Os hipócritas

1. [dropcap style=’circle’]I[/dropcap]sto era tudo muito mais fácil se não houvesse hipocrisia política – pelo menos, ficávamos a saber com o que é que podemos contar. Mas não: a política é hipócrita e de cada vez que se fala do assunto, que não é novo, vem a ladainha do costume. Eles gostam muito de nós, eles todos de nós todos, eles não mudaram as regras, não há qualquer alteração em relação ao passado, continua tudo na mesma, nós é que andamos a sonhar com uma nova situação, com dificuldades adicionais que só existem na nossa imaginação.
Mentira. Nos últimos anos, tem sido cada vez mais difícil contratar trabalhadores em Portugal, porque o processo de autorização de residência passou a ser, em muitos casos, uma impossibilidade. Por várias razões.
O quadro mais optimista é aquele em que a residência é autorizada, mas a demora é tão grande que – a não ser que o futuro contratado se encontre completamente desesperado ou queira muito, mas mesmo muito, vir para Macau – quando os documentos estão prontos o candidato ao cargo já desistiu. No outro cenário, a autorização de residência não chega a ser dada, uma recusa que, frequentes vezes, é feita com fundamentos nada éticos e, nalguns casos, muito pouco em conformidade com a lei.
Um dos argumentos para negar a residência a portugueses é o salário que vêm para cá ganhar. Entendem os responsáveis pela matéria que com menos de 25 mil patacas não se vive, não se vive nada bem, e eu fico sensibilizada com as autoridades da RAEM, que querem que os portugueses que se expatriam estejam muito bem na vida, não querem que de Macau sigam cartas de gente remediada que escreve à família a lamentar a vã emigração. still-of-will-smith-and-jaden-smith-in-the-pursuit-of-happyness-large-picture
Sucede que esta exigência de ordem salarial não bate certo com nada, não tem rigorosamente nada que ver com a realidade de Macau. Ainda esta semana, uma entidade governamental contava que, de acordo com um inquérito feito aos recém-licenciados de Macau, muitos deles entram no mundo do trabalho a ganhar entre 10 mil e 14 mil patacas. Não consta que tenham morrido de fome.
Poder-me-ão dizer que são miúdos que contam com o apoio da família – argumento válido –, mas terão dificuldade em justificar por que razão não se exigem condições salariais melhores para os trabalhadores não-residentes que, ao contrário daqueles a quem é concedida a residência, estão impedidos de acumular trabalhos e remunerações, condenados a viver com as 3500 patacas mensais que a lei dita, se o patrão não for mais generoso.
O requisito salarial é uma hipocrisia. Candidatos a trabalho especializado em Macau, por mais cândidos, puros e inexperientes que possam ser, têm noção para onde vêm, sabem do custo das coisas, vão à Internet, fazem amigos no Facebook e não fazem as malas ao engano.
Há áreas em que é impossível a sobrevivência da actividade sem a contratação a Portugal. O jornalismo é uma delas – e é o sector que conheço bem, razão pela qual o uso aqui como exemplo. Não há órgão de comunicação social em língua portuguesa que possa sobreviver sem jornalistas de língua materna portuguesa.
Sucede que, ao contrário do que algumas autoridades de Macau possam pensar, o jornalismo – aqui e em qualquer parte do mundo – é uma actividade que não dá para enriquecer. A comunicação social é um negócio pouco rentável, quer para os investidores, quer para quem lá trabalha. A hora de um jornalista vale pouco. É assim.
Em Macau, o modelo empresarial dos jornais é especial e há razões de ordem política para a sobrevivência dos media em português, que se faz em moldes muito específicos, sem um mercado que os sustente e sem uma ideia de mecenato em defesa da língua portuguesa que, por essa diáspora fora, é comum encontrar. Os jornais existem com redacções que cabem num carro e é assim que se fazem. Não vendem fichas, nem lavam ouro e diamantes. São empresas pequenas que vivem com as mesmas dificuldades de muitas outras empresas pequenas, com a diferença de que não podem ir contratar às Filipinas por 3500 patacas e os recém-licenciados de Macau, a 10 mil por mês, não lhes resolvem o problema.
Um dia destes, com esta história de tornar difícil a vida aos portugueses que querem vir para trabalhar para Macau, deixa de haver gente em áreas específicas, porque uns reformam-se, outros cansam-se, outros desistem de cá estar e os outros, os outros que os deveriam substituir, estão à espera num aeroporto a Ocidente de uma autorização de residência que jamais chegará. Apesar de nada ter mudado e sermos nós, os que cá estão há mais tempo, que andamos a imaginar dificuldades. E hipocrisias.

2. Ainda sobre o trabalho e o direito ao trabalho. Numa cidade em que há tanta preocupação com o que ganham ou deixam de ganhar os emigrantes portugueses, chumba-se – mais uma vez – um projecto de lei sindical. A preocupação é só mesmo de alguns e destina-se apenas a meia dúzia. De nada adianta este tipo de legislação – um bicho-papão para o grande empresariado local – estar previsto na Lei Básica.
Não vale a pena gastar linhas neste jornal a tentar analisar o que ali se ouviu, o que foi dito por alguns deputados, os suspeitos do costume. Há coisas em que Macau me envergonha e de que Macau devia ter vergonha.

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