Carlos Morais José EditorialA lucidez implacável [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]urante a nossa vida, a de todos nós, existem momentos que implicam decisões, quantas vezes irreversíveis. É nesses momentos que duvidamos, disto e daquilo, de nós e dos outros, num justificado temor pelo que se nos apresenta obscuro mas incontornável. Pode ser uma viagem, um amor, um trabalho e até um emprego. Algo de radicalmente diferente que se ergue no horizonte e para o qual caminhamos como num sonho, qual pássaro para a boca de uma serpente. Surge-nos então a ideia de destino, de inevitabilidade: um pensamento fatal, inoportuno à razão mas agradável ao nosso pobre coração. “É assim, não pode ser de outra maneira. Não o podia evitar”, dizemos então, mais consolados, mais perdoados, perante nós mesmos. Mas, lá no fundo, nesse fundo maldito onde tantas águas negras subtilmente se agitam, nesse abismo inconstante que impudicamente nos habita, permanece o rugir da descrença, a certeza da responsabilidade e da escolha. “Nada está escrito… que não possa ser reescrito”, imprecam os grandes malditos, que se erigem em modelos a seguir. Como sobreviver e aceitar não ser isto para ser aquilo? Como não ser tudo ao mesmo tempo? Trabalhador e viajante, marido e amante, pai e amigo, operário e escritor. Como não ser isto tudo e de uma só vez, num só e imenso fôlego? E ser ainda mais, à medida das nossas impossibilidades. Surge então a lucidez, prima da razão, irmã do bom senso, madrasta da grande vida. Para nos dizer da sua lavra. Para nos encerrar os desejos num cofre pesado e atirá-lo ao mar. Para conter nos limites do curral. A lucidez implacável, essa luz sem piedade que nos dá o mundo e rouba os sonhos, que nos faz sérios e nos oculta o que é realmente sério para a vida.
Carlos Morais José EditorialRevisão da matéria não dada [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]revisão da Lei Eleitoral não deveria limitar-se aos aspectos jurídicos da questão, mas ser tratada de forma mais holística, isto é, aproveitando para entabular uma reflexão generalizada – dos think-tanks às escolas, da universidade à Administração Pública, passando pela Assembleia Legislativa e as associações – sobre o funcionamento democrático da sociedade e das suas instituições. Afinal, no sistema de Macau, a democracia eleitoral é parte constitutiva, fundamental, apesar de não determinante. E a evolução do grau da sua importância no conjunto do sistema político, sobretudo em Hong Kong, tem causado um imenso debate e polémica. Contudo, é curioso que ninguém se preocupe em reflectir sobre as consequências da fórmula em si, aplicada a uma pequena cidade como Macau, cuja economia se encontra submetida à monocultura do Jogo e seus derivados. Tudo se passa como se isso não tivesse o seu peso específico, a sua importância real no desfecho de uma futura distribuição de poder. Será que uma democracia eleitoral pode ser totalmente implementada em Macau, quando são conhecidas as fragilidades muito próprias deste tecido eleitoral? Por outras palavras, não poderiam ser encontradas outras formas de funcionamento que garantissem não apenas a liberdade de votar mas, sobretudo, uma distribuição mais equilibrada dos recursos e uma racionalização mínima de metas a atingir, que implicam o bem comum? Ou criados mecanismos legislativos com o objectivo de impedir o nepotismo e melhorar o serviço da causa pública? A voz do povo não se exprime unicamente através do voto. Na verdade, foi a fórmula encontrada para o deixar a falar sozinho, convencido de que é ouvido, até desistir de importunar perante a vacuidade da coisa. Existirão então outras formas de exprimir e realizar a vontade popular, para além de uma fila de gente a escolher outra gente, inchada de promessas balofas, de cinco em cinco anos? A revisão da Lei Eleitoral seria um bom pretexto para lançar em Macau um debate sob a democracia, as suas actuais e futuras formas. O pontapé de saída poderia ser dado pelo Governo mas ficaria muito bem a outras instituições mostrarem que existe por aqui um pouco de preocupação cívica. Daquela que não passa pela compra e pela venda de votos, mas por uma reflexão séria sobre as condições em que é adquirido e exercido o poder.
Carlos Morais José EditorialE na vida pública, vale tudo? [dropcap style=’circle’]F[/dropcap]oi mais ou menos desde que Júlio César passou o Rubicão, com as suas legiões, que na vida pública vale tudo. As leis da República impediam a proximidade das tropas e a sua entrada na cidade, mas o general romano ignorou-as, vociferando: “Alea jacta est” (as sortes estão lançadas). E estavam: foi curta a sua ditadura; assim também não o quiseram as sortes e os conjurados que o apunhalaram, também contra as leis da República. Na vida pública, vale tudo e ela é, geralmente e para gáudio da plebe, reversível. Veja-se como vale tudo na vida pública, também em Macau, quando pessoas são condenadas por violarem as leis eleitorais, precisamente aquelas, das novas, que mais dignidade emprestam ao cidadão. É complicado para o CCAC esticar o caso até ao limite que pareceria mais lógico (quem beneficiou com o crime), mas a sua existência comprova o ridículo de quem não quer ler a actual sociedade de Macau. Não interessa realmente condenar ninguém neste ou noutros casos, mas contemplar com horror e desdém as gentes capazes de tornar um acto eleitoral numa fantochada, onde a dignidade humana se revela existir a bom preço ou mesmo de borla quando intervém o medo. Macau é um exemplo onde tudo, mais próximo e conhecido, se torna evidente e aplicável a outras escalas, de pequenos e grandes países. Olhando para o mundo ocidental, onde a democracia eleitoral é suposto reinar, vemos o povo grego votar para um lado e o seu país ir para o outro. Assim de repente não dá para compreender. Contudo, basta pensar que hoje o voto tem de ser a horas certas, nas pessoas certas e nas políticas certas. Tudo se faz para assim ser e se assim não for, não conta. A propósito de democracia, estamos entendidos. Quanto ao que vale na vida pública, também.
Carlos Morais José EditorialPleonaxia ou a vontade de tudo possuir [dropcap style=’circle’]J[/dropcap]á que falamos tanto da Grécia, recuemos até 550 anos antes da nossa era quando os filósofos entenderam estar perante uma doença caracterizada pela “vontade de tudo possuir”. Mas como era possível haver gente nesse tempo com a veleidade de tudo ter, com uma sede interminável de posse, com um abismo cravado em si de insaciabilidade perante os bens do mundo? Jean Paul Vernant, um grande helenista, explica : “A riqueza substitui todos os valores porque ela tudo pode comprar. É então que o dinheiro conta, o dinheiro faz o homem. Ora, contrariamente a todos os “outros poderes”, a riqueza não comporta qualquer limite: nada nela marca o seu termo, os seus limites, o seu fim. A essência da riqueza é a desmedida”. A riqueza, o desejo de possuir mais, instala-se como uma febre, uma loucura, e tal foi percebido melhor pelos filósofos da Antiguidade grega do que pelos homens contemporâneos. Quantos vemos a correr até ao fim da vida, com o único fito de acumularem mais dinheiro que não lhes vai servir para nada? Nesse delírio, os homens de hoje esmagam quem estiver no seu caminho, não olham a danos colaterais. Nem sequer aos danos que infligem neles mesmos. Finalmente, a pleonaxia é uma doença mental que se aproxima do desespero, que é irmã da gula e prima da inveja. Com o advento do capitalismo como regime dominante, assistimos à sua transformação em ideologia superior. Atascados numa espécie de darwinismo social, esses doentes afirmam a pleonaxia como sentido máximo da vida, não entendendo que a doença os impede de viver. Seriam coitados se à sua volta não espalhassem o mal, não destruíssem os valores alheios, as vidas dos outros, em nome da sua pleonaxia. São, é certo, lamentáveis enquanto seres humanos, prisioneiros que estão de uma cegueira, de um traço de paranóia anal (cumulativa), neles instilado por uma sociedade também doente, fixada nas contas e na acumulação. O mundo precisa de crescer e as pessoas de analisar as suas acções para não se deixarem submergir com algo que lhes foi imposto mas que eles julgam ser o zénite de uma vida quando, na verdade, se limitam a atingir o seu nadir.
Carlos Morais José EditorialA bolsa ou a vida [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Europa tem uma escolha a fazer nos próximos tempos: as pessoas ou os bancos. Ou continuamos a ser governados por políticos corrompidos pelo sistema financeiro ou teremos uma Europa que elege a justiça social e a igualdade de oportunidades como o seu princípio básico. Todas as manobras dilatórias engendradas pelos bancos resultaram. E resultaram não porque fossem muito inteligentes (na verdade, até eram um bocadinho básicas) mas porque os representantes dos povos, eleitos naquela alternância a que se chama arco da governação, simplesmente fizeram todas as vontades aos bancos e ainda os salvaram quando eles demonstraram claramente que não tinham unhas para tocar a própria guitarra que tinham construído. Vivemos uma era de políticos sem outra ideologia que não seja a manutenção do poder, ao serviço do sistema financeiro. É uma era nojenta, ressabiada, de distanciamentos, pois parece não existir saída para este nó górdio de dependências e favores, de anuências e eminências, mais ou menos pardas, de contratos e de destratos, mas tudo isto sem um pingo de ideias ou vergonha na cara, que é como quem diz sem inteligência nem ética. O que se fez a países como a Grécia e Portugal daria não só prisão para alguns como umas orelhas de burro para todos, à excepção daqueles que vocês sabem quem são. E se não sabem, eu explico: são os que vos roubam, os vivem à conta do vosso trabalho, dos vossos impostos, os que vos desgovernam para se governarem, os que ocupam vários empregos onde não fazem nada, os postos de administradores disto e daquilo (já agora não-executivos), são os que enchem de vergonha os portugueses com a sua canina admiração pela Merkels deste e do outro mundo. E são aqueles em quem vocês, portugueses, vão uma vez mais votar. Por isso não vos lamento, como não vos invejo. É triste ser de uma país que, apesar de tão pequeno, está sempre tolhido pelo medo. A escolha é entre a bolsa e a vida.
Carlos Morais José EditorialJust one of those things Para Cole Porter, com mesurada vénia [dropcap style=‘circle’]É[/dropcap]só mais uma daquelas coisas. Daquelas que começam de repente sem aviso nem sufrágio. Não conseguimos perceber bem de onde vêm. Sabemos que chegam e invadem os territórios que cuidávamos sagrados. São hábeis, são cruéis de tão belas, dotadas de graça sem consciência do mal bom que disseminam. É só mais uma daquelas coisas. Daquelas que nos deixam uma certa cicatriz, um sulco inolvidável, um cheiro que teima em persistir depois de uma catarata de remorsos nos ter passado pelo corpo. É bom e é inútil na sua inevitabilidade. Não nos larga e não nos agarra. Permanece sem querer e parte quando exprime o desejo de ficar. É só mais uma daquelas coisas. Daquelas que não podemos controlar, que nos possuem num ápice e cujo desaparecimento anunciado nos aterroriza. São assim essas coisas que são só mais uma: belas e terríveis, doces e amargas, indecentes e sem pecado. Deixam-nos calados e fazem-nos falar como se fôramos possuídos. Não sabemos o que dizemos, mas há um pânico que nos impele, uma porta que se fecha no horizonte e onde teremos rapidamente de chegar, como no mais insone dos nossos pesadelos. É só mais uma daquelas coisas. Daquelas que nos ultrapassam pela esquerda baixa e sem contemplações. Como a tempestade que se forma sobre o mar. É o poente. E nada mais. Só uma daquelas coisas, só um Verão oculto nas promessas de uma divindade inexistente. É só mais uma daquelas coisas. É só mais uma daquelas coisas…
Carlos Morais José EditorialA saúde está doente [dropcap style=’circle’]É[/dropcap] louvável o optimismo do novo director do hospital público de Macau, demonstrado na entrevista que ontem publicámos neste jornal. Kuok é falado como sendo um bom gestor, por isso não seria difícil acreditar que as suas expectativas fossem realmente fundamentadas. Contudo, contra ele, está essa coisa aborrecida e difícil a que damos o nome de realidade. Quanto ao estado das coisas, ele é praticamente indefensável. Os casos, documentados pela imprensa ou meramente passados de boca a ouvido, são inúmeros. Ainda ontem o JTM narrava um evento, no mínimo, de assombrar, passado nas assombrosas urgências, que Kuok garantia estarem em condições, se não perfeitas, pelo menos aceitáveis. Para além do atendimento médico, muitos se queixam igualmente do estado de conservação do material hospitalar, incluindo lençóis, almofadas, etc.. É natural que o novo director não queira espetar a faca no passado, mas também não pode dourar a pílula do presente, sob pena de não conseguirmos acreditar que seja capaz das melhorias que os cidadãos entendem como essenciais no futuro, num território cuja riqueza obriga o Governo a proporcionar aos seus cidadãos excelentes cuidados de saúde. Todos sabemos, da Praia Grande a Zhongnanhai, que a maior dificuldade dos serviços públicos de saúde na RAEM se prende com os serviços de saúde privados da RAEM. É o não-dito da situação, tão difícil de chamar pelo nome que se assemelha ao cancro. O seu efeito no sector público não deixa de ser algo parecido à doença oncológica, embora uma comparação com certas formas de parasitismo também não fosse de descurar. E não nos parece uma doença fácil de curar. Pelo contrário, inventam-se paliativos que, curiosamente, ao invés de resolver a situação, fortalecem a doença e enfraquecem o paciente. Não sabemos se Kuok pode ou quer resolver o estado das coisas. Provavelmente sim, contornando como puder os ditames do Altíssimo. Inegável é que, 15 anos depois da transferência de soberania, a saúde está doente.
Carlos Morais José EditorialA vergonha acabou [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão aceitar que a dívida soberana dos Estado é, antes de mais, uma dívida dos bancos privados, que esses mesmos estados tiveram de resgatar, é querer tapar o sol com a peneira. E, de facto, é isso mesmo que a propaganda oficial europeia anda a fazer há muito tempo, estribada na imprensa neo-liberal, ela própria nas mãos de interesses financeiros: tentar atribuir as culpas da crise às pessoas, ao facto de terem gasto acima das suas possibilidades, quando é o sistema financeiro o principal responsável pelo estado atroz do sítio. As falácias são muitas. O desejo dos senhores do Eurogrupo e do FMI seria manter alguns povos europeus na situação de eternos devedores, ou seja, fazer de tal modo que as crianças nascidas em 2050 ainda estariam vinculadas a pagar esta dívida que é, nas condições exigidas pelas troikas, impagável. Quem pode aceitar este tipo de situação, para além dos nossos Passos Coelhos e Marias Luís? Quem pode vender o país aos pedaços, prescindir das pescas, da agricultura, da indústria e, sobretudo, de empresas públicas lucrativas? Ninguém com espinha vertebral e o mínimo de amor ao seu povo e aos seu país. A questão hoje coloca-se, afinal, em saber quem manda na Europa: a economia ou a política? Manter a Grécia no Euro e na UE seria claramente uma decisão política, que faria com que os gregos não necessitassem de aproximações demasiado perigosas à Rússia de Putin ou mesmo à China. Levar a Grécia até à porta e aos repelões só pode ser uma decisão que não tem em conta os interesses geo-estratégicos, portanto derivada de quem unicamente equaciona o lucro como valor. O preço poderá ser no futuro muito mais alto. Mas, quando olhamos para as notícias, é-nos realmente difícil vislumbrar políticos, homens de causas, de paixões, de ideais. Vemos uns serventes do sistema financeiro, encolhidos nos seus fatos, a seguir atentivamente as boutades da senhora Lagarde ou do senhor Schaulbe. Não surge ninguém com a autoridade e a força moral capazes de libertar a Europa do espartilho bancário, desta sangria de gente, desta desonra inaceitável. Sem política, a Europa torna-se num mero mecanismo de favorecimentos financeiros, como o Tratado de Lisboa (artigo 123) plenamente demonstra. O que mais me admira é os seus mentores darem palmadas nas costas uns dos outros, como Sócrates e Barroso, sem nunca demonstrarem um pingo de vergonha. Esta, ao que parece, acabou.
Carlos Morais José A outra faceDa boa e da má língua [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]mais importante património que Portugal deixou em Macau, para além das pessoas, é a língua, o linguajar português, de Camões, de Pessanha e de Wenceslau de Moraes, só para citar alguns dos que por aqui o abrilhantaram e transmutaram nalguma da mesma bela poesia e da mais pungente prosa que a nossa literatura teve oportunidade de produzir. Sem a língua portuguesa perder-se-ia uma parte importante, para não dizer fundamental, da identidade de Macau. É que, ainda que ela não exista predominante, dominadora ou exaltada, não deixa por isso, na sua aparente insignificância, de se revestir de um estatuto cujas raízes mergulham fundo nesta cidade. O governo chinês, sabiamente, manteve o Português como língua oficial, garantindo a sua permanência. De algum modo, por esta atitude, a língua foi vivificada após a transferência de soberania, a sua importância sublinhada, muitas vezes contra alguns “inimigos” cujo objectivo nunca foi perfeitamente claro, parecendo as suas acções brotarem mais da emoção do que da razão. Mas Pequim foi mais longe. Entendendo a funcionalidade do Português na América do Sul e em África, encarregou Macau, através do Fórum, de utilizar esta sua língua oficial como veículo de negócios e de diplomacia, tornando a RAEM no principal centro chinês de difusão da língua portuguesa. E tudo isto faz um imenso sentido e demonstra uma enorme capacidade de preparar o futuro. No entanto, apesar do crescimento exponencial que o Português tem tido nos últimos anos, é frequente darmos pela língua assassinada, em alguma da comunicação oficial e das empresas de maior impacto público. A verdade é que boa vontade não chega e os falantes de Português não podem deixar de se sentir tristes e mesmo um pouco ofendidos perante o espectáculo da sua língua maltratada, em certos casos como se fosse uma tradução feita por um Google apressado. Afinal, este é um dos bens mais preciosos que a cultura lusitana possui e qual de nós não assinaria por baixo que “a minha pátria é a língua portuguesa” (Fernando Pessoa)? Há muito tempo que se fala de um Observatório da Língua, que corrigisse os erros sistemáticos e as grosserias gramaticais. Mas até hoje nada foi feito. Não foi feito pelo Governo da RAEM, nem pelo IPOR, nem pela Casa de Portugal, nem pelos conselheiros portugueses Fernando Gomes e Pereira Coutinho, nem por qualquer outra associação com responsabilidades e fundos como, por exemplo, a que fala no seu nome da instrução dos macaenses, a APIM. [quote_box_left]Manter viva a nossa língua é um dever de todos e, ao mesmo tempo, um garante da nossa permanência e do facto de não nos tornarmos, dentro em pouco, obsoletos[/quote_box_left] Ninguém fez nada. E a língua portuguesa continua a ser, “oficialmente” e diariamente, tratada com alguma descortesia, para ser suave. Seria difícil montar um grupo de 10 ou 15 pessoas, com formação séria na área para tomar conta desta ocorrência e corrigir os erros? Parece-nos que não. Implicaria alguma despesa, mas nada que fosse mossa importante nos cofres. Se estamos a falar de uma língua oficial, convinha que fosse tratada com a dignidade que as coisas oficiais merecem. O modo como Macau escreve Português é também reflexo da importância que as pessoas dão às coisas, a forma como as administram e o carinho que lhes dedicam. O Português, enquanto língua, faz parte do património de Macau e como tal deve crescer, ser protegido e bem tratado. Imagine-se que era permitido desenhar grafitis nos edifícios classificados. Ora é exactamente isso que se passa quando olhamos para o respeito dado à nossa língua. Oficial, não se esqueçam. Se o que foi escrito, tem uma relação séria com o Governo da RAEM, já a nossa comunidade, as nossas associações e as nossas empresas terão uma dobrada obrigação de utilizar o português constantemente como uma das línguas de comunicação. De facto, parece estranho que sejam portugueses os primeiros a esquecer de onde vêm e do que aqui representam. Quero dizer com isto que cada um de nós deveria sentir a responsabilidade de utilizar a língua portuguesa o mais possível, dentro dos limites do bom senso e da boa educação. Manter viva a nossa língua é um dever de todos e, ao mesmo tempo, um garante da nossa permanência e do facto de não nos tornarmos, dentro em pouco, obsoletos. É uma perspectiva antolhada pelo imediato, pelo presente, a crença de que se deve usar exclusivamente o inglês, para atalhar nas traduções. No limite, tal significa um menor respeito não apenas ao Português mas também ao Cantonense/Mandarim. Na passada quarta-feira, o BNU inaugurou uma exposição na residência consular de Portugal. O seu presidente discursou em Inglês para os presentes, evitando a tradução. Dói-nos, obviamente, esta atitude da parte de uma das instituições portuguesas mais poderosas nesta cidade e temos dificuldade em compreendê-la. Parece-nos que deveria existir da parte do banco uma atenção maior ao uso da língua do seu país em Macau. Já que desistiram de o usar na sua publicidade, pelo menos poderia ter surgido no discurso. Não aconteceu. Foi em Inglês. Salvou-se o facto de o ter feito com um sotaque inconfundivelmente lusitano.
Carlos Morais José EditorialO pior cego é o que não quer ver [dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando milhares de textos, de artigos, de estudos indicam que o combate à droga não se faz através de medidas repressivas, existe uma pequena região especial da China onde se faz tudo ao contrário. Por todo o mundo civilizado, incluindo (um pouco a custo) os EUA, compreendeu-se que a questão da droga previne-se, não se criminaliza o consumo. Mas em Macau existem uns seres iluminados que pensam o oposto e querem aqui aplicar políticas dos anos 70 do século XX, cujos resultados foram estarrecedores. É pena tanta falta de cultura contemporânea, tanta falta de educação, tanta burrice. E é pena porque até a legislação portuguesa, que tanta influência ainda se faz sentir em Macau, há muito que saiu do vergonhoso caminho da criminalização do consumidor e com resultados que têm merecido elogios em todo o planeta. Graças à descriminalização do consumo, Portugal reduziu drasticamente a taxa de verdadeiros viciados, tendo-se tornado um exemplo a seguir, segundo revistas como a The Economist (conservadora) ou a Foreign Policy. Contudo, a RAEM tem muita dificuldade em chegar ao século XXI. Os nossos governantes, sobretudo na área da Justiça, têm um verdadeiro horror a tudo o que seja novo, ainda que a novidade esteja mais que provada cientificamente, como no caso da descriminalização do consumo de estupefacientes. E se não entendem a diferença, física e cultural, entre a heroína e o cannabis, o melhor é tratarem de outros assuntos, porque disto não percebem mesmo nada. E tanto que não percebem nada que o objectivo é agora criminalizar o consumo, independentemente dos géneros e das quantidades. Muito sinceramente, o polícia que prenderá um miúdo de 18 anos, porque o apanha a fumar um charro, e o tribunal que o condenará à cadeia é que são os verdadeiros criminosos. Se não percebem porquê, vão ler. Ele há coisas, como por exemplo que a Terra anda à volta do Sol, que já não há pachorra para explicar mil e uma vezes. De facto, o pior cego é o que não quer ver.
Carlos Morais José EditorialNão temer a perda [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]inguém me levaria a mal de ser um poucochinho, porque esse é o poucochinho que todos sonhamos talvez ser. Mas acrescentar algo ao curso das coisas revela-se uma tarefa difícil, por vezes morosa, doutras absurda. Existe uma quase crença na assumpção de que nos definimos pela dor e contra ela. A dor cerceia os territórios, ensina-nos onde podemos ir e que espaços nos estão vedados, interditos. A dor é uma paidéia, um curso inferior que nos constrói como sujeitos, ora tementes ora desafiantes. É que existem limites para a dor, para a paciência do animal constantemente submetido a uma qualquer tortura, seja ela de ordem física, mental ou social. E, quando esses limites são atingidos, o animal ousa finalmente mostrar os dentes. É o princípio de todas as revoluções. Para evitarmos a dor muitas vezes nos encolhemos, nos menorizamos, tendemos a desaparecer dos quotidianos, na organização proposta, nas tarefas que nos matam ao matar o tempo. É por termos evitado a dor, na forma de humilhação ou desprezo alheio, que muitos de nós não estão com a pessoa que realmente amaram ou na profissão que realmente as realizaria. Para ser é preciso, dizem, sofrer. Nunca gostei desta ideia porque entendo que mesmo a experiência da dor, do desconforto, não significa obrigatoriamente sofrimento. Qualquer mudança é um incêndio e a contemplação das chamas um prazer eufórico. Porque somos humanos, temos uma capacidade acrescida de colorir as nossas sensações e os nossos medos. De modo a realmente fruir e a desenvolver coragem. Para ser mais, não se pode temer a perda.
Carlos Morais José EditorialNão sei. Falta-me um sentido [dropcap type=”2″]“N[/dropcap]ão sei. Falta-me um sentido…”, reza um verso de Álvaro de Campos, espelhando talvez a consciência da finitude, a fraqueza do animal abandonado ao dever de entender o universo e de o narrar como os contadores de histórias, nos largos das cidades, narravam as vidas impossíveis dos deuses e dos heróis. Existe, pois, essa distância entre o mundo e esses mesmos sujeitos destinados a falar dele, a ler nas estrelas o destino, a coleccionar bibliotecas, construir labirintos que eles mesmos, como Dédalo, não compreendem e como o Minotauro enclausurados o percorrem, a decifrar os segredos da matéria e dar conta das representações das volutas da mente, a que se convencionou chamar espírito. Como cumprir então a nossa “obrigação” de procurar um sentido para as acções em que ao longo da vida nos comprometemos, ou não fossemos esse difícil animal “capaz de fazer promessas”? Do desespero ao tédio, que emerge quase que como panaceia inconsciente e perversa, deliberamos pouco e seguimos muito as vias que à nossa frente se abrem como inevitabilidades. Somos assim não porque tenhamos decidido assim ser, mas porque assim resultou o que somos. O controlo é, em geral, uma ilusão. Mas isso é também parte da beleza da vida e do seu sublime. O inesperado, o segredo para lá da curva, o acidente, o evento inquieto, é ainda o que nos resta de verdadeira singularidade e que nos empurra um pouco mais além da manada infeliz a que pertencemos. Não saber, faltar um sentido, é o primeiro passo para essa “abertura” ao mundo, para uma possibilidade de conquista, de abrasamento de um território, apenas pela virtude de um olhar. Eles chegam inesperados e terríveis, esses artistas de olhar de bronze. De outro modo seriam rechaçados, esmagar-se-iam de encontro às permanentes muralhas da razão coxa, da culpabilidade e do esquecimento.
Carlos Morais José EditorialUma baforada de bom senso [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]hui Sai On tem razão quando diz que a quebra das receitas do Jogo nada tem a ver com proibição de fumar. Mas não tem a razão toda e os números que as operadoras hoje apresentam são disso testemunho. Se pensarmos um pouco, não é do interesse das operadoras que se fume nos casinos. Estou convencido que os seus donos prefeririam um ambiente mais saudável para todos. Por isso acredito mais nos dados agora revelados, no que na estatística apresentada pelo Governo, certamente através dos Serviços de Saúde, os mesmos que montaram a campanha mais fundamentalista que alguma vez aconteceu em Macau. De facto, não vislumbramos que interesse poderiam ter os casinos em albergar fumadores, se não soubessem que uma parte significativa das suas receitas desaparecerão com o fumo. Sobretudo, nas salas VIP, afinal onde se realiza diariamente a mais importante recolha de dinheiro para os cofres das operadoras, da RAEM e da população de Macau. [quote_box_right]E é bom não esquecer também que, sendo a maior parte do dinheiro aqui gasto de cidadãos chineses e de origem chinesa, é muito bom para o país que parte desse dinheiro fique em terra chinesa e não desapareça para os cofres e as economias de outros países.[/quote_box_right] (Interessante o facto do estudo governamental ter feito um “referendo informal” à população, tendo obtido o resultado de 70% a favor da proibição total do fumo nos casinos. Não se percebe bem é porque razão a população há-de ter opinião sobre isto, que não a afecta directamente, e não sobre… outras coisas. Esperamos que tenha existido uma cuidadosa protecção dos dados pessoais dos “referendados”.) A verdade é que nem sempre a realidade nem se curva perante os nossos desejos e tem aquele mau feitio de ir contra o que nos parece mais lógico, mais saudável e etc.. Basta, contudo, um pouco de bom senso para que se encontre uma alternativa ou várias alternativas que deixem todos satisfeitos. É por isso positivo que o Governo não se incruste na “tolerância zero” e deixe aberta uma porta aberta à negociação. Se assim fizer, mais não mostrará que entende a realidade da cidade que governa e, nesse sentido, não correrá o risco de ver biliões a serem desviados para outros casinos das redondezas que, provavelmente, estão a esfregar as mãos de contentes com esta atitude da RAEM. E é bom não esquecer também que, sendo a maior parte do dinheiro aqui gasto de cidadãos chineses e de origem chinesa, é muito bom para o país que parte desse dinheiro fique em terra chinesa e não desapareça para os cofres e as economias de outros países. Uma baforada de bom senso, na hora certa, tem evitado enormes descalabros. Agora precisa-se.
Carlos Morais José EditorialAmores mais baixos se levantam [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]entrevista que Konstantin Bessmertny deu ontem a este jornal coloca o dedo numa ferida muito importante deste Macau do crescimento desenfreado: o Governo deixa as concessionárias do Jogo fazerem tudo o que lhes apetece e assim inundar a RAEM de cópias baratas do que têm em Las Vegas, sem lhes exigir nada, sem controlar nada, sem dizer uma palavra sobre o que por aqui é erguido. E assim temos um Venetian (já decadente), igual ao americano, bem diferente do que a Sands fez em Singapura, ou seja, uma reprodução ao invés de um edifício singular que já se tornou num marco turístico da Ásia. E assim casinos Wynn iguaizinhos aos que existem no Nevada. E assim vamos ter uma ridícula Torre Eiffel, também copiada da que existe em Las Vegas. O mau gosto e a avareza (compreensível) dos casineiros inundou esta cidade perante a indiferença governamental. É difícil compreender a apatia do Governo perante a destruição estética da cidade. Não lhe terão amor? Ou nem sequer o assunto lhes passou pela cabeça? É certo que, numa primeira fase, os novos casinos deram muito dinheiro. Mas será que o dinheiro e só o dinheiro é a coisa mais importante do mundo? < Não será que para a qualidade de vida e do turismo de Macau, bem como para o seu renome internacional, não seria importante construir uma cidade esteticamente original, irrepreensível, e não a cópia de um sítio decadente e ultrapassado como Las Vegas? Macau, enquanto Monte Carlo do Oriente, era uma cidade charmosa, com qualidade de vida, excessiva e libertária. Esta Las Vegas da Ásia é kitsch, é foleira, não tem glamour nem mistério. Não é nada. Porque deixou de ser original. E isto perante a passividade governamental, entretido que estava a contar as patacas e a fazer maus investimentos. Espera-se que o actual Governo siga por outros caminhos, que se interesse mais pela cidade em si, que mostre realmente amor por ela, até porque “amar Macau” é também “amar a Pátria”. O problema é que, bem sabemos, pelo menos no Conselho Executivo, amores mais baixos se levantam…
Carlos Morais José Entrevista Manchete SociedadeViriato Soromenho Marques: “A nossa política doméstica é hoje política europeia” Viriato Soromenho Marques, professor de Filosofia da Universidade de Lisboa, tem um extenso currículo, não apenas académico. Esteve em Macau para promover o seu novo livro intitulado “Portugal e a Queda da Europa”, no qual defende a abolição do Tratado Orçamental da UE e que o federalismo europeu não seja apenas penitência mas também salvação. [dropcap style=’circle’]A[/dropcap] pontou diversos erros na construção da União Europeia, fazendo um diagnóstico não muito favorável. Por outro lado, apontou um outro caminho que seria mais federalismo. Isso faz-me lembrar o que Nietzsche diz de Kant: a raposa que destrói a sua jaula para a seguir construir outra e se meter nela… (Risos) Refere-se à passagem da Crítica da Razão Pura para a Crítica da Razão Prática, não é? Sim. Da crítica “radical” da possibilidade de conhecer à emergência do “radical”, “terrorista” imperativo categórico (risos). De facto, penso que há uma consistência na minha afirmação, isto é, a construção europeia foi efectuada através de uma metodologia que, desde o início e para os observadores mais atentos, estava “impregnada” de deficiências de design, ou seja, de construção. Temos vários marcos das críticas que foram feitas. As críticas foram feitas em diferentes períodos: um deles que foi na década de 70, porque a ideia de uma união monetária – que é hoje a zona Euro – já vem bastante de trás. Praticamente, desde que a comunidade europeia se constituiu, em 1958, com um dos Tratados de Roma, que temos várias tentativas de a construir. A primeira – e a mais consistente – é de 1970 e tem o nome do Primeiro-Ministro do Luxemburgo [Pierre Werner], que ficou encarregue de fazer o esboço e é o Plano Werner, que consiste em fazer uma união monetária de 70 a 80, ou seja, em dez anos. Este é muito parecido com aquele que está actualmente em vigor. Tendo sido objecto de críticas válidas, se o plano actual é muito semelhante, as críticas são igualmente válidas. As deficiências que hoje vemos claramente são fruto do choque daquela estrutura com a realidade. A primeira crítica é a seguinte: uma união monetária só pode sobreviver se tiver uma grande solidariedade política e por isso é que as uniões monetárias – que a História verifica e que sobreviveram – são as que tinham o suporte de uma união política, geralmente de recorte federal ou aparentado… Pode dar um exemplo, para entendermos melhor o que é realmente para si essa necessidade…, digamos, federal. O exemplo mais puro é o do Federalismo Americano. Temos a Constituição Federal de 1787, aprovada e em vigor em 88, mas não temos o dólar nem nenhum banco central. No entanto, tinham já uma Constituição comum dizia as competências do Governo comum. Só timidamente, à medida que a realidade ia evoluindo, é que eles começaram a introduzir o dólar – em 1792 – e houve várias tentativas falhadas de fazer um banco central. [quote_box_left]“Uma união monetária só pode sobreviver se tiver uma grande solidariedade política e por isso é que as uniões monetárias – que a História verifica e que sobreviveram – são as que tinham o suporte de uma união política, geralmente de recorte federal ou aparentado…”[/quote_box_left] Está então a dizer que existem erros estruturais, conjunturais e também eventos dramáticos… Um outro caso, a que eu chamo de império federal, foi o II Reich, de Bismarck. A Alemanha tinha 30 e tal unidades políticas e a Prússia liderava a unificação depois da vitória sob a França. Só em 1876 é que foi possível unificar todos os bancos centrais que existiam nos estados alemães e que na altura se chamava Reich Bank. Em 1871 fizeram a Constituição. Digo que [isto] era Imperialismo Federal na medida em que os estados continuavam a estar representados parlamentarmente; a única questão é que o imperador era sempre da Prússia. O Império Austro-Húngaro – que também tem traços democráticos – tinha uma união monetária que passava pelo crivo do Parlamento. Como era um império constituído por dois reinos, de dez em dez anos havia uma sessão especial do Parlamento que se debruçava sobre a renovação da união monetária… Nós nunca tivemos nada disto na zona Euro. Sem união política, considera então impossível a união monetária? Que funcione, sim. A união política permite criar uma esfera de Governo comum e a Comissão Europeia não é um governo comum, até porque precisam de ter um orçamento comum que permita fazer investimentos, políticas contra-cíclicas quando os Estados estão com dificuldades. Num governo federal, quando há uma expansão económica, o governo tende a contrair. Quando fala de federalismo, está a falar de política, mas a verdade é que o Tratado Orçamental, que impõe a intromissão na definição dos orçamentos nacionais, não é só um instrumento económico mas, sobretudo, de economia política. No fundo, já existe federalismo através deste tratado… Existe uma caricatura, na medida em que só existe o federalismo como penitência e não como salvação. Uma questão central tem que ver com o orçamento comum e a capacidade de políticas de coordenação económicas, que são duas coisas que efectivamente ainda não existem na Europa. O orçamento comunitário da UE corresponde a 1% do PIB e, quando o [Jean-Claude] Juncker e o [Durão] Barroso se sentavam com os chefes de Estados dos Governo, tínhamos 1% do PIB europeu sentado à mesa de 45% do PIB europeu, que é sensivelmente aquilo que os orçamentos dos governos representam. Temos uma desproporção absolutamente brutal. Para podermos falar de federalismo económico de um governo que tivesse capacidade de fazer as tais medidas, precisaríamos de ter um orçamento europeu, no mínimo, de 4% a 5%. Isto para um federalismo “low-cost”… [quote_box_right]“Vale a pena ler o documento das propostas apresentadas por Juncker, depois destes quatro meses de negociação com Tsipras. É como se nada tivesse acontecido, as mesmas coisas. É o IVA a aumentar, exclusões de sectores de pessoas com problemas…”[/quote_box_right] Isso significaria mais impostos para os povos europeus? Neste momento temos 1% e não dá. Como é que vamos arranjar os tais 5%? Através da superação de uma outra desvantagem que a actual situação traz: não só não temos política de coordenação económica, como temos uma competição fiscal – no sentido português da palavra – terrível. Isto provoca situações como as empresas do nosso PSI 20 pagarem impostos na Holanda. A vantagem da coordenação económica é que obriga a algum federalismo fiscal. Isto significa simplesmente que o orçamento comum é baseado nos impostos e toda a gente percebe. Se perguntar como é que funciona o orçamento europeu, só um técnico é que sabe responder. Mas esta baseia-se no princípio de garantir que algumas economias são contribuintes líquidas e outras beneficiárias: é de paternalismo fiscal. A ideia é manter sempre sete ou oito países à frente. É essa Europa que quer federalizar ainda mais, dando mais poder a estes países? Se já temos um federalismo na prática… O que temos é uma “consolidação de Estado”, ou seja, uma forma de hegemonia misturada com uma partilha de soberania monetária e cambial, mas que é um federalismo só com desvantagens e sem a solidariedade e o desenvolvimento. É um sistema monstruoso e que, na minha perspectiva, não vai sobreviver muitos anos. O BCE é que tem salvo a Europa de uma desagregação que teria acontecido em 2010 ou 2011. A grande reforma que precisamos não são na Grécia ou Portugal, mas sim da zona Euro e a prova disso é o BCE. O próprio resgate da Grécia e Portugal era proibido pelo artigo 125 [Tratado de Lisboa] e é muito interessante, porque o mecanismo que foi encontrado é o da ambiguidade e falta de coragem de se dirigir ao cidadão. O artigo 125 é uma espécie de cadáver que está no Tratado… E o artigo 123, que proíbe o financiamento monetário. Ou seja, enquanto os bancos centrais de outros países compram as suas obrigações do tesouro no mercado primário e consegue fazer um financiamento político, o BCE compra a dívida que está sobretudo na posse dos bancos, no mercado secundário. Então, pelos vistos, interpretando esse artigo do Tratado de Lisboa, conclui-se que os políticos europeus estão nas mãos desses bancos, fazem-lhes as vontades. Vamos federalizar mais para lhes dar ainda mais poder, para expandir e dar uma dimensão final às doutrinas neo-liberais? Não. A proposta que defendo é a explicitação do federalismo e isso implica ser capaz de voltar ao princípio, à ideia de um tratado constitucional, definindo claramente as competências da esfera europeia, fazer uma reforma fiscal que permita habilitar esse governo a ser eleito pelos cidadãos com os recursos orçamentais necessários e impedir esta situação em que temos o Conselho Europeu a controlar o processo. A Comissão Europeia está neste momento na posição de “serva” do Conselho Europeu e não tem tido capacidade de iniciativa. Os tratados recomendam que todo o processo legislativo começa na Comissão e agora é ao contrário: todo ele começa nas reuniões do Conselho Europeu, por sua vez dominado pela Alemanha, às vezes com o apoio da França. Temos que fazer esse caminho – claro que a política é a procura da liberdade possível – mas também procurar evitar a “física política” – que é quando se faz a única coisa que se pode fazer. Estamos a ver que a política na Europa está a estreitar-se tanto que qualquer dia já só temos física, sendo só administrada a desordem. [quote_box_left]“O que temos é uma ‘consolidação de Estado’, ou seja, uma forma de hegemonia misturada com uma partilha de soberania monetária e cambial, mas que é um federalismo só com desvantagens e sem a solidariedade e o desenvolvimento. É um sistema monstruoso e que, na minha perspectiva, não vai sobreviver muitos anos”.[/quote_box_left] Neste enquadramento, também deu a ideia de que prefere uma solução que passe pelos partidos políticos tradicionais do que pela emergência de novas forças políticas ou novos conceitos, que acontecem em países como a Grécia, a Espanha ou a França. Em que sentido prefere os tradicionais? O que prefiro é que exista uma consciência colectiva dos europeus no sentido de não voltarem as costas à Europa, porque é a casa que nós temos e, se ela se fragmentar, as ruínas caem-nos em cima. Julgo que tudo é possível porque entramos numa zona – com a Grécia – em que as regras já não se aplicam e é uma situação nova, porque é a primeira vez que um país da OCDE não cumpre os planos do pagamento do FMI e é, de facto, grave. É, sobretudo, feito num contexto em que não sabemos se vai haver acordo, pelo que se não houver, a Grécia terá que criar uma nova moeda. No entanto, isto vai ser uma confusão muito dolorosa para a Grécia e para o resto da Europa, porque não é só a questão dos credores oficiais, mas também da inserção deste país no mercado europeu, na medida em que os importadores e exportadores vão, certamente, ficar numa situação em que deixarão de estar interessados em vender produtos à Grécia, país com nova moeda e que vai ter que renegociar tudo com toda a gente. Mas a dívida infinita também não é uma opção viável… Não. Temos que ser rigorosos. Vale a pena ler o documento das propostas apresentadas por Juncker, depois destes quatro meses de negociação com Tsipras. É como se nada tivesse acontecido, as mesmas coisas. É o IVA a aumentar, exclusões de sectores de pessoas com problemas… Não existe um regime de federalismo político assumido: com eleições, governo, presidente da Europa, nada… Mas há uma dúzia de bancários e políticos de determinados países que jogam no mercado financeiro e impõem aos países determinadas medidas. Não lhe parece que podíamos aproveitar a Grécia para, pacífica e politicamente, começarmos a mudar as coisas? Era interessante. Essa racionalidade fazia sentido e julgo que os países que deviam ter logo aproveitado com a questão grega eram Portugal, Espanha e a Itália. O que eu acho inadmissível – e que os eleitores vão ter que punir estes governos nas próximas eleições – é que os governos de Portugal e Espanha não tivessem aproveitado, até porque sabemos que os ministros das finanças português e espanhol foram mais papistas que o Papa no Eurogrupo e isto significa que tanto em Portugal como em Espanha o que tivemos foram dirigentes partidários e não nacionais. Pensaram no seguinte: se conseguirmos ganhos por causa da Grécia, significa que toda a oposição que temos à nossa esquerda, vai ganhar as eleições porque vão perguntar porque não fizemos o que a Grécia fez. – É preciso que corra mal na Grécia para que nos corra bem a nós – é precisamente o discurso de Passos Coelho. [quote_box_right]“Os ministros das finanças português e espanhol foram mais papistas que o Papa no Eurogrupo e isto significa que tanto em Portugal como em Espanha o que tivemos foram dirigentes partidários e não nacionais”[/quote_box_right] Mas estes partidos do arco da governação são aqueles que defende… Não exactamente. A reforma do sistema partidário pode assumir várias dimensões. Falamos dos casos grego e espanhol, onde está a ver-se uma reforma ao lado dos partidos tradicionais. Todavia, julgo que também é possível vislumbrar uma reforma da parte dos partidos tradicionais. Podemos conceber um processo misto, com o aparecimento de partidos convencionais que sejam capaz de dar a volta e ajustar contas com o seu passado, renovando-se, com novos partidos. No caso português, temos no espaço da direita uma certa renovação, com uma coligação que vai aguentar até ao fim e que vai partir outra vez para as eleições. A direita foi capaz de fazer uma coisa que a esquerda tem muita dificuldade em fazer, que foi unir-se, sempre com a perspectiva da manutenção do poder. Em relação à esquerda, vejo dois partidos mais pequenos – o PCP, que é um partido clássico que mantém basicamente as mesmas posições e o BE, que está numa posição de grande incerteza em relação ao futuro –, o aparecimento de uma força que vai disputar votos à esquerda, à direita e ao centro – que é Marinho Pinto – e a questão do PS, que é um grande enigma. Aparentemente, teria condições para se renovar e até produziu, com a equipa de Seguro, as primárias – que era um desígnio já muito antigo –, mas está a ser perturbado por uma grande dificuldade em não apenas calibrar o seu discurso programático mas também da narrativa do seu passado. A situação de ter um ex-primeiro-ministro preso não facilita a situação. Um dos grandes problemas do PS vai ser conseguir a demarcação muito clara relativamente à figura do anterior primeiro-ministro, mas também do método de fazer política que foi predominante durante esse período. As Legislativas 2015 estão à porta e há a possibilidade do Governo mudar. Em que medida é que uma possível alteração de partido poderia influenciar a forma como Portugal se posiciona na Europa? Julgo que a verdadeira escolha está, essencialmente, na compreensão de que a nossa política doméstica é hoje política europeia, tal como para Espanha, Grécia ou Itália. Qualquer possibilidade de contrariarmos a austeridade, que tem feito cair o investimento público a níveis tão baixos que só têm paralelismos históricos se recuarmos décadas, de ter capacidade para lutar contra a fragmentação financeira da UE, que faz com as nossas empresas tenham condições competitivas piores do que empresas da Europa Central… Tudo isto só será possível mudando as regras do jogo europeu. A melhor política que um novo governo pode fazer, pelo bem do nosso país, será a de dialogar extensivamente com forças de outros países. Temos algum tempo, mas não temos todo o tempo do mundo, partindo do princípio que a situação da Grécia não vai escalar muito mais. Aquilo que temos mesmo discutir é a questão do tratado orçamental e a minha posição é radical: este devia ser abolido, porque é um instrumento que não serve à UE. Se tivermos que encontrar uma posição intermédia, teremos que rever aquelas metas absolutamente irrealistas do défice e da dívida pública que nos condenariam a uma austeridade por, pelo menos, mais 20 anos. [quote_box_left]“Um dos grandes problemas [do PS] vai ser conseguir a demarcação muito clara relativamente à figura do anterior primeiro-ministro, mas também do método de fazer política que foi predominante durante esse período.”.[/quote_box_left] Disse que Portugal não tem uma lógica de projecto colectivo. Em que medida seria possível contornar esta sua ideia? Maurice Duverger dizia uma coisa muito interessante quando aderimos à UE: ao entrarem na comunidade europeia, vocês, portugueses, parecem estar a reformar-se da História. Isto significa que Portugal não amadureceu suficientemente o seu desígnio estratégico, depois de termos rompido com uma tradição secular. A maioria dos portugueses e políticos não se apercebeu da mudança sísmica da revolução de 74: é que, nesta altura, não nos limitámos a substituir uma ditadura por um regime de democracia representativa. Já a tínhamos tido na Primeira República e na Monarquia. Em 74 interrompemos um ciclo em que a nossa identidade estratégica dependia de um apoio externo, que era o imperial. Em 74 estava em causa precisamente esta questão: onde é que vamos buscar este apoio externo? O país continuou a precisar disso… Adriano Moreira diz isso e eu apoio. Julgo que a Europa foi isso mesmo, mas não fomos capazes de perceber que a Europa era um espaço de luta e não de repouso. Devíamos ter negociado os termos de amarração na Europa. Uma espécie de projecto nacional, como houve com os Descobrimentos… Resumimo-nos agora à selecção nacional de futebol e, esporadicamente, tivemos Timor, que foi um caso de sucesso. Exacto. O falhanço nacional principal foi o Tratado de Maastricht. Em 1986 a negociação e as condições de entrada foram bem conseguidas. O que a democracia conseguiu não é nada que o Estado Novo não tivesse já pensado, até porque o primeiro pedido de adesão à comunidade europeia foi feito em 66, e não foi com Marcelo Caetano mas sim com Salazar, que pediu a adesão discretamente. Foi De Gaulle que se opôs porque tinha acabado de criar a sua política agrícola comum. Olhou para Portugal e pensou que era um país pequeno mas demasiado parecido com França: tinha muito agricultores. A vocação europeia não é nenhuma descoberta democrática, mas sim lógica. Haveria outras alternativas? De entre várias outras, há um projecto mais audaz, que seria o de uma união lusófona, que faria de Portugal um país descentrado da Europa, com uma base europeia, mas fundamentalmente centrado em África, que era o projecto de Norton de Matos. Nova Lisboa era o embrião de uma capital em África, o que seria uma experiência absolutamente extraordinária. O que falhou? O que falha actualmente: não se pode fazer isto nem um regime federalista sem democracia plena. Julgo que a actual crise que estamos a viver é também um momento para um despertar da nossa consciência nacional, de não estamos condenados à fatalidade, de pensar o país como um processo de venda a saldo do capital construído, dos bens imóveis, até que não exista mais nada. Este governo tem vendido tudo aquilo que constituía um suporte da nossa capacidade de autonomia em caso de sermos obrigados a seguir o nosso destino. No fundo, o nosso país está a ficar um país de assalariados. [quote_box_right]“Temos que estreitar a cooperação com os PALOP, mas Portugal não pode pertencer a uma lusofonia mais forte se não tiver alguma coisa para oferecer. Devemos manter o projecto europeu, porque o que nos valoriza junto dos moçambicanos, brasileiros e angolanos é a nossa pertença à Europa.”[/quote_box_right] O investimento chinês tem estado particularmente presente na área de investimento português. Como vê a influência da China em Portugal e que futuro augura? A China é claramente uma potência que tem uma visão estratégica mundial, já não é só asiática, e também não tem estados de espíritos: partidos republicanos e democráticos, políticas conjunturais, nem presidentes burros ou inteligentes… Tem um projecto estratégico de décadas. Outro aspecto: a China não faz caridade e está a investir em Portugal porque neste momento é um bom negócio com empresas bastante válidas e estruturas lucrativas. Parece-me também que na perspectiva de projecção de poder no mundo, a China prefere a aliança e a parceria ao confronto e à dominação. Estando nós numa situação tão incerta e insegura em que a nossa permanência na zona Euro pode estar em perigo, é conveniente termos outras amarrações geopolíticas e geoestratégicas do ponto de vista económico com outras zonas do mundo. Temos que estreitar a cooperação com os PALOP, mas Portugal não pode pertencer a uma lusofonia mais forte se não tiver alguma coisa para oferecer. Devemos manter o projecto europeu, porque o que nos valoriza junto dos moçambicanos, brasileiros e angolanos é a nossa pertença à Europa. Como aos olhos da China… Faz todo o sentido fazermos parcerias com a China em vários sectores e talvez se tenha exagerado um pouco na percentagem de capital de cada sector que foi negociado e a culpa foi do nosso Governo. A Índia é também muito importante, mas os EUA também não devem ser esquecidos, tal como outros países. Diria que, à semelhança do que a região de Macau representa, também no que diz respeito ao investimento chinês em Portugal, o governo que vem a seguir deverá manter uma boa cooperação com a China. com Leonor Sá Machado leonor.machado@hojemacau.com.mo
Carlos Morais José EditorialAs lições do passado [dropcap style=’circle’]J[/dropcap]untar “comunidade portuguesas” ao dia de Portugal e de Camões (bem como tirar-lhe a Raça) foi uma excelente decisão. Afinal, o nosso vate também foi um exilado, um homem basicamente expulso do país, um território onde para ele não havia lugar e onde haveria, no regresso, de definhar à míngua, mesmo depois de reconhecida a sua genialidade. Portugal de modo nenhum se reduz ao pequeno rectângulo. É muito maior, muito mais vasto e mais onírico do que isso. Os portugueses não pertencem a uma etnia, fazem parte de um povo que inclui todo o tipo de gente, com as mais diversas origens étnicas. Tal teve a ver com o facto de termos saído, mas também com a realidade geográfica do país. Sendo o último da Europa para Oeste, foi durante vários séculos uma espécie de fim do mundo, onde vinha parar todo o tipo de gente. Dali não podiam passar, a não ser em sonhos. E talvez tenham sido esses sonhos que nos lançaram numa das aventuras mais ousadas que Humanidade experimentou. Os portugueses foram os autores da primeira globalização, quando mostraram que era possível o contacto entre todos os povos do planeta. A segunda globalização veio tornar esse contacto imediato. Bem sabemos da importância das novas tecnologias, mas alguém se lembra da importância de mudar os hábitos alimentares de toda a gente com o transporte de plantas alimentícias como fizeram os nossos navegadores? Pouco importa o passado, dizem-nos. Glórias de antanho não nos resolvem os problemas que hoje defrontamos, afirmam. Será que não? Será que não existem lições a tirar da História que sejam úteis na interpretação do presente? Parece-nos que sim. Parece-nos, aliás, que existem tantas lições que nós hoje temos medo de olhar para elas e corar no confronto com a audácia e a inteligência dos nossos antepassados.
Carlos Morais José EditorialHá uma noite sobre nós [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á uma noite que se abateu sobre Portugal. Um tempo escuro, baço e sem sombras, do género que limita os homens e faz temer as mulheres. As avenidas prolongam-se e parecem sem saída. Ao longe, ao que parece na Grécia, ruge uma inclemente tempestade. Nem sempre a noite é alcova de visões. Por vezes, não passa de uma sucessão de pesadelos, de cavalgadas infernais e não se vislumbra uma saída, um oásis, um mero repouso que não sejam as mentiras dos políticos. Antes a noite dos que ousam proclamar, imprecar, invectivar as iniquidades, a noite dos que no negro profundo das noites ainda sonham sonhar um país sem pátrias, uma sociedade sem amos, um planeta sem deuses nem os seus ciúmes. [quote_box_left]Nem sempre a noite é alcova de visões. Por vezes, não passa de uma sucessão de pesadelos, de cavalgadas infernais e não se vislumbra uma saída, um oásis, um mero repouso que não sejam as mentiras dos políticos.[/quote_box_left] É fácil sonhar Portugal, atribuir-lhe características, destinos, trejeitos, salvações. E é fácil porque ele já não passa de uma ideia, de um belo constructo, de um “ir” aéreo, veloz, fazedor. Há partir e há sair. Há fugir, também. Como há rir e refulgir e todos acabam em “ir”. Porque há que ir, há que ser ar e por vezes vento, o elemento veloz, global, o da presença total, a levar sementes e pólenes vários pelas várias esferas. Ser português é ser da ideia, a que dizem ser plebeia: a de Camões, de um povo não de um herói. Povo repartido por partidas pregadas pelo mundo. Viemos de livre vontade? Eu nunca fui cobarde e não soçobrarei — assim se manifesta a grei. Há uma noite sobre nós. É espessa e difícil de enxotar. Somos filhos de uma alcateia expulsa daquela serra. Houve por lá um incêndio. Ainda arde. Os sinos repicam mas acolhem o chamamento. Repara-se agora não haver ninguém realmente capaz de o apagar.
Carlos Morais José EditorialUma comunidade [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] que somos e para onde vamos ninguém sabe. Mas de onde vimos, isso é para nós claro como os céus índicos que algum dia um de nós teve de cruzar. Vimos de Portugal. Nesta, em gerações anteriores, de avião, de vapor ou caravela, foi ali que tudo começou. E isso tem um significado, um sentido, uma responsabilidade. Quais são exactamente, em cada caso, em cada homem e cada mulher, só cada um de nós perfeitamente sabe, por se tratarem de paixões intransmissíveis. Bem podemos reduzi-las a aspectos como o mar, o fado, o ardor da planície alentejana, o bacalhau seco, a saudade, a fogosidade minhota, a bonomia algarvia, o peito feito do Porto, o pastel de nata, o sol moribundo na falésia, as noites de Lisboa, o “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”, a penedia serrana ou transmontana. [quote_box_right]Somos aqui uma comunidade devedora da História, de todos os que, nas suas pegadas, nos permitem calcorrear esta terra estranha feita família. Mas tal só deve ser entendido como dever de entender o presente e transformá-lo (nunca apenas interpretá-lo) no lugar onde nos é permitido viver.[/quote_box_right] Elas nunca serão somente isso. Como não serão apenas as ruas calçadas do Brasil e o dialecto luso, que escorre daquelas bocas como se nunca fôra mel, ou uma peça de patuá em Macau, eivada de brejeirice alfacinha. Somos tenazes. Ou porque não temos outra alternativa ou porque somos mesmo assim. Somos carraças. Quando vimos é para ficar, para nos reproduzirmos. Porque temos o excesso de julgar o mundo de todos e para todos, como virá a ser no futuro. Somos aqui uma comunidade devedora da História, de todos os que, nas suas pegadas, nos permitem calcorrear esta terra estranha feita família. Mas tal só deve ser entendido como dever de entender o presente e transformá-lo (nunca apenas interpretá-lo) no lugar onde nos é permitido viver. Aqui, sob a sombra de tantos, permanecemos no espaço ideal, hoje, para a construção do que está por vir. Por Macau tudo passa, ainda que só passe a sombra, o sintoma, a micro-referência, impossíveis de obter em qualquer outra partida do mundo. É um trabalho de atenção, de caçador ou pescador, na floresta ou no aquário global. A nossa comunidade sabe disto, mesmo que de tanto não esteja plenamente consciente. Há um monstruoso trabalho por fazer, tarefas hercúleas que instituirão o planeta de amanhã. É a nossa madrasta terra ou temos o mundo por sentença? A resposta está dada mas tudo se simplifica, tudo se ilumina, quando essa resposta é dada por cada um de nós.