Análise / Xi Jinping | O grande passo atrás

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] proposta de alteração da constituição chinesa, nomeadamente a remoção do limite de dois mandatos para presidente e vice-presidente, feita pelo Partido Comunista Chinês e ainda não aprovada, constitui um passo atrás na História, um golpe profundo nas aspirações “científicas” do regime e um abrir de uma caixa de Pandora de onde poderão sair malefícios dispostos a afectar o mundo.

Não foi por acaso que Deng Xiaoping introduziu esta norma, até aí e ainda hoje inexistente no dito “mundo socialista”. A China acordava do pesadelo da Revolução Cultural, na certeza de que seguir a vontade de um só homem podia conduzir o país ao descalabro. Sabiamente, Deng compreendera que a libertação das forças produtivas implicava também uma mudança significativa na estrutura do poder, de modo a que não se criassem as condições para uma repetição da História que, sabemos desde Marx, acontece primeiro como tragédia e depois como farsa.

Ora se a Revolução Cultural representa uma trágica repetição da História, nomeadamente da violenta ascensão da dinastia Qin e da destruição cultural subsequente, o regresso da China a um tenaz comando centralista e providencialista provavelmente desenrolar-se-á como farsa, sob a luz dos holofotes mediáticos, numa teatralidade já obsoleta, que não seduzirá gente esclarecida.

Isto porque confiar na existência de homens providenciais é tique de um mundo antigo, enraizado na superstição e no alívio da submissão, distante da pretensão de cientificidade que o PCC gosta de utilizar no seu discurso e na definição dos seus objectivos. Na verdade, trata-se de uma desgraça, velha como o mundo, áspera como balas e de consequências funestas. Existe aqui algo de religioso neste pensamento que, no século XXI, deveria estar totalmente afastado, erradicado, sanitizado, dos meandros do poder. Até porque o culto da personalidade, por muito que agrade às informes massas, deve ser mantido nos limiares das revistas de famosos, na medida em que roça o ridículo numa mente esclarecida, contemporânea e, sobretudo, escaldada pelo “carisma” de alguns personagens do século XX.

Trata-se, no limite, de algo exorcizado por Deng Xiaoping, cuja sabedoria proporcionou à China o lugar que hoje ocupa no plano internacional e impulsionou o crescimento interno que espanta o mundo. Infelizmente, agora prevê-se o regresso de um certo infantilismo de cariz popular, insuportável a olhos lúcidos e a ouvidos educados, na medida em que desvenda o aspecto teatral do relacionamento do poder com as massas populares. Xi Jinping, que se apressou a classificar de “nihilismo histórico” o pensamento filosófico finissecular europeu (pós-moderno), não deveria precisar de importar os valores escatológicos do Ocidente (judaico-cristãos) para justificar um Mandato do Céu.

A China implementava o discurso do “governo científico”, mais assente na máquina do Partido do que na benevolência e sapiência de um só homem. E com esta postura distinguia-se de outros países ditos comunistas ou pós-comunistas. Inaugurava, para gáudio de alguma esquerda, um novo sistema de transferência de poder em ambiente autoritário, que garantia alguma alternância, luta política, portanto, satisfação. Sem perder mão das rédeas, nem deixar de picar o cavalo na direcção pretendida e apresentando tremendos resultados económico-sociais. Tudo isto sem recorrer ao abstruso culto da personalidade ou mesmo evitando-o como Maomé evitava o toicinho, pois lembrava-se ainda na pele dos efeitos maléficos de tal sorte.

Resta equacionar, sobretudo pelos actuais líderes chineses, se esse extraordinário desenvolvimento económico-social não foi precisamente consequência do novo ordenamento político e motivado pela constitucional e inevitável sucessão: do mesmo modo que as forças produtivas se libertavam no mercado e na sociedade, também as forças políticas prosperavam no interior do PCC e o horizonte certo de mudança não só motivava a criatividade como pacificava a mecânica dos desejos. Ao impor a alternância, a constituição pacificava as facções excluídas dos lugares cimeiros, porque instituía a possibilidade de ascensão. Neste sentido, a alteração constitucional parece um passo pouco inteligente, pelo qual o PCC se extirpa dessa dinâmica que o manteve a flutuar à tona da sociedade chinesa, sem contestações de maior, durante os anos rebeldes da transformação.

Xi Jinping, seguindo um famoso texto de 1937 de Mao Zedong (“Sobre a contradição”, no qual o fundador da RPC recusa a síntese hegeliana e funda o materialismo histórico sínico), identificou a actual contradição do socialismo com características chinesas: o fosso aberto entre ricos e pobres, alimentado pela crescente corrupção. E, de forma brilhante, entendendo que aí residia a salvação do Partido face ao crescente descontentamento popular, iniciou uma gigantesca campanha anti-corrupção, ganhando num golpe a aprovação das massas e a capacidade de eliminar indesejáveis.

Por outro lado, implementou uma internacionalização estruturada da China, através da iniciativa Uma Faixa, Uma Rota (que representa a primeira medida de carácter planetário até hoje concebida e implementada) e da modernização radical do Exército de Libertação Popular, que manteve sob o controlo estrito do Partido, agora capaz de defender as aspirações chinesas no Mar do Sul. Assim, a China surgiu no planeta como a única superpotência com capacidade e vontade para desenvolver uma cooperação mundial de benefício comum, preocupada com o meio ambiente (apesar de ser o segundo maior poluidor) e criadora de conceitos globais, como a “comunidade de futuro comum”, algo que os americanos não se preocuparam em fazer e do qual se distanciam, num exercício de arrogância que deixa descalço o ocidente perante a investida oriental, armada de dinheiro e de valores globais.

Mas, ao entrar no que o PCC define como “nova era”, com esta alteração constitucional, a China arrisca-se a dar um passo atrás, ainda que simbólico, ao deificar um governante. Deng previra este perigo e exorcizara-o constitucionalmente. Deste modo, a China arrisca-se a reproduzir, pelo menos para o mundo, uma nova dinastia semelhante à que governa a Coreia do Norte, hoje alvo da chacota de muitos chineses, que a classificam de “monarquia absoluta”. Tal não abonará a favor da sua imagem global como constituirá um rude golpe nos que viam nas alterações introduzidas no PCC um eventual modelo de para outros regimes de partido único. Pensamos, por exemplo, nalgumas ditaduras africanas e na influência benéfica que a comparação com a China poderia, eventualmente, produzir.

Contudo, tudo indica que o passo está dado e a constituição será alterada, abrindo caminho à eternização de Xi e dos seus aliados na cadeira do comando. O futuro dirá se não se trata de um tiro no pé, mais motivado pela uma arrogância infantil de quem sente um extremo poder antes sonegado, porque, sejamos francos, só uma mentalidade de criança aceita a existência de homens providenciais.

Ao negar a extensão do poder além de dois mandatos, a constituição chinesa sabiamente evitava o infantilismo político, cujas trágicas consequências estão bem documentadas pela História. Um grande político deve ter a consciência da necessidade de se retirar da cena pública, sob pena de se transformar (a si e, sobretudo, aos que gravitam à sua volta) naquilo que procurava combater. Já sem falar das maleitas sociais provocados pela inércia que decorre de tal situação, entre as quais a corrupção desempenhará papel preponderante. De facto, podemos imaginar que, à imagem do presidente, outros postos do PCC nas províncias ganharão um estatuto idêntico, eternizando os mesmos no poder, com as consequências conhecidas.

Esperemos que, em 2023, independentemente das mudanças constitucionais, Xi Jinping mostre que é um grande líder e tenha a sabedoria de escolher reformar-se, dando a outros o seu lugar. Para bem da China e do mundo.

27 Fev 2018

Ser lobo

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] Ano de Galo não foi, por muitas razões, de feição. Que o animal era bravo, bem o sabíamos, mas o aviso não evitou os sobressaltos, as convulsões, as guerras, as doenças, os desatinos.

Os de nós que ainda aqui estão lembrar-se-ão de um ano de Trump, de Putin, de Xi Jinping. Noutro plano, de Duterte, Maduro, Kim Jong-un. Um ano a antever perigos, catástrofes, aniquilações massivas, secas e cheias, escândalos e, sobretudo, uma sensação de impotência perante o espectáculo do mundo.

Neste século XXI não existem baias. Tudo parece ser possível, mesmo o que há muito pouco tempo se julgava impossível. E isto deixa-nos náufragos de bóia em bóia, no ciberespaço ou na vida. O Galo deixa-nos de crista murcha. Foi um ano que não prestou.

Entra agora o Cão, de cauda hirta, desconfiado, a cheirar os cantos e a manter precavida distância. Há que o mimar, estender-lhe a mão e guloseimas, brindá-lo com festas sem de afagos o submergir.

O Cão gosta de donos, não de mordomos. É um animal que num ápice nos sente e nos entende. Ele sabe o que aí vem. Raramente tem dúvidas e nunca se engana. Às vezes, mas só às vezes, é o dono que o leva ao engano, ao disparate, à dentada cega.

Como escreveu Ptolomeu, a astrologia nada diz, mas já disse tanta coisa. Quanto mais não seja, elaborou uma lista de tipos, de carácteres, de previsibilidades. Errada ou certa, ela está aí para consulta.

Melhor que o destino, é a fé. Avançar sem medo de rosnadelas ou de latidos da cãozoada. Acreditar em tudo e em nada, mas não nos contentarmos com o osso. Uivar à Lua. Esquecer a coleira. Numa palavra, ser lobo.

20 Fev 2018

Ano do Galo

Já canta o galo.

E fá-lo longo, no risco da aurora.

Algo chora… febril ou flauta,

ou será pauta de um juvenil destino?

 

Já canta o galo.

Ralo o canto por rala a voz.

É atroz o universo: quando nasce…

quando se reduz a um verso.

O mundo escouceia, mal o galo,

com o tal verso, o incendeia.

 

Estremunha a aldeia, o fel desliza.

É dia de santo, não muge brisa.

Súbitos, após a missa, revibram os sinos.

Numa panela, um padre guisa dois assassinos.

 

Cristo, sempre alado, prevê a estação,

talvez o herdeiro: lá p’ra Fevereiro emergirá.

Será gentil, será dotado e de bom grado nos salvará.

 

………….

 

Calou-se o galo.

É um regalo flutuar neste intenso silêncio.

A chuva e o suão, os néons e o pó esmoreceram.

Faz no entanto dó testemunhar um mundo assim.

Ofegante no jardim, madrugada por raiar

e o galo por cantar. Para onde irás se não há mar?

 

Calou-se o galo.

Incertas, as coisas adquirem o seu valor seminal.

Nenhum animal as demora nem ilusões as detêm.

Lêem o jornal na luz da noite.

Freme o açoite, algo crava a jugular.

Não ligues, rapaz: foi ilusão… fora… um ar…

dois coriscos que passeiem na veia da avenida.

Faz o pino e lambe a ferida. Tudo se evaporou…

 

O ano fina-se em amáveis cacarejos.

O galo ainda não cantou.

 

12 Fev 2018

Uma permanente obsessão

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando vejo um filme passado em Macau, independentemente da sua qualidade, fico sempre fascinado pelas imagens, quase estupidificado e, ao mesmo tempo, submerso numa catadupa inenarrável de emoções. A coisa agrava-se quando a história retrata gente de Macau e o seu quotidiano. Tenho então um prazer quase voyeurista em entrar na casa das pessoas, dar pelos seus objectos, pelas fotografias sobre móveis de fórmica, as músicas trauteadas, os restos das vidas espalhados pelas mesas, pelas cadeiras, pelo chão.

Produz-se em mim um estranho reconhecimento de algo que realmente nunca presenciei, uma familiaridade com o que nunca vivi, um estranho sentimento de pertença, de partilha, meramente imaginário da minha parte. Terei alguma vez entrado num apartamento parecido com aquele? Seria tarde e agora não me lembro. Ou talvez isso nunca tenha realmente acontecido.

Isto ocorreu-me ao ver o filme “Sisterhood”, da realizadora de Macau Trace Choy. Independentemente da história ou do tema, a mim bastariam as imagens para me manterem agarrado ao ecrã, invadido por uma catarata de emoções. Por quê? Afinal, os ambientes retratados não são meus conhecidos mas algo dotado de uma existência pressentida. Não são sítios onde vivi mas espaços ocultos ou inacessíveis, que fazem parte do quotidiano de toda esta gente que me rodeia, mas aos quais o meu acesso é basicamente nulo. São os milhares de vidas à minha volta, envoltas sempre no mistério da sua cultura e na abissal diferença do seus desejos. Então por que razão isto me perturba tanto? Que tenho eu a ver com isto?

O filme em si é excelente, a história transporta-nos entre a cidade pré e pós crescimento desmesurado do Jogo. Existe a nostalgia do que existiu e desapareceu e um enorme vazio, unicamente colmatado pelas relações que restam do passado, mas que os novos ritmos tornam obsoletas. Tudo isto bastaria para tornar este um bom filme. Mas, para mim, é a presença da cidade, dos perfis e dos contornos, das pessoas e dos lugares, reais, imaginários e ou desaparecidos, que realmente me fascinou e com certeza me vai obrigar a rever várias vezes. Por quê esta minha tão estranha e permanente obsessão, que me faz ir da lágrimas ao riso, da estupefacção à euforia, da saudade à tristeza e ao desespero?

29 Jan 2018

Ella Lei e a obsessão

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]lla Lei tem, claramente, uma obsessão com os trabalhadores não residentes. Para a deputada, todos os males de Macau têm neles a sua origem. Os autocarros funcionam mal: a culpa é dos TNR. A internet é uma bosta: a culpa é dos TNR. As rendas atingem preços astronómicos: a culpa é dos TNR. Ou seja, em todas as suas intervenções, Ella Lei lança as culpas de qualquer situação para os TNR, uma táctica que Hitler usou com os judeus. Longe de mim querer comparar os dois, até porque me parecem ter motivações muito diferentes e a deputada não ter sequer metade da cultura geral do ditador alemão.

Ao satanizar as pessoas que mantêm esta região especial em andamento, Ella Lei fomenta a xenofobia e o racismo, pretende instituir uma maior separação entre cidadãos de primeira e de segunda, enfim, esquece-se de todos os conceitos que enformam a cultura chinesa, dos quais destacamos a benevolência/humanidade (仁 ren) e a rectidão/justiça (義 yi). Por outro lado, dá muito jeito aos verdadeiros culpados das situações mais infelizes pelas quais passa a população, pois deste modo há sempre ali um bode expiatório que, ainda por cima, ninguém têm que os defenda. A deputada está sempre ali, pronta para lhes dar e atirar o ónus para outras costas.

É estranho, aliás, no século XXI uma deputada chinesa ter esta obsessão. Para mim, devido à constante insistência na culpa dos TNR pelos males deste e do outro mundo, a razão deste comportamento foge da área das convicções políticas e refugia-se talvez na psicologia ou na psiquiatria. Ella Lei deve ter, de facto, um problema. Nestes casos, quando alguém odeia de forma tão irracional outrem, tal esconde, se calhar, uma atracção fatal pelo que se diz odiar. Será que no caso de Ella Lei, Freud explica e é dos seus sonhos que ela tem realmente medo?

23 Jan 2018

Tarifas de autocarros: Da moral (ou da falta dela)

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]azer os trabalhadores não residentes (TNR) pagar tarifas mais altas nos autocarros que os residentes é, no mínimo, imoral. O facto parece-me tão óbvio, tão constitutivo de uma normal formação ética, que me custa argumentar contra ele. É algo que me surge como profundamente estranho, inesperado, quase indizível. Imagino que, se isto for contado à minha frente noutro país qualquer, corarei de vergonha de ser residente de uma cidade com este tipo de práticas.

Os TNR, portadores de blue card, são a energia que mantém esta região limpa, movente, eficaz e internacional. Sem eles, este mundo, que vai das Portas do Cerco a Coloane, pararia. Por outro lado, tratam-se das pessoas que pior ganham nesta terra. Como é que pode passar na cabeça de alguém sobrecarregá-los com mais uma despesa, ainda por cima desnecessária aos cofres da RAEM?

Sinceramente, acho isto tudo muito estranho, de uma desumanidade atroz. Já nem se trata aqui de existirem cidadãos de primeira e de segunda categoria. Estamos, muito simplesmente, na área da benevolência (仁 Ren) e da caridade cristã, ou da falta delas. Como podem os nossos políticos querer ser lembrados por medidas tão ultrajantes da dignidade humana? Sobretudo da deles…

10 Jan 2018

O direito de não ser

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]asta nascer. E o que deveria ser um acto natural surge imediatamente carregado de significados. Somos filhos, cidadãos, temos um nome e milhares de expectativas à nossa espera. Depois tornamo-nos alunos, eventualmente soldados e, finalmente, namorados, nubentes, casados, progenitores, empregados nisto ou patrões daquilo, entre outras possibilidades. Temos é de ser qualquer coisa. Sempre, em todos os momentos, vemo-nos constrangidos a ser algo como se isso fosse realmente parte integrante do que somos.

E quantas vezes não sentimos, inapelavelmente, que não somos aquilo que somos? Quantas vezes estranhamos os papéis que desempenhamos, bem ou mal, nas nossas relações com os outros? E quantas vezes não nos sentimos o maior dos hipócritas por representarmos um personagem que, bem o sabemos, pouco ou nada tem a ver connosco?

O problema é não termos direito de não ser. Obrigatoriamente, somos qualquer coisa, uma dessas categorias que não inventámos mas às quais temos de nos sujeitar. A penalidade é bem forte e passa logo por sermos ou não reconhecidos pelos outros. Quem não é nada de reconhecível exila-se numa terrível solidão.

É só experimentar e dizer a alguém desconhecido que não se é nada. O espanto, eventualmente, o medo, toma conta do interlocutor. Pois se não é possível catalogar e arrumar em gavetas, como posso ter confiança, ainda que mínima, nesta pessoa? Será que ela é, realmente, uma pessoa? Ou será apenas pessoa alguém a quem forem atribuíveis as características “normais” e as óbvias pertenças? É na distância a esta “normalidade” que se joga parte do fascínio que resta a esta época…

No entanto, tudo se tornaria fluído se não fossemos. Por vezes, a ânsia classificativa, analítica, a grelha sobre o real, apresenta-se como um constructo desesperado, um mecanismo fruste de atribuição de sentidos, incapaz de domar a realidade, senhor da falta e origem do remorso. Mas a sua ausência levaria à criação de um mundo no qual não nos reconheceríamos e obrigaria a uma aprendizagem radicalmente quântica, em que as oposições deixariam de ser a base do pensamento e o universo passaria a ser interpretado como um bailado, onde se estava mas não se era. Aparentemente impossível, portanto.

Logo, para dar sossego ao mundo, temos de ser qualquer coisa. Seja ela o que for, pois tudo parece fazer falta: os juízes e os criminosos, os médicos e os doentes, os políticos e os cidadãos, e por aí adiante… Tem é de se ser qualquer coisa, ainda que não nos apeteça ser nada ou entendermos que ser é contrário ao curso da física ou que, politicamente, a ideia de Ser descamba no fascismo. Não! Nada , rien, niente, nulla di nulla! Há que ser, existir não chega.

Como deixar de ser sem se ser outra coisa qualquer? E será essa uma meta desejável? Quererei eu perder as qualidades que me tornam no que sou e pelas quais os outros me reconhecem, para deixar de ser e simplesmente existir?

A condição é simples: exige um longo, prolongado, disciplinado, afastamento de seres que são e um mergulho nas águas do mundo; obriga a uma participação plena no aparente fluir e a travessia do rio Letes, um compulsivo esquecimento. Não a morte física mas um despojamento total do passado, na ânsia de uma vida no instante.

Claro: ninguém tem direito a não ser. Como diria Shakespeare, todo o mundo é um palco cada um de nós representa o seu papel, cada um de nós é qualquer coisa. E, sobretudo, cada um de nós tem uma dívida imensa por pagar, o que nos impede de deixar de ser, mesmo quando queremos simplesmente ser outra coisa.

És e pronto! Nada a fazer! Mas… se o pensei é como se já tivesse não sido. E este pensamento, tão português, fez emergir um sorriso que não atribuo ao que sou mas a esse universo de possibilidades outras que o não ser, discretamente, acumula.

 

4 Dez 2017

O resto não vale nada

[dropcap]S[/dropcap]ubitamente, um Verão pesado, do nosso descontentamento. Um Verão birrento, um Sol intensamente presente no momento que deveria ser de ausência. Falta de paciência.

Que Verão é este, que Sol nos descoroçoa? Porque ardemos neste umbral que vestimos de pessoa?

É um Verão teimoso, nu de nuvens, ungido de um insuportável azul. Num relance, quando do suor nocturno acordo, pergunto: onde é o Sul? E quero andar. Mas há neste clima algo seco, intratável, indizível, algo de trevas disfarçadas de luz, que não seduz.

Logo me fico. E certifico a imobilidade com duas ou três machadadas breves: numa vai o Sol, com as cortinas; noutra o dia, com as meninas; e ainda outra, arrepiada, assustada de não cortar nada.

Não sei se a culpa é do tempo. Que é estranho lá isso é! Como ler, nesta desamparada estrada, a das voltas e travoltas, a das voltas da manada? Não sei. Saberá o rei, esse vidente. A mim, dói-me um dente e assim humilíssimo me recolho.

Agora dói-me um olho. Irra! Que me há-de doer sempre qualquer coisa! Que seca esta vida de alforreca, esparramado na praia, esmagado pelo Sol. Clima inclemente… esquecia-me… dói-me um dente…

Quererá isso dizer que não posso mastigar? Que nem sombras posso ver? Não. Consigo correr, assim rente pela estrada e dar curvas e vociferar com o caminho. Olha p’rá qu’ele… coitadinho… ficou-se pelas covas neste Verão sem remissão.

Vai-te embora, vai-te embora, diziam em tom de nora as mulheres num alvoroço. Pobre moço que ao tremoço deve horas de oração. Nunca existiu perdão que não seja esquecimento, seja gato ou jumento, muralha ou paredão, nunca existiu perdão…

Estamos condenados ao Sol, à Lua, aos lamentos. Vêm do céu, caem como a chuva haverá de cair, torrencial, animal. E neles olímpicos nos banhamos. Não queremos amos, isso garanto. Preferimos o espanto de saber sem entender. Aliás, não quero saber nada.

Prefiro os burros e a sua perfeita andadura. E candidamente confesso: sim, quero o que morre, não o que dura; quero o que renasce a cada hausto, no desembaraço das metamorfoses; quero tudo outra vez mas desta vez sem vozes.

Aspiro ao silêncio, dizia ainda antes de ver. Eu sabia lá o que era isso. Mas não é fácil renegar. Aqui estou, aqui me tens. Não te voltes contra mim, minha mãe. Tudo menos isso. Basta de desdéns.

Chega de Sol, chega de sombras. Quero o cinzento, o seu lamento, a tristeza assoberbada. O resto não vale nada.

Pois. Passeio o esqueleto no trottoir. Solta-se uma gargalhada. O resto não vale nada.

27 Nov 2017

A segunda transferência

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] primeira transferência de soberania ocorreu em Macau quando Portugal passou para a China a administração deste território. Foi em 1999. Desde então, Macau foi governado pelas suas gentes. Contudo, não o foi para as suas gentes. Se o consulado de Emund Ho se pode escudar no facto de ter implementado a liberalização do Jogo, com todas as desarmonias daí decorrentes, bem como na inexperiência governativa, já Chui Sai On é com dificuldade que explica o desinteresse do seu Executivo pelo bem-estar da população. Mas o facto está aí, para quem o quiser ler: este Governo não realizou nenhuma grande obra que realmente beneficiasse a população, nomeadamente o Hospital das Ilhas e o metro ligeiro, tal como não resolveu nenhum dos problemas que o crescimento desordenado deu origem: habitação, trânsito, saúde, etc..

O que se assistiu na última década, com o beneplácito governamental, foi ao enriquecimento brutal de algumas famílias e dos seus satélites, num completo, por vezes arrogante, desprezo pelas necessidades populares. Este “feudalismo” foi sempre entendido como o “pagamento” de Pequim aos clãs nos quais depositava confiança pela sua acção patriótica durante o tempo dos portugueses. Ora esta era parece, com Chui Sai On, estar a chegar ao fim.

No fundo, trata-se de pessoas que já detinham o poder económico mais ou menos desde 1966 e dos acontecimentos motivados pela Revolução Cultural. Até 1999, conseguiram garantir a sua continuidade no poder para o futuro, como algo de “natural” porque eram eles já os líderes de facto desta cidade. E os que mais lucravam com isso, se exceptuarmos a família de Stanley Ho.

Ora este tempo parece estar a chegar ao fim. Com efeito, existem vários sinais deste facto e um deles, nada despiciente, é o último discurso de Chui Sai On, por ocasião do Dia Nacional, proferido no dia 1 de Outubro.

Senão vejamos. O actual Chefe do Executivo começou por falar dos problemas que afligem a população e na obrigação de resolvê-los! E foi por aí fora: segurança social saúde, habitação, trânsito, poluição, encheram a primeira parte do discurso de Chui pela primeira vez numa ocasião destas. Normalmente, o Chefe do Executivo fica-se pelo elogio do costume ao apoio do Governo Central e à garantia de que a RAEM prosseguirá as estratégias definidas, nomeadamente no que concerne os países lusófonos e o projecto “Uma Faixa , Uma Rota”, por meio de juras de patriotismo. Mas desta vez não. Chui centrou a sua atenção no que definiu como “a felicidade” popular. Ou seja, o discurso não parecia seu e, pelo conteúdo apresentado, talvez esteja a indicar o caminho que o futuro nos reserva.

Talvez o tufão Hato tenha sido o evento que mostrou claramente o quanto o rei vai nu e o quanto esse mesmo rei pouco se preocupa com a sua população. A falta de preparação das autoridades mais ricas do mundo em terra de tufões, a falta de meios e de liderança, bradou aos céus e o Céu (Pequim) não pôde fazer orelhas moucas. O Hato veio descobrir uma careca que todos os habitantes de Macau sabem estar lá mas que os cheques anuais e outras benesses sem conteúdo pretendem ocultar. E talvez o Governo Central tenha entendido que chegou o momento de dizer alto e pára o baile antes que uma terra pacífica e alinhada com a Mãe Pátria comece a desalinhar a dança e a dar passos parecidos com os dali de Hong Kong. Um bailarico que Pequim, como se sabe, pouco aprecia.

Os sinais estão aí. E não passam apenas por pessoas vindas do Norte, como Wong Siu Chak (o Secretário a quem o tufão Hato também deve ter roubado os sonhos de ser Chefe do Executivo) ou André Cheong. Agora há mais: trata-se da implementação de uma política voltada para os interesses populares, o que pressupõe talvez o fim de medidas implementadas a pensar apenas nos interesses de alguns.

Estaremos pois perante uma segunda transferência de soberania, o fim de um ciclo. Contudo, ao contrário do que se passou em 1999, o que aí vem permanece um mistério. Não se perfila ainda um candidato a Chefe do Executivo mas, seja ele Lionel Leong ou Ho Iat Seng, independentemente do seu nome e filiações, cremos que a política terá de ser necessariamente outra e o discurso de Chui Sai On é disso um claro e inequívoco sinal. Pequim terá entendido que as contas estão saldadas e chegado o momento de realmente pensar na população. Afinal, com tanto dinheiro disponível, não há-de ser assim tão difícil.

6 Out 2017

Eleições: Um derrotado chamado Governo

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau foi ontem a votos e não se pode dizer, desta vez, que as coisas tenham ficado na mesma. Não ficaram e a próxima legislatura provará que a correlação de forças se modificou, nomeadamente na ocupação do espaço mediático. Repare-se que vamos ter a maior representação de sempre de deputados “fora do sistema”: Ng Kuok Cheong, Au Kam San, Pereira Coutinho, Sulu Sou e, finalmente, à terceira tentativa, Agnes Lam. Se, por um lado, é preciso estar plenamente consciente de que estes deputados não terão força política para “mudar”; por outro lado, é quase certo que serão eles a ocupar a maior fatia do espaço mediático, interferindo na formação ideológica da população.

Será então nesse espaço que a sua voz se fará ouvir com uma outra densidade e propagação, graças ao facto de serem deputados. Este facto não agradará ao Governo e, provavelmente, não agradará a Pequim. Contudo, se tivermos em conta o grau de descontentamento que a acção do Executivo (ou a falta dela) tem provocado na população, poderão agradecer aos céus a existência de “distracções” que roubam votos aos candidatos “fora do sistema”. Sem elas os resultados seriam ainda mais sintomáticos dessa crescente (ainda que silenciosa) insatisfação.

E que “distracções” são essas? Trata-se, por um lado, das listas de “estrangeiros”, quer sejam de Fujian ou de Guangdong. Neste sufrágio, sobretudo o comportamento de Song Pek Kei teve consequências desastrosas e o grupo liderado por Chan Meng Kam perdeu um deputado. A menina Song continua na Assembleia Legislativa mas a sua credibilidade sofreu um rude golpe, que ela mesmo infligiu. Mak Soi Kun e Zheng Anting conseguiram a reeleição e pouco mais.

Por outro lado, temos as listas dos “revoltados” por isto ou por aquilo, que querem qualquer coisa muito específica, como a malta do Pearl Horizon. Imagine-se que esta soma de insatisfações e revoltas dirigia votos para os candidatos “fora do sistema” e os resultados poderiam ser bem diferentes.

Apesar dos “estrangeiros” e dos “revoltados”, que servem interesses muito específicos, não esquecendo igualmente Angela Leong, que consegue a reeleição, a presença de vozes dissonantes na AL é agora maior. E não só é maior como nos parece mais qualificada se acrescentarmos à existente na anterior legislatura os nomes de Sulu Sou e Agnes Lam. Mais jovens e melhor preparados do que a maior parte dos seus pares espera-se que tragam alguma inteligência e bom senso aos debates.

Não poderemos falar de vitória nem derrota dos chamados tradicionais (Kaifong e Operários), embora Ella Lei tenha sabido manter os votos que a saída de cena de Kwan Tsui Hang poderia ter dispersado. São máquinas velhas mas ainda bem oleadas.

Se olharmos com algum distanciamento, verificamos nestas eleições que o grande derrotado acaba por ser o Governo, as suas políticas e atitudes. O tufão Hato já não foi sintoma do distanciamento do Executivo em relação aos interesses da população: foi a prova. E isso caiu muito mal no goto de muita gente, deixando um sabor amargo difícil de apagar.

A prisão e julgamento de Ho Chio Meng já tinham sido um descrédito mais do que evidente das autoridades da RAEM — lembremo-nos que já foram detidos e condenados um alto membro do poder executivo e agora um dos mais altos cargos do poder judicial.

A inexistência de planos concretos para resolver as dificuldades da cidade exasperam o mais paciente dos cidadãos que não compreende, por mais discursos que lhe façam, por mais justificações que enumerem, como uma cidade tão rica está tão mal organizada e como os seus cidadãos não desfrutam de uma melhor qualidade de vida. E, de facto, é difícil de compreender.

Por isso, é caso para ainda irem abrindo as garrafas de espumante: poderia ter sido pior. Mas preparem-se para enfrentar uma barragem de vozes diferentes na AL. Não sei é se essas vozes terão capacidade para mudar alguma coisa além acrescentarem barulho no ar. Esperemos que sim.

18 Set 2017

Eleições 2017 | Daqui ninguém sai vivo

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] campanha eleitoral já vai alta e sem grandes motivos de interesse. Afinal, a eleição de deputados directos pouco influencia a política real. Contudo, apesar de pouco estar em disputa, assistimos esta semana a canalhices políticas que não deixam de ser dignas de nota porque são ilustrativas do tipo de gente que se candidata à Assembleia Legislativa da RAEM. É o caso da deputada de Fujian Song Pek Kei.

Senhora de discursos vazios ou interpelações fúteis na AL, durante o período em que já foi deputada, a senhora Song resolveu num debate com Pereira Coutinho invocar situações familiares menos agradáveis do deputado da Nova Esperança, inaugurando na política de Macau um capítulo ignóbil. E fê-lo com toda a clareza como se as palavras proferidas não fossem, para quem possui um mínimo de ética, lama que caiu em si própria.

Julga a senhora Song que não tem telhados de vidro na sua casa e por isso atira verrinosas pedras a telhados alheios. Dela poder-se-ia dizer, por exemplo, que só existe porque serve o poderoso senhor Chan e porque o senhor Chan lhe deu a mão. Seria talvez injusto. Mas, pela sua actuação na AL, poder-se-ia, desta vez dizer-se com justiça e razão, que foi uma nulidade. Zero ideias originais, discursos vazios, interpelações frouxamente escritas, nenhum projecto de lei, atitude seguidista e em conformidade com os interesses instalados.

Filha de emigrantes, se não emigrante ela mesma, não se coíbe nos ataques ao trabalhadores não residentes, os mesmos que fazem realmente funcionar esta cidade. Mas até aqui tudo bem. O disparate e mesmo a estupidez têm direito à expressão no segundo sistema.

O pior é quando a senhora Song ultrapassa esses limites como fez esta semana, inaugurando um capítulo que, suponho, envergonhará a RAEM agora e no futuro. Trata-se de trazer a vida privada dos candidatos para a a discussão política. Será que a senhora Song quer que seja feita uma devassa à sua vida privada e, sobretudo, à dos seus companheiros de lista e de associação? Acharia bem que se referissem os parceiros de cada um, as suas tendências sexuais, ou mesmo o que membros da sua família andam a fazer? Será que a senhora Song tem a certeza de só ter na sua cozinha pratos completamente limpos?

A verdade é que este tipo de comportamento é muito triste e anti-democrático. Joga com as emoções mais brutas dos cidadãos, apela à sua estupidez e intolerância. Se até aqui a política local tinha escapado a este tipo de ataques soezes, a partir de agora, graças à senhora Song, parece que vale tudo, incluindo usar a família, valor sagrado para a cultura chinesa.

Mas o problema deste tipo de comportamento é que, na realidade, afasta as questões políticas de cima da mesa. Ao invocar o factor privado da vida de cada um, deixamos de dar relevância às acções concretas dos candidatos e às suas propostas, para cairmos no género de conversa que se tem no café ou no mercado. Baixa e incapaz de trazer algo de bom.

A senhora Song devia pedir desculpa a Pereira Coutinho e ao eleitorado em geral por ter inaugurado a estratégia do golpe baixo na política da RAEM. E se não percebeu o que estava a fazer, a perigosidade deste caminho, então ainda é pior porque com isso demonstra que não tem inteligência ou bom senso para o lugar que pretende ocupar.

Ao continuarmos por este caminho, que parece agora ser irresistível, em breve teremos devassas pessoais sobre todos os candidatos, incluindo os que pertencem ao grupo da senhora Song.

E olhem, no limite, a continuarmos na senda inaugurada pela senhora Song, daqui ninguém sai vivo.

7 Set 2017

16 anos do jornal Hoje Macau

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os tempos actuais, a palavra “jornal” começa a ter um sabor arcaico. Face às novas tecnologias, este objecto de papel parece ter perdido grande parte da sua importância e, dizem, cada vez menos pessoas se dão ao trabalho (ou ao prazer) de desfolhar estas páginas impressas.

No “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, ninguém tinha acesso a jornais, muito menos a livros. Apenas o líder tinha acesso a uma biblioteca e é comovente (e perigoso) o efeito num cidadão das obras completas de Shakespeare.

Mais ou menos o mesmo se passa agora: a informação netificada, instantânea, de origem obscura, ultra-efémera, de importância menor, por um lado; e por outro os jornais sobreviventes, enquanto espaço de jornalismo, análise e crítica. Claramente, o Hoje Macau, no dia em que faz 16 anos, assume-se como pertencendo à segunda categoria.

Queremos ser um jornal e não uma fonte anódina de informação em segunda mão.

Queremos reflectir sobre os factos, analisá-los, de modo a abrir ao leitor a possibilidade de pensar neles ou mesmo de os recusar.

Queremos exercer um pensamento crítico no fluxo incessante de notícias e estender essa crítica, sem rodriguinhos, aos que entendem colocar os seus interesses pessoais acima dos interesses colectivos.

Queremos servir Macau e as suas gentes do modo que entendemos mais eficaz, no limite das nossas possibilidades: fazendo um produto digno, capaz de não envergonhar a comunidade que por aqui se exprime em português, seja como primeira ou segunda língua.

É inegável que a língua portuguesa faz parte integrante e fundamental da identidade de Macau, mas cabe-nos a nós garantir a sua importância, a sua permanência e futuro.

E queremos, sobretudo, que o Hoje Macau seja uma referência cultural activa (no sentido lato), na medida em que se assume como bastião da língua portuguesa e das culturas lusófonas.

De algum tempo para cá, este jornal tem dedicado parte significativa das suas páginas a assuntos literários, artísticos e culturais, no sentido de desafiar os nossos leitores a arriscarem os seus passos por caminhos belos e profundos.

Há mais de dez anos que publicamos semanalmente traduções de clássicos chineses, de poesia, de ensaios fundamentais para a compreensão do País do Meio. É um trabalho inovador, arriscado e, como quase sempre, talvez mal compreendido. Mas é esta a via pela qual pretendemos prosseguir.

São 16 anos desiguais que se confundem com a existência da RAEM, também ela perturbada por inúmeros acontecimentos paradoxais e bastas contradições. Mas hoje sentimos estar mais certos do que nunca das nossas capacidades de existir por aqui como um produto singular, único, irrepetível, incopiável, e de mostrar uma outra cidade ao mundo — esta amálgama de culturas, tradições e modernidade que Macau encarna sem pudor nem consciência.

É este, finalmente, o seu encanto e esperamos trazer alguma dessa magia para estas páginas. Sob pena de espelharmos um mundo baço, onde a escolha vacilaria entre a estupidez e o tédio.

5 Set 2017

Camilo Pessanha, 150 anos | Porquê celebrar?

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] muito estranho tudo isto. E contra os meus princípios: sempre disse detestar o aproveitamento póstumo dos poetas, dos escritores, dos artistas. Normalmente, são os políticos que o fazem. Eles citam, eles trauteiam, eles aproveitam, na maior parte os versos de gente que lhes voltaria a cara na rua. Milionários ou os seus servos não cessam de citar Camões, que morreu na miséria. Por exemplo, mas os exemplos seriam muitos, demasiados. Então por que razão me encontro no centro de uma celebração de Camilo Pessanha, se tenho uma opinião tão negativa dos que habitualmente cavalgam na obra alheia, por que razão me atrevo assim, despudoradamente, a montar a mesma sela?

Pensei sobejamente sobre isto, até que entendi pôr de lado a minha repugnância egoísta e vaidosa. Afinal, o nome de Camilo Pessanha e a sua obra merecem ou não ser celebrados, lembrados, revificados? É claro que sim. E não será que a celebração deste poeta ultrapassa o campo da literatura, na medida em que a sua figura se espraia por vários universos? Obviamente. Camilo foi também cidadão português, naquela que era no seu tempo a mais distante colónia e aqui desempenhou diversos papéis, tornando-se num dos membros mais respeitados da sociedade de Macau. Isto apesar dos seus hábitos peculiares e da sua figura que, na altura tal como hoje, na pequena chuchumequice local, muitos haviam de considerar demasiado excêntrica.

Camilo era, de certo modo, um maldito. Alguém de quem se diz mal. Alguém que é criticado pelos seus mores privados. E também pela sua intolerância face à estupidez, à cupidez, à maledicência que, infelizmente, ontem e hoje, grassa nesta e noutras terras.

Ontem um guarda de uma empresa privada contratada para guardar o antigo tribunal, onde estou a montar este evento, insultou-me, ameaçou-me de porrada, porque eu não estava de gravata mas de calças de ganga e a trabalhar. Era chinês e foi estimulado por uma rapariga que eu não conhecia de lado nenhum mas que se achou no direito de me dizer que eu não podia estar ali. Fui paciente. Expliquei. Até que tive também de explicar, menos cortês, quando ela foi arrogante, que ela não me conhecia de lado nenhum para me dirigir a palavra. Aí o guarda avançou. Só que… eu podia estar ali. A trabalhar para a cultura de Macau. Às dez da noite. Faz parte das regras. Azar.

Chegou um outro guarda, creio que filipino. De uma cortesia admirável. A partir daí e do momento em que mostrei o meu cartão, a coisa sossegou. O guarda chinês era daqueles que gosta de chutar para baixo e lamber para cima. Afinal podíamos trabalhar até à meia-noite. Claro.

Foi uma cena lamentável e foi pena. Mas é isto. É preciso fingir, armar-se em bom, é preciso representar para se dar ao respeito nesta e noutras terras. Não basta fazer um trabalho honesto e limpo.

Isso ninguém ou poucos reconhecem. E é também por isto que é necessário celebrar homens como Pessanha cuja dignidade não se mede pelo fato mas pelas obras. E isto é fundamental para nós como para todos os habitantes de Macau. E por isso é importante lembrar e celebrar.

1 Set 2017

A próxima vez

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]oderíamos estar a falar de um governo paternalista, na boa tradição confuciana, em que os pais/Estado impulsionam os filhos/cidadãos no caminho de uma vida excelente. Mas não. Aqui o paternalismo traduz-se em dinheiro, como o pai que para não aturar os problemas do filho lhe dá do patacame para ele “ir ao cinema”.

Ora isso significa que o Estado se esquiva a uma deriva educacional, preventiva, solidária, socialmente sustentável, para realizar o sonho de qualquer fanático ultraliberal: não intervir e ainda por cima dar dinheiro. Faz bem, faz mal? Ou antes pelo contrário?

Perdoem-me os leitores, que isto não tem piada nenhuma, nem rabo de tufão por onde se lhe pegue. Uma catástrofe é uma coisa séria, que tem efeitos inesperados nos indivíduos e nas massas.

Consideremos os aspectos positivos: uma catástrofe une as pessoas e motiva a acção. Nestes momentos, um governo precisa apenas de liderar, orientar, planificar, supervisionar, para que os esforços não se dupliquem, para maximizar a eficácia dos salvamentos e a celeridade das reconstruções.

Um governo deve assegurar a continuidade dos serviços públicos com a rapidez que a sua importância justifica. Água, electricidade, telefones, internet, televisão, rádio, não podem permanecer inoperantes mais do que um breve espaço de tempo. E este é um trabalho do governo, junto com as concessionárias.

Um governo tem de garantir a ordem e a normalidade nas ruas: não pode, por exemplo, assobiar para o lado quando táxis, mercearias ou hotéis se resolvem aproveitar da situação, demonstrando uma abjecta falta de solidariedade. Um executivo “normal” não faz ouvidos moucos a estas situações, não as ignora: protege o cidadão.

No dia seguinte, um governo deve minimizar os efeitos perturbadores da catástrofes, ou seja, efectuar com rapidez a remoção de árvores caídas e de lixos diversos, reerguer as estruturas tombadas, garantir a circulação nas estradas e nas ruas, numa palavra, assegurar o regresso da ordem com a maior brevidade possível.

Um governo que se defronta com uma situação deste tipo deita a mão a todos os recursos possíveis e a outros imaginários, perguntando-se, por exemplo, o que faz o destacamento do Exército da RPC no seu quartel e porque razão os garbosos soldados não aparecem a dar uma mãozinha.

Como todos sabemos o governo da RAEM tem apenas 17 anos de experiência — em que, por exemplo, o actual Chefe do Executivo foi parte a tempo inteiro — e por isso não lhe podemos exigir que cumpra a sua responsabilidade com eficácia e determinação.

Levantam-se dúvidas. Não há tempo para encomendar estudos? A população rosna, os deputados agitam-se. Há uma crise no Gabinete de Ligação. O que fazer?

Investir a sério na prevenção e na educação a propósito de tufões?

Fazer cumprir a lei no caso da qualidade das janelas?

Criar um serviço de meteorologia “normal”, que consiga içar os sinais atempadamente?

Avisar seriamente população e turistas da seriedade do evento, evitando-se com isso o deslizar de pessoas nos braços do vento?

Punir severamente todos os que abusaram ou pretenderam abusar da situação?

Não. Isso é tudo muito complicado, complexo, intrincado, polémico. O melhor é… Olha, dá-se dinheiro.

O que se viu durante este tufão foi dramático, desgraçadamente dramático. Havia gente escondida em esquinas, acocorada em portas, no momento em que a força do vento atingia o seu apogeu. Parece que ninguém lhes disse que vinha ali um momento perigoso para as suas vidas. Não tinham cara de aventureiros em busca de emoções fortes. Estavam transidas de medo, molhadas, algumas eram arrastadas pelo vento. Ninguém os avisou e retirou das ruas? Não existe um veículo preparado para esse efeito?

A água alagou “normalmente” o Porto Interior. Até quando temos de viver com esta “normalidade”? Mas a coisa não é fácil, já nos disseram. Possível, mas complexo. São obras complicadas, percebe. E, provavelmente, o dinheiro é necessário para qualquer outra coisa. Resta-nos exprimir a nossa melhor compreensão.

Na China Antiga, rei que não entendia a Natureza nem sabia cuidar dos seus cidadãos em necessidade, corria o risco de perder o Mandato do Céu. O governo de Macau não corre esse risco: o Céu está confuso e o dinheiro tudo lava. Menos as vidas perdidas e as que se vão perder da próxima vez.

25 Ago 2017

Assim como quem quer a coisa

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] advogada de Ho Chio Meng resolveu apresentar um recurso e fê-lo por fax. Trata-se de um acto estranho, quase a roçar a rebeldia anti-sistema. E tem graça ver isto ter origem na defesa de um homem que foi Procurador da RAEM e, por isso, incarnava e representava esse mesmo sistema.

Como todos sabem, a lei de Macau não prevê qualquer tipo de recurso, além do Tribunal de Última Instância. Portanto, porque Ho Chio Meng foi julgado por juízes desse mesmo tribunal, não existe possibilidade de recorrer. Tal facto não impediu a ousada advogada de apresentar recurso à mesma entidade que o julgou. Ainda que, nos termos da lei, isso não sirva para nada.

Mas não servirá mesmo para nada? Provavelmente, tem uma excessiva utilidade: demonstrar que existem contradições óbvias entre o espírito da legislação vigente e alguns artigos desse mesmo conjunto de leis, que funcionam como anti-corpos e provocam sintomas que só podem ser atribuídos a uma prática legislativa doente: a saber, a impossibilidade de recorrer de uma sentença. Tal facto não deve ser considerado como estranho ou sequer decorrente de uma qualquer má intenção. Pelo contrário, deve ser, em última análise, atribuído à fragilidade de um sistema ao qual foi exigido uma profunda remodelação e no qual será normal encontrar defeitos ou excessos.

Nada que não possa ser corrigido. Como explicar então que o exemplo de Ao Man Long não tenha impulsionado uma mudança legislativa que permitisse a vigência da normalidade nesta região? Certamente que a questão não é política porque não conseguimos vislumbrar como é que um assunto deste tipo poderia pôr em questão qualquer doutrina ou estratégia de fôlego geral. Também não conhecemos quaisquer declarações, por parte da dirigentes do Governo Central, acerca desta questão.

Então por que razão o Governo da RAEM não se preocupou em mudar um aspecto da sua legislação que, no mínimo, atrapalha a sua imagem internacional e, no máximo, transforma Macau num espaço onde um direito fundamental é legalmente violado?

Difícil de responder. Terá sido preguiça ou teimosia? Terá sido temor ou cobardia? Não sabemos. Contudo, não podemos deixar de estranhar esta lacuna legislativa que, uma e outra vez, assombra os desígnios da RAEM. Será que alguém pensou que um caso como o de Ao Man Long não se repetiria, que outro alto responsável não seria, nunca mais, acusado de corrupção ou de outro qualquer delito? Talvez… mas isso não é pensamento digno de quem é responsável pela coisa pública.

A verdade é que a legislação local tem uma lacuna, entre outras, assombrosa. O direito de recorrer de uma primeira sentença é um direito universal que não deve ser sonegado a nenhum ser humano. Nem vale a pena explicar porquê. O que valeria a pena seria remediar, de algum modo, esta mancha, este sintoma de doença no sistema legal.

Neste sentido, a advogada de Ho Chio Meng está a fazer mais pelas leis com o seu recurso do que os deputados fizeram em anos de legislatura. E isto porque, correndo o risco de parecer ridícula, na medida em que apresenta um papel inútil, está a mostrar o ridículo do sistema. E ainda mais interessante o facto de certamente o fazer de acordo com o seu cliente, cuja preocupação foi essencialmente, durante os anos em que foi Procurador, aumentar as penas para os toxicodependentes. Enquanto condenou Ao Man Long, Ho Chio Meng não se preocupou com esta legislação. Mas agora que lhe morde os calcanhares e o vai encerrar, sem direito a recurso, num buraco por 21 anos, já lhe faz alguma espécie.

É um bom exemplo para os que julgam circular por este mundo gozando de uma certa impunidade e permitindo que outros sofram por causa de leis iníquas. Um dia, mais tarde ou mais cedo, chega a sua vez.

Era, com certeza, o momento de alguém apresentar uma legislação que, nesta área, transforme Macau num espaço normal do século XXI. Assim como quem quer a coisa.

9 Ago 2017

Identidade

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] farol não é um farol como cada uma destas palavras não é palavra. Sabemo-lo desde Magritte. Mas o farol que ilumina a minha cidade deveria iluminar a minha cidade e proteger os barcos dos escolhos e dos tapetes de lodo, nas margens amarronadas do Delta das Pérolas. Infelizmente, isso não acontece porque deixou de acontecer. O farol gira, volta após volta, mas não ilumina: o seu estreito fio não chega ao mar, ainda menos ao coração dos homens. Esbarra em prédios, entra janelas adentro, grandes bolas de luz percorrem apartamentos.

Onde pára a luz do meu farol? Por que esquinas te perdestes, em que espelhos te miraste, estreito fio de luz? Vi-te nos olhos de alguém, mas foi um relance, um clarão repentino, daqueles que é suposto iluminarem a vida e depois se extinguem entre duas aspirações. Pois é. Basta uma distracção, um outro brilho que passa, o fumo de um automóvel nas narinas e logo o estreito fio de luz se esvai e vai por certo a essa terra onde repousarão os faróis obsoletos, perto de outros elefantes. Será ilha ou mera península?

Por onde andas, meu estreito fio de luz? Perdi-te tantas vezes por estas ruas, nas travessas, em falsos becos. Talvez por isso perdeste importância e a tua luz esmoreceu e outras luzes ávidas tomaram o teu lugar. São às cores, embasbacam mais. Haverá mais gente que as prefira ou até adore a complexidade das grinaldas, dos buquês casamenteiros, o alarido dos led, dos néons, de todas essas luzes de sabão. Qual era o encanto, afinal, daquele estreito fio de luz, a rodopiar sem descanso, enquanto a noite cobria o mundo? Era sinal de protecção, uma varinha de condão sobre a cidade? Talvez… quem sabe… Por vezes duvidávamos… seria verdade aquela luz? Doutras acreditávamos sem pudor, invocávamos o perdão no selo de uma garrafa e, sob a luz, cidade aos pés, havia quem fizesse o sinal da cruz.

A história, essa, é ateia. Ateia e teocida. Quantos altares não derrubámos? Quantas estátuas não decapitámos? Quantos guerreiros não emasculámos? Ninguém quer saber.

O que dizer dos faróis, gesto técnico sobre o mar? Pela vida e contra a sorte, tentativa de luz a tactear na escuridão, sinal de gente, talvez calor, talvez a morte.

Qualquer coisa, meu bom farol, tu me indicavas. Assim, no fim de todas as noites, antes do dia te apagar, e isso tinha mais a ver comigo do que com a cidade à minha volta. Era a mim que remetia o teu estreito fio. Era pela minha janela que os teus círculos de luz entravam, sem respeito nem licença. Volteavam-me a sala, o quarto e saíam, talvez furiosos de não encontrarem o mar.

Era este o meu farol, além da história, do sangue e do engenho. Dizem-me lá continuar às voltas a luz… Dizem-me tudo estar na mesma… que os espelhos funcionam como sempre, que se acende ao crepúsculo e se extingue na aurora.

Mas o farol não é um farol como como cada uma destas palavras não é palavra. Nenhuma delas me interpreta ou representa ou interpreta ou representa qualquer coisa. São inúteis, por vezes graciosas, doutras pesadas, mas inúteis. Nenhuma delas me devolverá o farol.

Procuro na fogueira a cinza certa. Está longe, num canto empoeirado da memória e, cinza nas mãos cerradas, digo as palavras. Abro cuidadosamente a mão. Nem rosa nem farol assomam. Há uns riscos, admito, sublinhados pela cinza, de leitura amarga e fruste. Mas nada mais. Nada mais.

Onde paras, meu estreito fio de luz? Quanto podes tu, quanto pode essa estrada iniciante, se na tua ausência o coração desatina?

Não podes nada. E eu cesso de existir. Amanhã acordarei morto. Levantar-me-ei, sacudirei as estrelas da roupa e tudo será radicalmente diferente.

26 Jul 2017

O desatino

J. Louis David – “Morte de Marat”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] inútil. Bem podemos ter a ilusão de marchar a direito, de ninguém afrontar, de nos desviarmos de caminhos obscuros, de respeitar escrupulosamente a lei, de tratar os outros como gostaríamos de ser tratados, de deixar cada um na sua vida e apenas intervir para ajudar se for o caso: é inútil. Na nossa via, no nosso humilde carreiro, imiscui-se sempre, ergue-se por hábito, apresenta-se triunfante, o desatino.

Ninguém desatina por acaso, à excepção do mundo inteiro à nossa volta, cuja propensão para o desatino parece ser uma espécie de vício. Quando tudo se emproa ares de correr bem, é quando qualquer coisa desagradável lá tem de acontecer. Para nos estragar o humor, arruinar o dia e fazer descrer dos projectos. Ele está em todo o lado, o desatino. O desatino é rei.

Precisamente. É quando mais nos julgamos em controlo das nossas vidas – ganhando distância dos humores do chefe no emprego, fazendo das queixas sucessivas do cônjuge uma espécie de missa e das derrotas do nosso clube favorito algo de superficial –, ou seja, quando tudo finalmente corre bem, que novamente irrompe todo-poderoso, invasivo, inesperado, o desatino.

Ele há desatinos de todos os tipos, mas uns desatinos são mais desatinados que os outros. Pouparei o amável leitor a uma lista, uma hierarquia, uma descrição de desatinos. Cada um terás os seus e o que é um desatino para um, não o é forçosamente para outro. Mas, idiossincrasias desatinadas à parte, a verdade é que a vida de todos se encontra extremamente bem recheada de desatinos. Ninguém se pode queixar de uma distribuição injusta. Há desatinos para todos e para todos os gostos. Parecem nascer debaixo das pedras, viajar nos cabos e concentrarem-se à nossa porta, à medida de cada um.

Dizem que o desatino começou no Paraíso. Isso só prova que até nesse espaço de beatitude, onde Deus e os animais falavam com o Homem, já havia desatinos. Crenças e livros sacros de lado, ensina-nos hoje a ciência que o princípio foi um big desatino. O desatino acompanha-nos desde o alvorecer até à morte, até porque ela é, na maior parte dos casos, um grande desatino.

Já a vida é diferente. Ou será que não é? Para viver, em geral, a vida tem que consumir vida e isso é, no mínimo, estranho e pouco solidário. Quando o leão come o carneiro, não estará a comer também um pouco de si mesmo? Ou seja, os seres vivos deviam sobreviver à conta de coisas inanimadas para não serem predadores no seu próprio reino. Mas não, a coisa não foi assim construída. Pelo contrário, foi feita para as hienas fossarem nos desvalidos, as aranhas paparem as moscas e os gatos comerem os ratos que, por sua vez, não raro chamam um doce a outros elementos da sua própria espécie. Enfim, um desatino… um acumular sucessivo de desatinos.

Onde pára a harmonia, meus amigos? Onde se esconderam a temperança, o equilíbrio, o bom senso? Por onde andam a benevolência, a piedade, a contrição? Olhamos à volta e damos por nós rodeados de desatinos, próprios e alheios; alguns provocados por nós, a maior parte pelo mundo, como se eles fossem os pontos e as vírgulas do texto plasmado no Livro do Destino.

Viver tornou-se numa descida de um rio cheio de escolhos, de remoinhos, de troncos flutuantes, quando não de dissimulados hipopótamos e pétreos crocodilos. Bem nos tentamos desviar mas bem sabemos ser uma missão impossível. Quantas vezes não chocamos – e de frente – e se desfaz a frágil canoa onde vagueia a nossa existência? Quantas vezes não suamos no desespero de torcer o leme do destino, enquanto a corrente trocista nos empurra para o desatino seguinte? Os leitores sabem do que estou a falar. E, por isso mesmo, ficará por aqui mais este ténue, simplório, beduíno, desatino.

19 Jul 2017

A dor que deveras sente

De la musique avant toute chose
In Orphão

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]averá uma frase de Borges que nos remete para o devaneio de na poesia se encontrarem contidas a música e a pintura, pois a sucessão de palavras – para além das ideias – conteria ritmos, melodias e imagens. Deixando, por ora, de lado a vertente contemplativa e considerando unicamente a música, não será difícil atribuir o carácter encantatório do fluir poético à existência de uma musicalidade no poema, seja ela derivada da sonoridade das palavras ou do modo como se entrelaçam, para depois se sucederem as imagens e os conceitos.

Existe na poesia um efeito vibratório, musical, onde reside, se não o seu principal pólo de interesse, pelo menos a fonte de parte considerável do seu fascínio. “Os estímulos visuais”, refere Ester de Lemos, “não escapam tão facilmente à vigilância da razão, não são tão facilmente encarados em si mesmos como os estímulos auditivos, sobretudo os musicais.” (Lemos, 1956, p. 30) Se a música escapa à vigilância da razão, ela será o meio excelente para arrebatar, para suster essa poesia que “eleva cada indivíduo através de uma ligação específica com o todo restante.” (Novalis, 2009, 121).

Este carácter sintético da poesia, em grande parte ancorado nessa musicalidade, não deverá ser entendido como referido à dialéctica, que entende um momento de negação, mas a um mero gesto de apropriação criacionista, capaz de proporcionar polaridades outras e sistemas de leitura, o que equivale a dizer reinventar universos e abrir uma miríade de possibilidades à expressão da vida.

A síntese, na dialéctica, exprime, afinal, o culminar do processo de aculturação; no criacionismo, a função da negação, fundamental na construção da identidade, só estará presente na expressão poética como condição de sinceridade do media, como se pretendesse operar uma regressão a um estado anterior onde a graça da criança (das três metamorfoses de Nietzsche/Zaratrusta) lhe permite apoderar-se do mundo num golpe. Não se tratará, contudo, de uma regressão propriamente dita mas de uma reaquisiçãoa saudade é do futuro.

Se, para Rousseau, a primeira linguagem era poética tal seria no sentido em que uma palavra dessa primitiva língua encerraria muito mais sentidos que o seu significado literal (ou que este não existiria e muitos significados estariam contidas numa palavra só) e os homens de antanho falariam basicamente por metáforas, abarcando assim mais do mundo do que eles próprios poderiam compreender, sendo a Língua o repositório de um saber que os próprios indivíduos que a falavam apenas entenderiam parcialmente.

A poesia inscreve-se numa ânsia de apropriação do mundo e dos seus sentidos ocultos, num claro sentir filosófico em que, para além da vibração musical (mas também em ela), o poema expressa uma visão, eventualmente, o esboço ou o castelo final de uma qualquer metafísica.

É com o primeiro Romantismo que poeta e poesia exacerbam esta ânsia, assumindo o conceito poético que elevará o “homem acima de si mesmo”. Trata-se, no dizer de Novalis, de uma poesia “transcendental”, que é “mesclada de filosofia e poesia”, e que prefigura a dissolução dos sistemas filosóficos, na medida em que “se o filósofo ordena tudo, coloca tudo, então o poeta dissolveria todos os elos. As suas palavras não são signos universais — são sons — palavras mágicas, que movem belos grupos em torno de si”. Novalis remataria: “Quando mais poético, mais verdadeiro”.

Parece então que com o Iluminismo, o poeta visa ultrapassar o mero papel mediador do xamã para aspirar a ser ele mesmo – através dessa transcendentalidade que lhe proporciona o pensamento filosófico e mesmo a ciência – uma fonte de permanente problematização, expressão radical da vida mas também das volutas do espírito, sem abdicar também do modo – mágico – como eventualmente recuperará alguns restos dessa linguagem primordial, onde se rebatiam os mistérios do mundo e das coisas.

Pessanha e as “nobres especulações do espírito”

Sem deter o exclusivo ou sequer a preponderância, poesia e filosofia particularmente se entrelaçam no espaço da Língua Portuguesa, por razões que talvez passem pelo defeito da segunda e o excesso da primeira. Após o milagre grego, raramente o Sul produziu um assertivo pensamento lógico, mas as preocupações metafísicas, lidas através dos penetrantes filtros da experiência do mundo e de particulares sensibilidades, cedo se imiscuíram em temáticas versejadas. Já em Camões, para não irmos mais atrás, ao vate, ao cantor épico, se sobrepunha o homem dilacerado pela dúvida, onde o recurso à mitologia soa – além da epocalidade renascentista – ao desespero de constatar uma diversidade percorrida, revivida, recebida e, por tanto, a intuição de um mundo desencantado.

Na segunda metade do século XIX, a presença cimeira de Antero de Quental – o que “ensinou a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade de que o ser imbecil não é indispensável a um poeta” (Fernando Pessoa) –, com certeza deu um tom definitivamente filosófico à expressão da poesia lusófona e talvez poético à filosofia pensada em Português. As crises, civilizacional na Europa e muito específica em Portugal, na sequência do Ultimatum britânico, eram demasiado profundas e dolorosas para que os poetas se limitassem aos devaneios dos salões, às rimas de ocasião, enfim às actividades dos que Pessanha define como “essa legião de poeta mínimos, cuja pobre musa toda a sua fecundidade esgota na concepção de cem páginas de lirismo”.

Como explica Gustavo Rubim, Camilo Pessanha critica a poesia como “uma expressão directa dos sentimentos, das sensações ou da experiência vivida do poeta e opõe-lhe uma concepção mais abstracta que inscreve o discurso poético no campo das ‘especulações do espírito’”. Ora para sustentar a filosofia no discurso poético, para lhe garantir o carácter especulativo, implica, como diz o autor de Experiência da Alucinação, “uma certa dimensão impessoal” (Rubim, 1993, 142). Ou seja, o que Fernando Pessoa já exprimia, quando escreveu este revelador apontamento:

(…) A cada um de só três poetas, no Portugal dos séculos XIX a XX, se pode aplicar o nome de «Mestre». São eles Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha. (…) O terceiro ensinou a sentir veladamente*; descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas os simples sonhos dele. Estas palavras que não são nada bastam para apresentar a obra do enorme poeta Camilo Pessanha.

O mais, que é tudo, é Camilo Pessanha.”

Este “trazer nas mãos os sonhos do coração” implicará um duplo distanciamento: uma consciência primeira que, se bem que sob o filtro da sensibilidade, exige a exterioridade; e uma exterioridade que permite a reflexão distanciada. O poeta adquire esse distanciamento em relação a si mesmo (ao lirismo óbvio) e a possibilidade de contemplar (teorizar) o que detém agora nas mãos, operando uma espécie de processo alquímico de destilação, decantação e, finalmente, sedimentação – de sensações, sentimentos e ideias – nas palavras finais do poema. Isso é de tal modo presente em Pessanha que, mesmo quando produzia “os seus poemas por uma premente necessidade espiritual”, fazia-o “numa atitude eminentemente intelectual (…) vivendo e revivendo o sentir dos momentos de concepção poética.” (Dias Miguel, 1956, 185)

É então a poesia o canto desses sonhos do coração? O que são eles? Parece-nos que Pessoa se refere, quase falando numa linguagem gémea da de Pessanha, a um processo poético. Curiosamente (e tal não deverá passar de uma coincidência), no pensamento tradicional chinês, seja ele confucionista ou daoísta, o coração (xin) é a entidade onde residem as emoções, os desejos, os sentimentos, o pensamento e a moral, ou seja, ali se entrelaça toda a fenomenologia da existência interna dos seres humanos. Se entendermos coração neste sentido, teremos então o indivíduo e todos as seus rizomas culturais nas mãos.

Mas Pessanha, por outro lado, entregava-se “ao trabalho do aperfeiçoamento da expressão, preocupado até à angústia com o sortilégio e a magia verbal, condensando e polindo de tal modo, que muitas vezes obscurecia quase totalmente o sentido biográfico e directo que tinham essas poesias”, nas palavras de António Dias Miguel. (Dias Miguel, op.cit.) Assim se revelam a existência de uma matriz filosófica e uma a exigência de distanciamento biográfico, a par com a demanda extrema da musicalidade.

Seguindo estas referências, parece inegável que a reflexão filosófica ocupa um lugar fundamental na poesia de Camilo Pessanha. Ainda que nem sempre explícita, a sua concepção do mundo constituiu, talvez de forma dolorosa, uma das principais episteme onde a sua poesia lançou raízes e a partir da qual se desenvolveu.

A pergunta e o gelo

Já em 1887, no poema Soneto de Gelo, o poeta explicitava algumas das preocupações derivadas do seu dispositivo ontológico:

(…)
“Eu mesmo quero a fé, e não a tenho,
– Um resto de batel – quisera um lenho,
Para não afundir na treva imensa,

O Deus, o mesmo Deus que te fez crente…
Nem saibas que esse Deus omnipotente
Foi quem arrebatou a minha crença”

Ou seja: a ausência da fé, uma existência num mundo sem Deus e, consequentemente, a morte como fronteira de dissolução do indivíduo. O poeta quisera uma pequena prova, ainda que só “um lenho”, de “um resto de batel” (a barca, baraka — animal fantástico, montada de Abraão e Maomé, que na mitologia islâmica opera a comunicação entre dois mundos), algo onde se suster, que o não deixe “afundir na treva imensa” de um universo vazio de sentidos divinos ou de quaisquer outras satisfatórias respostas.

É precisamente essa “treva imensa”, o segredo insondável, que provoca no poeta o início de uma profunda dor metafísica, quase revolta contra a divindade pelo seu silêncio/inexistência e sua consequente falta de fé. Se foi Deus “quem arrebatou a minha crença” é porque o estado de descrença é anterior ao próprio advento do raciocínio científico-filosófico ou da intromissão da cultura. É certo que a falta de fé surgirá também como decorrente do próprio ZeitGeist, da posição do poeta num dado momento civilizacional. É a religião na qual foi educado, as relações familiares, a escola frequentada, o valor atribuído ao conhecimento científico, a sociedade emergente, enfim, o conjunto global de valores e procedimentos que constituem uma Cultura num determinado momento da História, que tornavam problemática a existência de Deus. Mas Pessanha parece afirmar que sente a sua descrença, de algum modo, anterior, constitutiva e fatal, porque lhe foi arrebatada por Deus, o que não deixa de exalar uma paradoxal ironia.

A extinção da crença resultará como anteriormente resultava a sua afirmação: sem que o sujeito nela tenha uma real intervenção. Pessanha assume neste poema o seu ateísmo como condição (dolorosa) e não como decisão consciente. Até porque o novo universo, dessacralizado, não lhe fornece respostas. Simplesmente, efemeramente o admite, na sua fria indiferença, sem proporcionar qualquer consolo às angústias fundacionais dos humanos.

O poeta refere esse mal-estar matricial no poema Estátua:

Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, — frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre mármore correcto
Desse entreaberto lábio gelado:
Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.  

O cansaço de procurar de respostas no olhar – acto que remete para a contemplação, a teoria –, dá lugar à ousadia do beijo – acto amoroso, a poesia. No primeiro caso, a contemplação esbarra e quebra-se “como a onda na crista de um rochedo”. No segundo, produz-se um esfriamento do que era “ardente, alucinado”. Ou seja, nem a razão consegue penetrar o insondável; nem um extremo desejo e uma vitalidade transbordante obtêm outro resultado que não seja a sua própria dissolução. Em ambos os casos, sobrevém uma existência assombrada pelo silêncio.

Emana, de facto, deste poema uma sensação de horror perante um universo feito estátua, em cuja indiferença nem Razão nem Vida penetram. Estátua porque, se bem que gelado e silencioso, de olhar sem cor como as estátuas gregas, ainda assim, tal como a escultura clássica, o universo não deixa de exibir uma certa ordem e exalar uma profunda beleza. Tal acentua o sofrimento do poeta perante a impossibilidade de – não de o conhecer – mas de beber esse segredo. Não serão os conhecimentos científicos, racionais, que trariam satisfação a Camilo Pessanha, pois estes nem de perto pretendem responder às questões que o habitam. Mas, mesmo face às suas ousadias, de pesadelo, nada acontece a não ser o esfriamento perante a gravitas de um “túmulo fechado” ou de um “pélago quieto”.

Pessanha habita um universo novo, que a ciência descreve através das teorias quânticas, do princípio da incerteza, da transformação sucessiva de matéria em energia e de energia em matéria, em que a própria matéria não é mais que uma vibração ou ondulação, obediente a ritmos misteriosos, desconhecidos mas dessacralizados.

Não será também o uno conceito de Vontade, de Schopenauer — como tem sido repetidamente afirmado por uma ligação rápida ao dito pessimismo do alemão —, que aqui estará em jogo. Não existe uma Vontade (conceito eivado de metafísica), mas um palimpsesto de forças, de energias, de vibrações, num universo em que as formas se limitam uma existência efémera como no poema “Imagens que passais pela retina dos meus olhos / Porque não vos fixais?”, em que tudo é transitório e de sentidos vagos. Os “olhos pagãos” somente vêem os “sucessivos desertos”. E nem a sua presença deixará qualquer rasto: “Fica sequer, sombra de minhas mãos”.

No lugar de Deus não existirá nada, sequer faz sentido o panteísmo de Espinosa. A ideia de um ser divino, antropomórfico ou disseminado, dará lugar a esse resfolgar contínuo de todas as coisas, essa dimensão pulsante que permite supor a existência de um ritmo primordial, incessante, inesgotável, sem face nem propósito, sem leis morais, mera energia e mera matéria, em permanente metamorfose, como o poeta sussurra ainda no seu leito de morte, à laia de despedida: “Tudo podridão… tudo matéria…” E podridão, o leitor do Octave Mirbeau de “O Jardim dos Suplícios”, novela passada em Cantão no século XIX, que Pessanha certamente era, sabe que significa metamorfose.

Num plano mais pessoal, é a ausência de uma consciência divina que torna fútil a crença num destino, dando ao indivíduo a sensação solitária de à toa marear na vida, tornando-a também a ela fútil e levando à invocação da morte como acto estético último, no sentido borgesiano da iminência de uma revelação que não se produzirá.

Enfim, levantou ferro.
Com os lenços adeus, vai partir o navio.
Longe das pedras más do meu desterro
Ondas azuis do oceano, submergi-o. 
Que eu, desde a partida,
Não sei onde vou.
Roteiro da vida
Quem é que o traçou?
(…)

A sensação de inutilidade da vida (“Foi um dia de inúteis agonias”… “Floriram por engano as rosas bravas…”) percorre a obra de Pessanha. A vivência num mundo desencantado, sublinhada pela decadência do país, estriba-se numa ontologia melancólica, onde a aura materialista acaba por ser, em confronto com a sensibilidade do poeta, fonte de uma inextirpável dor.

Camilo Pessanha será um daqueles primeiros homens a ter nascido no mundo de um Deus morto (Nietzsche), mas onde a estrutura religiosa se encontra profundamente imiscuída na Cultura e mantém a sua influência noutros domínios que não o filosófico. Por exemplo, nesta linha, Michel Onfray, no seu Tratado de Ateologia, classifica de ateísmo cristão o pensamento dos homens oitocentistas que não acreditam na existência de Deus, mas cuja moral se rege pelos valores do cristianismo.

No caso de Pessanha – também porque a sua poesia mergulha “as suas raízes no húmus natal” – existirá, não uma moral cristã, mas uma estética primeva que não dispensa uma concepção divina, um plano do mundo. É, sobretudo, em termos estéticos, imagéticos até, com todas as suas consequências, que esses arquétipos assombram Pessanha. Ele recorre aos mitemas da sua cultura, claramente perturbantes, para exprimir o seu desvanecimento no mundo contemporâneo e também na sua própria sensibilidade. Tal procedimento é recorrente quando o poeta se refere, por exemplo, a figuras femininas, segregando imagens como “Magra figura de vitral…”, “Madalena, cabelos de rastos…”, de nítida influência religiosa ou, num registo mais rural, mas igualmente irreal: a alma de sua mãe, pela neve, a mendigar à porta dos casais.

Repare-se ainda no poema Transfiguração:

Mulher forte, remiu-me a tua prece:
Penitente, pagão, bem lusitano
Ergo os braços ao céu quando anoitece.
Judas divaga, em espiras de pecado
Eis-me o Verbo de Deus, sacramentado
No rebuço dum capote alentejano
.

A mulher (origem, cultura) fica como repositório da crença, que eventualmente, à la Pascal, o redimirá. Mas ele é Judas (traidor, em pecado) e mesmo quando poeta, expressão divina, “sacramentado”, acaba rebaixado à banal, prosaica, desencantada condição de existência “no rebuço dum capote alentejano”.

Fusão ou barbárie

Uma das consequências principais de um universo dessacralizado é o surgimento da morte como espaço de dissolução do indivíduo. Deus existiu moribundo na poesia do século XIX, até encontrar a sua mais desesperada e última expressão no satanismo, que precedeu o nosso poeta. Tais caminhos mostraram ser becos sem saída, meras expressões contingentes de um problema que cavava mais profundo que uma inversão, na qual, afinal, se declarava um amor supremo edipianizado.

E não seria por aí que Camilo caminharia. Como refere Rubim, a partir da crítica do poeta ao livro Flores de Coral, de Alberto Osório de Castro, nele a vida surge como “uma consequência lógica” da morte, a vida significa a morte, uma não é a negação da outra. “De que havia pois de lamentar-se, ou contra o que havia, pois, de insurgir-se, se a morte é, em relação à vida, não só o termo fatal, mas também a consequência lógica?”

Contudo, Pessanha não deixa de considerar a morte como algo de fatal, a par com uma consequência lógica. Daqui se entende a concepção da vida — apenas porque no humano existe à partida o conhecimento antecipado do fim —como fatalidade, embora esteja ausente o destino. O que parece aconchegar tal concepção da morte como dissolução do indivíduo, em que esta não passa de uma “consequência lógica da vida”, parece ser um desejo último de fusão com o Cosmos, finalmente de participação total, expurgadas que serão a consciência e a dor.

Recortes vivos das areias,
Tomai o meu corpo e abride-lhe as veias…
O meu sangue entornai-o,
Difundi-o sob o rútilo sol (…).
Só o meu crânio, fique,
Rolando, insepulto no areal,
Ao abandono do simoun
Que o sol e o sal o purifique
.

A morte será uma porta para a integração total no universo, integração que não será a de uma alma una mas da matéria que se transforma, de um corpo que se desfaz: “Róseas unhinhas que a maré partira… / Dentinhos que o vaivém desgastara… / Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos…” é o que sobra de uma vida e da “fúlgida visão, linda mentira!”. Poderá ser correcto afirmar que a biografia infantil do poeta, as suas desilusões amorosas e mesmo a sua frágil saúde terão sido razões importante para conferir à dor um lugar de relevância nos seus poemas. Mas creio que, aquém e além das referências biográficas, fará sentido outorgar a esta dor metafísica – consequência da consciência da inexistência de Deus, do indivíduo após a morte e do Destino – um papel central na obra do poeta de Clepsidra.

A dor que deveras sente

De tal modo a questão da dor é central na poesia de Camilo Pessanha que o poeta a transforma em energia necessária, como se ela fosse o único instrumento que permitiria uma visão mais profunda do universo e, de um modo quase perverso, justificasse a existência humana: uma espécie de Sofro, logo existo, na medida em que seria um garante de Ser.

Tenho sonhos cruéis: n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente…

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!…

Porque a dor, esta falta de harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu de agora,

Sem ela o coração é quase nada:
— Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.

Sem a dor, o coração, os tais sonhos, “é quase nada”. São as lágrimas que justificam a madrugada e sem elas o sol não seria sol, nele se extinguiria o que ele próprio proporciona. A importância atribuída à falta de harmonia remete para a frase de Rimbaud: “Finalmente, acabei por considerar sagrada a desordem do meu espírito”. No caso do poeta português, essa desordem é fruto da dor, mas é também fonte de iluminação, de uma percepção outra do mundo, como se fora um método poético de absorção mais intensa das coisas. Este poema é de 1888. Mais tarde, o poeta acabaria por rever esta posição como adiante demonstraremos.

Ora a questão da dor fora colocada no debate filosófico, entre outros, por Soren Kierkegaard e por Nietzsche que, na sua Genealogia da Moral, a refere como a grande criadora de memória. O filósofo alemão evoca os grandes espectáculos públicos da dor: as matanças, as carnificinas, as execuções públicas e a tortura, a que a Humanidade tem paulatinamente assistido e cuja função, afirma, é precisamente a criação de uma memória; a dor como uma terrível mnemotécnica, que passa mesmo, em certas sociedades, por rituais extremos e pela inscrição dos corpos.

Num plano individual, a dor também proporciona a memória e demarca os limites de acção dos indivíduos, mas a sua persistência, nomeadamente de uma dor metafísica, impele o sujeito para a reflexão filosófica e – pretenderão alguns – estende o campo de percepção a outras realidades. Tal fará, em Pessanha, que a dor seja invocada: “Saudades desta dor que em vão procuro / Do peito afugentar bem rudemente”. Repare-se no paradoxo: sente-se a falta (heurística) de uma dor que se pretende eliminar, porque ela é “a luz desgrenhada que alumia as almas” e o “céu d’agora”. Ou seja, a dor é ainda o que permite, no caos que desencadeia, um determinado conhecimento de si próprio e a intuição do universo.

Veja-se o exemplo do poema Branco e Vermelho, no qual a dor se transmuta em luz, em lúcida febre e proporciona a visão, a contemplação do mundo. E é toda uma humanidade agrilhoada que o poeta nos descreve, atravessando um mundo deserto, futilmente explorada e temente de um castigo, seres viventes nos charcos do medo, que só a morte liberta do sofrimento.

A dor induz o poeta a um estado de luminosidade/alucinação que lhe proporciona a visão da humanidade que desfila, açoitada ao ritmo dos seus versos. E que humanidade é essa? Um grande painel de sofrimento, de desconforto metafísico e também produto do crime cometido desde o alvorecer da História: a exploração do homem pelo homem.

Claro que neste poema existem outros cambiantes, outros caminhos interpretativos, nomeadamente (uma vez mais) para quem se quiser referir a conhecimentos esotéricos e à importância do maniqueísmo (a oposição luz/trevas) no pensamento templário e maçónico, sabida que é a filiação de Pessanha à maçonaria. Contudo, cremos que esta filiação, longe de ser religiosa, passava precisamente pela recusa da Igreja e por uma tendência de fraternidade social. É sabido em Macau que a loja a que Pessanha pertencia não tinha um carácter teísta, bem pelo contrário. Dela fizeram parte conhecidos ateus e republicanos.

Alma lânguida e inerme

À medida que em Macau Pessanha vai adensando os seus contactos com o pensamento chinês, podemos vislumbrar nos seus poemas alguns pontos de contacto com a tradição oriental, nomeadamente eventuais influências daoistas. De facto, a concepção de um mundo heraclitiano, em permanente movimento, não andará muito longe da ontologia proposta pelo pensamento daoista, mas será sobretudo o retorno à pureza original, que todo o pensamento clássico chinês prescreve, que encontra nos daoistas um método que nos surge como próximo de certos versos do nosso poeta.

Para o sábio daoista, deve o homem retirar-se do mundo, afastar-se para o ventre da terra onde, no silêncio, num processo de metamorfoses, comparável ao de uma crisálida, se transformará no Feto Imortal. O daoista alimentar-se-á na sua gruta, sugando as estalactites, como se fossem os seios da Terra.

Pessanha abre precisamente a Clepsidra como o famoso poema Inscrição:

Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Ó! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme…

Ou mais à frente no mesmo volume:

Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver…
Passarem sobre mim
E nada me doer!
— Sorrindo interiormente,
Co’as
pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. —
Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano…
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.
Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.
(…)

E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.

Ora não se trata aqui da morte mas de atingir um estado outro de consciência, em que a fusão com a Terra, que um psicanalista poderia atribuir a um desejo de fusão com a mãe, seria o passo principal para conseguir um determinado tipo de repouso, que eliminaria a dor.

Gaston Bachelard, curiosamente no mesmo livro em que refere Lúcio Pinheiro dos Santos, um filósofo amigo do poeta de Macau, entende

“o repouso como um dos elementos do devir”, que se inscreve no “cerne do ser, que devemos mesmo senti-lo no fundo mesmo do nosso ser, ao nível da realidade temporal sobre a qual se apoiam a nossa consciência e a nossa pessoa. (…) Que cada um, à sua maneira, se liberte das excitações de circunstância que o põem fora de si. (…) o ser libertar-se-á de um impulso vital que o afasta para longe dos objectivos individuais, que se desgasta em actuações imitadas. (…) A consciência pura aparecer-nos-á como uma potência de espera e vigia, como uma liberdade e uma vontade de nada fazer.” (Bachelard, 2006, V-VI).

Estamos então perante uma espécie de quietismo como panaceia para a dor, fonte de iluminação e, no sentido referido por Gustavo Rubim, de alucinação, na medida em que a percepção do mundo se altera, se refina, se torna rítmica através da escuta aproximada do pulsar do pensamento e da própria matéria. Também nessa crisálida emerge, finalmente, um fio de voz, plena de consciência e de musicalidade, que dará origem ao poema. Não se trata, portanto, de um desejo de morte mas de obter um lugar excelso de compreensão do mundo que passa, como no daoismo, pela participação no todo, quase mineralização, onde a impessoalidade não significa necessariamente despersonalização mas, pelo contrário, a formação de um ser outro, como a borboleta Aurelia dos neo-platónicos de Alexandria, símbolo de uma nova sabedoria.

Podemos concluir que o ateísmo de Camilo Pessanha não o conduziu a um beco sem saída, como o poema Estátua parecia anunciar. Pelo contrário, permitiu-lhe navegar por territórios desconhecidos, não se fechar na sua própria cultura e dotar a sua poesia de uma universalidade e de uma atemporalidade inegáveis.

Quando nos subtraímos a essa ideia onde tudo cabe e que tudo explica, ficamos sós perante o Cosmos mas é precisamente nesse momento que se revela a tragédia e a beleza da condição humana, desse animal cujo dever é olhar o universo de frente, sem improváveis mediações, assumindo-se como filho das estrelas e do mar, assombrado pela ideia de infinito e orgulhoso por ser uma pequena chama no vasto incêndio do universo.


BIBLIOGRAFIA CITADA
Bachelard, Gaston. La dialectique de la durée. PUF: Paris, 2006
Dias Miguel, António; Camilo Pessanha – Elementos para o estudo da sua biografia e a da sua obra. Edição de Álvaro Pinto (“Ocidente”): Lisboa, 1956.
Lemos, Ester de. A “Clépsidra” de Camilo Pessanha: notas e reflexões, Tavares Martins: 1956
Novalis. Fragmentos, diálogos monólogos. Editora Iluminuras: São Paulo, 2009.
Rubim, Gustavo. Experiência da Alucinação – Camilo Pessanha e a Questão da Poesia. Editorial Caminho: Lisboa, 1993.

17 Jul 2017

As celebrações – No início era a Clepsydra

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omemora-se, neste ano de 2017, os 150 anos da morte de Camilo Pessanha. A efeméride quase passa despercebida no mundo de língua portuguesa, de Portugal a Macau, uma discrição que talvez agradasse ao poeta, cuja vida de exílio o afastou dos meios literários do seu tempo.

Não deixou por isso – nem pela dimensão reduzida da sua obra – de influenciar as letras portuguesas, à medida da originalidade e brilho de uma escrita que, nas palavras de António Ferro, produziu «um missal» de uma geração. Pessanha escolheu uma vida de exílio, sobretudo de distanciamento progressivo e irremediável, no longínquo porto de Macau, nesse tempo colónia portuguesa, na costa sul da China.

Se com alguma facilidade podemos pensar que a vida de Camilo Pessanha se caracterizou pela estranheza — e para isso basta ter em consideração o seu progressivo distanciamento geográfico e quotidiano das suas raízes portuguesas — é o espanto que nos assalta quando temos em consideração o estabelecimento da sua obra poética. Raramente, na história da Literatura, sobretudo do século XX, deparamos com tamanha dificuldade em ter como assente e definitiva a versão final de uma obra literária. No caso do poeta da Clepsidra, são inúmeras as dúvidas, as versões, os poemas continuamente reescritos a cada autógrafo ou no momento seguinte à sua publicação.

Quando, num determinado instante, se julga ter finalmente acesso em definitivo a um corpus poético, eis que do acaso ou do estudo, da investigação ou de um acontecimento singular, surgem novas dificuldades ou, simplesmente, outras descobertas, que tudo voltam a pôr em causa e fazem repensar, se não o conjunto da obra, pelo menos o estabelecimento definitivo de um texto que insiste em se querer em processo.

Descortinar que versão de seus poemas o poeta abraçaria é percorrer um labirinto – de autógrafos, publicações em jornais e revistas, edições póstumas, rasuras, cartas, anotações – cujo fio salvívico parece estar nas mãos de uma Ariadne amiga de folguedos cruéis.

Um episódio é bem revelador deste imbróglio em que a obra de Pessanha se tornou. Trata-se do famoso Caderno Poético, onde o poeta colava poemas saídos na imprensa escrita, que de seguida transformava, introduzindo variantes formais e de conteúdo, ou no qual escrevia directamente versões novas de poemas. Este pequeno caderno de capa negra terá sido confiado pelo próprio, antes da sua morte, a Laura Castel Branco que, após o desaparecimento do poeta em 1926, compreendendo o valor do que tinha em mãos, o entregou à guarda segura da Biblioteca de Macau. Em vão. Durante quatro décadas o precioso documento esteve desaparecido, ou por não haver ninguém que soubesse da sua existência ou por se ter perdido entre os volumes daquele depósito de livros.

Foi preciso que, em 1967, durante a Revolução Cultural chinesa, cujos ardores também incendiaram as ruas de Macau, os Guardas Vermelhos invadissem a biblioteca dos “colonialistas” e atirassem uma série de móveis para a rua, pela janela de um primeiro andar. Uma secretária velha caíu com estrépito sobre o lajedo e logo se espatifou. De uma das gavetas rebentadas, saltou um caderno negro e oleoso que o director da Biblioteca, Luís Gonzaga Gomes, se apressou a recolher, ciente da importância daquele achado.

Examinado o documento, logo se tornou patente que nele existiam novas versões de poemas que se julgavam definitivos, nas edições até então trazidas a lume da sua obra.

No entanto, os compiladores preferiram, nalguns casos, ignorar esta descoberta e continuar a apresentar da obra do poeta versões que ele próprio desdenhara ou emendara. Aliás, muitas são as fantasias que se produziram em torno da própria produção da poesia em Camilo Pessanha. Uma das mais correntes – e mais falsas – indicia que  o poeta não recorreria à escrita e que somente utilizaria a memória para compor e guardar os poemas. Sem pretender entrar aqui em polémica, basta ter consideração os inúmeros autógrafos e, principalmente, o cuidado quase fanático com que hoje constatamos que revia e tornava reecrever alguns dos poemas, para nos assegurarmosde que o seu método de trabalho era lento e exigente, o que implicou necessariamente o recurso ao papel.

Ao lermos a crítica efectuada a um volume de versos de António Fogaça, publicada ainda nos seus tempos de estudante em Coimbra, verificamos que Pessanha salvaguarda ferozes critérios de exigência, certamente os mesmos que o levaram a reter a publicação dos seus versos em livro até uma idade tardia, talvez para não incorrer nos defeitos que ainda jovem apontava ao seu condiscípulo. Daí que sejamos levados a considerar que devemos tomar como versões definitivas as que mais tardias foram realizadas pelo poeta, frutos de um labor permanente  sobre um texto que não cessava de se reconstruir e aperfeiçoar.

Quando, em princípios deste século, fizemos um levantamento dos livros existentes na Biblioteca Central de Macau, que tinham pertencido ao poeta, deparámos com um exemplar da revista Centauro, dirigida por Luís de Montalvor, o famoso número único da publicação, onde surgem, entre outros, poemas de  Pessanha e de Fernando Pessoa. Este era o exemplar que lhe fora enviado de Lisboa e que deve ter chegado a Macau no próprio ano da sua publicação, ou seja, em 1916. Ao folhear as suas páginas, foi com emoção que demos com as anotações e rasuras feitas nos poemas pela mão do poeta, modificações estas que são, afinal, as últimas versões conhecidas, feitas por ele próprio e sem intervenção de estranhos.

Quanto mais não fosse, esta descoberta justificaria uma nova edição, que foi realizada. Nela apresentámos estas novas versões de alguns dos poemas, as que por ora consideramos definitivas – deixando sempre espaço a que outros acontecimentos produzam novidades –, para além de preferirmos sempre as variantes autógrafas ou provenientes de emendas e rasuras às que foram sendo publicadas na imprensa. Assim, tomamos igualmente o Caderno Poético como referência de credibilidade superior às versões sujeitas à mão, quantas vezes apressada ou pesada, do editor.

Atendendo ao intrincado deste processo e ao regular aparecimento de novos documentos, não acreditamos apresentar a versão definitiva, mas vamos proporcionar a todos quantos lhe amam esta obra, nestes 150 anos da sua morte, uma versão comemorativa da Clepsydra, em forma de missal — finalmente, como prescrevia António Ferro.

E tendo sido este o lugar por ele escolhido para viver e morrer, faz um sentido quase irónico mas reconfortante ser agora, neste território há dezassete anos sob soberania chinesa, prestada por Macau uma homenagem ao que foi, indubitavelmente, o seu maior poeta.

Com a publicação de uma edição renovada da Clepsydra, daremos então início em finais de Julho às celebrações dos 150 anos, que se estenderão até ao fim do ano e adiante, mas cujo ponto alto será por volta do dia do seu nascimento, 7 de Setembro. Contamos que a população de Macau participe connosco nesta homenagem a um dos nossos melhores.

13 Jul 2017

Camilo Pessanha e a Luz

(Apresentação do livro de Maria Antónia Jardim, “CamiloPessanha um Educador Épico-Ético”)

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]inhas senhoras e meus senhores,

Cabe-me a grata e honrosa tarefa de apresentar este livro de Maria Antónia Jardim sobre o poeta Camilo Pessanha. Faça-o com redobrado prazer pelo momento histórico em que nos encontramos — seis meses depois da transferência de soberania de Macau para a Républica Popular da China — pois o seu lançamento e a nossa própria presença constitui uma prova da permanência de valores portugueses nesta terra, realçados e magnificamente sublinhados pelo facto de nos reunirmos à volta da obra de um poeta. Mais do que vocação, mais do que horizonte e distância, a poesia apresenta-se ao exilado, afinal, como destino.

Muito se falou em Macau de Camilo Pessanha, mas pouco se fez pela memória do homem e da obra. Basta pensar que a sua estátua foi erigida, à pressa e quase envergonhadamente, somente em 1999. Que não foi criado um pequeno instituto de estudos camilianos, talvez ladeado de um pequeno museu. E tudo isto faria sentido porque Camilo Pessanha é, sem dúvida, consideremos o português ou outra língua qualquer, o mais importante poeta que alguma vez viveu em Macau, sendo um magnífico símbolo desta cidade.

É também por tudo isto que saudamos o aparecimento desta obra, cujo alcance — para além do seu mérito próprio — reside igualmente no facto de demonstrar que muito há ainda a fazer e a pensar sobre o poeta da Clepsidra e a sua obra. Distante em vida e em morte dos círculos literários da metrópole, Camilo Pessanha não teve a atenção de um Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro, embora estes o tenham considerado seu Mestre.

Em 1914, Sá-Carneiro respondia à seguinte questão do jornal Républica Qual a melhor obra de arte dos últimos trinta anos? que, e passo a citar:

“À minha vibração emocional, a melhor obra de Arte escrita nos últimos trinta nos é um livro que não está publicado — seria com efeito aquele, imperial, que reunisse os poemas inéditos de Camilo Pessanha, o grande ritmista. Ouvindo pela primeira vez os seus versos, fustigou-me sem dúvida uma das impressões maiores, mais intensas a Ouro e gloriosas de Alma da minha Ânsia de Artista. Rodopiantes de Novo, astrais de Subtileza, os seus poemas engastam mágicas pedrarias que transmudam cores e músicas, leoninas de miragem, oscilantes de vago, incertas de Íris. Pompa heráldica, sombra de cristal zebradamente roçando setim”.

Esta extraordinária admiração que a poesia de Pessanha desperta nos expoentes literários da sua própria época é bem garante do interesse e alcance, quer formal quer temático, da sua produção poética e, portanto, acolhemos com alegria a presença deste novo estudo de Maria Antónia Jardim, escrito sob o signo da luz, essa mesma que Sócrates acreditava na possibilidade de entrever na demanda de si-próprio e cujo “Conhece-te a ti mesmo” não está por acaso na epígrafe deste livro.

Escreveu o próprio Camilo Pessanha que a poesia é, antes de mais, étnica, no sentido em que — e cito — “a inspiração poética é emotividade, educada, desde a infância e com profundas raízes no húmus do solo natal. É por isso que os grandes poetas são em todos os países os supremos intérpretes do sentimento étnico”. Camilo refere, portanto, que a poesia encontra a sua seiva, a sua força de poesis (em grego, criação), nesse solo original, solo que deve ser entendido como cultura.

Ora é precisamente o solo cultural, simbólico e também de ideais políticos, em que assenta a poesia de Camilo Pessanha que este livro procura lavrar, na busca de elementos arcaicos, fundamentais — se quiserem, arquetipais — cuja lenta maturação através da História encontram ressonâncias na obra do poeta.

Maria Antónia Jardim leva-nos numa viagem intemporal ao encontro de Platão, um dos fundadores da gnose Ocidental, ele próprio tão influenciado por um certo Oriente; mas também de Confúcio e do budismo cuja influência em Pessanha é igualmente detectada.

Chegamos pois ao ponto em que poderemos esboçar as teses centrais deste livro, a saber: a influência de Platão em Pessanha; a intensificação, ou, se quisermos, o potencionamento do germe platónico pelo saber oriental; e como estas raízes gregas do solo Pessanha o aproximam do confucionismo e do conceito de “Li”.

Como é óbvio não é aqui o espaço de desenvolvimento destas ideias, nem de descrição total das teses da autora, até porque se o fizesse estragaria o efeito de surpresa que este livro provoca, para além do prazer estético que a leitura das suas páginas proporciona. Ao levar-nos num trajecto em que o tempo, tal como em qualquer viagem, se suspende, Maria Antónia Jardim descreve uma constelação de labirintos do pensamento, cujo fio de Ariadne é o próprio Camilo Pessanha. É à luz da sua obra, como a candeia do filósofo, que a autora percorre os meandros da filosofia ocidental, sem perder de vista esse saber do Oriente cujo conhecimento nos aproxima de uma perspectiva global da Sabedoria humana, na medida em que são mais os nódulos, os encontros, com o Ocidente, do que o caminhar em vias paralelas.

É por isso que vale a pena, definitivamente, ler este livro, mesmo que nalguns pontos se possa discordar do que nele se encontra expresso. É que a profundidade da abordagem remete cada um dos leitores para um exercício de pensamento também ele inevitavelmente profundo, constituindo um bálsamo para quem no mundo de hoje quase inevitavelmente respira um ar demasiado poluído de banalidades. Esta obra enriquece o universo camiliano, também na medida em que se afasta da análise literária pura, das escolas e dos ismos, para entrar no campo mais claro dos conceitos.

Camilo Pessanha foi, como se sabe, um poeta exilado, um desses que “vagueiam e se definham por longínquas regiões” , regiões estas que, da geografia ou do espírito, são o palco onde é traçada, a letras de ouro e sangue, a memória mais duradoura e profunda — para alguns, divina — do povo a que pertencem. Muitos de nós percorrem o mesmo território de exílio, espaço excelente de saudade e contemplação do lugar de origem mas, sobretudo, de lenta metamorfose cujo devir se profetiza, ainda hoje, envolto nesse mesmo luminoso manto de neblina.

Muito Obrigado.

11 Jul 2017

A liberdade prometida

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]inte anos parecem muito tempo mas estes que passaram desde a transferência de soberania de Hong Kong até ao presente fugiram num ápice. Para isso terá contribuído certamente o desenrolar compulsivo, quase maníaco, dos factos. Estes, de tal modo se sucederam, que por vezes se atropelaram e mutuamente atiraram para o caixote do lixo da História. O século XXI tem sido fértil em acontecimentos, em momentos que, noutras eras, teriam sido incontornáveis, disruptivos. Agora não: existe esta sensação de que a vida continua igual, orientada pelos mesmos tiques pois a humanidade não consegue viver no sobressalto diário que os media hoje proporcionam.

Insinuou-se a gripe das aves, eclodiu a crise asiática, a mãe pátria salvou as finanças da praça financeira. Nos EUA ruíram as torres-gémeas, semeou-se a guerra de novo pelo mundo. Cresceu desmesuradamente Macau, o fosso entre ricos e pobres alargou-se consideravelmente na ex-colónia britânica. Veio outra crise, de um tamanho tal que a Grande Depressão parecia agora ínfima. Em Hong Kong, os guarda-chuvas amarelos ocupavam durante meses as ruas e impediam o sufrágio universal condicionado.

Muitas vezes me pergunto se, caso fosse realmente o interesse de Pequim controlar os assuntos de Hong Kong, Joshua Wong e outros activistas radicais não seriam seus agentes. Isto porque, de modo quase perfeito, impediram que a RAEHK desse um passo fundamental para uma realização democrática mais completa: o sufrágio universal condicionado. Como se sabe, a proposta de Pequim passava primeiro por admitir uma sufrágio universal. E, em segundo lugar, que os nomes merecessem a sua aprovação, isto porque, segundo o léxico oficial, teriam de ser patriotas.

O primeiro aspecto não é de desprezar. Um sufrágio universal é algo de onde dificilmente se recua. E, correndo tudo bem, ou seja, se Hong Kong não afrontasse a China, é de admitir que a cidade poderia gozar de um sufrágio sem condicionantes dentro de uma década. Assim não o quiseram os activistas dos guarda-chuvas amarelos. Que interesses realmente defendem é difícil de saber, mas os resultados que conseguem vão pouco além de um acentuado gosto pela vitimização mediática. E, claro, de um retrocesso no processo democrático.

Os activistas dos guarda-chuvas amarelos queriam, num golpe, passar de um regime colonial, onde a representação democrática eleitoral directa era mais fraca do que, por exemplo, em Macau, para uma democracia eleitoral de modelo ocidental. Não aceitaram um passo intermédio e no mesmo gesto queimaram uma série de pontes que permitiam um diálogo contínuo entre as partes. O comportamento dos deputados eleitos, quando do juramento, foi lamentável. Traíram o país ou enxovalharam-no, pois mesmo não se sentindo chineses, nem por isso deixavam de estar na China e certas atitudes não são admissíveis; mas sobretudo traíram os seus eleitores que assim se quedaram sem representantes no parlamento. Finalmente, com tanta fanfarra e pouca votação, proporcionaram a Pequim o congelamento sine die das reformas democráticas.

A democracia é complicada em Hong Kong não por causa da liberdade de expressão, dos direitos humanos ou dos animais. A questão é, claramente, outra. O receio de mudança, de perda de controlo, existe mais do lado dos homens fortes da cidade, do que por parte de Pequim. Os tubarões do imobiliário e da navegação, os mestres das finanças, os donos dos grandes negócios, conluiados com interesses no continente, esses serão os que sobretudo receiam uma sociedade mais justa, mais igualitária, menos dividida, resultado eventual do voto popular.

Em Hong Kong, a estrutura económico-política é ainda herdeira dos impérios, chinês e inglês. O maoísmo vizinho pouco ou nada a perturbou. É certo que, apressadamente e à última da hora, os ingleses lembraram-se de inocular o vírus dos gritos pela “democracia” e “liberdade”, depois de 140 anos de feroz garra colonial sobre a população chinesa da cidade. Ainda nos 70 Bruce Lee destruía, num dos seus filmes, uma placa onde se lia “Proibida a entrada a chineses e a cães”. É também por isso revoltante ver bandeiras britânicas nos protestos do 1 de Julho…

O despertar tardio dos britânicos para a democracia em Hong Kong retirar-lhes-ia a legitimidade que a China lhes concedeu com a assinatura da Declaração Conjunta. No entanto, também graças a este documento (para além, creio, da própria vontade de Pequim), a Lei Básica não deverá sofrer alterações que tornem inoperacional o segundo sistema. E o Reino Unido tem o dever de olhar para o que acontece e verificar o cumprimento dos acordos, pelo menos do que constitui o seu espírito mais íntimo. A China, como mãe-pátria, tem o dever de não assustar os seus filhos, sobretudo quando isso não parece de todo necessário, como no caso dos livreiros.

Por Macau ainda nos banhamos na liberdade prometida.

5 Jul 2017

A ausência como centro

Pablo Picasso – “Auto-retrato”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]miúde o exilado se debate com as questões do abandono e da ausência. Situado na posição ambivalente de quem abandonou e se sentiu abandonado, é na experiência da ausência que, finalmente, a sua desterritorialização se constrói e edifica. É à volta desse vazio, tomado quantas vezes por absoluto, que o exilado alicerça novas identidades e se redescobre, enquanto humano e errante.

Não se tratará de uma ausência particular mas de um conjunto intrincado, parte inconsciente ou com dificuldade denotado, que constitui uma espécie de vórtice — Maelstrom — em cada singularidade, impregnando-a de um movimento centrípeto, alucinado, mas cujo centro se afasta, ao invés de se aproximar.

É por isso que encaramos essa ausência com uma estranha tranquilidade, como se estivéssemos a assistir à nossa morte, no momento em que ela consiste claramente numa metamorfose. Concretamente, não conseguimos deixar de girar em torno dessa ausência, mas ela não exerce uma atracção fatal: pelo contrário, erige-se como um horizonte que contemplamos com uma doçura cada vez mais açucarada, à medida que paulatinamente nos afastamos.

Contudo, bem o sabemos, nenhuma distância realmente apagará esse sentimento de ausência que nos assombra. Seja ele fantasmático ou não, faça ele parte de uma qualquer realidade ou meramente se ancore numa imaginação perturbada, a verdade é que esse sentimento resiste ao tempo como se de um mal genético se tratasse. Nunca definitivamente se esvai, nunca de todo se apagará. É mal incurável e bem supremo que singularmente nos distingue. Espécie de maldição irrevogável e bendita, caminho sem retorno para o celeste inferno de uma percepção distanciada do mundo.

Procurei sempre esse olhar. Encontrei-o num título de Claude Lévi-Strauss e nas tropelias poéticas de Rimbaud. Fiz um curso para o compreender. Mas nunca, de facto, em mim o experimentara até me deslocar aos confins da minha civilização e nas suas margens ele em mim se entranhar. Percebi que esse olhar distanciado não se aprende de outra maneira que não seja pelo exercício da ausência, pela intimidade solitária do pensamento, nas volutas espantadas de raciocínios bárbaros, nas delícias de concretos paradoxos, excrescências de logos, numa palavra, no exercício diário do exilado.

Porque nunca algo se torna tão presente, tão importante, como quando é marcado pela ausência. Como se esta admitisse a presentificação de forma suave, quase ternurenta, do que mantemos encerrado nas caves desse seu castelo, cedendo-lhe espaço para contemplar, analisar, criticar, julgar; finalmente, capazes de entender e amar.

Ele há exilados na distância, na geografia, mas também os há que nunca saíram do mesmo lugar. Eles sabem do que estou a falar. De uma saudade de infinitamente abraçar, de amorosamente compreender. Dessa percepção distanciada do mundo, da certeza de não lhe pertencermos por há muito o termos abandonado. Primeiro, a medo… depois, por força das circunstâncias… doutras vezes, a maior parte delas, por sermos mesmo assim e tal carregarmos como destino ou maldição.

O exilado não se contorce, nem desespera: há muito que o desespero é seu fiel companheiro e a angústia noiva eterna, à sua espera num altar. É-lhe ridícula a esperança pois, intimamente, sabe que os outros dias não hão-de voltar. Esses dias que nunca realmente aconteceram, o vinho que nunca foi doce e as raparigas que nunca foram disponíveis e amáveis.

O exílio é um estranho banho de realidade, na qual todos os dias mergulhamos sem a reconhecermos e dotados de míseras pistas de leitura. É então que se abre o universo e fazem sentido as facetas múltiplas que o compõem. É então que advém um amaciado entendimento, não discursivo, das coisas. Das que tenuemente existem e das que não existem de todo. E é então que o exílio se transforma numa espécie de cidadania de um mundo belo, cruel e indiferente.

26 Jun 2017

As eleições do nosso contentamento

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos em ano de eleições e a coisa promete alguma confusão. Trata-se de um momento especial na RAEM, não tanto por causa do acto eleitoral em si mas por desvelar algumas das características nem sempre à superfície deste território à beira do Rio das Pérolas pespegado.

Começaremos então, porque assim nos arrasta a mão, por desvalorizar as eleições enquanto tal, ou seja, como eleições cujo objectivo é, normalmente, a escolha dos representantes que nos governam. Aqui é precisamente o contrário. O povo escolhe os representantes que o desgoverna. Na realidade – pura, crua e fedorenta – quem governa serão outros ou, pelo menos, assim parece. Os nossos ilustres deputados, quando muito, na maior parte dos casos, governam-se a si mesmo. E isto que poderia parecer estranho ou até despropositado, aqui faz todo o sentido.

É que em Macau é difícil implantar o conceito de bem comum. Cada um puxa a brasa à sua sardinha e a ver se fica com o fogareiro. Cada família, cada clã, cada etnia, está fundamentalmente preocupada consigo e os outros pouco existem. A teoria (selvagem e não dita) é que cada um tome conta de si e ninguém de todos que isso – grunhem – é o comunismo e isso é lá para o continente e não serve para estes exemplares capitalistas que por aqui pululam e fazem fortuna entre o imobiliário e os derivados do jogo.

No acto eleitoral, a populaça vai votar para uma dúzia de lugares eleitos de forma directa (mais ou menos um terço da coisa), a ver se se entretém. Mas, nesta realidade de antanho, as pessoas só vão realmente votar porque são arrebanhadas, conduzidas, alimentadas e, finalmente, despejadas junto às urnas com indicações precisas e irrevogáveis. Por elas ficavam em casa ou no trabalhinho que é muito bonito. Mas o melhor é ir botar o voto, não vá o chefe zangar-se. Depois os resultados são o que se sabe. Enfim, adiante.

O que realmente interessa neste acto –  nos preliminares que tanta discussão acendem – é o que vem à tona, assim como que empurrado por anos ou décadas de omissão. É ver, por exemplo, a reacção impulsiva de Pereira Coutinho perante o discurso de Jorge Valente no jantar anual do Gabinete de Ligação. O homem forte da ATFPM não resistiu ao protesto, tal como o jovem empresário não resistiu ao apelo do palco e do microfone, ainda que certamente sabendo estar a cometer um acto passível de crítica. Ambos fizeram bem: a política é mesmo assim.

Contudo, se pensarmos estrategicamente no assunto, o que Pereira Coutinho fez foi algo contrário aos seus interesses, na medida em que Jorge Valente é praticamente um desconhecido nestas andanças e o protesto do deputado emprestou-lhe pública notoriedade. Aquele que era um jovem macaense, parceiro de Melinda Chan, transformou-se num político de futuro interessante, de quem se fala, que Coutinho teme (?!), eventualmente bem visto no Gabinete de Ligação, e até ficámos a saber que fala mandarim!

Mas o que é interessante neste caso é a emergência de um potencial debate, a esperança que luza uma ideia, que se destaque uma opinião, que se revele uma estratégia, quiçá uma visão.

Sim, queremos sangue e queremos pombas. Queremos a comunidade dividida nas opiniões mas unida num óbvio rumo. Queremos que se esgadanhem por nós. Que se empenhem na demonstração da extrema utilidade do nosso voto. E, acima de tudo, que nos falem ao coração. É disso que a malta gosta… quando não desgosta que esta gente é muito difícil…

Outro canto deste micro-universo eleitoral é aquele onde se desenrola o combate de boxe entre velhos e novos “democratas”. Ng Kuok Cheong e Au Kam San partiram definitivamente a bilha onde se acumulavam pessoas com agendas muito diferentes. Pelos vistos, pretender “directas já!” não chega para juntar os cacos. Poder-se-ia argumentar que o choque é geracional, mas o argumento cai por terra quando damos por homens como Paul Chan Wai Chi, um sexagenário, do lado dos jovens e os “tradicionais” do lado dos outros.

A questão é certamente outra. Os problemas de Hong Kong, as ligações específicas de cada membro e mesmo uma ideia diferente de sociedade estarão por detrás desta implosão da Novo Macau. É com alguma curiosidade que se aguarda por eventuais debates entre Scott Chiang, o homem a quem maltrataram o coração, e a dupla Ng-Au, de modo a compreendermos a dimensão da ruptura e o sentido de novas filiações.

Enfim, isto promete. Não o que devia prometer, mas promete. Dá para escolher o lugar, preparar o lanche e esperar para ver. O espectáculo promete ser divertido.

19 Jun 2017

António Conceição Júnior: “Sou religioso no sentido mais livre do termo”

Faz este ano quatro décadas de um percurso criativo que vai da moda à pintura, passando pela fotografia. António Conceição Júnior reflecte sobre o caminho andado e o que está para vir

[dropcap]4[/dropcap]0 anos de carreira, grande parte deles passados em Macau, embora tenha conhecido algumas “aventuras” no estrangeiro. Que diferenças fundamentais encontrou e de que modo podem elas ter um determinado papel na produção artística?
Não chamaria de carreira ao meu percurso, mas antes de vivências. Macau foi fundamental para a minha consolidação como criativo. Olhando para trás concluo que fui sobretudo criativo, quer no Museu, quer nas várias áreas de design em que me envolvi. Macau proporcionou-me momentos excelentes, enquanto as minhas experiências estrangeiras em Portugal, quase empre associadas a Macau – na grande exposição “Macau 400 Anos de Oriente” inserida na Quinzena de Macau na Fundação Gulbenkian em 1980, na Coordenação das acções de Lançamento da Missão de Macau em Lisboa em 1990, entre as quais realizei a minha primeira apresentação na área da Moda, e depois na Europália em 1991 foram muito enriquecedoras, porque sempre que me foi dada carta branca, liderando projectos ou acções, estes correram muito bem. Retribuí sempre com o máximo esforço e dedicação à confiança em mim depositada. Estas vivências vieram reforçar uma sensação de confiança no modo como liderei esses projectos. Comecei muito cedo, aos 27 anos a propôr ideias e liderar projectos e quando não sou eu, confesso que sinto alguma dificuldade em me integrar porque sempre tive ideias próprias.

Nos anos 80, refundou o Museu Luís de Camões e lançou o projecto do Complexo Cultural, que não chegou a avançar. Quer explicar a ideia central desse projecto? E será que hoje faria sentido criar uma instituição desse tipo?
Um esclarecimento: O Museu Luís de Camões foi criado em 1960. Sucedi ao seu primeiro director, Luís Gonzaga Gomes, em 1978, mas fui o primeiro a tempo inteiro. Tendo regressado a Macau em 1977, o então Governador Garcia Leandro contactou-me a pedir que analisasse o panorama cultural de Macau e procurasse uma forma de divulgar culturalmente o território. Lembro que, nesses tempos, Macau não dispunha sequer de uma galeria de exposições. A resposta, após a ponderação necessária, foi que eram precisos instrumentos e que um Centro Cultural era indispensável para uma abordagem abrangente, integradora, supra-linguística, da questão cultural. O projecto ficou latente e a minha energia canalizou-se para a reformulação do próprio Museu, enquanto suporte e espaço para os artistas plásticos de Macau. Foi nessa altura que foram assinados os primeiros acordos de cooperação com o Hong Kong Arts Centre e com a Fundação Calouste Gulbenkian. Mais tarde, o Governador Carlos Melancia nomeou-me seu assessor para a cultura e convidou-me para dar forma a um Centro Cultural. Estávamos em 1988 e, nessa altura, mudei o conceito para Complexo Cultural, tendo como base aquilo que hoje se chama de “sustentabilidade”. Incluía um hotel, um centro de convenções e uma Escola de Artes, aberta não apenas a Macau mas, após estudo feito, também ao Sudeste Asiático, o que permitiria não apenas uma interactividade entre os diversos componentes do Complexo Cultural como um intercâmbio entre os alunos de diferentes origens. Por volta de 2008, fui encontrar em Xangai um Centro Cultural com um projecto idêntico, o que mais consolidou a minha convicção de que estava certo. Hoje faria sentido um Complexo Cultural se não existisse o actual Centro Cultural. Tal como tive ocasião de dizer ao último Governador de Macau, que achou então o meu projecto demasiado ambicioso, não se faz um Centro Cultural para menos de 50 anos…

Ao longo destes anos ressalta, nos numerosos artigos que escreveu, o conceito de cidadania, a que parece atribuir uma importância singular. O que é para si a cidadania e de que modo a vivência de Macau serviu para apurar esse conceito?
Tive consciência de que Macau tinha a dimensão de uma cidade-piloto onde se poderiam realizar coisas fantásticas, quando regressei e dei início ao meu trabalho no Museu. Estávamos sob administração portuguesa, sendo a maioria da população chinesa, com muita gente de passagem, oriunda quer de Portugal quer da China. A consciência de pertença à cidade era algo que importava reforçar, fixar. São de então os primeiros projectos de classificação do património, a que o arquitecto Francisco Figueira tanto se dedicou e com quem tive o prazer de colaborar, são dessa altura as primeiras campanhas de limpeza da cidade (por acaso é meu o logo e o slogan “cidade nossa, cidade limpa”que ainda hoje usamos), são de então os primeiros encontros de artistas, o aparecimento dos primeiros jornais com artigos de reflexão sobre a cidade, etc, etc. Com o tempo, e sobretudo na década de 1990, o conceito de cidadania impunha-se com mais urgência e importância, no sentido de assumpção de todos os direitos e deveres de e para com a cidade. Era fundamental reflectir sobre a consciência cívica e o papel que cada um tinha a desempenhar neste processo. Eu, ligado ao então Leal Senado e responsável pela política cultural da Câmara, estava intrinsecamente ligado à vida da urbe, encontrando na Cultura a resposta para a Cidadania.

O que acha do actual momento cultural da cidade? Somos mesmo uma Cidade de Cultura ou não passa de um slogan?
Todas as cidades são portadoras de cultura. O slogan dos anos 1990 é uma redundância. A cidade de hoje é culturalmente mais dinâmica, está dotada de mais infra-estruturas. Há cerca de 25 museus, o Centro Cultural tem uma actividade bastante intensa no que toca a espectáculos e há mais exposições. Abriu uma Cinemateca. Abriram bibliotecas em diversos pontos da cidade facilitando o acesso à leitura. Há lançamentos de livros, há debates, há Fundações que têm uma programação intensiva, há jornais e revistas como nunca houve.

A sociedade civil tem feito alguns eventos de muito interesse como a “Rota das Letras”, “This is My City”, o Albergue tem feito também inúmeras exposições. Questiono, porém, qual a fatia da população que a tudo isto acede e que identifica como seu, como necessário, como imprescindível. Está a ser feito um esforço para a elevação do nível cultural da população, mas penso estarmos ainda longe do desejável…

E na comunidade macaense, além do minchi e do chupa-ovo, o que se pode passar?
Sinceramente, não sei dizer qual será o seu futuro. Penso que, mesmo sendo pequena, deve ser considerada indispensável. A comunidade tem mostrado capacidade de se organizar em diferentes Associações, o que para mim revela a sua vitalidade, seja para a “comisaina” ou para outros fins que a agrega enquanto grupo identitário. A autenticidade deste sentir, pensar e estar na cidade enriquece o tecido social. Não nos esqueçamos de que, a meu ver, a comunidade macaense, de que orgulhosamente faço parte, é uma nação de indivíduos com histórias genéticas todas diferentes, mas unidas pela ligação umbilical a Macau.

Tem espraiado a sua criatividade por áreas diversas, da banda desenhada à fotografia, da pintura à moda, passando pelo design de espadas, entre outros. Existe alguma área em que se sinta mais à vontade ou a cada momento experimenta uma inclinação específica?
Costumo dizer que tenho as minhas “gavetas” abertas. Cada uma delas corresponde a uma área. Atrevo-me a pensar que me sinto à vontade em todas essas áreas.

Nos anos 90, muitos pensaram que, devido à sua óbvia qualidade e originalidade, a sua marca de moda acabaria por se impor a nível mundial, mas isso não chegou a acontecer. Por quê?
Abri a “gaveta da moda” no início dos anos 90, a convite do Governador Melancia, representando em Lisboa uma das potencialidades que Macau poderia oferecer. Participei na Europália, na Bélgica, tendo sido convidado para ficar pela Europa a desenvolver um projecto. Razões pessoais e familiares levaram-me a ficar por aqui, mas após este arranque demorou apenas 4 anos até ser convidado por Pequim para me apresentar com um stand e uma passagem de modelos. Levei comigo uma importante empresa portuguesa que fabricou a colecção que dei o nome “Mãe China”. Seguiu-se a minha nomeação honorífica para Consultor Honorário de Moda de Pequim e conversações nas quais reconheciam A.CEJUNIOR como um nome para a China e, com o tempo, para o mundo, oferecendo e solicitando condições que considerei estupendas para ambas as partes. Para grande espanto meu, a empresa portuguesa minha parceira recusou… Isto insere-se bem nas (des)”aventuras” que já referi. 

Por que razão se deixou enredar pela arte do trajo?
Comecei a interessar-me pelo vestuário por uma razão muito prática e particular. Quando me tornei director do Museu precisava de andar engravatado e não havia pronto-a-vestir em Macau, só alfaiates. Então, passei a desenhar as proporções dos meus fatos para um alfaiate vizinho mos confeccionar. Uma das minhas características, quando me interesso por uma coisa, é ir até ao fundo do assunto. Desmanchei casacos comprados em Portugal para ver e perceber como eram feitos. E foi uma coisa que se foi prolongando e o desenho de moda passou a surgir na ponta do lápis, aliado a leituras, referências e memórias.

De algum modo, as suas criações refaziam ou situavam-se em pontos da antiga Rota da Seda, uma ideia que o actual governo da RPC deseja reactivar. Já pensou apresentar uma proposta no sentido de dar o seu contributo para esse objectivo?
Sim, tive uma colecção chamada “Rota do Oriente”, outra chamada “Samarkanda”, e ainda outra chamada “Mandhala no Topo do Mundo”. Recordo-me que no tempo do Governador Carlos Melancia, após o êxito da minha apresentação em Portugal, em 1990, o eng. Melancia defendia a ideia de que o Governo deveria apoiar-me para lançar o nome de Macau. Na altura eu era o único. Agora isso não acontece, mas a minha Rota da Seda mantém-se, agora mais amadurecida. Curioso é que, como já contei, a apresentação em Pequim foi coroada de êxito e a própria R.P. da China me quis aproveitar.

Ou seja, admite regressar à moda ou isso são águas passadas?
Hoje em dia há muitos jovens, muitos mesmo. Todos têm sonhos. É evidente que sonhar não é um exclusivo dos jovens, mas no contexto actual não sei. A minha preocupação é sobretudo que os jovens que se querem lançar por estes caminhos se municiem com suficiente bagagem cultural que é o verdadeiro alimento para a criatividade.

Passemos à fotografia. No seu trabalho, em geral, existe uma coerência que se liga à questão do detalhe, do pormenor, como se destacasse algo do seu contexto, exibindo esse algo desconectado, em si mesmo, ou nos dissesse que há mundos dentro de mundos. Por quê este fascínio, ou se quiser, obsessão?
Não é obsessão. Fascínio admito que sim. Não encontro uma explicação lógica senão o facto de ter desenvolvido uma forma peculiar de olhar a realidade, talvez em busca de uma transcendência indecifrável. Algo que me toque plásticamente mas não só. Algo que não seja vulgar nem dramático mas que assuma uma força telúrica ou espiritual sob a forma de uma beleza plástica que não requeira explicações da minha parte.

Nas suas fotografias, parece existir uma busca de beleza primeva, pré-humana, quase divina ou simulatória da presença de Deus. Considera-se religioso? Identifica-se com algum credo actual?
Essa busca não é voluntária. Aliás ao termo busca eu preferia “encontros”. Diria que aquele que mais importância teve para mim foi “Primum Lumen”, um encontro com a luz a manifestar-se de maneiras extremamente belas e cujos registos fotográficos mostram essa beleza. Sou religioso no sentido mais livre do termo. Identifico-me com esta frase verdadeiramente primeva: “como não lhe conheço o nome, chamo-lhe Tao. Sem um nome deve ser a Mãe de todas as coisas, com um nome é o antepassado dos deuses”.

Como lê os recentes desenvolvimentos da política internacional, nos EUA e na Europa? E qual o papel da China?
Trump representa uma América desconhecida para mim e, também, um lado mais conhecido, que é o do espectáculo. A Europa por ser lado, debate-se com um dilema que há 20 anos discutia com o prof. Roberto Carneiro: qual seria o futuro de uma Europa com a migração que já se fazia sentir então, sendo a indagação feita sobre o que seriam os produtos de casamentos entre cristãos e muçulmanos. Hoje as coisas agudizaram-se profundamente. Há 20 anos não havia o DAESH. Por seu lado, tenho para mim que a China tem agido de uma forma sábia, aproveitando os vácuos criados pela nova administração americana e manifestando-se também como uma potência confiável no jogo de forças onde Putin também parece ter-se intrometido, nesta grande confusão que é o mundo actual.

40 anos depois, valeu a pena ou a vida é, fundamentalmente, uma grande chatice?
Diria que valeu e vale a pena. Tenho-me como um homem novo.

14 Fev 2017