinzentaram. Com o tempo, a perda ganhou outros contornos, depois do significado inicial. A dada altura, num exercício filosófico de adolescente amante de poesia, atrevi-me a pensar que a perda era mais do que a morte e não precisava necessariamente de ser provocada por ela. A escala da perda variava conforme a fragilidade do momento. Repensei a tese uns anos depois, quando a perda caiu que nem uma pedra, toda ela definitiva, independentemente da força que achava ter para sobreviver ao que desapareceu. Sem chocolate com passas e frutos secos. Mas imaginemos que há um índice de perdas. A relativização é algo que nos dá jeito, sempre. Macau é uma terra em que se perde mais do que se ganha, apesar de se ganhar muito, de forma profundamente desequilibrada. Há perdas várias, a todos os momentos, sem termos de recorrer aos lugares-comuns dos casinos onde se perdem fortunas e azares, amantes e outras substâncias inebriantes. Há perdas bem mais difíceis, porque são mais importantes e decisivas, apesar de não serem imediatamente fatais. Perder a oportunidade de crescer bem é quase tão mau quanto não se ser. Não se querer ver é quase tão mau quanto só ter a escuridão como hipótese. Não se saber pensar é o pior. O problema é, mais uma vez, da literatura, da falta de literatura, e da iliteracia, a das letras e a do resto, de não se saber ler o que vai nos rostos, nas mãos, nos gestos cansados. Perde-se a possibilidade de ser mais nesta letargia húmida que tudo invade. Perdem-se pessoas. A cidade é demasiado pequena para as pessoas que se perdem no entra e sai das fronteiras, nas despedidas junto aos barcos, imagem romântica sem qualquer romantismo que resista ao cheiro do combustível queimado, da água estagnada, da respiração dos passageiros apressados. Perdem-se pessoas por via do mundo ser grande, ter tanto para descobrir, mas também por via do cansaço, da desistência, de quem quis mais para isto para descobrir que isto não é para mais, é só para isto. Macau é uma terra de dispensáveis, de vai um chega outro, não há vizinhança que sobreviva para contar a história da porta fechada. Ninguém reparou, sequer, que a porta se fechou. Com as pessoas vão as memórias. A cidade é demasiado estreita para que não sejam conservadas. Ficam as pedras que sobram e os rostos pintados, muitos deles desconhecidos, de quem foi copiosamente chorado para ser esquecido logo a seguir, quase logo a seguir. Não nos ensinam a partir, ficando.
Isabel Castro Manchete SociedadeFundação Macau | Kiang Wu recebeu 37 milhões para equipamentos A associação de beneficência do hospital privado do território é o principal beneficiário dos apoios concedidos pela Fundação Macau no segundo trimestre deste ano. A Universidade da Cidade de Macau também assegurou uma maquia considerável, para fazer obras nas suas instalações [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] a vencedora no ranking dos principais beneficiários da Fundação Macau (FM): a Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu recebeu 37 milhões de patacas como apoio financeiro para a aquisição de equipamentos médicos destinados à unidade hospitalar provada. O dinheiro diz respeito a 15 itens, não elencados na lista ontem publicada em Boletim Oficial, e trata-se ainda da primeira prestação. Entre Abril e Junho, a FM repartiu mais de 178,781 milhões de patacas por uma longa lista de instituições particulares, com destaque para a área da cultura, com pequenos apoios a variadíssimas associações, que vão das artes plásticas à promoção da ópera chinesa. Também o ensino e a saúde foram contemplados na distribuição do segundo semestre deste ano da fundação liderada por Wu Zhilliang. Do rol ontem publicado, destaque para a Fundação da Universidade da Cidade de Macau. A instituição de ensino superior ligada ao deputado e empresário Chan Meng Kam teve direito a um cheque de mais de 15,2 milhões de patacas. O montante destina-se ao financiamento de obras de recuperação dos equipamentos eléctricos do Edifício Tai Fung, e do melhoramento das escadas rolantes e dos elevadores da instituição de ensino superior, instalada em parte da estrutura que, outrora, acolheu a Universidade de Macau. Também no capítulo das instituições de ensino superior, mas com um valor mais modesto, à Universidade de São José foi concedido um subsídio de 3,8 milhões de patacas, referente ainda ao plano de actividades do ano lectivo 2015/2016. Para o Instituto Internacional de Tecnologia do “Software” seguiram quase dois milhões: 436 mil patacas para a recuperação e manutenção da Casa Silva Mendes e mais de 1,5 milhões para o arrendamento, reparação e manutenção do dormitório da entidade. O Instituto Internacional de Macau recebeu 3,85 milhões de patacas como primeira prestação do plano de actividades de 2017. Também no sector da educação, mas na vertente dos alunos, a FM entregou sete milhões de patacas para o plano de actividades da Associação Geral de Estudantes Chong Wa de Macau. A lista de apoios do segundo trimestre deste ano inclui ainda os montantes destinados às bolsas de estudo para alunos não residentes de Macau. Em 37 bolsas para estudantes de países lusófonos e da Namíbia foram gastos 1,3 milhões de patacas. A Federação da Juventude de Macau terá de se governar, por enquanto, com um subsídio na ordem dos 4,15 milhões. Saúde e ajuda Kiang Wu à parte, há várias instituições ligadas à beneficência, saúde e serviços sociais que mereceram o apoio recente da Fundação Macau. A Associação de Apoio aos Deficientes Mentais recebeu 2,15 milhões de patacas, a primeira prestação do ano para ajudar às cinco unidades que lhe estão subordinadas. Para a Associação dos Familiares Encarregados dos Deficientes Mentais seguiram dois milhões de patacas. A Associação dos Médicos dos Serviços de Saúde de Macau contou com 1,8 milhões de patacas para a organização de duas iniciativas de carácter académico e científico. A Caritas de Macau é beneficiária, desta vez, de um apoio de 5,25 milhões de patacas, dinheiro a distribuir pelas suas 28 unidades. Já para a Associação de Surdos de Macau foram destinados cinco milhões, a primeira prestação para o financiamento da acção “Preocupamo-nos com os vossos ouvidos e fala”. A Associação de Beneficência Sin Meng contou com 2,5 milhões. A-Má, portugueses e violinos No domínio da cultura, o apoio dado pela Fundação Macau para a Fundação da Deusa A-Má de Macau é de quatro milhões de patacas, a primeira parcela para o financiamento do 15.o Festival de Cultura e Turismo A-Má. Já a Associação dos Macaenses recebeu 1,1 milhões para o plano de actividades. Cinco milhões é o valor dado à Casa de Portugal para os 27 itens que constam do plano de actividades deste ano, sendo esta a primeira prestação. À Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Macau foram entregues 4,15 milhões de patacas que se destinam às iniciativas do Albergue. A Associação da Orquestra Sinfónica Jovem de Macau tem 3,15 milhões para desenvolver as primeiras actividades do corrente ano.
Isabel Castro PolíticaAL | Governo ainda não respondeu a 72 interpelações escritas A três semanas do fim da legislatura, há vários deputados que se arriscam a ficar sem resposta às questões que colocaram ao Governo. São mais de sete dezenas de réplicas que ainda não chegaram à Assembleia Legislativa. Ainda assim, a situação já foi pior [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Fevereiro deste ano, José Pereira Coutinho escreveu ao Executivo a propósito dos trabalhos de fiscalização dos autocarros de turismo e dos “shuttle bus”. Passado um mês, Si Ka Lon quis saber das melhorias que o Governo pretende introduzir para o desenvolvimento do sector logístico. Os dois deputados continuam à espera de resposta. Não são os únicos. Ontem, à hora a que este texto foi escrito, havia 72 interpelações escritas a aguardar réplica do Executivo. As missivas são o método mais usado pelos deputados no exercício da fiscalização da acção governativa, mas o destinatário parece continuar a ter dificuldades em lidar com as solicitações. “Tem havido um enorme esforço do Governo”, concede ao HM Pereira Coutinho, na Assembleia Legislativa (AL) desde 2005. Houve alturas em que a situação era pior; a grande mudança dos últimos anos prende-se com o número de interpelações enviadas. “É evidente que o aumento de intervenções e interpelações por parte dos deputados exige uma capacidade de resposta diferente daquela que, neste momento, o Governo está a dar.” Só este mês, da AL saíram 25 missivas. Nenhuma delas mereceu, por enquanto, resposta. Focam assuntos tão diferentes como a prevenção da doença do Legionário, tema que o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura terá de encaminhar para os Serviços de Saúde, o horário de funcionamento do trilho entre o Jardim do Lago e as Casas da Taipa, assunto que preocupa Chan Meng Kam, ou o reforço ao combate ao alojamento ilegal. Junho foi um mês de grande produção de interpelações escritas, com os deputados a assinarem 64 documentos do género. Há 34 que continuam sem resposta. Pereira Coutinho aguarda esclarecimentos sobre quatro temas diferentes e o seu colega de bancada, Leong Veng Chai, tem outras tantas questões pendentes. Chan Meng Kam ainda não recebeu explicações sobre o plano de apoio para os equipamentos destinados à protecção ambiental, sendo que a bancada de Fujian tem mais três interpelações do mês passado sem resposta. Melinda Chan encontra-se na mesma situação em relação a um pedido de explicações remetido, Au Kam San abordou três assuntos que ainda estarão a ser estudados, Ng Kuok Cheong enviou duas interpelações cuja réplica ainda não recebeu, o mesmo número de questões que Ho Ion Sang e Zheng Anting querem ver esclarecidas. Mak Soi Kun, Wong Kit Cheng Kwan Tsui Hang, Ella Lei e Chan Hong completam a lista dos deputados a aguardar. Das 59 interpelações escritas enviadas em Maio, falta responder a cinco. Das 55 de Abril, há ainda seis réplicas a serem elaboradas pelo Governo. O Executivo terá também de enviar representantes à AL para falarem sobre 14 interpelações orais. As reuniões estão ainda por agendar. O drama das traduções [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] número de interpelações escritas à espera de resposta não surpreende Pereira Coutinho. “Tem vindo sempre a ser assim”, constata, encontrando duas razões para a demora: a tradução e a dificuldade que o Governo tem em responder “a temas mais sensíveis”. No que toca às traduções, o deputado lamenta que a Administração continue a ter dificuldades nesta matéria. “Ainda hoje [ontem] recebi uma resposta a um requerimento em línguas distintas. Ou seja, tinha feito aquilo em português e eles responderam-me em chinês. Isto demonstra que, de facto, a Administração luta com enormes dificuldades para ter as traduções a tempo.” O problema da utilização do português e do chinês não é de hoje, observa Coutinho, que lamenta que o Governo não tenha prestado mais atenção ao assunto no passado. “Agora é que vem dizer que faltam pelo menos 200 intérpretes-tradutores.” Regimento | Novo Macau escreve aos deputados [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Associação Novo Macau (ANM), que deixou de ter voz oficial na Assembleia Legislativa (AL) desde que Ng Kuok Cheong e Au Kam San bateram com a porta, escreveu ao hemiciclo a pedir aos seus membros que votem contra a alteração ao Regimento que visa a proibição de cartazes nas bancadas dos deputados. Na semana passada, a ANM fez uma conferência de imprensa em que se mostrou contra a proposta de resolução da Comissão de Regimento e Mandatos que prevê esta interdição. Agora, a associação de Scott Chiang reitera a argumentação, considerando que a utilização de tais objectos não coloca em causa a solenidade do órgão legislativo. Para os pró-democratas, “a solenidade e a dignidade da AL estão ligadas à sua capacidade de fiscalização ao Governo, à actualização das leis para que sejam capazes de dar resposta à passagem do tempo, ao aproveitamento adequado do erário da RAEM e à responsabilização real dos funcionários públicos”. Para a associação, o recurso a objectos nas sessões plenárias deve ser respeitado e permitido. Caso os acessórios perturbem a ordem de trabalhos, alega a ANM, o presidente da AL pode suspender o uso da palavra dos deputados em causa ou pedir-lhes que abandonem o plenário. O assunto vai ser debatido amanhã. O projecto de resolução vai ser votado na generalidade e na especialidade no mesmo plenário.
Isabel Castro Entrevista Eventos MancheteEntrevista | Hélder Macedo, escritor e investigador A poesia chegou cedo, o acto de dizer não também. Porque bateu o pé contra o sistema, saiu de Portugal para voltar uma e outra vez, para ainda não estar lá, estando. Hélder Macedo é um nome incontornável do passado-presente da literatura portuguesa. Está por estes dias em Macau [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ez parte do Grupo do Café Gelo. Como é que funcionava esta tertúlia, influenciada ainda pelo Orpheu? A obra de Fernando Pessoa começou a ser publicada, de facto, nos anos 1940. Nos anos 50, ainda era uma coisa recente. Fernando Pessoa era mítico, havia várias obras não só do Pessoa, como do Sá Carneiro, etc., que não eram acessíveis. O Gelo foi um bocado um acidente. Éramos jovens, com 19 ou 20 anos, e mais ou menos por acidente começámos a encontrar-nos – uns conheciam-se, outros não –, basicamente para fugirmos aos cafés literários. Porquê? Eram chatos? Eram chatos, eram estabelecidos, eram senhores pomposos, importantes. Aconteceu que um grupo de pintores alugou um quarto num sótão perto do Rossio. Não cabiam todos. Eram quatro pintores que partilhavam aquele espaço. Uns desciam e o café mais próximo era o Gelo que, nessa altura, era frequentado por uma clientela de pequena burguesia, pacata, nada intelectual, nada literária. Ia para lá para estar sossegada, não estar naquele ambiente dos cafés literários e dos cafés para estudantes. Uns foram atraindo outros para conversarmos. Eu tinha sido colega de liceu do Gonçalo Duarte, pintor, que me disse que ali tinha uma gente interessante, que eu ia gostar. Fui. Tinha conhecido o Manuel de Castro nessa altura também, ainda no liceu. Uns levaram a outros e sentimo-nos mais ou menos unidos por uma atitude existencial e política, de certa maneira, que era essencialmente de recusa do ‘status quo’, do salazarismo e até das carreiras literárias, da Brasileira, do espírito de promoção e de autopromoção que havia. No meio disto tudo, aparece lá o Mário Cesariny de Vasconcelos que, nessa altura, era um escorraçado social. Nós conhecíamos a obra dele, tinha publicado um livro ou dois. Gostámos muito dele e ele passou a ir ao Gelo. Ele também atraiu outras pessoas. Criou-se um bocado a ideia de que o Café Gelo era uma espécie de segunda ou terceira leva do surrealismo em Portugal. É e não é. E não é porquê? Todos nós beneficiámos da existência do Surrealismo, como beneficiámos da existência do Orpheu, do Futurismo, dessas coisas todas. Mas, com algumas excepções, nem os pintores, nem os escritores que depois vieram a ter o seu bocado de obra se podem caracterizar, de facto, como surrealistas. Herberto Helder não é um surrealista. É um homem que bebeu, com certeza, do Orpheu, mas bebeu da tradição bárdica do século XIX, bebeu da leitura da Bíblia, como se vê pela poesia dele. O Manuel de Castro era um homem muito interessado pelas coisas esotéricas, mas não era um surrealista. Eu não sou um surrealista. Alguns foram mais directamente influenciados pelo Surrealismo, como o Ernesto Sampaio, por exemplo, um nome de referência, extremamente importante – era a pessoa que, na altura, mais sabia de Surrealismo em Portugal, um excelente escritor. E depois também outros mais associados directamente à influência do Mário Cesariny: o António José Forte, o Virgílio Martinho, embora escrevesse mais prosa. Esses assumiram-se como surrealistas. Mas o Herberto, eu, o Manuel de Castro, não. As pessoas gostam de dar rótulos. Pronto, nada contra. A outra dimensão do Gelo, que é extremamente importante, é a ligação com os pintores. Foram fundamentais. Eles foram, de facto, os fundadores do Gelo. O João Vieira, o Gonçalo Duarte, o José Escada, o Costa Pinheiro. Alguns, depois, foram para Paris; outros, como o Costa Pinheiro, para a Alemanha. Reencontraram-se mais tarde em Paris, onde fundaram o KWY. Quando se fala no Gelo, há três Gelos: um inicial, jovens tacteantes; os que saíram e que continuaram lá fora qualquer coisa associada ao espírito do Gelo; e os que ficaram – e esses tornaram-se muito mais ortodoxos surrealistas e ficaram muito mais sob a influência directa do Mário Cesariny. Um notabilíssimo poeta, mas era um senhor que não brincava em serviço. Fingia que não, mas tinha o olho posto na glória póstuma. Ele guardava tudo, todos os papéis… E aquela mania surrealista de quem é ortodoxo e quem não é, quem é bom e quem é mau, aqueles catálogos que já em França havia e que deu sempre naquelas proliferações. Mas, se há uma coisa que unificava aquela gente toda, era uma atitude de recusa, o dizer ‘não’, o não querer pactuar política e socialmente, o desrespeitar as normas estabelecidas. A grande revolução que aconteceu no nosso tempo, recentemente, é de facto a afirmação das mulheres, que é uma coisa maravilhosa. A outra é a grande liberdade sexual, o que é espantoso. Nessa altura, os homossexuais eram perseguidos pela polícia. O Cesariny era humilhado semanalmente porque tinha de ir à polícia dizer que estava a portar-se bem. Nós tínhamos uma atitude de total liberdade em relação à própria sexualidade: cada um dormia com quem quisesse, não era obrigatório nem ser, nem deixar de ser, não entrava no assunto. Isso também era parte dessa atitude de recusa das normas estabelecidas e do sistema. Escrevi um texto que está incluído num livro de ensaios em que uso o título “A Utopia da Negação”: a negação como utopia, como desejo de recusa. O mais importante é sermos capazes de recusar, de dizer não. Os ‘sins’ organizam-se sozinhos, alternativamente. Mas temos de decidir o que não queremos. Se aceitarmos, estamos pactuando no essencial, e isso é que não pode ser feito. Essa atitude vem dessa altura e dessa vivência? Virá dessa experiência. Por outro lado, é uma atitude que levou a esta experiência. Era uma coisa partilhada. Numa loja daquelas muito lisboetas – em que tinha, de um lado, mercearia, e do outro residência do dono – o Manuel de Castro encontrou, na residência, uma coisa impressa que dizia ‘Aqui não se vende’, significando que aquilo não era a loja. O Manuel tirou aquilo e punha diariamente na mesa do café: ‘Aqui não se vende’. A nossa atitude estava, de certa maneira, simbolizada por aquilo. Nós não estamos à venda. Hoje em dia, este tipo de encontros, onde se discute o estado das coisas, da política, da literatura, praticamente não existe. Existe muito menos. É a consequência do desinteresse? Há uma grande proliferação, há muita mais gente que escreve, que pinta, uns bem, outros mal, outros assim-assim. Há uma tentativa um bocado artificial, em Lisboa, de criar uma espécie de grupos. Por exemplo, as pessoas associadas à Abysmo, uma excelente editora, sentem que são um bocado um grupo, mas é mais difícil. Há uma coisa que, felizmente, falta: a repressão. A polícia, o perigo, o proibido, o risco, as torturas, Caxias, choques eléctricos – havia um elemento de risco que agora não há. Vários dos nossos amigos – e eu – aos 18 ou 19 anos, foram presos e torturados, eram uns adolescentes, miúdos. Ainda bem que não existe. Se se quer ser maldito, é por vontade e não por necessidade. Nós tornámo-nos um bocado malditos por sanidade, porque, no fundo, a recusa era a sanidade, a recusa era portarmo-nos mal. Um termo que é muito usado e abusado – o abjeccionismo – não é tanto no sentido que se dá actualmente, da pessoa se portar abjectamente. Não, o mundo em volta é que era abjecto. Ao recusarmos aquilo estávamos, de algum modo, a fazer uma afirmação positiva através da recusa. O que acho muito interessante é que as gerações mais novas estão agora a recuperar um bocado a mitificação do Gelo com o Pacheco, o endeusar literário também do Mário Cesariny, felizmente com algumas consequências muito positivas que foi a redescoberta do Manuel de Castro, que estava esquecido – um notabilíssimo poeta. Consegui que o João Paulo Cotrim publicasse um livrinho do José Manuel Simões, “Sobras Completas”, toda a obra completa dele que ele considerava importante e que me entregou, num envelope castanho, a última vez que estive com ele em Paris. Morreu um ano depois, não querendo voltar a Portugal. Estive uns bons dez anos até conseguir editor e o Cotrim publicou. As “Sobras Completas” é um livro muito giro, muito interessante, muito bom. E há outros que podem ser descobertos. Mas está a haver um interesse grande de várias pessoas a escrever sobre o Gelo. Do Gelo à política. Foi secretário de Estado da Cultura no Governo de Maria de Lourdes Pintasilgo, numa altura complicada, no pós-revolução. Tinha trabalhado politicamente contra o regime, foi essa a razão pela qual não podia estar em Portugal. Depois regressei e, em 1975, fui convidado pelo então Governo provisório e aceitei ser Director-Geral dos Espectáculos. O Governo caiu, houve um período de várias semanas sem Governo, sem coisa nenhuma, uma coisa perfeitamente caótica. Para entrar no meu gabinete, que era no Palácio Foz, tinha de pedir licença aos piquetes. Nessa altura, como não havia muito mais que pudesse fazer, decidi publicar umas notas sobre o que poderia ser eventualmente uma política cultural, o que se poderia fazer. E isso foi publicado no Diário de Notícias que, na altura, era dirigido pelo Saramago. Decidi não continuar, voltei para Londres. No Verão de 1979, eu e a minha mulher fomos de férias a Portugal, de carro, pacatamente. Chegámos a Lisboa, fui ver os meus amigos, que se reuniam no café Montecarlo – o Carlos de Oliveira, o José Cardoso Pires, o Herberto Helder – e o [Augusto] Abelaira diz-me que se falava em mim para secretário de Estado da Cultura. Ri-me muito e disse-lhe: ‘Ah, e fala-se de si para ministro da Saúde’. Quando cheguei a casa dos meus pais, à noite, um telefonema a convidar-me. Fiquei muito surpreendido. O que deve ter acontecido foi que a Maria de Lourdes deve ter lido essas notas, achou que a coisa fazia algum sentido e decidiu convidar-me. Era um Governo provisório, diziam que era 100 dias mas afinal foram cinco meses, foi pouco tempo e, como tal, aceitei. Nunca quis ter uma carreira política. Devo ter sido a única pessoa em Portugal que foi director-geral e membro do Governo e que não tem um chavo de pensão de coisa nenhuma. Portanto, nunca quis coisa nenhuma e queria, precisamente, ter a minha total independência. Depois de o Governo se ir embora, tive três convites para deputado, de vários partidos. Recusei, não quis ter uma carreira política. Mas alguma coisa foi feita e que, depois, por ódio pessoal do Sá Carneiro à Maria de Lourdes Pintasilgo, foi apagada. O que é que foi apagado? Para já, uma coisa sem precedentes na democracia: suspenderam em bloco todos os actos que podiam ser suspensos do Governo da Maria de Lourdes Pintasilgo. Não só na cultura – nos serviços sociais, no trabalho. Tudo suspenso, para tornar a coisa uma espécie de não-Governo, o que é ideológico porque a Maria de Lourdes, sendo católica, tinha um programa muitíssimo mais à esquerda do que o Partido Socialista. Por outro lado, era uma posição antifeminista por ser mulher, que ainda por cima vivia com outra mulher. Na área da cultura posso dizer três coisas: quem criou o Museu de Arte Moderna no Porto foi o Governo da Maria de Lourdes numa sessão pública onde eu estava. Este projecto ficou parado durante uns tempos e depois foi reaproveitado pela Maria Teresa Gouveia, que criou Serralves. A origem de Serralves foi a negociação que fiz em mandar para o Porto, instalado provisoriamente no Museu Soares dos Reis, a colecção de arte moderna do Estado. Uma outra coisa que fizemos foi a compra do prédio da Cinemateca de Lisboa. São coisas que não puderam ser destruídas porque já havia investimento de dinheiro e não se podia recuar. O que fizeram foi obliterar a origem. É impensável que na Cinemateca, que foi um prédio comprado com a minha assinatura, não haja uma referência que esta aquisição foi feita no Governo da Maria de Lourdes. Também não é aceitável que, em Serralves, na sua proto-história, não seja mencionado o mesmo facto. Outra coisa que deixei organizado, e que depois foi feito pelo João de Freitas Branco, foi uma planificação dos teatros nacionais, incluindo a compra do Teatro de São João. Mas isto foi bloqueado mesmo porque foi a tempo. Depois do 25 de Abril houve um painel em que 48 pintores, desde o Pomar ao Escada, pintavam um dos 48 quadrados que faziam o painel. Era um painel fascinante que era, no fundo, a história da pintura moderna portuguesa. Este painel estava instalado no centro de exposições de um pequeno museu em Belém. O director deste museu era o João Vieira, que me disse que as instalações eléctricas naquele local estavam muito precárias. Fiz um despacho para que o espaço fosse encerrado, para que pudéssemos fazer as reparações. O meu sucessor no cargo, como o fecho tinha sido um acto do Governo anterior, mandou abrir o local. O resultado foi que ardeu e o painel desapareceu. Isto é um exemplo anedótico, mas trágico. É pena porque algumas coisas podiam ter ficado melhor, e não ficaram. A planificação da rede nacional de teatros podia ter sido feita. De qualquer forma, o que isto significa é que existiu essa atitude de antagonismo em relação ao Governo da Maria de Lourdes Pintasilgo e do que ela representava. Isso também se manifestou uns anos depois, quando foi candidata à Presidência. Trabalhei com ela nisso e tive várias reuniões, mesmo com militares, e houve uma mudança de atitude porque não aceitavam a ideia de que uma mulher pudesse ser a pessoa que comandava as forças armadas. O que falta hoje em dia à cultura em Portugal? Sou um optimista. Se vivesse em Portugal, se calhar, irritava-me mais. Há sem dúvida mais gente que lê, há uma quantidade muitíssimo maior de gente que escreve. A maior parte é uma porcaria, mas a percentagem dos que têm nível não é, certamente, inferior ao que era. O que há, talvez, é uma grande confusão entre qualidade e quantidade. Tornam-se também grandes sucessos literários pessoas cuja obra não o merece. Mas isto é um fenómeno que acontece em muitos países. Sem citar nomes, se falarmos de escritores que são celebrados como grandes escritores, muitos deles não valem nada. Há outros, menos celebrados, e que são muito bons, mas os escritores excepcionais são poucos em toda a parte. O mesmo acontece na pintura, por exemplo. Há uma democratização da criatividade literária e artística, o que não significa que haja um abaixamento de nível. O que há é gente de baixo nível que produz e que dantes não havia. Se calhar, e sendo optimista, quantidade também pode gerar qualidade. Das pessoas que dantes não tinham acesso nenhum à cultura, agora há mais que o têm e que vão produzindo coisas que se calhar são boas e que, noutras circunstâncias, nunca teriam produzido. A minha atitude é muito mais positiva do que a dos meus amigos em Portugal. Há de tudo e o facto de haver gente que lê aquela péssima literatura de aeroporto, e que compra livros no supermercado, significa que pelo menos lêem. O que faz falta em Portugal é crítica literária. Paradoxalmente, no tempo do Salazar, os jornais portugueses tinham uma coluna de crítica literária. Não era só no Diário de Notícias, mas todos os jornais de Lisboa e do Porto tinham as suas páginas literárias, coisa que agora não existe. Começou por estudar Direito. Foi, mas não acabei o curso porque tive de sair de Portugal a meio. Depois da campanha do General Delgado, envolvi-me numa intentona, as pessoas começaram a ser presas e tive de sair. E como é que apareceu a literatura? Desde pequenino. A minha mãe gostava muito de poesia, lia-me poesia, fazia-me decorar “os boizinhos” do Afonso Lopes Vieira e eu comecei a escrevinhar poesia com uns 11 anos. Fazia umas rimazitas. Naquela altura fazia três coisas: escrevia poesia, andava de bicicleta e jogava futebol. A sua escrita é biográfica, especialmente a poesia. Os romances não são biográficos, com excepção de “Partes de África”, que tem elementos autobiográficos, mas também tem falsificações. Conto como se tivesse acontecido, mas não aconteceu. Dava-me jeito, em termos de narrativa, que tivesse acontecido, o que acabou por me dar problemas porque há algumas personagens que são fusões de possibilidades de ser. É o caso de um médico que é a fusão entre um médico abnegado que conheci e um médico corrupto que havia. Misturei os dois e os filhos do abnegado cortaram relações comigo. O inspector da PIDE que também aparece nesse livro e que acabou por salvar, na verdade, São Tomé, é também a fusão de dois que conheci. Também uso a primeira pessoa com muita frequência na minha narrativa e na minha ficção, mas continua a ser uma ficção. Ponho-me nesse hipotético Hélder Macedo a contracenar com gente que não existe. A estratégia aí é dar credibilidade à ficção, mas, por outro lado, torna fictício o narrador. Na poesia é diferente. Escrevo pouca poesia. Não sou um poeta que escreve habitualmente. Costumo escrever poesia em tempos de viragem. É uma coisa interna. A poesia é uma coisa muito íntima? É. E é necessário ter muita cautela para não nos envergonharmos em público. Estamos em pleno encontro da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL). Como é que vê este congresso, o primeiro a Oriente? Quem primeiro sugeriu que fosse em Macau, fui eu. Fui presidente da AIL, depois foram simpáticos e elegeram-me presidente honorário, que é uma óptima posição: uma pessoa manda bocas e não tem de fazer nada (risos). Sempre achei que era fundamental sair da Europa. Como presidente e com o Carlos André como secretário-geral, planeámos depois de um congresso em Oxford fazer uma coisa no Rio de Janeiro. Foi a primeira vez que o congresso aconteceu fora da Europa. Mais tarde, fez-se nos Estados Unidos e depois achámos que era importante fazer em África, e acabou por acontecer em Cabo Verde que, simbolicamente, estava muito bem. A Universidade tinha acabado de ser criada. Depois disso, o passo óbvio era o Oriente. Aí a minha ideia era de que, entre os dois sítios óbvios – Goa e Macau – a escolha fosse Macau, devido à atitude dos chineses. Enquanto em Goa a língua portuguesa foi obliterada tendo tido raízes muito mais fundas do que, alguma vez, teve em Macau, aqui é mantida. Não será muito desenvolvida, mas é mantida. É até é política oficial que podemos ver nos nomes das ruas, nos documentos oficiais. É assumidamente, uma das línguas oficiais e isso é uma atitude inteiramente diferente da atitude indiana. Seria estúpido não escolher Macau. Até como uma afirmação política em relação à Índia. Não é que em Goa tenham obliterado as línguas europeias. Não. O português foi substituído por outra língua colonial, o inglês. Ora, se se mantém uma língua colonial, porque diabo de razão vão destruir uma presença cultural que lá esteve durante 500 anos? Estão a chular a história de Portugal com os monumentos, com as igrejas, retirando a identidade que fazia parte daquela gente e daquela cultura, muito mais do que aqui em Macau. Estas são as razões negativas. Como razões positivas, quando cá vim há quatro anos, a minha ideia era, precisamente, negociar a hipótese de Macau. Fui recebido pelo presidente do Instituto Politécnico de Macau que acolheu imediatamente a ideia, fala um português perfeito, lê Camões e deu-nos condições extraordinárias. A proposta acabou por ser feita em Cabo Verde com muito boas condições. Pode não atrair tanta gente como outros congressos, devido à distância. Tivemos a desistência de umas 40 pessoas do Brasil, 15 dias antes de o congresso começar devido à crise, mas ainda assim, estamos com cerca de 150 pessoas. Na sessão de abertura, a presença do Governo foi notável. O desenvolvimento da língua portuguesa é, obviamente, parte de uma política chinesa. Terão as suas razões, mas a nós também dá jeito.
Isabel Castro Entrevista MancheteEntrevista | Carlos Ascenso André, director do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa do IPM Quem a viu, quem a vê. A língua portuguesa tem hoje uma importância em Macau que não tinha quando Carlos Ascenso André chegou ao território. Há quatro anos, a convicção dos decisores políticos não era um acto contínuo e os vários agentes do ensino do português viviam de costas voltadas. A realidade mudou, mesmo que não seja possível traduzi-la em números, diz o director do centro pedagógico do IPM, que traz por estes dias quase centena e meia de conferencistas para o Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] a primeira vez que se realiza no território o Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL). Qual é o significado para Macau? Tem desde logo um significado político, porque representa um reconhecimento do papel de Macau por parte da comunidade académica mais prestigiada do mundo no tocante aos estudos de língua portuguesa, e de literaturas e culturas de língua portuguesa. Claro que não foi por isso que Macau foi escolhido. Macau foi escolhido porque apresentou a candidatura. Fui ao XI Congresso em Cabo Verde, no Mindelo, apresentei e defendi a candidatura, e pareceu-lhes que as condições que Macau oferecia eram boas. Mas, em boa verdade, os decisores – os órgãos executivos da associação –estavam com a candidatura de Macau. Na mente deles existia claramente esta percepção da importância de Macau. Houve aqui um momento chave, quando há três anos convidei Hélder Macedo, que é o presidente honorário da associação, a vir fazer uma conferência a Macau. Ele apercebeu-se do potencial e do papel do território no que toca à língua portuguesa. E foi aí que ele teve a ideia – porque, em boa verdade, esta ideia acabou por ser dele. Estávamos um dia a jantar e ele desafiou-me a organizar aqui o congresso. Já tinha deixado a associação há uns anos e disse-lhe que ia pensar nisso, mas como o levei, umas horas depois, a cumprimentar o presidente do Instituto Politécnico de Macau (IPM), ele voltou a falar no assunto. A partir daí, foi uma bola de neve, começou a crescer e deu este resultado. Mas penso que a primeira grande importância é essa: reconhecer o papel de Macau. A segunda grande importância será chamar a Macau e ao Congresso da AIL académicos chineses, algo inédito neste tipo de iniciativas. É fazer, de facto, este cruzamento, porque é a primeira vez que acontece no Oriente, mas também é a primeira vez que professores universitários da China participam nos congressos internacionais de Lusitanistas. Não posso falar do passado porque não conheço toda a história de Macau do ponto de vista académico, mas também devo dizer que será provavelmente um dos maiores encontros de carácter científico ligados à língua portuguesa que alguma vez aconteceram no território. E isto é verdadeiramente significativo. Para quem está de fora deste tipo de encontros, o que é que se discute efectivamente? Qual é o verdadeiro sumo que se extrai daqui? Estamos a falar de Humanidades em geral. Como dizia um dia Eduardo Prado Coelho, a utilidade das Humanidades é não terem utilidade nenhuma. Escreveu isso num ensaio e nunca mais me esqueci desta frase porque achei-a muito significativa. O que estas pessoas vêm fazer é trazer resultados das suas investigações. Estes encontros são verdadeiramente produtivos. Ninguém apresenta aqui uma comunicação sem que o resumo tenha sido previamente submetido a uma avaliação cega por pares. Para que alguém apresente uma comunicação aqui, ela teve de ser validada. Normalmente são o resultado de investigações em áreas que dizem respeito à língua portuguesa ou aos estudos relacionados com a língua portuguesa. Há sobre cinema, literatura, a conferência de abertura foi sobre cultura, por parte de Elias Torres Feijó, que é um dos grandes professores de assuntos portugueses em Espanha. Há sobre linguística, naturalmente, e depois há várias sobre questões sociais, porque isto mexe com todos os assuntos que tenham quer ver com a língua portuguesa, ou literaturas e culturas dos países de língua portuguesa. E nesta coisa das culturas dos países de língua portuguesa, cabe o cinema, a sociedade, a política, a história recente… Curiosamente, por ser em Macau, há algumas comunicações que têm que ver com este entrecruzar do Ocidente e do Oriente, ou seja, as relações entre o Ocidente e o Oriente, e o papel de Macau nessas relações. Estamos a falar de um total de 48 sessões paralelas. Como cada uma tem, pelo menos, três comunicações, estamos a falar de muitas comunicações ao mesmo tempo. As pessoas distribuem-se por salas e vão ouvir as comunicações, e vão discuti-las. Isto é um congresso científico. Todas estas comunicações serão fixadas mais tarde? Em princípio serão publicadas, não num volume de actas. A associação já deixou, há muitos anos, de adoptar o princípio da publicação do volume de actas, porque é muito caro e depois não tem saída, não interessa a ninguém. É preferível fazer edições digitais e separadas por temas. Todas estas comunicações serão publicadas ainda este ano ou no próximo, mas em volumes temáticos. Sou dos fundadores da associação. Lembro-me que o primeiro volume de actas que publiquei, depois do primeiro congresso em 1984. As provas tipográficas foram todas corrigidas por mim. Estamos a falar de 500 ou 600 páginas de livro com temas que vão desde a história medieval, passando pela história das navegações, literatura brasileira, literatura galega… Depois ninguém quer aquele livro porque tem duas coisas que lhe interessam, mas tem 80 que não lhe interessam nada. A melhor solução, normalmente, são os volumes temáticos. Está cá há quatro anos. A afirmação do papel da língua portuguesa deu o salto de que estava à espera? Deu. Há grandes avanços. Podem não se medir em números, mas não estou muito preocupado com a estatística. Não sou daqueles que está a olhar para os números porque acho que o trabalho que se faz neste domínio só se sente daqui a cinco ou dez anos. Não é possível saber, no imediato, se a mercadoria foi vendida. Agora, vejo que é cada vez maior o empenhamento de quem tem nas mãos a decisão política em relação às questões do português. É particularmente visível que, quem tem de decidir, tem tomado posições muito claras em relação ao papel que Macau tem a desempenhar no que diz respeito ao português. Refiro-me no caso concreto a Macau, a quem exerce lugares de decisão em Macau – desde o Executivo, nomeadamente o secretário que tem esta responsabilidade, Alexis Tam, aos vários órgãos da Administração, nos diversos patamares onde isto tem de ser decidido – e refiro-me ao Governo Central. Não há dúvida de que aquilo a que assisti nos últimos quatro anos já não é falar disto de vez em quando, é uma insistência cada vez mais clara e nítida nesta missão de Macau no que toca ao diálogo com os países de língua portuguesa. Claro que tem que ver muito com as economias emergentes. Tem que ver com a crença que existe – e do meu ponto de vista é fundamentada – do crescimento de Angola, Moçambique e Brasil. Hão-de sair desta situação em que se encontram e quem souber estar a ocupar as posições agora, estará na grelha de partida. A China percebeu claramente isso, e percebeu que Macau tem esta herança e esta capacidade de fazer que provavelmente mais ninguém tem. Há uma grande diferença, por exemplo, entre Macau e a Índia e Goa. Dizem que, no próximo ano, vai haver um grande congresso de lusofonia ou de língua portuguesa em Goa. A grande diferença entre o que estamos a fazer agora, desde ontem, e aquilo que vai acontecer em Goa é que aqui isto é consequente. Há empenhamento político, e quem manda aqui põe meios e recursos ao serviço das conclusões que resultarem deste tipo de encontros. O que se faz em Goa é um fenómeno político que se esgota em si próprio. Passado o tempo do congresso, não vai acontecer nada. Nota-se também uma diferença entre quem tem a responsabilidade do ensino da língua portuguesa em Macau, que passa por uma união que não existia, até com a criação da Associação de Estudos de Língua Portuguesa da Ásia. Passa pela associação e por pôr as pessoas a conversar. Este ano aconteceu uma coisa muito interessante e, não sendo particularmente relevante do ponto de vista científico, teve esse significado. Houve aqui um congresso sobre literatura e filosofia, uma iniciativa que veio de fora, e foi-nos perguntado se estávamos disponíveis para a acolher. A iniciativa vinha de Portugal, a pergunta era feita ao IPM, também tinha sido feita à Universidade de Macau (UM) e à Universidade de São José (USJ). Enquanto andávamos nisto, tomei a decisão de contactar as minhas colegas, tanto na UM, como na USJ, e perguntar-lhes por que não discutíamos isto em conjunto. E, de facto, discutimos e organizámos em conjunto. Embora a comunicação social tenha dado notícia, passou mais ou menos despercebido o facto de que as pessoas da UM fizeram as suas comunicações no IPM, as pessoas do IPM fizeram na UM, as pessoas da USJ fizeram num lado ou noutro. Cruzámos os intervenientes. Isto nunca tinha acontecido em Macau. As instituições eram quintas que funcionavam em circuito fechado e isto nunca tinha acontecido em Macau. Aquele programa foi concebido numa reunião entre mim, Inocência Mata e Maria Antónia Espadinha. Sentámo-nos à volta da mesa, fizemos um programa e decidimos, ao fazê-lo, que tinha de ser assim. As pessoas não iam falar na sua própria casa, tinham de falar na casa do vizinho. Este cruzamento é vantajoso. Precisamos de pôr as instituições de Macau a cooperar. No IPM, assinámos um protocolo com o Camões, há uns meses. Mas esse protocolo abrange o Instituto Português do Oriente (IPOR). A relação que existia muitas vezes entre instituições e o IPOR era uma espécie de concorrência que não faz qualquer sentido, porque o objectivo e a acção do IPOR são fantásticos, mas não são os mesmos das instituições de ensino superior. Nós trabalhamos no ensino superior e o IPOR não. Há aí uma fronteira clara. Só ganhamos todos em cooperar uns com os outros. O facto de fazer um protocolo e abranger o IPOR não quer dizer que isto já esteja a dar resultado. Mas não tenho pressa, vamos lá chegar. A interacção tem de existir. A associação vai ser isso. Ainda só está no papel, já foi feita a escritura. Tem de passar o Verão para nós – eu, João Laurentino Neves e Fernanda Costa – passarmos a pasta a órgãos eleitos. E não somos nós. Tem de haver pessoas que peguem na associação. Mas passamos a ter uma associação que federa toda a Ásia. E isto é algo de novo em Macau, é um espírito novo. Tem de fazer o seu caminho, não tenhamos pressa, mas é um espírito novo. Como é que foi este ano lectivo no Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa? Foi um ano muito produtivo. Multiplicámos por dois o número de acções no Interior da China. Fizemos muitas mais acções do que fazíamos – também temos mais docentes e mais recursos. Quanto ao nosso número de publicações, chegaremos ao final do ano com dez livros publicados. Ganhámos o peso da responsabilidade do ponto de vista das publicações quando um livro que publicámos no ano passado, “O Delta Literário de Macau”, de José Carlos Seabra Pereira, ganhou o mais prestigiado prémio de ensaio em Portugal, o Prémio Eduardo Prado Coelho da Associação Portuguesa de Escritores. É um livro nosso, temos de assumir isso. O livro é da autoria de José Carlos Seabra Pereira, é um livro nosso, que foi escrito porque o convidei a estar em Macau durante um ano. Disse-lhe que tinha de dar aulas a apenas uma ou duas turmas, uma coisinha de nada, mas que tinha de escrever um livro sobre este assunto. E ele aceitou o repto. Temos uma fortíssima responsabilidade naquilo. Ganhar um prémio é, para nós, muito significativo. Entretanto, aquilo que ganhámos com esta consciência foi de que se o Interior da China precisa de materiais, temos de produzi-los. Já começou a série de produção e daqui até ao final do ano civil vão sair mais seis ou sete. Um saiu agora, sobre o ensino de fonética com canções. Utilizamos canções portuguesas para ensinar fonética, uma metodologia nova. É bom que Macau tenha consciência de que há coisas pioneiras que se vão fazendo aqui.
Isabel Castro PolíticaAlmeida Ribeiro | Leong Veng Chai escreve ao secretário [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] deputado Leong Veng Chai enviou uma carta ao secretário para os Transportes e Obras Públicas a propósito da sinalização da Avenida Almeida Ribeiro. Na recta final da legislatura, numa altura em que começa a escassear o tempo para o Governo responder a interpelações escritas, o gabinete de José Pereira Coutinho e de Leong Veng Chai parece ter preferido esta forma de se manifestar junto do Executivo. No ofício agora enviado, o deputado dá conta de queixas sobre as placas informativas de trânsito no corredor exclusivo para transportes públicos na principal artéria da baixa da cidade. Há mais de sete anos, recorda Leong Veng Chai, a Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego colocou placas de LED na via em causa que, aos domingos e feriados, não pode ser percorrida por veículos particulares. “Contudo, sem auscultar os cidadãos, o Governo resolveu retirar as placas de LED que tinham sido instaladas”, contextualiza. De acordo com as “centenas de queixas de cidadãos” que chegaram ao gabinete do deputado, a remoção das placas resultou na “falta de clareza” e na ausência de sinalização visível. “Actualmente, há apenas um sinal de proibição (excluindo autocarros, táxis, triciclos e veículos de concessão) para substituir as placas de LED, induzindo os cidadãos a violar as regras de trânsito.” Recordando que as placas originais tinham como objectivo transmitir “com clareza e exactidão” quais as limitações impostas ao trânsito aos domingos e feriados, Leong Veng Chai pede a Raimundo do Rosário para que seja de novo colocada sinalização deste género, com a maior brevidade possível. “As placas com instruções claras são extremamente eficazes e têm uma importância significativa para a boa execução das medidas de trânsito rodoviário em Macau”, remata o deputado.