Deus ex machina

2 – Rezar a deus em tempos de GPT

Não tinha chegado à ideia de Deus, ou da IA, na crónica anterior. Nem vou chegar. Espreito, talvez, emboscada por debaixo de uma intuição, esse cruzamento de caminhos virtuais no ponto inexacto da encruzilhada em que imaginei que uma coisa e outra se encontravam. A essa ideia de Deus, quero dizer, cruzada com a ideia de Natureza. E do que é natural imaginar. E a IA, a derradeira utopia. Imaginada, passará a imaginar por nós.

Penso na expressão de Francisco d’Holanda: “Do tirar polo natural”, centrar a aprendizagem do ver o mundo, na experiência directa do olhar e do sujeito contemplado – é assim que caracteriza “o natural” – e não no que já foi visto, registado e processado por algo ou alguém. Tão actual se pensarmos que hoje cada vez mais se substitui essa experiência directa pela busca virtual. E depois questiono sobre o grau de naturalidade da inteligência, do pensamento e de qualquer outro produto do cérebro. As alucinações, sonhos, e as outras, criadas ou corrigidas com medicamentos ou drogas.

E Deus, criado à medida dos humanos. Que, de acordo com Zizec, retirou Cristo do convívio (natural?) com os mortais (como aquele feiticeiro mau, de uma história de encantar, retirou o mar durante a noite, enrolando-o como a um tapete). Por ineficácia. Demasiado humano para os humanos, sem o que os transcende e não identificam num igual. Etéreo, mantém a expectativa da salvação.

Há por aqui uma humanidade exausta a trabalhar para se tornar inútil no que a distingue. Na necessidade de uma ideia de Deus, inventa-a e depois uma inteligência à sua semelhança, mas maior, megalomania de poder e domínio do saber, mas que pela rapidez – que não vai ser possível acompanhar – por lhe ser possível criar novas ideias e por poder tomar decisões, gerará seguramente uma independência relativamente aos humanos, sobrenatural. Como um novo deus, criado, com infinitas possibilidades de manipular, intervir e castrar. Seduzir e substituir.

Rezar. Baixinho ou inaudivelmente, na obscuridade magica de uma capela, ou por dentro da cabeça. Preces dirigidas ao alto, nas nossas melhores palavras. Sem reparar, nas aflições, se as concordâncias estão impecáveis, a ortografia. Mas reza-se, hoje, em redes virtuais, colocando ao mesmo nível conhecidos e desconhecidos e Deus. Um atalho novo. Mas nunca encontramos “essa” página. Por escrito, sobram visíveis as imperfeições do humano quando se expressa. Como será apetecível, embarcar sem retorno nesta modernidade tecnológica e mandar produzir preces, por medida. Como as cartas escritas por encomenda, daquelas de antigamente, quando se escreviam cartas e cartas de amor. E alguém generoso ou por dinheiro as alindava, para as enviar quem não as sabia escrever. Ditadas, explicadas no sentido ou confiadas cegamente à imaginação de quem escrevia. Um pequeno escriba de bairro, uma vizinha, uma neta miúda. Também o fiz, há muito tempo para alguém que não tinha aprendido a escrever e a ler. Ela ditava e eu estendia um pouco o assunto. Era a voz dela, corrigida na sintaxe, mas nunca no sentido.

Já não se usam cartas. Aqueles textos longos, suados e esperados, descritivos. E não é porque, tendo meios mais imediatos, não vá a alma esmorecer na espera. É porque se diz menos, muito menos, ou nada.

A pensar que, assim como se pode recorrer ao chatGPT para uma prece, um artigo de opinião ou um poema, também podemos recorrer às virtualidades chatbot para perguntar e obter respostas. Deus já disse o que tinha a dizer por interpostas pessoas que estão nas bases de dados e assim dispõe a IA de tudo o que é necessário para nos colocar em diálogo com ele. Com a sua voz, que nunca mais ninguém ouviu.

Mas se é a mente que nos substitui o voo das asas que nem temos e precisa de alimento e ginástica, com o filtro sensível que opera sínteses a partir de memórias – mas não em gigabytes – que atrofia, nos espera, para além da preguiça da memória que progressivamente cultivamos menos, apoiados em mecanismos de busca, ou em aplicações de orientação espacial que nos indicam o caminho passo a passo sem ver no todo um mapa. Esquecendo o encantamento de saber o mapa de uma cidade conhecida ou desconhecida. Não porque não esteja lá, mas porque nos passou a interessar somente a pedra mais imediata do caminho. É curioso, no fundo são escolhas que fazemos. Seguir às cegas. E não quem ainda nos explique um caminho. Dizem-nos: liga o gps. Como se tornará progressivamente inútil, a mente, se uma aplicação de IA produz discursos articulados, detalhados e criativos, ou imagens, se pode substituir, com qualidade, as lacunas de saber e saber fazer, de um utilizador. Que opte por usá-la como ferramenta, mas imperceptivelmente se faz substituir por ela. Quanto de desonestidade está ao alcance da vontade de sermos ou não sermos honestos.

Deixar de memorizar caminhos, números, nomes, datas, factos e acontecimentos. Poderia ter sido bom, se pensássemos que o espaço ocupado por essas informações, ficando disponível, nos libertaria para outras operações formais, outras realizações, mas não parece que tenhamos aplicado essa disponibilidade extra de forma significativa. E quando também já não precisamos de articular uma opinião, uma resposta e isso é válido para namoros, testes e teses, e a tentação é enorme, á agilidade do cérebro e à sua originalidade individual, está reservado ser mais pobre.

Neste hipotecar da dinâmica psíquica a uma aplicação artificial a que se chama inteligência, num tempo que cada vez mais nos divide de nós próprios, na ilusão de que podemos escolher, imagino, cada vez mais, um nicho defensivo. Para reagir à alienação. Para que servirá esta réstia de humanidade no futuro, quando tiver preguiça de pensar por si, de falar por si e perder o que tem de distinto, numa miríade de aplicações. A estas só lhes faltará viver por nós. Mas vai parecer que não.

Humanidade diletante a inventar tiros no pé, com tantos problemas de fundo a solucionar. Quando cada novo avanço, científico ou tecnológico, tem em si possibilidades de ser mal utilizado e prejudicial, talvez se verifique ou o princípio de Peter ou a lei de Murphy. Ou ambos. Fico indecisa. A lembrar o velho do Restelo. Mas, na verdade, sou como o arqueiro de Khalil Gibran: “assim como ele ama a flecha que voa, ama também o arco que permanece estável.”. Somente, sem esperança nem alegria, acabo por preferir o arco, porque a flecha é a que fere o pé.

Ou, como disse Herberto Helder no seu “: Lugar último”:

“Contra mim, contra minha divagação.

Penso: a flecha ama a onça.

A morte ama o que morre. “

Ama?

Maria e Maria Madalena foram ungir o corpo com os óleos da intimidade. Foram. Mas sobre a pedra, nada. Do corpo, só pedra em vez de coração. Depois disso, roldanas cénicas a descer os deuses que os deuses deixam, como penas deixadas para trás.

Ou, simplesmente fazer download.

25 Ago 2023

Japão aprova lei para limitar pedidos de doações de grupos religiosos

O parlamento japonês aprovou uma lei para limitar os pedidos de doações de grupos religiosos, uma medida direccionada sobretudo para a Igreja da Unificação, que chamou a atenção pelas ligações ao assassino confesso do ex-primeiro-ministro, Shinzo Abe.

Segundo a Europa Press, a lei foi aprovada com o apoio do bloco no Governo e da maioria da oposição, cinco meses após o assassinato de Shinzo Abe pelas mãos do filho de um seguidor da Igreja da Unificação, que acusou a organização de arruinar a família, devido a doações.

A legislação proíbe as organizações de “enganar” o público para solicitar doações, recorrendo a tácticas coercivas pelo medo.

Assim, é proibido pedir aos doadores que obtenham dinheiro através da venda de imóveis e outros bens e a medida aprovada contempla penas de até um ano de prisão e multas de um milhão de ienes (cerca de 7.200 euros).

Adicionalmente, se as doações forem feitas por qualquer das formas proibidas pela nova lei, os cônjuges ou filhos dependentes dos doadores poderão cancelá-las em seu nome, através de procedimentos legais.

Lei do povo

O primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, destacou que se reuniu com as vítimas daquela organização religiosa e reconheceu que os seus problemas são “muito graves”, pelo que prometeu “adoptar as medidas necessárias” para aplicar a lei “ de forma eficiente”.

No entanto, vários parlamentares que apoiam as pessoas arruinadas por doações criticaram a legislação, considerando que foi elaborada rapidamente e que tem deficiências, segundo a agência de notícias japonesa Kiodo.

A legislação surgiu depois de familiares de ex-seguidores da Igreja da Unificação terem enviado queixas ao Governo, acusando o grupo religioso de levar as suas famílias à falência, ao pedir doações avultadas.

A Igreja da Unificação, fundada no país em 1954, é conhecida pelas suas “vendas espirituais” e por pressionar os seguidores a comprar produtos a preços exorbitantes.

O Governo japonês lançou uma investigação sobre a gestão da controversa Igreja da Unificação, em Novembro, para perceber se existem práticas de violações da Lei de Organizações Religiosas, no que diz respeito à angariação de seguidores e à gestão das doações recebidas.

12 Dez 2022

Religião | Prevenção da pandemia divide moderados e fundamentalistas

Enquanto no Vaticano o Papa Francisco celebra os ritos pascais sozinho, muitos líderes religiosos, das mais diversas crenças, contrariam as medidas que procuram parar a propagação do novo coronavírus. Em Itália, o país com mais vítimas mortais da covid-19, o líder da extrema-direita defendeu a abertura de igrejas para a celebração da Páscoa. Um pouco por todo o mundo, fundamentalistas desafiam autoridades de saúde e cientistas

 

[dropcap]A[/dropcap]s clivagens entre ciência e fé são tão velhas quanto a necessidade de encontrar respostas transcendentais para as dúvidas encontradas no mundo natural, e voltaram a tornar-se evidentes no contexto da pandemia da covid-19.

No passado domingo, em plena época pascal, o líder do partido de extrema-direita Lega, Matteo Salvini, defendeu a abertura das igrejas para a realização dos ritos de Páscoa. O dirigente do partido que nasceu de uma força política que operava uma milícia responsável por violência contra imigrantes, mostra-se desafiante relativamente às medidas de contenção da pandemia, apesar de a Itália ser o país com mais mortos, pela covid-19.

Para travar o novo coronavírus, Matteo Salvini argumentou que “a ciência por si só não chega”, e que é fundamental a contribuição do “bom Deus”.

As declarações foram rebatidas pela própria Conferência Episcopal. “O momento é de responsabilidade e vamos ver quem é capaz de demonstrá-lo”, afirmou o cardeal Gualtiero Basetti, presidente da Conferência Episcopal italiana, em entrevista ao Corriere della Sera, em resposta a uma pergunta sobre que opinião tem daqueles que pressionam para que as igrejas voltem a abrir na Páscoa.

As afirmações de Salvini fazem eco da posição dos sectores mais conservadores, que criticaram a suspensão das missas para limitar a propagação do vírus no país. “É a primeira vez que se celebra a semana santa desta maneira, sem o contributo dos fiéis, mas isso não implica renunciar a viver estes dias plenamente”, frisou o cardeal Gualtiero Basetti. “A impossibilidade de assistir às missas da Páscoa este ano é um acto de generosidade. É nosso dever respeitar aqueles que, numa emergência, estão na linha da frente com grande risco para a sua segurança”, acrescentou.

Também o arcebispo de Bolonha (norte), o cardeal Matteo Maria Zuppi, defendeu o encerramento das igrejas durante a pandemia, afirmando, em entrevista ao La Repubblica, que as regras têm de ser cumpridas. “Eu também gostava de poder celebrar a semana santa e a Páscoa com a comunidade. Mas arriscar é perigoso, as regras devem ser respeitadas e a Igreja tem o dever de o fazer”, disse.

A posição de Salvini é replicada um pouco por todo o mundo, inclusive por líderes religiosos de crenças que o político despreza, e volta a trazer para a ordem-do-dia o conflito ideológico entre ciência e aquilo a que os quadrantes mais ortodoxos denominam de liberdade religiosa.

Américas evangélicas

Em Belém, considerado pelos crentes como o local onde Jesus Cristo nasceu, as portas da Igreja da Natividade estão encerradas. Da mesma forma, a Mesquita de Omar Bem Khatab fechou.

Nos Estados Unidos a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, mais conhecida por mórmon, encerrou muitos templos e limitou, ou suspendeu temporariamente, aglomerações de crentes um pouco por todo o mundo.

Atitude seguida pela Igreja Presbiteriana, que desaconselhou círculos de oração e assegurou aos crentes que podiam limitar a participação em actos religiosos nas igrejas sem medo de julgamento.

Porém, fora das religiões com liderança centralizada e no reino das variadíssimas denominações evangélicas independentes, não existem limites. Muitos líderes religiosos ignoram as quarentenas e tornam a desobediência às autoridades numa cruzada pela liberdade religiosa. Landon Spradlin, um pastor evangélico, é o retrato perfeito que ilustra a fragmentação ideológica e a extrema politização da actualidade com um desfecho trágico.

Antes de ser contaminado pelo novo coronavírus, Spradlin referiu-se à pandemia, numa publicação de Facebook, como uma histeria vendida pela comunicação social e fez as habituais e perigosas comparações com a gripe. Teorias poucos dias repetidas pelo Presidente Donald Trump. Aliás, o pastor plagiou o magnata e disse que os média trataram muito melhor Obama do que Trump, e que a covid-19 fazia parte de uma conspiração para desacreditar Trump. Sem se preocupar com medidas de contenção, e acreditando no poder da fé no combate ao vírus, Spradlin foi para Nova Orleães em missão para salvar almas do deboche e vício durante o Mardi Gras. Um mês depois, morria infectado pela covid-19, engordando a contabilidade de casos de doentes que testam negativo, mas que estão infectados.

O cocktail de fé e conservadorismo político levou ao revigoramento das posições anticientíficas, algo que não é novo, mas que ganha contornos particularmente perigosos hoje em dia.

Depois de ser detido por organizar serviços religiosos apesar das restrições impostas pelas autoridades da Florida, um pastor evangélico protestou argumentando ser “vítima da tirania governamental”. O Governador, republicano, Ron DeSantis ouviu a declaração do pastor e voltou atrás, designando os serviços religiosos como “actividades essenciais”. O passo seguinte foi retirar às cidades e condados o direito de banir as actividades religiosas.

Na direcção oposta, os líderes da publicação Christianity Today e da Associação Nacional Evangélica assinaram uma declaração conjunta a referir que não ir à igreja nesta altura é um “sacrifício de amor”, não é desprezo pela necessidade da oração. “Não vamos transmitir paz através de abraços, mas por telefone. Serão estes meios inferiores? Sim. Serão aceites pelo Senhor? Acreditamos que sim”, refere a declaração, citada pelo The Guardian.

Diabo do secularismo

Em Israel, apesar das medidas impostas, os judeus ultra-ortodoxos resistem às directrizes do Governo para conter o surto da covid-19, com um efeito devastador no número de infectados.

Aliás, o surto está a espalhar-se nas comunidades mais conservadoras entre quatro a oito vezes mais rapidamente do que na sociedade geral.

Uma dessas comunidades situa-se em Bnei Brak, nos subúrbios de Telavive, onde 95 por cento dos residentes são ultra-ortodoxos. Apenas naquela localidade, o Governo avançou que quase 40 por cento dos residentes possam estar infectados, num universo de 200 mil pessoas.

As autoridades de saúde atribuem a proliferação em larga escala de infecções entre este tipo de comunidades religiosas à densidade populacional, famílias numerosas, um sentimento profundo de desconfiança da autoridade estatal, à ignorância dos riscos de saúde disseminado por líderes religiosos.

Além disso, partilham forte aversão à tecnologia e aos média seculares, algo que acreditam ser exigido pelas leis religiosas. O The Times of Israel avança que quatro residentes de Bnei Brak recorreram ao Supremo Tribunal de Justiça com uma acção que pretende terminar o bloqueio argumentando que a medida viola os seus direitos fundamentais e encoraja a discriminação contra a comunidade ultra-ortodoxa.

“Desde o estabelecimento do Estado de Israel, nunca houve uma decisão com um impacto tão grave nos direitos humanos”, escreveram os peticionários.

O encerramento de cidades foi coadjuvado pelo músculo das forças policiais israelitas e pela divisão de pára-quedistas das Forças de Defesa de Israel, com a construção de checkpoints a limitar o movimento dos residentes para fora das comunidades.

A estas medidas localizadas juntam-se as ordens de isolamento a nível nacional, que remetem para quarentena em casa todos os israelitas, à excepção das saídas para acorrer a necessidades essenciais.

Fé em julgamento

Na Coreia do Sul, o Governo municipal de Seul pediu ao Ministério Público a acusação de Lee-Man-hee, auto-proclamado messias e fundador da Igreja de Shincheonji, o culto que registou um foco de contaminações. O alegado emissário de Deus vai-se sentar no banco dos réus juntamente com mais 11 arguidos acusados de esconder nomes de membros que sabiam estar infectados das autoridades que tentavam controlar a propagação do surto.

Segundo o Governo sul-coreano, os membros da seita cristã infectaram-se uns aos outros em Fevereiro na cidade de Daegu, no sul do país, o epicentro da pandemia na Coreia do Sul, antes de se espalhar.

Depois das consequências desastrosas deste caso, no passado domingo, as autoridades municipais de Seul voltaram a recorrer à justiça numa acção contra uma igreja evangélica que violou as ordens emanadas da administração da cidade que proíbe reuniões em massa para prevenir a propagação do novo coronavírus.

8 Abr 2020

A harmonia

[dropcap]H[/dropcap]armonia é uma das palavras mais ouvidas nos discursos políticos da região. Procurar e atingir harmonia social! Ahhh, refastelem-se nesta chaise-longue conceptual, soa tão bem, como um desígnio celestial, uma aspiração ao divino. Uma forma quase holística de designar paz social. Na humilde opinião deste vosso escriba, a paz e a concórdia são algo que deve nascer de dentro de uma sociedade, tendo o Estado apenas a vocação de a proteger, não deve partir de cima, da supra-estrutura para a sociedade. Harmonia sob ameaça não é harmonia, é sequestro, branqueamento, uma fantasia política que mascara o autoritarismo.

Se quisermos viver nesta aparência, olhemos para a Coreia do Norte. Nunca vi fotografias com tão rasgados sorrisos, esgares de pura felicidade. Nunca ouvi falar numa greve, manifestação, contestação popular. Será que isso faz de Pyongyang uma cidade harmoniosa? Em contrapartida, dou um rebuçado a quem encontrar fotos com carantonhas mais sisudas do que as que retratam cidadãos do norte da Europa, onde prolifera a contestação social.

Tal como o amor, a harmonia não se impõe e importa distinguir harmonia do conceito de ordem de Estado imposta com punho-de-ferro. E não me venham dizer que para ter uma opinião, para abrir a boca, tenho de frequentar 50 licenciaturas e mais três vidas de pesquisa histórica, se não querem bater o recorde do elitismo de polichinelo. Isso não é um argumento, não se aproxima de uma réplica, mas é, apenas, um escapismo infantil que procura o silêncio apaziguador do poder alérgico ao ruído da rua. Uma rua silenciosa é uma rua morta, jamais harmoniosa.

7 Jan 2020

Isabel Pina, investigadora do Centro Cultural e Científico de Macau | Álvaro Semedo, o homem e o mito

Historiadora, com trabalho focado na missão dos jesuítas em Macau e China, Isabel Pina dedica-se actualmente a estudar Álvaro Semedo, o primeiro a registar por escrito, em 1642, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses devido ao combate aos piratas

[dropcap]E[/dropcap]m Dezembro deu uma palestra, promovida pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com o título “A China Ming ao tempo de Xavier”. E como era a China neste tempo?
Estávamos perante uma China de uma dimensão completamente diferente daquilo que era conhecido pelos missionários e pelos europeus, ao nível da escala demográfica e económica, não tinha qualquer comparação possível. Havia uma capacidade de adaptação do produtor chinês ao mercado consumidor, e dei o exemplo da porcelana azul e branca, um produto chinês que foi adaptado às exigências do mercado persa, e depois passou também a ser vendido para a Europa. Outro aspecto que referi em relação à China Ming, que deixou também os europeus atónitos e os missionários, europeus muito cultos à época, foi a indústria livreira. No século XVI quando chegam os primeiros missionários, deparam-se com bibliotecas que tinham uma escala absolutamente diferente do que existia na Europa.
Como era a relação de Macau com a China nessa altura?
Macau era um lugar central, desde logo para os missionários. Eles faziam um caminho obrigatório [por lá]. Os jesuítas pertenciam ao padroado português e tinham de embarcar obrigatoriamente em Lisboa, paravam em Goa e muitas vezes ficavam lá um tempo, e depois iam para Macau. A partir de Macau iam para as missões da Ásia Oriental, incluindo Japão, que até ao início do século XVII é missão de grande sucesso, e depois para a China. Quando são expulsos do Japão vão para outras missões. Macau era central em termos de viagem e muitas vezes em termos de estudo, pois muitos vão acabar o percurso académico em Macau no Colégio de São Paulo. Alguns começam a aprender mandarim em Macau, que é também central no envio de verbas para a missão da China, na questão de preparação de chineses, que os jesuítas diziam ser as suas mãos e pés. Alguns deles eram integrados na Companhia de Jesus, no que diz respeito a essa capacidade de recursos humanos para apoiarem a missão. Dá para imaginar as dificuldades com que se deparavam, pois muitos [missionários] não falavam ainda o chinês.

FOTO: Hoje Macau

Quais as principais diferenças entre a missão jesuíta na China e no Japão?
No Japão há uma penetração muito rápida e desde logo torna-se uma missão que é definida à época como um grande sucesso. Muitas das cartas de candidatura dos jesuítas, em que eles pediam para ir para as índias, apresentavam pedidos para o Japão. A China não exercia o mesmo fascínio durante muito tempo.
Porquê?
A China provavelmente não teria o mesmo no comércio que tinha o Japão, além de que a própria sociedade era diferente. Era uma sociedade mais centralizada, quando os jesuítas chegam ao Japão o país estava em guerra civil. Havia ali uma possibilidade que não havia na China. Para a China iam sempre poucos missionários face à dimensão demográfica, e só passados os primeiros, por volta da década de 1630, ou seja, ao fim de cerca de 50 anos é que os números de baptismo começam a aumentar mais. De qualquer forma o cristianismo é sempre uma religião marginal, com muito pouco peso.
Até aos dias de hoje.
Sim, se bem que há o édito de prescrição do cristianismo, em 1684, assinado por um imperador chinês, mas os estudos mais recentes apontam que não foi uma oportunidade perdida, não se perdeu tudo. Houve sim uma transformação e houve estudos para a província de Fujian e de Guangdong que mostram que há uma apropriação do cristianismo, em que este se torna mais local. Há clãs e famílias que continuam cristãs, dão um tom mais local ao cristianismo, que se torna mais chinês.
Cria-se outro cristianismo.
Sim, adapta-se mais ainda, mas continuam com o culto. A partir daí, o clero local cresce exponencialmente e atinge números que nunca tinha tido. O meu doutoramento foi precisamente sobre os jesuítas chineses, e o que constatei é que durante 100 anos foram 28 e a partir do século XVIII há muitos mais religiosos chineses. Mas também já não são só os jesuítas, há mais ordens no terreno, mais missionários de diferentes congregações. Mas as diferenças entre o Japão e a China iria no sentido em que foi mais difícil o percurso de entrada e de aumento de baptismos na China do que foi no Japão. Mas depois na China perdurou com todas as metamorfoses, e sempre como uma religião marginal.
Fez o seu doutoramento sobre “Jesuítas Asiáticos e Mestiços na Missão/Vice-Província da China (1589-1689)” em 2009. Porquê este tema?
Na minha abordagem aos missionários e ao catolicismo na China tenho trabalhado mais na perspectiva dos mediadores culturais e não tanto em termos da religião em si. Para mim é mais fascinante a parte cultural porque são efectivamente os primeiros europeus que vão estudar a língua de forma regular e que vão viver na China. São eles que dão a conhecer a China Ming e Ching aos europeus pela primeira vez. Quando os jesuítas chegam, em 1582, o livro do Marco Polo ainda era muito importante. Dá para perceber o desfasamento, pois já se tinham passados uns séculos e estávamos numa dinastia diferente, e é uma China diferente que vão conhecer. Tenho trabalhado a constituição do conhecimento europeu sobre a China e o livro do Marco Polo continua a ser muito usado enquanto fonte de autoridade pelos jesuítas. Mas são esses europeus que criam os primeiros programas sobre a língua e de como se deve estudar o chinês.
O mandarim era uma língua completamente desconhecida, daí a importância desses mediadores.
Completamente. Logo o São Francisco Xavier fala em aprender o chinês, ainda no geral, sem definir qual a língua chinesa que ia estudar. O seu sucessor, Melchior Nunes Barreto, decidiu (isto tudo ainda antes da missão ter começado) deixar um irmão jesuíta em Cantão para aprender a língua com mestres locais enquanto faz a viagem para o Japão. Quando regressa, este irmão tinha enlouquecido (risos). Ele diz que teve uma fraqueza de cabeça.
Falamos de que ano?
O primeiro plano é um português que estabelece, depois de discutir com outros missionários, em 1684. E os jesuítas tiveram, a partir de 1578 ou 1579, quando se decide estudar o mandarim. Portanto desde 1579 até 1624 eles estão a ganhar experiência. O estudo começa em Macau e depois o estudo continua na China. Mas só ao fim desse tempo é que criam um primeiro plano de estudo.
Como era a relação com a corte imperial chinesa? Quando chegavam, tinham alguns contactos prévios feitos, tinham algum domínio da língua?
Estes homens eram muito bem preparados. Era um investimento enorme que começava logo na viagem, ou ainda antes. Eram homens com anos de estudos, que custavam dinheiro, e depois a viagem até Macau. Depois outro investimento era colocá-los na China. Essa relação com a corte é muito diferente entre as dinastias Ming e Ching. Na dinastia Ming estabeleciam uma rede de relações com missionários, com três mandarins e oficiais de alto nível, e é através dos conhecimentos científicos que começavam a desenvolver todo este relacionamento, o Guanxi, criando relações com os oficiais importantes. Na dinastia Ching era completamente diferente, pois tinham acesso à corte imperial com a realização do calendário. Entraram na corte os missionários que tinham alguma especialização, em termos de astronomia, matemática, relógios ou conhecimento de instrumentos musicais, e pintura também. Tinham de ter algum tipo de especialização para ter acesso ao imperador e começavam a preparar o calendário logo no início da dinastia. Entre 1644 e 1683 os jesuítas jogavam nas duas frentes.
Em que sentido?
Faziam-no enquanto ainda não estava bem definida a situação política na China. Vemos alguns jesuítas a actuarem e a estabelecerem relações com os Ming do sul, e vemos os outros em Pequim. Joga-se em todas as frentes do tabuleiro político. Um dos missionários que estou a estudar actualmente, o Álvaro Semedo, estava junto dos Ming do sul, com estes Ming a tentarem arranjar apoio militar por parte da Europa. O Adam Shau já estava em Pequim a entrar no departamento astronómico e a preparar o calendário para os Ching.
Participou também num estudo sobre o jesuíta Tomás Pereira.
No Centro Cultural e Científico de Macau (CCCM) fizemos um projecto central sobre o Tomás Pereira, que foi um missionário absolutamente interessante e que tinha sido completamente apagado, mesmo à época, pelos jesuítas franceses por questões relacionadas com o padroado português, com o rei de França. O Tomás Pereira era uma figura próxima do imperador Kang Shi, dentro daquilo que um europeu pode ter de proximidade. Muitas das ideias que passaram para a Europa foram passadas pelos próprios missionários, que exageram sempre o papel deles perante a corte.
A propósito de Álvaro Semedo, o que destaca nesta figura histórica?
Era um missionário que pertenceu à vice-província da China, fez parte dos quadros, mas passou muito tempo em Macau. Em 1617, quando há a primeira perseguição, a primeira crise em que o poder imperial está envolvido, é um dos missionários que é expulso por decreto imperial. Tem mesmo de ir para Macau e fica cerca de três anos. Quando regressa à China, já tem outro nome, pois não podia ter o mesmo. Ao longo da sua vida Álvaro Semedo vive cerca de 45 anos na China, sendo que cerca de 10 anos são em Macau. O que é particularmente interessante é que o Álvaro Semedo é o primeiro a pôr em registo escrito o mito nacional de Macau, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses por causa do combate aos piratas. Não é ele que vai formular este mito pela primeira vez, porque aparece em manuscrito antes disso, na década de 1620, mas em 1642 fica impresso pela primeira vez. Só isso torna o Álvaro Semedo [importante] face a Macau porque está em causa o mito das origens [de Macau], que tem um peso enorme até pelo menos ao século XX.
Como era Macau nesse tempo?
Ele próprio diz isso, ele chega ainda num período em que Macau ainda tem comércio com o Japão, e depois ele vem para a Europa em 1637 e quando regressa a Macau diz que o território já está numa crise profunda. Descreve, já com uma certa nostalgia, aquilo que tinha encontrado quando chegara lá, pois tinha chegado em 1611 ou 1612, ainda o comércio com o Japão decorria, apesar de estar no final. O comércio tinha sido cortado e Macau vivia uma crise profunda.
Fez um estudo sobre a linguagem dos jesuítas macaenses nos séculos XVI e XVII. Eram apenas intérpretes, tiveram um papel como sempre teve a comunidade macaense ao longo dos séculos?
Sim, mas durante muito tempo eram mesmo chineses da região envolvente ou de Fujian, ou Zhejiang. Os intérpretes podiam ser chineses ou africanos, chineses que estavam em Macau durante um ano e que regressavam à China, sabendo uma ou duas palavras, e que eram então referidos como intérpretes. Os missionários aprendiam o mandarim, mas estávamos numa China onde havia vários dialectos. Havia a língua da Administração que lhes permitia pôr em prática uma estratégia, garantir o acesso à corte imperial, mas no dia-a-dia tinham de lidar com os dialectos.

3 Jan 2020

Isabel Pina, investigadora do Centro Cultural e Científico de Macau | Álvaro Semedo, o homem e o mito

Historiadora, com trabalho focado na missão dos jesuítas em Macau e China, Isabel Pina dedica-se actualmente a estudar Álvaro Semedo, o primeiro a registar por escrito, em 1642, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses devido ao combate aos piratas

[dropcap]E[/dropcap]m Dezembro deu uma palestra, promovida pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com o título “A China Ming ao tempo de Xavier”. E como era a China neste tempo?
Estávamos perante uma China de uma dimensão completamente diferente daquilo que era conhecido pelos missionários e pelos europeus, ao nível da escala demográfica e económica, não tinha qualquer comparação possível. Havia uma capacidade de adaptação do produtor chinês ao mercado consumidor, e dei o exemplo da porcelana azul e branca, um produto chinês que foi adaptado às exigências do mercado persa, e depois passou também a ser vendido para a Europa. Outro aspecto que referi em relação à China Ming, que deixou também os europeus atónitos e os missionários, europeus muito cultos à época, foi a indústria livreira. No século XVI quando chegam os primeiros missionários, deparam-se com bibliotecas que tinham uma escala absolutamente diferente do que existia na Europa.

Como era a relação de Macau com a China nessa altura?
Macau era um lugar central, desde logo para os missionários. Eles faziam um caminho obrigatório [por lá]. Os jesuítas pertenciam ao padroado português e tinham de embarcar obrigatoriamente em Lisboa, paravam em Goa e muitas vezes ficavam lá um tempo, e depois iam para Macau. A partir de Macau iam para as missões da Ásia Oriental, incluindo Japão, que até ao início do século XVII é missão de grande sucesso, e depois para a China. Quando são expulsos do Japão vão para outras missões. Macau era central em termos de viagem e muitas vezes em termos de estudo, pois muitos vão acabar o percurso académico em Macau no Colégio de São Paulo. Alguns começam a aprender mandarim em Macau, que é também central no envio de verbas para a missão da China, na questão de preparação de chineses, que os jesuítas diziam ser as suas mãos e pés. Alguns deles eram integrados na Companhia de Jesus, no que diz respeito a essa capacidade de recursos humanos para apoiarem a missão. Dá para imaginar as dificuldades com que se deparavam, pois muitos [missionários] não falavam ainda o chinês.

FOTO: Hoje Macau

Quais as principais diferenças entre a missão jesuíta na China e no Japão?
No Japão há uma penetração muito rápida e desde logo torna-se uma missão que é definida à época como um grande sucesso. Muitas das cartas de candidatura dos jesuítas, em que eles pediam para ir para as índias, apresentavam pedidos para o Japão. A China não exercia o mesmo fascínio durante muito tempo.

Porquê?
A China provavelmente não teria o mesmo no comércio que tinha o Japão, além de que a própria sociedade era diferente. Era uma sociedade mais centralizada, quando os jesuítas chegam ao Japão o país estava em guerra civil. Havia ali uma possibilidade que não havia na China. Para a China iam sempre poucos missionários face à dimensão demográfica, e só passados os primeiros, por volta da década de 1630, ou seja, ao fim de cerca de 50 anos é que os números de baptismo começam a aumentar mais. De qualquer forma o cristianismo é sempre uma religião marginal, com muito pouco peso.

Até aos dias de hoje.
Sim, se bem que há o édito de prescrição do cristianismo, em 1684, assinado por um imperador chinês, mas os estudos mais recentes apontam que não foi uma oportunidade perdida, não se perdeu tudo. Houve sim uma transformação e houve estudos para a província de Fujian e de Guangdong que mostram que há uma apropriação do cristianismo, em que este se torna mais local. Há clãs e famílias que continuam cristãs, dão um tom mais local ao cristianismo, que se torna mais chinês.

Cria-se outro cristianismo.
Sim, adapta-se mais ainda, mas continuam com o culto. A partir daí, o clero local cresce exponencialmente e atinge números que nunca tinha tido. O meu doutoramento foi precisamente sobre os jesuítas chineses, e o que constatei é que durante 100 anos foram 28 e a partir do século XVIII há muitos mais religiosos chineses. Mas também já não são só os jesuítas, há mais ordens no terreno, mais missionários de diferentes congregações. Mas as diferenças entre o Japão e a China iria no sentido em que foi mais difícil o percurso de entrada e de aumento de baptismos na China do que foi no Japão. Mas depois na China perdurou com todas as metamorfoses, e sempre como uma religião marginal.

Fez o seu doutoramento sobre “Jesuítas Asiáticos e Mestiços na Missão/Vice-Província da China (1589-1689)” em 2009. Porquê este tema?
Na minha abordagem aos missionários e ao catolicismo na China tenho trabalhado mais na perspectiva dos mediadores culturais e não tanto em termos da religião em si. Para mim é mais fascinante a parte cultural porque são efectivamente os primeiros europeus que vão estudar a língua de forma regular e que vão viver na China. São eles que dão a conhecer a China Ming e Ching aos europeus pela primeira vez. Quando os jesuítas chegam, em 1582, o livro do Marco Polo ainda era muito importante. Dá para perceber o desfasamento, pois já se tinham passados uns séculos e estávamos numa dinastia diferente, e é uma China diferente que vão conhecer. Tenho trabalhado a constituição do conhecimento europeu sobre a China e o livro do Marco Polo continua a ser muito usado enquanto fonte de autoridade pelos jesuítas. Mas são esses europeus que criam os primeiros programas sobre a língua e de como se deve estudar o chinês.

O mandarim era uma língua completamente desconhecida, daí a importância desses mediadores.
Completamente. Logo o São Francisco Xavier fala em aprender o chinês, ainda no geral, sem definir qual a língua chinesa que ia estudar. O seu sucessor, Melchior Nunes Barreto, decidiu (isto tudo ainda antes da missão ter começado) deixar um irmão jesuíta em Cantão para aprender a língua com mestres locais enquanto faz a viagem para o Japão. Quando regressa, este irmão tinha enlouquecido (risos). Ele diz que teve uma fraqueza de cabeça.

Falamos de que ano?
O primeiro plano é um português que estabelece, depois de discutir com outros missionários, em 1684. E os jesuítas tiveram, a partir de 1578 ou 1579, quando se decide estudar o mandarim. Portanto desde 1579 até 1624 eles estão a ganhar experiência. O estudo começa em Macau e depois o estudo continua na China. Mas só ao fim desse tempo é que criam um primeiro plano de estudo.

Como era a relação com a corte imperial chinesa? Quando chegavam, tinham alguns contactos prévios feitos, tinham algum domínio da língua?
Estes homens eram muito bem preparados. Era um investimento enorme que começava logo na viagem, ou ainda antes. Eram homens com anos de estudos, que custavam dinheiro, e depois a viagem até Macau. Depois outro investimento era colocá-los na China. Essa relação com a corte é muito diferente entre as dinastias Ming e Ching. Na dinastia Ming estabeleciam uma rede de relações com missionários, com três mandarins e oficiais de alto nível, e é através dos conhecimentos científicos que começavam a desenvolver todo este relacionamento, o Guanxi, criando relações com os oficiais importantes. Na dinastia Ching era completamente diferente, pois tinham acesso à corte imperial com a realização do calendário. Entraram na corte os missionários que tinham alguma especialização, em termos de astronomia, matemática, relógios ou conhecimento de instrumentos musicais, e pintura também. Tinham de ter algum tipo de especialização para ter acesso ao imperador e começavam a preparar o calendário logo no início da dinastia. Entre 1644 e 1683 os jesuítas jogavam nas duas frentes.

Em que sentido?
Faziam-no enquanto ainda não estava bem definida a situação política na China. Vemos alguns jesuítas a actuarem e a estabelecerem relações com os Ming do sul, e vemos os outros em Pequim. Joga-se em todas as frentes do tabuleiro político. Um dos missionários que estou a estudar actualmente, o Álvaro Semedo, estava junto dos Ming do sul, com estes Ming a tentarem arranjar apoio militar por parte da Europa. O Adam Shau já estava em Pequim a entrar no departamento astronómico e a preparar o calendário para os Ching.

Participou também num estudo sobre o jesuíta Tomás Pereira.
No Centro Cultural e Científico de Macau (CCCM) fizemos um projecto central sobre o Tomás Pereira, que foi um missionário absolutamente interessante e que tinha sido completamente apagado, mesmo à época, pelos jesuítas franceses por questões relacionadas com o padroado português, com o rei de França. O Tomás Pereira era uma figura próxima do imperador Kang Shi, dentro daquilo que um europeu pode ter de proximidade. Muitas das ideias que passaram para a Europa foram passadas pelos próprios missionários, que exageram sempre o papel deles perante a corte.

A propósito de Álvaro Semedo, o que destaca nesta figura histórica?
Era um missionário que pertenceu à vice-província da China, fez parte dos quadros, mas passou muito tempo em Macau. Em 1617, quando há a primeira perseguição, a primeira crise em que o poder imperial está envolvido, é um dos missionários que é expulso por decreto imperial. Tem mesmo de ir para Macau e fica cerca de três anos. Quando regressa à China, já tem outro nome, pois não podia ter o mesmo. Ao longo da sua vida Álvaro Semedo vive cerca de 45 anos na China, sendo que cerca de 10 anos são em Macau. O que é particularmente interessante é que o Álvaro Semedo é o primeiro a pôr em registo escrito o mito nacional de Macau, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses por causa do combate aos piratas. Não é ele que vai formular este mito pela primeira vez, porque aparece em manuscrito antes disso, na década de 1620, mas em 1642 fica impresso pela primeira vez. Só isso torna o Álvaro Semedo [importante] face a Macau porque está em causa o mito das origens [de Macau], que tem um peso enorme até pelo menos ao século XX.

Como era Macau nesse tempo?
Ele próprio diz isso, ele chega ainda num período em que Macau ainda tem comércio com o Japão, e depois ele vem para a Europa em 1637 e quando regressa a Macau diz que o território já está numa crise profunda. Descreve, já com uma certa nostalgia, aquilo que tinha encontrado quando chegara lá, pois tinha chegado em 1611 ou 1612, ainda o comércio com o Japão decorria, apesar de estar no final. O comércio tinha sido cortado e Macau vivia uma crise profunda.

Fez um estudo sobre a linguagem dos jesuítas macaenses nos séculos XVI e XVII. Eram apenas intérpretes, tiveram um papel como sempre teve a comunidade macaense ao longo dos séculos?
Sim, mas durante muito tempo eram mesmo chineses da região envolvente ou de Fujian, ou Zhejiang. Os intérpretes podiam ser chineses ou africanos, chineses que estavam em Macau durante um ano e que regressavam à China, sabendo uma ou duas palavras, e que eram então referidos como intérpretes. Os missionários aprendiam o mandarim, mas estávamos numa China onde havia vários dialectos. Havia a língua da Administração que lhes permitia pôr em prática uma estratégia, garantir o acesso à corte imperial, mas no dia-a-dia tinham de lidar com os dialectos.

3 Jan 2020

A mui leal deslei dos indícios exteriores

[dropcap]P[/dropcap]or razões académicas, passei alguns anos da minha vida a pesquisar sobre a realidade dos cristãos-novos. Na maior parte dos casos, tal como foi referido por diversos investigadores (lembro-me dos casos de P. Dressendorfer e de O. Hegyi), a inquisição seguia os seus alvos através dos chamados “indícios exteriores”. No levante ibérico, onde na segunda metade do século XVI viviam mais de 600.000 “moriscos”, bastava encontrar um texto com letras árabes ou hebraicas (ou perceber um dado ritual de higiene) para que a perseguição se consumasse. Embora não seja matéria muito conhecida, o facto é que estes “moriscos” de Aragão deram origem a uma vasta literatura, escrita em língua latina de teor híbrido (na transição do aragonês para o castelhano), mas redigida com caracteres árabes. É a literatura ‘aljamiado-morisca’, hoje em dia bastante estudada no âmbito dos estudos orientais.

Quatro séculos depois, a geração que cresceu no pós-segunda grande guerra mundial foi a primeira a desencadear no ocidente um movimento de contracultura que visou sobretudo o tradicionalismo ao nível dos costumes e certas práticas políticas que sobrepunham os fins violentos aos meios. Entre o Maio de 68 e a roda-vida punk dos anos setenta e início de oitenta, a ideia de geração e de poder jovem consolidou-se socialmente. Uma parte fundamental da afirmação destes sectores fez-se, justamente, pelo recurso a ‘indícios exteriores’. Cabelo, roupa, tatuagens e todo o tipo de objectos associados ao imaginário da pop e do rock traçaram formas de reconhecimento e de veemente demarcação.

A maior parte destas cenografias do corpo foram sendo absorvidas e recuperadas pelo ‘mainstream’. O pós-moderno, a desmobilização ideológica, o ‘branding’ e as fusões entre a “alta” cultura e as expressões populares, profetizadas por U. Eco em meados dos anos sessenta, contribuíram para estas rápidas incorporações que se foram tornando claras já no final do século passado.

Eu estava em Londres quando Thatcher foi reeleita em Junho de 1987 e lembro-me bem de ver na televisão todos os candidatos da “constituency” onde a PM acabara de ser eleita. Havia de tudo: solenidade de casaco e gravata, mas também cabeleiras vermelhas eriçadas, vestidos de renda rasgados e chapéus em forma de cone. Aquela visão de Thatcher a discursar no meio de um garrido ‘plateau’ em jeito de ‘commedia dell’arte’ ilustrou na perfeição o modo como o sistema sabia – e soube – recuperar ‘indícios exteriores’ que antes haviam desempenhado outras funções.

Em Portugal estas incorporações foram levadas a cabo com um ritmo próprio, um pouco mais lento do que na Europa do norte. Houve, no entanto, sectores que resistiram e um deles foi a arena política. Com excepção de um deputado da Madeira, o famoso José Manuel Coelho, raras vezes o ‘establishment’ político saiu formalmente das marcas. Basta olhar para a Assembleia da República e observar os mais jovens deputados que parecem já velhos e puídos, presos nos colarinhos vincados e nas palavras de ordem que reflectem uma correcção betinha a toda a prova.

A renovação que vem sendo feita nas últimas duas décadas é sobretudo programática. O Bloco revestindo as vestes de PC, mas aligeirando o discurso; os liberais pululando nos aquários da direita e procurando um desígnio autónomo; e o devir ecológico, primeiro mortificado nas delongas da CDU, e depois tentando encontrar roupagens e acenos actuantes. No meio desta cartografia de tendências, nunca se tinha visto um partido que fizesse dos ‘indícios exteriores’ uma das suas armas de ‘luta’. Foi o que aconteceu com o Livre. Bastou um homem de saias acompanhar a novel deputada mais visada (por diversos factores de intensidade) para que um brado com longo eco se instalasse.

Não deixa de ser interessante perceber o contraste entre os comentários provocados pela ‘chegada’ do Livre ao parlamento português (com os seus mais-do-que-pensados ‘indícios exteriores’) e a total indiferença dos media face à cena de Thatcher, na Londres de 1987. O que se escreveu por cá, quer nas redes sociais, quer nos media, ora através de registos fervorosos (que não evitaram a boleia da culpabilização), ora em registos de choque, indignação e embaraço provinciano, dá a ver um binarismo pacóvio, forçado e com pouco ou nada de substantivo.

Esperemos, pois, que o Livre não se fique pelo manifesto dos ‘indícios exteriores’. Por conhecer Rui Tavares, e apesar de não ter voltado no Livre, creio que tal não deverá acontecer. Mas a radiografia portuguesa suscitada pelas encenações – de um lado ao outro dos espectros discursivos – não deixou de ser sintomática. Portugal está ainda aprisionado por uma redoma invisível que o congela diante da sua história.

É evidente que não retiro importância aos ‘indícios exteriores’, pois também são política. Quer pela sua presença, quer pela sua ausência, eles criam sentido e não são nunca inocentes. Os ‘moriscos’ de Aragão desenvolveram o princípio da “taqiyya” que correspondia ao seguinte lema: preservar ‘indícios exteriores’ alheios, embora mantendo interiormente uma fé oposta. Este código secreto, muito desenvolvido na literatura clandestina da época, fazia da ausência de ‘indícios exteriores’ o seu próprio discurso. Na actualidade portuguesa, é através da feérica ostensão de ‘indícios exteriores’ que alguma – porventura necessária – afirmação política se tenta. Algo que no reino do Brexit, naquele parlamento ungido pelos mais altos espíritos do ‘Monty Python’, já não teria, obviamente, qualquer sentido.

31 Out 2019

Religião | Ng Kuok Cheog pede respeito por símbolos

[dropcap]O[/dropcap] deputado Ng Kuok Cheong escreveu uma interpelação a pedir ao Governo que tome medidas para garantir que os símbolos religiosos são respeitados na RAEM. Foi desta forma que o deputado pró-Democracia reagiu ao caso das celebrações da criação da República Popular da China, quando os símbolos do partido foram projectados sobre a fachada das Ruínas de São Paulo.
Ng recordou que a projecção resultou em várias críticas por parte dos cidadãos que se sentiram desrespeitados e questionou o Executivo sobre o que vai ser feito para evitar a repetição de casos semelhantes.
Ainda neste sentido, o legislador pergunta igualmente se o Executivo tem planos para implementar mecanismos de auscultação pública nos casos em que pretenda fazer projecções sobre edifícios qualificados como património mundial. Na mesma interpretação, Ng Kuok Cheong pede ao Governo que reconheça que a projecção foi erro.

23 Out 2019

Religião | Ng Kuok Cheog pede respeito por símbolos

[dropcap]O[/dropcap] deputado Ng Kuok Cheong escreveu uma interpelação a pedir ao Governo que tome medidas para garantir que os símbolos religiosos são respeitados na RAEM. Foi desta forma que o deputado pró-Democracia reagiu ao caso das celebrações da criação da República Popular da China, quando os símbolos do partido foram projectados sobre a fachada das Ruínas de São Paulo.

Ng recordou que a projecção resultou em várias críticas por parte dos cidadãos que se sentiram desrespeitados e questionou o Executivo sobre o que vai ser feito para evitar a repetição de casos semelhantes.

Ainda neste sentido, o legislador pergunta igualmente se o Executivo tem planos para implementar mecanismos de auscultação pública nos casos em que pretenda fazer projecções sobre edifícios qualificados como património mundial. Na mesma interpretação, Ng Kuok Cheong pede ao Governo que reconheça que a projecção foi erro.

23 Out 2019

Religião | Procissão do Senhor dos Passos juntou centenas

[dropcap]L[/dropcap]argas centenas de pessoas integraram ontem a procissão do Senhor Bom Jesus dos Passos em Macau, entre a Sé catedral e a igreja de Santo Agostinho, numa das mais importantes tradições católicas da cidade.

Ontem à tarde, a procissão, que contou com a participação do bispo de Macau, Stephen Lee, percorreu algumas das ruas mais movimentadas do centro da cidade, para cumprir sete estações da via-sacra, representativas do percurso feito por Jesus Cristo até ser crucificado no monte Calvário, em Jerusalém.

Em cada estação, algumas dezenas de pessoas esperavam a imagem. Cânticos e orações foram entoados em português, chinês e latim, tal como nas cerimónias que antecederam e concluíram a procissão, acompanhada pela banda de música das Forças de Segurança.

Esta tradição religiosa está repartida por dois dias. No dia anterior, ao final da tarde de sábado, decorreu a procissão da Cruz, que juntou igualmente algumas centenas de fiéis. A imagem do Senhor dos Passos saiu da igreja de Santo Agostinho com destino à Sé, onde ficou durante a noite.

Esta cerimónia assinala também o primeiro domingo de Quaresma, período de oração, penintência, jejum e abstinência para os católicos.

Com uma longa história, que remonta a 1708, a procissão do Senhor Bom Jesus dos Passos realiza-se todos os anos em Macau, no primeiro sábado e domingo de Quaresma.

Em Setembro de 2017, esta procissão e a de Nossa Senhora de Fátima entraram para a lista de património intangível de Macau, publicada pelo Instituto Cultural de Macau.

11 Mar 2019

Património Cultural Intangível | Procissões incluídas em consulta pública

[dropcap]A[/dropcap]s procissões católicas de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos e de Nossa Senhora de Fátima são duas das 12 manifestações recomendadas para inscrição na lista do Património Cultural Intangível de Macau, em consulta pública, no próximo mês.

A consulta pública destina-se a “reforçar a salvaguarda do património cultural intangível” do território, de acordo com uma nota do Instituto Cultural.

Entre 13 de Março e 11 de Abril, a população pode ainda considerar dez outras recomendações, como a Gastronomia Macaense, Teatro em Pátua, Crença e Costumes de Na Tcha, Crença e Costumes de A-Má, Festival do Dragão Embriagado, Música Ritual Taoísta, Naamyam Cantonense (canções narrativas), Escultura de Imagens Sagradas em Madeira, Preparação do Chá de Ervas e Ópera Yueju (ópera cantonense).

A procissão do Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos realiza-se todos os anos, no primeiro sábado e domingo da Quaresma, e tem início na Igreja de Santo Agostinho, dirigindo-se à Igreja da Sé, fazendo o percurso inverso no segundo dia. Com uma longa história em Macau, esta procissão remonta a 1708.

Desde 1929, tem lugar todos os anos, em 13 de Maio, a procissão de Nossa Senhora de Fátima, entre a Igreja de S. Domingos e a Ermida da Penha.

1 Mar 2019

Cristãos chineses assumem clandestinamente a fé

Segundo a organização Fundação Ajuda à Igreja que Sofre, apesar dos recentes sinais de aproximação entre o Vaticano e as autoridades chinesas, a repressão sobre as actividades cristãs continua sem dar sinais de abrandamento

 

[dropcap]A[/dropcap] Fundação AIS alertou sexta-feira que a repressão das autoridades na China está a levar os cristãos a assumir de forma clandestina a sua fé, apesar do acordo provisório assinado entre a Santa Sé e Pequim.

Em comunicado de imprensa, a Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) indica que, apesar do acordo provisório para a nomeação dos bispos católicos para a República Popular da China, são vários os sinais de que as autoridades “não têm abrandado em algumas províncias a repressão contra a comunidade cristã”.
A Fundação AIS, cita o portal da Internet Bitter Winter que publicou inúmeros casos concretos de repressão por parte das autoridades contra comunidades cristãs.

Este portal, que monitoriza as questões relacionadas com a liberdade religiosa na China, mencionou o caso na cidade de Tieling, na província de Liaoning, onde os cristãos estão “a viver a sua fé de forma cada vez mais clandestina”, face ao encerramento de locais de culto.

Também a agência católica de notícias, Asia News, verificou esta situação referindo que vários sacerdotes desistiram mesmo da sua missão “por uma questão de consciência”.

A Fundação AIS alertou igualmente para a onda de repressão das autoridades contra a comunidade cristã dando como exemplo o caso na província de Henan, onde várias igrejas foram encerradas e transformadas em teatros, salas de jogos e outros locais de entretenimento.

Entre as igrejas ocupadas pelas autoridades estão, entre outras, as de Caowu, Nanyang e Youzhai.
Nestas três localidades, “as igrejas deixaram de ser locais de culto para se transformarem, por vezes, em locais de propaganda comunista”, explicou a Fundação AIS.

De acordo com o Bitter Winter, a igreja localizada na vila de Caowu ostenta há cerca de dois meses um cartaz em que enaltece os “valores fundamentais socialistas” e onde se lia “Igreja Cristã” encontra-se agora a frase “grande amor à China”.

Questão sensível

Em entrevista publicada no L’Osservatore Romano e citada pela Fundação AIS, o prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, cardeal Fernando Filoni, reconheceu que existe uma situação delicada e complexa no relacionamento entre a comunidade cristã clandestina, fiel ao papa Francisco e ao Vaticano, e os responsáveis chineses que tutelam a intitulada igreja patriótica que responde perante Pequim.

“Não podem ser ignorados os anos de conflitos e de incompreensão”, realçou Filoni ao jornal do Vaticano.
“Acima de tudo, é necessário reconstruir a confiança, talvez o aspecto mais difícil, pelas autoridades civis e religiosas encarregadas dos assuntos religiosos e entre as chamadas correntes eclesiais, oficiais e não oficiais”, acrescentou.

Sobre o futuro do cristianismo na China, o cardeal Fernando Filoni mostrou-se confiante afirmando acreditar que “somente a falta da verdadeira liberdade e as tentações de bem-estar podem sufocar uma boa parte das sementes lançadas já há muitos séculos atrás”.

11 Fev 2019

Arábia Saudita executa filipina condenada por homicídio

[dropcap]U[/dropcap]ma filipina de 39 anos foi executada terça-feira na Arábia Saudita depois de ter sido considerada culpada de homicídio sob a ‘sharia’, ou lei islâmica, informou ontem o Departamento de Relações Exteriores das Filipinas.

“Lamentamos não termos conseguido salvar a vida desta filipina depois do Supremo Conselho Judicial ter classificado o seu caso como um em que não se aplica a fórmula do ‘dinheiro de sangue’ contemplado pela ‘sharia'”, pode ler-se numa nota.

De acordo com a lei islâmica, a fórmula conhecida como “dinheiro de sangue” permite a comutação de uma pena capital se a família da vítima for indemnizada.

A filipina, executada na terça-feira, trabalhava como trabalhadora doméstica na Arábia Saudita, onde há cerca de um milhão de trabalhadores migrantes filipinos que frequentemente sofrem exploração, abuso e assédio às mãos dos seus empregadores.

Durante o processo judicial, a embaixada filipina em Riade forneceu à ré assistência legal, enviou representantes para a visitarem em prisões e manteve a sua família regularmente informada sobre o andamento do caso.

O Departamento dos Negócios Estrangeiros não forneceu, contudo, informações sobre quem foi a vítima do homicídio, nem sobre as circunstâncias do crime, alegando o pedido de privacidade da família.

Fazer pela vida

Em Novembro, as Filipinas repatriaram Jennifer Dalquez, que trabalhava como empregada doméstica nos Emirados Árabes Unidos (EAU), após ser absolvida da acusação de homicídio contra seu empregador, num julgamento em que arriscava também a pena de morte.

Dalquez tinha matado o seu empregador em legítima defesa, quando este a tentou violar, ameaçando-a com uma arma branca. A filipina passou quatro anos na prisão.

De acordo com as autoridades, cerca de três mil filipinos saem do seu país todos os dias com contratos de trabalho temporários no exterior, muitos deles em países árabes, onde as mulheres geralmente trabalham como trabalhadoras domésticas e homens no sector de construção.

Cerca de dez milhões de filipinos são trabalhadores migrantes no exterior e o envio de contas de remessas contribuiu para mais de 10% do PIB filipino.

 

 

1 Fev 2019

Índia | Kerala em greve contra a entrada de mulheres em templo

[dropcap]V[/dropcap] árias localidades do estado de Kerala, no sul da Índia, estavam ontem em greve para protestar contra a entrada de duas mulheres no templo hindu de Sabarimala, prosseguindo as manifestações de quarta-feira que já causaram um morto. Na madrugada de quarta-feira, duas mulheres com menos de 50 anos entraram pela primeira vez naquele santuário, escoltadas por vários polícias, depois do Supremo Tribunal anular, em Outubro, a proibição de entrada imposta às mulheres entre os dez e os 50 anos.

Tradicionalistas hindus manifestaram-se imediatamente contra a entrada das mulheres em idade fértil no templo hindu, levando a polícia indiana a utilizar gás lacrimogéneo, granadas atordoadoras e canhões de água para deter os manifestantes.

De acordo com a agência de notícias Efe, que cita uma fonte policial que pediu para não ser identificada, as manifestações violentas em pelo menos três distritos do estado de Kerala causaram já a morte de um militante do partido nacionalista hindu BJP, do primeiro-ministro Narendra Modi.

Em conferência de imprensa, o chefe do governo de Kerala, Pinarayi Vijayan, afirmou que os protestantes já destruíram sete veículos da polícia, 79 autocarros e atacaram 39 membros das forças de segurança e de órgãos de comunicação social, principalmente mulheres.

“Há muita violência em todo o estado”, lamentou Pinarayi Vijayan, defendendo que o governo tem a responsabilidade de implementar a decisão histórica do Supremo Tribunal.

A maioria dos templos hindus não autoriza a entrada de mulheres durante o período menstrual, mas Sabarimala era um dos raros a proibir a sua entrada entre a puberdade e a menopausa.

4 Jan 2019

Relatório | Falun Gong com “dificuldades” em arrendar espaços por pressão do Partido Comunista

Macau continua a figurar como uma espécie de oásis na Ásia no plano da liberdade religiosa. Do cenário positivo, descrito no mais recente relatório do Departamento de Estado norte-americano, destoam as dificuldades das Falun Gong em arrendar espaços para a realização de eventos por alegada pressão do Partido Comunista da China

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão só garante na teoria como cumpre na prática. É o que diz sobre Macau o mais recente relatório sobre a liberdade religiosa no mundo, elaborado anualmente pelo Departamento de Estado norte-americano. Não obstante o quadro positivo, Washington faz eco das “dificuldades” enfrentadas pelas Falun Gong em Macau devido a alegada “pressão” por parte do Partido Comunista da China.

Segundo o documento, divulgado na noite de terça-feira, membros das Falun Gong deram conta de “dificuldades” em arrendar espaços para a realização de grandes eventos, uma situação que suspeitam resultar de “pressão” do Partido Comunista da China (PCC). Não é referido, porém, se os espaços em causa são da propriedade do Governo ou de entidades particulares.

Esta constitui, com efeito, a única nota negativa a propósito, dado que, de acordo com Washington, as Falun Gong desenvolveram normalmente as suas actividades em 2017. A tranquilidade manteve-se mesmo aquando da visita, há um ano, de um alto representante do PCC, em concreto, do presidente do Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, ou seja, o “número três” da hierarquia política chinesa.

“Os membros das Falun Gong continuaram a realizar manifestações e montar expositores em locais públicos [como sucede, com frequência, junto à Igreja de S. Domingos] sem incidentes”, refere o documento. E, salienta, “uma organização da sociedade civil relacionada com as Falun Gong informou que, em Maio [de 2017], membros das Falun Gong participaram de um protesto público durante uma visita de Zhang Dejiang, um dos membros do Comité Permanente do Politburo do Partido Comunista da China”. As Falun Gong, que se estima que tenham 50 praticantes em Macau, consideradas uma “seita” por Pequim, encontram-se proibidas na China desde 1999.

Relativamente a outros grupos, o cenário foi diferente, de acordo com Washington: “Alguns grupos religiosos relataram que o Gabinete de Ligação do Governo Central apoiou as suas actividades e intercâmbios com os correligionários do interior da China”, enquanto “outros indicaram que o Governo reconheceu e não obstruiu o trabalho de caridade realizado no interior da China”. Em termos gerais, “os grupos religiosos afirmaram que mantiveram a sua capacidade de realizar actividades no interior da China, através de canais oficiais e igrejas oficialmente reconhecidas”.

Sem registo de casos de abusos ou discriminação com base em credos, o panorama descrito é positivo. Aos olhos de Washington, a liberdade religiosa em Macau encontra-se salvaguardada, desde logo na Lei Básica, sendo, além do mais, respeitada olhando às práticas governamentais.

“O Governo providencia apoio financeiro, independentemente da filiação religiosa, para o estabelecimento de escolas, centros de cuidados para crianças, clínicas, lares para idosos, centros de reabilitação e unidades de formação vocacional geridos por grupos religiosos”. A Diocese continua a ser a entidade que gere a maioria das instituições de ensino, atendendo que apenas dez de 77 escolas existentes no ano lectivo 2016/2017 eram públicas, de acordo com estatísticas oficiais.

Em paralelo, salienta o relatório, “o Governo também continuou a encaminhar vítimas de tráfico humano para organizações religiosas para a prestação de serviços de apoio”. Os Estados Unidos realçam, em particular, a própria atitude dos diferentes grupos religiosos, na medida em que “providenciaram serviços sociais a indivíduos de todos os credos”. Neste âmbito, o relatório assinala, porém, que “houve relatos de que estudantes do interior da China já não podiam frequentar seminários locais”, mas sem facultar pormenores.

Segundo estatísticas oficiais, que remontam a Julho, citadas no mesmo relatório, quase 80 por cento da população professava o budismo. Já os católicos romanos eram estimados em aproximadamente 30.000, mais de metade dos quais estrangeiros a residir no território, enquanto os protestantes ascendiam a 8.000. Os muçulmanos, por seu turno, auto-estimavam-se em 12.000, havendo ainda grupos religiosos de menor expressão como os Bahais, cujo número era calculado acima de 2.000.

Maior pressão em Hong Kong

O capítulo dedicado a Hong Kong traça um retrato idêntico, mas dá conta de uma acrescida pressão sobre as Falun Gong. Além de “contínuas dificuldades” em arrendar recintos – tanto privados como públicos – para encontros e eventos culturais, também atribuídas a uma alegada pressão por parte de Pequim junto dos proprietários dos espaços, o relatório elenca outras situações.

“A Associação das Falun Gong em Hong Kong afirmou que suspeita que o Partido Comunista da China financiou grupos privados que assediaram os seus membros em eventos públicos, cercando-os e gritando-lhes”, lê-se no relatório. Isto apesar de, à semelhança de Macau, as Falun Gong, que estima em 500 os praticantes em Hong Kong, terem indicado que, ao longo do ano passado, conseguiram operar abertamente na antiga colónia britânica, realizando nomeadamente exposições públicas ou distribuindo literatura sobre o movimento.

Em simultâneo, também levaram a cabo protestos públicos contra o tratamento a que são sujeitos os seus correligionários no interior da China. Numa dessas manifestações, aliás, por ocasião da visita do Presidente da China a Hong Kong, exibiram cartazes com mensagens a apelar a Xi Jinping para parar com a perseguição ao movimento e levar à justiça o antigo Presidente da China Jiang Zemin.

Além disso, segundo o relatório que cita o Epoch Times, que tem ligações às Falun Gong, as autoridades de Hong Kong impediram a entrada de 43 praticantes em Julho, ordenando-lhes que regressassem a Taiwan sem fornecer qualquer tipo de explicação. Os membros do movimento tentavam entrar no território vizinho para participar na parada realizada anualmente na antiga colónia britânica em protesto contra a perseguição das Falun Gong na China.

Em termos gerais, Washington considera que a liberdade religiosa é respeitada em Hong Kong tanto pelo Governo com pelos praticantes de diferentes credos. A título de exemplo, os Estados Unidos mencionam que uma mesquita promoveu uma troca de visitantes com uma sinagoga e ainda que líderes judeus organizaram eventos públicos de consciencialização sobre o Holocausto.

De acordo com o Departamento de Estado norte-americano, que cita dados oficiais, a ex-colónia britânica conta com aproximadamente dois milhões de budistas e taoistas, 480 mil protestantes e 379 mil católicos romanos. Já os muçulmanos estimavam-se em 300.000, os hindus em 100.000, os mórmons em 20.000, os sikhs em 12.000 e os judeus entre 5.000 e 6.000.

O quadro negro da China

A apreciação sobre as duas Regiões Administrativas Especiais encontra-se no capítulo do relatório dedicado à China, onde o cenário descrito é negro: “Continuou a haver relatos de que o Governo perseguiu, torturou, abusou fisicamente, deteve e condenou à prisão membros de grupos religiosos (registados e não registados) por actividades relacionadas com as suas crenças e práticas religiosas”.

“O Governo continuou a exercer controlo sobre a religião e a restringir actividades e a liberdade individual dos crentes quando os percepciona como uma ameaça aos interesses do Estado ou do Partido Comunista da China, de acordo com organizações não-governamentais e notícias publicadas pelos ‘media’ internacionais”, aponta o relatório do Departamento de Estado.

31 Mai 2018

Fé | Católicos chineses ignoram possível acordo entre Pequim e a Santa Sé

[dropcap style =’circle’] O [/dropcap] bservadores garantem estar para breve um acordo entre a China e o Vaticano, que poria fim a mais de 70 anos de antagonismo, mas numa das principais comunidades católicas da China ninguém sabe de nada.

“Nós aqui fazemos o melhor que podemos para praticar a fé”, diz Lu Zhizhong, padre na aldeia de Donglu. “O resto são questões para os nossos líderes”.

Donglu é um dos lugares mais sagrados para os católicos chineses, local de uma alegada aparição de Nossa Senhora, em 1900, para proteger os locais de uma rebelião nacionalista. Entre os crentes locais questionados pela Lusa sobre o referido acordo, a resposta não variou: “Bu Zhidao” (‘Não sei de nada’, em chinês).

Com cerca de dez mil habitantes, a aldeia fica em Hebei, província do norte da China que concentra grande parte da indústria pesada chinesa, produzindo mais aço do que qualquer país no mundo – com excepção da própria China.

Uma igreja do tamanho de um quarteirão, com paredes e colunas brancas, ergue-se no centro de Donglu, entre casas de tijolo cru, estradas poeirentas e plantações de melancia.

Lu Zhizhong vive nas traseiras da igreja, construída no início dos anos 1990, num cubículo com cerca de quinze metros quadrados. Aos visitantes, oferece a única bebida que tem: água quente. “Eu desde criança que sou católico, mas a fé é algo estranho à nossa cultura”, explica. “Temos que a conhecer, estudar, compreender. Não é como em Portugal, onde é parte natural da sociedade”, diz.

O que distingue a igreja católica na China face a outras partes do mundo não é, contudo, apenas cultural. China e Vaticano romperam os laços diplomáticos em 1951, depois de Pio XII excomungar os bispos designados pelo Governo chinês. Os católicos chineses dividiram-se então entre duas igrejas: a Associação Católica Patriótica Chinesa, aprovada por Pequim, e a clandestina, que continuou fiel ao Vaticano.

 

Novo dia

Segundo o acordo que deverá ser anunciado em breve, o Vaticano reconhecerá sete bispos nomeados por Pequim, enquanto dois bispos da igreja clandestina terão que se afastar. Em troca, a Santa Sé terá uma palavra na nomeação de futuros bispos chineses. As autoridades chinesas, no entanto, já reafirmaram a sua posição. “A Constituição chinesa dita claramente que os grupos e assuntos religiosos não podem ser controlados por forças estrangeiras, e que estas não devem interferir de forma alguma”, disse, na semana passada, Chen Zongron, vice-diretor da Administração de Assuntos Religiosos da China. “Não existe religião na sociedade humana que esteja acima do Estado”, afirmou.

Porém, a religião na China estará numa fase de grande expansão, preenchendo “o vazio moral” e o “excessivo materialismo” provocados pela alegada crise da ideologia comunista e o trepidante desenvolvimento das últimas quatro décadas de “Reforma Económica e Abertura ao Exterior”.

Num domingo de páscoa em Donglu, a igreja, com capacidade para cerca de mil pessoas, está a abarrotar. Nas ruas, lançam-se petardos e fogo-de-artifício para “afugentar os maus espíritos”, uma tradição reservada no país para a passagem do Ano Novo Lunar, a mais importante festa para os chineses.

Entre os crentes, trocam-se ovos com a inscrição “Deus ama-te” e, em frente à igreja, vende-se algodão doce – outra novidade no país. “A religião é algo positivo para as pessoas, as famílias, a sociedade e o país”, diz Lu Zhizhong, ressalvando logo a seguir: “Desde que seja praticada sem extremismos ou que não leve ao isolamento face aos outros”.

16 Abr 2018

Fé | Pequim diz que limitar ordenação de clérigos não viola liberdade religiosa

[dropcap style =’circle’] A [/dropcap] China disse ontem que limitar o controlo do Vaticano na nomeação dos bispos não restringe a liberdade religiosa dos crentes chineses, numa altura em que Pequim e a Santa Sé discutem um primeiro acordo

O vice-director da Administração de Assuntos Religiosos da China Chen Zongron reafirmou a noção de que os grupos religiosos do país não podem ser controlados por “forças estrangeiras”.
“A constituição chinesa afirma claramente que os grupos e assuntos religiosos não podem ser controlados por forças estrangeiras, e que estas não devem interferir de forma alguma”, afirmou. O responsável, que falava durante a apresentação de um livro branco do Conselho de Estado chinês sobre a liberdade religiosa no país, afirmou que discorda que Pequim esteja a restringir a prática religiosa por não dar “controlo absoluto” ao Vaticano na nomeação dos bispos.
Pequim e a Santa Sé estão prestes a quebrar mais de meio século de antagonismo com a assinatura de um primeiro acordo sobre a nomeação dos bispos.
Os dois Estados romperam os laços diplomáticos em 1951, depois de Pio XII excomungar os bispos designados pelo Governo chinês.

Rezar no escuro
Os católicos chineses dividiram-se então entre duas igrejas: a Associação Católica Patriótica Chinesa, aprovada por Pequim, e a clandestina, que continuou fiel ao Vaticano.
Segundo o acordo, que observadores afirmam que será anunciado em breve, o Vaticano deve reconhecer sete bispos nomeados por Pequim, enquanto dois bispos da igreja clandestina terão que se afastar. O acordo tem suscitado críticas de que a Santa Sé está a abdicar de muito, depois de quase sete décadas a reafirmar a necessidade de manter a igreja católica independente do controlo do Governo chinês.
Na semana passada, Guo Xijin, um dos bispos ordenados pelo Vaticano que deverá ceder o seu posto por não ser reconhecido pelas autoridades chinesas, foi temporariamente removido da sua paróquia, no sul do país, mas regressou no domingo para celebrar a páscoa.

5 Abr 2018

Vaticano | Papa responde ao Cardeal Zen sobre a Igreja Católica na China

Quando o Papa Francisco consegue passos importantes para uma reconciliação com Pequim , o Cardeal Zen resolveu incendiar a internet

[dropcap]O[/dropcap] director da Sala de Imprensa do Vaticano, Greg Burke, divulgou na terça-feira, 30 de Janeiro, uma declaração na qual afirma que o Papa Francisco está bem informado sobre a situação da Igreja Católica na China e que é “lamentável” que algumas “pessoas da Igreja” afirmem o contrário, causando “confusões e polémicas”.

A declaração afirma que “o Papa está em constante contacto com os seus colaboradores, em particular da Secretaria de Estado, sobre as questões chinesas, e é informado por eles de forma fiel e pormenorizada sobre a situação da Igreja Católica na China e sobre os passos do diálogo em andamento entre a Santa Sé e a República Popular da Chinesa, que ele acompanha com especial solicitude”. “Por isso é um surpresa e lamentável que se afirme o contrário por parte de pessoas de Igreja e se alimentem assim confusões e polémicas”, concluiu.

Embora não tenha mencionado, a declaração ocorreu um dia depois que o Bispo Emérito de Hong Kong, Cardeal Joseph Zen Ze-kiun, publicou no seu portal uma carta na qual explica e analisa a difícil situação da Igreja Católica na China, em particular os bispos, ante as pressões e a perseguição do governo.

Na carta publicada no seu portal, o Cardeal recordou que nos últimos dias a imprensa informou que o Vaticano pediu a um bispo para que renuncie e a outro bispo para que aceite a sua renúncia a fim de permitir que os bispos relacionados ao governo assumam os seus cargos.

A carta é bem crítica em relação às negociações do Vaticano com o governo chinês, na qual também denuncia vários problemas sofridos pelos prelados católicos no país: “Vi directamente a escravidão e a humilhação à qual os nossos irmãos bispos estão submetidos”, assinala. O Bispo Emérito pergunta: “Acreditaria que o Vaticano está a vender a Igreja Católica na China? Sim, definitivamente, se estão a ir na direcção na qual estão segundo o que eles estão a fazer nos últimos anos e meses”.

As relações diplomáticas entre a China e o Vaticano foram cortadas em 1951, dois anos depois da chegada ao poder dos comunistas que expulsaram os clérigos estrangeiros. Desde então, a China permite o culto católico unicamente à Associação Patriótica Católica Chinesa, subordinada ao Partido Comunista da China, e recusa a autoridade do Vaticano para nomear bispos ou governá-los. Há alguns anos, a Santa Sé trabalha num acordo para o restabelecimento das relações diplomáticas com a China, uma aproximação incentivada pelo Papa Francisco.

Entretanto, o Papa Francisco prometeu analisar o caso dos dois bispos chineses reconhecidos a quem a Santa Sé havia pedido para se afastar e abrir caminho a prelados ordenados ‘ilicitamente’. A Santa Sé pediu que Dom Zhuang Jianjian, da Diocese de Shantou, de 88 anos e que vive na província de Guangdong, e Dom Vincent Guo Xijin, da Diecese de Mindong, de 59 anos, morador da província de Fujian, se aposentassem das suas funções eclesiásticas. Ambos são reconhecidos por Roma.

Zhuang recebeu o pedido para dar espaço a Dom Huang Bingzhang, da Diocese de Shantou, de 51 anos, ilicitamente ordenado e que está excomungado. Guo recebeu o pedido para se afastar a fim de dar lugar ao bispo sancionado pelo governo, Dom Zhan Silu, da Diocese de Mindong, de 57 anos, que também fora ordenado ilicitamente.

O Cardeal Zen foi a Roma após uma solicitação de Zhuang para “levar ao Santo Padre a sua resposta à mensagem que recebeu da Santa Sé por uma delegação vaticana em Pequim. O cardeal disse ter tido sucesso em transmitir ao “Santo Padre as inquietações dos seus filhos fiéis na China” e pediu-lhe que considerasse o assunto.

“A Sua Santidade disse: ‘Sim, eu disse a eles (Cúria Romana) para não criarem um outro caso Mindszenty’”, escreveu Zen. “Penso que foi muitíssimo significativo e apropriado o Santo Padre fazer esta referência histórica ao Cardeal Jozsef Mindszenty, um dos heróis da nossa fé”.

Mindszenty era o cardeal primaz da Hungria sob os anos de perseguição comunista. Após ser condenado à prisão perpétua em 1949, foi libertado na Revolução Húngara de 1956 e recebeu asilo na embaixada americana de Budapeste, onde viveu por 15 anos. Sob pressão do governo, a Santa Sé ordenou-lhe deixar a Hungria em 1971 e, imediatamente, nomeou-lhe um sucessor segundo o gosto do governo húngaro.

Em Outubro passado, a Santa Sé contactou Zhuang, quando este procurou a ajuda de Zen. O cardeal enviou a carta do bispo ao prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, anexando uma cópia ao Santo Padre. Na época, Dom Savio Hon Tai Fai ainda estava em Roma e levou os dois casos – de Shantou e Mindong – ao conhecimento do papa, quem ficou surpreso e prometeu olhar o assunto com atenção.

De acordo com a imprensa católica, Zhuang foi forçado a ir para Pequim em Dezembro de 2017 para se reunir com uma delegação vaticana liderada por um “prelado estrangeiro do alto escalão”. Pediram-lhe que renunciasse e passasse o seu episcopado a Huang.

Guo ficou detido pelo governo por um mês na época da Semana Santa do ano passado, quando lhe solicitaram para assinar um documento afirmando que se “voluntariava” para sair como condição para o reconhecimento do governo. Zen destacou que “o problema não é a renúncia dos bispos legítimos, mas o pedido para abrir caminho a bispos ilegítimos e mesmo excomungados”.

Para ele, “com base em informações recentes, não há motivos para mudar de opinião”, já que o governo está a criar regulamentos mais severos que limitam a liberdade religiosa e que “a partir de 1 de Fevereiro, frequentar a missa clandestina [missa não autorizada pelo Estado chinês] não será mais tolerado”.

“Será que pode haver algo realmente ‘mútuo’ com um regime totalitário?”, perguntou Zen. “Pode-se imaginar um acordo entre São José e o Rei Herodes?”

2 Fev 2018

China | Autoridades destroem igreja evangélica

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s autoridades de uma cidade do norte da China demoliram uma igreja evangélica, disseram testemunhas e activistas radicados no estrangeiro, citados pela agência noticiosa Associated Press (AP).

Um funcionário do gabinete para assuntos religiosos da cidade de Linfen, citado pela AP, afirmou que não se tratou de uma demolição, mas relatos de activistas radicados fora do país e de testemunhas dão conta que forças militares usaram escavadoras e dinamite, na terça-feira, para destruir uma igreja em Linfen, um dos centros da indústria do carvão na China.

A ChinaAid, um grupo de defesa dos cristãos chineses com sede nos Estados Unidos, avançou que as autoridades locais colocaram explosivos numa sala de oração, na cave da igreja, para demolir o edifício. Fotografias divulgadas pela ChinaAid mostram o campanário e cruz derrubados, ilustrando a tensão entre grupos religiosos e o Partido Comunista Chinês (PCC), que é oficialmente ateu.

Com uma congregação de 50.000 pessoas, a igreja há muito que vivia em atrito com o governo. Já em 2009, centenas de polícias e capangas contratados confiscaram bíblias e destruíram parte da igreja, enquanto vários líderes religiosos locais foram punidos com prisão. A crescente popularidade das chamadas igrejas clandestinas tem levado as autoridades a adoptar medidas repressivas, face à preocupação que coloquem em causa o controlo político e social exercido pelo governo. A igreja já tinha sido acusada de violar contratos de uso dos terrenos e os códigos de construção, acusações frequentemente usadas contra igrejas clandestinas.

12 Jan 2018

Imaculada Conceição padroeira de Macau

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] 1 de Dezembro comemora-se o início da Restauração da Independência de Portugal, então sobre o domínio da Espanha dos Filipes, ocorrida em 1640, data da colocação da estátua em bronze de Nossa Senhora da Assunção no frontispício da Igreja da Madre de Deus. Também começava hoje o oitavário da Imaculada Conceição, elevada em 1646, por desejo do Rei D. João IV, a padroeira de Portugal e no ano seguinte de Macau, sendo por isso o dia 8 de Dezembro feriado oficial. Era a única dos quatro padroeiros de Macau que tinha oitava, tendo já deixado de se realizar, e a última a ser consagrada padroeira da cidade.

Começamos hoje por escrever sobre a origem deste culto, que remonta aos primeiros séculos do Cristianismo, tendo a Igreja oriental “instituído as primeiras festa da Virgem e especialmente as da Anunciação, Assunção e Conceição e a celebração desta última é também antiquíssima naquela Igreja e muito anterior à da sua prática na do ocidente. Jorge, Bispo de Nicomedia, que floresceu pelos anos de 616 a 641, dá esta festa como muito antiga e célebre no oriente, e é certo que já em 1180 se celebrara como festa de guarda pelos Imperadores de Constantinopla”, segundo o Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor, que refere ainda a sua História em Portugal e aqui transcrita.

“Afirmam alguns autores que o Sr. Rei D. Afonso Henriques, fundador da Monarquia, já se distinguira na devoção à Imaculada Conceição de Maria, e que em Alcobaça fizera erigir uma Igreja para o seu culto, no qual continuaram seus descendentes na coroa. É porém fora de toda a controvérsia histórica que em 1320, no tempo do Sr. Rei D. Dinis, o Bispo de Coimbra D. Raimundo instituiu na sua diocese a festa da Conceição Imaculada, a instâncias da Rainha Sta. Isabel, a qual no Mosteiro da Trindade, que fez edificar em Lisboa, erigiu uma capela em honra da mesma Conceição. De Coimbra passou aquela festa a ser praticada na diocese de Lisboa, e no resto do reino. Anos depois, o insigne e heróico condestável D. Nuno Álvares Pereira fez construir a Igreja da Conceição de Vila Viçosa, que é tida por uma das mais antigas e veneradas de toda a Hespanha, e os seus sucessores, Duques de Bragança, e os Reis desta Augusta Casa, imitando o exemplo de seu ilustre progenitor, se esmeraram sempre em a engrandecer, celebrando nela com devoção e pompa a festividade da Conceição Imaculada, e entre os Duques a todos se avantajaram D. Jaime, D. Teodósio e D. João.

O Sr. Rei D. Manuel mandou purificar a antiga sinagoga dos judeus em Lisboa, e a dedicou à Conceição de Maria. É a Igreja a que chamam da Conceição Velha, cuja fachada é um belo monumento do estilo da arquitectura gótica em Portugal.

O Sr. Rei D. João III instituiu uma confraria ou irmandade, a que chamaram da Corte, em honra da Conceição da Virgem, debaixo de cujo nome fundou na Vila de Almeirim uma Igreja e hospital.

Em 1634, a diocese da Guarda reunida em Sínodo prestou juramento de defender a Imaculada Conceição, e também a de Braga em 1637, e a de Coimbra em 1639.

Foi porém o Sr. Rei D. João IV quem, com singular piedade, em Portugal mais exaltou o culto à Mãe Santíssima.

A 25 de Março de 1646, dia da festa de Ramos, na capela real de Lisboa, estando os três Estados do Reino congregados em Cortes, depois do Dr. Pedro Vieira da Silva, secretário de Estado, ler o piedoso decreto datado deste dia, jurou o dito Rei, e fez jurar a todos os seus súbditos, a confissão da Imaculada Conceição de Maria; a tomou por Protectora do seu Reino e senhorios, com feudo obrigatório de 50 cruzados em ouro por ano à Igreja da Senhora da Conceição de Vila Viçosa, assento ducal dos Duques de Bragança, dos quais ele herdou esta devoção; e acrescentou que ele Rei e todos os seus sucessores e de seus vassalos, ficariam obrigados a propugnar a excelência da Imaculidade da Soberana Virgem, até expor as vidas e derramar o próprio sangue. Em conformidade com esta resolução e assento de Cortes, todas as catedrais; corporações eclesiásticas e civis; as Universidades de Évora e Coimbra, e mais academias dos Reinos de Portugal, tomando a Virgem Imaculada por Padroeira do Reino, se obrigaram solenemente com juramento, a defender a pureza da sua gloriosa Conceição, e por isso também nas salas de todos os Paços Municipais, Episcopais, e Tribunais do Reino, se levantaram desde então Imagens da Senhora, o que ainda hoje religiosamente se observa.

Na Universidade de Coimbra ainda actualmente, [século XIX] não se confere algum grau académico, sem que preceda o juramento de defender a Conceição Imaculada.

Seguidores do piedoso exemplo do Sr. Rei D. João IV, têm sido até ao nosso tempo os Monarcas da Augusta Casa de Bragança. O Sr. Rei D. Pedro II fez ricas dádivas à Conceição de Maria, e com real piedade protegeu as ordens religiosas da Conceição estabelecidas em Portugal; como a de Braga, instituída pelos anos de 1625; a Congregação da Conceição de Oliveira do Douro, em 1679; a dos Marianos Conceicionistas, estabelecida em Chacim, na Província de Trás-os-Montes, em 1754; e outras extintas em Portugal em 1834, na ocasião em que o foram as demais ordens religiosas.

O Sr. Rei D. João V foi em devota romaria à Basílica de Vila Viçosa em 1716, para se desempenhar de uma sua promessa, e fez riquíssimos donativos àquela Igreja. Em 1717, decretou que em todas as Catedrais da Monarquia Portuguesa, se celebrasse com a maior pompa a festividade da Conceição. Em 1720, criou a Academia real de história portuguesa, em honra e debaixo da protecção da Senhora Imaculada, e quando em 1733, a 15 de Dezembro, reunida aquela célebre Academia na capela dos Paços da Casa de Bragança, onde fazia suas sessões, jurou solenemente defender a Imaculada Conceição, também o Sr. Rei D. João V, e o Príncipe seu filho prestaram devotamente o mesmo juramento.

O Sr. Rei D. José I se distinguiu em semelhante devoção. No seu reinado, depois do terramoto de 1 de Novembro de 1755, que arrasou a cidade de Lisboa e muitas terras de Portugal, se instituiu no Convento de Jesus da Terceira Ordem da Penitência daquela cidade, sob a protecção da Santíssima Virgem, a Academia Mariana, à qual presidiu primeiro o erudito e afamado Dr. Manoel do Cenáculo, Arcebispo de Évora, assaz notável pela sua devoção, e em preciosos escritos em honra da Imaculada Conceição de Maria.

O Sr. Rei D. João VI pediu e obteve da Sé Apostólica diferentes Bulas, que aumentaram os antigos e extraordinários privilégios de que já gozava a real Igreja de Vila Viçosa. A 6 de Janeiro de 1818, para solenizar o dia da sua inauguração ao trono, e manifestar que na devoção à Imaculada Conceição seguia as pisadas dos seus predecessores, criou a Real Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, cujas insígnias, pendentes de fita azul e branca, tem no centro as iniciais A. V. M., que significam – Ave Virgem Maria, – e em roda a lenda – Padroeira do Reino”.

25 Nov 2017

Victor Aguilar, padre e historiador: “Em casa têm fotos do Mao, na carteira têm o Papa”

Victor Aguilar é um costa-riquenho, padre e missionário de uma ordem italiana. Está a escrever uma tese sobre os nestorianos que apresentaram Cristo aos chineses e está atento à situação política actual. O padre revela que aquando da transição, o Bispo de Macau não garantiu que as entidades eclesiásticas estrangeiras tivessem um lugar seguro no território e não afasta a hipótese de no futuro o catolicismo se tornar clandestino.

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo começou a sua aproximação à Igreja?
Foi na Costa Rica, quando era miúdo, através de um missionário da Ordem Comboni que foi à minha cidade falar do Apartheid. Ele tinha estado preso na África do Sul por conduzir com um negro no lugar do pendura. A polícia parou-os e recordou-lhe que na África do Sul um branco não pode conduzir um negro. O padre recusou obedecer e foi preso durante três meses e expulso do país. Pensei que não era possível este tipo de situações e ele disse: “vives num país tranquilo e pequeno, onde se pode deixar a porta de casa aberta, mas não conheces o mundo”. Isto abriu-me a visão e despertou-me um interesse pessoal, nunca tinha tido vontade de ser um padre, apesar de ter estudado num colégio jesuíta.

E como foi a sua primeira abordagem à cultura chinesa?
Cresci com um vizinho chinês, que tinha deixado a China há muitos anos, era médico de medicina tradicional chinesa e casou com uma local. Cresci com as filhas dele, que era minhas colegas de escola. Ele tentou ensinar-lhes chinês e budismo. Despertou-me interesse e ouvia-o muitas vezes, a primeira vez que ouvi falar na China foi através deste homem. Sempre tive curiosidade por essa parte do mundo.

Quando cá chegou o que achou da forma como se vive a religião?
A primeira impressão que tive foi muito simples. Alguns chineses disseram-se “o cristianismo é para os ocidentais, não é para nós”. Ouvi este comentário no Interior da China, em Taiwan e no Japão. Isto ignifica que não conseguimos tocar o espírito oriental com o cristianismo.

Há alguma característica na cultura chinesa que a torna impermeável à espiritualidade estrangeira?
Na “forma mentis” oriental é muito difícil encarar monoteísmo. A segunda questão é porque se há-de ter apenas uma religião. Mas isto também funciona ao contrário. Muitas vezes, os ocidentais pegam nas religiões orientais pelos aspectos externos, o superficial e decorativo. A religião não é só usar roupas, rapar o cabelo ou fazer tatuagens. Para os orientais, a religião é algo muito profundo, está no coração das pessoas. Mas o verdadeiro diálogo é feito na prática. Quando foi o terramoto de Sichuan a primeira ajuda às vítimas foram os monges budistas ajudados por cristãos. Esse é o verdadeiro diálogo inter-religioso.

Como vê a actual postura de Pequim face à religião?
Ontem li um artigo que tinha como título “se quer sair da pobreza substitua Jesus por Xi Jinping”. Conheço comunidades católicas clandestinas onde o cristianismo está vivo, apesar da pobreza. O Governo controla todas as religiões na China através da Associação Patriótica, que influencia todas as decisões da igreja oficial da China. Há seis meses estava em Itália para falar sobre a Igreja Chinesa e falava da distinção entre a igreja oficial e a clandestina. Um padre chinês levantou-se e reagiu com agressividade dizendo: “A divisão é culpa dos estrangeiros, os missionários é que a criaram. Na China só há uma igreja, a que é reconhecida pelo Estado e nós reconhecemos e amamos o Papa”. Cada vez mais vejo padres e freiras chinesas enviadas para a Europa para estudar. Há interesse do Vaticano para estabelecer ligações diplomáticas com Pequim. A Igreja deveria firmar condições claras nestas relação, mas prevejo que muitas das comunidades clandestinas vão sofrer e desaparecer. As pessoas na China sentem-se, por vezes, traídas, depois de terem fé durante décadas. Ainda existem padres e bispos na prisão, conheço um padre em Fukien, que era missionário, a quem partiram a espinha e deixaram-no para morrer. Foi acolhido por cristãos nas suas casas que têm tomado conta dele ao longo de anos. Claro que agora está a morrer.

Como é que estes sacerdotes se mantêm na clandestinidade?
Um velho padre disse-me que estava farto de se esconder. Quando saem da clandestinidade recebem os benefícios do Governo chinês. O bispo recebe um bom carro, dinheiro para a paróquia, propriedades que haviam sido confiscadas durante a revolução cultural. É uma tentação para os padres chineses. Para nós, os missionários, o verdadeiro propósito de estarmos na China são os programas sociais, porque não podemos desenvolver actividades religiosas. Movem-nos os projectos educativos, trabalhar com crianças deficientes, crianças com famílias afectadas pela SIDA em zonas rurais da China. Algumas destas pessoas são cristãs, chegamos mesmo a celebrar homilias. Mas ouço muitas vezes que na igreja clandestina os padres estão cansados e querem desistir. Quando fui à China a primeira vez, em 2005, encontrei-me com algumas pessoas muito especiais, vinham ter comigo, abriam a carteira e mostravam-me a foto do Papa. É um sinal de que eram da igreja clandestina, uma forma de dizerem que são fiéis a Roma. Em casa têm fotografias do Mao, mas na carteira têm o Papa. Acontece-me muito com pessoas idosas.

A igreja clandestina está a morrer?
Depende das zonas. Por exemplo, em Fukien, no sul do país, a igreja clandestina é muito forte e tem gente nova, passa de geração em geração. Mas também trabalhamos noutras províncias em que são principalmente pessoas mais velhas a seguir a fé. Além disso, as novas gerações chinesas têm apenas o dinheiro em mente e há um vazio no coração destas pessoas. Os valores ancestrais chineses, mesmo os confucionistas, estão a perder-se, já nem sequer há respeito pelos pais. Isto é claro. Acho que o Governo chinês percebeu que tem de fazer algo, nem que seja para contrariar a corrupção. A religião pode ajudar, mas eles querem que seja controlada pelo Governo.

Acha que a Igreja em Macau pode ter de recorrer à clandestinidade à medida que a influência de Pequim aumenta?
Aquando da transição de Macau para a China, o Bispo Domingos Lam chamou todas ordens e padres estrangeiros e disse: “Queridos irmãos e irmãs, desde o retorno à China não posso garantir aqui a vossa presença”, arranjem uma forma de se registarem. O Governo chinês mandar-nos a todos embora era uma possibilidade. Claro que isto não aconteceu. Em Hong Kong sei que algo do género foi discutido entre os padres, isto foi mais claro lá. Por outro lado, há por cá alguns padres vindos da China, chegam aos poucos. Acho que há hipóteses de no futuro o Governo chinês querer ter apenas padres do Interior da China nas igrejas de Macau e Hong Kong, é a forma como operam. Em Zhuhai há uma igreja católica oficial, que não é relacionada com as igrejas daqui, não tem nada a ver com o Bispo de Macau. O padre foi enviado pelo Governo chinês do norte da China. Em Shenzhen há três padres do norte da China. Mesmo em Zhuhai as pessoas reclamam porque são forçadas a falar em mandarim, porque este padre não sabe cantonês. Conheço um católico de Zhuhai que vem todos os domingos para ir à missa em Macau, e diz que não vai na sua cidade porque o padre que tem não é um padre.

Além da linguagem, quais as diferenças desses padres enviados pelo Governo chinês?
Agora aumentaram um pouco o nível de qualidade de formação destes padres, mas anteriormente eram muito maus. Faziam o mínimo possível, abriam a Igreja, davam a missa e já estava. Não têm qualquer actividade pastoral, não falam com as pessoas, não visitam doentes no hospital, aquilo que devemos fazer enquanto padres. Sentem que não é o trabalho deles.

Que perspectiva então para o futuro da igreja em Macau?
Não digo ir para a clandestinidade. Em Hong Kong estão mesmo a preparar-se para 2047. Estão a formar padres, há 300 pessoas de Hong Kong a estudar teologia, porque querem ter catequistas no futuro. Em Macau só há meia dúzia de paróquias mais focadas nas missas e sacramentos, não há muitos cristãos. Não estamos neste momento a considerar que esta situação possa acontecer. Mas imaginemos que a igreja oficial da China decide meter um bispo em Zhuhai com autoridade sobre Macau. Será um desafio em termos de status quo, talvez não o façam agora por saberem que haveria reacção. Lembro-me que no início se dizia que durante 50 anos não se tocaria em nada, mesmo na Lei Básica. Em Hong Kong as mudanças motivaram protestos, mas aqui ninguém se apercebeu. Em Macau pode acontecer a Igreja e algumas pessoas decidirem tornar a sua fé clandestina, estamos a falar de hipóteses. Mas estou certo de que o Governo chinês tem um plano, basta ouvir os discursos de Xi Jinping neste último congresso quando falou da sinonização do cristianismo na China. Não falou de aculturação, de tornar a igreja mais chinesa, mas do controlo do Governo em matérias religiosas. Usou estas palavras de forma aberta. Por isso acho que há um plano, ainda para mais numa altura em que centralizou todo o poder em seu redor.

17 Nov 2017

Adonis, um santo

06/08/2017

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o Iémen, à beira de uma casa de campo, o realizador com quem viajava teve a ingenuidade de tirar fotografias a uma menina de três anos que sentada num degrau dava à perninha e sorria.

Só que a coitada tinha uma sainha pelo joelho. Ao terceiro clic assomou de dentro uma avó endemoinhada que nos repele aos gritos, secundada por um pai de kalachnikov nas costas e que imediatamente incitou a mãe a espancar a criança à nossa frente. A dita havia mostrado as pernas aos estrangeiros.

Foi um “espectáculo” que conduiu e acabámos por pagar caro a nossa retirada – mitigação traduzida em dólares porque a moral (helás!)  negoceia-se sempre.

Toda a minha atracção pelos páramos dos sufis, pelo Ibn Arabi, pelo Rumi, etc., vacilou naquele instante e fui vasculhar no fascinante Islam, l’autre visage, de Eva de Vitray-Meyerovitch, a raíz daquela violência. Não fui esclarecido.

Ē-me explicada agora a causa das coisas no abrasivo Violence et Islam (Seuil, Dec. de 2015), um livro de entrevistas de Adonis (1930), o poeta sírio, no qual este, com a cumplicidade do psicanalista franco-marroquino Houria Abdelouahed, desmantela o carácter ferino do islão, demonstrando não apenas a sua violência genética como a sua falência. Citando os textos dos Hadiths, do Corão, dos Sutras, e “saturando-nos” com a sua autoridade de um homem de dentro… Adonis zurze quase envergonhadamente por ver a “sua” civilização de quinze séculos definhar na pulsão degenerativa do Daesh – um caso, diz, de arterioesclerose religiosa.

Neste livro não encontramos um ajuste de contas mas um homem que ama as “fontes vivas” da cultura de onde emergiu – e que lhe alimentou dezenas de livros – mas que ama igualmente a verdade e que desgostoso, começando por fazer uma análise da malograda Primavera Árabe, diagnostica um final triste para a cultura que sempre almejou dignificar:

«O homem que se pensa mais vigoroso do que a morte – porque se imagina a piquenicar agradavelmente no paraíso – pratica a barbárie sem medo ou sentimento de culpabilidade. Ele simplesmente está separado da natureza e da cultura. Vejo no Daesh o fim do Islão. Ē um seu prolongamento, certo; sendo igualmente o seu fim. Actualmente, sobre o plano intelectual o Islão não tem nada a dizer. Nem élan, nem visão para mudar o mundo, nem pensamento, nem arte, nem ciência. Esta repetição é o próprio signo do fim. (…) O Daesh não oferece uma nova leitura do Islão ou a construção de uma nova cultura ou de uma nova civilização. Antes é o encerramento, a ignorância, o ódio do saber, o ódio do humano e da liberdade. E é um fim humilhante!»

Percebe-se porque sendo Adonis um dos iniludíveis poetas mundiais da actualidade e um consecutivo (desde há década e meia) candidato ao Nobel (invariavelmente, dos mais falados), a distinção lhe tem escapado.

Fosse eu uma voz decisiva na deliberação e votaria contra pela razão mais simples: quero-o vivo e não exposto a uma fatwa – o que automaticamente se seguiria à publicidade sobre a sua obra.

Este livro – tocado pela inusitada coragem dos santos que pairam com a sua liberdade acima do medo – deixa sem vértebras o corpo institucional da religião e dos poderes islâmicos (evidentemente que, como um homem de bem, e não como um tolo iconoclasta, Adonis não confunde a fé dos seus membros com o anquilosamento estrutural da religião).

Citemos a mais inocente das passagens:

«O Islão matou a poesia. Este assassinato, com efeito, é igualmente o da subjectividade, representa o detrimento do indivíduo e da sua experiência de vida em proveito da crença comum, a da Oumma (a comunidade). O Islão rejeitou que a poesia fosse um conhecimento e uma demanda da verdade. Ele baniu-a e condenou-a. Ora, a poesia perde todo o sentido se não for exactamente uma busca da verdade. Posso mesmo dizer que a poesia é uma desmontagem e um desmantelamento da religião, tanto na sua crença como no seu conhecimento. Ademais, é a poesia que diz a verdade. (…) Do ponto de vista poético, a religião é um duplo niilismo: dado que é uma destruição da beleza da existência sobre a terra, querendo-a substituir por um enchimento infinito de lendas em torno do paraíso. A poesia tem a vantagem de afrontar directamente a divindade sem se transformar numa outra religião. Ela rechaça a ideologia. Como a mitologia, antes questiona e abre e desdobra horizontes infinitos para a busca.»

Olé!

Repita-se: este não é o livro de um ressabiado mas apenas o de um homem que à obediência preferiu a inquirição e que não receia ferir-se no acto de abordar a verdade. Ē como um sudário limpo que sonhasse que o seu corpo corrupto se metamorfoseasse numa cesta de fruta.

E o melhor de tudo é que neste livro quem sai mais dignificado é o feminino e cada uma das mulheres, sequer alguma vez reduzidas à abstracção de um género. Como pai de cinco filhas, agradeço-lhe.

Sim, mestre Ibn Arabi: «todo o lugar que não aceita o feminino é estéril».

08/08/2017

Subimos da Macaneta (praia) à cidade mais próxima (a dez quilómetros), Marracuene, a trinta km de Maputo, para depositarmos na filial local do nosso Banco a renda da casa.

Estivémos quarenta minutos na fila. E chegados ao balcão sentencia a intrépida funcionária, Não temos fotocopiadora, cada cliente tem de trazer de fora as fotocópias da sua identificação… (o que deu mais meia hora em apalpação de um território peculiar, que vive ao retardador). Ainda que seja o próprio que se apresenta, com todos os seus documentos, numa filial do Banco onde tem a sua conta.

Ē indubitável o delírio kafkiano nos países à deriva.

Bom, para as minhas gatas também sou um fabuloso primeiro-ministro!

10 Ago 2017

As 72 virgens

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s religiões que conheçam postulam, todas elas, um paraíso. Este cumpre a função de resolver da morte e da sombra que esta projecta sobre todo e qualquer homem, sem excepção. Epicuro tenta solucionar lógica e friamente o medo associado à inevitabilidade da morte dizendo “enquanto somos, a morte não é; quando a morte é, não somos”. Desde logo, nada a recear, aparentemente. O problema é que o ponto de vista humano não é nem como o dos animais – completo mas cego para si próprio – nem como o dos deuses – completo e absolutamente transparente para si próprio. A forma como estamos desenhados permite-nos pensar em coisas que não existem de todo – ou ainda – ou às quais não temos um acesso adequado como, por exemplo, o infinito, deus ou o futuro. E a forma como vemos o futuro, ela própria, é paradoxal: por um lado, sabemos que vamos morrer e que isso pode acontecer a qualquer momento e, por outra parte, vivemos como se a morte fosse uma coisa que acontecer “aos mais velhos”, “aos doentes”, “àqueles que moram em países assolados pela guerra ou pela fome”, em suma, aos outros. Não conseguimos imaginar a morte própria. O mais perto que conseguimos chegar disso é imaginando a procissão de carpideiras num funeral em que somos, simultaneamente, figura principal e espectador invisível.

O paraíso cristão abjura a figura do corpo. É a alma que é sujeita a condenação ou salvação. De um ponto de vista lógico, é uma posição extremamente bem urdida: não somente elimina o problema do corpo e do seu perecimento, como a logística necessária para manter um paraíso em risco permanente sobrelotação. As almas, como se sabe, não ocupam espaço, não adoecem e são (postula-se) imortais. Não faz qualquer sentido trazer para o paraíso o plano vectorial onde acontece o desejo e a dor, em suma, o plano que possibilita a instalação de todas as formas imagináveis de desordem. O lado negativo da teologia cristã consiste na forma como o corpo é negativamente encarado em vida. Mas como o paraíso tem uma duração infinitamente superior a este “passeio no parque” a que chamamos vida, a troca parece ser, em todo o caso para o crente, vantajosa.

No caso do paraíso muçulmano, porém, a história é de todo diferente. No paraíso muçulmano, não somente o corpo existe, como existe de um modo intensamente sensual. Aos homens estão prometidas setenta e duas virgens com seios em forma de pêra, puríssimas, eternamente jovens e livres de alguns inconvenientes reservados aos corpos na terra: não menstruam, não urinam e não defecam. Em jeito de cereja no topo do bolo, diz-se também, e perdoe-se desde já a tradução livre de “appetizing vaginas”, que estas possuem como característica constitutiva, embora sendo virgens, “vaginas gulosas”.

A primeira pergunta que se pode fazer acerca deste paraíso – deixando para Deus a resolução do problema de espaço – é sobre a natureza problemática da virgindade num local em que o principal atributo é a eternidade. Quando tempo duram setenta e duas virgens no paraíso (pressupondo a virgindade um atributo fundamental, visto ser tão vincada na promoção do paraíso)? Tendo em conta os textos fundamentais da teologia muçulmana, nos quais se postula que os homens têm erecções eternas e que podem satisfazer mais de cem mulheres de seguida, muito pouco. Setenta e duas virgens não enchem nem a cova de um dente. A eternidade é muito tempo.

A forma como a sexualidade é vivida nos países nos quais a ortodoxia muçulmana está mais profundamente instalada condiciona decerto esta visão do paraíso. Na Arabia Saudita, exemplo máximo de uma concepção radical do islão, duas pessoas do sexo oposto não podem ser vistas juntas em público, sob pena de serem castigadas pela polícia dos costumes, uma dependência do Ministério da Promoção da Virtude e da Abolição do Vício. A sexualidade, que não se subsume nem por decreto real, acaba por obedecer à regra “where there’s a will, there’s a way” e as pessoas, impedidas de dar azo aos seus impulsos na forma como os sentem e como optariam exprimi-los, acaso o pudessem, adoptam soluções de recurso. Os comportamentos homossexuais, como no cárcere ou numa viagem de barco de longo curso, acabam por impor-se. E, mesmo nos casos em que a disposição fundamental é a homossexualidade, não sendo esta um recurso para algo que não tem possibilidade de cumprir-se, o comportamento não define a identidade. Por exemplo, não se considera homossexual o sujeito activo da relação, só aquele “que fica por baixo”. Sendo certo não ser possível ficarem todos “por cima”, a formulação é semelhante a que um professor meu de filosofia dava pelo nome de paradoxo mediterrânico, que se exprimia pela contradição em termos entre “todas as mulheres terem de ser castas e todos os homens, fodilhões”.

Viver desta forma absolutamente condicionada aquilo que, mesmo numa sociedade laica e tolerante, pode ser um problema fundamental da existência, a saber, a sexualidade, não pode não ter consequências. E se é certo esta leitura repousa na consideração de um sistema de variável única, não é menos certo que esta é uma variável que tem sido incompreensivelmente posta de parte nas leituras que tenho tido oportunidade de encontrar um pouco por toda a parte.

31 Mai 2017

Stephan Rothlin, presidente do Instituto Mateus Ricci: “Tem havido um aumento da intolerância”

Presidente do Instituto Ricci desde 2015, o académico e padre jesuíta fala esta sexta-feira numa palestra sobre a luta pela essência da fé, promovida pelo Fórum Luso-Asiático. Stephan Rothlin acredita que a intolerância em relação às diferentes religiões tem aumentado, defendendo um maior diálogo para acabar com os conflitos. Na área educativa, Stephan Rothlin chama a atenção para a necessidade dos jovens de Macau estudarem mandarim e tentarem ir além das pequenas fronteiras do território

[dropcap]E[/dropcap]sta sexta-feira vai falar da profundidade da fé e da luta pela sua essência, com base no filme “Silence”, de Martin Scorcese. Que ideias vai abordar?
Há muitos anos que recorro a filmes para fazer uma espécie de referência a alguns problemas. Pretendo mostrar uma série de questões que estão relacionadas com a fé, com a missão. O filme fala da missão jesuíta [no Japão] que começou em Macau e fala de uma série de problemas que acontecem quando a religião é imposta num outro país. Não devemos impor uma religião estrangeira sem dar o nosso melhor para compreender a cultura local. É importante ter a consciência da cultura de cada um. Claro que essa consciência tem de ser formada pela virtude de Deus ou através do ensino da Igreja, mas sempre tendo em conta de que a cultura de cada um é algo sagrado. Sempre considerámos ser crucial, se queremos fazer essa incursão numa cultura, compreender o idioma local.

Falando da China e do facto de ainda não possuir relações com a Igreja Católica. Acredita que com o Papa Francisco essa situação irá mudar nos próximos anos?
O Papa Francisco, que é jesuíta, é muito influenciado por esta espécie de paixão pela China, que foi iniciada por Mateus Ricci. Certamente conhece todos os passos a tomar para se chegar a um acordo com a China. Refiro-me também a toda uma dinâmica diferente onde, na Europa, à excepção da Polónia e de Portugal, a Igreja está num profundo declínio, e há outras dinâmicas em países asiáticos como a China ou o Vietname, onde diferentes igrejas católicas atraem as pessoas. É através dessa dinâmica que o Papa vai tentar de tudo para chegar a uma espécie de acordo com o Governo chinês.

Actualmente as religiões estão em conflito em vários lugares do mundo, sobretudo na Europa. Estamos de facto a vivenciar uma guerra ideológica, na qual as pessoas deixaram de compreender a religião do outro e o seu papel?
Nos últimos anos tem havido um aumento da intolerância. Sobretudo devido ao terrorismo, a imagem do Islão tem sido extremamente negativa, então tem aumentado o mútuo desrespeito. Claro que na Europa temos o tópico dominante dos refugiados. Nesse contexto, é ainda mais importante argumentar em prol do diálogo entre religiões, e essa é também a missão do Instituto Mateus Ricci. Temos esta entidade e uma história de ligação entre a China e a Europa, temos bolsas de estudo e queremos lançar um jornal que estabelece uma comparação em termos de espiritualidade, inovação social e liderança moral. Tudo para que, através desse diálogo entre religiões, se possa encontrar uma forma de ultrapassar esse tipo de mentalidade. 

O Instituto Mateus Ricci vai mudar-se para as instalações da Universidade de São José. Quando é que esse processo de mudança vai ficar concluído?
O nosso calendário baseia-se com o protocolo que assinámos com a universidade, segundo o qual mantemos uma cooperação, mas temos uma independência em termos legais. O nosso plano é concluir a mudança em Junho deste ano.

Com este processo, o instituto vai ter um novo papel, mais predominante, na sociedade de Macau? Há planos para a organização de mais eventos?
O meu antecessor deixou uma base bastante sólida, mas nunca podemos ficar no mesmo sítio. Queremos chegar a mais pessoas de Macau, Hong Kong e China, então o meu plano é continuar a cooperar com o Centro de Ensino à Distância da China, da Universidade de Economia e Comércio de Pequim, com o qual colaboro há muitos anos. O plano é instalar um centro para o ensino à distância, com cursos online, em Macau, já este ano.

E esses cursos vão focar-se em que áreas?
Temos esta missão de ensinar o português e o inglês com ligação aos negócios. Essa é também a missão que o Governo quer atingir. Claro que em primeiro lugar está o inglês, e temos esta ligação com os países de língua portuguesa, e aí promovemos o português. Com a base já criada teremos cursos na área do empreendedorismo. Macau é uma porta importante para a China e um lugar incrível em termos de multiculturalidade, e há que promover esse empreendedorismo, uma vez que para as gerações mais jovens é cada vez mais difícil encontrar emprego. Teremos cursos online que ensinam a criar um negócio ou relacionados com a ética no trabalho. É uma revolução ao nível educacional ter a oportunidade de chegar a pessoas que não conseguem pagar para ter mais educação.

Quando diz que é mais difícil para os jovens encontrarem um emprego, refere-se a Macau ou ao resto do mundo?
Vivi cerca de 19 anos em Pequim e, hoje em dia, independentemente se o curso foi ou não feito numa universidade de prestígio, é uma dura batalha conseguir um trabalho. Em 1999 havia um milhão de graduados, hoje teremos cerca de nove milhões. Vejo essa realidade em Macau ou em Hong Kong também.

No caso de Macau, essa dificuldade será maior, uma vez que o sector do jogo tem vindo a decrescer?
É sempre difícil prever, mas penso que sim. Se alguém tiver formação em Macau deveria ter sempre uma perspectiva internacional, e não apenas planear ficar para sempre no território. Sabemos que isso pode representar o paraíso (risos), mas também podem ficar perdidos no paraíso. Os casinos não garantem um desenvolvimento sustentável, pelo que temos visto nos últimos meses. Em primeiro lugar, é necessário ir para a China aprender mandarim, mas também ter uma perspectiva face a Hong Kong, a Portugal e à Europa, para existir uma maior pressão para que [o território] tenha um papel internacional.

Nesse sentido, o ensino superior necessita de amadurecer?
Ensinei na Faculdade de Comércio e Economia da Universidade de Hong Kong e [o ensino superior do território] tem, de facto, uma série de vantagens. Macau tem um enorme desafio de levar a cabo uma melhoria de todas as universidades. A USJ, por exemplo, tem uma ligação à Europa e tem um enorme potencial. Penso que têm de ser feitos enormes esforços, ao nível da cooperação com este mundo altamente tecnológico. Deve ainda ser estimulado o pensamento crítico e criativo. A mentalidade de trabalhar na mesma empresa para sempre já não existe, já não funciona. As escolas católicas têm um impacto enorme a esse nível, maior do que na Europa. A começar com a escola primária, e há uma grande procura, deve haver essa aposta na educação e na inspiração dos alunos a esse nível.

Acredita que os jovens de Macau perderam o interesse em estudar ciências sociais? Que razões pode apontar para isso?
Por um lado, penso que as pessoas de facto não estão interessadas nessas áreas mas, por outro, também noto um grande interesse. Temos estudantes chineses e americanos, e se na Europa quase temos de pagar para que os alunos prestem atenção ao que dizemos, aqui podemos encontrar alunos muito mais motivados, e que reúnem dinheiro para estudar. Pode haver mais motivação até. Penso que os institutos de investigação têm de explicar melhor aquilo que têm para oferecer. Há os jovens que olham constantemente para o telemóvel e temos de saber como responder a este fenómeno. Temos de ser mais sofisticados para atrair a atenção desta geração. Na minha opinião, estes cursos online que queremos promover podem ajudar, mas é sempre necessário uma interacção. Macau tem este lado multicultural que pode ajudar a criar espírito critico e criativo. É preciso preparar as pessoas para entrarem no mercado de trabalho e há muitas queixas das empresas, que consideram que os jovens não estão preparados para lidar com desafios diários e para desafiar o seu espírito crítico.


Um jesuíta com a sua missão

Antes de dirigir o Instituto Mateus Ricci, Stephan Rothlin esteve na China, onde, entre 1998 e 2002, dirigiu o Centro de Estudos Chineses em Pequim e foi professor convidado da Universidade de Renmin. Nascido na Suíça, Stephan Rothlin teve ainda uma experiência em Taipé, Taiwan, onde foi investigador na Universidade Católica Fu Jen. Voltaria à capital chinesa em 2005, onde foi presidente da consultora Rothlin International Management até 2013. Com este projecto, o também padre jesuíta desenvolveu trabalhos de consultadoria para empresas ao nível da responsabilidade social e corporativa, tanto no Continente, como em Hong Kong. No seu país natal, Stephan Rothlin estudou Economia na Universidade de Zurique e foi professor do Instituto de Gestão e Economia de Zurique.

22 Mar 2017