A universidade torta

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]actual Universidade de Macau não nasceu ontem e alguns dos seus problemas talvez estejam relacionados com um erro histórico e não meramente com as desconformidades do presente.
Fundada sob o nome de Universidade da Ásia Oriental, uma instituição privada comprada mais tarde pelo Governo, mudando o nome para Universidade de Macau, foi sempre estruturada a partir de modelos anglo-saxónicos de ensino, se exceptuarmos o curso de Direito.
Ainda hoje, o reitor e a sua equipa estão muito mais perto dos modelos americanos e britânicos, do que dos praticados no continente europeu, em países como a Alemanha, França, Itália, Espanha ou Portugal.
Ora Macau nunca foi anglo-saxónico. Disso, no seu ADN, tem apenas a língua (?) e alguns maneirismos. O modo de ser e de fazer não se aproxima nem se assemelha. É distinto em inúmeras vertentes.
De um modo subtil, em Macau a cultura chinesa operou muitíssimo bem no cenário que lhe foi proporcionado pelo enquadramento europeu, prosperando e tomando, desde há muito, conta da cidade.
Talvez porque o estabelecimento de ensino olha o mundo através de uma lente americana, com outros ritmos, exigências (ou falta delas) e valores diferentes, sempre tenha existido este desajuste entre a universidade e a cidade que alberga. Ambiente agravado pela falta de entendimento das políticas estratégicas da RAEM, que atingiu um lamentável pico nas últimas semanas a propósito da Língua Portuguesa.
Uma vez mais, um desajuste entre visões do mundo, cuja justificação economicista, no seu imediatismo, pouco fica a dever ao espírito chinês e parece beber, sobretudo, noutras influências. Sempre e desde o início, anglo-saxónicas.
Aqui temos um caso em se aplicaria o ditado popular: “o que nasce torto, nunca se endireita”; se não encontrássemos nos actuais e futuros responsáveis pelas políticas de ensino locais a capacidade de entender as especificidades de Macau e a sua identidade, encontrando medidas que permitam ter uma universidade homóloga da sociedade para a qual foi criada.
Por enquanto, está torta.

9 Dez 2015

O Secretário e a realidade

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]iz Lionel Leong: as pessoas que, eventualmente, venham a Macau participar de uma convenção poderão “gostar e considerar Macau como um sítio de bom ambiente”. A esperança do Secretário é que tal os faça voltar para outras actividades, vulgo turísticas.
O que eu me pergunto é há quanto tempo Lionel Leong não tenta fazer vida de turista em Macau. Deve ser há muito. Na cinzenta realidade, esta cidade não proporciona um bom ambiente, muito menos a turistas: os transportes são… o que se sabe; os táxis – para além da sua já lendária desonestidade – não conhecem o nome de nada, a não ser em cantonense; nas lojas, ser recebido por um empregado eficiente e simpático é uma agradável excepção; as carantonhas enfadadas dos croupiers só levam a aproximar das mesas quem tem muita vontade de jogar. E isto só para começar… e não falar, por exemplo, da qualidade do serviço em restaurantes, bares e cafés (brada aos céus).
O Secretário para a Economia e Finanças, para além de ter ficado “chocado” quando soube o elevado montante que a administração paga em rendas, como se fosse um estrangeiro à economia de Macau, parece também ser distante das reais condições que a cidade oferece aos turistas. Na verdade, não são famosas e ouvimos muito que poucos terão realmente vontade de voltar, quando aqui ao lado e também na China continental se encontra um ambiente mais agradável e acolhedor.
Um dos atractivos de Macau era a complacência, mesmo o seu lado um pouco sleazy, o estar-se à vontade, uma sensação hospitaleira de liberdade. Agora é ao contrário: liofilizaram a cidade, empurraram para debaixo do tapete e para as salas VIP o que era visível, chegando ao ponto risível de qualificar de “pornográficos” uns meros folhetos de massagens. Vivemos numa cidade vigiada. Um burgo fiscalizado, seja pelo tabaco ou pelo trato. Os sinais de “proibido”, isto e aquilo, proliferaram como cogumelos venenosos da alegria de estar e de viver.
Pensem nisto devagar, compreendam a identidade da cidade. Dá-se hoje por um vazio. Muitos não sabem quem são e de onde vêm. Para além de uma História, Macau tem uma tradição, uma maneira de fazer, um pressuposto de ser. A alternativa será algo muito diferente, sem alma nem emoções, a saber a gesso: ao mesmo gesso com que os casinos tentam fazer-nos acreditar que são reais.

30 Nov 2015

Da divulgação do Direito local

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m absorvente manchete do Jornal Tribuna de Macau, o deputado e membro do Conselho Executivo Leonel Alves proclamava ontem a necessidade de uma maior divulgação do Direito de Macau. Entende o também enorme causídico da nossa praça que o Governo deve assumir responsabilidades nessa área.
Não podemos estar mais de acordo. Parte integrante da autonomia da RAEM, o Direito merece uma atenção redobrada por parte de todos os que erigem o dístico “Amar Macau, amar a Pátria” como farol das suas acções e da sua ética.
A própria existência dessa especificidade – o corpus jurídico local – constitui uma mais-valia para a China, enquanto fomento de diversidade e compreensão/inserção no mundo global. O funcionamento da máquina judicial da RAEM é, de igual modo, (ou deveria ser) um laboratório para os que na RPC procuram os modos legislativos e operativos para a ciclópica mudança que se opera nos contextos jurídicos/judiciais do continente.
Enquanto parte constitutiva da RPC, o Direito de Macau acrescenta-lhe uma perspectiva humanista, bem mais interessante que a Common Law de Hong Kong, por, pelo menos, duas ordens de razões: primeiro, porque se trata de um corpo jurídico “irmão”, na medida em que segue, tal como a RPC, o modelo romano-germânico por contraste com o que vigora na ex-colónia britânica; segundo, porque introduz no Direito chinês conceitos inexistentes como a abolição da pena de morte, da prisão perpétua, do respeito inalienável das liberdades individuais, etc.. E tudo isto num contexto, por assim dizer, “familiar”.
É por isso que são de louvar as iniciativas que contribuem para a divulgação do Direito local, partam elas do Governo ou da iniciativa privada. Leonel Alves entende que o Governo deve assumir a condução da viatura. Contudo, como o próprio refere tal não tem acontecido de forma brilhante ou sequer eficaz.
De facto, talvez seja o momento em que, por razões da mais variada ordem, a sociedade civil se organize e, de acordo com os ditames do segundo sistema, se substitua ao Estado na divulgação e promoção de assuntos que lhe dizem respeito. Não se poderá dizer que os operadores do Direito – juízes, delegados do MP, advogados, etc. – careçam de meios para o fazer.
Seria injusto não dar o exemplo da Fundação Rui Cunha, cujo trabalho na área do Direito local tem sido exemplar e um modelo a seguir, sobretudo por outros igualmente afortunados mas cujo contributo para a sociedade tem sido significativamente mais discreto ou invisível. Certamente que Leonel Alves tem participado nos debates e discussões que por lá se desenvolvem e poderá mesmo tomar o projecto como excelente para desenvolver noutros contextos, lugares e patronos.
Alguns ficam-se pelas palavras e esperam que o Governo actue. Outros entendem que podem realmente fazer qualquer coisa pela RAEM, sem esperar pelo que a RAEM pode fazer por eles. Certamente que todos os operadores do Direito de Macau compreendem que a sua própria sobrevivência está intimamente ligada a esta questão.

26 Nov 2015

Dois pontos

[dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Dei umas voltas por várias cidades da Ásia, grandes e pequenas, mais ou menos modernas. Depois voltei a Macau. E, ao olhar à volta, cheguei a uma conclusão: por aqui não existem turistas. As estatísticas bem me podem gritar que entram 15 milhões por ano. Eu não acredito. E não acredito porque sou como São Tomé. E a verdade é que não os vejo.

É bem possível que Macau provoque nas pessoas estranhos comportamentos. Até aí ainda vou. Mas que os turistas aqui entrem e não vão a lado nenhum, não passeiem, não estejam nos restaurantes, não saiam à noite, desculpem mas isso não engulo. Quero ver os turistas, quero vê-los nas esplanadas, nas lojas, nos restaurantes e nos bares. Como acontece em todas as cidades do mundo.

Logo, quem são os 15 milhões que entram pelas fronteiras? Fácil: alguns são jogadores – a maior parte vem, como sempre veio, de jet foil; outros são uns senhores que têm um comportamento bizarro que consiste em desenvolver uma fixação/paixão por passar fronteiras para lá e para cá. Quem sou eu para julgar as obsessões alheias? Cada um faz o que quer com o seu tempo e se em Macau existe tanta gente a atingir o clímax ao mostrar o passaporte na fronteira, porque não aceitar tão deslocada mas inofensiva mania? A mim só me prejudica na medida em que alonga a fila do lado da China. Mas… nada de grave. Dá para aguentar com um mandarínico sibilar nos lábios.

Aliás, o turismo bem que podia fomentar uma daquelas campanhas que dá prémios, mas desta vez à própria população. Quem encontrar um turista fora das hordas e o apresentar na Praça do Senado, tem direito a uma ida à Torre (de Pisa). Enfim.

[dropcap style=’circle’]2.[/dropcap] Vi num filme um rapazito que mordiscava uma maçã acabada de arrancar de sua original árvore. Não se tratava de um pomar mas de uma dessas árvores semi-selvagens, que se esforçam por crescer e cujos frutos exalam o olor inexcedível desse trabalho. Pensei então que cada vez menos crianças terão acesso a este deleite, simplesmente porque essas árvores são cada vez mais raras. Basta tentar comprar fruta verdadeira em Macau para compreender esta situação. As maçãs não têm sabor, as peras são aguadas. Quanto a pêssegos, uma verdadeira desgraça. Onde estão aqueles exemplares a desfazerem de sumo e vibrantes odores nas nossas bocas? Algures no mundo, talvez, mas não nos escaparates locais. E o que aqui é verdade repete-se em quase todas as cidades do mundo, mantendo a garotalha na mais perfeita ignorância das coisas boas e simples do mundo.

Pensei depois que as gentes de antigamente, as que iam ao mercado e tinham dinheiro para pagar a boa fruta se calhar nem lhe davam valor. Estas coisas são assim. Provavelmente, sou eu e outros que, na falta, gabamos as suas qualidades que qualificamos de excelsas, quando para os antigos não passavam de uma banalidade. Não deixemos, portanto, de apreciar com reverência as nossas actuais banalidades. O seu destino é fazer as delícias dos vindouros. Quando faltarem, sobretudo.

20 Nov 2015

As dívidas históricas

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]om o segundo mandato de Chui Sai On, a RAEM entrou na fase final de um ciclo que terá a duração de 20 anos. Depois, dizem-me, tudo será diferente. Não sei se para melhor, se para pior, mas diferente.
Até lá o destino de Macau e dos seus cidadãos continuará nas mãos dos mesmos. Durante este período, iniciado com a transferência de soberania, conhecemos um crescimento económico ímpar na Ásia e no mundo. Contudo, esse crescimento não se traduziu numa vida mais fácil para os residentes.
Se existe algo a apontar à administração, será o facto de não ter previsto o impacto que as mudanças na área do Jogo (a liberalização) trariam à cidade. E a verdade é que não nos apresentarão nenhum modelo que inspire confiança no futuro. chui sai on
Parece existir uma estranha barreira que impede o dinheiro de realmente frutificar. O Governo insiste em dar o peixe, ao invés de criar condições para pescar. Assim, reconhece-se neste procedimento uma espécie de paternalismo confucionista que o povo aceitará até ao momento em que as suas vidas enveredem por caminhos cada mais difíceis.
As LAG para 2016 inscrevem-se nesta linha. Existe realmente uma continuidade na não-acção do Executivo, que parece correr atrás das queixas da população, prometendo aquilo que se sabe que não cumprirá.
O caso da habitação é onde tudo realmente se desvenda. Por mais que Chui prometa habitações públicas, nada fará oscilar os interesses dos proprietários de imóveis e, portanto, não nos parece que a situação encontre meios de melhorar.
Até 2019, tudo deverá ficar na mesma. Depois, talvez se entenda que as dívidas históricas estão pagas e bem pagas.
O que se passará a seguir, ninguém sabe.

19 Nov 2015

Obrigado, campeão

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão tem sido fácil a carreira de André Couto, nem a sua vida pessoal, marcada pela trágica perda de um filho. Mas o piloto de Macau reuniu sempre forças, nas curvas mais difíceis, nas paragens mais complicadas de engolir, nos momentos mais delicados de viver, para tudo ultrapassar. Essa é a fibra de campeão que nele existe e que nos faz sentir orgulho dele nos representar.
André Couto é, antes de mais, um exemplo de perseverança e coragem. De alguém que transformou a dor numa causa, numa missão, levando-o a viver ainda mais intensamente a sua vida. Um piloto cuja excelência só a má sorte (e talvez a falta de apoios em momentos cruciais) terá impedido de chegar à prova-rainha do automobilismo.
Macau tem de lhe agradecer o facto de ter conseguido levar o seu nome a um pódio internacional, como o pode homenagear pelo conjunto da sua carreira, durante a qual representou a cidade com dignidade e valor.
Ser um campeão é muito mais do que ganhar provas. É ter uma alma enorme e um coração incansável; é conseguir juntar a humildade a uma vontade irreprimível de vencer. E André Couto não precisaria de ter vencido este campeonato para nos dar conta da sua estirpe.
Aqui em Macau, conhecemo-lo deste e doutros circos. Vimo-lo crescer, tornar-se adulto, maturar. Quando demos por ele, ganhava o Grande Prémio. Sempre capaz de surpreender quem não está habituado à sua capacidade quase constante de regeneração. E assim tem sido ao longo dos anos. Por isso sabemos poder ainda esperar por mais desse olhar, que espelha loucura e determinação.
Obrigado, campeão.

3 Nov 2015

As folhas do Outono acumular-se-ão nas mesmas portas

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s astronómicos lucros do Jogo criaram em Macau uma espiral estranha. Não se pode dizer que tenha existido um sentido, uma direcção efectiva e racional para o crescimento. Ao invés assistimos ao desenrolar de algo que anda às voltas, num estranho e lento movimento ascendente, satisfazendo aqui, melhorando acolá, descuidando muito, piorando amiúde. Esta espiral, impulsionada pela avalanche de patacas, levou-nos de onde estávamos em 2003 até este ponto onde estamos em 2015.
De algum modo, trata-se de uma espiral algo suicidária, no seu aparente distanciamento da mais óbvia racionalidade — o que deixa para trás, o que deixa cair, o que não acontece, mais do que qualquer outra coisa, revelam-se, ano após ano, fardos mais difíceis de carregar, de explicar, por quem detém o poder.
Poder-se-ia julgar que a formal espiralada derivaria da “falta de experiência”, da “complexidade da região”, do “carácter único de Macau”, do “crescimento desenfreado”, etc.. Contudo, provavelmente, o percurso escolhido foi o único encontrado, num constante tactear da melhor solução, para uma divisão pacífica da riqueza.
Deste ponto de vista, Macau parece ser um sucesso. Ao contrário de Hong Kong, a população permanece pacífica e sem agenda. A grande maioria das pessoas tem-se contentado com o cheque anual e outros benefícios efémeros que o Governo tem concebido. Isto enquanto se assistiu à degradação da Saúde, dos Transportes, da Habitação, entre outros sérios problemas que afectam o quotidiano dos residentes, independentemente da sua etnia.
Macau tornou-se uma cidade repleta de gente, que se desloca em torvelinhos, remoinhos de turistas. A falta de intervenção estatal, o laissez faire, transformou o centro da cidade, património da UNESCO, num mercado de segunda linha, ao invés de espelhar a identidade e a cultura da cidade. Também do ponto de vista ambiental, tudo se transformou sem obedecer a um plano racional, numa espiral galopante de construção/especulação.
O que Macau é hoje, ninguém previu, há 10 anos ninguém o sabia, como não sabemos o que daqui a 10 anos irá ser. É estranha esta espiral. Impossível de prever, impenetrável à adivinhação. As coisas giram e voltam a girar. À volta de um centro, é certo, mas imperscrutáveis. O vento poderá soprar por ora mais fraco. Por enquanto, as folhas do Outono acumular-se-ão nas mesmas portas.

27 Out 2015

O calcanhar de Aquiles

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]anifestação por causa da habitação. Mil pessoas não são vinte mil. A habitação ainda não é a alcavala dos altos cargos, que tanta gente escandalizou. Mas ainda assim, para uma cidade tão pequena, não deixa de ser muita gente. E sendo que poderá transformar-se em muitos mais, o Governo apressou-se a dizer que se preocupa com a questão e que respeita o sentimento de quem quer uma casa e esbarra com os preços absurdos que actualmente se praticam (ainda) em Macau.
O que a população da RAEM tem de perceber é que a situação não vai mudar no médio prazo. Todos sabemos que as habitações públicas não satisfazem os padrões mínimos e ninguém lá quer morar. Parece ser mais dinheiro deitado à rua, atravessado por pérolas como o preço dos parques de estacionamento nos prédios das ditas habitações. Se o Governo pensa que resolverá o problema desta maneira, está enganado porque existe uma larga fatia de classe média que não tem dinheiro para uma casa “normal” e não quer viver na economia miserabilista daqueles prédios inomináveis.
Só que, como sabemos, será muito difícil que os interesses por detrás das outras permitam que os preços caiam. Os investimentos em imobiliário constituem uma fatia importante dos portfolios locais e de Hong Kong, o que torna basicamente impossível a descida do preço das casas, mesmo em termos de arrendamento. manifestação habitação pública
Ora o Governo, se realmente tivesse unhas para tocar esta guitarra, há muito que tinha colocado algum travão na especulação, sobretudo ao nível do arrendamento, não permitindo por lei os aumentos selvagens (de 100, 200 e 300% ao ano) que os senhorios fazem a seu bel-prazer, perturbando de sobremaneira a vida das famílias.
Quem repara nos discursos de Chui Sai On sabe que ele foge do tema como Maomé do toucinho. E foge porque sabe não ter outra solução senão andar à volta, dizer que vai fazer qualquer coisa (leia-se habitação económica), quando não tenciona mexer numa palha que seja no processo especulativo que assombra Macau.
Há muito que se diz ser a habitação o problema mais sério que afecta a população da RAEM. Contudo, o Governo continua a enterrar a cabeça na areia e a pensar que poderá encontrar um caminho em que os especuladores não saiam prejudicados. Não parece ser fácil e a questão arrisca-se a transformar-se no calcanhar de Aquiles deste Executivo: uma porta certa para quem o quiser questionar, incluindo a sua actual legitimidade.

21 Out 2015

No século XXI, o mundo será solidário ou não será

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando António Costa surgiu no fim da noite das eleições, o seu discurso sugeria que o PS iria admitir ou até apoiar um governo de direita. Na verdade, até ele pareceu ter-se deixado embalar pelos principais meios de comunicação social, que se apressaram a dar a vitória ao PAF, sem se preocuparem em fazerem as reais contas. E estas diziam que a direita não atingiu a maioria, portanto não pode, à partida, governar, a não ser que os socialistas assim o quisessem e permitissem. E, a julgar pelo discurso de Costa, tudo indicava que assim seria.
Baseado neste facto, a quente, escrevi que se trataria da última traição do PS e que uma colagem à direita significaria a sua pasokisação. De facto, se no momento em que o povo português, por confortável maioria, rejeita as políticas neo-liberais de austeridade, os socialistas virassem as costas à vontade popular e apoiassem um governo Passos & Portas tal seria uma traição e um suicídio político.
Repare-se que foi exactamente isso que se passou na Grécia e em França. Pelo contrário, existe neste momento uma tendência para voltar à esquerda (ou se quisermos, manter o centro) na política do hemisfério ocidental, com Corbyn na liderança dos trabalhistas em Inglaterra e a ascensão de Bernie Sanders nos Estados Unidos.
Estará realmente iminente o perigo de governos radicais, dispostos a alterar o sistema democrático-liberal e extirpar o capitalismo? Claramente não. O que se passa é uma reacção aos excessos que o neo-liberalismo implementou na última década, nomeadamente o excesso de impunidade dos mercados, a falta de respeito pela mão-de-obra, a destruição do Estado Social, as privatizações sem sentido, as falcatruas/crises sucessivas do sistema financeiro e bancário, as verdadeiras causas da crise, entre outros desmandos.
Esta reacção, este voltar à esquerda, não imporá nenhum regime outro, simplesmente tentará inverter este ciclo autofágico que conduz a uma infame plutocracia, com desrespeito pelos mais elementares direitos humanos. O que se pretende, na verdade, é voltar ao centro, a uma democracia liberal preocupada com as pessoas e não com o lucro. Isto não significa uma mudança de regime, mas a sua moralização e, sobretudo, uma definição clara do seu sentido último.
Por tudo isto, é lógico que o PS tenha entendido que chegou a altura de compreender que o Muro de Berlim caiu em 1989 e que à sua esquerda ninguém pretende, de um lustro para o outro, rasgar o cartão de membro da União Europeia, sair do euro ou da NATO, se não existirem motivos dramáticos que o exijam. E compreendido também que não se corre o perigo de alguém passar segredos militares à União Soviética. As questões são realmente outras e o barulho que se faz à volta daquelas não passa de uma cortina de fumo retórica para distrair do que realmente poderá unir a esquerda portuguesa, a saber, a luta contra o neo-liberalismo e as suas metamorfoses lusitanas.
No entanto, não é ainda líquido que o PS forme um governo à esquerda. Existem internamente várias vozes discordantes, cujas ligações são conhecidas e cuja posição é perfeitamente normal. É a estas vozes que os media dão mais projecção. De forma, aliás, vergonhosa.
Pode também dar-se o caso de António Costa surgir no fim de todas estas reuniões e encontros para nos dizer que não foi possível chegar a um acordo que garantisse um governo de esquerda por quatro anos e que, por culpa do BE e da CDU, terá de viabilizar um governo Passos & Portas, aceitando os enfeites que a PAF lhe quer dar. Seria um triste fim para ele e, provavelmente, para o PS. Uma hábil cambalhota política, pensaria, pois passará a imagem de que “fiz os possíveis…”.
Quem for lúcido, sabe perfeitamente que um governo do PS, com o apoio, do BE e da CDU, poderá mudar muito pouco, atado que estará aos compromissos europeus e à dívida. Por outro lado, enfrentará a má disposição dos principais representantes dos interesses transnacionais, a quem não fechará a porta. Mas poderá, aos poucos, ir mudando o rumo do navio, no sentido de um farol que aponte para uma democracia mais justa, mais próspera, mais solidária, mais ética e transparente. Pensando bem, a TINA (there is no alternative) está deste lado, do nosso… Do outro, existe uma estranha autofagia, capaz de devorar povos, de arrasar o ambiente, de não respeitar os idosos e as crianças, de fomentar guerras, lucrar com elas, que nos arrasta de desastre em desastre. No século XXI, o mundo será solidário ou não será.

16 Out 2015

A última traição do PS

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]povo português votou maioritariamente contra a coligação PSD-CDS, contra as mentiras sistemáticas e compulsivas, contra a austeridade e a falsa recuperação económica do país. É certo que não votou de forma ordeira, alinhada, porque a nossa esquerda é um saco de individualidades cujos egos, paradoxalmente, os impedem de se juntar sob a mesma bandeira. No entanto, se abstrairmos as concepções teóricas mais longínquas, existe um fundo comum entre o Bloco de Esquerda, a CDU, o Livre, o Agir e etc.

Esse fundo comum passa, por exemplo, pela salvação do que resta do Estado Social, pelo fim da sangria das privatizações incompreensíveis, pelo aumento do salário mínimo, a reposição das pensões, a fiscalização severa da actividade bancária, entre outras medidas. Esta esquerda não terá dúvidas quanto à necessidade, para salvar a economia das pessoas (não as finanças dos corruptos) de implementar uma série de medidas que, na sua “radicalidade”, não irão além de algum keynesianismo. O fantasma da colectivização, da saída inconsequente do Euro, o papão do “comunismo” já não colhem junto de mentalidade contemporâneas esclarecidas e servem apenas para assustar espectadores de algo similar à Fox News.

Hoje ser de esquerda significa muito, para além da solidariedade e da igualdade de oportunidades, ser por uma fiscalização democrática dos processos político-estatais, das compras e das vendas, dos negócios e das negociatas e, sobretudo, colocar um freio nos desmandos que a alta finança tem provocado nas economias, com o conluio dos boys dos partidos do arco da governação, para não ir mais alto.

Os resultados eleitorais são claros: o povo português votou contra aquilo que entende ser uma política de direita neo-liberal, subvencionada pelos poderes europeus para deixar Portugal à mercê dos investidores e das corporações estrangeiras, pela criação de um país de salários baixos e propriedade em queda. O povo português votou na esquerda e deu-lhe uma maioria.

Só que esse mesmo povo (ou grande parte dele) considera o PS um partido de esquerda, cuja acção não poderia nunca ir contra o Estado Social e que estaria obviamente de acordo com as medidas que acima expusemos como sendo consensuais ao resto da esquerda. Para o eleitorado, o PS não poderia nunca pactuar com esta política de austeridade mais merkeliana que a Merkel, com este desprezo absoluto pelas condições de vida dos cidadãos. Por isso, trinta e tal por cento ainda deram o seu voto a António Costa.

Qual não terá sido a desilusão geral quando o chefe do partido mais votado da esquerda, vem à ribalta no pós-eleitoral reconhecer uma derrota e, mais grave, mostrar-se disposto a permitir um governo de direita, ao invés de negociar um governo à esquerda, contrariando assim a vontade expressa do povo. Terá isto alguma coisa a ver com a passagem de António Costa pelo Bilderberg?

Esta “traição” à vontade popular atira de vez o PS para a insignificância política pois deixa bem claro a todos que, sob a liderança de António Costa, não é alternativa à direita, na medida em que não pretende deixar de comer da farta gamela do arco da governação. PSD-CDS e PS são actores de uma e mesma política: a dos tachos, a do segura-te ao poder a todo o custo, já lá voltamos mas tudo ficará na mesma — alheios que estão os valores, as ideias e as visões de uma sociedade mais justa.

Se Costa alinhar com a direita, ao invés de ser primeiro-ministro de um governo de esquerda, estará a trair os seus eleitores e não se auguram bons tempos para o PS. Os elementos mais direita rapidamente verão as vantagens de alinharem com o PSD-CDS, enquanto que os outros, as bases, preferirão votar no Bloco de Esquerda ou na CDU. Ou seja, está no horizonte a “pasokisação” do Partido Socialista, na medida em que condiciona a sua presença a ser cada vez mais irrelevante no espectro político nacional.

Afinal, é natural: os fenómenos europeus tendem a chegar tarde a Portugal. Mas, em geral, chegam. Esta poderá ter sido mesmo a última vez em que o PS teve oportunidade para trair.

7 Out 2015

A coisa

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o fim de Setembro, este Governo cumpre os seus primeiros nove meses. Ainda não se percebeu se foram de gestação de qualquer coisa outra ou se apenas discurso para tudo ficar na mesma. Seja lá o que for, alguma coisa há-de sair destes nove meses de governação. É esperar para ver, dizem, que Roma e Pavia não se fizeram num dia. Realmente não, mas aqui ninguém pensa em dias, mas em anos, em lustros, em décadas. Já lá vão quase duas e a coisa arrasta-se.
Mas o que é a coisa? Ora a coisa é a qualidade de vida dos cidadãos de Macau, cuja pioria tem sido uma constante geométrica, com a agravante de ter acelerado nos últimos anos. Ainda estamos à espera de ver quando é que a cidade vai, finalmente, deslizar sobre os famosos “carris para o futuro”, prometidos por Edmund Ho e Chui Sai On.
No começo, toda a gente percebeu que o crescimento tinha, inevitavelmente, dores. Só que essas dores, essas doenças, deveriam ter sido prevenidas à partida e não ter sido livres de explodir e de se espalhar a seu bel-prazer. Não foram e as pessoas compreenderam: os governantes eram inexperientes e blá, blá, blá, blá… tudo bem, segue que o Jogo prometia mundos fabulosos e inesgotáveis fundos.
E o povo aguentou, na jubilosa esperança de ver um raio de bem-estar ao fundo deste interminável túnel. Mas tudo o que viu foram os cheques que o Governo generosamente distribuiu, na sincera constatação de que não sabia o que fazer com o dinheiro. Como se sabe, a doação não resolveu problema nenhum. O valor do peixe, nem de perto nem de longe, pode ser comparado ao da cana.
Além do mais, trata-se de um mau exemplo. Mas adiante. Década e meia depois, chegámos a uma espécie de limite: a cidade está sobrelotada de turistas (sobretudo porque são mal conduzidos e — uma vez mais — não se criaram condições para os receber), o trânsito e a poluição tornaram o ar difícil de respirar, a Saúde não melhorou, o preço da habitação é o que se sabe, os grandes projectos do Governo não funcionam, os taxistas impõem a sua vontade na cidade. novo governo
A compreensão popular esmoreceu, uma nova geração, mais educada, apareceu e a coisa não mostra modos de melhorar, a não ser no discurso deste Governo, agora grávido não se sabe de quê. A desarmonia está à vista. O “paraíso” não, nem os “carris para o futuro”, cuja realidade é mais intangível que os do metro ligeiro.
Custa a crer que a coisa não interessa ao Governo. Ou custa a crer que o Governo ponha os interesses de alguns acima da coisa. Mas terá o Executivo capacidade para impor os seus planos sobre a coisa? E essa eventual incapacidade terá origem no seu desconhecimento da coisa ou na oposição das forças xiaoren (gente menor, em mandarim) deste território?
O Governo terá de estabelecer que a coisa mais importante é a coisa. Se não o fizer, por mais que coisifique, em ânsia científica, por mais que dê voltas à coisa, não chegará a coisar seja o que for digno de qualquer coisa. Pois não há causa que supere a coisa, nem outra coisa que a suplante em importância e fundamentalidade para a harmonia desta jovem mas ambiciosa região.

15 Set 2015

O que se ganha, o que se perde

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Associação Novo Macau é um excelente case-study para quem estiver interessado em compreender a sociedade chinesa local e o modo como se tem, descontinuamente, modificado.
Fundada algures em finais de 80 por Ng Kuok Cheong, a associação tornou-se conhecida por assumir posições pró-democracia, na ressaca de Tiananmen. Juntou-se-lhe Au Kam San, que surgiu com um discurso ainda mais radical. Os dois marcavam o espaço público pelas referidas posições políticas e pelo facto de não estarem ligados a nenhum dos núcleos de poder tradicional. Foi um sucesso.
Com o passar do tempo, surgiram novas caras na ANM, gente mais nova que rapidamente assumiu funções importantes na associação, começando a vocalizar e agir de modo diferente. E quais foram essas as grandes diferenças? Basicamente duas: primeira, a defesa de causas fracturantes do ponto de vista moral, como o casamento gay, os direitos dos transexuais, entre outras; e, segunda, os métodos de acção mais públicos e frequentes, muito influenciados pelo ambiente agitado de Hong Kong.
Como se sabe, a ANM teria algum apoio de sectores católicos da sociedade chinesa, nos quais não caem certamente bem alguns “excessos” de activistas como Jason Chao. Por outro lado, é algo estranho que não tenham surgido personalidades de charneira, mesmo em termos de idade, entre os actuais rapazes fortes da ANM e os deputados que acabaram de fundar uma outra associação, marcando de vez uma linha muito clara entre eles e os outros. Parece estarmos perante um gap geracional, de difícil explicação.
Contudo, se pensarmos bem, facilmente concluiremos que a sociedade de Macau conheceu uma fortíssima ruptura, nos anos 90 e seguintes, o que fez com que uma geração tivesse crescido muito distante da que a precedeu. Daí que Ng Kuok Cheong e Au Kam San não se entendam nem concordem com Jason Chao e Scott Chiang. É certo que todos continuam a desejar mais democracia, mais responsabilização dos titulares dos cargos, eventualmente sufrágio universal. Ou seja, em termos de política pura e dura não me parece que os objectivos sejam muito diferentes. E, no entanto, não se entendem…
Parte desta falta de entendimento passará, creio, pela própria linguagem e referências, que são basicamente muito diferentes nas duas gerações. São estilos que não convivem bem na mesma sala. A ver vamos como, nas próximas eleições, se vai organizar o baile.
Mas o mais interessante disto tudo é que este fenómeno não se deve limitar à ANM, a uma única associação mas ser transversal em Macau. Deve ser vivido no seio das famílias, nas empresas e no próprio Governo. Resta saber o que se ganhará. O que se perde é diário nas nossas vidas.

10 Set 2015

Francisco e o essencial

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m plena Idade Média, um jovem aristocrata foi tomado pela febre de Deus. Desfez-se de todos os seus bens materiais e partiu para a floresta, onde fez jura de viver até lhe ser concedida a prova última da existência do Ente Supremo. Francisco comeu bagas e conviveu com lobos, a quem achou maior humanidade que aos homens e chamou-lhes irmãos. Os jejuns, as dietas radicais, as vigílias e a muita oração teriam de surtir efeito. Depois de uma crise mística, Francisco acorda santo, crismado com os estigmas de Cristo: na sua carne tinham-se gravado as feridas divinas, infligidas na Crucificação, por escorria o Sangue que haveria de verter perdão no mundo.
O novo santo estava decidido a imitar o exemplo de Jesus: levar uma vida de prédica, na qual estaria ausente qualquer bem material, à excepção do burel castanho, atacado com um simples baraço, que passou a ser o uniforme da sua Irmandade. Os franciscanos tornaram-se, com o passar dos séculos, uma das mais importantes ordens monásticas da Cristandade. papa
O exemplo de Francisco ressoa fundo no coração dos verdadeiros cristãos e, por isso, foi com alegria que assistiram ao cardeal Bergolio adoptar este nome, de significado muito concreto, quando foi eleito Supremo Pontífice. Restava saber se conseguiria e estaria mesmo disposto a fazer jus ao exemplo escolhido ou se tal não passaria de um gesto de boas intenções, dos quais está o Papado cheio.
Dentro do contexto católico, as acções do Papa Francisco têm sido, de uma forma geral e com uma ou duas excepções, realmente merecedoras do santo que as inspira. Exemplo de humildade, de tolerância e de inclusão, este papa enfrenta vários combates no seio da sua própria Igreja. Por um lado, estão os tradicionalistas que se escandalizam quando é dito que de ateus e homossexuais também pode ser o reino dos Céus. Depois existem os ritualistas, a quem choca a humildade e a falta de pompa e circunstância dos rituais sob a vigilância de Francisco. E temos ainda a “organização”, prenhe de escândalos financeiros e de pedofilia escondida, que este papa decidiu abanar.
Todas as suas acções têm sido (ou parecem ser) no sentido de credibilizar e modernizar a Igreja, uma instituição religiosa que cada vez enfrenta mais dificuldades no terreno e sofre os ataques de inúmeras seitas cristãs que, praticando uma religião de proximidade, atraem cada vez mais fiéis.
Mas o que me parece mais importante na acção do Papa é a sua tentativa de recuperar a palavra e o exemplo crístico, como modelo para o comportamento da sua Igreja e dos que a seguem. Fazer do amor, da tolerância, da compreensão e da compaixão pela dor alheia os vectores centrais de uma vida, em tempos do deus Dinheiro.
Francisco sabe que, quando tudo parece perdido ou em vias de se desmoronar, temos de voltar atrás, ao tempo original, e lembrarmo-nos, uma e outra vez, com fé e com esperança, daquilo que é realmente essencial. Na religião e na vida.

9 Set 2015

Andar na vida

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje andamos pelas redes sociais, pelos avatares do ecrã, mais do que pelos cafés ou pelas ruas. Tal pode ser entendido como um alívio: de facto, nem sempre o contacto humano é salutar, desejável ou sequer suportável. Desse ponto de vista Macau é exemplar pela forma rápida como nos fartamos uns dos outros. Mais do que Coimbra, Macau é realmente uma lição.

Ora, como todas as lições, nem sempre é bem entendida pelo “estudantes”. Ele há melhores e piores alunos e há mesmo aqueles que desistem dos estudos e vão pairar por outras paragens. Por exemplo, alguns não admitem a fluidez excessiva do real que aqui se organiza. Não admitem, nem entendem, como aquilo que ontem era amarelo hoje pode ser quase azul, e como em pleno tufão se aclimata uma bonança. É difícil para quem não está disposto a perder as penas e ser gente.

O que é isso de ser gente? Talvez aquilo que Álvaro de Campos definiu como o desejo de ser todos e toda a parte e, por isso, criar uma arte da sobrevivência a toda a sela. É o credo do exilado, daquele marcado de lonjura e estesia.

A isso se chama andar na vida. Ou por ela. Evitar a brida, recusar os freios e, na imensidão das coisas e dos mundos, ir andando, a nosso trote ou a galope, mas em carta ainda por navegar.

Andar na vida: passar sempre com o compromisso de passar e nunca deixar nada para trás que não se carregue como um remorso. Como as saudades de um regresso impossível, de uma odisseia sem Penélope final — todo o exilado enferma do síndroma do tapete inacabado…

E queremos ou não andar? Sabem bem os estimados leitores, lá bem no seu íntimo de crente, que só há realmente uma vida e que esta não deve ser perdida em entretantos e outros quebrantos de aflições. Não valemos nada, a não ser o nosso caminho.

Como diria o Padre Teixeira: “Anda, queres vir daí?”. Sim: a vida deve ser, sobretudo, passada a andar.

8 Set 2015

Um preço barato

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]erante a chegada de milhares de pessoas às praias europeias, torna-se óbvio perguntar qual a responsabilidade do Velho Continente em relação a esta calamitosa situação. Bem vistas as coisas, temos de distinguir dois tipos de migrantes: os que vêm de África, por não encontrarem meio de subsistência na sua terra natal; e os que vêm da Síria por causa da guerra. São situações muito diferentes, como diferentes são as pessoas que constituem os dois grupos.

Comecemos pelo primeiro. Durante a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, a Europa colonizou África e dividiu o continente como muito bem entendeu, criando nações onde existiam tribos, quando muito esparsos reinos. Obviamente que os recursos naturais foram explorados ao máximo e as formas tradicionais de produção basicamente destruídas, como mostra o livro de René Dumont, “Em defesa de África, acuso”, um clássico dos anos 70, pretensamente esquecido pelos neo-colonialistas, amigados com os regimes ditatoriais. O autor demonstra como a fome, a miséria e o caos foram produtos da presença europeia, na medida em que foram completamente aniquiladas as formas tradicionais de poder e redireccionadas as economias.

Hoje aquela gente não aguenta mais e na internet, na televisão, tem imagens de uma outra vida. Darão tudo por ela. Vêm-nos bater à porta. É natural. A nossa riqueza foi edificada sobre a sua miséria.

No caso sírio, todos se lembram (espero) que a Europa de Hollande e Merkel foram os grandes incitadores das revoltas anti-Assad. Juntamente com a CIA, claro. Aramaram sem critério os ditos grupos rebeldes que, afinal, mais não eram que islamitas de vários países. Encostaram-se a uma pretensa oposição síria no exílio que, afinal, tinha o mesmo valor que a oposição no exílio do Iraque, gozada e desprezada por todos os iraquianos.

Se a Europa fomentou e continua a fomentar a guerra na Síria, é natural que assuma o seu fluxo de refugiados. É mesmo elementar, meu caro Hollande, um homem com sangue de inocentes nas mãos, tomado de histeria no início da pretensa revolta árabe.

A História é reversível. A Europa tem um preço a pagar pelas suas acções e pelos lucros que delas resultaram. Receber refugiados, tratá-los com humanidade e bom senso será o mais barato deles todos.

4 Set 2015

Hoje Macau | 14 anos

Sap sei! Sap sei! Catorze! Até à morte porque somos imunes à crença.
Rui Calçada Bastos
Rui Calçada Bastos

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ara os que ainda não perceberam, nas superstições locais o número catorze é malfazejo porque evoca homofonicamente a morte. Dantes — não sei se ainda —, nalguns prédios de Macau não existia o décimo quarto andar porque, simplesmente, ninguém lá queria viver. Ou, se existia, era consideravelmente mais barato. Pois o Hoje Macau entra no seu décimo quarto ano de publicação. Livres de crenças, dando óbolo pelas superstições e patacame a benfazejas bruxas. Não vá o mafarrico tecê-las…

O trajecto não foi rude, convenhamos. A descolagem revelou-se difícil, atribulada, repleta de bem e de mal entendidos, de sedimentação de amizades, conhecimentos e ódios de estimação. Mas não se pode dizer que tenha sido algo de outro mundo. Foi deste. Desta terra que pede meças em paradoxos, contradições e pequenas perversidades. E, acreditem ou não, gostámos da maior parte do caminho. A outra foi, sobretudo, útil.

É que uma das grandes lições de Macau é a resiliência. A capacidade de resistir porque se acredita (misteriosamente sabe) existir ali ao lado uma qualquer outra luz que nos levará ao fundo do túnel. Esta terra dá isso a quem a sabe interrogar, se face à resposta não correres como a esfinge para te atirares de novo ao mar. O medo é, afinal aqui, uma inutilidade.

Serve, contudo, para compreender os territórios e para, funâmbulo, poder percorrer o fio da navalha. E interrogam-se os leitores sobre o significado concreto de tão estranha palavra aplicada ao jornalismo: não há outro modo possível, a quem faz questão de ignorar os apelos desta selva. Passar como um fantasma, perpassar como um funâmbulo, sabendo do real o que as nossas próprias motivações inconscientes fazem emergir, explorando-as porque as sabemos colectivas e de necessária exposição.

A outra lição é a seriedade, a coerência ou a coerente incoerência. Funciona aqui. E não deverá ser por rara, mas por ser inesperada. Ele há tantas distracções… tantos apelos, tanto casino, como diria um italiano…

Expelir valores. Nas entrelinhas, nos subentendidos, nos paradoxos, nos duplos sentidos, no ataque directo e na graçola. Na escolha da notícia, do título, do destaque. No sentimento fútil da inutilidade de tudo como na satisfação efémera de uma boa edição, saber que as coisas têm o seu sítio e o seu tempo, como o pássaro amarelo de Confúcio que, quando no seu ramo cantava, sabia qual era o seu lugar e, por isso, se quedava na mais alta excelência.

No entanto, por aqui, como aliás pelos tempos antigos da China, o mundo é invariavelmente composto de mudança e o pássaro amarelo vê-se obrigado a voar, a descobrir incessantemente um novo ramo de onde possa cantar. Convenhamos que se trata de uma perspectiva cansativa e pouco animadora. Talvez o melhor mesmo seja construir a sua própria Via e nela permanecer, até porque ela se faz com o caminho, ilibando do erro contumaz e da inevitável intromissão do disparate. Bem vistas bem as coisas, sentido o calafrio, nem uma nem outra opção, verdadeiramente, nos interessa.

[quote_box_left]“Nunca acreditem em nada do que aqui vem escrito. Isto não é a Bíblia nem o Corão. Interroguem-se sobre notícias, opiniões, comentários e fontes. E talvez assim consigam ter uma perspectiva desta cidade que nenhum jornal vos pode dar: a vossa”[/quote_box_left]

Há catorze anos que tacteamos na superfície das coisas. E connosco temos trazidos os nossos leitores ou assim gostamos de acreditar. Nunca pretendemos que vos contamos a verdade ou que vos descrevemos Macau tal qual ele é. Preferimos questionar a relatar o que nos aparece como farrapo de mitologia. Não deixamos de a reportar, bem sei. São os ócios deste ofício, a parte fácil e pouco mais que obscena.

Com efeito, preferimos questionar porque temos a esperança, talvez vã mas bela, de que os nossos leitores questionarão por cima e que este jornal é um trampolim para a cidadania, para a crítica, para o diálogo, para o pensamento.

Nunca acreditem em nada do que aqui vem escrito. Isto não é a Bíblia nem o Corão. Interroguem-se sobre notícias, opiniões, comentários e fontes. E talvez assim consigam ter uma perspectiva desta cidade que nenhum jornal vos pode dar: a vossa. Cheia de aleivosias e descobrimentos, mas vossa. Mas unicamente se vos interrogardes. E para lançar as questões, para problematizar, interrogar-vos a vós e ao real, desestruturá-lo, esmiuçá-lo sem nunca o esgotar, existe o Hoje Macau, neste seu décimo quarto ano de existência.

Somos jovens (dirão) mas muito batidos. Por acontecimentos e por tufões, por histórias boas e novelas más, por incompreensões e zangas de ocasião. Não fazemos o nosso melhor. Porque o melhor não existe. Nunca. Hoje. Porque sabemos que surgirá sempre melhor amanhã. Ou que existe essa possibilidade.

No fundo, não acreditamos em nada a não ser na nossa modesta missão de ir sendo uma voz que se pretende rouca, turva, abagaçada, mas presente, acompanhada pela incisão das imagens e de um piano longínquo a que chamamos esperança.

São catorze anos em que Macau não mudou. Nada. Pouco aconteceu. Em que Macau vives tu, perguntam-nos. Nesse — é a nossa resposta. O que realmente muda é a morte. Para o ano há mais.

4 Set 2015

Édito | Carta Aberta

[dropcap syle=’circle]E[/dropcap]xcelentíssimo Senhor Secretário para as Obras Públicas e Transportes,

Escrevo-lhe não para o maçar com obras públicas, terrenos, metro ligeiro mas sobre um assunto bem mais corriqueiro e, aparentemente, de fácil resolução. Estou certo de que se Vossa Excelência não dispusesse de transporte privado, certamente que nem seria necessário chamar-lhe a atenção para este problema que aflige residentes e turistas nesta bela Cidade do Nome de Deus.
Trata-se (não abra a boca de espanto) da questão dos táxis. Pois é: o problema que encontrou quando tomou posse e parecia bem encaminhado nos meses que seguiram. Parecia mas não estava: a verdade é que voltámos à anarquia do costume. De novo os taxistas recusam clientes, aliciam outros (turistas) com preços exorbitantes e desvarios vários que, normalmente, aconteciam nas cidades mais deprimidas dos países muito pouco emergentes. Aconteciam porque acontecem cada vez menos. A não ser, é claro, em Macau. contrats-4
Já não lhe vou pregar sobre os efeitos perniciosos para a imagem, para o desconforto que causa ao cidadão, para a vergonha que é apresentar uma cidade assim. Queria, pelo contrário, enaltecer o trabalho de quem fez quintuplicar o número de multas passadas a taxistas prevaricadores. Pois bem: não chega. Ao que parece, é para o lado em que eles conduzem melhor. E o desbragamento continua.
Senhor Secretário, já lá vai mais de meio ano desde aquele saudoso dia 19 de Dezembro em que ainda não tinha que aturar os dossiês que se acumulam na sua mesa. São projectos complexos, complicados, intrincados como quase nenhuns. Mas se não consegue pôr os carroceiros da cidade na ordem, como podemos esperar que se desenvencilhe das suas outras hercúleas tarefas, em que tem de confrontar interesses, à partida, bem mais poderosos? O poder dos taxistas não há-de ser assim tanto… Ou será que quem de facto manda menos… é o Governo?
Não esqueça pois: está na altura de lhes mostrar um cartão vermelho. O que isso significa não sei, pois não passo deste seu humilde escriba e admirador, com os melhores cumprimentos, etc., etc…

PS: Só para chatear (que isto não pode ser só delicadezas): aqui entre nós, no tempo dos portugueses os táxis funcionavam melhor… ai quem diria… que vergonha…

1 Set 2015

Para que serve a ONU?

[dropcap style=’circle]A[/dropcap] propósito da recente destruição do templo de Bel, em Palmyra, e do assassínio de Khaled Assad, eminente arqueólogo sírio de 82 anos, muito se tem discutido sobre o que vale mais: as pessoas ou as pedras. Ou: trocar-se-ia a vida de uma pessoa pelas obras completas de Shakespeare? Estas perguntas são estúpidas e mal intencionadas. E isto porque se trata de uma e da mesma coisa. A vida de nada vale sem a memória e a memória é a vida de milhares de pessoas, o que delas resta e nos sustenta como humanos durante as nossas vidas. Nós não existimos sem a memória e a memória também não existe sem nós. Somos uma e a mesma coisa, por isso ambas têm de ser defendidas a todo o custo.

Será que é assim que acontece? Não. Inúmeras vidas e património universal da humanidade são diariamente destruídas perante os olhos impassíveis dos que neste mundo detêm o poder. As perguntas que se impõem perante a escravatura e abuso de crianças, execuções em série de inocentes, limpeza étnica, destruição de artefactos de valor histórico-cultural incalculável e insubstituível é: Por que razão não intervém a ONU de modo a pôr cobro às atrocidade do ISIS? Que empecilhos existem à formação de uma força internacional que extirpe de vez esta raiz? Que outras atrocidades ou eventuais acções justificarão então a existência da ONU?

Nunca, desde a II Guerra Mundial, ou seja, desde a sua criação, que a ONU não desempenha um papel tão ridículo e tão ineficaz, como no actual conflito no Médio Oriente. Parece claro que nenhuma nação no mundo apoia a ideologia que o ISIS quer implantar no mundo, nem as práticas desenvolvidas para o conseguir. No entanto, as grandes potências, com assento no Conselho de Segurança, assistem imperturbáveis a crimes que se acreditavam impossíveis no século XXI. Se assim é, no limite, para que serve a ONU?

28 Ago 2015

Palmyra | Crónica de uma morte abominada

[dropcap style=’circle]A[/dropcap] leste de Aleppo fica o grande lago Assad, um reservatório artificial que recolhe as escassas águas da região. Para sul, fica o deserto. Foi por ele que nos embrenhámos, ainda de manhã, para chegarmos a Resafa pela hora de almoço. Bastaram alguns quilómetros para que a vegetação começasse a rarear e na estrada alcatroada deparássemos com episódios de areia, enxotada pelo vento. A promessa era que estaríamos em Palmyra, “a noiva do deserto”, antes do pôr-do-sol.

Ali mesmo, em frente ao restaurante, ficavam as ruínas de uma antiga cidade romana. Muhammad olhou descrente o meu interesse. “Já passa do meio-dia. Está muito calor. C’est fou”. E era. Fui despejando água pela cabeça, enquanto visitei Sergiopolis, também denominada por um breve tempo Anastasiopolis, uma cidade construída pelos romanos, como posto avançado do exército, muito perto do império persa, com quem os césares partilhavam a glória de dominarem o mundo conhecido. Com algum custo sobrevivi e foi bom. São ruínas magníficas, exiladas no deserto, onde abunda o alabastro, a pedra que adquire as intonações do céu. O sol pregava-me ao chão. A água secava em menos de um minuto. Pensei como deveria ser belo aquele lugar à noite, iluminado pela lua do deserto. Mas algures, no meio daquela terra devastada, esperava-me Palmyra e as suas belezas prometidas. Era tempo de nos metermos ao caminho.

Dizem os vestígios arqueológicos que a mais antiga referência a Palmyra data de dois mil anos antes da data à qual se atribui geralmente o nascimento de Cristo. Foi descoberta na Capadócia. A sua existência deve-se, fundamentalmente, a uma fonte que ali miraculosamente surgiu no meio daquele nada. São 80 litros de água sulfurosa por segundo, a uma temperatura constante de 33 graus centígrados, que continuamente brotam da inesperada nascente, verdejando o mundo à sua volta. Chama-se Afqa e é tida por um milagre pelas mais diversas crenças e religiões.

Quando os gregos de Alexandre e os romanos de Pompeu por ali passaram, depararam com um oásis fértil e habitado principalmente por comerciantes, que distribuíam mercadorias dos quatro pontos cardeais e dos poderes neles instituídos. O balançar suave das palmeiras, que por ali predominavam, levaram-nos a crismá-la de Palmyra e a sua fama ressoou pelos impérios do Ocidente. Marco António pretendeu oferecê-la como presa fácil aos seus cavaleiros mas os comerciantes avisados transferiram atempadamente todas as suas riquezas para o outro lado o rio Eufrates, provocando o riso dos persas que, à época, tinham péssimas relações com os homens do Tibre.

Anos mais tarde, com o fortalecer do império romano na região, Palmyra reconheceu o domínio mas, segundo os historiadores, este nunca foi factual, ou seja, os comerciantes de Palmyra, enquanto entreposto entre dois impérios inimigos, conseguiam manter a equidistância e fazer valer a necessidade da sua existência, à parte das guerras que então grassavam.

A partir do século II, Palmyra torna-se num emirato árabe, estreitamente relacionado com Roma, o que lhe permitiu, também sob o pretexto de proteger o comércio, formar um poderoso exército, cuja acção ajudava os romanos, por exemplo, contra os judeus. “Felizes os que assistirem ao fim de Palmyra…”, diz no Talmude e tal não é por acaso. Depois da visita do imperador Adriano, no ano 129, a cidade foi considerada “livre” e deixou de pagar impostos aos romanos. Curiosamente, a atitude do imperador, ao invés de afastar os habitantes da cidade, fez com que as suas relações se tornassem cada vez mais estreitas, sobretudo a nível cultural e pessoal. A cidade conheceu um extraordinário desenvolvimento, o que é patente nos vestígios arqueológicos, que testemunham uma civilização híbrida, com um fundo greco-romano muito forte, mas influências diversas e bem visíveis, na escultura, na pintura, no vestuário e na arquitectura.

É penoso viajar no deserto, mesmo numa carrinha com ar condicionado. Pelo caminho, cruzámos diversos grupos de nómadas, dispostos em acampamentos de autocaravanas. Antenas montadas no exterior garantem-lhes a televisão. Não há camelos. “São coisa para turistas”, diz Muhammad. Também não há tendas. O nomadismo já não é como dantes. As casas sim, surgem antigas, na sua simplicidade de cubos brancos ou chaminés-de-fada, para proteger da canícula. Emergem do deserto, não muito longe da estrada, entre ondas de calor que se evolam da terra crestada e inútil, tornando grosso o ar. Há nelas a irrealidade do edifício da kaaba. Como imaginar os quotidianos que à sua sombra se desfiam?

Finalmente, uma planta, algo verde, vacilante é certo, mas verde, não muito longe da estrada. Mais adiante, um outro tufo, que me faz crer na proximidade da cidade, do celebrado oásis da fonte Afqa, na cidade tomada por Alexandre, depois pelos generais romanos, cujas construções a imortalizaram. Eis palmeiras, a ladear ruas, eis Palmyra, eis a noiva do deserto, a desolação que eu trago ainda nos olhos e nos lábios ressequidos. Percebo como os beijos da tua água restituem a vida.

E, já refeito, vocifero a Muhammad: “É tempo de subirmos ao castelo, antes que sol se esconda”. E lá vamos colina acima, donde ele nos olha sobranceiro, fitando do outro lado uma imensidade de areias e rochas, sobre a qual um sol moribundo se espreguiçava. Subi à torre e olhei entre as ameias. Escrevi : “Ainda antes de o sol se esvair no horizonte, uma bruma cobre de ouro antigo as coisas, o vento ergue uma poeira diáfana e sentimental.” Fazia calor e soprava um suão forte, amarelado. Era um belo castelo árabe, construído depois da expansão da fé. Cá em baixo, estendia-se a cidade, não muito grande, polvilhada de ruínas em quase toda a sua extensão. O resto são pequenas casas, um pequeno comércio, muito distante do seu esplendor de outrora. Gentes gentis. De má catadura, sorriso cortês e bom trato.

Já no século III, reinou em Palmyra uma mulher célebre, a rainha Zenobia, cuja lenda se confunde com uma realidade recentemente mais assertiva pela descoberta de documentos ainda desconhecidos. Contudo, a sua fama não se prende tanto com o tempo que esteve no poder (apenas cinco anos), mas com a sua beleza e personalidade. Zenobia, esposa de um dos mais poderosos líderes de Palmyra, emulava as grandes rainhas do passado: Semiramis, Dido e Cleópatra. O aparecimento do império sassânida, que substituíra os partos no mundo persa, trouxera focos de dissidência e conflito, facto aproveitado por Zenobia para aumentar e fortalecer o seu próprio reino. E, de facto, por um breve período, Palmyra atingiu o seu apogeu. Cercada pelos exércitos de Aureliano e com poucas hipóteses de resistência, escreveu ao imperador: “Pedes-me para me render, mas não sabes que Cleópatra preferiu morrer a viver humilhada?”

Já nas décadas anteriores, fruto das boas relações com Roma e com a chegada ao poder do líbio Septimo Severo, Palmyra conhecera o surto de construção, que constitui a maior parte das ruínas que chegaram aos nossos dias. Zenobia herda uma cidade magnífica, onde existe uma forte tradição romana, mas onde é bem nítida a influência oriental. Algumas das construções que sobreviveram são as torres funerárias, onde as famílias com mais posses sepultavam os seus mortos, dotando os túmulos com estátuas dos defuntos, o que nos arrasta numa viagem indescritível pelas faces e pelas expressões santificadas na pedra das pessoas que pisaramesta terra mil e tal anos antes de nós.

É em nome deles, do Muhammad e daqueles jovens com partilhei um cibercafé em Palmyra, que me horrorizam os acontecimentos recentes. Este texto é escrito graças ao livro do arqueólogo Khaled Assad, assassinado pelo ISIS, aos 82 anos, por não querer revelar o paradeiro de valiosos artefactos, escondidos antes da chegada dos bárbaros. Presumo que tenha morrido de consciência tranquila, na defesa da sua cidade, a quem realmente entregou a vida.

Saí de Palmyra com a sensação de ter estado num dos sítios mais especiais deste planeta, num local miraculoso, cravado no centro do deserto. É verdade que a umas centenas de quilómetros moureja o Eufrates, o rio mítico da minha infância, cuja fonte se encontra no Paraíso. Tinha-o contemplado de uma ponte, em estesia pela semelhança daquela visão com o que eu sempre imaginara: um curso de água delicado, pontilhado de ilhotas apalmeiradas e de barcos delgados, a soletrar o rio. Na tradição sufi, a palavra “palmeira” encerra uma série de significados escondidos. Não sei quantos mais sentidos Palmyra encerra, porque estes são sempre caminhos que viagem alguma esgotam.

palmyra002

Escreveria mais tarde:

“Que noivo esperas, Palmyra, assim queda e muda, na porta do deserto? Que cavaleiro tarda em vir, que ramo te prepararam, que frutos secos definham nas bandejas de preces antigas? Que homem te abandonou, que promessas ele quebrou, naquela noite ázima em que o vento subitamente deixou de soprar e velhas armaduras se ergueram da terra árida? Não há dia em que o vento não sopre os seus lamentos e talvez por isso não te queixes de tanta solidão, da aflição, da promessa quebrada. Ele não voltará e tu quedar-te-ás assim para sempre: os olhos cegos de areia, como se loucura fosse a espera mas nela se desvendassem os segredos do mundo.”

28 Ago 2015

As raparigas salgadas

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]á se sabia que o grande problema do século XXI, para além dos fundamentalismos e do tédio causado pelo Jogos Olímpicos de Inverno, ia ser a água. Pois é. Precioso líquido, fonte de vida e de muitas outras coisas (como o útil gelo, por exemplo), bem diferente do asqueroso petróleo por quem tantos matam e outros tantos morrem, a água não vai ser a mesma ao longo deste titubeante século. Seja por causa do aquecimento global, devido ao envenenamento dos rios ou ao excesso de xixi sobrepopulacional, a verdade é que todos prevêem graves problemas com a água nos próximos tempos.
Também neste aspecto Macau exige estar na vanguarda e os problemas que vão afectar o mundo de forma global já se sentem aqui neste território à beira do Rio das Pérolas plantado. Ora toma! Somos os primeiros, à frente da Etiópia, de Myanmar, dos países árabes, do próprio Turquemenistão. Enquanto estes sóbrios países continuam a desfrutar de água potável, a RAEM não está com meias medidas e avança decidida na senda do futuro: aqui a água não se pode mesmo beber. Não se pode beber, não se pode cozinhar, não se pode escovar os dentes, tomar banho, lavar a roupa. E tudo porque a água tem excesso de sal!
Porque razão uma terra com excesso de dinheiro nos cofres, decididamente voltada para o turismo, proporciona aos seus habitantes este profético mergulho no futuro? Fará parte de uma estratégia publicitária dos Serviços de Turismo? “Venha a Macau e experimente o que vai ser o mundo daqui a 50 anos”. Será isto? Talvez. Será uma táctica política à la Maria Antonieta? “Não têm água? Mas porque não bebem vinho?” Será? Talvez. Bom… a verdade é que enquanto o dinheiro não chega para os brioches a malta vai andando por aí… mas mais salgadinha que é um mimo dos antigos.
É claro que para resolver a situação era preciso tomar uma decisão e disso anda o governo farto. Um senhor propôs na rádio que se usasse água do mar nas descargas. Ora aí está uma ideia de génio. Nas descargas e nas piscinas públicas. O único problema é que o mar está tão distante que se torna fisicamente impossível. Distante, pergunta o surpreendido leitor. Sim, distante, porque esta gentil costa é sobretudo banhada pelos dejectos químicos e orgânicos da malta ali de Guangdong que, como se sabe, não prima pela escassez nem pela contenção. Logo, solução impossível.

[quote_box_left]Ora a partir de agora toda a população vai andar com excesso de sal, o que certamente contribuirá para fazer subir Macau nas estatísticas regionais, quiçá mundiais, de frequência sexual[/quote_box_left]

O melhor mesmo é aguentar. Já que a nossa querida Macao Water e o nosso devotado governo se limitam a tomar banho num mar de despreocupação e indiferença, o que pode a populaça fazer? Aguentar, pois claro, pacientemente aguentar. Aguentar que a máquina de lavar se decomponha, aguentar o preço da água mineral. Aguentar que a paciência é como o respeitinho: muito bonita.
E não haja dúvida que o povo de Macau tem uma infinda paciência. No Iraque já tinham explodido duas mesquitas, na Rússia haveria manifestações nas estepes, nos Estados Unidos turbas enfurecidas a partir tudo e a roubar. Na China discutia-se o assunto no ciberespaço, em Portugal nas tabernas. E seria imprevisível o resultado. Mas aqui não. Gosto a sal em tudo quanto toca em água e está a andar. A malta tem calma, a malta tem pachorra, a malta continua alegremente a pagar o mesmo preço por um produto que não atinge sequer os mínimos admissíveis em contexto civilizado.
Esta bovina paciência tem talvez uma razão linguístico-cultural. Passo a explicar. Ora como sabe quem sabe cantonense, rapariga salgada (ham-mui) quer dizer que estamos perante uma moçoila muito dada às coisas da sensualidade, pois deveriam considerar os chineses antigos que existia uma relação entre o excesso de sal e a vontade de praticar sexo, isto é aqueles actos que para alguns estão relacionados com a reprodução da espécie e para outros com outras coisas mais relacionadas com o Kamasutra. Ainda hoje, por Macau, quem é o varonil rapazola, digno das suas viris patentes, que não foi rotulado de ham-sap lou por uma simpática mas negacionista chinesa de cantónia fala? Se é o caso do amável leitor é melhor não o confessar a ninguém, por vergonha de não exibir suficientemente os seus másculos desejos (curiosamente, os portugueses que chegam agora a Macau em nada desmerecem aos seus antecessores pré-transição: mal descem do jet-foil, logo abrem a braguilha e a carteira). Ora a partir de agora toda a população vai andar com excesso de sal, o que certamente contribuirá para fazer subir Macau nas estatísticas regionais, quiçá mundiais de frequência sexual. Ele é um vê-se-te-avias e ainda por cima… salgado. Portanto, ainda se queixam? Não se queixem. O pastel de bacalhau também é salgadote e não é por isso que deixa de ser levado a numerosas bocas, um pouco por todo o mundo.
Verdade, verdadinha, é que isto até quem nem é mau para todos. Que o digam os importadores e revendedores de água mineral: nunca o negócio andou assim tão de vento em popa. Isto sim, isto é que é fartar vilanagem.
Por mim, acho bem, que eu cá acho tudo bem. Só o gelo, só o gelo me preocupa. Mas como o uísque também é falsificado, que importância tem mais pedra ou menos pedra de sal? Também em sal se transformou a mulher de Lot por ter ousado olhar para trás, quando da fuga de Sodoma. E Macau tem agora as raparigas mais salgadinhas do mundo! Sal, sexo, gajame, Sodoma… Caramba! Isto está mesmo tudo relacionado!

12 Ago 2015

Uma doce ilusão

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]caso da médica macaense, que tirou o curso e fez a especialização em Portugal, rejeitada pelos Serviços de Saúde, pode servir-nos para perceber melhor como funciona realmente a sociedade local. Neste sentido, convém aquilatar o real poder do Governo e a sua efectiva capacidade para implementar decisões.

Isto porque uma coisa é Alexis Tam ordenar a contratação de médicos e outra coisa é o processo através do qual essas contratações vão ser feitas e que o Secretário, obviamente, não controla.

Ora é precisamente nesse segundo nível que os problemas parecem surgir e não apenas na área da Saúde. Não sabemos se estarão interesses obscuros em jogo ou mesmo outros mais claros e evidentes.

Mas a verdade é que o modo como os processos se desenrolam deviam estar sujeitos a um extremo grau de transparência. Se assim fosse, limitar-se-ia o raio de acção de quem, julgando-se estribado nalguma arrogância ou impunidade, decide não em função do interesse público ou de uma lógica sonante mas antolhado por preconceitos ou por objectivos menos claros.

Temos de considerar, por outro lado, que a sociedade local e a própria administração se encontram fragmentadas em pequenos poderes (interesses) que vão recolhendo dividendos que, à partida, não lhes pertenceriam.

Contudo, este poder é, na minha opinião, algo ilusório, desde Dezembro de 1999. As coisas continuam a funcionar mas tal sucederá unicamente enquanto não criarem desarmonia social.

Neste sentido, é bom entender as limitações dos Secretários, quando estes esbarram constantemente com segundas linhas, cujo programa não é exactamente o governamental. Pelo contrário, estamos perante agendas privadas, sem ideologia nem sentido prático, cujo desenrolar atrapalha amiúde os eventuais objectivos do Governo.

Quinze anos depois da transferência de soberania, se o Governo não conseguir controlar as referidas agendas, o risco estará no anunciado desfazer, progressivo e sistemático, de uma doce ilusão.

12 Ago 2015

Da passividade e outras fábulas

Quando me vieram buscar não havia ninguém para me defender.
Paráfrase de Bertold Brecht

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ez bem o novo responsável pela secção do PS em Macau em emitir um comunicado por ocasião da notícia de uma eventual candidatura de José Pereira Coutinho à Assembleia da República. Perante a real possibilidade do deputado e conselheiro alavancar alguns milhares de votos, Tiago Pereira veio à liça denunciar alguns aspectos deste processo político, cujo desenlace está longe de ser claro.
Trata-se, sublinhe-se, de um processo, ou seja, algo que vem de trás, de um passado com mais de uma década, que tem produzido efeitos contínuos e que tende agora para uma maximização de algum modo inesperada.
A verdade é que, pelo menos desde 2003, Pereira Coutinho tem vindo a contar com cada vez mais votos de pessoas com nacionalidade portuguesa, mas cujas língua, cultura e realidade social lhes dificultam o acesso aos temas da política lusitana, sejam estes do âmbito da comunidade local ou, ainda menos, nacional.
Este distanciamento ficou bem patente na qualidade da mensagem (SMS), de origem misteriosa, que insinuava uma eventual perda de nacionalidade, no caso de não se proceder ao recenseamento, e que forçou o cônsul Vítor Sereno a emitir um incontornável esclarecimento.
Só uma população totalmente ignorante dos seus direitos de cidadania nacional, da sua portugalidade, poderia engolir este tipo de esparrela e deslocar-se bovinamente ao Consulado para se recensear, como provavelmente se deslocará para votar nas eleições para o Conselho das Comunidades e para a Assembleia da República.
A comunidade portuguesa da RAEM tem sido, do ponto de vista político-eleitoral, pouco a pouco, feita refém da “bondade” expressa no passado, com a excelência da atribuição generalizada da nacionalidade portuguesa à população de Macau, perante a complacência das forças vivas presentes no terreno. O mérito de Coutinho foi ter sabido detectar uma mina de ouro eleitoral, puríssimo, sem ideologias nem interesses reais, pronta a ser rentabilizada e avançar decididamente, de picareta na mão, na sua exploração. Os resultados têm sido excelentes.
Curiosamente, enquanto Coutinho utilizou o seu método a nível local, no âmbito das eleições para o Conselho das Comunidades Portuguesas, tornando fútil o aparecimento de outros candidatos e o debate político, para o PS não veio mal ao mundo. Mas agora, que aposta mais alta se levanta, entendeu emitir um comunicado a denunciar esta bizarra situação.
Porquê só agora? Porque Pereira Coutinho poderá realmente ser eleito e isso é “um problema” (para quem)? Porque o seu método não preenche os mínimos requisitos éticos, quando em causa está a Assembleia da República, mas não faz mal quando se trata do Conselho das Comunidades?
Tiago Pereira resolveu emitir um comunicado. Muito bem. Em muitas das suas passagens, digamos que me tira palavras da boca ou ideias dos meus textos. É, portanto, fácil de perceber que concordo com o seu conteúdo. Há uns meses, José Rocha Dinis, também com responsabilidades no PS local, publicara um artigo em que se interrogava sobre o assunto. Muito bem.
Mais vale tarde do que nunca. Não sei é se vêm a tempo de alguma coisa, que a coisa tem as suas raízes na era das fábulas. É que, como o mesmo Rocha Dinis prognosticou em 2003, antes das eleições para o CCP, estes jogos estão há muito viciados. E, desde então, perante a complacência e a passividade geral ou quase.

4 Ago 2015

O génio, a sombra e outras elucubrações pícaras

[dropcap style=’circle’]Os[/dropcap]antigos romanos diziam que no momento do nosso nascimento surgia igualmente no mundo um outro ente, que por todo o lado nos acompanha. Deram-lhe o nome de Génio. É um ser que, por vezes, se confunde connosco, nos protege; mas doutras faz simplesmente sentir a sua presença, como naqueles dias em que carregamos uma culpa. Lembro-me de Lord Jim, de Joseph Conrad e da história de um homem que percorre o mundo vergado pelo remorso e pela vergonha. Lá está o mesmo mecanismo, a mesma pré-eutanásia de uma identidade insuportável, a quem resta o seu Génio como daimon, como demónio, como companhia maldita.
Um homem nunca se consegue livrar da sua sombra. É curiosa, aliás, a metamorfose da sombra em luz, sob o efeito da noite. Esbatidas as cores e desmaiados os contrastes, as sombras transmutam-se agora nas luzes várias dos pensamentos. O Génio não nos abandona, é um trocista irmão mais velho, um camarada que nos revolta ao vício.
A presença constante da sombra é incomodativa. Diógenes mostrou ao imperador Alexandre que somos, antes de mais, um empecilho: a tua sombra tapa-me o Sol. “És a mais”, vocifera a presença do meu Génio. “Não somente uma inutilidade, mas um empecilho e projectas-me a mim, a tua sombra. Como somos ridículos…”. genio_lampada
Sem a tendência cínica para a vida de barril, considero, contudo, a possibilidade da candeia. E mando o Génio vaguear, como Lot, na procura vã da equidade. Ele vai e volta, as mãos retintas dos frutos roubados a travessas e raparigas singulares. Lá no alto, uma estátua de sal adverte, ainda hoje, a cidade.
Ele é assim: acompanha-nos como um desassossego. Fala a várias vozes, emite juízos, éditos, bolsa sentenças imorais. Não é fácil lidar com o nosso Génio. Não gostamos de admitir que ele se parece muito connosco, quando dele discordamos; mas pretendemos ser como ele, quando entre travessuras, dotado de uma graça que em nós não reconhecemos, nos surpreende e encanta.

28 Jul 2015

Como vão agora recortar-me, à noite, no Tap Seac?

[dropcap style= ‘circle’]E[/dropcap]xiste a tendência nalguns arquitectos de olharem as cidades mais como “territórios de caça” do que como espaços de cidadania. A atitude é, de certo modo, compreensível: caberá na sua ânsia natural de deixar marcas no espaço, ainda que para isso seja necessário apagar marcas anteriores e alheias.
É precisamente neste ponto que intervêm os políticos, enquanto putativos defensores da cidadania e de valores que não constam, provavelmente, da cartilha ensinada nas escolas de arquitectura. É obrigação dos representantes do povo refrearem, por vezes, os ímpetos criativos daqueles a quem encomendam obras ou pareceres, pois na sua relação de deveres cívicos deverá constar, antes de mais, uma perspectiva alargada, que inclua valores aparentemente distantes do frenesim criativo/construtivista.
Sem ser um especialista na matéria, parece-me que a fachada do Hotel Estoril é um exemplo único em Macau de uma época da arquitectura. Para além de ser bonita. Eis um argumento subjectivo que tenciono desenvolver, invocando ainda outros aspectos, difíceis de incluir na categoria estética:

(Quantas vezes, noites afora, dias adentro, a pé pelo Tap Seac, não dei por mim a viajar naqueles círculos estranhos, no jogo de luzes e sombras que exibem e sobretudo quando, num repente, se autonomizam das paredes e flutuavam pela praça? Seriam bolas de sabão? Espuma caída das banheiras, fedor intenso a sabonete barato ou perfume de pele em extinção? E por que razão me encontro, num mesmo repente, numa outra era, de carros ronceiros, mulheres singularmente vestidas como nunca mais aconteceu e nela me deleito, sem nunca a ter vivido? E como me acontece, do outro lado da praça, percorrer-lhe o contorno e imaginar-lhe suspiros, contradanças, emoções de corredores e de aquário? hotel estoril
Não sei a resposta a nenhuma destas perguntas. Mas há uma presença, a minha e a dele, a do hotel, daquele edifício que, num repente, me transporta porque é metáfora e é inesgotável.
Entrei duas vezes no Hotel Estoril. Duma por julgar ali haver um bar. Que existia mas não o era. A segunda para, bebendo um whisky, contemplar as raparigas numeradas por detrás de uma vidraça.
Não me move a memória, nem os afectos. É outro algo, da ordem do fantasma, da perda de quem simplesmente passa e cuja ligação se estabelece na repetição, na familiaridade. Talvez o terror obscuro de mais uma perda. Havia uma sombra, um perfil, um carácter, uma utopia, que me foram crescendo interiormente, à medida que os passos atravessaram o Tap Seac ou da janela do táxi dava conta de um detalhe, de uma perspectiva singular, quando não aberrante. O interior não interessava. Como quase tudo em Macau, a importância emanava da fachada. Houve de tudo e isso é tudo. Onde dançarão amanhã as bolas de sabão?…)

Seria mesmo património. Infelizmente para as gentes como eu, cuja sensibilidade se prende aos sítios e à construção dos espaços, isto não interessa nada a outros. Para eles, conta a marca do presente, o que impede a presença do meu prazer futuro. Soa egoísta. É e não é.
Em termos absolutos, é possível que a fachada do Estoril não seja nada de raro. Mas não o será no contexto de Macau? Parece-me absolutamente que sim. Não me lembro de outro edifício local que, do mesmo modo horizontal, displicente e gracioso, com a mesma dimensão, exiba os traços de um período da arquitectura que, entre outros lugares, facilmente ligaria Macau à cidade de Pangim, em Goa.
A questão não reside sequer, como o leitor já deve ter intuído, em pormenores de academia. Na verdade, só pode dizer que a fachada do Hotel Estoril não interessa, no contexto da praça, quem nunca a atravessou dez vezes. Ou quem o fez sem levar o coração. Porque o peito era oco ou a carteira ansiosa. Ou por outra razão qualquer, firmemente legitimada num parecer, num doutoramento, num ditame de um sábio e no bolsar de um profeta. E todos teremos razão.
Mas digam-me então senhores sábios: como vão agora recortar-me, à noite, no Tap Seac?

24 Jul 2015