A liberdade prometida

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]inte anos parecem muito tempo mas estes que passaram desde a transferência de soberania de Hong Kong até ao presente fugiram num ápice. Para isso terá contribuído certamente o desenrolar compulsivo, quase maníaco, dos factos. Estes, de tal modo se sucederam, que por vezes se atropelaram e mutuamente atiraram para o caixote do lixo da História. O século XXI tem sido fértil em acontecimentos, em momentos que, noutras eras, teriam sido incontornáveis, disruptivos. Agora não: existe esta sensação de que a vida continua igual, orientada pelos mesmos tiques pois a humanidade não consegue viver no sobressalto diário que os media hoje proporcionam.

Insinuou-se a gripe das aves, eclodiu a crise asiática, a mãe pátria salvou as finanças da praça financeira. Nos EUA ruíram as torres-gémeas, semeou-se a guerra de novo pelo mundo. Cresceu desmesuradamente Macau, o fosso entre ricos e pobres alargou-se consideravelmente na ex-colónia britânica. Veio outra crise, de um tamanho tal que a Grande Depressão parecia agora ínfima. Em Hong Kong, os guarda-chuvas amarelos ocupavam durante meses as ruas e impediam o sufrágio universal condicionado.

Muitas vezes me pergunto se, caso fosse realmente o interesse de Pequim controlar os assuntos de Hong Kong, Joshua Wong e outros activistas radicais não seriam seus agentes. Isto porque, de modo quase perfeito, impediram que a RAEHK desse um passo fundamental para uma realização democrática mais completa: o sufrágio universal condicionado. Como se sabe, a proposta de Pequim passava primeiro por admitir uma sufrágio universal. E, em segundo lugar, que os nomes merecessem a sua aprovação, isto porque, segundo o léxico oficial, teriam de ser patriotas.

O primeiro aspecto não é de desprezar. Um sufrágio universal é algo de onde dificilmente se recua. E, correndo tudo bem, ou seja, se Hong Kong não afrontasse a China, é de admitir que a cidade poderia gozar de um sufrágio sem condicionantes dentro de uma década. Assim não o quiseram os activistas dos guarda-chuvas amarelos. Que interesses realmente defendem é difícil de saber, mas os resultados que conseguem vão pouco além de um acentuado gosto pela vitimização mediática. E, claro, de um retrocesso no processo democrático.

Os activistas dos guarda-chuvas amarelos queriam, num golpe, passar de um regime colonial, onde a representação democrática eleitoral directa era mais fraca do que, por exemplo, em Macau, para uma democracia eleitoral de modelo ocidental. Não aceitaram um passo intermédio e no mesmo gesto queimaram uma série de pontes que permitiam um diálogo contínuo entre as partes. O comportamento dos deputados eleitos, quando do juramento, foi lamentável. Traíram o país ou enxovalharam-no, pois mesmo não se sentindo chineses, nem por isso deixavam de estar na China e certas atitudes não são admissíveis; mas sobretudo traíram os seus eleitores que assim se quedaram sem representantes no parlamento. Finalmente, com tanta fanfarra e pouca votação, proporcionaram a Pequim o congelamento sine die das reformas democráticas.

A democracia é complicada em Hong Kong não por causa da liberdade de expressão, dos direitos humanos ou dos animais. A questão é, claramente, outra. O receio de mudança, de perda de controlo, existe mais do lado dos homens fortes da cidade, do que por parte de Pequim. Os tubarões do imobiliário e da navegação, os mestres das finanças, os donos dos grandes negócios, conluiados com interesses no continente, esses serão os que sobretudo receiam uma sociedade mais justa, mais igualitária, menos dividida, resultado eventual do voto popular.

Em Hong Kong, a estrutura económico-política é ainda herdeira dos impérios, chinês e inglês. O maoísmo vizinho pouco ou nada a perturbou. É certo que, apressadamente e à última da hora, os ingleses lembraram-se de inocular o vírus dos gritos pela “democracia” e “liberdade”, depois de 140 anos de feroz garra colonial sobre a população chinesa da cidade. Ainda nos 70 Bruce Lee destruía, num dos seus filmes, uma placa onde se lia “Proibida a entrada a chineses e a cães”. É também por isso revoltante ver bandeiras britânicas nos protestos do 1 de Julho…

O despertar tardio dos britânicos para a democracia em Hong Kong retirar-lhes-ia a legitimidade que a China lhes concedeu com a assinatura da Declaração Conjunta. No entanto, também graças a este documento (para além, creio, da própria vontade de Pequim), a Lei Básica não deverá sofrer alterações que tornem inoperacional o segundo sistema. E o Reino Unido tem o dever de olhar para o que acontece e verificar o cumprimento dos acordos, pelo menos do que constitui o seu espírito mais íntimo. A China, como mãe-pátria, tem o dever de não assustar os seus filhos, sobretudo quando isso não parece de todo necessário, como no caso dos livreiros.

Por Macau ainda nos banhamos na liberdade prometida.

5 Jul 2017

A ausência como centro

Pablo Picasso – “Auto-retrato”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]miúde o exilado se debate com as questões do abandono e da ausência. Situado na posição ambivalente de quem abandonou e se sentiu abandonado, é na experiência da ausência que, finalmente, a sua desterritorialização se constrói e edifica. É à volta desse vazio, tomado quantas vezes por absoluto, que o exilado alicerça novas identidades e se redescobre, enquanto humano e errante.

Não se tratará de uma ausência particular mas de um conjunto intrincado, parte inconsciente ou com dificuldade denotado, que constitui uma espécie de vórtice — Maelstrom — em cada singularidade, impregnando-a de um movimento centrípeto, alucinado, mas cujo centro se afasta, ao invés de se aproximar.

É por isso que encaramos essa ausência com uma estranha tranquilidade, como se estivéssemos a assistir à nossa morte, no momento em que ela consiste claramente numa metamorfose. Concretamente, não conseguimos deixar de girar em torno dessa ausência, mas ela não exerce uma atracção fatal: pelo contrário, erige-se como um horizonte que contemplamos com uma doçura cada vez mais açucarada, à medida que paulatinamente nos afastamos.

Contudo, bem o sabemos, nenhuma distância realmente apagará esse sentimento de ausência que nos assombra. Seja ele fantasmático ou não, faça ele parte de uma qualquer realidade ou meramente se ancore numa imaginação perturbada, a verdade é que esse sentimento resiste ao tempo como se de um mal genético se tratasse. Nunca definitivamente se esvai, nunca de todo se apagará. É mal incurável e bem supremo que singularmente nos distingue. Espécie de maldição irrevogável e bendita, caminho sem retorno para o celeste inferno de uma percepção distanciada do mundo.

Procurei sempre esse olhar. Encontrei-o num título de Claude Lévi-Strauss e nas tropelias poéticas de Rimbaud. Fiz um curso para o compreender. Mas nunca, de facto, em mim o experimentara até me deslocar aos confins da minha civilização e nas suas margens ele em mim se entranhar. Percebi que esse olhar distanciado não se aprende de outra maneira que não seja pelo exercício da ausência, pela intimidade solitária do pensamento, nas volutas espantadas de raciocínios bárbaros, nas delícias de concretos paradoxos, excrescências de logos, numa palavra, no exercício diário do exilado.

Porque nunca algo se torna tão presente, tão importante, como quando é marcado pela ausência. Como se esta admitisse a presentificação de forma suave, quase ternurenta, do que mantemos encerrado nas caves desse seu castelo, cedendo-lhe espaço para contemplar, analisar, criticar, julgar; finalmente, capazes de entender e amar.

Ele há exilados na distância, na geografia, mas também os há que nunca saíram do mesmo lugar. Eles sabem do que estou a falar. De uma saudade de infinitamente abraçar, de amorosamente compreender. Dessa percepção distanciada do mundo, da certeza de não lhe pertencermos por há muito o termos abandonado. Primeiro, a medo… depois, por força das circunstâncias… doutras vezes, a maior parte delas, por sermos mesmo assim e tal carregarmos como destino ou maldição.

O exilado não se contorce, nem desespera: há muito que o desespero é seu fiel companheiro e a angústia noiva eterna, à sua espera num altar. É-lhe ridícula a esperança pois, intimamente, sabe que os outros dias não hão-de voltar. Esses dias que nunca realmente aconteceram, o vinho que nunca foi doce e as raparigas que nunca foram disponíveis e amáveis.

O exílio é um estranho banho de realidade, na qual todos os dias mergulhamos sem a reconhecermos e dotados de míseras pistas de leitura. É então que se abre o universo e fazem sentido as facetas múltiplas que o compõem. É então que advém um amaciado entendimento, não discursivo, das coisas. Das que tenuemente existem e das que não existem de todo. E é então que o exílio se transforma numa espécie de cidadania de um mundo belo, cruel e indiferente.

26 Jun 2017

As eleições do nosso contentamento

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos em ano de eleições e a coisa promete alguma confusão. Trata-se de um momento especial na RAEM, não tanto por causa do acto eleitoral em si mas por desvelar algumas das características nem sempre à superfície deste território à beira do Rio das Pérolas pespegado.

Começaremos então, porque assim nos arrasta a mão, por desvalorizar as eleições enquanto tal, ou seja, como eleições cujo objectivo é, normalmente, a escolha dos representantes que nos governam. Aqui é precisamente o contrário. O povo escolhe os representantes que o desgoverna. Na realidade – pura, crua e fedorenta – quem governa serão outros ou, pelo menos, assim parece. Os nossos ilustres deputados, quando muito, na maior parte dos casos, governam-se a si mesmo. E isto que poderia parecer estranho ou até despropositado, aqui faz todo o sentido.

É que em Macau é difícil implantar o conceito de bem comum. Cada um puxa a brasa à sua sardinha e a ver se fica com o fogareiro. Cada família, cada clã, cada etnia, está fundamentalmente preocupada consigo e os outros pouco existem. A teoria (selvagem e não dita) é que cada um tome conta de si e ninguém de todos que isso – grunhem – é o comunismo e isso é lá para o continente e não serve para estes exemplares capitalistas que por aqui pululam e fazem fortuna entre o imobiliário e os derivados do jogo.

No acto eleitoral, a populaça vai votar para uma dúzia de lugares eleitos de forma directa (mais ou menos um terço da coisa), a ver se se entretém. Mas, nesta realidade de antanho, as pessoas só vão realmente votar porque são arrebanhadas, conduzidas, alimentadas e, finalmente, despejadas junto às urnas com indicações precisas e irrevogáveis. Por elas ficavam em casa ou no trabalhinho que é muito bonito. Mas o melhor é ir botar o voto, não vá o chefe zangar-se. Depois os resultados são o que se sabe. Enfim, adiante.

O que realmente interessa neste acto –  nos preliminares que tanta discussão acendem – é o que vem à tona, assim como que empurrado por anos ou décadas de omissão. É ver, por exemplo, a reacção impulsiva de Pereira Coutinho perante o discurso de Jorge Valente no jantar anual do Gabinete de Ligação. O homem forte da ATFPM não resistiu ao protesto, tal como o jovem empresário não resistiu ao apelo do palco e do microfone, ainda que certamente sabendo estar a cometer um acto passível de crítica. Ambos fizeram bem: a política é mesmo assim.

Contudo, se pensarmos estrategicamente no assunto, o que Pereira Coutinho fez foi algo contrário aos seus interesses, na medida em que Jorge Valente é praticamente um desconhecido nestas andanças e o protesto do deputado emprestou-lhe pública notoriedade. Aquele que era um jovem macaense, parceiro de Melinda Chan, transformou-se num político de futuro interessante, de quem se fala, que Coutinho teme (?!), eventualmente bem visto no Gabinete de Ligação, e até ficámos a saber que fala mandarim!

Mas o que é interessante neste caso é a emergência de um potencial debate, a esperança que luza uma ideia, que se destaque uma opinião, que se revele uma estratégia, quiçá uma visão.

Sim, queremos sangue e queremos pombas. Queremos a comunidade dividida nas opiniões mas unida num óbvio rumo. Queremos que se esgadanhem por nós. Que se empenhem na demonstração da extrema utilidade do nosso voto. E, acima de tudo, que nos falem ao coração. É disso que a malta gosta… quando não desgosta que esta gente é muito difícil…

Outro canto deste micro-universo eleitoral é aquele onde se desenrola o combate de boxe entre velhos e novos “democratas”. Ng Kuok Cheong e Au Kam San partiram definitivamente a bilha onde se acumulavam pessoas com agendas muito diferentes. Pelos vistos, pretender “directas já!” não chega para juntar os cacos. Poder-se-ia argumentar que o choque é geracional, mas o argumento cai por terra quando damos por homens como Paul Chan Wai Chi, um sexagenário, do lado dos jovens e os “tradicionais” do lado dos outros.

A questão é certamente outra. Os problemas de Hong Kong, as ligações específicas de cada membro e mesmo uma ideia diferente de sociedade estarão por detrás desta implosão da Novo Macau. É com alguma curiosidade que se aguarda por eventuais debates entre Scott Chiang, o homem a quem maltrataram o coração, e a dupla Ng-Au, de modo a compreendermos a dimensão da ruptura e o sentido de novas filiações.

Enfim, isto promete. Não o que devia prometer, mas promete. Dá para escolher o lugar, preparar o lanche e esperar para ver. O espectáculo promete ser divertido.

19 Jun 2017

António Conceição Júnior: “Sou religioso no sentido mais livre do termo”

Faz este ano quatro décadas de um percurso criativo que vai da moda à pintura, passando pela fotografia. António Conceição Júnior reflecte sobre o caminho andado e o que está para vir

[dropcap]4[/dropcap]0 anos de carreira, grande parte deles passados em Macau, embora tenha conhecido algumas “aventuras” no estrangeiro. Que diferenças fundamentais encontrou e de que modo podem elas ter um determinado papel na produção artística?
Não chamaria de carreira ao meu percurso, mas antes de vivências. Macau foi fundamental para a minha consolidação como criativo. Olhando para trás concluo que fui sobretudo criativo, quer no Museu, quer nas várias áreas de design em que me envolvi. Macau proporcionou-me momentos excelentes, enquanto as minhas experiências estrangeiras em Portugal, quase empre associadas a Macau – na grande exposição “Macau 400 Anos de Oriente” inserida na Quinzena de Macau na Fundação Gulbenkian em 1980, na Coordenação das acções de Lançamento da Missão de Macau em Lisboa em 1990, entre as quais realizei a minha primeira apresentação na área da Moda, e depois na Europália em 1991 foram muito enriquecedoras, porque sempre que me foi dada carta branca, liderando projectos ou acções, estes correram muito bem. Retribuí sempre com o máximo esforço e dedicação à confiança em mim depositada. Estas vivências vieram reforçar uma sensação de confiança no modo como liderei esses projectos. Comecei muito cedo, aos 27 anos a propôr ideias e liderar projectos e quando não sou eu, confesso que sinto alguma dificuldade em me integrar porque sempre tive ideias próprias.

Nos anos 80, refundou o Museu Luís de Camões e lançou o projecto do Complexo Cultural, que não chegou a avançar. Quer explicar a ideia central desse projecto? E será que hoje faria sentido criar uma instituição desse tipo?
Um esclarecimento: O Museu Luís de Camões foi criado em 1960. Sucedi ao seu primeiro director, Luís Gonzaga Gomes, em 1978, mas fui o primeiro a tempo inteiro. Tendo regressado a Macau em 1977, o então Governador Garcia Leandro contactou-me a pedir que analisasse o panorama cultural de Macau e procurasse uma forma de divulgar culturalmente o território. Lembro que, nesses tempos, Macau não dispunha sequer de uma galeria de exposições. A resposta, após a ponderação necessária, foi que eram precisos instrumentos e que um Centro Cultural era indispensável para uma abordagem abrangente, integradora, supra-linguística, da questão cultural. O projecto ficou latente e a minha energia canalizou-se para a reformulação do próprio Museu, enquanto suporte e espaço para os artistas plásticos de Macau. Foi nessa altura que foram assinados os primeiros acordos de cooperação com o Hong Kong Arts Centre e com a Fundação Calouste Gulbenkian. Mais tarde, o Governador Carlos Melancia nomeou-me seu assessor para a cultura e convidou-me para dar forma a um Centro Cultural. Estávamos em 1988 e, nessa altura, mudei o conceito para Complexo Cultural, tendo como base aquilo que hoje se chama de “sustentabilidade”. Incluía um hotel, um centro de convenções e uma Escola de Artes, aberta não apenas a Macau mas, após estudo feito, também ao Sudeste Asiático, o que permitiria não apenas uma interactividade entre os diversos componentes do Complexo Cultural como um intercâmbio entre os alunos de diferentes origens. Por volta de 2008, fui encontrar em Xangai um Centro Cultural com um projecto idêntico, o que mais consolidou a minha convicção de que estava certo. Hoje faria sentido um Complexo Cultural se não existisse o actual Centro Cultural. Tal como tive ocasião de dizer ao último Governador de Macau, que achou então o meu projecto demasiado ambicioso, não se faz um Centro Cultural para menos de 50 anos…

Ao longo destes anos ressalta, nos numerosos artigos que escreveu, o conceito de cidadania, a que parece atribuir uma importância singular. O que é para si a cidadania e de que modo a vivência de Macau serviu para apurar esse conceito?
Tive consciência de que Macau tinha a dimensão de uma cidade-piloto onde se poderiam realizar coisas fantásticas, quando regressei e dei início ao meu trabalho no Museu. Estávamos sob administração portuguesa, sendo a maioria da população chinesa, com muita gente de passagem, oriunda quer de Portugal quer da China. A consciência de pertença à cidade era algo que importava reforçar, fixar. São de então os primeiros projectos de classificação do património, a que o arquitecto Francisco Figueira tanto se dedicou e com quem tive o prazer de colaborar, são dessa altura as primeiras campanhas de limpeza da cidade (por acaso é meu o logo e o slogan “cidade nossa, cidade limpa”que ainda hoje usamos), são de então os primeiros encontros de artistas, o aparecimento dos primeiros jornais com artigos de reflexão sobre a cidade, etc, etc. Com o tempo, e sobretudo na década de 1990, o conceito de cidadania impunha-se com mais urgência e importância, no sentido de assumpção de todos os direitos e deveres de e para com a cidade. Era fundamental reflectir sobre a consciência cívica e o papel que cada um tinha a desempenhar neste processo. Eu, ligado ao então Leal Senado e responsável pela política cultural da Câmara, estava intrinsecamente ligado à vida da urbe, encontrando na Cultura a resposta para a Cidadania.

O que acha do actual momento cultural da cidade? Somos mesmo uma Cidade de Cultura ou não passa de um slogan?
Todas as cidades são portadoras de cultura. O slogan dos anos 1990 é uma redundância. A cidade de hoje é culturalmente mais dinâmica, está dotada de mais infra-estruturas. Há cerca de 25 museus, o Centro Cultural tem uma actividade bastante intensa no que toca a espectáculos e há mais exposições. Abriu uma Cinemateca. Abriram bibliotecas em diversos pontos da cidade facilitando o acesso à leitura. Há lançamentos de livros, há debates, há Fundações que têm uma programação intensiva, há jornais e revistas como nunca houve.

A sociedade civil tem feito alguns eventos de muito interesse como a “Rota das Letras”, “This is My City”, o Albergue tem feito também inúmeras exposições. Questiono, porém, qual a fatia da população que a tudo isto acede e que identifica como seu, como necessário, como imprescindível. Está a ser feito um esforço para a elevação do nível cultural da população, mas penso estarmos ainda longe do desejável…

E na comunidade macaense, além do minchi e do chupa-ovo, o que se pode passar?
Sinceramente, não sei dizer qual será o seu futuro. Penso que, mesmo sendo pequena, deve ser considerada indispensável. A comunidade tem mostrado capacidade de se organizar em diferentes Associações, o que para mim revela a sua vitalidade, seja para a “comisaina” ou para outros fins que a agrega enquanto grupo identitário. A autenticidade deste sentir, pensar e estar na cidade enriquece o tecido social. Não nos esqueçamos de que, a meu ver, a comunidade macaense, de que orgulhosamente faço parte, é uma nação de indivíduos com histórias genéticas todas diferentes, mas unidas pela ligação umbilical a Macau.

Tem espraiado a sua criatividade por áreas diversas, da banda desenhada à fotografia, da pintura à moda, passando pelo design de espadas, entre outros. Existe alguma área em que se sinta mais à vontade ou a cada momento experimenta uma inclinação específica?
Costumo dizer que tenho as minhas “gavetas” abertas. Cada uma delas corresponde a uma área. Atrevo-me a pensar que me sinto à vontade em todas essas áreas.

Nos anos 90, muitos pensaram que, devido à sua óbvia qualidade e originalidade, a sua marca de moda acabaria por se impor a nível mundial, mas isso não chegou a acontecer. Por quê?
Abri a “gaveta da moda” no início dos anos 90, a convite do Governador Melancia, representando em Lisboa uma das potencialidades que Macau poderia oferecer. Participei na Europália, na Bélgica, tendo sido convidado para ficar pela Europa a desenvolver um projecto. Razões pessoais e familiares levaram-me a ficar por aqui, mas após este arranque demorou apenas 4 anos até ser convidado por Pequim para me apresentar com um stand e uma passagem de modelos. Levei comigo uma importante empresa portuguesa que fabricou a colecção que dei o nome “Mãe China”. Seguiu-se a minha nomeação honorífica para Consultor Honorário de Moda de Pequim e conversações nas quais reconheciam A.CEJUNIOR como um nome para a China e, com o tempo, para o mundo, oferecendo e solicitando condições que considerei estupendas para ambas as partes. Para grande espanto meu, a empresa portuguesa minha parceira recusou… Isto insere-se bem nas (des)”aventuras” que já referi. 

Por que razão se deixou enredar pela arte do trajo?
Comecei a interessar-me pelo vestuário por uma razão muito prática e particular. Quando me tornei director do Museu precisava de andar engravatado e não havia pronto-a-vestir em Macau, só alfaiates. Então, passei a desenhar as proporções dos meus fatos para um alfaiate vizinho mos confeccionar. Uma das minhas características, quando me interesso por uma coisa, é ir até ao fundo do assunto. Desmanchei casacos comprados em Portugal para ver e perceber como eram feitos. E foi uma coisa que se foi prolongando e o desenho de moda passou a surgir na ponta do lápis, aliado a leituras, referências e memórias.

De algum modo, as suas criações refaziam ou situavam-se em pontos da antiga Rota da Seda, uma ideia que o actual governo da RPC deseja reactivar. Já pensou apresentar uma proposta no sentido de dar o seu contributo para esse objectivo?
Sim, tive uma colecção chamada “Rota do Oriente”, outra chamada “Samarkanda”, e ainda outra chamada “Mandhala no Topo do Mundo”. Recordo-me que no tempo do Governador Carlos Melancia, após o êxito da minha apresentação em Portugal, em 1990, o eng. Melancia defendia a ideia de que o Governo deveria apoiar-me para lançar o nome de Macau. Na altura eu era o único. Agora isso não acontece, mas a minha Rota da Seda mantém-se, agora mais amadurecida. Curioso é que, como já contei, a apresentação em Pequim foi coroada de êxito e a própria R.P. da China me quis aproveitar.

Ou seja, admite regressar à moda ou isso são águas passadas?
Hoje em dia há muitos jovens, muitos mesmo. Todos têm sonhos. É evidente que sonhar não é um exclusivo dos jovens, mas no contexto actual não sei. A minha preocupação é sobretudo que os jovens que se querem lançar por estes caminhos se municiem com suficiente bagagem cultural que é o verdadeiro alimento para a criatividade.

Passemos à fotografia. No seu trabalho, em geral, existe uma coerência que se liga à questão do detalhe, do pormenor, como se destacasse algo do seu contexto, exibindo esse algo desconectado, em si mesmo, ou nos dissesse que há mundos dentro de mundos. Por quê este fascínio, ou se quiser, obsessão?
Não é obsessão. Fascínio admito que sim. Não encontro uma explicação lógica senão o facto de ter desenvolvido uma forma peculiar de olhar a realidade, talvez em busca de uma transcendência indecifrável. Algo que me toque plásticamente mas não só. Algo que não seja vulgar nem dramático mas que assuma uma força telúrica ou espiritual sob a forma de uma beleza plástica que não requeira explicações da minha parte.

Nas suas fotografias, parece existir uma busca de beleza primeva, pré-humana, quase divina ou simulatória da presença de Deus. Considera-se religioso? Identifica-se com algum credo actual?
Essa busca não é voluntária. Aliás ao termo busca eu preferia “encontros”. Diria que aquele que mais importância teve para mim foi “Primum Lumen”, um encontro com a luz a manifestar-se de maneiras extremamente belas e cujos registos fotográficos mostram essa beleza. Sou religioso no sentido mais livre do termo. Identifico-me com esta frase verdadeiramente primeva: “como não lhe conheço o nome, chamo-lhe Tao. Sem um nome deve ser a Mãe de todas as coisas, com um nome é o antepassado dos deuses”.

Como lê os recentes desenvolvimentos da política internacional, nos EUA e na Europa? E qual o papel da China?
Trump representa uma América desconhecida para mim e, também, um lado mais conhecido, que é o do espectáculo. A Europa por ser lado, debate-se com um dilema que há 20 anos discutia com o prof. Roberto Carneiro: qual seria o futuro de uma Europa com a migração que já se fazia sentir então, sendo a indagação feita sobre o que seriam os produtos de casamentos entre cristãos e muçulmanos. Hoje as coisas agudizaram-se profundamente. Há 20 anos não havia o DAESH. Por seu lado, tenho para mim que a China tem agido de uma forma sábia, aproveitando os vácuos criados pela nova administração americana e manifestando-se também como uma potência confiável no jogo de forças onde Putin também parece ter-se intrometido, nesta grande confusão que é o mundo actual.

40 anos depois, valeu a pena ou a vida é, fundamentalmente, uma grande chatice?
Diria que valeu e vale a pena. Tenho-me como um homem novo.

14 Fev 2017

O nascimento do Ou Mun ian

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om o esboroamento do mundo antigo, alterou-se substancialmente o conceito de identidade, seja nas relações estabelecidas no corpus social, seja no interior daquilo a que ainda chamamos indivíduo. Se no passado as identidades estavam fortemente referenciadas e de algum modo amarradas a um núcleo duro, constituído por geografias limitadas, famílias, fratrias, religião e países, não padecendo por isso de grande possibilidade de oscilação, o mundo contemporâneo criou para a identidade um outro recorte do real. Ela é hoje uma função instável, com pouca substância, na medida em que constantemente se refaz na conjugação espaço-tempo, em cada lugar e a cada momento de tensão e de confronto. Não deixa por isso de ser um dos mais importantes conceitos, uma das mais eficazes ferramentas, na compreensão das motivações profundas de um grupo humano. Convém, no entanto, assimilar que não podemos hoje falar de identidade no mesmo quadro mental do passado. Estamos agora perante um conceito que de modo nenhum se refere a algo de fechado, ilhéu, defensivamente encerrado em concha autista. Pelo contrário, as identidades deverão ser concebidas como abertas, existentes porque comunicantes, em constante estado de desagregação e de reagregação, em interminável confronto com outras identidades, variáveis, mutantes, guerreiras; afinal ao ritmo da cultura no século XXI.

É também a esta luz que teremos de ler a identidade de Macau, até porque a sua sobrevivência enquanto tal prende-se fundamentalmente com a existência ou não de uma identidade – como temem os negativistas que apregoam a zhuhaificação. Advirto que não pretendo utilizar uma perspectiva académica, não situando por isso este texto no domínio da sociologia, da antropologia ou de qualquer outra ciência dita social ou humana. Para isso, precisaria de outros dados, de outro espaço, francamente de uma investigação que não se baseasse unicamente na observação quotidiana do que me rodeia – como aqui acontece, mas também no rigor dos números, em citações elefantinas e nas evidências das estatísticas.

E contudo… Identidade. Questão chave para Macau na medida em que estamos num espaço cercado, espécie de ilha cujos habitantes terão razões histórico-culturais para assumir uma identidade diversa do que os rodeia, dispositivo produtor de sentidos únicos e entrançados genealógicos. Questão uma e outra vez sublimada talvez exactamente por mexer em terrenos nem sempre pacíficos, admissíveis, raras vezes salubres. Repare-se que Macau é designado em mapas franceses e outros como a presque-île, o que não deixa de ser curioso.

Identidade. O tema recalcado, cujo debate foi sempre atirado para essas calendas que, admitamos, a acontecerem é só porque estamos na China onde o tempo tem uma dimensão mais que bíblica. E é pena. Limito-me, portanto, a constatar empiricamente uma mudança que considero interesante.

Passo a descrever o contexto. Quando aqui cheguei, no princípio dos anos 90, toda a pessoa de etnia chinesa nascida em Macau, quando interrogada sobre a sua origem, respondia ser “Tchong-ko ian” (uma pessoa da China). Quanto aos macaenses, chamavam-se “Tou-seng” (filhos da terra), entre outros nomes, de uso interno, que especificavam o grau rácico ou social. Já os portugueses da República, vulgo reinóis, eram conhecidos em cantonense por epítetos de vários géneros, que por pudor me escuso reproduzir. Certo é que a palavra Macau não aparecia, na língua chinesa (Ou Mun), para formar uma palavra que designasse as gentes de Macau. Ou seja, pessoas de Macau, claramente “Ou Mun ian”, não existiam.

Desde logo considerei este dado algo de muito singular e até parte da estranha identidade deste espaço. Então a larga maioria dos habitantes de uma cidade, de um quase Estado, não se reconhecem enquanto tal? Não se designam a si próprias enquanto tal? Que razões profundas criam uma situação dete tipo? Trata-se de um fenómeno efémero, passageiro, ou algo de verdadeiramente enraizado na matriz cultural desta gente? Invoquei as migrações recentes, mas isso não me satisfazia porque chineses que estavam em Macau há várias gerações tinham o “Tchong-ko ian” na ponta da língua. Nunca consegui responder de forma organizada a este tipo de perguntas. Por outro lado, a diferença em relação a Hong Kong se não era abissal rondava o profundo.

Claro que, na minha opinião, a situação não era favorável à manutenção futura da memória da cidade e um dos trabalhos a fazer seria precisamente estudar o assunto e mesmo intervir no sentido de fortalecer uma identidade que parecia extremamente pulverizada e repartida. Lembro-me de, por exercício lúdico, tentar encontrar um evento histórico que conseguisse unir todas as comunidades de Macau e não ter conseguido. O governo de então nunca se preocupou com o tema. Estava estabelecido, numa espécie de consenso silencioso, que uma das partes mais consistentes da identidade de Macau era não se interrogar sobre si própria. Como se, como pinta Goya, a razão engendrasse monstros. Ou talvez o verdadeiro receio fosse que eles saíssem debaixo do tapete.

A vida continuou. A RAEM surgiu. Macau passou a ser governado pelas suas gentes. O jogo foi liberalizado e nunca mais pararam de aumentar os seus lucros. A China tornou-se na maior fonte de turistas, sobretudo depois do aparecimento dos vistos individuais. A cidade, o quotidiano, as relações, mudaram. E as pessoas? E o seu interior? A visão que têm de si mesmas? Será que mudaram também?

É verdade. Tenho de confessar a minha inicial surpresa quando comecei cada vez mais a ouvir chineses de Macau a definirem-se como “Ou Mun ian”. E o mesmo se passa com jovens macaenses, cuja tendência parece ser abandonarem o “Tou seng”. Ou seja, a usarem a cidade de Macau, a RAEM, como referência identitária. Agora já não dizem com a mesma inevitável regularidade que são “Tchong-Ko ian”, mas sim pessoas de Macau. Que razões estarão por detrás desta mudança, que tem sido gradual embora inesperadamente acelerada? O que estará a levar as gentes de Macau a reconhecerem-se enquanto tal, quando dantes remetiam a sua identidade para a Grande China? As respostas não podem ser simples. Deixo apenas algumas pistas.

Em primeiro lugar, poderemos considerar a influência da propaganda governamental, assente no princípio “um país, dois sistemas” e no seu derivado “Macau governado pelas suas gentes”. Ora a verdade é que, sobretudo o segundo slogan, pode ter tido algum efeito, na medida em que atribui às pessoas de Macau um papel na condução da suas vidas, permitindo portanto uma identificação entre ser de Macau e específicos direitos sobre a sua própria existência. Não é realmente importante que as pessoas de Macau efectivamente tenham uma participação cívica mas a existência dessa possibilidade, que dantes não era sentida pela esmagadora maioria das pessoas de etnia chinesa, pode causar efeitos identitários.

O aumento da consciência cívica que o advento da transferência de soberania inevitavelmente trouxe a grande parte da população poderá desempenhar um papel (reconheço que menor) na mudança do dispositivo identitário.

Em segundo lugar, poderemos considerar o aumento exponencial de turistas do continente chinês e a constatação prática das, por vezes gigantescas, diferenças culturais que os separam da gente local, apesar de pertencerem ao mesmo país. Perante a quase imposição dos valores pan-chineses em Macau, do reforço paternalista e desnecessário do patriotismo e a própria invasão de sucessivas moles humanas, com quem os locais não se identificam nem tomam como modelo, é natural que se dê uma reacção local de reforço identitário.

De notar que as diferenças entre os chineses que nos visitam e os chineses de Macau são realmente profundas, nomeadamente ao nível dos hábitos alimentares, da língua, da religião, do modo de relacionamento em grupo, da maneira como entendem o mundo. É certo também que existe muito em comum. Nalguns casos, tanto como entre um português e um húngaro ou um esloveno, o que não é pouco. Tal facto só advoga a favor da diversidade natural de um país da dimensão da China, não deixando contudo de se manifestar no aparecimento de identidades locais e regionais, factores de enriquecimento cultural e de grande potencialidade futura.

Em terceiro lugar, teremos de contar com o factor geracional. Ou seja, não importa tanto estarmos agora perante uma terceira geração de pessoas já nascidas e criadas em Macau, mas sim o facto da RAEM enfrentar o mundo global e não ser já uma sociedade indefinida como a que existia no pré-handover. Pessoas cuja ligação ao continente chinês é valorizada e desvalorizada consoante o contexto. Pessoas que, independentemente do grau de educação, cresceram num espaço em plena mutação e indubitavelmente excitante, pleno de horizontes promissores, cada vez com mais nome internacional.

Nasceu, portanto, o Ou Mun ian. Bem vindo seja. Nas suas costas reside não apenas uma cidade, mas toda a História, toda a Cultura, todo o relato de um encontro que, também ele, não cessa de se desfazer e de se refazer, marcando o novo ritmo das múltiplas identidades que, num determinado espaço e momento, constituem a identidade de Macau.

8 Fev 2017

Liberdade. O resto não

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]egeto no princípio do erro e por isso amo a liberdade. Não me seria tragável morar onde a minha possibilidade de ler ou escrever fosse sujeita a censura. Foi assim que aprendi a ser humano e desumano. Foi assim que me tornei no monstro que hoje sou, excepção idílica de um homem, longe da definição corrente, quimera racionalizável e impotente.

Sim. A impotência de ser livre, de explanar os desejos, de fazer exactamente o que quero como se fizesse exactamente aquilo que desejo, algo de abstruso e desleal, no qual me reconheço pouco ou nada, quando penso no caos, na entropia, no mal. Habitante de refúgios, sentinela da ignomínia, eis-me exposto sem peias e de meias para parecer mais ridículo.

Ser livre, pensar hoje e amanhã. Pensar errado ou estimulado, o que vem a ser a mesma coisa. Mas pensar livre dentro das usuais algemas. Exigir o fim da verdade ou do caminho, da via sem dúvidas, das curvas sem outro mundo, esse que fica à espera, muito quieto… do outro lado. Eis o arquétipo, eis a liberdade.

Sim. Criticar os uns e aderir, por instantes, aos outros. Sim. Ser do mesmo e do inominável se assim me apetecer. E ser também desdizer tudo o que disse, porque assim me apetece e ser mais: ser bálsamo, cura e religião.

Desprezar-me-ia… tivesse eu outra certeza além da voz e nela não palpasse a minha insignificância, distância ao ser e ao devir, e por isso nela cavalgar com furor. Será amor?

Não. São interesses, são abismos ávidos, sem recuo nem paixão. Sade rex, num mundo novo, apenas profetizado, do sexo para a mão. Punheta. Japão. Futuro breve, excisão. Nada afecta a minha mão. Somos livres. Biltres exigentes e sem provas anunciadas. Somos nada. Somos mão. E simplesmente desfrutamos da liberdade inclusiva, excessiva, imponderável, sem sentido definido. E onde está o indivíduo? Onde estaciona o homem novo? Curiosamente fechado, ligado, interligado, enquadrado… havia alguma aflição… No problema: há o Japão. À medida exacta da mão que gere, que fere, que range e exangue se distrai sobre o falo rijo de antanho.

Era a liberdade. Não interessa o tamanho ou o discurso. Era a explanação de tudo o que não existe, do que foi desdito pela História e pela glória anunciado. Disseram-nos: foi pecado. Mas nós continuámos indecentes. Queríamos lá saber. Havia dentes, dentadas, noites sufragadas de esperança. E a presença das doenças, sem nos amedrontar. Não há meia liberdade. Ou tudo ou nada. Ou tudo ou a estrada. Não há vida de outro modo, a não ser na China, longínquo país de outras danças.

E eis-nos feitos crianças, sem nada de novo entender, à excepção do sofrimento, desta coisa de não ser real quando o real nos aponta assim, de dedo em riste e berbequim. A furar, a furar, a meter buchas, parafusos, e nós pregados ao muro de todas as lamentações.

Não digam não. Digam sim. Não vale a pena dizer não. O mundo é curto e terno. O universo acaba ali. As novidades são de ontem, os antigos de amanhã pertencem, sempre pertenceram, ao Inverno. São velhos e morrem todos os dias para alívio de um mundo corrente. Junta algum óleo e mete a sertã ao lume que comida, dizem, haverá. E a liberdade? Por onde se distrai a dissoluta puta, que tanto assusta clientes como passantes imbecis?

Não sei. Houve uma noite em que a persegui, sem dizer nada. Ela saíra de um clube a meio da estrada. Era fino, repenicado, cheio de laços e de frufus. Abordei-a mas não acrescentei. Fiz de rei. Era o meu peito e nada tinha para dizer. Esgotara-se na desdita, na crítica, avalanche e nevoeiro, condição primeira do homem livre.

Haja coragem! Enfrentemos a confusão! O resto, queira-se ou não, é só prisão, é só algemas. De fora ficam poemas, folga doce a ilusão. E o que prefiro? As vossas festas que tudo rompem e tudo me deixam na mão? Bate o ritmo, severo e cru, bate o ritmo, certo e inoperante, como nunca o ritmo foi. Liberdade, por favor… bem sei, conheço o ritmo… ouvi-o nos barcos, fui remador… ouvi-o nas varandas… baixinho:  — Só há liberdade a sério quando não houver o rumor rasteiro da verdade, quando a transparência me liquidar sem piedade nem unção.

Que homem  é este? Que final da História hoje nos atordoa? Não importa quão funda se apresenta a fossa… a quem recusarei a mão? Antes a merda. Antes o povo que me descoroçoa, me abate e aflige. Antes, verdadeiramente antes, o que realmente me atordoa. Tão pouco, tão fraca, tão exangue, esvaída: a liberdade tem um nome: não é querida, nem amor, nem dor, nem manifesto. Protesto e tenho razão, por hoje. Amanhã não tenho outra certeza que a de ser relativamente livre, de alucinar face ao destino. Sou menino, dizeis. Sou livre, sou livro, sou discurso ou intenção. O resto não.

9 Jan 2017

O ano da máscara

[dropcap]P[/dropcap]revisões fazem os bruxos ou, na melhor e mais enigmática das hipóteses, o Yi Jing. Da minha parte, teríeis cassandricas opções, pois que a paisagem não inspira discursos belos e ainda menos idílios. Mas tal não será caso para grandes desesperos. Aliás, a malta de hoje não é de desesperar. A coisa sagra-se mais em deixar andar o comboio e aproveitar o deslizar da carruagem, sem mesmo reparar por quais carris se rola ou se enrola ao deslizar.

É assim o mundo e podia ser pior, rezaria o Dr. Pangloss* se rezar lhe ajuntasse vantagem, nesse exacto mundo que ele percepciona e não noutro, lamentavelmente, oculto a olhares burgessos. E assim continuaremos em 2017, não muito diferente de 1917, à excepção de uma revolução cujo desfecho resultou na morte das revoluções.

Andámos muito desde então. Para a frente e também para trás. Muito se liquidou: algumas coisas bem, outras não. Há uma cegueira cíclica nesta humanidade indecisa: o extermínio de pessoas e de livros. Aos últimos, hoje, não é preciso queimá-los. Eles encarregam-se disso.

E é neste espírito, imerso e paradoxal, que vos proponho em 2017 o adensar da máscara, o aumentar da distância em relação ao outro, a construção de muros entre nós e esse México que por aí anda. E esses mexicanos que o paguem. Sejamos realmente a trampa que estamos mortinhos por ser. Provavelmente alguém nos dará razão.

Propaguemos um outro email, ainda nosso mas não totalmente, domínio do nosso ego virtual e não realmente implicado no que verdadeiramente pensamos ou sentimos. Máscara. Máscara por trás de máscara. Máscara. Máscara pintada, retocada, maquilhada; máscara exultada. Máscara gigante ou máscara anã. Máscara matrioska. Sem sobressaltos por detrás da máscara da máscara. Máscara adamascada ou em tule. Não importa: em caso algum a pele se vislumbra.

Não ousamos outro modelo, outra via, que não a via das máscaras. Impotentes ou guerreiros, vagabundos ou burgueses, sedentos ou esfomeados, 2017 exigirá a mascarada, nos melhores momentos a mascarilha. Fingiremos ser; actividade que praticamos sem remorso e quantas vezes sem presunção.

E o que fica, perguntais, quando já manso no lar ousais a máscara tirar e por debaixo outro careto vos pergunta sem cessar o que fazer do abismo que mesmo num sono sem fundo arrogante se interpõe? Nada. Talvez viver.

Viver assim… ausente, no meio do nevoeiro. Sem cão, sem estrela, sem ideias de permeio. Só tactear: ser alheio, afastado das formas, dos verdadeiros corpos, dos verdadeiros copos, das orações; nada agarrar, passar fantasma, roçagar. Viver de exílio, mestre da saudade e da cidade interdita a contemporâneas efabulações. Preferir o nevoeiro às luzes rançosas. Escolher o tenebroso, a jugular impenitente, sempre a saltar à nossa frente, a deixar-se abocanhar, plena de vida, pujante de amor, ou não fôra ela natureza e mãe e tudo.

E o sabor do nosso sangue, interdito e intermitente, que tanto se ergue em tempestades como repousa ignorante e parvo em colos de além-fronteiras, onde o sossego nos maquilha de rosa e cor-de-vinho de Bordéus, alucinada cor de mantos e desmedidas cortinas.

Estaremos menos sós. A solidão é tão impossível como o convívio. As máscaras encontrar-se-ão. Dar-se-ão bailes, cruzeiros, manifestações de massas. Espectáculos de rua, mariposas, ajuntamentos. Serão breves como os dentes. Retornaremos ao sonho porque não há mais nenhum lugar para ir. O mundo encontra-se, francamente, esgotado. Nessas horas frágeis encontraremos o ano. 2017. Como poderia ser qualquer outro: os sonhos não conhecem o tempo, apenas se alimentam de espirais. Nós, omnívoros, comemos tudo.

Um Bom Ano para os uns e para os outros.

*Personagem de Voltaire para quem vivemos sempre no melhor dos mundos e da bajulação aos poderosos havemos de usufruir alguma vantagem.

4 Jan 2017

Fórum Macau: Cartões não chega

[dropcap]O[/dropcap] Fórum Macau foi uma iniciativa de Pequim de uma extraordinária importância para a RAEM. Não tanto por aquilo que até hoje tem sido feito por aqui, mas porque definiu, no longo prazo, uma estratégia para Macau. E, por muito que isso ainda possa custar a alguns dos actores desta praça, esta decisão da capital catapultou a região especial para fora de si mesma, obrigando-a à internacionalização.

Macau não pode, aos olhos de Pequim, viver apenas do Jogo, pois tal não é conveniente para o país e pode ser fatal e desinteressante para a população. E também não chega a especulação imobiliária que tem feito a riqueza de alguns. É cumprindo a sua vocação de sempre (porta para a China) que Macau serve o país desde o século XVI. É pena que pessoas menos informadas, talvez aqui chegadas há pouco tempo, não metam de uma vez na cabeça que este é o caminho, que ele não é novo e que está aqui para lavar e durar. A ponte para os países lusófonos é uma óbvia fonte de diversificação, uma das poucas exigências de Pequim.

Por outro lado, Portugal está em ano abençoado. Ele é o campeonato da Europa de futebol e a ONU; a geringonça, o turismo e o investimento estrangeiro. Mas o que me surge como mais curioso na relação com a China é o facto das empresas chinesas compreenderem a importância de terem quadros portugueses para as suas relações com os países lusófonos.

Os portugueses, quando chamados pelos chineses, têm dado bem conta do recado e isso parece estar a dar os seus frutos. Ora esta mudança de paradigma tem a vantagem de ultrapassar o mero domínio dos números para se centrar nas pessoas.

Como sempre dissemos, não existe cooperação entre países que possa ser reduzida a negócios. As relações interpessoais são fundamentais para estabelecer confiança, metas comuns, situações interessantes para ambos os lados.

Como disse muito bem Fernanda Ilhéu, não basta trocar cartões, coisa que o Fórum Macau tem levado demasiado tempo a perceber. É preciso trocar ideias, analisar contextos, detectar os pontos de interesse comuns e as eventuais complementaridades. É preciso um maior conhecimento mútuo e esse surge através da cultura e das pessoas. Os números não têm país, não têm cara, nem vão à bola ao domingo. Os cartões, sozinhos, também não.

11 Out 2016

Celebrações

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando lágrimas ou sorrisos, de alguma maneira, me ofendem sei chegado o tempo de partir. Permanecer seria vão e as linhas traçadas na curta espera desta macedónia de gente mostram-se recta sem sentido. Lanço às palavras a alma, que não tenho, na ânsia súbita de agarrar. De aqui podar o excessivo, simplificar o caminho que sei não levar a lado nenhum. Detesto celebrações.

Bogart chamaria a estes eventos uma “amateur night” – leio no Facebook e concordo com avidez. No meio de todo o ruído, sabe bem não estar totalmente sozinho e encontrar, ainda que morto, um irmão cujas ideias flutuam ainda no ciberespaço.

Nunca me conformei à necessidade de divertimento compulsório. Admito que seja por espírito de contradição, mas quando se impõe a festa quase imediatamente me advêm pensamentos tristes, deprimentes, e não há álcool que os apaguem, nem música que os afugentem. Permanecem por ali, num lugar recuado da mente, enquanto sorrio para todos e desejo votos de qualquer coisa. Não têm qualquer substância particular, nem conteúdo específico. Passado pouco tempo, sinto sempre que é melhor bater em retirada. E mesmo se alguém verdadeiramente amigo me contacta, prefiro mergulhar no mar da solidão que nesses momentos me habita.

Fogem-me as palavras e são-me penosos os sorrisos. É talvez um mero relato de não estar em parte alguma, de vegetar dentro de mim, sem vontade de sair do invólucro a que me destino como caixão antecipado. Nesta proximidade à morte, não seria claramente uma boa companhia para ninguém, como não o sou sequer para mim. Daí que me outorgue este estranho direito de ficar sozinho, saborear a inutilidade do tempo, a vacuidade das datas e reforçar a ideia de que não passam de um esforço ridículo de quem realmente teme, em silêncio, a morte.

Sentiria também, se me vestisse para a festa, que estaria a fazer a minha “toilette de cadáver”, como dizia Pessanha. Afinal, preparar-me para os outros ao espelho é como preparar-me para enfrentar o vazio frio da eternidade. Desse tempo que existiu antes de mim e que existirá depois de eu partir. Assim, fico nesta consciência de uma efemeridade que só a dor engrandece, na sua inutilidade e paradoxo; e só o prazer do amor e da beleza eventualmente riscam uma justificação. Será pouco, muito poucochinho e talvez esta constatação me enfureça subtilmente e desta raiva calada emerge então uma disposição solitária.

Agrada-me, por outro lado, ficar à janela enquanto a cidade vibra e os foliões desesperam na grande e programada demanda do esquecimento. Sobe-me à garganta alguma ternura pelos humanos, pela sua corrida angustiada e de sentido circular. Estranho paradoxo este de procurar não ser para ter uma sensação mais absoluta de ser qualquer coisa. Afinal, será esta grande festa uma recriação de um caos original, apenas pressentido, em que se tornava claro não passarmos de matéria estelar.

Cumpro algumas das obrigações, presto algumas das deferências a que a minha condição social obriga. É preferível assim do que depois ter me desfazer em estúpidas, eventualmente mentirosas, justificações. Depois, rapidamente, me recolho, pondo o telefone em silêncio, respiro mais fundo e mais livre no conforto desta gruta a que chamo casa e prometo a mim mesmo nada determinar das minhas acções futuras.

Sei lá quanto me espera neste espaço de tempo a que chamamos um ano. Não o temo nem o desejo, não me inspira nem me desespera. Aceitarei sem remorso o que as coincidências me aportarem. Não estarei preparado para nada, pois sei que a todo o momento depararei com uma curva e pouco imagino sobre o que estará para além dela. Intimamente, muito intimamente, sorrio porque foi desta ignorância que aprendi há muito a fazer a minha liberdade. E – imaginem! – por uma centelha deste tempo, por um instante de eternidade, fui realmente feliz.

Ainda bem que, amanhã ao acordar, já terei esquecido tudo isto.

27 Set 2016

Venham mais 15

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O Hoje Macau publica-se na RAEM há 15 anos

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]etesto aniversários e ainda mais elegias em moto próprio. É assim: sou mal disposto, nos padrões contemporâneos. Aliás, compreendo-os pouco. Não percebo, por exemplo, como hoje existem reverências a deuses que se sabem falsos, como nos submetemos a ditames que julgamos, ainda que intuitivamente, abomináveis.

É, contudo, isso que vejo um pouco por todo o lado e, inclusivamente, neste jornal. É verdade: não somos imunes ao que classifico de universais da estupidez e da cupidez. Divulgamo-los, aceitamo-los, escrevemos inocuamente sobre eles. E tenho vergonha por isso mas não suficiente para fazer qualquer coisa, além de um suspiro, e evitá-lo.

Somos, como é óbvio, obrigados a sobreviver neste oceano de inanidade a que se chamava “comunicação social”. Hoje já deve ter outro nome, qualquer coisa esquisita e desculpabilizável do que não fazemos ou não podemos fazer.

Mas, sinceramente, Macau é um universo relativamente aparte. Daí ainda termos a convicção de que fazemos jornalismo – algo que no mundo real acabou no século XX – no limite da nossa capacidade de interpretar o local. Talvez seja mesmo essa nossa incapacidade que nos permite uma visão fresca do que encontramos e um dinamismo quantas vezes absurdo em relação ao que observamos.[/vc_column_text][vc_separator color=”custom” style=”dotted” border_width=”2″ el_width=”20″ css_animation=”fadeIn” accent_color=”#dd3333″][vc_column_text]Dezembro de 1999. Muitos auguraram o pior, em relação à sobrevivência do jornalismo em Português na recém-criada RAEM. Mas, desta vez, as cassandras não tinham razão. Ao invés de minguar, crescemos e ficamos mais fortes. Na verdade, talvez tenha sido a partir dessa altura que nos começamos a debruçar com outra vivacidade sobre a vida real desta terra. Até então talvez os jornais vivessem demasiado dependentes do que acontecia à volta da Praia Grande e pouco mais.

Com a transferência de soberania, muito mudou. E no nosso interior também. Por exemplo, as redacções passaram a com jornalistas chineses e a sua presença veio iluminar muitos dos disparates que fazíamos, como veio fortificar a nossa certeza a propósito do rumo tomado a nível editorial.

Não façamos confusões: isto é a China. A mesma China que nos acolheu pela nossa diferença no século XVI e que até hoje ainda não nos expulsou. Que nos abriga e nos embala. Entre portugueses e chineses sempre existiu a compreensão imediata do “vive e deixa viver” e isso é fundamental para a nossa meta-existência. Sem ela nada disto existiria.

Os portugueses são, de facto, tão insuportáveis que só os chineses, com a sua paciência (leia-se interesse prolongado e deferido) nos aturariam. Pior que nós só os ingleses, os franceses, os holandeses, os alemães, os russos e, ultimamente, os americanos e os australianos.

Macau, dizem, mudou muito nos últimos quinze anos. Não me parece. O meu Macau está ali onde o quiser encontrar. Nos erros sucessivos do governo – iguais a antes de 1999 –; na ambição desmedida dos recém-chegados – sobretudo dos que há pouco atravessaram a fronteira terrestre –; na euforia palerma dos portugueses – desembarcados há momentos do jetfoil. E existe, como sabemos, um outro Macau que nem de longe nem de perto se reconhece no que hoje ciframos como RAEM: a cidade verdadeira, egoísta, metida consigo, fantasmagórica, palmilhável, inesgotável, sorvida como uma sopa de fitas ou junto à boca como uma malga de arroz.

Há mais dinheiro. Vejo mais luzes. Há mais confusão. Vejo mais gente. Mas nada disto me interessa. Sou director de um jornal que pretende ver além do óbvio e informar além do sensível. E é este o nosso desafio: ler o ilegível, soletrar o indecifrável. Bem sei tratar-se de uma tarefa impossível por isso é digna de nós. Menos seria pouco, mais seria divino. Ficamos, portanto, por aqui. Pelo menos mais quinze anos.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

5 Set 2016

Unheimlich

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que se reconheceu como Homem, a espécie humana tem procurado distinguir-se das outras espécies animais, quer pela simples adição de atributos (do género “o homem é um animal racional”), quer pela constatação de um corte radical numa hipotética escala evolutiva (o homem é um animal com cultura). Mas, no fundo, parece existir uma remota e timorata consciência de que a distância que nos separa dos outros bichos não é tão grande quanto isso.

Um dos primeiros a escorregar na senda da confissão deste terror (em termos científicos) foi o naturalista Buffon. Dizia ele que se os animais não existissem o Homem seria ainda mais misterioso — o que indicia proximidade e semelhança.

Nalgumas das pinturas que o italiano Castiglione fez na corte de Pequim avultam a representação de cavalos e cães, desenhados ao modo ocidental; contudo, inseridos num contexto de pintura chinesa, o que imprime nas pinturas algo de inusual, para não falar de uma certa estranheza, um sentimento indefinível, próximo, se quisermos, do desconforto.

Tal é sobretudo verdadeiro quando contemplamos um certo cavalo, de cor castanha e proporções suaves. O mais extraordinário da besta é o seu olhar. Ao contrário do que se poderia pensar, jamais o classificaria de humano. A sua placidez e segurança situam-no, desde logo, num patamar que nos ultrapassa.

A estranheza, a que não é ausente um traço de temor, mede a altura do lance, desafia a capacidade da nossa perna.

12 Jul 2016

A doença e a virtude

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s cem milhões de patacas que a Fundação Macau doou à Universidade de Jinan saíram do bolso da população mas estão a custar cada vez mais caro ao Governo. Em causa está, uma vez mais, a sua imagem, a sua transparência e, sobretudo, os critérios de transferência de dinheiros públicos. Numa palavra, a sua credibilidade e virtude (德 de), conceito tão caro ao actual presidente chinês.
Poderão não ter violado a lei. Mas que lei é essa e quem a fez? E de que modo essa mesma lei facilita este tipo de “transferência”, com a mera aprovação daqueles a quem, de algum modo, se destinava?
A população, claramente, não gostou. A manifestação, organizada pela Associação Novo Macau, contou com cerca 3000 pessoas. É significativo para a RAEM. Sobretudo se tivermos em conta o grau de educação dos participantes, bastante mais elevado, em média, dos que participam na marcha do Ou Mun. Ou seja, pessoas com que Pequim tem de contar no futuro. É bom dar-lhes razões para virem para a rua gritar? Parece que não.
Não satisfeitos com a gritaria, as forças de segurança resolveram intimidar os organizadores da manifestação, fazendo-os comparecer na esquadra para prestar declarações e, eventualmente, encontrarem um modo de os acusarem de desobediência. Do lado da ANM, devem ter batido palmas. Ninguém poderia pedir melhor publicidade. Lá voltaram a Universidade de Jinan, os cem milhões, os curadores da escola, o pessoal da Fundação Macau e as acusações de perseguição política para as páginas dos jornais, para as rádios, para a televisão e, sobretudo, para as redes sociais, onde este Governo e a oligarquia que o rodeia é tratado com notável pouca consideração.
Ao invés de enterrarem o assunto, as autoridades de Macau, num arguto movimento, fazem questão de o trazer de novo à superfície. Se o haviam de fazer esquecer, empenham-se em relembrá-lo a toda a gente. Houve desobediência? Dos manifestantes? A sério? Soubesse a ANM organizar-se e tinham tido 500 pessoas a acusarem-se ontem, na mesma esquadra, do mesmo crime dos organizadores. Desta vez, estes esqueceram-se de carregar no botão…
Um dos problemas é que a ANM mudou. Ng Kuok Cheong e Au Kam San são hoje o que pode chamar de “democratas gordos”. Mexem-se pouco, é-lhes difícil actuar. Na sua história têm muito de protesto contra a falta de democracia mas, raramente, colocaram em questão os interesses da oligarquia ou fizeram-no de forma suave e pouco eficaz. Ou não percebiam o que estava realmente em jogo ou fingiam não perceber.[quote_box_right]“Gostará Pequim de arriscar tanta insatisfação, tanta desarmonia, tanta tinta a escorrer, tanta língua a dar a dar, tanta contestação, aparentemente desnecessária, na terra dos milhões?”[/quote_box_right]
Os novos líderes parecem ser de outra loiça. Daquela que se parte no choque com os que querem legislar e governar de acordo com o boletim meteorológico do seu mercado e, nesse sentido, pressionam sem maneiras o Governo. Passando as ditas “causas fracturantes” (cuja resolução, aliás, seria um sinal de progresso para a RAEM) para Jason Chao, outros poderão tratar do que realmente interessa à população, criando algum mal-estar em certos meios. Que força realmente terão é difícil de dizer. Tal dependerá da conjuntura, talvez de mais um extraordinário evento. Mas gostará Pequim de arriscar tanta insatisfação, tanta desarmonia, tanta tinta a escorrer, tanta língua a dar a dar, tanta contestação, aparentemente desnecessária, na terra dos milhões?
Também graças aos esforços das autoridades, o caso dos cem milhões doados à Universidade de Jinan teima em não desaparecer. É um caso perigoso. Está colado ao modo como por aqui se governa como uma doença má. Veremos até que ponto este corpo governativo a consegue rejeitar e com que cara lhe sobreviverá.

17 Jun 2016

Uma questão cultural

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]emonstrando uma argúcia e um estilo muito próprios, para além de vasta experiência e engenho, o Secretário para as Obras Públicas e Transportes cunhou a grande tirada filosófica deste Governo até ao momento. Ora diz Raimundo do Rosário, quando não sabe como explicar determinados meandros da política local, que se trata de “uma questão cultural”. De facto. Deve ser.
Repare-se, no entanto, no alcance holístico da expressão: nela cabem os atrasos do metro e do hospital; nela cabem os 100 milhões para a Universidade de Jinan e os seis milhões do pato; nela cabem o que se faz, o modo como se faz e o que se deixa por fazer. Bem vistas as coisas, a “questão cultural” explica muito, para não dizer quase tudo.
Ou seja, Raimundo do Rosário descobriu a pedra filosofal da política da RAEM. Existe, contudo, um detalhe e nos detalhes é que está o diabo que, como se sabe, é legião. É que em Macau não existe apenas uma cultura, pois como se propagandeia vivemos num caldo de culturas; logo, não existirá apenas “uma questão cultural” mas “várias questões culturais”. Percebe-se o poder imenso que daqui deriva. Se já é misterioso referir uma acção política a “uma questão cultural”, imagine-se o que não será poder referir a mesmíssima acção a “numerosas questões culturais”. Justificará tudo, incluindo cravar uma bandeira da RAEM em Marte.
Sugerimos pois um rápido curso de Etnologia na Universidade de Macau para ver se compreendemos a tal cultura local, cujas questões tanto influenciam a política e a vida quotidiana dos cidadãos. Não nos atrevemos, neste exíguo espaço, a abordar um assunto tão complexo, pois a sua vastidão exigiria um estudo que examinasse a possibilidade de um estudo científico, seguido de uma consulta sobre a necessidade de fazer uma consulta para avaliar a sua pertinência. Deixemos isso, portanto, aos nossos competentes académicos, se bem que não sejam tão competentes, segundo o Governo, como os do continente.
Por aqui, ficaremos satisfeitos com uma breve análise dos sintomas que fazem emergir a noção, isto é, discernir em que situações, concretas ou mais ou menos oníricas, se socorre o Secretário da “questão cultural”. Bem sabemos que este desiderato limita sobremaneira a extensão da ideia mas, de momento, são os dados de que dispomos.
Por exemplo, o já “famoso mistério das Obras Públicas” (i.e., porque razão demoram sempre mais dez anos que as privadas, quando são construídas) estará incluído neste menu. Outra é a monomania de contratar determinadas empresas por ajuste directo. Outra ainda é não se conseguir definir um traçado para o metro. Ora todos estes problemas remetem para “uma questão cultural”. E não há volta a dar-lhe que não seja um etnocídio, ou seja, a destruição da cultura instalada. E, claro, ninguém quer ser responsável por uma coisa dessas, seja eu, o Chefe, o Secretário, o Comissário Contra a Corrupção ou o da Auditoria.
A cultura, dizem, tem de ser preservada, protegida, alimentada. É ela o barro da nossa identidade. Ora quem é que quereria estragar esta bela cultura que predomina em Macau? Destruir esta maravilhosa mansão barroca? São décadas de privilégios, lustros de mordomias, anos de enriquecimento desordenado. São noites de luxúria roxa e dias de veludo dourado. De leis feitas à medida de cada carteira, de distribuição sincopada e ordenada pelos mesmos.
Quem quereria acabar com isto, com esta cultura tão entranhada, tão cinzelada e depurada? Acham bem?, perguntaria um deputado famoso pelas suas tiradas desabridas, se não estivesse ocupado em actividades culturais, como a bofetada súbita. E com razão… O que seria de nós sem a cultura?

9 Mai 2016

O pato não é mau

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão sou contra o pato. Ao que parece, a amarela criatura faz pessoas felizes e a felicidade não tem preço certo. Certos jantares de certas associações custarão mais caro à RAEM e servirão menos gente. Temos pois que o pato “serve” e serve para alguma coisa, o que não se pode dizer de tudo o que custa 6 milhões de patacas.
Para além disso, o pato desenvolve as “indústrias criativas” como as confecções de bolos, cartazes, bolachas, carnes frias e porta-chaves, conseguindo assim o Governo de Macau atingir um dos seus mais sonantes e misteriosos objectivos. Cada pato seu paladar. Portanto, que cem patos desabrochem por essa cidade adentro. No campo culinário, a tentação é muita. Imaginamos o casamento do Pato à Pequim com o Arroz de Pato, por exemplo…
E ainda há mais: o pato servirá de pretexto para introduzir as crianças, através de desenhos, fotografias, instalações e talvez jogos de vídeo, ao mundo da pataria, que é como quem diz da arte contemporânea, de onde brotou o pato em questão.
Antes de ser contemporânea, a arte implicava o aprendizado da técnica, o domínio dos materiais para além, obviamente, de ter em si implícito um discurso, uma ou múltiplas intenções. Existia então na arte essa capacidade de nos fazer experimentar um infinito que se transmuta em Uno, somente como instante ou experiência do instante.
A obra era então inesgotável, qual conjunto de vectores de sentidos e de possíveis e impossíveis leituras. Havia o “texto”, a textura e o contexto e tudo isto formava um “caso”, caso esse que nos sufraga enquanto sujeitos e nos eleva enquanto humanos. A arte mostrava-nos o que não poderíamos ser, mas poderíamos procriar.
A arte do pato é outra. O pato é outra coisa. É uma ideia. Nada mais. Uma ideia que se instala efemeramente na praça pública para gáudio da população. E com ela a população será, eventualmente, feliz. Ou distraída. Ou entretida. Não interessa. E em tudo o que fizerem com o pato, cada um procurará a sua individualidade, a sua pequena diferença, ainda que esta seja imitar o próximo. O pato não é mau.

3 Mai 2016

Fascismo nunca mais!

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje comemora-se o 25 de Abril, Dia da Liberdade. Pela quadragésima segunda vez. Ou seja, já haveria tempo para ter sido encetada uma séria reflexão sobre esse conceito belo e complicado: Liberdade. Claro que quem não viveu as ditaduras, possui uma experiência limitada da questão. É compreensível. E, no caso radical da malta a quem a Natureza não dotou de mais de três neurónios, é até esperável, ainda que não desejável. Isto faz-me tudo muita impressão. Sobretudo a facilidade e impudência com que, por vezes, se fala.
Repare-se no que aconteceu aqui em Macau, a propósito do processo de destituição de Dilma Roussef: Jane Martins, presidente da Casa do Brasil de Macau, disse a este jornal que preferia ver os militares no governo do seu país do que o Partido dos Trabalhadores (PT).

Questionada no Facebook por compatriotas naturalmente indignados, a senhora em questão empina-se dizendo que é a sua opinião e que o que mais preza é a “liberdade de expressão”. Portanto, arroga-se do direito de preferir um governo militar (como os que governaram anteriormente o Brasil) a um governo do PT.

Na verdade, engana-se redondamente, porque não se pode usar a liberdade de expressão para pugnar pela sua extinção. Os governos militares no Brasil instalaram a censura, perseguiram pessoas pelos seus ideais, prenderam-nas e torturaram-nas. Foram, na realidade, os grandes responsáveis pelo estabelecimento da corrupção que infesta todos os quadrantes da vida política brasileira, pois criaram um regime nela baseado que, apesar do advento da democracia nos anos 80 do século XX, ainda predomina como a lista da Odebrecht demonstra. Com os militares no governo, a liberdade de expressão, que Jane Martins tanto diz prezar, seria limitada ao encómio e à mentira.

Mas o que é interessante no discurso da presidente da associação local acaba por ser a crença em que a “sua liberdade de expressão” pode ser exercida de qualquer maneira e, por exemplo, pode defender o fim da liberdade para os outros, como ela fez ao preferir um regime fascista a um governo eleito democraticamente. Ora é claro que não é assim porque (lugar comum, mas difícil de entender por certas pessoas) a minha liberdade acaba onde começa a dos outros…

Senão, repare-se, qualquer um poderia dizer de Jane Martins o que Maomé não disse do toucinho: insultá-la, acusá-la de corrupção, de gestão danosa da sua associação, de estupidez congénita, de comportamento moralmente duvidoso, até de ser fisicamente repugnante, sem apresentar qualquer prova ou justificação que não fossem as suas intervenções públicas, no Facebook e o direito à liberdade de expressão.

Certamente que a “Querida Líder” da comunidade brasileira de Macau não iria gostar. Provavelmente avançaria com um processo no tribunal que, talvez daqui a cinco anos, eventualmente, depois de muito advogado e muita discussão sobre liberdade de expressão, resultaria em muito pouco. Contudo, os danos causados na sua reputação seriam irreparáveis. Será que “liberdade de expressão” significa que vale tudo?

Penso que não. Existe uma coisa chamada ética pessoal que nos impede de tomar esse tipo de atitude. A liberdade não pode ser utilizada para tirar liberdade aos outros porque tal não é um conceito, mas uma posição de força real, de violência exercida sobre corpos, de fascismo, de repressão.

Depois de assistirmos ao espectáculo degradante dos deputados no Brasil, não surpreendem tanto as declarações da presidente local, que considero do mesmo calibre. Ou seja, assistimos a uma breve reprodução no Oriente dos dislates ouvidos em Brasília. Faltou Deus e a família… E não se trata de ter emitido uma opinião pessoal, porque nenhum jornal lhe perguntaria o que pessoalmente acha sobre isto ou aquilo mas sim, como é óbvio, como presidente da associação a que preside.

Minha querida Amélia António, presidente da Casa de Portugal… olha se fosse brasileiro… nestes momentos (e não só) é que percebemos como somos bem representados… Fascismo nunca mais!

25 Abr 2016

Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stive fora de Macau a maior parte deste Inverno. Depois voltei para uma terra onde o ex-Procurador fora preso, surgira o projecto de um arranha-céus no pulmão da cidade e os taxistas continuam a impor a sua lei no espaço público. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

Lá fora, na distante e fria Europa, sofrem-se atentados terroristas; nos fanáticos Estados Unidos debate-se a possibilidade de um homem estranho ser presidente; na aldeia global, emergem os Panama Papers: o capitalismo mostra a sua garra. O mundo discute o racismo, o islamismo, o terrorismo, as fugas de capitais, guerra, refugiados, a poluição. Aqui o homem que nos protegia dos bandidos vai dentro e o Governo hesita em pôr na ordem os carroceiros porque “eles têm um lóbi antigo, do tempo da Revolução Cultural, com ligações ao Governo Central” (???!!!), porque tudo está bem enquanto se puder construir em toda e qualquer parte. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.
A desadequação desta cidade à realidade chega a dar ternura. “Só em Macau”, expressão incensada, está a ganhar dimensões novas, feéricas, audazes. Infelizmente, que nem sempre por bons motivos. Mas, suspendamos os julgamentos e apreciemos o grau de Espanto a que continuamente somos sujeitos.

Como muito bem definiu Descartes e outros sábios, o Espanto provém de um aparecimento súbito de algo inesperado. Na verdade, para o filósofo francês, o Espanto é filho da Admiração: ficar espantado também é admirar se lhe acrescentar o seu carácter de inesperado. Só que, dependendo da causa do Espanto assim ele se pode transformar em outras e diversas emoções. Pode, eventualmente, despertar o riso ou uma contemplação estética. No piores casos, quando a causa do Espanto é algo de ameaçador, pode transformar-se em Medo.

Cada um de nós lidará à sua maneira com os factos espantosos que Macau em catadupa nos proporciona. Tal depende do grau de consciência cívica, do sentido de humor, da paciência e de muitos outros factores que seria fastidioso enumerar. Basta termos esta certeza: será muito difícil encontrar outro abençoado lugar onde tantas vezes nos sintamos assaltados pelo espanto. Cuidei ser a Índia, talvez, e para lá viajei; mas depois de duas semanas nada por ali se comparava com a capacidade feérica de Macau que há 26 anos me espanta. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

Não percebemos bem de que se queixam os residentes. Esta cidade está cheia de surpresas, de milagres de unicórnios. Poste-se o cidadão numa paragem de autocarro e constatará que existem três (!) companhias de transportes públicos para servir 35 km2. Contudo, o mais sofisticado neste serviço é o facto dos autocarros com o mesmo número ou que fazem a mesma linha teimarem em andar sempre juntos, uns atrás dos outros, como os elefantes da cauda da mãe. Não gostam de andar sozinhos, é o que é. Tem que se compreender. Depois passa um tempo interminável até que voltem a passar. É um estilo, pronto. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

Outro fenómeno interessante, que talvez alguns considerem bizarro, é o aglomerado de empresários nas ou junto das principais cadeiras do poder. Feitas as contas, Macau deve bater recordes. São, literalmente, mais que as mães, porque muitos deles têm irmãos. Já para não falar nos primos, nos filhos e nos cadilhos. Trata-se de uma clientela educada que, com honrosas excepções, prefere comer pela calada. Ainda por cima, esta exagerada concentração serve de alimento aos “opositores do regime” que nela encontram tribuna alta para lançarem os seus protestos e imprecações. É, de facto, espantosa e fascinante esta dialéctica política que, à parte de ser sensaborona (o que lhe acrescenta chique), remete a população para um estado de inércia bovina, o garante imprescindível da harmonia. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

E, como se não bastassem as acções e as não-acções dos nossos queridos governantes têm também surgido nos últimos tempos várias reflexões sobre a comunidade portuguesa aqui residente. Mas atenção: não se trata de coisa fácil visto esta comunidade estar intrinsecamente dividida, à partida, na sábia opinião dos analistas, entre os reinóis (os que nasceram no reino) e os macaenses. Ficámos então a saber que os primeiros se dividem entre os dinossauros e os neo-tugas; e os segundos entre tantas categorias e castas, às quais não é indiferente o bairro de nascimento, que não seriam suficientes as páginas deste jornal. E cada um de nós cultiva a sua ilha, ouve a sua música e esconde ciosamente o que tem. Fantástico! Longe do paraíso original, reinóis ou macaenses ou lá o que nós somos, temos esta capacidade única, espantosa, de nos preocuparmos sobretudo em levantar a pele das nossas próprias costas, sem acinte nem maldade. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.

12 Abr 2016

Palmyra libertada

[dropcap]O[/dropcap] exército sírio libertou Palmyra das mãos dos bárbaros e, para surpresa geral, a destruição não foi tão maciça como se temia. É certo que alguns dos principais monumentos foram dinamitados, o grau de vandalismo e os seus efeitos estão ainda por calcular. Contudo, dizem as notícias, poderia ser bem pior.

A pergunta que me assalta é: Porquê? Qual a razão (ou acaso) que terá poupado o grosso das ruínas de Palmyra? Que fenómeno terá detido a barbárie, que os homens do Daesh trazem acantonada no coração? Estando ali, entre ruínas pagãs, deveriam ter arrasado tudo, destruído radicalmente os vestígios de outras crenças, incendiado os restos e espalhado as cinzas aos ventos do deserto. Isso não aconteceu. A destruição foi significativa mas não foi total. A mão bárbara suspendeu o acto, não o levou até ao fim. Porquê?

Numa visita a um templo de Angkor Wat, junto a uma enorme estátua de um buda, um guia contava que, durante o regime despótico, um destacamento de Khmers Vermelhos se preparava para a destruir mas que uma voz, vinda do artefacto, fôra por todos ouvida, pondo em fuga os soldados de Pol Pot.

Não sei se em Palmyra sucedeu a mesma coisa. Se uma voz ressoou do interior das pedras, das colunas, dos arcos, evitando a sua destruição. No entanto, a ter existido, prefiro acreditar que essa voz veio do fundo da consciência daqueles homens: é o rumor da História à qual todos pertencemos e sem a qual faríamos muito menos sentido. Eles saberiam, no fundo, que se estavam a destruir a si mesmos, a uma parte da sua identidade e isso soa tão indiscutivelmente ao Mal como um crime cometido contra o próprio sangue.

Não terá sido nada disto. Talvez falta de explosivos. Talvez demasiadas mulheres para violar, talvez demasiados sábios para cortar a cabeça. Talvez outra razão qualquer. Seja ela qual for, a História resiste, não somente como memória de factos, de reinos ou de actos heróicos. Resiste, sobretudo, a Beleza e é ela que nos permite aceder às partes mais interessante dos humanos que nos antecederam. Era esta beleza intemporal, inesgotável enquanto fonte de informação e incomparável enquanto fonte de deleite, que dormia prisioneira em Palmyra, depois de ter sido violada pelo Daesh. Agora terá de ser gentilmente acordada.

30 Mar 2016

A culpa e o macaco

[dropcap]E[/dropcap] assim entrou o ano do Macaco, saltando de liana em liana, com o destempero que se lhe reconhece. Ano de macacadas, de simiescas caretas e roletas do azar a girar sem descanso, é isso que Macau deseja ou, sinceramente, espera. Que volte a excessiva fortuna, a do facilitismo, a mesma que vai sempre para os mesmos e nunca para os outros. A fortuna que caía desse céu a que chamam corrupção e que foi uma excelente casca de banana para ver escorregar os poderosos que nela depositaram as suas apostas.

Aqui temos pois o perigoso Macaco de Fogo, animal-rei na mitologia chinesa, capaz destas e demais magias, senhor das artes e dos mistérios. Nosso primo direitíssimo, desde Darwin; parte constitutiva do Homem, na “Peregrinação ao Oeste”, o macaco incomoda, chateia e assusta. Talvez pela sua proximidade na cadeia evolutiva e por nos lembrar a desagradável realidade de sermos mesmo animais. E, atendendo às últimas décadas, cada vez menos racionais, sobretudo enquanto espécie.

Certo é que aqui por Macau todos têm a certeza de que cada macaco continuará no seu galho, que isto de igualdades é muito bonito mas é lá no continente. Aqui na RAEM, mandam os que cá estão, espera o macaco folião do ramo dourado. Quanto à primalhada que por aí anda, que se amanhe e coma cascas que as bananas estão pela hora da sorte. Ou seja, é só de vez em quando. Já se viu, ainda agora quando do chumbo da Lei Sindical, que a RAEM é uma árvore muito complicada: os macacos de cima tudo fazem para não deixar trepar os macacos de baixo, sem perceberem que na selva agora prima outra lei. Enfim, os macacos de cima têm um legítimo medo de brincadeiras pois sabem que foi a brincar, a brincar, que o macaco tomou liberdades desajustadas ao normal fluir da vida em família e sociedade.

Quer essa macacada que para aí anda ter direitos?! Isso é que era bom: isto não é uma república das bananas! Aqui mandam os mandões e os outros são seres da margem, que andam à volta da mesa farta, em ânsia de migalhas. As macacas também não julguem põem a pata em ramo verde que a coisa não está para modernices. “Se os deixassem, acabávamos todos como os bonobos, numa rebaldaria daquelas que são tão antigas que já ninguém se lembra”, revelam os macacos de bem, em tom professoral. E o bando aquiesce, envergonhado da ousadia que vai contra a harmonia.

*

Rimemos pois ficarão as vacas, depois de se irem os bois:

Cuidado, contudo, cuidado, que o macaco não é de confiança. Por vezes diz que canta mas, afinal, dança. Doutras diz que é adulto, portando-se como criança. É assim a macacagem: confunde estupidez com coragem e casino com lavagem. Nada que nos afecte ou mesmo que nos inquiete. Que nos tire o caro pão ou cause aflição. Não. O macaco é boa gente, assim como nós, e também mente. Se o faz de boca cheia ou ainda por encher, tudo depende do ramo no qual o deixam viver. Que isto de trabalhar não é bem para o macaco: no fim, olha pró bolso e sobra… o cheiro a sovaco.

Pobre animal que tanto sofre nesta terra desleixada. Cada vez tem menos ruas para fugir da manada. E pensa com os seus botões, ao gente aos borbotões: “vou mas é ficar em casa, resta-me essa prenda”, esquecendo não ter chavo, nem para pagar a renda. Queres fiado, meu amigo?, pergunta-lhe o senhorio. Por aqui disso não há: vai dormir ao pé do rio.

Em Macau manda o mercado, quando isso é avisado: se é caso de milhões, vai tudo prós macacões; quando alguém trabalha bravo, paga-lhe com um avo. E não diga de onde vem ou p’ra onde se desloca, se quiser sobreviver, macaco faça de foca.

Mas deixemo-nos de macacadas, de caretas para a geral. Viva, senhor animal, subi presto estas escadas, entrai nesta pobre casa que é vossa por um ano, pois que não é desumano de andar com grão na asa. E se lá para as calendas, ao invés de mais prebendas, já se vir o fundo ao saco, não faz mal, caros doutores, guardai os vossos temores: a culpa foi do macaco.

12 Fev 2016

José Carlos Seabra Pereira | Professor universitário e crítico literário

Foi hoje apresentada no IPM a obra “O Delta Literário de Macau”, que analisa as letras portuguesas que por aqui têm sido produzidas. José Carlos Seabra Pereira, que recentemente recebeu o Prémio Jacinto Prado Coelho, é o autor de uma obra que relança o debate sobre a escrita local e o seu lugar na literatura lusófona

[dropcap]V[/dropcap]ai hoje lançar este tomo sobre a literatura de Macau. Mas (desculpe a brusquidão) existe uma literatura de Macau?
Existe claramente uma literatura em Macau. Quando dizemos “literatura de Macau” complicamos a questão porque se levanta uma perspectiva de identidade. Há uma literatura identitariamente macaense ou não? É um problema difícil de discutir e tem sido muitas vezes a desculpa para a ausência de uma análise mais desenvolvida da literatura que neste trabalho abordo. Eu não quis enredar-me excessivamente nessa questão.

No seu prefácio faz uma distinção entre a literatura que é inspirada, produzida e reconhecida em Macau mas que não é reconhecida em Portugal. No entanto, neste livro coloca autores que são, claramente, reconhecidos em Portugal.
Há sempre uma fronteira fluida. Existem autores em que é difícil estabelecer essa distinção mas noutros casos é fácil verificar que há autores do cânone da literatura portuguesa que, ou passaram por Macau ou porque estiveram cá durante algum tempo, escreveram em Macau ou introduziram elementos de Macau na sua ficção narrativa ou nos seus poemas líricos. Mas depois, para além desses textos, não têm nada a ver com a dinâmica do campo literário em Macau. Aqui introduzo o conceito de Pierre Bourdieu do “campo literário”. Procurei que fosse levados em devida conta os autores que estão perfeitamente integrados nessa dinâmica local, sem que isso implique, desde logo, um juízo de valor a priori. Uns não são mais valiosos do que outros. No fundo, neste volume trato aqueles que são filhos da terra ou radicados em Macau. Há escritores destes que mereceriam uma outra atenção da parte da literatura portuguesa e que acabam por não a ter. Poderiam alguns, contados pelos dedos de uma mão, claramente fazer parte dos manuais da literatura portuguesa e não fazem. Isso é injusto? Sim, mas é assim. Por outro lado, isso também se reflecte nas obras dos autores que aqui analiso como sendo de Macau, quer do ponto de vista temático, quer do ponto de vista formal. Não se trata de aqui ter nascido ou ser de origem macaense (outros vieram de Portugal e por aqui ficaram): o fundamental é ser aqui que eles se manifestam como escritores, aqui são reconhecidos como escritores; nalguns casos é aqui que eles próprios se reconhecem como escritores e é aqui que são objecto de edição, eventualmente de crítica, etc..

20012016-1Coloca, por assim dizer, autores muito diversos no mesmo saco.
Confesso francamente que para as pessoas de Macau lerem de uma forma aberta e compreensiva tudo aquilo que estariam prontas para ir procurar sobre autores contemporâneos locais, era preciso que antes não fossem como que afastadas por um gesto meu que tivesse erradicado certos autores que estariam à espera. Quem ler o livro verá a prudência de matizes que eu ponho quando abordo a obra de Camões no contexto de Macau ou como falo da questão do exótico em Wenceslau de Moraes ou da Maria Ondina Braga. Quero evitar uma reacção preconceituosa, motivada pela ausência de certos autores ou certos temas.

Peguemos no caso mais paradigmático de todos: Camilo Pessanha. Considera-o um autor de Macau? Faz parte da literatura de Macau?
O caso dele – como outro caso aqui no livro, com o século mais adiantado, que é o de Maria Ondina Braga – tem que ser considerado dos dois lados.

Mas não podemos considerar uma literatura portuguesa sem um topos determinado e localizado na Europa?
Podemos. Esta foi uma perspectiva que eu adoptei por me parecer interessante para Macau e por ser um trabalho sucessivamente adiado.

O seu trabalho parece-me importante por fixar Macau, no nosso tempo, como um local de produção e existência de uma literatura portuguesa.
E que vai evoluindo na sua relação com as outras literaturas, sobretudo euro-americanas. Houve alturas de maior desfasamento e retardamento, talvez pela distância e as dificuldades de comunicação, e outras alturas ao contrário, de perfeita sintonia e actualidade em relação ao que são os vectores fundamentais da cultura literária. É o caso do Camilo Pessanha que, ao mesmo tempo, consegue esta maravilha que é ter marcas especificamente decorrentes da sua vida aqui, no Extremo Oriente, em Macau, e ao mesmo tempo ser um maiores poetas simbolistas de todo o mundo, da literatura universal. Fechá-lo no cânone da literatura portuguesa seria empobrecê-lo.

Estamos aqui em Macau, numa situação de fronteira em relação à literatura portuguesa. Será uma fronteira limitada ou a literatura local poderá ter algum papel no contexto da lusofonia, que não está ainda bem previsto?
Situo-me nessa segunda hipótese. Hoje usamos muito o termo fronteira. Num plano rural, os extremos são o que separa uma propriedade da outra mas também é aquilo que liga. Isso também acontece no plano da cultura e em particular na evolução histórica da literatura. Hoje achamos que a existência de fronteiras é um bocado artificial…

Passámos do exotismo para a dissolução do autor. Ou seja, de um autor que mantém a sua identidade e descreve o exótico para um autor mais preocupado com as transformações que se operam em si mesmo.
E tudo aquilo que temos vindo a aprender, quer através de grandes pensadores, quer das circunstâncias da globalização, sobre identidade e alteridade, derrubaria qualquer tentativa de manter o conceito estanque de fronteira porque verificamos que estamos constantemente a encontrar, na experiência de cada um de nós e sobretudo na dos grande criadores artísticos, esse contacto do Eu com o Outro, mas mais: desde Pessoa e tantos outros, o Eu foi aprendendo a encontrar o Outro de Si mesmo. O século XXI veio acrescentar a isto que o Outro de Si mesmo se encontra na relação dialógica com a Alteridade.

Seria como dizer: “Sou mais estranho a mim próprio que um Chinês me é estranho”. Mas, afinal, o que tem a literatura de Macau de especial para oferecer diferente das outras literaturas lusófonas? O que encontrou que a pode distinguir?
Noutras épocas, em que havia um défice de poliglotismo cultural, perfeitamente explicável pelas circunstâncias, o que Macau trazia de interessante era uma espécie de tensão entre certas linhas de continuidade quase forçosamente tradicionalistas e, ao mesmo tempo, certos tropismos de diferença que a situação de tão longe da Europa e tão longe de Portugal e tão próximo da China obrigavam. Em segundo lugar, mais recentemente, em que existe mais facilidade de comunicação, por ser outro tipo de pessoas que renovam o substrato de onde saem os escritores de Macau, já oferece outras coisas, mas que podem ser também a assimilação de linhas fundamentais da cultura chinesa e também da sua poética mas num discurso literário em construção aberta com um substrato cosmopolita muito grande.

20012016-4É bom saber que não se trata apenas de uma literatura do exotismo…
De maneira nenhuma. Creio que não escondo que a literatura de Macau do século XX, durante algum tempo, apesar das qualidades inegáveis dalguns dos escritores, sofria de um certo arrastamento temático e formal, em relação ao que era uma evolução mais acelerada dos padrões literários na Europa e na América.

Falta de informação, de comunicação…
O contexto era muito diferente. No princípio do século XX, as notícias pregnantes sobre as correntes modernistas era quase nula. Arrastava-se uma literatura, que dentro do género era bem feita, mas de um neo-romantismo lusitanista, etc.. Depois, há um realismo que embora venha mais tarde do que na Europa, apesar de tudo já não está tão desfasada. A partir de Deolinda da Conceição nós temos uma vertente de realismo social que começa a acertar o passo com a qualidade de estar a reagir a condições de vida, histórico-sociais, particulares.

Deolinda da Conceição e Senna Fernandes…
Sim e também alguns aspectos da ficção narrativa de Rodrigo Leal de Carvalho. Senna Fernandes evolui e desdobra para outros aspectos que, não sendo menos locais, porque é também uma espécie de etnografismo literário, acaba por ter outras qualidades e outro alcance.

O etnografismo foi sempre uma grande tentação, sobretudo para o escritor que vem de fora.
Sim. Mas, a partir dos anos 80, há cada vez maior proximidade entre os motivos inspiradores e mesmo certos problemas do discurso literário. A literatura de Macau não está a copiar isso mas a reflecti-los e interpretá-los à sua maneira. Há uma transformação maior, com os inerentes riscos, também no plano do significante, quer nas estruturas de composição, quer no estilo, na linguagem e no gosto de uma certa experimentação formal, que nunca aqui se transforma num mero jogo formalista mas é a tentativa de renovar a criação de sentido através de novas formas. O estranhamento, a quebra das rotinas, algo que aparece muito bem nos poetas que se vêm destacando em Macau. Esta literatura torna-se cada vez menos previsível.

Nesse sentido, podemos falar de uma “literatura de Macau”, mas será difícil falarmos de um fundo comum aos autores que escrevem hoje. Tal como acontece em Nova Iorque ou Lisboa…
É verdade. No período que vai de Senna Fernandes a Rodrigo Leal de Carvalho, por contraste com outro período que poderíamos marcar com a emergência da Fernanda Dias, havia um fundo comum. Talvez fosse necessário, havia uma lacuna, um vazio a preencher. [quote_box_right]“Há escritores que conseguem, não fazendo doutrina, mas através da própria ficcionalidade da sua obra lírica ou narrativa, figurarem aspectos da condição humana. Grandes temas como o abandono, a solidão, a resiliência, etc., aparecem nos grandes narradores de Macau”[/quote_box_right]
Esses autores, mais na ficção do que poesia, encontraram formas de dar vida ficcional a realidades históricas e sociais peculiarmente de Macau. Tanto Henrique de Senna Fernandes, Leal de Carvalho e Maria Ondina Braga são criadores de grandes personagens. Podemos esquecer boa parte do enredo, mas há certas personagens que são fundamentais. Essa é a grande tradição do romance, antes do Nouveau Roman francês vir complicar as coisas: contar bem uma história e criar personagens que ficam indeléveis na memória literária. Pode-se ler o que distingue melhor o Senna Fernandes sobre a categoria da resiliência, por exemplo. Diz-se que são umas histórias de amor que acabam sempre com um final feliz. Mas, indo mais fundo, o que a gente vê é que há ali grandes fenómenos que mostram uma vertente social, comunitária, por um lado, mas ao mesmo tempo são muito individualizados, num constante processo de frustração, degradação, e depois de recuperação não por reconversão a padrões alheios, mas pela tal resiliência. De recuperação do que era o fundo próprio daquele ser. Incluindo o papel das energias amorosas. Se vamos para a Maria Ondina Braga é outro problema. São as vidas vencidas e a questão do tempo interior.

Está assim a dizer, de algum modo, que cada autor expurga os seus fantasmas no contexto de Macau… e não retrata propriamente Macau.

As duas coisas. Um bom autor faz as duas coisas. O Rodrigo Leal de Carvalho vai mais pelo lado do humor, de uma certa bonomia, uma certa tolerância. Retrata situações humanas, por vezes lancinantes, mas sempre com uma patine de humor que evita o patético.
Gostava ainda de falar do etnografismo lírico para o qual alguns poetas foram arrastados, o que se compreende. Há um valor de antropologia literária que ultrapassa isso. Há escritores que conseguem, não fazendo doutrina, mas através da própria ficcionalidade da sua obra lírica ou narrativa, figurarem aspectos da condição humana. Grandes temas como o abandono, a solidão, a resiliência, etc., aparecem nos grandes narradores de Macau. Há um património literário que não pode ficar contido nas fronteiras da comunidade de leitores de Macau.

Entende que a literatura de Macau pode ter um lugar fora desta cidade?
Claramente. Vai crescendo uma representação e figuração simbólica desta realidade, que hoje nos parece evidente, de Macau como espaço de multiculturalismo. Há muitas formas de estar instalado no multiculturalismo. Há um em que as comunidades diferentes têm que partilhar o mesmo espaço mas depressa buscam fora das obrigações do quotidiano redutos com fronteiras muito marcadas em que não há nenhuma fascinação profunda pelo Outro, nem um esforço por um diálogo e interacção. Até se passar depois para um multiculturalismo mais recente em que a própria evolução sócio-económica obriga a que a separação muito nítida (cidade cristã-cidade chinesa) se rompe e começa a haver espaços de interacção. Estamos, contudo, ainda longe de se passar do limiar da tolerância para uma política de reconhecimento. E de reconhecimento activo. Tarda a aparecer na literatura, tal como a diferença entre multiculturalismo, que pode ser estático, e interculturalidade, que é diferente.

Macau é constituído por camadas que pouco se tocam.
Eis uma modalidade pobre de multiculturalismo. A interculturalidade é mais exigente. Em “A Trança Feiticeira” encontramos uma experiência de interculturalidade, com todas as dificuldades que isso levanta aos protagonistas.

Bem, uma experiência muito sui generis. Não a mais comum…
Talvez a partir de Fernanda Dias as coisas se ponham de maneira diferente.

A perspectiva feminina é bastante interessante desse ponto de vista. A perspectiva masculina é, fundamentalmente, colonialista, na medida em que se baseia na perspectiva do macho ocidental, com dinheiro e uma sexualidade facilitada no Oriente. Isso está na literatura, se bem que escondido atrás de alguns pruridos… Fernanda Dias dá-nos outra perspectiva.
Quando havia alguma miscigenação, era sempre de homem caucasiano com mulher chinesa. Em Fernanda Dias, já aparece, de forma relativamente velada, simbolizada, mas insofismável, a relação de desejo entre a mulher de matriz europeia com o homem chinês. Isso altera as coisas e perturba o status quo até então estabelecido. Há um estádio da miscigenação que podia ficar como uma nova forma de exotismo. A literatura de Macau acrescenta a mestiçagem no sentido cultural. Uma das coisas que me atrai é não só essa mestiçagem cultural mas uma certa crioulização da língua. Vejo isso em termos de cultura e em termos de língua. A língua literária do Senna Fernandes, por exemplo: há certos passos que nos espantam. Do pitoresco isso passou para uma coerência orgânica.[quote_box_left]“O caldo de culturas de Macau é muito rico o que dá maior responsabilidade aos autores e aos editores”[/quote_box_left]

Vale a pena que esta literatura seja lida e divulgada em Portugal e nos países lusófonos?
Claro que sim. Falemos da literatura de Macau em língua portuguesa. Começaria por responder através de uma contra-prova. A Maria Ondina Braga, embora não tanto como ela merecia, acaba por encontrar um público de bons leitores e atenção de ensaístas e universitários. A literatura de Macau, quer a que está a produzir agora, quer antes na segunda metade do século XX, merece encontrar uma ressonância quer em Portugal quer noutros países. Era importante uma política de tradução. Provavelmente, em Portugal, nos círculos onde se trata da literatura, a literatura de Macau talvez seja prejudicada pela evidenciação das literaturas africanas para não falar da literatura do Brasil. Há factores político-económicos. Acontece o mesmo com a literatura de Goa ou Timor. O caldo de culturas de Macau é muito rico o que dá maior responsabilidade aos autores e aos editores.

29 Jan 2016

Personalidade do Ano e outros prémios

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ersonalidade do Ano
Vítor Sereno
O cônsul-geral de Portugal em Macau estará de saída. Para trás, ficam três anos de um excelente trabalho. No entanto, não é por ter cumprido bem a sua missão que Vítor Sereno se distingue. É que, para além disso, o diplomata poderá ser considerado uma espécie de “cônsul do povo”, pelo modo franco, aberto e afável como interpretou o seu Consulado. Chegou dizendo que vinha para fazer. vitor sereno consulE fez: modernizou os serviços, reabriu o auditório, fez obras no Bela Vista e, sobretudo, conviveu de bem perto com a comunidade, como raramente acontecera em Macau. Acumulando o cargo de delegado do AICEP (e depois), desdobrou-se sempre em contactos para aclimatar empresários portugueses e chineses que pretendiam relações económicas com Portugal. Mais: passou incólume ao lado do escândalo dos vistos dourados, quando se encontrava numa posição delicada, enquanto cônsul em Macau. A nível interno do Consulado, Vítor Sereno fez igualmente um bom trabalho, sobretudo se tivermos em conta que sofreu cortes substanciais. A equipa de futebol, em que participa, foi um achado. A página no Facebook, uma acção plena de consequências. Para onde irá, não se sabe. Mas poderá sair de Macau com a consciência de ter realizado um bom trabalho. Deixará saudades.

O Bico-de-Obra do Ano

Hotel estoril
Começou por ser uma boa ideia, mas em Macau nada é simples. Quando surgiu a notícia de o prédio viria abaixo e nem a fachada se salvava, caiu o Carmo, a Trindade e a Nossa Senhora da Penha. Nem o nome de Alvaro Siza, como arquitecto do novo projecto para o lugar, sossegou as hostes. Razões de um lado, razões do outro, e Alexis Tam ficou com uma decisão difícil nas mãos. As consultas não resolvem, as opiniões avulsas também não. E, como sempre acontece na RAEM, já devem existir duas associações, uma contra e outra a favor, e as duas dispostas a jantar à conta do problema. A vida não é fácil.

Figura Internacional do Ano

Papa francisco
Quase não dá para acreditar que este Papa existe, mas a verdade é que ele continua na sua tarefa de reformar a Igreja de alguns poucos cristãos preconceitos. papa francisco É certo que tem inimigos, fora e dentro do Vaticano, que lhe chamam comunista e etc., contudo, o Papa Francisco prossegue a sua campanha de proximidade, frugalidade e aproximação a um cristianismo menos proibidor, mais integrante, no qual o amor poderá voltar a funcionar como elo de ligação entre os homens. O seu combate aos desenfreados interesses económicos e à desigualdade fazem dele a figura de 2015.

Político do Ano

José Pereira Coutinho
Ia batendo o recorde de candidaturas a cargos políticos e transnacionais. O deputado e conselheiro teve um ano superagitado mas, apesar das candidaturas portuguesas, não se esqueceu nunca de agir enquanto deputado da RAEM, sendo uma das vozes mais incómodas do hemiciclo. Contudo, a parte que teve mais graça foi ver que a sua candidatura à Assembleia da República causou o pânico entre os partidos tradicionais e só não resultou porque foi “papado” pelo sistema.

Governante do Ano

Alexis Tam
O Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura prometeu e cumpriu… algumas coisas, nomeadamente o que o deixaram. Apesar das resistências e da magnitude da pasta, Alexis Tam insiste em fazer, tendo demonstrado um bom desempenho na defesa das suas LAG. O pior é que ele há muito, mas muito, para fazer e o Secretário defronta vários polvos por essa cidade fora. Descentralizar talvez fosse uma boa ideia… ou talvez não.

Revelação do Ano

Raimundo do Rosário
Do actual Secretário para as Obras Públicas e Transportes esperava-se muito. Mas não se esperava uma postura tão desassombrada como a que mostrou no debate deste ano das LAG. Querem saber? Estão aqui os documentos. Quanto custa? Estnao aqui as contas. raimundo do rosárioQuando vai estar pronto? Quando Vossas Excelências deixarem. E assim surpreendeu o nosso incipiente e boquiaberto parlamento. Quando as bocas se fecharam, apareceu o seu director Li Canfeng a dizer que vai mostrar contas de três em três meses. E avaliar com os deputados os novos projectos. O seu antecessor, Lao Si Io, demonstrou ser um anti-cartesiano: pensava mas não existia. Raimundo do Rosário duvida, pensa e existe e isso é, sem dúvida, uma revelação.

Desilusão do Ano

Magistrados portugueses
O tocar a recolher dos magistrados portugueses por parte do Ministério Público de Portugal é, como todos afirmam, um disparate e grave. Todos? Todos não… num pequeno escritório em Lisboa alguns iluminados não conseguem encontrar outra solução que não sejam exterminar a presença de elementos da magistratura portuguesa no seio de um ambiente jurídico estrangeiro. Como resolver esta questão?

Artista do Ano

José drummond
Este foi um ano de consagração para José Drummond, cujo trabalho se desdobra em diversos media. josé drummondA exposição que realizou em conjunto com Peng Yu na Fundação Oriente, para além de juntar dois artistas de origens quase radicalmente diferentes, expressa-se numa linguagem contemporânea rara em Macau. Drummond tornou-se num dos poucos nomes seguros do panorama artístico da RAEM.

Instituição do Ano

Babel
Esta associação cultural, fundada e dirigida por Margarida Saraiva e Tiago Quadros, desenvolveu ao longo de 2015 uma série de iniciativas de grande qualidade e com um alcance bastante mais durável. Ao invés de investir unicamente em exposições, a Babel procura integrar a cidade nos seus projectos, como aconteceu com o MAP (Macau Architecture Promenade).

Evento do Ano

Pearl Horizon
Um caso que foi um verdadeiro braço de ferro e que contou, surpreendentemente, com decisões do Governo às quais não estamos habituados. Não se pode dizer que a notícia da retirada do terreno do Edifício Pearl Horizon tenha caído que nem uma bomba – até porque já se sabia desta eventualidade há mais de um ano -, mas pode-se dizer que as manifestações de pequenos proprietários e o apontar de dedos entre a empresa e o Governo foram realmente merecedores de muita atenção.

Vergonha do Ano

Podia ter sido uma oportunidade para Macau brilhar na esfera internacional, mas não. Nem cá dentro, nem lá fora – a RAEM continua na lista negra dos locais que ainda permitem a barbárie das corridas de galgos e, pior que isso, as más condições a que são diariamente sujeitos os animais que nelas participam. Centenas de mortes ao ano e milhares de assinaturas depois, o Governo decidiu brindar o Canídromo com mais um ano de funcionamento, parecendo esquecer que, durante meio século, já houve oportunidades suficientes para se fazer melhor. Nem a quebra estúpida das receitas das corridas fez o Executivo pensar que isto já não vale a pena, que o local dava um perfeito jardim para a zona com mais densidade populacional do mundo ou simplesmente que já não se encaixa em nenhum sector da economia de Macau. Resta esperar para ver se, para o ano, a vergonha acaba ou se vamos inventar mais estudos para continuar a esconder a cara.

Prémios especiais

Ai que jeito que me deste do ano

Lei das Rendas
Tudo parecia começar bem mas, feitas as contas, a nova lei vai surgir para proteger os senhorios e não os arrendatários. Um “escândalo” made in Macau e only in Macau. De facto, só aqui os deputados/senhorios têm a lata de usar a lei para isto.

O vale tudo do ano


Fong Chi Keong

O homem-forte da Associação de Beneficência do Kiang Wu acha que bater na mulher e nos filhos “acontece”, é pelo tabaco, expulsa velhotes dos seus negócios, protege os senhorios e é pela medicina privada contra o serviço público. Mais: diz isto tudo na Assembleia Legislativa, para a qual foi nomeado pelo Chefe do Executivo. Melhor que isto nem na antiga Jugoslávia.

O vai lá fora e não voltes do ano

Proibição total de fumar nos casinos
O Governo bem pode dizer e mostrar números. As concessionárias mostram outros. A verdade é que todos sabem que os jogadores gostam de fumar e fumam. Se não fumam aqui, vão fumar a outro lado. Ir lá fora fumar um cigarro é um convite para não voltar. E não jogar.

Tirem-me daqui do ano

Chu Lam Lam
Um caso de mau casting. A ex-directora dos Serviços de Reforma Jurídica e do Direito Internacional nem reformou e quando internacionalizou foi um desastre. Por outro lado, nunca soube compatibilizar os serviços internamente, depois da fusão com o GADI. A sua saída era esperada e augura-se-lhe uma excelente carreira docente na Universidade da Montanha.

E agora Manel? do ano

Lionel Leong
O Secretário tem de ler o guião de “Missão Impossível”, antes de ir a Pequim falar sobre diversificação económica. Apanhado pela austeridade e pela quebra das receitas, desperta numerosas interrogações sobre qual será realmente a sua estratégia. A renovação dos contratos de jogo constitui mais um ponto de interrogação no seu horizonte.

Já não sei a quantas ando do ano

Associação Novo Macau
Confusão total na mais tradicional de todas as associações “democráticas” da RAEM. os dois históricos têm um pé fora e um pé dentro. Os outros são miúdos, cujas intervenções fazem mais sentido nas questões fracturantes do que nas que nos põem e tiram o pão da mesa. O que vai acontecer no futuro é algo de indizível mas seria altura de surgir alguém com barba na cara.

O docinho do ano

Águas territoriais
Pequim deu este docinho a Macau nos dezasseis aninhos da RAEM: 85 quilómetros de águas territoriais. Finalmente temos águas onde nadar e espraiar a nossa criatividade e capacidade de crescimento. A pergunta será: e Macau, sabe nadar?

3 Jan 2016

Os TNR e o fracasso da diversificação económica

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e um extra-terrestre aqui caísse de pára-quedas ficaria confuso quando se começasse a informar sobre certos aspectos da economia de Macau. Por exemplo, a tal propalada diversificação económica.
Que é difícil. Que o peso do Jogo torna a tarefa impossível. Que isto e que mais aquilo. E, plano após plano, Governo após Governo, Secretário atrás Secretário, a diversificação económica não arranca, muito menos se consubstancia.
Entretanto, Pequim vai batendo na mesma tecla. Resmunga que é precisa, zurze que é necessária. A cada subida do Chefe ao Norte ou a cada descida de um dignatário ao Sul, lá se repisa a mesma tecla: a malograda diversificação económica, em tom de marcha fúnebro ou de ralhete bem medido.
Não parecem por isto corar as faces dos nossos governantes. E diga-se, de passagem e com toda a franqueza, que não têm sobre os ombros tarefa de invejar. E isto porque, para além de muitas razões, deparam-se com situações que raiam a esquizofrenia. casinos jogo lisboa
Por exemplo. É vox populi, enraizada nalgum bom senso e conhecimento da economia, que as Pequenas e Médias Empresas (PME) terão um lugar importante, senão vital, na diversificação. Todos os anos o Governo anuncia um pacote de estímulo, que ee aplaudido mas que, no fim, revela sempre a sua ineficácia.
Contudo, não se poderá dizer que existe má vontade do Executivo em relação às PME. Só que o que dão com uma mão tiram com outra. É que a maior parte das PME precisa de trabalhadores não-residentes (TNR) como de água para a sede. Mas, verifica-se, cada vez é mais difícil, quando não impossível, a sua contratação. Isto é o que dizem os responsáveis por essas pequenas empresas.
O mercado laboral de Macau, constituído por residentes, nem de perto nem de longe pode fornecer mão-de-obra suficiente para as necessidades das PME. Estas exigem qualificações pelas quais os residentes esperam salários elevados, algo que as PME não podem realmente pagar, sobretudo se atendermos ao actual preço das rendas.
Só os TNR podem realmente dinamizar, constituir o sangue que fará girar a economia da RAEM. Afirmar o contrário é condenar ao fracasso qualquer tentativa de diversificação económica.

30 Dez 2015

A única coisa que tenho para te dar é o mundo

[dropcap style=circle’]S[/dropcap]ó há uma solução: avançar. Não parar. Não soluçar. Seguir em frente. Eis o único movimento digno desse nome, eis a única saída.

O resto são desculpas. Todos as temos, todos as proferimos e todos nos arrependemos. Qual a mais-valia da inércia? Qual o lucro que preside ao sossego? Que vantagem tiramos da repetição?

Cada leitor terá a sua resposta, cambada de imbecis, como se não existisse apenas uma e uma única, solitária, desdenhosa, impante de glória e desejos de vitória: seguir em frente, andar avante, deslizar sobre os carris sem tergiversar.

Nunca um passo atrás, como queria Lenine, porque esse só me permitirá meio passo em frente. Nunca a contemplação, ainda menos as crenças em visões ou segredos esotéricos. O único esoterismo que vale a pena é o de minha mãe. O resto são mitologias bacocas.

Vamos em frente. Sem hesitações, baias ou devoluções. Não devolvas o que compraste; não empenhes o que não é teu. Não olhes para trás porque as causas das coisas não existem. São uma factura que, ainda por cima, te obrigam a pagar.

Diz que não. Não vás por aí. É que ele existem melhores caminhos. Ainda que se façam sozinhos.

Dá-me a tua mão. Não te levarei a nenhum lado porque também não sei qual a via, onde pára afinal essa estrada. Só quero a tua mão, porque gosto de ti e me apetece a tua companhia.

Nada nos diria que a vida é mesmo assim. Atrapalhada e confusa, desgastada velha de cabaré. Oficiante das noites e dos dias, do nevoeiro, do sortilégio dos odores. Mas é. Assim mesmo: dotada de todos os sentido que lhe quiseres proporcionar.

Vem comigo, por favor. Não esperes demais. A única coisa que tenho para te dar é o mundo. O resto, sinceramente, pode esperar. Eu não posso. Falece o tempo. E nele se dissolve esta partícula a quem num dia de desespero ensinaram a dizer “eu”.

29 Dez 2015

Ganância pessoal: a fonte da desarmonia

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]í está o que Pequim tanto temia: a possibilidade de existirem em Macau manifestações como a que a tentativa de aprovação do regime de garantias deu origem. Só que desta vez é mais grave.
Com efeito, a manifestação contra o regime de garantias dizia respeito a uma indignação motivado pelo facto dos senhores do poder quererem mordomias depois de abandonarem os seus cargos. Mas a que aí vem é muito pior.
Agora não se trata das mordomias alheias mas da nossa própria vida e sobrevivência, o que justificará uma maior indignação. Mas terá razão o povo se vier para a rua porque, desta vez, dói-lhe mesmo na pele.
E isto por quê? Porque a ganância dos nossos oligarcas não tem limites. Esta semana começou com o inenarrável discurso de Fong Chi Keong, no qual, com todas as letras, teve a lata de confessar ser contra o investimento na Saúde Pública porque tal traria menos lucros ao seu Kiang Wu. Agora é esta mania de mudar a Lei do Arrendamento porque, já todos perceberam, o mercado está a cair.
Quer dizer: quando o mercado sobe não se pode intervir, mas quando desce já é obrigação do Governo proteger os senhorios. É preciso, no mínimo, ter lata e falta de medo da prisão. E isto vindo de deputados nomeados pelo Executivo…
Ora esta pretensão dos deputados/senhorios pode, de facto, ter repercussões sociais desastrosas. Nomeadamente, grandes manifestações na rua. E tudo isto porque o interesse egoísta de alguns se sobrepõe ao tão apregoado patriotismo.
Só estão preocupados com os seus lucros. E com isto são não apenas capitalistas mas capitalistas selvagens, disposto a sacrificar o bem comum pelos seus interesses. Não se percebe como é que Pequim tolera estes comportamentos. Será que ainda não pagou as contas todas, quinze anos depois, a estas famílias que só pensam no seus próprios interesses e nunca na população?
Tudo o que estes senhores amam de Macau e da China é o conteúdo das suas algibeiras e contas bancárias. Quanto ao resto, é para panda ver… A ganância bem que poderá vir a ser a causa da desarmonia na RAEM. Occupy Leal Senado, remember… Há quem só esteja à espera de um pretexto e estes oligarcas dão-nos quase todos os dias.

17 Dez 2015

À espera do Vento Norte

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Cimeira de Paris sobre o clima terminou com um acordo no qual a China desempenhou um papel fundamental. É nestes momentos globais que o País do Meio se afirma como parceiro incontornável e disposto a assumir as suas responsabilidades, enquanto maior poluidor e segunda maior economia.
Para crescer, a China exagerou. Compreende-se mas agora é tempo de voltar atrás e verificar o que é ainda possível salvar de duas décadas de um capitalismo tão selvagem como o da Revolução Industrial – a mesma que deu origem ao smog, fenómeno que hoje afecta as cidades chinesas como no século XIX afectava as cidades inglesas.
Mas a China acordou e parece ter vontade de se curar da febre de crescimento, cujas doenças colaterais estão a afectar de forma séria a sobrevivência condigna de milhões de pessoas. Hoje a questão da poluição é um tema nacional, que exige, para recuperar dos excessos cometidos, um empenhamento de todos, sob pena de redundar num fracasso. Nesta contexto, é óbvia a pergunta: que papel poderá a RAEM desempenhar?
A resposta mais evidente seria: dotada de um orçamento várias vezes superior ao de qualquer cidade chinesa (per capita, entenda-se), Macau teria a obrigação de ser pioneira na questão ambiental.
Mas é isso que por aqui vemos? Muito pouco ou quase nada. Macau não recicla, não limita o uso de sacos de plástico, não existe legislação para a circulação de veículos eléctricos, os transportes públicos e os autocarros dos casinos são extremamente poluentes, etc., etc..
Obviamente também, a segunda pergunta seria por quê? Vale a pena perguntar. Todos sabemos a resposta. Para a riqueza de meia-dúzia – e pela inércia dos que nos governam, incluindo os deputados – sofre a população e compromete-se o futuro, para além de não se desempenhar o papel patriótico de mostrar novos caminhos ao país.
É pena mas é assim. Até que um vento forte sopre de Norte e afaste da cidade esta incómoda poluição, continuaremos a respirar este permanente fedor que dificulta a respiração e, talvez, no limite, impeça a cidade de verdadeiramente crescer.

16 Dez 2015