Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDa arte do romance [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] de repente um tipo mete-se a escrever um romance e, mal passa das dez páginas sobre as quais alimenta as maiores dúvidas de que se aproveite uma linha que seja, começa a sentir um arrependimento tal que só não enfia o portátil na banheira e os dedos no liquidificador porque cometeu a imprudência de ter dito a todos os amigos que “agora é que é, vais ver, é uma ideia tão tão boa que não pode falhar”. Quando entra no terceiro capítulo, sói não raramente fumar mais do que escreve – acaso tenha a sorte de ser fumador e não dependa das unhas ou das cutículas para minorar a ansiedade – como consegue ter um vislumbre bastante adequado do que poderá ser uma vida em permanente desequilíbrio hormonal. Enquanto tenta manter a coerência interna do livro, luta com a sintaxe, com a adjectivação que lhe parece ora excessiva ora incipiente, com todas as palavras permanentemente ao lado e para as quais não consegue encontrar sinónimos, com a temperatura, sempre inadequada, com o sono, sempre a destempo e, sobretudo, com a ideia pela qual se enamorou e que lhe parece tão idiota naquele momento como lhe parecia genial antes de a começar a trabalhar. Quando alcança o que lhe parece ser o meio do livro e com alguma sorte, já está em velocidade de cruzeiro e a demanda assemelha-se mais um trabalho das nove às seis do que a um acto criativo. Está com vinte quilómetros nas pernas, faltam outros vinte e não há tempo para pensar em como ou porque se encontra ali. Pensar é parar e ele precisa de correr, porque já faltou mais. É isso: já faltou mais. De vez em quando acontece fado: um parágrafo, uma imagem e, por vezes, toda uma página. O tipo trava, relê, e sorri e, deste modo, ganha um fôlego renovado para continuar. “Não sou assim tão merdoso”, pensa. Inebriado pela resistência que demostra ao desgaste que provavelmente já lhe custou uns quilos, toda uma temporada do Narcos e até o afecto dos gatos, o tipo prossegue, preocupado apenas com a corrida: já não há como voltar atrás. Anos mais tarde, arrependido com “aquela merda incipiente que só fazia sentido naquela altura em que ainda não tinha adquirido de facto a minha voz” vai desejar ter podido voltar atrás. Ou mandar tudo às malvas na altura certa. Só consegue ver onde está. Não consegue ver o caminho que percorreu. Quando está perto da meta já vai muito cansado. Não é um cansaço físico, malgrado comer e dormir cada vez menos e lhe doerem as nalgas independentemente da posição que adopte – já experimentou de pé, mas cedo percebeu que trocava uma dor por outra –, é outro tipo de cansaço, uma espécie de incremento na gravidade que faz com que todos os movimentos tenham um custo e um peso acrescidos. Respira fundo e esfrega os olhos. De vez em quando, dá por si a contemplar um ponto na parede ou uma nódoa na toalha de mesa. Não sabe quanto tempo esteve ali sem o estar. Só há uma coisa que lhe devolve algum alento: fazer scroll até ao início do texto e voltar. É o equivalente a engolir uma generosa golfada de ar para ir ao fundo. Antes de colocar o derradeiro ponto final, imagina todas as versões alternativas e porventura mais equilibradas, mais originais, mais desafiantes, ou seja, tudo menos aquela. Quando finalmente se decide (desiste) vê o mundo a apanhá-lo antes mesmo de poder respirar: a caixa do correio atafulhada de contas e ameaças de despejo, o frigorífico onde há muito só habita uma abóbora que já é bisavó de um esporo em idade universitária e os gatos, lentos e magros da fome, que não lhe passam cavaco nem quando ele abre uma lata de atum. Diz que nunca nunca mais. Passados apenas uns meses, enamora-se de outra ideia.
Carlos Morais José h | Artes, Letras e IdeiasA dor que deveras sente “De la musique avant toute chose” In Orphão [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]averá uma frase de Borges que nos remete para o devaneio de na poesia se encontrarem contidas a música e a pintura, pois a sucessão de palavras – para além das ideias – conteria ritmos, melodias e imagens. Deixando, por ora, de lado a vertente contemplativa e considerando unicamente a música, não será difícil atribuir o carácter encantatório do fluir poético à existência de uma musicalidade no poema, seja ela derivada da sonoridade das palavras ou do modo como se entrelaçam, para depois se sucederem as imagens e os conceitos. Existe na poesia um efeito vibratório, musical, onde reside, se não o seu principal pólo de interesse, pelo menos a fonte de parte considerável do seu fascínio. “Os estímulos visuais”, refere Ester de Lemos, “não escapam tão facilmente à vigilância da razão, não são tão facilmente encarados em si mesmos como os estímulos auditivos, sobretudo os musicais.” (Lemos, 1956, p. 30) Se a música escapa à vigilância da razão, ela será o meio excelente para arrebatar, para suster essa poesia que “eleva cada indivíduo através de uma ligação específica com o todo restante.” (Novalis, 2009, 121). Este carácter sintético da poesia, em grande parte ancorado nessa musicalidade, não deverá ser entendido como referido à dialéctica, que entende um momento de negação, mas a um mero gesto de apropriação criacionista, capaz de proporcionar polaridades outras e sistemas de leitura, o que equivale a dizer reinventar universos e abrir uma miríade de possibilidades à expressão da vida. A síntese, na dialéctica, exprime, afinal, o culminar do processo de aculturação; no criacionismo, a função da negação, fundamental na construção da identidade, só estará presente na expressão poética como condição de sinceridade do media, como se pretendesse operar uma regressão a um estado anterior onde a graça da criança (das três metamorfoses de Nietzsche/Zaratrusta) lhe permite apoderar-se do mundo num golpe. Não se tratará, contudo, de uma regressão propriamente dita mas de uma reaquisição — a saudade é do futuro. Se, para Rousseau, a primeira linguagem era poética tal seria no sentido em que uma palavra dessa primitiva língua encerraria muito mais sentidos que o seu significado literal (ou que este não existiria e muitos significados estariam contidas numa palavra só) e os homens de antanho falariam basicamente por metáforas, abarcando assim mais do mundo do que eles próprios poderiam compreender, sendo a Língua o repositório de um saber que os próprios indivíduos que a falavam apenas entenderiam parcialmente. A poesia inscreve-se numa ânsia de apropriação do mundo e dos seus sentidos ocultos, num claro sentir filosófico em que, para além da vibração musical (mas também em ela), o poema expressa uma visão, eventualmente, o esboço ou o castelo final de uma qualquer metafísica. É com o primeiro Romantismo que poeta e poesia exacerbam esta ânsia, assumindo o conceito poético que elevará o “homem acima de si mesmo”. Trata-se, no dizer de Novalis, de uma poesia “transcendental”, que é “mesclada de filosofia e poesia”, e que prefigura a dissolução dos sistemas filosóficos, na medida em que “se o filósofo ordena tudo, coloca tudo, então o poeta dissolveria todos os elos. As suas palavras não são signos universais — são sons — palavras mágicas, que movem belos grupos em torno de si”. Novalis remataria: “Quando mais poético, mais verdadeiro”. Parece então que com o Iluminismo, o poeta visa ultrapassar o mero papel mediador do xamã para aspirar a ser ele mesmo – através dessa transcendentalidade que lhe proporciona o pensamento filosófico e mesmo a ciência – uma fonte de permanente problematização, expressão radical da vida mas também das volutas do espírito, sem abdicar também do modo – mágico – como eventualmente recuperará alguns restos dessa linguagem primordial, onde se rebatiam os mistérios do mundo e das coisas. Pessanha e as “nobres especulações do espírito” Sem deter o exclusivo ou sequer a preponderância, poesia e filosofia particularmente se entrelaçam no espaço da Língua Portuguesa, por razões que talvez passem pelo defeito da segunda e o excesso da primeira. Após o milagre grego, raramente o Sul produziu um assertivo pensamento lógico, mas as preocupações metafísicas, lidas através dos penetrantes filtros da experiência do mundo e de particulares sensibilidades, cedo se imiscuíram em temáticas versejadas. Já em Camões, para não irmos mais atrás, ao vate, ao cantor épico, se sobrepunha o homem dilacerado pela dúvida, onde o recurso à mitologia soa – além da epocalidade renascentista – ao desespero de constatar uma diversidade percorrida, revivida, recebida e, por tanto, a intuição de um mundo desencantado. Na segunda metade do século XIX, a presença cimeira de Antero de Quental – o que “ensinou a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade de que o ser imbecil não é indispensável a um poeta” (Fernando Pessoa) –, com certeza deu um tom definitivamente filosófico à expressão da poesia lusófona e talvez poético à filosofia pensada em Português. As crises, civilizacional na Europa e muito específica em Portugal, na sequência do Ultimatum britânico, eram demasiado profundas e dolorosas para que os poetas se limitassem aos devaneios dos salões, às rimas de ocasião, enfim às actividades dos que Pessanha define como “essa legião de poeta mínimos, cuja pobre musa toda a sua fecundidade esgota na concepção de cem páginas de lirismo”. Como explica Gustavo Rubim, Camilo Pessanha critica a poesia como “uma expressão directa dos sentimentos, das sensações ou da experiência vivida do poeta e opõe-lhe uma concepção mais abstracta que inscreve o discurso poético no campo das ‘especulações do espírito’”. Ora para sustentar a filosofia no discurso poético, para lhe garantir o carácter especulativo, implica, como diz o autor de Experiência da Alucinação, “uma certa dimensão impessoal” (Rubim, 1993, 142). Ou seja, o que Fernando Pessoa já exprimia, quando escreveu este revelador apontamento: (…) A cada um de só três poetas, no Portugal dos séculos XIX a XX, se pode aplicar o nome de «Mestre». São eles Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha. (…) O terceiro ensinou a sentir veladamente*; descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas os simples sonhos dele. Estas palavras que não são nada bastam para apresentar a obra do enorme poeta Camilo Pessanha. O mais, que é tudo, é Camilo Pessanha.” Este “trazer nas mãos os sonhos do coração” implicará um duplo distanciamento: uma consciência primeira que, se bem que sob o filtro da sensibilidade, exige a exterioridade; e uma exterioridade que permite a reflexão distanciada. O poeta adquire esse distanciamento em relação a si mesmo (ao lirismo óbvio) e a possibilidade de contemplar (teorizar) o que detém agora nas mãos, operando uma espécie de processo alquímico de destilação, decantação e, finalmente, sedimentação – de sensações, sentimentos e ideias – nas palavras finais do poema. Isso é de tal modo presente em Pessanha que, mesmo quando produzia “os seus poemas por uma premente necessidade espiritual”, fazia-o “numa atitude eminentemente intelectual (…) vivendo e revivendo o sentir dos momentos de concepção poética.” (Dias Miguel, 1956, 185) É então a poesia o canto desses sonhos do coração? O que são eles? Parece-nos que Pessoa se refere, quase falando numa linguagem gémea da de Pessanha, a um processo poético. Curiosamente (e tal não deverá passar de uma coincidência), no pensamento tradicional chinês, seja ele confucionista ou daoísta, o coração (xin) é a entidade onde residem as emoções, os desejos, os sentimentos, o pensamento e a moral, ou seja, ali se entrelaça toda a fenomenologia da existência interna dos seres humanos. Se entendermos coração neste sentido, teremos então o indivíduo e todos as seus rizomas culturais nas mãos. Mas Pessanha, por outro lado, entregava-se “ao trabalho do aperfeiçoamento da expressão, preocupado até à angústia com o sortilégio e a magia verbal, condensando e polindo de tal modo, que muitas vezes obscurecia quase totalmente o sentido biográfico e directo que tinham essas poesias”, nas palavras de António Dias Miguel. (Dias Miguel, op.cit.) Assim se revelam a existência de uma matriz filosófica e uma a exigência de distanciamento biográfico, a par com a demanda extrema da musicalidade. Seguindo estas referências, parece inegável que a reflexão filosófica ocupa um lugar fundamental na poesia de Camilo Pessanha. Ainda que nem sempre explícita, a sua concepção do mundo constituiu, talvez de forma dolorosa, uma das principais episteme onde a sua poesia lançou raízes e a partir da qual se desenvolveu. A pergunta e o gelo Já em 1887, no poema Soneto de Gelo, o poeta explicitava algumas das preocupações derivadas do seu dispositivo ontológico: (…) “Eu mesmo quero a fé, e não a tenho, – Um resto de batel – quisera um lenho, Para não afundir na treva imensa, O Deus, o mesmo Deus que te fez crente… Nem saibas que esse Deus omnipotente Foi quem arrebatou a minha crença” Ou seja: a ausência da fé, uma existência num mundo sem Deus e, consequentemente, a morte como fronteira de dissolução do indivíduo. O poeta quisera uma pequena prova, ainda que só “um lenho”, de “um resto de batel” (a barca, baraka — animal fantástico, montada de Abraão e Maomé, que na mitologia islâmica opera a comunicação entre dois mundos), algo onde se suster, que o não deixe “afundir na treva imensa” de um universo vazio de sentidos divinos ou de quaisquer outras satisfatórias respostas. É precisamente essa “treva imensa”, o segredo insondável, que provoca no poeta o início de uma profunda dor metafísica, quase revolta contra a divindade pelo seu silêncio/inexistência e sua consequente falta de fé. Se foi Deus “quem arrebatou a minha crença” é porque o estado de descrença é anterior ao próprio advento do raciocínio científico-filosófico ou da intromissão da cultura. É certo que a falta de fé surgirá também como decorrente do próprio ZeitGeist, da posição do poeta num dado momento civilizacional. É a religião na qual foi educado, as relações familiares, a escola frequentada, o valor atribuído ao conhecimento científico, a sociedade emergente, enfim, o conjunto global de valores e procedimentos que constituem uma Cultura num determinado momento da História, que tornavam problemática a existência de Deus. Mas Pessanha parece afirmar que sente a sua descrença, de algum modo, anterior, constitutiva e fatal, porque lhe foi arrebatada por Deus, o que não deixa de exalar uma paradoxal ironia. A extinção da crença resultará como anteriormente resultava a sua afirmação: sem que o sujeito nela tenha uma real intervenção. Pessanha assume neste poema o seu ateísmo como condição (dolorosa) e não como decisão consciente. Até porque o novo universo, dessacralizado, não lhe fornece respostas. Simplesmente, efemeramente o admite, na sua fria indiferença, sem proporcionar qualquer consolo às angústias fundacionais dos humanos. O poeta refere esse mal-estar matricial no poema Estátua: Cansei-me de tentar o teu segredo: No teu olhar sem cor, — frio escalpelo, O meu olhar quebrei, a debatê-lo, Como a onda na crista dum rochedo. Segredo dessa alma e meu degredo E minha obsessão! Para bebê-lo Fui teu lábio oscular, num pesadelo, Por noites de pavor, cheio de medo. E o meu ósculo ardente, alucinado, Esfriou sobre mármore correcto Desse entreaberto lábio gelado: Desse lábio de mármore, discreto, Severo como um túmulo fechado, Sereno como um pélago quieto. O cansaço de procurar de respostas no olhar – acto que remete para a contemplação, a teoria –, dá lugar à ousadia do beijo – acto amoroso, a poesia. No primeiro caso, a contemplação esbarra e quebra-se “como a onda na crista de um rochedo”. No segundo, produz-se um esfriamento do que era “ardente, alucinado”. Ou seja, nem a razão consegue penetrar o insondável; nem um extremo desejo e uma vitalidade transbordante obtêm outro resultado que não seja a sua própria dissolução. Em ambos os casos, sobrevém uma existência assombrada pelo silêncio. Emana, de facto, deste poema uma sensação de horror perante um universo feito estátua, em cuja indiferença nem Razão nem Vida penetram. Estátua porque, se bem que gelado e silencioso, de olhar sem cor como as estátuas gregas, ainda assim, tal como a escultura clássica, o universo não deixa de exibir uma certa ordem e exalar uma profunda beleza. Tal acentua o sofrimento do poeta perante a impossibilidade de – não de o conhecer – mas de beber esse segredo. Não serão os conhecimentos científicos, racionais, que trariam satisfação a Camilo Pessanha, pois estes nem de perto pretendem responder às questões que o habitam. Mas, mesmo face às suas ousadias, de pesadelo, nada acontece a não ser o esfriamento perante a gravitas de um “túmulo fechado” ou de um “pélago quieto”. Pessanha habita um universo novo, que a ciência descreve através das teorias quânticas, do princípio da incerteza, da transformação sucessiva de matéria em energia e de energia em matéria, em que a própria matéria não é mais que uma vibração ou ondulação, obediente a ritmos misteriosos, desconhecidos mas dessacralizados. Não será também o uno conceito de Vontade, de Schopenauer — como tem sido repetidamente afirmado por uma ligação rápida ao dito pessimismo do alemão —, que aqui estará em jogo. Não existe uma Vontade (conceito eivado de metafísica), mas um palimpsesto de forças, de energias, de vibrações, num universo em que as formas se limitam uma existência efémera como no poema “Imagens que passais pela retina dos meus olhos / Porque não vos fixais?”, em que tudo é transitório e de sentidos vagos. Os “olhos pagãos” somente vêem os “sucessivos desertos”. E nem a sua presença deixará qualquer rasto: “Fica sequer, sombra de minhas mãos”. No lugar de Deus não existirá nada, sequer faz sentido o panteísmo de Espinosa. A ideia de um ser divino, antropomórfico ou disseminado, dará lugar a esse resfolgar contínuo de todas as coisas, essa dimensão pulsante que permite supor a existência de um ritmo primordial, incessante, inesgotável, sem face nem propósito, sem leis morais, mera energia e mera matéria, em permanente metamorfose, como o poeta sussurra ainda no seu leito de morte, à laia de despedida: “Tudo podridão… tudo matéria…” E podridão, o leitor do Octave Mirbeau de “O Jardim dos Suplícios”, novela passada em Cantão no século XIX, que Pessanha certamente era, sabe que significa metamorfose. Num plano mais pessoal, é a ausência de uma consciência divina que torna fútil a crença num destino, dando ao indivíduo a sensação solitária de à toa marear na vida, tornando-a também a ela fútil e levando à invocação da morte como acto estético último, no sentido borgesiano da iminência de uma revelação que não se produzirá. Enfim, levantou ferro. Com os lenços adeus, vai partir o navio. Longe das pedras más do meu desterro Ondas azuis do oceano, submergi-o. Que eu, desde a partida, Não sei onde vou. Roteiro da vida Quem é que o traçou? (…) A sensação de inutilidade da vida (“Foi um dia de inúteis agonias”… “Floriram por engano as rosas bravas…”) percorre a obra de Pessanha. A vivência num mundo desencantado, sublinhada pela decadência do país, estriba-se numa ontologia melancólica, onde a aura materialista acaba por ser, em confronto com a sensibilidade do poeta, fonte de uma inextirpável dor. Camilo Pessanha será um daqueles primeiros homens a ter nascido no mundo de um Deus morto (Nietzsche), mas onde a estrutura religiosa se encontra profundamente imiscuída na Cultura e mantém a sua influência noutros domínios que não o filosófico. Por exemplo, nesta linha, Michel Onfray, no seu Tratado de Ateologia, classifica de ateísmo cristão o pensamento dos homens oitocentistas que não acreditam na existência de Deus, mas cuja moral se rege pelos valores do cristianismo. No caso de Pessanha – também porque a sua poesia mergulha “as suas raízes no húmus natal” – existirá, não uma moral cristã, mas uma estética primeva que não dispensa uma concepção divina, um plano do mundo. É, sobretudo, em termos estéticos, imagéticos até, com todas as suas consequências, que esses arquétipos assombram Pessanha. Ele recorre aos mitemas da sua cultura, claramente perturbantes, para exprimir o seu desvanecimento no mundo contemporâneo e também na sua própria sensibilidade. Tal procedimento é recorrente quando o poeta se refere, por exemplo, a figuras femininas, segregando imagens como “Magra figura de vitral…”, “Madalena, cabelos de rastos…”, de nítida influência religiosa ou, num registo mais rural, mas igualmente irreal: a alma de sua mãe, pela neve, a mendigar à porta dos casais. Repare-se ainda no poema Transfiguração: Mulher forte, remiu-me a tua prece: Penitente, pagão, bem lusitano Ergo os braços ao céu quando anoitece. Judas divaga, em espiras de pecado Eis-me o Verbo de Deus, sacramentado No rebuço dum capote alentejano. A mulher (origem, cultura) fica como repositório da crença, que eventualmente, à la Pascal, o redimirá. Mas ele é Judas (traidor, em pecado) e mesmo quando poeta, expressão divina, “sacramentado”, acaba rebaixado à banal, prosaica, desencantada condição de existência “no rebuço dum capote alentejano”. Fusão ou barbárie Uma das consequências principais de um universo dessacralizado é o surgimento da morte como espaço de dissolução do indivíduo. Deus existiu moribundo na poesia do século XIX, até encontrar a sua mais desesperada e última expressão no satanismo, que precedeu o nosso poeta. Tais caminhos mostraram ser becos sem saída, meras expressões contingentes de um problema que cavava mais profundo que uma inversão, na qual, afinal, se declarava um amor supremo edipianizado. E não seria por aí que Camilo caminharia. Como refere Rubim, a partir da crítica do poeta ao livro Flores de Coral, de Alberto Osório de Castro, nele a vida surge como “uma consequência lógica” da morte, a vida significa a morte, uma não é a negação da outra. “De que havia pois de lamentar-se, ou contra o que havia, pois, de insurgir-se, se a morte é, em relação à vida, não só o termo fatal, mas também a consequência lógica?” Contudo, Pessanha não deixa de considerar a morte como algo de fatal, a par com uma consequência lógica. Daqui se entende a concepção da vida — apenas porque no humano existe à partida o conhecimento antecipado do fim —como fatalidade, embora esteja ausente o destino. O que parece aconchegar tal concepção da morte como dissolução do indivíduo, em que esta não passa de uma “consequência lógica da vida”, parece ser um desejo último de fusão com o Cosmos, finalmente de participação total, expurgadas que serão a consciência e a dor. Recortes vivos das areias, Tomai o meu corpo e abride-lhe as veias… O meu sangue entornai-o, Difundi-o sob o rútilo sol (…). Só o meu crânio, fique, Rolando, insepulto no areal, Ao abandono do simoun Que o sol e o sal o purifique. A morte será uma porta para a integração total no universo, integração que não será a de uma alma una mas da matéria que se transforma, de um corpo que se desfaz: “Róseas unhinhas que a maré partira… / Dentinhos que o vaivém desgastara… / Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos…” é o que sobra de uma vida e da “fúlgida visão, linda mentira!”. Poderá ser correcto afirmar que a biografia infantil do poeta, as suas desilusões amorosas e mesmo a sua frágil saúde terão sido razões importante para conferir à dor um lugar de relevância nos seus poemas. Mas creio que, aquém e além das referências biográficas, fará sentido outorgar a esta dor metafísica – consequência da consciência da inexistência de Deus, do indivíduo após a morte e do Destino – um papel central na obra do poeta de Clepsidra. A dor que deveras sente De tal modo a questão da dor é central na poesia de Camilo Pessanha que o poeta a transforma em energia necessária, como se ela fosse o único instrumento que permitiria uma visão mais profunda do universo e, de um modo quase perverso, justificasse a existência humana: uma espécie de Sofro, logo existo, na medida em que seria um garante de Ser. Tenho sonhos cruéis: n’alma doente Sinto um vago receio prematuro. Vou a medo na aresta do futuro, Embebido em saudades do presente… Saudades desta dor que em vão procuro Do peito afugentar bem rudemente, Devendo ao desmaiar sobre o poente, Cobrir-me o coração dum véu escuro!… Porque a dor, esta falta de harmonia, Toda a luz desgrenhada que alumia As almas doidamente, o céu de agora, Sem ela o coração é quase nada: — Um sol onde expirasse a madrugada, Porque é só madrugada quando chora. Sem a dor, o coração, os tais sonhos, “é quase nada”. São as lágrimas que justificam a madrugada e sem elas o sol não seria sol, nele se extinguiria o que ele próprio proporciona. A importância atribuída à falta de harmonia remete para a frase de Rimbaud: “Finalmente, acabei por considerar sagrada a desordem do meu espírito”. No caso do poeta português, essa desordem é fruto da dor, mas é também fonte de iluminação, de uma percepção outra do mundo, como se fora um método poético de absorção mais intensa das coisas. Este poema é de 1888. Mais tarde, o poeta acabaria por rever esta posição como adiante demonstraremos. Ora a questão da dor fora colocada no debate filosófico, entre outros, por Soren Kierkegaard e por Nietzsche que, na sua Genealogia da Moral, a refere como a grande criadora de memória. O filósofo alemão evoca os grandes espectáculos públicos da dor: as matanças, as carnificinas, as execuções públicas e a tortura, a que a Humanidade tem paulatinamente assistido e cuja função, afirma, é precisamente a criação de uma memória; a dor como uma terrível mnemotécnica, que passa mesmo, em certas sociedades, por rituais extremos e pela inscrição dos corpos. Num plano individual, a dor também proporciona a memória e demarca os limites de acção dos indivíduos, mas a sua persistência, nomeadamente de uma dor metafísica, impele o sujeito para a reflexão filosófica e – pretenderão alguns – estende o campo de percepção a outras realidades. Tal fará, em Pessanha, que a dor seja invocada: “Saudades desta dor que em vão procuro / Do peito afugentar bem rudemente”. Repare-se no paradoxo: sente-se a falta (heurística) de uma dor que se pretende eliminar, porque ela é “a luz desgrenhada que alumia as almas” e o “céu d’agora”. Ou seja, a dor é ainda o que permite, no caos que desencadeia, um determinado conhecimento de si próprio e a intuição do universo. Veja-se o exemplo do poema Branco e Vermelho, no qual a dor se transmuta em luz, em lúcida febre e proporciona a visão, a contemplação do mundo. E é toda uma humanidade agrilhoada que o poeta nos descreve, atravessando um mundo deserto, futilmente explorada e temente de um castigo, seres viventes nos charcos do medo, que só a morte liberta do sofrimento. A dor induz o poeta a um estado de luminosidade/alucinação que lhe proporciona a visão da humanidade que desfila, açoitada ao ritmo dos seus versos. E que humanidade é essa? Um grande painel de sofrimento, de desconforto metafísico e também produto do crime cometido desde o alvorecer da História: a exploração do homem pelo homem. Claro que neste poema existem outros cambiantes, outros caminhos interpretativos, nomeadamente (uma vez mais) para quem se quiser referir a conhecimentos esotéricos e à importância do maniqueísmo (a oposição luz/trevas) no pensamento templário e maçónico, sabida que é a filiação de Pessanha à maçonaria. Contudo, cremos que esta filiação, longe de ser religiosa, passava precisamente pela recusa da Igreja e por uma tendência de fraternidade social. É sabido em Macau que a loja a que Pessanha pertencia não tinha um carácter teísta, bem pelo contrário. Dela fizeram parte conhecidos ateus e republicanos. Alma lânguida e inerme À medida que em Macau Pessanha vai adensando os seus contactos com o pensamento chinês, podemos vislumbrar nos seus poemas alguns pontos de contacto com a tradição oriental, nomeadamente eventuais influências daoistas. De facto, a concepção de um mundo heraclitiano, em permanente movimento, não andará muito longe da ontologia proposta pelo pensamento daoista, mas será sobretudo o retorno à pureza original, que todo o pensamento clássico chinês prescreve, que encontra nos daoistas um método que nos surge como próximo de certos versos do nosso poeta. Para o sábio daoista, deve o homem retirar-se do mundo, afastar-se para o ventre da terra onde, no silêncio, num processo de metamorfoses, comparável ao de uma crisálida, se transformará no Feto Imortal. O daoista alimentar-se-á na sua gruta, sugando as estalactites, como se fossem os seios da Terra. Pessanha abre precisamente a Clepsidra como o famoso poema Inscrição: Eu vi a luz em um país perdido. A minha alma é lânguida e inerme. Ó! Quem pudesse deslizar sem ruído! No chão sumir-se, como faz um verme… Ou mais à frente no mesmo volume: Porque o melhor, enfim, É não ouvir nem ver… Passarem sobre mim E nada me doer! — Sorrindo interiormente, Co’as pálpebras cerradas, Às águas da torrente Já tão longe passadas. — Rixas, tumultos, lutas, Não me fazerem dano… Alheio às vãs labutas, Às estações do ano. Passar o estio, o outono, A poda, a cava, e a redra, E eu dormindo um sono Debaixo duma pedra. (…) E eu sob a terra firme, Compacta, recalcada, Muito quietinho. A rir-me De não me doer nada. Ora não se trata aqui da morte mas de atingir um estado outro de consciência, em que a fusão com a Terra, que um psicanalista poderia atribuir a um desejo de fusão com a mãe, seria o passo principal para conseguir um determinado tipo de repouso, que eliminaria a dor. Gaston Bachelard, curiosamente no mesmo livro em que refere Lúcio Pinheiro dos Santos, um filósofo amigo do poeta de Macau, entende “o repouso como um dos elementos do devir”, que se inscreve no “cerne do ser, que devemos mesmo senti-lo no fundo mesmo do nosso ser, ao nível da realidade temporal sobre a qual se apoiam a nossa consciência e a nossa pessoa. (…) Que cada um, à sua maneira, se liberte das excitações de circunstância que o põem fora de si. (…) o ser libertar-se-á de um impulso vital que o afasta para longe dos objectivos individuais, que se desgasta em actuações imitadas. (…) A consciência pura aparecer-nos-á como uma potência de espera e vigia, como uma liberdade e uma vontade de nada fazer.” (Bachelard, 2006, V-VI). Estamos então perante uma espécie de quietismo como panaceia para a dor, fonte de iluminação e, no sentido referido por Gustavo Rubim, de alucinação, na medida em que a percepção do mundo se altera, se refina, se torna rítmica através da escuta aproximada do pulsar do pensamento e da própria matéria. Também nessa crisálida emerge, finalmente, um fio de voz, plena de consciência e de musicalidade, que dará origem ao poema. Não se trata, portanto, de um desejo de morte mas de obter um lugar excelso de compreensão do mundo que passa, como no daoismo, pela participação no todo, quase mineralização, onde a impessoalidade não significa necessariamente despersonalização mas, pelo contrário, a formação de um ser outro, como a borboleta Aurelia dos neo-platónicos de Alexandria, símbolo de uma nova sabedoria. Podemos concluir que o ateísmo de Camilo Pessanha não o conduziu a um beco sem saída, como o poema Estátua parecia anunciar. Pelo contrário, permitiu-lhe navegar por territórios desconhecidos, não se fechar na sua própria cultura e dotar a sua poesia de uma universalidade e de uma atemporalidade inegáveis. Quando nos subtraímos a essa ideia onde tudo cabe e que tudo explica, ficamos sós perante o Cosmos mas é precisamente nesse momento que se revela a tragédia e a beleza da condição humana, desse animal cujo dever é olhar o universo de frente, sem improváveis mediações, assumindo-se como filho das estrelas e do mar, assombrado pela ideia de infinito e orgulhoso por ser uma pequena chama no vasto incêndio do universo. BIBLIOGRAFIA CITADA Bachelard, Gaston. La dialectique de la durée. PUF: Paris, 2006 Dias Miguel, António; Camilo Pessanha – Elementos para o estudo da sua biografia e a da sua obra. Edição de Álvaro Pinto (“Ocidente”): Lisboa, 1956. Lemos, Ester de. A “Clépsidra” de Camilo Pessanha: notas e reflexões, Tavares Martins: 1956 Novalis. Fragmentos, diálogos monólogos. Editora Iluminuras: São Paulo, 2009. Rubim, Gustavo. Experiência da Alucinação – Camilo Pessanha e a Questão da Poesia. Editorial Caminho: Lisboa, 1993.
João Luz VozesTrabalhador Não Residente [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]NR, outrem, fantasma desprovido de cidadania trasladado pela força do labor. Sou a soma de todos os medos, bode expiatório dos males do mundo, o larápio de pão local. Nas palavras de um sublinhado provocador, “dizem que semeio o caos e a destruição como o vento semeia as papoilas”. Essa é a minha reputação. Porém, sou exactamente o contrário, vivo nas antípodas da percepção daquilo que projectam de mim. Procuro ser edificante, na total acepção da palavra, numa Macau que é uma construção de forasteiros. TNRs emprestam o músculo para fazer a cidade crescer em altura, estrangeiros investem deltas de cobre, gente de fora vem jogar e deixar o dinheiro que enriquece o território abraçado pelo sufocante e míope lótus. Já antes, Macau havia sido construída por outros, vivia do acasalamento entre interior e exterior. Muitas vezes com violência, como qualquer cópula que se preze. A existência é um processo de cooperação e partilha, o encerramento e a solidão só se revelam, no seu expoente máximo, na morte. Parece ser a isso que aspiram aqueles que me olham de lado, que desconfiam do estrangeiro que carrega maus presságios na bagagem. Em Macau tudo o que é mau é importado. Doenças são trazidas de fora para o seio impoluto da eterna saúde. Crime também é algo que transborda das fronteiras do medo para o interior desta imaculada comunidade de santos. Os maus costumes, a sarna, peçonhas várias, má condução de veículos, conduta sexual diabólica, erecções infames, mau hálito, caspa, tudo emanações exteriores. Nada me verga perante este tufão escala de ignorância 8, muito pelo contrário, aguento este vendaval com um esgar trocista. Pobres diabos, amedrontados pelo fantasma da concorrência, receosos de perder regalias, prioridades, na Macau que mima em demasia, que aburguesa e vive num oásis económico de pleno emprego. Aqueles que me temem, coitados, vivem presos à ineptidão de um umbigo que enclausura, dos horizontes encerrados na geografia de cárcere. Vivem num cativeiro auto-imposto. Daí o receio de quem tem o mundo por sua casa, as estrelas como tecto último, o horizonte como destino. Os meus braços querem o mundo, da mesma forma que a minha boca anseia pão e o meu equador as vossas filhas. A emigração faz parte da natureza humana, fundadora da inata curiosidade que nos move, desde os primórdios dos nossos tempos. Há mais de 200 mil anos, os primeiros humanos sentiram a vontade de partir, começava assim o engenhoso e a vontade de abarcar o globo num fôlego. Emigrámos do leste africano, daquilo que hoje é a Etiópia e lançámo-nos numa aventura sem fim, que nos está a levar hoje além do sistema solar. O nosso primeiro apetite é sair, numa eterna alusão uterina. Seguir esta pulsão é estar conforme à natureza, vogar à bolina, orçar o libidinoso contacto dos elementos em direcção ao mais sublime dos portos. Reconhecer este desiderato requer elevação, saber receber é um exercício de nobreza, aquilo que traça a distinta linha entre um anfitrião e um selvagem com medo da própria sombra. Há muito que deixámos para trás o passado neandertal, mas ele persiste resiliente e traz o Homem à sua condição ancestral de prisioneiro na platónica caverna. Mesmo sem grande vontade de resvalar para alegorias, a verdade é que as sombras nas paredes de Macau ganham cavernosas identidades, tornam-se sinistras. É verdade que a luz cega aqueles que teimam em viver na treva, mas os olhos precisam da clarividência da verdade, da exposição ao que é autêntico. Gentes de Macau, saiam da caverna, ouçam o apelo deste estrangeiro que vos quer bem, soltem-se dos pesados grilhões do medo, encarem o que de melhor há na vossa natureza. Eu não tenho medo, ostento o meu peito aberto, vivo solto, bebo a vida de um trago, sou mal pago e sorrio dos infortúnios e armadilhas que me metem na frente, sempre ciente da minha grandeza. Posso não ter muito nos bolsos, mas o meu coração transborda, encaro o sol de frente, a minha casa é onde a sola dos meus pés se firma. A orfandade de pátria é a minha assinatura no indigno cartão que me identifica, não há fronteira que me contenha. O meu nome é Liberdade!
Hoje Macau China / ÁsiaTimor-Leste, eleições | A apoteose de Mari Alkatiri, secretário-geral da Fretilin, em Oecusse [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] secretário-geral da Fretilin, Mari Alkatiri, chegou sábado num cavalo castanho, rodeado de centenas de pessoas, ao campo de futebol da capital do enclave timorense de Oecusse, onde uma multidão o recebeu em apoteose, num comício do partido. A uma semana nas eleições legislativas, de 22 de Julho, o antigo primeiro-ministro timorense reconhece que a sua imagem, que antes transmitia austeridade, é hoje uma surpresa para as multidões que o partido tem vindo a reunir. “As pessoas não esperavam. Tinham em mim a pessoa de confrontação, quase de conflito, antipático. Mas não. Agora, liberto de tudo, sou aquilo que sou e sei que tenho aos ombros a responsabilidade de representar os que começaram tudo isto comigo e agora já não estão vivos. Sinto que os represento assim”, disse. No palco, discursa, interage com velhos e novos que ali estão e dança, fazendo vibrar os apoiantes que vieram de todo o enclave. Desde o inicio da manhã que, um pouco por toda a zona de Pante Macassar, se viam passar camionetas amarelas, motas e carros, carregados de apoiantes do partido. No comício unem-se o moderno e o antigo, com jovens de telemóvel na mão a registar o momento, enquanto katuas, velhos líderes tradicionais, vestidos com tais, passeiam a cavalo entre os veículos. Um desses katuas entrega o bikase, cavalo em baikeno (a língua regional), a Mari Alkatiri, que depois percorre o curto percurso entre a sua casa e o comício. No campo de futebol, um animador e um conjunto no palco põem todos a dançar. A pouco e pouco, Alkatiri consegue chegar à tribuna de honra onde, depois do hino timorense e da Fretilin, o candidato conduz um minuto de silêncio. Na esquina do segundo andar de um hotel próximo, em posição privilegiada, observadores da União Europeia (UE), munidos até com um par de binóculos, acompanham a movimentação no campo e os discursos no palco principal. Em redor, onde há sombra, muitos amontoam-se, ainda que a grande festa se faça, no meio de muitas bandeiras, no terreno em frente ao palco e à tribuna de honra onde Alkatiri está acompanhado de vários líderes nacionais e regionais do partido. A Fretilin, considerada o partido com a melhor estrutura em Timor-Leste, tem um ‘posto de campanha’ em cada posto administrativo com representações ainda em cada suco e em cada aldeia. Alkatiri sobe ao palco, onde agora dança com um grupo de mulheres e homens.
Isabel Castro Manchete PolíticaEleições 2017 | Sufrágio indirecto com vários rostos novos São 15 candidatos para 12 lugares, num sufrágio que diz pouco ao eleitorado em geral. Mas é neste grupo de deputados que se verificam, para já, as maiores alterações. E é também neste conjunto de membros da Assembleia Legislativa que está o maior poder interno [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]êm uma importância que, muitas vezes, escapa à opinião pública. São, por norma, os menos interventivos, o que pouco ou nada significa. Há muito trabalho de bastidores nisto da política. Não são escolhidos pela generalidade dos eleitores, mas sim pelos seus pares, por serem os mais bem posicionados para defenderem os interesses corporativos a que pertencem. A figura do deputado eleito por via indirecta é uma herança do passado, do tempo da Administração Portuguesa, em que era necessário garantir, na Assembleia Legislativa (AL), a representatividade das diferentes comunidades. À época, a política era dominada sobretudo por quem falava português e era preciso chamar para o hemiciclo pessoas do mundo chinês de Macau. Apesar de haver quem entenda que, hoje em dia, a ideia de ter deputados indirectos já não se justifica, as mexidas na lei eleitoral não tiveram consequências nesta organização peculiar do sistema legislativo do território. Os críticos desta via de acesso falam ainda de uma certa desadequação dos interesses representados à realidade actual da RAEM. Tomando como exemplo o sector do trabalho, observamos que os deputados eleitos por esta via são oriundos da Federação das Associações dos Operários de Macau (FAOM). Houve tempos em que a FAOM congregava uma parte importante dos trabalhadores da cidade, mas hoje, atendendo à evolução do tecido económico e social, essa ideia é altamente questionável. Havendo ou não uma real correspondência com o que é hoje Macau, certo é que este grupo de 12 deputados tem uma forte ligação ao poder, mais ou menos assumida. O mesmo acontece interinamente: os principais cargos da AL estão entregues a quatro deputados eleitos por sufrágio indirecto. Ho Iat Seng é o presidente, Lam Heong Sang é o vice-presidente, Chui Sai Cheong e Kou Hoi In são os 1.o e 2.o secretários, respectivamente. Um dos nomes da Mesa da AL está de saída – Lam Heong Sang não se recandidata, pelo que na próxima legislatura será necessário encontrar quem o substitua. Mas esta será apenas uma das várias mudanças dentro deste grupo de tribunos: são vários aqueles que não vão permanecer na AL, a começar por Leonel Alves, deputado com 33 anos de experiência, o mais antigo de todos eles. Também Cheang Chi Keong decidiu que tinha chegado a hora de abandonar o órgão legislativo. Será necessário fazer mais uma substituição em termos internos, uma vez que o deputado é, há já várias legislaturas, presidente da 3.a Comissão Permanente da AL. A 1.a Comissão Permanente irá ter, igualmente, um novo comando, uma vez que a actual presidente, Kwan Tsui Hang, eleita pela via directa, decidiu afastar-se da vida política. Comedida concorrência Já houve eleições que não havia qualquer expectativa em relação aos resultados do sufrágio indirecto, por o número de candidatos corresponder exactamente aos assentos disponíveis. No dia 17 de Setembro, o nível de emoção será igualmente fraco, mas há um colégio eleitoral que terá duas opções no momento do voto: foram apresentadas duas listas para o sector profissional. Mas já lá vamos. Antes, importa recordar alguns números. O sistema eleitoral contempla quatro lugares para o sector industrial, comercial e financeiro, os chamados interesses empresariais; três lugares para o sector profissional; dois lugares para o sector do trabalho; dois lugares para o sector cultural e desportivo; e um lugar para o sector dos serviços sociais e educacional. Os empresários Porque há apenas uma lista – a União dos Interesses Empresariais de Macau – a eleição está garantida. É neste grupo que se encontra o influente Ho Iat Seng, presidente da AL, o empresário Kou Hoi In e o engenheiro civil José Chui Sai Peng, ambos deputados. Cheang Chi Keong é substituído por Ip Sio Kai, antigo líder do Banco da China e presidente da Associação de Bancos, um estreante nestas andanças legislativas. A União dos Interesses Empresariais de Macau foi a escolhida pelo colégio a que pertence quase por unanimidade: num universo de 102 eleitores legalmente registados e ligados aos sectores industrial, comercial e financeiro, obteve 97 votos. Na apresentação da candidatura, Ho Iat Seng – que, volta e meia, mostra ser crítico em relação ao modo como a RAEM é governada – defendeu que é preciso prestar atenção ao desenvolvimento do território. Afirmou que não se podem dar benefícios a um só sector, mas a todas as camadas da população. O número dois, Kou Hoi In, assegurou que vai defender os interesses que representa, bem como trabalhar para que sejam atenuadas as dificuldades sentidas pelas pequenas e médias empresas, sector que também merece a atenção de José Chui Sai Peng. Já Ip Sio Kai prometeu efectuar trabalho em prol do desenvolvimento do sector financeiro de Macau. Nas últimas eleições, a lista então igualmente liderada por Ho Iat Seng arrecadou 99,57 por cento dos votos. Os profissionais É o único sector onde vai existir alguma competição interna. Ao contrário do que aconteceu em 2013, em que a União dos Interesses Profissionais de Macau fez uma corrida solitária, este ano há mais uma lista: a União dos Interesses de Medicina de Macau. Este novo grupo é liderado por Chan Iek Lap, deputado eleito há quatro anos ao lado de Chui Sai Cheong e Leonel Alves. Desta vez, parte para o processo com uma equipa onde cabem Kuok Cheong Nang e Wong Chin Kit. Há três lugares para preencher. Resta saber como é que os votos se vão dividir, mas é altamente improvável que Chui Sai Cheong, empresário influente e com muitos anos de experiência legislativa, perca o lugar. Com a saída de Leonel Alves, o irmão do Chefe do Executivo concorre acompanhado por Vong Hin Fai, figura muito próxima de Chui Sai On que, neste momento, ocupa um assento na AL por ter sido por ele nomeado. A substituição de Leonel Alves por Vong Hin Fai não convence quem se interessa por estas matérias. Apesar de serem ambos advogados, Alves é tido como sendo um jurista com muita mais experiência; depois, tem três décadas de passado político e legislativo que o colocam numa posição ímpar no território. Da lista de Chui Sai Cheong faz ainda parte Ben Leong, uma figura bem conhecida de um sector profissional que reúne muitos portugueses: a arquitectura. Leong é presidente da Associação dos Arquitectos de Macau. Quanto à União dos Interesses de Medicina de Macau, Chan Iek Lap é um médico sem papas na língua que não tem, no entanto, marcado o seu percurso político através de uma intervenção pública regular. Em entrevista recente a este jornal, demonstrou ter preocupações políticas sobretudo na área em que trabalha, optando por não tecer grandes considerações sobre outros domínios sociais. Os operários Para os interesses laborais, o sistema reserva dois assentos, sendo que já se sabe, a mais de dois meses das eleições, quem é que vai ser eleito: Lam Lon Wai e Lei Chan U. São os herdeiros políticos de Lam Heong San e Ella Lei, actuais representantes do sector na AL, que saem ambos deste campeonato. Lam Heong San deixa o hemiciclo; Ella Lei decidiu atirar-se ao sufrágio directo, depois de uma primeira legislatura que ficou marcada por uma intervenção activa. Todos estes nomes surgem do mesmo contexto político: a Federação das Associações dos Operários de Macau. A Comissão Conjunta da Candidatura das Associações de Empregados, nome escolhido para lista, decidiu este ano fazer eleições internas para escolher os candidatos a deputados. São dois nomes sem experiência na matéria que já prometeram seguir os passos dos antecessores. Lam Lon Wai é subdirector da Escola para Filhos e Irmãos dos Operários e lidera a lista. Pretende defender os direitos dos residentes, sobretudo dos trabalhadores, fomentando a diversificação económica do território. Quer ainda impulsionar o desenvolvimento do sistema democrático e contribuir para a reorganização da máquina administrativa. Dos seus objectivos políticos fazem ainda parte “os assuntos ligados aos jovens”, com destaque para os que dizem respeito à ascensão na carreira. Lei Chan U leva com ele para a AL o que aprendeu como membro do Conselho Permanente de Concertação Social. Tem como principais preocupações problemas que afectam os trabalhadores: a sobreposição de férias com feriados e a necessidade de atribuir uma compensação aos trabalhadores, a implementação da licença de paternidade e o aumento dos dias de licença de maternidade. Garante que o ano não vai chegar ao fim sem apresentar sugestões para a revisão da lei laboral. Os desportistas culturais Trata-se de um sector sem novidades, sem concorrência, com dois candidatos para outros tantos lugares, figuras bem conhecidas de quem acompanha as lides legislativas do território: Cheung Lup Kwan e Chan Chak Mo. É mais um caso em que existem dúvidas sobre a verdadeira equivalência entre o nome do sector que representam e o meio de onde são oriundos, atendendo a que, em ambos os casos, se distinguem essencialmente no meio empresarial. Da biografia oficial de Vítor Cheung Lup Kwan no site da AL não consta o exercício, neste momento, de qualquer cargo ligado nem ao desporto, nem à cultura. Ocupa funções de topo em empresas ligadas ao investimento. Deputado à AL há muitos anos, é também membro do Conselho para o Desenvolvimento Económico da RAEM. Tem 79 anos. Chan Chak Mo tem uma visibilidade pública bastante maior, desde logo pelo facto de ser presidente da 2.a Comissão Permanente da Assembleia Legislativa. Com formação académica em Gestão de Empresas, o homem forte da Future Bright, deputado desde 2001, tem um longo currículo político e uma ligação ao Comité Olímpico de Macau. Os dois veteranos da AL candidatam-se com uma lista que se chama Associação União Cultural e Desportiva Excelente. O programa político inclui vários pontos relativos às directrizes do futuro desenvolvimento das áreas da cultura e do desporto, incluindo o Desporto para Todos, a formação para atletas de elite e o desenvolvimento da indústria cultural. Em 2013, os deputados foram eleitos com 96,36 por cento dos votos do colégio a que pertencem. A educadora O sufrágio de Setembro também não vai trazer surpresas no que toca ao sector dos serviços sociais e educacional. Chan Hong, presidente da Associação de Educação de Macau, ligada também aos órgãos sociais das Mulheres, volta a candidatar-se sem concorrência. Em 2013, foi eleita com mais de 98 por cento dos votos. Este ano, o resultado não deverá ser substancialmente diferente. A comissão de candidatura de Chan, a Associação de Promoção do Serviço Social e Educação, tem como metas a melhoria dos serviços sociais, o desenvolvimento da qualidade da educação e o aumento da qualidade da vida dos residentes. No âmbito dos serviços sociais, a deputada e candidata destaca a necessidade de aumentar o apoio aos cuidadores dos idosos e a acessibilidade. Quanto à educação, gostaria de ver um ritmo mais acelerado no projecto das escolas de Céu Azul e o aumento dos espaços para fins educativos.
Andreia Sofia Silva Manchete PolíticaEleições | Poder de Sinergia tem candidatos que já foram jornalistas Johnson Ian e Ikei Che foram jornalistas durante vários anos, mas decidiram mudar de profissão e passar para a política, ao serem membros da lista ligada à Associação Sinergia de Macau. Pedem mais opinião pública, mais benefícios para os cidadãos e reconhecem que existe autocensura nos media chineses [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ercorreu, durante vários anos, os corredores da Assembleia Legislativa (AL) como jornalista do jornal Ou Mun. Falava pessoalmente com os deputados, até que decidiu que podia tentar ser um deles. Johnson Ian foi jornalista durante 15 anos e é um dos membros da lista Poder da Sinergia, ligada à Associação Sinergia de Macau, que este ano participa nas eleições legislativas. Ikei Che foi um dos rostos da informação do canal MASTV e também pensou que poderia estar no lugar onde a política acontece. Ambos deixaram as suas redacções para não mais voltar. Mesmo que não sejam eleitos, assumem que querem continuar a ser vozes activas na sociedade. Johnson Ian não estudou sequer jornalismo. Licenciou-se em Economia na Universidade de Macau e trabalhou na Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM) como croupier. A experiência durou apenas dois meses, porque o trabalho era “muito aborrecido”. Decidiu então ser jornalista, tendo começado por escrever sobre economia. “Como jornalistas somos parte da sociedade, e fui jornalista durante 15 anos. Com esta profissão pude conhecer com mais detalhe os problemas existentes”, disse ao HM. Ikei Che achava que, antes de ser jornalista, sabia muito sobre Macau, mas percebeu que, afinal, havia muito mais para descobrir. “Conheci coisas com que nunca tinha tido contacto. Nos dois anos em que fui jornalista percebi que, às vezes, é possível avançar com a resolução dos problemas das pessoas, mas ninguém fala. Além disso, o Governo não ouve os dois lados de uma questão. Se Lam U Tou conseguir ser eleito, vamos conseguir ajudar as pessoas e apresentar soluções, e foi por isso que me candidatei”, conta. Que objectivos têm como candidatos? O problema da habitação vem logo ao de cima. “Queremos um fornecimento estável de habitação pública, como havia durante a Administração portuguesa. Mas desde 1999 que o fornecimento de casas públicas diminuiu bastante”, referiu Johnson Ian. Além disso, a lista Poder de Sinergia pede “uma melhor qualidade de vida e a implementação de melhores políticas”, sobretudo relacionadas com os novos aterros. É ainda pedido “um novo sistema de transportes públicos, porque os contratos vão expirar no próximo ano”, disse o candidato. Desapontamento geral Johnson Ian puxa do seu lado de economista para dizer que, tendo em conta o Produto Interno Bruto de Macau, um dos melhores do mundo, a população poderia viver muito melhor. “As pessoas de Macau não estão satisfeitas e sentem-se desapontadas com o Governo, e com os problemas existentes ao nível da habitação e do sistema de transportes.” O desapontamento existe em relação ao trabalho do Executivo e dos próprios deputados. “As pessoas sentem-se desapontadas com o Governo, mas temos de criticar também os deputados, porque eles têm o papel de monitorizar o trabalho do Executivo.” Quais são, então, os deputados preferidos da população? Na visão de Johnson Ian, os preferidos são Ng Kuok Cheong e Kwan Tsui Hang, que está de saída da AL. E José Pereira Coutinho? “Não tanto, porque se concentra nos funcionários públicos e esquece um pouco o resto da população.” Na visão do ex-jornalista do Ou Mun, “não há muita discussão sobre economia e jogo na AL”. “É preciso focar este tópico, porque a economia é muito importante em Macau”, apontou Johnson Ian, que reiterou que “o desempenho dos deputados está abaixo das expectativas das pessoas”. Apesar do descontentamento, Johnson Ian diz que ainda há pouca expressão da opinião pública. “As pessoas querem uma mudança, mas quem é que vai chegar cá fora e pedir essa mudança? Ainda temos uma sociedade chinesa muito tradicional, mas isso não é muito positivo para o desenvolvimento de Macau.” “Muitos mantêm-se em silêncio, e para serem ouvidos têm de fazer parte das associações mais tradicionais”, defendeu ainda. A autocensura e a falta de formação Questionada sobre se foi alvo de censura no seu trabalho jornalístico, Ikei Che responde que “mais ou menos”. “Não tinha toda a liberdade, mas essa é uma situação compreensível. Mas a maioria dos casos, relacionados com os problemas com que se deparam os cidadãos, ou que estão ligados ao trabalho do Governo, podíamos noticiar”, apontou a jornalista. Johnson Ian afirma que existe autocensura nos media chineses, à semelhança do que têm apontado vários relatórios internacionais sobre liberdade de imprensa. Tendo sido jornalista do Ou Mun, um dos diários mais lidos em Macau e considerado próximo de Pequim, Johnson Ian ressalvou que, “na maioria das vezes”, pôde escrever tudo o que quis. “Porque é que a sociedade pensa que há constrangimentos? Porque o maior problema está nos repórteres. Há auto-censura e eles optam por não escrever, por não reportar. A maior parte dos jornalistas quer notícias, mas não tem fontes.” Para o antigo jornalista, que teve de corrigir textos vezes sem conta até aprender a escrever notícias, o maior problema é a falta de formação nos media de língua chinesa. “Os jovens jornalistas não têm formação e não sabem escrever notícias. Vão para as conferências de imprensa e pensam que basta o comunicado de imprensa, mas não chega.” Johnson Ian conta casos de outros tempos, em que o jornalista ligava directamente para os números de telemóvel dos membros do Governo, sobretudo antes de 1999. “Tudo mudou. Não querem falar mais, querem manter as coisas em segredo”, remata.
Andreia Sofia Silva PolíticaEnsino superior | Lei não explicita regras para cursos no exterior O novo regime do ensino superior não determina as directrizes para a abertura de cursos no exterior por parte das instituições de ensino superior locais, algo que o jurista António Katchi contesta, alertando para a questão da liberdade académica [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Governo não criou regras específicas na nova lei do ensino superior para a abertura de cursos no estrangeiro por parte de universidades locais, mesmo depois do Comissariado da Auditoria (CA) ter alertado para a questão legal da criação do Instituto de Investigação Científica e Tecnológica da Universidade de Macau em Zhuhai. O parecer jurídico relativo à análise do regime do ensino superior, por parte dos deputados da Assembleia Legislativa (AL), recorda esse exemplo. Na prática, todos os cursos terão de receber o aval do Governo, sem que haja regras concretas quanto às diferenças entre jurisdições. O problema foi levantado pela própria comissão da AL. “Obrigar a presente lei a ser aplicável no exterior não iria dificultar ainda mais as instituições do ensino superior locais a ministrarem cursos no exterior? Se o âmbito de aplicação da presente lei for estendido ao exterior, então o proponente terá de ponderar, seriamente, como vai resolver eventuais conflitos entre os sistemas jurídicos local e estrangeiro.” O Executivo “pensou numa solução prática”. Todas as instituições locais, sejam privadas ou públicas que “pretendam ministrar cursos no exterior, terão de apresentar, primeiro, um pedido ao Governo, a fim de deixar que o Governo saiba onde é que a instituição requerente pretende ministrar os cursos”. Caberá às instituições “observar os mesmos procedimentos previstos pela proposta de lei para a realização dos cursos”. Além disso, o Executivo prometeu “delegar ou destacar equipas para essas instituições, a fim de procederem a uma avaliação in loco”. E a liberdade académica? Na visão do jurista António Katchi, o novo regime jurídico do ensino superior deveria conter regras mais específicas. “É óbvio que a realização de cursos no exterior por parte de instituições de Macau coloca esses cursos sob a alçada de dois ordenamentos jurídicos e de duas jurisdições, sendo impossível Macau impor a priori a aplicação exclusiva do seu próprio direito”, referiu ao HM. “Seria preferível a lei estabelecer algum enquadramento normativo para estas actividades, pois o mero facto de o Governo as ter de autorizar não é suficiente. É preciso definir regras mínimas que orientem o Governo na sua decisão”, defendeu António Katchi, que alerta ainda para a questão da manutenção do princípio da liberdade académica, contido no segundo sistema. “A lei deveria cingir-se a estabelecer as condições que, do ponto de vista do próprio direito de Macau, se reputassem essenciais. Uma dessas condições seria o respeito escrupuloso pela liberdade de expressão e pela liberdade académica”, lembrou. O jurista deu o exemplo de cursos locais ministrados na China. Nesse caso, a instituição em causa “deveria estar expressamente obrigada pela lei de Macau a garantir, nesses cursos, o exercício da liberdade de expressão e da liberdade académica, em termos não menos favoráveis que os consagrados no direito de Macau, e a opor-se, pacificamente, a qualquer interferência das autoridades locais que implicasse desrespeito por esses direitos”. A questão legal levantada pelo relatório do CA já terá sido resolvida. Segundo o parecer da AL, “devido às exigências das autoridades e do sistema jurídico do interior da China, o referido instituto de investigação acabou por ser registado como ‘entidade privada não empresarial’”, aponta o parecer da AL.
João Luz Desporto SociedadeAndré Couto | Reunidos donativos para conta de hospital [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a sequência do violento despiste do passado fim-de-semana, André Couto foi internado num hospital de Hong Kong. Na passada terça-feira, a equipa pela qual corre, a Spirit Z – Laptime Factory, lançou um comunicado destinado à angariação de fundos para pagar as contas médicas. O valor pedido era de 550 mil dólares de Hong Kong, quantia que foi conseguida em pouco tempo. A necessidade surgiu na sequência da “atenção médica urgente” que não podia esperar pela confirmação de cobertura por parte da companhia de seguros, segundo informação deixada no Facebook da equipa de André Couto. O montante de donativos ultrapassou o esperado. O valor remanescente será usado para posteriores tratamentos e reabilitação, explica a equipa do piloto. Na sequência do despiste o piloto fracturou a coluna, ficando com a vértebra L1 partida. Num vídeo publicado no Facebook, que reproduzimos aqui, André Couto revelou que a equipa médica considera a fractura instável, exigindo, pelo menos, um mês de cama numa posição estática e acompanhamento constante. “É uma sorte estar aqui a falar, estou a mover os braços e as pernas, o que são boas notícias”, declarou o piloto num vídeo publicado pela equipa. Na mesma publicação, o piloto aproveitou para agradecer a onda de solidariedade que respondeu, prontamente, à solicitação da sua equipa. “É difícil expressar as minhas emoções, sinto que muitas pessoas me querem ajudar, só posso agradecer do fundo do coração”, diz o piloto. André Couto promete lutar contra a adversidade de forma a regressar às pistas o mais rapidamente possível.
Andreia Sofia Silva Manchete SociedadeCosta Nunes | Marisa Peixoto é a nova directora da escola Está escolhido o nome que vai substituir Lola Flores Couto do Rosário na direcção do Jardim-de-Infância D. José da Costa Nunes. Chama-se Marisa Peixoto e há quatro anos que é educadora na instituição. Não domina o chinês, mas Miguel de Senna Fernandes confia agora na estabilidade da escola [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á um ano entrava Lola Flores do Rosário, bilingue, que prometia trazer um novo rumo ao Jardim-de-Infância D. José da Costa Nunes e, sobretudo, responder ao aumento dos alunos chineses. A directora acabou por não ficar mais do que um ano lectivo, sendo que Marisa Peixoto é o nome que se segue. A educadora está há quatro anos no jardim-de-infância de matriz portuguesa e, segundo referiu Miguel de Senna Fernandes, é o nome ideal para ficar à frente da instituição. “Neste momento ela reunia as melhores condições para desempenhar o cargo, a escolha foi natural. Há cerca de quatro anos que está no Costa Nunes e conhece bem a escola, bem como os colegas. Havia outros nomes que reuniam boas condições, mas julgámos que a Marisa seria uma boa aposta”, disse o presidente da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM). Miguel de Senna Fernandes quis ir à prata da casa buscar um nome e não pensou sequer em recorrer a currículos de fora do Costa Nunes. Marisa Peixoto não domina a língua chinesa, ao contrário da sua antecessora, mas para o presidente da APIM isso não constitui um problema de maior. “[Marisa Peixoto] Não domina o chinês, isso seria ouro sobre azul. Continuamos a esperar por uma directora que domine várias línguas, mas muitas vezes as coisas não acontecem. Mas não é por causa disso que não se gere um jardim-de-infância. O bilinguismo é um factor importante, mas não é decisivo. A actual directora domina o chinês, era uma aposta bastante boa.” Quanto a Lola Flores Couto do Rosário, não ficará a trabalhar no jardim-de-infância. Vera Gonçalves, a directora que a antecedeu, chegou a ser convidada para ficar na escola como educadora, mas declinou o convite. “A Lola não vai ficar no Costa Nunes, não sei onde vai ficar. Ela melhor o dirá”, explicou Miguel de Senna Fernandes. Contrato de um ano Marisa Peixoto assinou contrato como directora por um ano. Tal como explicou o presidente da APIM, isso não revela falta de confiança no novo nome. “É normal, todos os contratos com todo o pessoal docente foram sempre de um ano. Todos os anos renovamos os contratos e corresponde a uma prática tradicional. No espaço de um ano veremos se tem condições para continuar.” Miguel de Senna Fernandes referiu ainda que sempre quis o melhor para a escola em todas as decisões que tomou. “Estivemos sempre à espera de uma maior estabilidade, as escolhas foram sempre feitas nesse sentido. É uma esperança renovada, com certeza. Tudo indica que será um nome bem aceite, se bem que é sempre uma incógnita. Mas, segundo o que conhecemos da pessoa em causa, vai dar-nos estabilidade”, rematou.
Hoje Macau SociedadeUM | Mais de 450 alunos a aprender português no Verão [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Curso de Verão de Língua Portuguesa promovido pelo Departamento de Português da Faculdade de Letras da Universidade de Macau conta, este ano, com mais de 450 alunos. De acordo com a organização, “o curso tem por objectivo oferecer uma enriquecedora experiência de imersão linguística durante as férias de Verão, através de aulas de língua e de actividades culturais”. Os participantes vêm dos mais diversos pontos do mundo, entre eles, a China, Timor-Leste, Tailândia, Estados Unidos, Coreia do Sul, Moldávia, Índia, Hong Kong e Macau. A iniciativa, que vai decorrer entre os dias 17 deste mês e 4 de Agosto, oferece vários níveis de formação. No total são quatro e vão desde a iniciação ao nível avançado. “Dado o interesse que, no ano passado, as turmas do nível superior e de Tradução Chinês/Português suscitaram, este ano continuará a existir o espaço formativo para estes alunos”, sublinha a Universidade de Macau. A participação em actividades como danças folclóricas, canto, desporto e história de Macau também faz parte do programa, que inclui ainda visitas a museus e ao centro histórico do território.
Sofia Margarida Mota SociedadeIPM | Arrancou ontem a 4ª edição do “Verão em Português” Ajudar professores chineses a leccionar a língua portuguesa é o objectivo de mais uma edição da iniciativa “Verão em Português”, que está a decorrer no Instituto Politécnico de Macau. Para Carlos André, o curso marca uma etapa decisiva do ensino do idioma no Continente e poderá definir a qualidade que terá no futuro [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]eve início ontem a quarta edição do curso “Verão em Português”. A iniciativa, a cargo do Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa (CPCLP) do Instituto Politécnico de Macau (IPM), dá assim continuidade ao projecto que traz professores de Português do Continente para uma semana de formação. O objectivo, diz Carlos André, director do CPCLP, é poder desenvolver o ensino da língua na China colmatando as necessidades dos docentes. “O curso foi projectado de acordo com as necessidades que nos são apresentadas pelos professores de Português no interior da China”, referiu o responsável durante a cerimónia de abertura da formação. Dos conteúdos a leccionar, a organização tem o cuidado de que vão ao encontro das dificuldades. “Como são necessidades muito vastas há sempre o cuidado de organizar a formação de uma forma muito abrangente. Temos alguns módulos de formação nas áreas da cultura e da literatura, e depois uma insistência muito grande na área da língua.” Entre as maiores dificuldades apontadas pelos nativos de língua chinesa que se dedicam ao ensino do português, Carlos André sublinha a fonética e a gramática. “Neste curso abordamos a formação para a fonética, que é um dos problemas muito sérios dos professores de Português que são falantes nativos de chinês e os problemas das estruturas. A estrutura da língua chinesa e da língua portuguesa são substancialmente diferentes”, salienta. Este ano, o curso conta com 22 participantes. Se normalmente são professores do Continente, esta edição conta com dois formandos de Macau. Para Carlos André, esta situação é natural, porque quando se trata do ensino do português, “os problemas são os mesmos para todos”. Uma etapa decisiva A língua portuguesa já é ensinada há muito na China Continental. Começou a ser leccionada nos anos 1960 no Instituto de Rádio Difusão de Pequim e, pouco tempo depois, na Bei Wai de Pequim. Mas o ensino da língua teve uma interrupção ainda nessa década. No entanto, neste momento está, de acordo com Carlos André, num ponto decisivo do seu desenvolvimento. “A verdade é que, se pensarmos quando é que o português começou a ter este crescimento forte, não foi há tantos anos assim. Foi apenas há dez anos que começou a crescer e a etapa actual é decisiva.” Carlos André explica: “É uma fase em que o que nós fizermos agora vai determinar a qualidade do português no interior da China para os próximos anos. O que tem de ser feito tem de ser feito já. Este é o momento em que as coisas arrancaram e precisam de ser consolidadas. É exactamente nesse ponto que estamos, no ponto a seguir aos primeiros passos, no momento em que a criança começou a caminhar, mas ainda cai muito”, refere o responsável. As necessidades actuais são dirigidas em três sentidos: é preciso mais formação, são necessários materiais e há que consolidar a rede entre as universidades chinesas e o CPCLP. Destes três anos de trabalho, o CPCLP tem um balanço muito positivo. “Neste momento há cerca de 180 professores de português no Continente, uma grande parte deles, mais de 100, são chineses e todos eles conhecem o centro”, afirma Carlos André. O total de formandos a que o centro deu apoio até agora já anda na casa dos 200 e o número de horas de formação em Macau e no interior da China já passa as 1800, em cerca de 30 universidades. Para já, só é possível formar uma turma, mas no futuro poderá ser diferente. “Quando chegarmos ao momento em que possamos ter duas turmas de 20 formandos no curso de Verão, seguramente que iremos fazer níveis de formação diferente.” Este ano, a divisão já está parcialmente a ser posta em prática. Os 22 alunos vão ser divididos duramente o período lectivo da manhã em duas turmas. Carlos André afirma ainda que, em breve, haverá notícias de um novo projecto que estará pronto a ser divulgado. Português é uma mais-valia Helena Wu está pela segunda vez a frequentar o curso “Verão em Português” que decorre até ao dia 21 no Instituto Politécnico de Macau. Para a professora de língua portuguesa na Universidade de Nankai, as dificuldades ainda são muitas e esta formação representa uma forma de as ir colmatando. “Na China temos falta de materiais didácticos de formação de professores e este curso ajuda muito”, afirma. Helena Wu não deixa de referir o crescente interesse pela língua portuguesa por parte dos alunos do Continente. A razão, aponta, é simples. “Já é um facto. O português significa emprego na China”.
João Luz SociedadeBombeiros | Resposta de motociclos aumentam a resposta rápida O número de ocorrências a que o Corpo de Bombeiros foi chamado a intervir baixou no primeiro semestre do ano, em comparação com o ano passado, assim como a necessidade de apagar fogos. Já a saída rápida de ambulâncias aumentou devido ao uso de motociclos de socorro [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]os incêndios que ocorreram na primeira metade do ano, 76,64 por cento não requereram o uso de mangueiras. Para que se tenha uma ideia, estes casos foram 351, num universo de 458 circunstâncias em que o alerta de fogo levou bombeiros a sair do quartel. O chefe de primeira, Cheong Chi Wang, explicou esta situação com o aumento de vigilância dos cidadãos, que terá aumentado. Nesse sentido, o chefe espera que “os cidadãos continuem a coordenar os trabalhos de prevenção contra incêndios, de forma a minimizar a oportunidade de ocorrências”. O total de fogos para os quais os bombeiros foram chamados a actuar foi este ano de menos 84 casos do que em igual período do ano passado, o que representou uma diminuição de 15,5 por cento. As principais causas de incêndios foram o esquecimento de desligar o fogão e a queima negligente de papéis votivos. Nesse sentido, o Corpo de Bombeiros procedeu a muito mais inspecções com o intuito de prevenir futuras ocorrências, e diminuir os riscos e prejuízos causados pelos fogos. A primeira metade de 2017 teve 3195 inspecções de segurança, o que representou um crescimento de 23,36 por cento em comparação com os primeiros seis meses de 2016. Além disso, foram realizadas 1154 vistorias a postos de gasolina, depósitos provisórios, reservatórios, restaurantes e transportes de combustível. Porque são espaços que requerem atenção especial, o Corpo de Bombeiros realizou vistorias diárias a depósitos de combustíveis. Resposta rápida Apesar de se terem registado menos casos que motivaram a saída de ambulâncias, um total de 19.184 casos, uma diminuição de 2,56 por cento, a capacidade de resposta aumentou consideravelmente. Na primeira metade de 2017, os bombeiros chegaram a sinistros 27.349 vezes, quase mais seis mil vezes do que em igual período de 2016, representando um crescimento de mais de 26 por cento. Cheong Chi Wang explica este fenómeno com o facto de o Corpo de Bombeiros ter arranjado uma forma de chegar aos locais da chamada dando a volta ao problema do trânsito. Nesse sentido, é enviado primeiro um motociclo de socorro para o local sinistrado, veículo que permite aos bombeiros chegarem onde é preciso com maior brevidade. A aposta na prevenção e na informação foram trunfos que mereceram destaque na comunicação de Cheong Chi Wang, tendo sido consideradas razões principais para a diminuição do número total de acções operacionais. Entre Janeiro e o final de Junho deste ano, o Corpo de Bombeiros foi chamado a intervir em 22.339 casos, menos 893 ocorrências do que no mesmo período do ano passado, representando uma diminuição de 3,84 por cento. Também as operações de salvamento diminuíram 9,6 por cento no primeiro semestre deste ano, passando dos 729 casos ocorridos em 2016 para 659 neste ano. O chefe de primeira do Corpo de Bombeiros deixou ainda um alerta para que a população não deixe crianças sozinhas em casa e que os pais eduquem os filhos para não brincarem com fogo. Outro dos focos de Cheong Chi Wang foi o pedido de atenção com os aparelhos de fogão a gás, as canalizações e fugas.
Sofia Margarida Mota EventosJoalharia | Começa amanhã mais um ateliê na Casa de Portugal Tem início amanhã mais um conjunto de dois ateliês de formação na arte da joalharia. A iniciativa, promovida pela Casa de Portugal em Macau, é aberta a todos e ensina a dar os primeiros passos na criação de peças únicas [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] formação tem início amanhã para os estreantes na arte de fazer jóias. No dia 19 o ateliê continua, agora destinado aos interessados que já têm um nível mais avançado no ofício. Trata-se da formação em joalharia a cargo da Casa de Portugal, monitorizada por Cristina Vinhas. “A ideia é dar a conhecer aos interessados o que é a joalharia”, diz a formadora ao HM. “No nível inicial, a intenção é dar as bases para que as pessoas comecem a perceber o comportamento dos materiais, nomeadamente dos metais latão e prata, porque são aqueles em que trabalhamos mais”, explica. No nível inicial o trabalho é essencialmente em latão. “O objectivo é que nesta primeira aprendizagem não exista um grande desperdício de material”, explica a formadora, sendo que no segundo nível já se começa a trabalhar com a prata. No entanto, há casos em que, porque o formando já apresenta conhecimentos acerca dos materiais, Cristina Vinhas permite que as pessoas trabalhem em metais mais nobres. A razão da cedência, aponta, é por serem da preferência dos alunos. “Há um pouco aquela ideia de que uma jóia é em ouro ou em prata”, mas, actualmente, essa ideia estará a mudar. O conceito de joalharia é, porém, muito vasto. Para Cristina Vinhas, que trabalha na área há vários anos, a criação de uma peça é definida essencialmente pela sua elegância. “Pode ser uma peça muito simples e é igualmente uma jóia, porque uma jóia não é definida pela quantidade de diamantes ou de brilhantes que a peça tem. Tem que ver, essencialmente, com a sua forma e design”, sublinha. Além dos metais, as formações integram também o trabalho com outros materiais. Cristina Vinhas trabalha, nos ateliês, o uso do sisal, de madeiras e resinas. “De momento estou também a trabalhar muito os acrílicos, vidros e sedas e mesmo casulos dos bichos da seda, um material que, penso, tem muito potencial”, acrescenta a formadora. Liberdade para criar As formações em joalharia dirigidas por Cristina Vinhas são essencialmente caracterizadas pela liberdade criativa. “Os formandos vêm com interesses diferentes e querem fazer diversos tipos de peças, e por isso não imponho nada, cada um desenvolve o seu trabalho dentro daquilo que mais gosta”, explica a formadora. O mesmo acontece com os materiais a trabalhar. De acordo com Cristina Vinhas, este também é o objectivo das formações promovidas pela Casa de Portugal. “Não estamos a falar de um curso curricular e o interesse destes ateliês é precisamente o facto de não limitarem as pessoas e serem um espaço em que podem fazer o que mais gostam”. A responsável já monitoriza a formação da Casa de Portugal em joalharia há oito anos e sublinha a diversidade de alunos que tem vindo a ter, sendo que “é uma formação para todos e temos tido muitas pessoas de várias classes e nacionalidades”. Muitos portugueses, macaenses, chineses vietnamitas e mesmo gregos têm aprendido a fazer jóias com Cristina Vinhas. Esta diversidade tem uma razão evidente: “Macau é um lugar cosmopolita, com muitas culturas e etnias, e os cursos acabam por também acolher muita gente diferente”, refere a responsável. Apesar do empenho, a responsável não vê evolução na área da joalharia no território. “Há muita coisa ainda para desenvolver. No entanto, já esteve pior.” A formadora considera que começa a existir algum interesse e menciona algumas formandas que teve, que continuaram o seu trabalho com estudos em Londres e que agora já desenvolvem as suas peças de autor. “Não estamos a falar de alta joalharia, mas sim de joalharia contemporânea, e o desenvolvimento deste sector em Macau é um trabalho necessário”, remata.
Hoje Macau China / ÁsiaCoreia do Norte | Pequim defende importações de minério de ferro [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] China defendeu ontem as suas importações de minério de ferro da Coreia do Norte, face às criticas do Presidente norte-americano, Donald Trump, e afirmou que está a cumprir com as sanções impostas pela ONU. Apesar de Pequim ter suspendido a importação de carvão da Coreia do Norte, o comércio entre os dois países tem aumentado, levando o Presidente norte-americano, Donald Trump, a acusar Pequim de não fazer o suficiente para travar o programa nuclear norte-coreano. Nos primeiros cinco meses do ano, as compras de minério de ferro por parte da China subiram 34%, face ao mesmo período de 2016, segundo uma associação industrial sul-coreana. O ferro é uma das principais compras da China à Coreia do Norte, depois de Pequim ter suspendido as importações de carvão, em linha com as sanções impostas pela ONU. O porta-voz do ministério chinês dos Negócios Estrangeiros Geng Shuang afirmou que a importação de ferro não é abrangida pelas sanções e não gera lucros para o programa nuclear do regime de Kim Jong-un. “Vamos continuar a implementar rigorosa e seriamente a resolução do Conselho de Segurança [da ONU] para a Coreia do Norte”, apontou o porta-voz. “Esperamos que todos os lados envolvidos estejam claros de que as sanções impostas pelo Conselho de Segurança à Coreia do Norte não são sanções económicas totais”, acrescentou. A China é o principal aliado diplomático do regime de Pyongyang, mas tem-se afastado progressivamente do país, face ao comportamento provocador de Kim Jong-un. A liderança chinesa teme, contudo, um colapso do regime, e argumenta que suspender o comércio de alimentos e outros bens pode gerar uma crise humanitária no país vizinho. Na semana passada, Trump citou dados das alfandegas chinesas que apontam para um crescimento homólogo de 36,8% no comércio entre os dois países, no primeiro trimestre do ano, criticando Pequim por não fazer o suficiente. As importações chinesas com origem na Coreia do Norte caíram 13,2%, na primeira metade do ano, para 1,7 mil milhões de dólares, enquanto as exportações da China para a Coreia do Norte subiram 29,1%, para 880 milhões de dólares.
Hoje Macau China / ÁsiaAcadémicos chineses participam pela primeira vez em congresso de Lusitanistas [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ezasseis académicos chineses vão participar pela primeira vez no congresso da maior associação de estudos de língua e culturas de língua portuguesa, que decorre este mês, em Macau, noticiou a imprensa local. O 12.º congresso da Associação Internacional dos Lusitanistas (AIL), organizado pelo Instituto Politécnico de Macau (IPM), vai ouvir 142 oradores de 15 países, em representação de cerca de 80 universidades, nomeadamente do Brasil, Espanha, Reino Unido, Itália, Polónia, Estados Unidos e Portugal, com as universidades de Lisboa, Porto e Coimbra. Os 16 oradores da China vão representar universidades de Pequim e Xangai. De Macau participam entre oito a dez académicos, um da Universidade de Macau e os restantes do IPM. De acordo com Carlos André, director do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa do IPM, o “grande número de professores chineses com comunicações aprovadas” significa que os estudos de português “já evoluíram muito” na China. O congresso conta com a presença da ex-ministra da Cultura Isabel Pires de Lima, Rui Vieira Nery, membro da direcção da Fundação Calouste Gulbenkian, Onésimo Teotónio de Almeida, professor de português nos Estados Unidos e Hélder Macedo, docente do King’s College em Londres. Uma das quatro sessões plenárias vai ser dedicada à língua portuguesa no mundo, nomeadamente na China e em Macau. Ao longo de 48 sessões paralelas estarão em destaque as literaturas portuguesa, brasileira e africana, a história contemporânea e temas ligados aos estudos feministas na literatura, sociologia e cinema. O congresso decorre entre 23 e 28 de Julho. A última reunião da AIL realizou-se em 2014, em Cabo Verde, e elegeu presidente o italiano Roberto Vecchi, professor associado de Literatura Portuguesa e Brasileira na Faculdade de Língua e Literatura da Universidade de Bolonha (Itália).
Hoje Macau China / ÁsiaSondagem | Povo chinês quer maior transparência [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e acordo com uma sondagem recente realizada pelo China Youth Daily, 90,6% das 2.009 pessoas entrevistadas esperam que o governo tome a iniciativa de divulgar informações. Zhang Zhihong, professor associado da Escola de Governação Zhou Enlai da Universidade de Nankai, disse que a abertura de informação é necessária para combater a corrupção dentro do governo, e que as informações devem ser lançadas de forma verdadeira e oportuna. “Com o destaque crescente da divulgação de informações, a qualidade da abertura de informação e governança melhorará dramaticamente”, afirmou ele. A expectativa pública se baseia em um foco sobre os lançamentos de informações do governo, já que 81,8% dos entrevistados informaram que prestam atenção a essas informações, mostrou a pesquisa. Mais de 60% dos entrevistados estavam preocupados com as explicações sobre políticas, enquanto outros 45,5% indicaram que lêem consultas públicas para políticas. “Sempre acompanho com as informações relacionadas a políticas e regulamentos, especialmente as consultas públicas ao fazer decisão e as explicações sobre políticas após a implementação”, assinalou Li Han, professor universitário em Beijing. No entanto, a divulgação de informações do governo também provocou preocupações. Até 45% dos entrevistados disseram que tiveram de esperar muito tempo antes de receber as informações. Um total de 61,4% esperou que o governo melhorará sua eficiência na divulgação pública de informações. Uma série de regulamentos sobre a divulgação de informações do governo, que entraram em vigor em 2008, foram revisados no mês passado e o prazo para opinião pública terminou em 6 de julho. O projeto dos regulamentos revisados inclui um princípio que exige fazer da publicação de informações algo rotineiro.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e Ideias“Vai correr tudo bem” [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]oda a grande filosofia é sistematicamente céptica. Não o é dogmaticamente. Na infância e na juventude, escutamos dos pais e dos mais velhos, dos que têm responsabilidade e carinho por nós: “vai correr tudo bem”. No que é decisivo, em todas as situações críticas, não correu nada tudo bem. Nem correram algumas coisas bem ou só uma. Correu sempre tudo mal. Acabou. E o fim dá sempre cabo de tudo. Destrói. Apaga. Anula. Esvazia. Logo para começar o que quer dizer este “tudo”? A “vida toda”? Ou “tudo” é conteúdo da situação específica em que nos encontramos? E porque é que alguém nos diz que “tudo vai correr bem”? O que sabem as pessoas de nós e da vida para nos dizer que tudo vai correr bem? Tudo! Bem! Correr! Em que situações é que nos dizem que tudo vai correr bem. São situações em que estamos remetidos para os outros, e essa remissão configura a nossa própria vida. Não são apenas aqueles outros que são importantes para nós, por a eles nos unirem laços estreitos. São aqueles outros que causam um impacto devastador nas nossas vidas. São agentes do mal. A sua importância nas nossas vidas vem do sofrimento que causaram, do poder destrutivo, moral, afectivo, sentimental, numa palavra: existencial. Os outros projectam-se em nós de diversas maneiras e o que nos liga a eles não são apenas laços positivos de afecto são também laços negativos. Os protagonistas das nossas vidas não são heróis apenas. Há também os maus da fita. São ruins, vis, criaturas com níveis de agressão e impacto incomensuráveis. No rescaldo de situações críticas, alguém nos diz que tudo vai correr bem. Tudo? Bem! Como? Quando tudo está a correr mal, quando a situação de impactos emocionais e crises afectivas são inultrapassáveis, não são anuláveis, nada é repetível para que o pudéssemos contornar! Tudo é simplesmente irreversível. Não quer dizer que não sobrevivamos. Ficamos para contar a história e temos tantas roupas para a nossa alma quantas as suas cicatrizes. O mapa das nossas almas é vincado em baixo relevo, nas nossas almas, e algumas pessoas têm as suas existências estampadas nos seus rostos. No final da vida, tudo está lá marcado. Mas também podemos perceber que nada nunca corre bem nas separações. Achamos que está bem separar-nos, porque é difícil o amor. O amor incha numa casa com um peso insuportável ao qual o quotidiano não sobrevive. E rebenta-se pelas costuras. Entre os apaixonados há uma divindade, uma atmosfera divina. Quando ela é dissipada, os amantes passam a ser os próprios, mas sozinhos e sem os outros. É difícil conviver com os outros, quando já somos só nós e não somos ainda com aqueles outros sem os quais, achávamos, não teríamos identidade. Na separação afectiva, nada pode correr bem. Tem tudo mesmo para correr mal. E quanto à possibilidade de refazermos a vida, ela não é negada, mas é muito difícil sobreviver só, quanto mais acompanhado. Podemos levar a vida inteira para nos reavermos. Achamos que não sobrevivermos a outra história de amor, aquele amor infeliz que foi a primeira vez de todas as primeiras vezes. Nem queremos saber do que se passa com essas pessoas. Desejamos vagamente que sejam felizes, mas sobretudo que não se cruzem nunca mais connosco. E há dias sem dúvida em que lhes desejamos mal, quando nada corre bem e só há amargura, sem um consolo que desfaça o horror. Mas também nada correrá bem quando ficamos na estrada sem pai, como naquele livro, “The road”, em que a criança sobrevive ao pai. O pai tentou prepará-lo o melhor possível para a sobreviver ao holocausto. Todo o filho que sobrevive ao pai sobrevive para atravessar um holocausto. Na infância, perder o pai é tremendo. Como se os adultos e velhos que perderam os pais não estejam na infância, desprotegidos, sem poder obviar o que quer que seja! Não. Não acredito que tudo vá correr bem. Começou a correr mal e vai ser para sempre assim. Tudo vai ser diferente. A diferença não quer dizer ainda a sobreposição do mal ao bem. Quer dizer apenas que estamos sem mapa, sem bússola nem rosa dos ventos. Sem tempo já ou só desesperados. E poder-se-á pensar que estas palavras celebram o cepticismo e o mal ou o desespero. Nem pensar nisso! Nem tão pouco se deseja que tudo corra mal, como se isso fosse possível. É só uma resposta homeopática ao tudo que corre mal, ao nada que corre bem, para poder sobreviver mais umas horas na maquinaria da ansiedade e da preocupação que estanca o decurso do tempo, atrasa-o, para-o.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialCaligrafia do espanto [dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]eio de visita. Não sei se vai ficar. A máquina de escrever velhinha e amarelo banana. Esquecida e discreta estes anos todos. Uma visita curta de carinho e lembranças. Do tempo devagarinho. Veio para conversar e para o retrato de família. Às vezes penso se um dia se deixará de escrever à mão. Com o gesto trabalhoso e revelador. Com o tacto atento à caneta. Com gostos e preferências de cor e espessura. Penso nisso muitas vezes quando reparo na rapidez das teclas. Mas ela não era assim. Dura e teimosa, não tornava o gesto fácil, nem muito ágil. Por isso as folhas e os cadernos de um conforto insubstituível. As folhas de linhas finas e o gosto das folhas lisas onde a escrita voa como lhe apetece num céu limpo e livre. Talvez se tenha cada vez menos paciência para esse desenho que retarda o passo. Quando gosto de alguém fico tempo sem conto e sem fim a contemplar-lhe a escrita. Não, não falo da escrita das ideias. A forma. Mas não falo da forma como as ideias se entrelaçam e desenvolvem, da estrutura frásica, do ritmo. É da caligrafia que falo. Essa impressão indelével do gesto. Do movimento, da passada que deixa registo. No seu hermetismo. Na sua significação enquanto tal. Gosto de a seguir. E o encantamento, como se face a um rosto. Como a face de um rosto. Que se tacteia mentalmente, acompanhando cada linha. Que se observa como numa carícia. Há um lugar certo para cada coisa. Eu procuro isso nos dias e nas coisas. As coisas precisam de um lugar bom para estar, para dormir. As palavras. Tudo. Procuro. E desarrumar porque é preciso ou porque é a vida. E arrumar para que tudo chegue à noite e possa dormir. Em paz. Com uma manta de afago e embalo bom. Todas as coisas. Todas as palavras. Também podiam. Como cães. Levados à rua, mas retornando a casa para dormir no seu lugar. Nunca abandonar as palavras. Como bichos de estimação. Mesmo maus. Levá-los para a cama e pô-los confortáveis para dormir. Nunca ao relento do silêncio. Um gesto. Uma carícia vaga. Quanto baste. Mas em todos os gestos se pode cruzar um mundo de ideias que tolhem, que mudam, que paralisam que arrependem. O gesto e a caligrafia do gesto. Mas não a escrita. A caligrafia da escrita. Há um lugar algures. Desconhecido todos os dias a dizer. Um lugar para cada silêncio. Como aquele onde todos os dias todas são as palavras possíveis em um tudo vale. A pena. A espada. O minuto depois e o gesto que apaga. Em tudo. Inevitáveis, mas limpas. Ásperas, ternas. Todas as que há. Todas convocadas a ver. Esse lugar ideal que há. Há um ruído que é possível lapidar. Um lugar. E pessoas firmes como âncoras. Nenhuma palavra vento as leve. E leves palavras duras como pedras a atirar em curvas e ondas e a fazer ondulação em torno de tornozelos sólidos de pés fincados no chão. Mesmo de areia. Almas ao vento no ar do céu. E pelo meio o corpo haste a ondular. É o corpo da letra. E no veio do tempo a andar deslizantes ou tensas todas as palavras. Todas são remédio ou têm antídoto colado às finas hastes. De planta para crescer. Quando é. Tudo é possível dizer. E apagar com um gesto. Denso. De sentir. Em tudo há um gesto um ápice um rasgo. A sibila adivinha mas não faz, o gesto, a criança faz mas não adivinha e às vezes ao contrário e nada. E nada vai ali, de facto. Mas era possível imaginar, ser. Um código seguro. A ler. Não nada. E há um gesto há um afago há um sentido. E nada. Nada flui e era. Mas era mesmo. Os olhos dizem a alma sente o pulmão sofre. Porque. Porque não. Mas era assim que era. Com a escrita de linhas a azul em páginas em papel em branco. A dizer em vôo visível. Tudo o que voa me enternece. E o que voa livre sem ter necessidade de fugir porque não há perigo. E tudo o que voa sem medo e sem medo flui sem ferir. E às vezes penso que todos somos refugiados mas alguns dormem em camas de conforto em casa. Mas fugidos de algo. Sou dada a emoções contemplativas. Coisas de lentidão parada. Melopeias dos sentidos da visão e do tacto. Como a eternidade da carícia num cabelo, num pelo de bicho. Uma página de dicionário. Essa explicação calma dos sentidos. Essa impressão boa de que todas se encerram ali, se ajudam na explicação da vida que se diz. Que se desmultiplicam em explicações uma das outras. Umas às outras. Como se uma espécie de família em que todas se relacionam com todas. Poucas coisas produzem em mim uma contemplação extasiada tão densa como a observação da caligrafia de uma pessoa amada. Como se move. Como se movimenta subtil por ali uma parte desvendada do seu dinamismo interior. Como se revela. Mas revelando o quê exactamente é coisa bem mais difícil de adivinhar. Estando lá. Como parte de um espaço etéreo do espírito, em que firmemente e irreprimível, se desenrola uma relação entre o gesto, a decisão implícita e a forma. Sempre a mesma nas suas subtis variações. Aquilo que subterrâneo determina a forma. Sempre reconhecida como uma de muitas expressões de um rosto uno. Espanta-me e enche de encantamento. Os laços a prender mais fortes ou com lassidão uma letra. Uma curva rápida e irreprimivelmente hesitante sempre naquele ponto e a emendar numa abrupta quase angulosidade. Que não chega quase a ser. Mas há um gesto que para sempre naquele ponto a fluidez da curva. Noutras um nó. Aqui e ali um gancho. Uma espécie de anzol em que a corda da escrita avança como se suspensa de uma falésia perigosa. Letras que se alongam e desdobram com sensualidade de quem se espreguiça. Mas sempre as mesmas mesmo se nem sempre. A curva de uma letra pequena, suspensa no ar e a descer a terra pouco firme. As que ficam suspensas, e com um braço no ar. As que se encostam sempre ao ombro da outra. E as que laçam setas rápidas em frente. Ou a subir velozes. Como se alça o braço de um d ou de um t e se enlaça em si como ao tronco de uma árvore. Um abraço em nó. Em laço. Como fica em aberto um a por pressa de escrita e como se fecha duplamente em nós um outro a ou o. Como um p se torna ponte pronta a abrir passagem a passos que se lhe sobrepusessem. Em fechamento pouco apertado. Uma duna, Quase. Como uma outra se curva para dentro quase em espiral como se a querer voltar a uma posição fetal mas já sem o abrigo primordial. Uma espiral firme e irreprimível de retorno a si no mais interior. Essa letra do abismo. Em que a saída é sempre mais atrás. Em arrependimento, em contrariedade, em necessidade de sair para a letra seguinte. Movimentos que estancam, definitivos. Ou que fecham num arabesco, como num círculo mágico de protecção. E floreados. Líricos de folhagem leve. Há letras pontes. Letras castelo. Letras torre. Letras abraço. Ou arremesso. Há gestos tensos e imbricados e retorcidos em si. Fiz isso tantas vezes. Olhar. Por um tempo. Intrigada. Com esta estranha caligrafia do ser. Como as pessoas se situam na inicial do seu nome. Se a usam como echarpe leve e descuidadamente poisada pronta a voar, ou quando dela saem a custo para as outras letras. As que dela lançam âncora e as de dela fazem torre fechada a sete chaves. As que atam e as que desatam as formas como deixando livres de voar em frente. E as que voltam atrás. As que recolhem uma curva que ficou antes, as que abraçam a memória da letra anterior. As que não acertam e as que seguem sempre em frente, esticadas languidas e desejosas de avançar. Espraiadas. Ou contidas. Pé ante pé, ou atabalhoadamente. As que se mascaram de outras. Lentas, mais lentas porque se perdem ao espelho a esquadrinhar o rosto maquilhado, a roupa diferente, os sapatos de salto desusado. Poucas coisas escapam a este desfile de pequenas figurinhas animadas pela paisagem desértica de uma página. E por isso mesmo. Sem sinais, sem uma chama que as guie no espaço físico, a vencer o deserto, simplesmente e sós. Preocupadas com uma ideia que as guia. Uma indecisão. Às vezes, mesmo, consigo próprias. Com o que vestem no momento. O arredondado e o anguloso. Com hora marcada sempre naquele ponto. Há uma configuração interior que se verte nestas formas pequeninas e irreparáveis. Há uma constância que diz delas, serem como um rosto. Um olhar que de dentro se entorna sem querer. Há, talvez um sentido descritivo possível dessa caligrafia do ser desenhada nas palavras. Teorias sobre isso. Mas o que me espanta é a inevitabilidade das formas. O padrão. A unidade coesa de alguém por detrás do desenho. Todas as figurinhas dançantes ou corredoras, ou por vezes paradas nas esquinas. Encostadas às paredes. Expectantes ou precipitadas. Esse mundo ínfimo, animado e fascinante em que me posso quedar horas. Sem por elas dar.
António Graça de Abreu h | Artes, Letras e IdeiasNuku Alofa, Ilhas Tonga, Polinésia [dropcap style≠’circle’]À[/dropcap]s oito e meia da manhã saio do navio para a descoberta impossível-possível desta ilha de Tongatapu onde se situa Nuku Alofa, a capital do reino de Tonga. Reino? Exactamente. Tonga é uma antiga monarquia e não existe mais nenhuma em toda a Polinésia. Sua Majestade o rei Tupou VI e a rainha Nanasipau’u dão logo as boas vindas aos recém-chegados, em dois painéis gigantes à entrada do pequeno porto. O arquipélago conta com 176 ilhas, sendo 40 delas habitadas, e forma também o único território do Pacífico Sul que nunca foi colonizado por estrangeiros. Os tonganeses têm orgulho nisso. A sua pele é escura, lábios grossos, olhos grandes, maçãs do rosto salientes, feições marcadas pela origem polinésia. Parecem gente simples, respeitadora do próximo e muito religiosa. Irei comprovar, um pouco por toda a parte, a existência de variadíssimas igrejas católicas e protestantes. A ilha é plana, sem edifícios altos. Em Nuku Alofa, destaca-se o palácio do rei, um excelente conjunto arquitectónico rodeado de relvados e jardins, construção de madeira pintada em branco, com telhados vermelhos, pré-fabricado na Nova Zelândia em finais do século XIX e depois trazido para a ilha, e aqui montado. Não é visitável porque Sua Majestade habita no palácio, não costuma receber convidados e mais raramente ainda é visto pelo seu povo. Dou uma volta pelo centro de Nuku Alofa, uma cidadezinha com 20 mil habitantes, não muito interessante. Descubro uma originalidade, uma agência de viagens que tem o curioso nome de Teta Tours. Entro num mini-bus que leva passageiros para parte incerta, a leste, e pergunto ao condutor se vamos passar por alguma praia. Ele responde, num catastrófico inglês, que no fim da linha existe uma praia. Avanço. Foram 20 a 25 quilómetros de estrada, sentado no meio da gente boa e simples da ilha de Tonga, sempre a sair, sempre a entrar, surpreendida por encontrar dois estrangeiros na carrinha de transporte. Passamos por um hospital moderno, circundamos a grande laguna que entra por dentro da ilha e quase a corta ao meio, atravessamos a vila de Mu’a. Continuamos viagem para norte, já não há ninguém no mini-autocarro, só nós dois e o motorista. Pergunto-lhe pela praia. Diz-me que fica dois quilómetros mais adiante mas temos de pagar três dólares US pela continuação do trajecto. Ok! Chegamos à praia, pequena, com pouca areia e as águas não completamente limpas. Falo-lhe em outras praias, mais bonitas. Sim, ele pode-nos levar, fecha o mini-bus ao serviço público – agora o negócio é outro, o veículo ficará por nossa conta –, e vamos dar a volta a toda a ilha, coisa aí para quatro horas. São 150 dólares US. Não era bem isto que eu queria. Pagamos os três dólares cada um e saímos. Olho o mapa, podemos caminhar ao longo do mar e retomar mais adiante a estrada de regresso. Encontro três tonganeses que metem conversa. Só a mulher fala um pouco de inglês e pergunta de onde é que nós somos. Não sei se entendeu o nome de Portugal, mas acrescentei: “Viajamos desde a Europa num grande navio italiano.” Algum espanto no semblante dos ilhéus que habitam em três ou quatro pobres casas de madeira, do outro lado da estrada, frente ao mar. Têm porcos pretos que andam à solta pela rua procurando comida, chafurdando à vontade por tudo quanto é sitio. Uma mãe porca, extremosa e dedicada, deixa seis ou sete bacorinhos chuparem desalmadamente as suas tetas. Os leitões assustam-se com a minha aproximação para tirar uma fotografia e fogem, cada um para seu lado. Depois voltam à protecção da mãe e às saborosas tetas da porca. Associo a cena ao nome da agência de viagens de Nuku Alofa, rigorosamente Teta Tours. É isto mesmo. Pergunto aos tonganeses se podemos tomar banho na praia. A mulher diz-me que sim, mas acrescenta que quando alguém mergulha naquelas águas lisas é normal um porco atravessar a estrada, fazer companhia ao banhista e meter-se também por dentro do mar. Tomar banho na praia de uma apetecível ilha da Polinésia, na companhia de um porco preto? Regresso a Nuku Alofa, com paragem no porto primitivo onde o capitão Cook, descobridor do sul da Austrália, desembarcou em 1777, na vinda a este lugar. Avanço. Na pequena estação de autocarros da capital pergunto por um mini-bus que me leve para o outro lado, o oeste da ilha, até à praia de Ha’atafu que, segundo o mapa de Tonga e a fotografia do folheto turístico, me parece ser um lugar excelente. Mais trinta quilómetros por boa estrada marginada por casas de melhor qualidade do que as do lado leste da ilha, e chegamos a Ha’atafu. A praia não exibe os predicados que eu imaginava. Tem águas límpidas, mas também muita pedra e areia pouco fina. Saudades das praias das Caraíbas, mas provavelmente ainda não acertei numa boa praia do Pacífico. Um bom banho, duas horas de papo para o ar e é tempo de pensar no regresso ao navio. Uma longa caminhada pelo estreito alcatrão da estrada, por entre uma estonteante floresta tropical, algumas casas bonitas rodeadas de jardins, o verde intenso dos relvados e arbustos, e chego a uma singular aldeia grande que dá pelo nome de Nukunuku. Com nome tão sugestivo, estou com curiosidade em conhecer. Vou descobrindo que o idioma tonga também é muito traiçoeiro. Pergunto qual o significado de tão estranho topónimo. Muitos simples, nuku significa “habitação, casa”, nukunuku será uma “aldeia”, “um conjunto de casas.” O nome de Nuku Alofa, a capital, tem a ver com nuku, ou seja “casa” e alofa que significa “amor”. Portanto haverá “amor nas casas”, ou um conjunto de nukus, as “casas” onde reina o “amor.” Em Nukunuku, ao lado da estrada, um grupo de miúdos joga à bola no recreio da escola. Num grande relvado, rapazes e raparigas correm, lançam-se à molhada para agarrar uma bola oval, não de futebol, mas de rugby. Tonga tem a Nova Zelândia e a Austrália como países de referência, as ilhas Fiji ficam relativamente perto. Aqui o desporto nacional é o rugby. Terminou o jogo, acabou o tempo de recreio na escola de Nukunuku. A campainha que marca a reentrada nas aulas é uma bilha de gás vazia percutida com uma espécie de martelo agitado impiedosamente pela mão de uma professora. Outro mini-bus e estou de novo em Nuku Alofa, num aprazível café onde bebo um razoável “expresso” e utilizo o wi-fi gratuito. Na minha tablet vejo os mails da última semana e leio as notícias do Portugal distante. Pelo telemóvel, ligo para os meus filhos. Dois deles ignoravam por completo que existissem umas ilhas chamadas Tonga. Últimas, e únicas, compras. Por oito dólares US, trago uma espectacular t-shirt preta com um golfinho dourado estampado no peito e, nas costas, também a dourado, as palavrasKingdom of Tonga. É para vestir no Verão, em dia de festa, em homenagem ao povo desta ilha.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDefinitivos [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] legenda de um tempo pode ser feita a partir dos títulos comerciais para o consumo. Distantes do “marketing ” os anos sessenta e mais além (até mais aquém, no tempo em que os poetas eram óptimos publicitários) foram bastante criativos na sua função de nomear. Tanto que hoje é com espanto que damos por nós a contemplar a estrutura gráfica de embalagens, revistas, objectos e até jornais. Não sei se se vendia muito ou pouco nem mesmo das características e do sucesso dos conteúdos, mas tudo era sem dúvida feito numa escala mais atraente. Do «Português Suave» aos «Definitivos» os cigarros seriam deste ponto de vista “light”, fortes e normais, o que está muito bem designado pois que cada um procura nas coisas um certo grau de intensidade, já na marca «Coração» – desenferrujador de metais – não vemos grande ligação a não ser o símbolo solar do órgão visado… e, quanto aos metais, desenferruja-os, que os nobres por assim serem, não precisam de tal acção. Coisas tão bonitas com imagens tão refinadas que ficamos a contemplar: senhoras elegantíssimas lavando o chão até ao restaurador «Olex», em que o espanto seria a textura dos cabelos entre povos diferentes. Víamos isto como se o mundo fosse uma lenda onde todas as coisas estavam ordenadas. Os Piratas que furam as orelhas para verem melhor ao longe, num local preciso do lóbulo da orelha, eram esticados em pastilha elástica, o «Ajax» era um tornado branco a cavalgar entre sebes fazendo de um detergente um antídoto mitológico, a pasta medicinal «Couto» exaltava a dentição africana como se fosse natural andar com cadeiras na boca, as «Sebentas» tão inteligentes e úteis para fazer coisas nem que fosse riscar… era tida também como sinónimo de sujidade aplicada à condição física juvenil caso nos sujássemos todos a comer gelados «Rajá». Era um mundo assim, eufemístico, que se iria aos poucos endurecendo com o recurso cada vez maior à imagem. A legenda era uma graça que nos entrava pela imaginação adentro e onde cada um completava o artefacto dos conteúdos, não raro tinha o poder de recriar em volta um paraíso. Havia regras a preto e branco, também, aquela placa a dizer« As crianças com menos de oito anos não devem assistir aos nossos programas a partir das vinte e duas horas». Uma secura, sem canção de embalar, uma ordem, sem beijos dentro: mas, não raro, também censurávamos a programação pondo-nos à frente do ecrã que de tão grande e nós tão pequenos deixava ver as bordas dessa intransigente mensagem. Vamos assim recuperando os nossos sonhos, mas não deixávamos de ser despertos para o estranho mundo que nos envolvia. Hoje, há distância de décadas que parecem séculos, não somos essas pessoas graves urdidas de censuras constantes, pois que guardámos o transitório como se guardam os poemas antigos e não nos fizeram o mal que porventura era suposto ter sido possível fazer: não, não fizeram. O Verão é assombrosamente nostálgico para estas coisas pois que damos por nós a querer aquelas figuras com cabeças enormes que vinham nos prémios, a pensar em como um chapéu mexicano era o abrigo ideal para se ter uma etnia longínqua, as nossas bicicletas eram supersónicas, e não faltava a irreverência por capítulos de uma « Pipi das Meias Altas» que levantava polícias com as duas mãos e vivia a sós com um cavalo e um macaco dentro de uma casa cheia de dinheiro de um barco naufragado. Eram instituições! Aos oito anos vimos um senhor num programa que tinha um Ovo e que usávamos como elemento para os fios do pescoço, com olhos boca e cabelo, e esse senhor era Almada Negreiros: muito hirto, com um perfil imponente, sentado ao meio – no meio de tudo – falando monossilabicamente e o tempo parou ao contemplarmos a sua figura, ela está na minha retina como as coisas da revelação. Claro, faltava-nos todo o mecanismo da complexidade móvel dos nossos tempos, mas haverá alguém que tenha detonado pelo órgão da visão, hoje, a mesma carga energética com a intensidade desta aparição? São brasas acesas! Temos sempre de voltar a ser discípulos, principiantes, de superar os troços dos caminhos e passar a outras transformações, temos toda a rotina e todas as derrotas, e todas as conquistas em forma comprimida, mas, soltamos as vias do percurso quando nos abeiramos da infância onde nenhum sofisma é possível que possa interpretar melhor aquilo que a realidade tão bem conseguiu. Isso, suponho, seja uma grande dádiva. Esse tempo para tudo sem o arrastão demencial da “brincadeira” para adultos que a todo o momento nos querem impingir para sermos mais felizes: ninguém tem nada a ver com a nossa felicidade! Nem queremos receitas para tais estados de espírito, sentimo-nos insultados e até desconsiderados como pessoas com tanto receituário. Embora possa não parecer, nós somos de um tempo civilizado. Hoje olham-nos com a desconfiança de que olham para tudo, de soslaio e com o criticismo massivo que revela doença interpretativa, mas é natural, estamos ausentes das receitas e somos só a cobaia por onde os testes passam indiferenciadamente. Mas atrás de nós ainda há deuses, e falam forças, e estão em sentido muitas coisas que nem sabemos que as herdámos. Não viemos ocupar o maravilhoso «Homem Novo» a partir de um cromagnon ignoto que na ideia se instalou. Não, nós somos de facto de um mundo que, embora não acreditado, era à sua maneira civilizado. Certamente mais pobres, mas hoje também somos tão pobres que andamos disfarçados de ricos. A felicidade que nos querem dar não se aplica em nenhuma dimensão da vida quando a vivemos por dentro. Parece que continuamos com os mesmos enigmas disfarçados e aplicamos defesas em coisas já em si tão sitiadas… cercamo-nos de um vínculo de comportamentos externos para não termos que estar todos os dias a inventar a vida, mas seria bom inventá-la mais dado que a norma é incrivelmente parasitária. Vamos a mais locais e países porventura, mas somos turistas que é tudo quanto há de mais triste. A ir que seja para dentro dos locais e povos, de modo, a sentirmos a mesma experiência diante de um Almada de quando fôramos crianças, que seja a revelação vestida em nós, que estejamos tão dentro e perto que esqueçamos a linha divisória entre estar e visitar. Acabou tudo como sempre acabou: os mais velhos morreram, nós ficámos, os lutos são posições espaciais e não uma paragem no tempo da dor, dado que nos querem fazer acreditar que ao não existir não devemos ter intervalos para ela e que todos, numa cripta incinerada, ainda damos matéria para um elemento que poderemos utilizar ao peito e matéria para estátuas. Não longe estamos do nazismo higiénico das cinzas, mas nós que labutámos para que nada disso voltasse a acontecer, de forma cega utilizamos os moldes que nos servem a medida de uma felicidade nunca antes conquistada. O paradoxo é o acaso mais conseguido e nem sempre estamos disponíveis para continuar sem as devidas rectificações. Numericamente gravados, somos um Holocausto predestinado à fúria das convenções onde a norma é aplicada sem retaliação: afinal, tal como os primeiros da saga, não sabemos exactamente para onde vamos. Só quando fecharem a luz e os gases começarem a inundar os espaços, teremos quietos a resposta. Definitivo é este século todo de correntezas imprevistas e súbitos acontecimentos que nos deixam a fumar água pelas narinas… Sabe-se lá se os cigarros são líquidos! Daquelas lindas embalagens guardamos os rótulos como de poemas se tratassem e somos seguidos pelos fumos sombrios de um planeta voluntariosamente ígneo, mas também glacial. Numa demonstração definitiva de que não só tudo mudou como aos poucos se tornará impróprio como habitação de todos. Por isso seria bom avançar rápido com as novas formas de êxodo galáctico na medida em que definitivamente se irá tornar um planeta radical. Tudo vai, tudo volta, tortuosos são os caminhos da eternidade…
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasCamilo Pessanha desembarca em Macau [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] calendário marcava 10 de Abril de 1894 quando, por volta das cinco da tarde, encostava ao cais do Porto Interior o vapor Heungshan vindo de Hong Kong. Pouco tempo medeia entre a chegada do novo Governador da Província de Macau e Timor, o Capitão de engenharia José Maria de Sousa Horta e Costa (1858-1927), e do professor do Liceu: apenas duas semanas. Mas se era a primeira vez que Camilo Pessanha vinha a Macau, já o engenheiro Horta e Costa conhecia bem o território, pois fora empossado a 2 de Novembro de 1885 Director das Obras Públicas de Macau, posto que ocupara até 2 de Novembro de 1888. Assim, quando em 24 de Março de 1894 pela primeira vez “assume o cargo de governador, Horta e Costa sabia muito bem quais os interesses locais e os jogos de poder, o orçamento de que dispunha e as ligações político-administrativas que teria de manter com o Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, sem esquecer a frente diplomática como Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário junto de Sua Majestade o Imperador da China e Rei de Sião”, segundo refere António Aresta. Acompanhado pela sua esposa Adelaide Silvano, o Governador, nomeado por decreto de 23 de Dezembro de 1893, partira de Lisboa a 18 de Fevereiro e chegara a Macau entre 22 a 24 (referindo o jornal Echo Macaense, talvez por engano, o dia 27) de Março, sendo transportado pela canhoeira Bengo, que o fora esperar no dia 21 a Hong Kong. Desembarcara no Cais do Governador, fronteiriço ao Palácio das Repartições Públicas, na Baía da Praia Grande, que muito jeito teria dado a Camilo Pessanha, pois o hotel onde iria ficar hospedado era logo ali ao lado. No entanto, o professor, como todas as comuns pessoas, fôra desembarcado no Porto Interior. A peste em Guangdong Tivesse Camilo Pessanha chegado em Maio e teria de passar pela inspecção sanitária, feita ainda no próprio barco pois, tal como Cantão, Hong Kong padecia já no pesadelo da peste bubónica, apesar de Macau se ter mantido livre de tal calamidade. O primeiro caso aparecera na última semana de Março num distrito pobre de Cantão, perto da porta Sul e nos primeiros dias de Maio manifestava-se já em Hong Kong. Por isso, todos os passageiros que vinham da então colónia britânica e da província de Guangdong eram inspeccionados na fronteira por um dos dois médicos navais, o dr. Novais ou dr. Homem de Carvalho, ali em serviço diário durante seis horas ininterruptas para fazerem a despistagem da terrível epidemia. Quem gostava de aparecer para vistoriar as passageiras estrangeiras era Ho-Lin-vong e Hip-Lui-sen que, a 22 de Junho de 1894 “entraram no vapor Heungshan juntamente com o sr. Chefe de Saúde, mostrando a sua autoridade na vigilância da inspecção dos passageiros, serviço de que se acha encarregado o sr. dr. Gomes da Silva. Este estado de coisas não pode continuar. É um desprestígio à autoridade que desempenha este trabalho e um motivo para os preponderantes alegarem serviços que não prestam nem podem prestar. Que vão inspeccionar os flower-boat do rio”, como refere no dia seguinte o jornal O Independente. De salientar continuarem em vigor em Setembro, as medidas preventivas contra a peste. Ainda em Junho, os chineses de Macau realizavam procissões com as suas divindades, percorrendo as ruas com andores para a cidade se conservar livre da terrível peste. Fôra para debelar um surto de varíola e de cólera, provenientes de Hong Kong que, em 1888, entrara na cidade a divindade Na Tcha. A estátua desse deus criança, um menino travesso dotado de poderes sobrenaturais, passeara pelas ruas de Macau e os residentes, por ele protegidos, dedicaram-lhe dois templos. Chegadas Ao desembarcarem no Porto Interior, no cais ponte feita em madeira, logo os passageiros eram apanhados pela frenética actividade e rebuliço do bazar chinês. De lembrar que ainda não existia a Avenida Almeida Ribeiro. “O comércio dos chineses é principalmente na rua do porto interior e no Bazar; na rua do porto interior faz-se a carga e descarga das inúmeras lorchas e outros barcos que demandam o porto, principalmente do peixe salgado, e no Bazar é onde os chineses tem os seus principais estabelecimentos de comércio, as casas públicas, onde eles tratam os seus negócios, as casas de jogo e colaus [restaurantes] que frequentam diariamente”, segundo refere o director das Obras Públicas, o eng. Augusto Abreu Nunes, também ele recém-chegado a Macau, a 14 de Dezembro de 1893, e ainda nomeado pelo Governador da Província Custódio Miguel de Borja, em 12 de Janeiro de 1894 para o cargo de Inspector de Incêndios. Depois do eng. Abreu Nunes, chegara a 22 de Janeiro, com a esposa e um filho, o dr. Álvaro Maria Fornelos, que vinha ocupar o cargo de Procurador dos Negócios Sínicos, interlocutor com o governo chinês. Em Fevereiro desse ano, o Administrador do Concelho das Ilhas da Taipa e Coloane e Comandante da Fortaleza da Taipa, o sr. Tenente João de Sousa Carneiro Canavarro era promovido a Capitão graduado. Os cules, trabalhadores chineses assalariados, em Macau desempenhavam o papel de serviçais ou de criados por conta própria que, desde 1858, estavam integrados numa companhia e organizados corporativamente. Mal o vapor proveniente de Hong Kong encostava ao cais de madeira, os inúmeros cules, trajados com cabaias gastas e imundas, acocorados na companhia de um cachimbo de bambu esfumando pequenas porções de tabaco durante a espera, num salto levantavam-se e precipitavam-se pelo barco dentro para descarregarem as bagagens dos passageiros. Fora, outros cules junto aos seus alugados, velhos e sujos riquexós, esperavam na praça o cliente, na esperança de conseguir a maquia suficiente para passar o resto do dia a trabalhar em lucro, refeição e jogo. Descendo do barco, com o corpo ainda a ondular, os assarapantados passageiros eram logo envolvidos pelos cules que, na tentativa de encontrar quem transportar, alimentavam o reboliço e a algazarra no Porto Interior. Os riquexós O cule coloca os varais no chão para permitir a Camilo Pessanha sentar-se na cadeira do riquexó e, após este instalado, levanta-os, preparando-se para partir. Provavelmente a bagagem era transportada noutro riquexó, por outro cule, já que nesse tempo em Macau ainda não havia automóveis. Existia a zorra, um carro baixo, com quatro rodas pequenas e grossas, para transportar objectos pesados. Em vias de desaparecer estavam as cadeirinhas, sem rodas, pois, para além do preço ser mais caro, eram mais vagarosas e desconfortáveis. Os riquexós, na linguagem oficial eram denominados jerinxá, ou jinrickshas, o nome japonês de onde a ideia deste tipo de transporte deve ter aparecido. No Japão, eram esses “carrinhos de duas rodas e varais ligeiros, puxados em corrida vertiginosa por homens designados por koruma”, como refere Ladislau Batalha. Em Macau, os riquexós surgiram na primeira metade de 1883 e desde então começaram a substituir as cadeirinhas, pois traziam a vantagem pela economia de tempo e dinheiro. Eram puxados por cules e se até 1894 havia vinte e tantos proprietários para os cerca de 280 carros, nesse ano foram eles preteridos, tendo o Senado entregue a um monopólio, que tomou conta desse negócio. Passa um cule aguadeiro a vender água aos recém-chegados, mas Camilo não se atreve a provar, guardando para mais tarde, quando deixasse a estadia do hotel, beber a água da bica do Lilau (designação então da Fonte do Nilau, ou do Lilau). A água que a cidade consumia era preferencialmente de três fontes ou, com pior qualidade, a dos poços. À chegada de Camilo Pessanha, em 1894, os poços seriam à volta de 600 particulares, dentro dos muros das habitações, e aproximadamente 140 públicos, ou comuns a muitos moradores, não sendo então ainda obrigatório os poços encontrarem-se com as bocas rodeadas de uma grade de ferro e terminar superiormente em chapa de pequena largura de modo a não servir para alguém aí se sente, ou se ponha de pé, quando tirar água, o que só vai ser legislado pelo Código de Posturas de 1896. Proveniente das fontes do Lilau, da Inveja e da Flora, a água era recolhida e transportada por cules aguadeiros, reunidos desde 30 de Outubro de 1858 numa Companhia, que a entregavam a cada um dos bairros, cobrando dinheiro pelo frete do seu transporte. Já sobre a qualidade da água potável, Macau não vai conseguir resolver esse problema durante a vida de Camilo Pessanha. Em cima do riquexó e ajustado o preço, que andaria pela dezena de avos até ao Hotel Hing Kee, no outro lado da cidade, num relance terá avistado as águas do Rio Oeste. Camilo Pessanha não sabia estar na ordem do dia o assunto dos jinrickshas, pois o Leal Senado preparava-se (concurso realizado a 26 de Junho de 1894) para licitar a entrega desse negócio a um monopólio. Os até então proprietários dos carros tinham visto em Janeiro as taxas a pagar ao Leal Senado aumentadas para $23,50 por ano, assim como aparecera publicado no Boletim Oficial a faculdade conferida ao Leal Senado de determinar as dimensões de cada carro. Queixava-se o repórter do jornal O Independente, de 13 de Janeiro de 1894, “o esquecimento dos ilustres edis de ao mesmo tempo fixarem o máximo do preço do aluguer que os proprietários dos carros têm direito a exigir aos condutores, a fim de que estes não ficassem à mercê da exploração daqueles. Esquecia-se essa postura de publicar a relação das calçadas íngremes que não sejam conduzidas por dois homens. Assim quem ia pagar o aumento da taxa eram os utentes”. De referir ter sido o aparecimento do projecto do Liceu, ao convidar a câmara a participar com um subsídio, deliberando o Senado dar 5000 patacas, que levou o seu Presidente, o sr. Comendador Basto, a dizer numa das sessões ter chegado a ocasião de apresentar a moção do vereador Victorino sobre o monopólio dos jinrickshas. Assim, quando Pessanha aqui chegou, estava essa entrega a ser preparada, sendo à partida conhecido quem ia ficar com o negócio. O difícil primeiro contacto com os estrangeiros recém-chegados, pela falta de palavras para se fazer entender e captar o cliente, o cule no levantar a voz espera conseguir, pelos poucos sons reconhecidos, dar os nomes dos hotéis desejados. Fácil quando se tratava de passageiros ocidentais pois eram então apenas dois, o Boa Vista e o Hing Kee. Os hotéis para estrangeiros O Hotel Boa Vista era propriedade desde Março de 1891 do inglês William Edward Clarke, capitão do vapor Heungshan. Fora inaugurado a 1 de Julho, após ser ampliada a casa da família Remédios, construída por volta de 1870 e onde esta continuava a residir, servindo também como local de hospedagem para muito do pessoal das companhias estrangeiras que operavam em Macau. Este hotel, situado no Chunambeiro, na Rua do Tanque do Mainato (hoje Rua do Comendador Kou Hó Neng), encontrava-se num morro protegido desde 1622 pelo então já desmantelado (desde 1892) Baluarte de Bom Parto, mas ainda sem ter sido parcialmente destruído, como veio a acontecer em 1910. O baluarte fora construído sobre as ruínas do cemitério dos Agostinhos, onde teriam os missionários espanhóis desta Ordem Religiosa edificado o seu mosteiro em 1586. Sobre a Praia do Bispo, o Hotel Boa Vista foi gerido até 1894 pela família Remédios, sendo a clientela maioritariamente britânica e era o único (segundo a propaganda) com um estatuto de verdadeiro hotel na cidade. Mas, devido ao progressivo e cada vez mais rápido assoreamento do Porto Interior, após a mudança do vapor Heungshan pelo Kiu Kiang, de menor calado e péssimo serviço a bordo, o capitão inglês William Edward Clarke deixou de poder estar presente no seu hotel e durante as travessias publicitar o Boa Vista, sobretudo aos compatriotas que de Hong Kong vinham passar o fim-de-semana. Já o hotel concorrente, o Hing Kee, hospedava os portugueses à chegada a Macau mas, após se familiarizarem com a cidade, mudavam-se para as suas próprias casas. No entanto, sabia-se ficar a estadia no hotel mais em conta do que alugar uma casa e nem mesmo nas “repúblicas”, casas alugadas por várias pessoas, os custos eram menores. Ao escutar “Hing Kee”, essa familiar sonoridade eleva-se sobre o ruído, sobre a barafunda que em frente ao cais do vapor, por momentos se dissolve para de novo se voltar a ouvir. Na postura, os cules captam os clientes e procuram proporcionar-lhes a tranquilidade de alguém ter compreendido os seus desejos. A comunicação é sustentada pela empatia e o esforço de compreender e articular os nomes em português dos lugares normalmente requeridos pelos passageiros a transportar. Camilo Pessanha entrava em Macau e, num ápice, dava por si a rolar.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO desprezível regime da Coreia do Norte “Throughout the post–Cold War period, U.S. responses to North Korea’s nuclear ambitions have been based on a simple premise: a nuclear North Korea would destabilize regional stability and thus cannot be permitted under any circumstances. At the height of each of the North Korean nuclear crises, both the Clinton and Bush administrations imposed a series of economic sanctions and considered military options.” “Global Rogues and Regional Orders: The Multidimensional Challenge of North Korea and Iran” – Il Hyun Cho [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Coreia do Norte tem sido particularmente contraditória nos últimos meses, aumentando acentuadamente o número e a ambição dos seus testes de mísseis balísticos. Ainda não é claro, porque razão o seu governo optou por se comportar de uma maneira tão desviante em termos internacionais. A opinião convencional é de que o regime de Kim Jong-un parece sente-se repentinamente muito mais ameaçado pelos Estados Unidos e pelos seus aliados, temendo que seja o próximo país escolhido para uma intervenção militar em grande escala e subsequente mudança de regime político. Assim, e de acordo com essa linha de pensamento, Kim e os seus seguidores estão à procura desesperadamente por construir um programa de mísseis balísticos e armas nucleares, que seja suficientemente grandioso, potente e de grande alcance para dissuadir os americanos e s o seus aliados de os atacar militarmente. Se considerarmos em termos de valor nominal, esta posição parece razoável, pois a Coreia do Norte é um estado desonesto, que é amplamente criticado pela maior parte do mundo, não fazendo uma análise minuciosa da situação em termos globais. Em primeiro plano, não existe motivo para que a Coreia do Norte se sentira mais ameaçada, actualmente, do que nos anos anteriores. As doutrinas de invasões preventivas e mudanças de regime chegaram ao seu ponto culminante, sob o governo George W. Bush, declinaram com Barack Obama e não há motivo para acreditar antes da crise actual, que Donald Trump teve algum interesse real em uma guerra com a Coreia do Norte. Os comentários de Trump sobre o Kim Jong-un, em verdade, foram geralmente corteses durante a sua campanha eleitoral e, recentemente, em Maio de 2017, Trump elogiou Kim como um biscoito muito inteligente, e sentir-se-ia feliz por sentar-se à mesa e comer na sua companhia um hamburguer. A declaração de que o regime começou a testar mísseis com mais rapidez do que nunca, porque se tornou dominada por um súbito terror de que os Estados Unidos e os seus aliados iriam invadir o país sem aviso, não tem qualquer fundamento. Em segundo lugar, há poucos desejos estratégicos da parte dos Estados Unidos e dos seus aliados de derrubar o regime de Kim Jong-un e os norte-coreanos bem o sabem. Os sul-coreanos preocupam-se com os milhões de refugiados que inundarão as suas fronteiras, se o regime de Kim Jong-un entrar em colapso, e o gigantesco custo financeiro que uma unificação subsequente poderia acarretar. Os japoneses estão mais preocupados com a ameaça representada pela China do que pela Coreia do Norte, e temem que uma mudança de regime neste país possa reduzir o número de forças militares dos Estados Unidos estacionadas na região, o que também reduziria a necessidade estratégica que une a Coreia do Sul e o Japão, apesar das nefastas memórias que existem entre os dois estados, sobre o horrível tratamento japonês dado ao povo coreano de 1910 a 1945. Sem a ameaça da Coreia do Norte, o Japão poderia sentir-se abandonado pelos seus dois principais aliados e ter de enfrentar só o emergente gigante chinês. A Coreia do Norte fornece aos Estados Unidos um pretexto para estacionar as tropas e forças navais na região, o que ajuda a conter a China, enquanto minimiza a necessidade de fazer uma menção exagerada ao elefante na sala da região. Em terceiro lugar, mesmo que Kim Jong-un realmente se sentisse em pânico sobre a administração Trump, já possui o dissuasor mais efectivo, que pode realisticamente esperar alcançar. O regime testou com sucesso, em termos nucleares, uma bomba atómica em 2006 e, posteriormente, construiu uma reserva pequena, mas letal, de armas nucleares. Tem a capacidade de fazer ataques nucleares contra os parceiros americanos na Ásia-Pacífico, nos próximos anos, e poderá até atacar os Estados Unidos usando a sua grande força submarina ou colocando ogivas em contentores de carga, que poderiam ser enviados e não detectados para os portos americanos e detonados remotamente. Além disso, as suas ogivas foram feitas de forma impenetrável contra um primeiro ataque americano por algum tempo, inclusive através da ocultação em “bunkers” subterrâneos fortificados. Pelo menos alguns seriam provavelmente carregados em submarinos lançadores de mísseis, que a Coreia do Norte testou com êxito em Setembro de 2016. Isso garante que a Coreia do Norte possui uma capacidade nuclear poderosa de retaliação. Ao reforçar a sua dissuasão nuclear, a Coreia do Norte também possui a capacidade de responder a uma invasão ou ataque nuclear americano, infligindo uma destruição terrível aos aliados dos Estados Unidos e aos americanos com base na Ásia-Pacífico usando meios não-nucleares, incluindo o ser capaz de devastar a capital sul-coreana com rajadas massivas de artilharia aptas a realizar ataques químicos, ainda que exista qualquer proximidade entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos em termos de paridade nuclear. Temos de considerar que em quarto lugar se a Coreia do Norte realmente procura evitar ser atacada, deve manter uma atitude tão moderada quanto possível. A Coreia do Norte não tem escassez de problemas internos e externos que estão sob observação da administração Trump, e seria fácil manter-se em segurança se resolver deixar de ser o centro das atenções mundiais. As acções da Coreia do Norte foram particularmente provocatórias, quase deliberadamente estudadas para fomentar uma resposta hostil. O assassinato de Kim Jong-nam em Fevereiro, usando uma arma química em plena luz do dia em um aeroporto da Malásia, só faz sentido se o objectivo fosse estimular os actores estrangeiros a níveis mais altos de hostilidade. O retorno do cidadão dos Estados Unidos, Otto Warmbier, em estado de coma e que acabou por falecer a 19 de Junho de 2017, quando tinha sido condenado a uma pena de quinze anos de trabalho e não era visto há mais de um ano, parece intencionalmente preparado para inflamar os ânimos. Porque não o mantiveram escondido, fingindo que ainda estava a cumprir a sua sentença? Mesmo os próprios testes de mísseis foram realizados de forma mais conflituante possível, com o regime norte-coreano a responder às críticas dos Estados Unidos, proclamando que realizaria os testes semanalmente, mensalmente e anualmente, juntamente com o lançamento de novos vídeos de ataques nucleares da Coreia do Norte contra importantes cidades americanas. O momento para o teste do mais recente míssil efectuado pela Coreia do Norte, foi no dia de feriado nacional dos Estados Unidos, a 4 de Julho de 2017, sendo uma verdadeira bofetada provocativa. Se a Coreia do Norte tivesse realmente medo de uma invasão pelos Estados Unidos e seus aliados, chamar deliberadamente e repetidamente a atenção de forma negativa é uma acção completamente descabida. Ainda podia testar os mísseis, mas tentaria evitar anunciar ao máximo o que está realmente a preparar. Se a série de testes de mísseis que aumentam rapidamente não está a ser feita principalmente para evitar um ataque dos Estados Unidos contra a Coreia do Norte, qual a razão porque o regime está agir tardiamente de forma tão beligerante? Alguns dos possíveis motivos são bem conhecidos e um deles é que o governo pode estar a usar os novos testes para divulgar a força e as conquistas técnicas do regime à sua população, a fim de distraí-los e reduzir o seu descontentamento. O outro motivo é de que Kim Jong-un pode acreditar que inúmeros testes permitirão fazer os Estados Unidos retornarem às negociações, e fazerem novas concessões à Coreia do Norte, tendo como moeda de troca a paralisação do seu programa de armas nucleares. Há também, no entanto, outra razão potencial que recebeu pouca consideração nos círculos políticos e académicos, que é o facto da Coreia do Norte estar intencionalmente a incitar os Estados Unidos, ao lançamento de ataques punitivos em pequena escala contra si. Tal pode parecer contra-intuitivo, qual a razão porque um país quer ser atacado por forças externas? Os ganhos em popularidade do seu líder, provavelmente, superariam as perdas materiais incorridas pelos bombardeamentos, especialmente porque a história mostrou que tais ataques de mísseis americanos raramente têm qualquer efeito militar significativo. A história também mostrou que um governo sob ataque de um inimigo internacional muitas vezes experimenta um enorme impulso de popularidade, como resultado do aumento de patriotismo, um maior desejo de cooperação contra um agressor, e uma melhor disposição para tolerar as dificuldades internas como parte do esforço de guerra e conhecido como “Síndrome ao redor do efeito de bandeira.” O mesmo aconteceu, por exemplo, no início da campanha de bombardeamento da OTAN a Belgrado, durante a Guerra do Kosovo, o que levou a uma explosão de popularidade para o anteriormente aviltado presidente Slobodan Milosevic, e que permitiu que permanecesse no poder por mais tempo do que seria possível (a sua popularidade apenas possibilitou, depois de se saber que os bombardeamentos seriam sustentados, algo que a dissuasão norte-coreana desde longa data, bem como as protecções chinesas e russas, converteriam em suicidas para que os Estados Unidos se acaso tentassem). O regime norte-coreano vem a trabalhar para acumular benefícios de popularidade, por estar em estado de animosidade com os Estados Unidos há décadas, mas a realidade do conflito essencialmente ilusório que descreve para o seu povo, sofre de uma grande falha que é a ausência de ataques inimigos palpáveis que a população pode ver, ouvir e sentir. Um ataque real dos Estados Unidos preencheria bem esse vazio. Além disso, uma das fraquezas da posição de Kim Jong-un como líder é a ausência de credenciais militares reais. Ter a oportunidade de agir como o líder que, valentemente, enfrenta o poder da superpotência mais importante do mundo e sobrevive, ajudaria também, a preencher essa lacuna com facilidade. Kim Jong-un tem uma razão clara para desejar um impulso interno em termos de popularidade. O estado fortaleza sobre o qual reina, está a ser atacado por uma multiplicidade de factores que podem prejudicar o controlo do seu regime sobre a população, incluindo uma escassez generalizada de alimentos, prestação inadequada de cuidados de saúde, extrema escassez de energia e aumento do acesso da população a informações do mundo exterior, através de meios ilegais. Apesar de o regime parecer ser seguro contra o risco de revolta interna ou golpe militar em futuro previsível, só se mantém devido ao intenso e contínuo trabalho do governo e das suas forças de segurança para manter o “status quo”, e patrocinar uma manifestação patriótica em torno do regime de Kim, face a ataques americanos abertos, bem como elevar o próprio líder a herói militar, pode ser visto como suficientemente benéfico para valer a pena o sofrimento de um dano físico, resultante de um ataque que um míssil ou drone pode causar. Assim, Kim Jong-un recuaria na ideia de um ataque nuclear americano ou de invasão em grande escala, que significaria o fim do seu regime. A dificuldade para o seu governo é de encontrar a resposta correcta. Se agir de forma muito beligerante, ao disparar uma ogiva nuclear contra Tóquio ou Seul, por exemplo, provavelmente criaria uma resposta de grande intervenção ou erradicação nuclear. Ao invés, trata de irritar e ofender os Estados Unidos a um nível que seja suficiente para incitar um bombardeamento em pequena escala, mas não a nível tão grave que possa vir a incorrer em algo pior. As acções que o regime tomou nos últimos meses, incluindo o teste de novos mísseis, mas que na verdade não atacaram país algum, matando ínfimas pessoas, em vez de grande número de civis estrangeiros, e nivelando as ameaças que são preenchidas com hipérbole, mas cuja pouca essência alinharia exactamente com esta estratégia. É altamente improvável que os Estados Unidos arrisquem que a Coreia do Norte dispare armas nucleares contra os seus aliados, ou fazendo explodir um contentor de carga nuclear em São Francisco, ou provocando uma retaliação nuclear maior da China, ou mesmo lançando uma invasão em grande escala da Coreia do Norte por causa de um único cidadão morto e alguns testes de mísseis ilegais. Todavia, não é de todo improvável que possa responder com o mesmo tipo de ataques militares que Trump usou contra a Síria este ano, depois do governo de Assad ter usado armas químicas contra a sua população, Bill Clinton usou contra o Afeganistão e a Somália após os ataques da embaixada dos Estados Unidos em 1998, e contra o Iraque no mesmo ano, por não terem cooperado com os inspectores de armas da ONU, e Ronald Reagan utilizou contra a Líbia em 1986, após o bombardeamento da discoteca de Berlim e contra Beirute, em 1983, pelo bombardeamento de um quartel militar multinacional. É de considerar que, enquanto a administração Trump considera as suas respostas ao recente aumento de beligerância da Coreia do Norte, deve ter em consideração que o lançamento de ataques limitados pode, de facto, ser exactamente o que o regime de Kim Jong-un quer. Existem muitas outras razões pelas quais os Estados Unidos devem agir com extrema prudência, antes de tomar esse caminho, que não deve ser negligenciado. Fazer exactamente o que um ditador totalitário desprezível quer, pode em geral ser uma má decisão. A verdade é que as sanções ocidentais e as promessas de acção da China não conseguiram controlar o seu programa nuclear, tendo a Coreia do Norte realizados testes de mísseis a cada duas semanas desde o início do ano. As sanções são destinadas a prejudicar a economia, mas apesar de toda a miséria, o país está a crescer entre 1 por cento a 5 por cento ao ano. A ONU tentou bloquear o acesso da Coreia do Norte ao dólar americano, limitando a quantidade de carvão que o estado pode exportar, potencialmente privando-o de mais de um quarto da sua receita total de exportações. A China, compradora de 99 por cento das vendas de carvão da Coreia do Norte, afirmou em Fevereiro de 2017 que suspenderia todas as importações. Tais medidas não tem impedido que a Coreia do Norte continue por meios fraudulentos a vender carvão e a ter acesso a moeda estrangeira, bem como usa agentes de terceiros países para vender drogas, armas e produtos falsificados. O governo permite que as pessoas singulares criem negócios lucrativos, Além de produzirem para o Estado, os agricultores e as fábricas têm alguma liberdade para procurar os seus clientes. As imagens de satélite mostram que os mercados crescem em tamanho e número entre as cidades. As pequenas e médias empresas estão a proliferar e seis empresas de táxi operam em Pyongyang. A fúria apocalíptica da Coreia do Norte na realização de um programa de armas nucleares, incluindo o seu não cientificamente e militarmente provado primeiro lançamento de mísseis balísticos intercontinentais é fundamentado no que dizem ser um conjunto racional de metas em que o mais importante é a auto-preservação. O regime diz que quer uma bomba nuclear porque viu o que aconteceu, quando o Iraque e a Líbia ficaram sem as armas de destruição massiva. Os seus regimes foram derrubados por intervenções apoiadas pelo Ocidente. A Coreia do Norte quer travar outros países de fazerem o mesmo, nomeadamente a administração do presidente Donald Trump, de derrubar o seu regime totalitário.
Isabel Castro VozesDois por quatro [dropcap]1[/dropcap] Macau tem um ritmo estranho. Às tantas os outros sítios também têm um ritmo estranho, mas quem vive aqui não está neles e, por isso, não sabe de certeza vivida. Ficamos por cá a fazer a contabilidade de um tempo bastante parvo, em que os dias são sempre muito compridos e, em simultâneo, demasiado curtos, até porque o sol foge cedo, muito cedo, nos dias em que se digna a aparecer. São dias compridos, mas curtos, que teimam em ser extraordinariamente repetitivos para quase todos nós, emoldurados que estamos entre afazeres profissionais, familiares, pessoais, sociais. Dias curtos, mas compridos, que se condensam em ciclos, sempre mais ou menos iguais. Quem veio de fora faz as contas não aos anos, mas ao número de edições deste ou de determinado acontecimento. A partir de certa altura, o tempo começa a mingar. Ainda ontem era grande prémio e está quase aí outra vez, deixem o Verão acabar e vão vê-lo em auditivas acelerações. Por entre estes compassos repetitivos de Macau, que se escreveram para serem dois por quatro, andante, andam fusas e semifusas que, de tão rápidas, se nos escapam ao entendimento. Damos por elas, mas não sabemos que leitura fazer das coisas que não aparecem escritas. O que nos mostram não chega a ser. Não nos resta mais do que esperar pelo tempo, esse conceito que alguém inventou para evitar que vida e morte se juntassem demasiado depressa. [dropcap]2[/dropcap] Vêm aí as legislativas, assunto que, muito provavelmente, não empolgará por aí além a maioria dos que me lêem. Para este ano há mais do mesmo, com mais diversidade, mas com o grau de interesse de sempre: pouco. Ainda assim. Faz parte desta coisa de ser cidadão estarmos informados das nossas opções, mesmo sabendo, de antemão, que dificilmente nos servirão. É um direito dever, um dever direito, não há mais e é o que temos. No início era complicado perceber isto, lembro-me bem. Fui assistir ao meu primeiro plenário na Assembleia Legislativa com uma útil revista na mão que me dizia quem era quem, na medida em que é possível perceber-se quem é quem, e lembro-me de pensar que seria difícil algum dia entender o que verdadeiramente se dizia por ali. Não me enganei redondamente, apesar de, com o tempo, ter conseguido fixar os rostos e algumas das ideias, uma conquista que, feitas bem as contas, serve de pouco, de muito pouco. Sei quem são mas não sei quem são, ainda hoje, apesar de tudo. Ainda bem. Ainda assim. Várias legislaturas depois, com mais mudanças pelo meio do que seria de esperar, apesar do tédio que marca o tempo político, continuo a surpreender-me com este sistema e com quem faz parte dele. Os grandes e os pequenos, os grandes que estão ali de pedra e cal, com raízes na alcatifa fofa, e os pequenos, aqueles que não chegam lá mas que, por algum motivo quase sempre pouco ligado a uma irresistível vontade de participação cívica, querem lá estar também. Por norma, não conseguem. Ainda assim. Surpreendem-me os nomes e a falta de ideias e também o excesso de monotemáticas lutas. Listas que têm apenas um único objectivo, como se fosse um disparate ter mais do que um. Ou como se fosse de todo impossível dez cabeças produzirem dez ideias diferentes. Listas que se dizem cor-de-rosa, o que quer que isso signifique. Candidatos que continuam no século XX, na primeira metade do século XX. Candidatos que não saíram do século XVIII. Candidatos que ainda não perceberam que já não há cavalos e burros nas ruas, que dos agricultores resta apenas uma associação com o nome, que as mulheres não carregam cântaros na cabeça e que as crianças não andam descalças, barrigudas de fome, nas ruas enlameadas da terra, e que os mandarins agora são outros, com menos sedas e talvez menos mulheres. O tempo tem um ritmo estranho. Compassos de dois por quatro, andante, 60 por minuto, como manda o tempo, talvez 80 em caso de crise, fusas e semifusas que não encaixam, corre tudo tão depressa e tudo fica no mesmo sítio.
João Luz Perfil PessoasPeter Bartusek, profissional dos sete ofícios | Homem do renascimento [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á pessoas que deambulam pelo mundo, quase como se vivessem ao sabor do vento. Peter Bartusek é um bom exemplo disso, o protótipo daquilo a que se convencionou chamar de um cidadão do mundo. Em poucos anos, o húngaro viveu em seis países, sempre com ocupações diferentes. Há quatro anos chegou a Macau na sua primeira incursão asiática. O primeiro impacto foi perturbante para Peter Bartusek. “Na altura, vivia em França, nas montanhas, no meio do campo, e quando cá cheguei fiquei chocado, não gostei muito de Macau”, confessa. O abalo inicial foi como uma comoção. Habituado a ter campo de visão, Peter Bartusek sentiu uma enorme falta da natureza e de amplitude, de espaços abertos. “Achei a cidade claustrofóbica e poluída”, conta. Aos poucos, essa sensação foi sendo atenuada, em especial com a ajuda das amizades que foi firmando. “Conheci pessoas muito boas, mas é claro que se demora sempre um pouco a desenvolver amizades e a ganhar confiança”, recorda. Os primeiros contactos com locais, em particular chineses, foram complicados para o húngaro. O recém-chegado achou as pessoas rudes, com um trato duro, pouco polido. Uma primeira impressão que se foi alterando à medida que foi entendendo a cultura. “Normalmente não gosto de gritar com empregadas para conseguir chamar-lhes a atenção, não é assim que as coisas funcionam na Europa, mas foi algo a que me tive de habituar”, exemplifica. Hoje em dia, Macau ainda o sujeita a altos e baixos constantes. Depois de se ter apercebido do panorama geral, de ter entendido a cidade, Peter Bartusek passou a gostar de Macau, com o tempo lá sucumbiu ao seu charme. Para já, confessa que não tem planos para sair, é algo que não está no seu horizonte. Ainda assim, se sair, o húngaro “gostava de ficar algures na Ásia”. Multi-tasker Chegou a Macau porque as oportunidades de emprego na Europa escasseavam, mesmo para uma pessoa que faz de tudo um pouco. Peter Bartusek, enquanto estudava Química na Hungria, trabalhou na construção civil. Terminado o curso, conseguiu emprego numa empresa farmacêutica, onde ficou um ano e meio. Depois disso, o acaso tomou conta da sua vida profissional e fê-lo percorrer a Europa. Após uma conversa provocadora com um amigo, acabou por se mudar para a Grécia, onde trabalhou como fotógrafo. Em seguida foi viver para Inglaterra, onde foi empregado num centro de jardinagem e depois num centro de lavagem de automóveis. Voltou à Hungria, onde trabalhou em atendimento ao público num aeroporto a vender bilhetes de shuttle. Seguiu para mais uma temporada em Inglaterra, antes de viver seis meses em Oeiras. A passagem seguinte, antes de vir para Macau, foi em França. “Já fiz de tudo, acho que nunca fiz nada duas vezes, andei de trabalho em trabalho, de país em país.” Em Macau faz de tudo um pouco, pinta apartamentos, faz reparações, trata de canalizações. É algo que gosta de fazer e que veio mesmo calhar, uma vez que em Macau escasseavam pessoas a fazer este tipo de trabalho que falassem inglês. Na visão de Peter Bartusek, todas estas mudanças enriqueceram-lhe, em muito, a vida. “Acho que sou mais tolerante em relação a pessoas que são diferentes de mim, aprendi a adaptar-me a diversas situações em pouco tempo”, explica. O húngaro chegou, várias vezes, a terras que não conhecia sem ter um emprego, sem ter nada e a ter de arranjar formas de sobreviver. Sempre com o apoio de amigos, conhecendo pessoas e encontrando formas de trabalhar com elas. Até que chega a Macau, onde o húngaro de 33 anos já vive há quatro anos e se sente em casa. Por cá, gosta de Coloane, de ficar próximo da natureza, mas também se deixou encantar “pela estranheza da cidade, onde há zonas que são o equivalente a viajar pela história”. Outro dos destaques de Peter Bartusek são os pequenos restaurantes chineses, onde gosta de partilhar uma refeição com os amigos. Até nesse aspecto, Macau pode oferecer um pouco de aventura e uma sensação de entrar em território imprevisto, um pouco ao sabor da vida do húngaro. “Adoro as velhas tascas chinesas, onde é sempre divertido e desafiante pedir algo”, conta Peter Bartusek.