António Cabrita Diários de PrósperoIntervalo 07/ 11/ 2017 [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, com a falta de tempo para me entregar ao “espírito do sério” faço um intervalo nas reflexões que andava a fazer para me entregar ao devaneio do instante e ao que o quotidiano me oferece, como, neste preciso momento, a visão daquela penca tão grande e adunca que ao beber a bica, antes que os lábios toquem o café, lhe fica o nariz pingue. “Tinha o rosto branco de cólera”, leio, e eis coisa que não temo encontrar nesta cidade de acácias vermelhas. Contudo, deparei, numa banca de rua, com um volume dos diários de Mircea Eliade, Fragments d’un Journal, 1970-72, e custou-me euro e meio. A chatice é que vou atrasar tudo, para me alimentar deste naco. E a 19 de Outubro de 72 deparo com uma entrada sobre Allan Watts. Antes de a transcrever, conto a morte deste senhor. Dava uma aula e no meio de uma digressão esfuziante que entusiasmou os alunos, anunciou, Quando terminar este raciocínio, vou-me sentar em lótus e vou morrer. A extensa maioria considerou o anúncio mais uma charada do mestre, até pela energia física que dimanava. E, em calando-se, Allan Watts pôs-se em posição de lótus e não mais se levantou. Narra agora Eliade: «Acabo de ler a autobiografia de Allan Watts. Lembro-me das primeiras conferências sobre o Zen que ele fez aqui, em Chicago. Achei-as simplesmente extraordinárias. No entanto, na época, em 1956, eu não tinha captado bem a sua “mensagem”. E como prova disso conto a nossa surpresa, minha e de Christinel, quando ele nos veio visitar uma manhã e, contrapondo ao café que lhe oferecíamos, Watts nos perguntou se nós não tínhamos antes vodka…» Este espiritualista heterodoxo, como Lao Tsé, gostava da sua pinga. São os que prefiro, os que prescindem do ascetismo e não iludem a embriaguez de ser humano. No mesmo livro, um apontamento sobre Gide e o seu diário, de 1946: «O mundo não será salvo, a poder sê-lo, senão pelos insubmissos. Sem eles, etc.» Hoje Gide teria necessidade de corrigir a coisa, substituindo insubmissos por insones. Só os insones não cabulariam na transformação de si porque a lâmina em que atravessam a vida não lhes deixa. Só nessa desesperada urgência dos insones antevejo uma pureza que não pode ser pervertida pelos meios. Telefona-me a minha mulher, Como vai a revisão, pergunta. Trabalhamos na revisão de um grosso livro do arquitecto José Forjaz. Aí se reúnem palestras, dadas em todo o mundo, conferências, textos de reflexão vária, dirigidas à academia (ele foi professor em vários países e director da Faculdade de Arquitectura em Moçambique) ou a outros públicos. Espantoso, neste tijolo de condensada sabedoria, é que raramente o Forjaz cita. Embora todo o saber aí esteja implícito e haja alusões, há um pudor em exibir o conhecimento. Atitude aliás comum aos livros de artistas. Creio que estas reflexões aparentemente mais ancoradas no empírico do que no confronto com o teórico (está lá, mas refractado) resultam do facto de que a arquitectura exige uma grande habilitação técnica e uma minúcia da ordem do fazer. Naquela as teorias são consecutivamente testadas – o que dá ao arquitecto uma visão holística. É o que acontece neste livro excelente, e gosto especialmente dos capítulos em que Forjaz relaciona a arquitectura com a medicina ou apela a uma contenção da “arquitectura espectáculo” em detrimento de um respeito para com a paisagem e o ambiente. Uma lição que talvez fosse pertinente levar a Macau. O Forjaz é o contrário de mim, que cito muito, e isso nem sempre é compreendido. O meu material afinal não é a pedra, o vidro, a coluna ou a abóbada, mas os livros, o pensamento alheio que interpela o meu e o nutre. Tal como o sapateiro não pode deixar de citar o formão, a cola, o martelo, o prego, o x-acto, seria desonesto eu não citar os meus materiais, aqueles que me permitem a aceleração do pensamento. Através deles penso com, e empreendo no que acredito: que a cultura seja sobretudo um acto de relação, uma plataforma em que o vivido e o lido se imbricam e irmanam. Novo telefonema. É o Jonas. Dia catorze, a complementar a inauguração da exposição do ceramista Jonas Donato, Saudades da Lata, será lançado o livrinho que fizemos juntos, O blue da Majika (o nome popular para as violas de lata). Ele recriou quinze instrumentos musicais tradicionais e eu fiz um poema para cada um deles, tendo inventado uma Cosmologia em que no princípio era o Vento – o qual vendo como a desarmonia e a indiferença cresciam entre os homens inventou o ritmo e os instrumentos musicais para os unir e lhes alimentar a empatia. E perderam os animais a fala porque rejeitaram a música. Segue o poema para o Pankwé: «DO QUE ME CONTOU UM RÉGULO EM TETE: O PANKWÉ// Até o pénis e a vulva terem caído do céu a minha mãe tapava / um buraco que ela tinha com caril de amendoim/ e o meu pai ia à caça cada vez mais intrigado/ com a forma das setas por não conhecer nada parecido/ no seu corpo que desse a vida/ enquanto o seu passo projectava no chão uma sombra.// E viviam tristes, de lágrimas e vitualhas insípidas porque se sentiam sós. // Então nesse dia choveram milhares de pénis e as vulvas. / Eram de barro mas amoleciam se manejados. /A minha mãe punha-se a cantar e ululava quando o pai se acercava./ O meu pai passou a ornamentar-se com plumas.// Louvado seja o Senhor que levou o mar aos búzios! // Aí a minha mãe criou o Pankwé. / As duas cordas são os grandes lábios/ a cabaça o útero/ – do que aí ressoa nasci eu! / Eu e mais um cento de cabritos. // E desde então o meu pai só faz o que gosta:/ sobe aos imbondeiros e abre cisternas.»
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasA jovem criada A jovem criada [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e noite, sobre o prado nu, Ela agita-se em sonhos febris. Amuado lamenta, no prado, o vento, E a lua está à escuta nas árvores Logo empalidecem as estrelas em redor E, exaustas de queixumes, As suas faces de cera empalidecem. Uma podridão exala da terra. Triste, sussurra o canavial na lagoa E, encolhida sobre si, gela de frio. Ao longe, canta um galo. Sobre a lagoa Dura e cinzenta, estremece a manhã. Die Junge Magd Nächtens übern kahlen Anger Gaukelt sie in Fieberträumen. Mürrisch greint der Wind im Anger Und der Mond lauscht aus den Bäumen. Balde rings die Sterne bleichen Und ermattet von Beschwerde Wächsern ihre Wangen bleichen. Fäulnis wittert aus der Erde. Traurig rauscht das Rohr im Tümpel Und sie friert in sich gekauert. Fern ein Hahn kräht. Übern Tümpel Hart und grau der Morgen schauert. A jovem criada Na forja, retine o martelo, E ela apressada pelo portão passa. Incandescente o martelo o criado brande, E ela olha para ele como se estivesse morta. Como num sonho, ela é atingida pelo seu riso E cambaleia em direcção da forja. Agacha-se envergonhada com aquele riso, Duro e grosseiro como o martelo As centelhas espalham-se claras pelo espaço E com gestos impotentes, Ela procura agarrar as selvagens centelhas E cai aturdida por terra. Die Junge Magd In der Schmiede dröhnt der Hammer Und sie huscht am Tor vorüber. Glührot schwingt der Knecht den Hammer Und sie schaut wie tot hinüber. Wie im Traum trifft sie ein Lachen; Und sie taumelt in die Schmiede, Scheu geduckt vor seinem Lachen, Wie der Hammer hart und rüde. Hell versprühn im Raum die Funken Und mit hilfloser Geberde Hascht sie nach den wilden Funken Und sie stürzt betäubt zur Erde.
João Luz VozesCamilo [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om passos de chumbo, esforçados, San Ma Lo acima, persigo a custo o elusivo dragão, fustigado pela agonia da carência. O meu corpo tem-se evaporado com o tempo como uma nuvem narcótica em direcção à dissolvência, sou a rarefacção de barbas negras mas arrasto, determinado, todo peso do universo nos pés. Procuro outro santuário, enfastiado pelos dias fechado em casa. Dirijo-me para a Hospedaria On Iok Iun, onde um familiar cachimbo me retornará à comatosa paz que anseio, às pupilas minguantes e aos sonhos indefinidos. Resfastelo-me na acolhedora esteira de Tánatos, onde morrerei mais um pouco, por mais um dia. Consolo-me neste exílio físico de não me sentir presente, de ser todo ausência, de me tornar matéria sublime, etérea, fora desta terra e deste cárcere de carne que me encerra. Sinto um indomável desejo de sucumbir e ceder ao doce abismo de um lugar onírico. Por aqui me quedo, mergulhado em fantasia, esquecido do enfado das minudências tacanhas de uma cidade que desgasta mais o espírito que todos os cachimbos do Oriente. Macau é o meu túmulo, soube-o desde que atraquei. Fui desde o berço desterrado, perfilhado tardiamente, desde sempre consumido tanto por febril paixão como por profunda misantropia. Fruto do adultério, nunca me senti amado, desde que fui arrancado do útero. Joguei-me ao mar com o coração nas mãos, pronto para o alcançar o longínquo destino oriental, sedento de esquecimento, teria ido para a Lua se me fosse permitido. Cheguei a esta terra, cultivei amizades vitalícias e escrevi, quase em segredo, as paisagens do meu banimento, os hinos da minha melancolia. Deixei-me ferir pela cruel boçalidade saloia e bebi, consciente, o veneno oferecido por conterrâneos que sempre me olharam como se fosse o mais extravagante dos estrangeiros. Rapidamente deixei-me seduzir pela musicalidade tonal do mandarim, pela lisura dos lacados com que a Europa saliva desde os tempos do emproado Rei Sol, pela profusão de dourados e vermelhos. Rendi-me aos recantos abrigados da mais míope diáspora e abracei o inteiro continente chinês que se espraiava para mim depois das Portas do Cerco. Coleccionei arte, mulheres e manhãs de agonia, encontrei familiaridade no exotismo. A Macau que conheci era um pequeno pedaço de China onde reinava um conservadorismo de aldeia isolada, era como viver numa sacristia a céu aberto onde se espalhavam condenações e penitências generosamente a quem ousasse ser diferente. Macau coleccionava pequenas pessoas carregando enormes fardos morais cimentados pelo dinheiro, tornando em coros os cochichos de maledicência e acefalia analfabética. Felizmente fiz amigos que duraram a vida inteira, que floriram como o lótus deste lamacento canteiro civilizacional. Empreguei o labor que o devaneio me permitiu às minhas obrigações profissionais, emaranhei-me em burocracia enquanto a possessão estética me deu descanso. Mas esses labores apenas me trouxeram agastamento e uma imensa vontade de tudo largar. Hoje vivo na memória de poucos, como um vulto cuja sombra se projecta gigantesca no exterior e minúscula na cidade madrasta que faz por me esquecer. Tentei resistir até onde pude, para finalmente tudo largar, sempre com a imagem dela a trazer-me mares salgados aos olhos. Ana, minha perdição, meu eterno amor, minha rosa bravia florida fora da estação. Abismo de mim, vento agreste nas velas do batel do meu exílio, minha Cleópatra, minha Czarina, minha A-Má, minha Rainha. Passo dias inteiros a tentar reconstruir a tua voz. Por muitas concubinas que me tenham passado pelos lençóis, serás sempre a mais doce das negações, a ausência pela qual queimo sacramental sândalo no incensador da minha devoção. Arderei para sempre por ti. Sou teu antes de ser o quer que seja, é a ti que anseio retornar, a minha dor de ti é a única pátria que conheci.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasIntertextualidade e poema [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem se move na esfera do poema sabe o quanto inacabado um verso é. Por isso a vigilância exerce esse poder de síntese tão do gosto do poeta amante da língua, onde só ele mais do que ninguém sabe como transformar: mas quais as metamorfoses e transformação do texto poema? É nele que a intertextualidade mais faz sentir o texto base desta variante, como um sincretismo que acrescenta particularidades tão ricas na recolha de todos os elementos de uma caracterização. Não esgotamos em nós a fórmula, a língua não é como o sangue, um circuito fechado: é de correntes abertas. Foi no fazer e refazer dos textos sagrados que encontrámos a primeira polifonia linguística, é nela que acrescentamos corpo ao conceito metafísico de Deus. Fizemo-lo pelo Verbo, tanto como ele a nós nos gerou no princípio. Sendo assim, dir-se-ia que desocultámos o humano que somos pelo texto permanente criado e não gerado, pela recriação contínua do que significa no fim de contas – Todos os Textos- um só texto, contínuo, ininterrupto. Hoje as complexas relações de intertextualidade estendem-se a vários campos criativos, entre os quais os audiovisuais. Há quem, a propósito do tema, fale em «intertexto», pois que todo o texto constitui um intertexto numa sucessão de textos já escritos ou por escrever. A presença efectiva de um texto em outro pode ir da citação, à alusão, à menção indirecta, até ao plágio (embora este último não apresente carácter inventivo que acrescente o original). Há em grau a polifonia que ocorre com o texto inserido em outro texto que no poema temos mais presente como uma monofonia, só quando se trata do poema épico se exerce então e brilhantemente o outro anunciado. Por uma constante leitura de obras paralelas, não raro nos damos conta do que acima foi exposto: que continuamos numa leitura do mesmo texto – hipertexto – com ressonâncias de tempos e espaços que se vão ampliando de forma apaixonante. E passo a citar apenas muito poucos mas significativos exemplos: o poema bíblico do «Livro de Jó» e o poema de Camões «O dia em que nasci», «Sonnets pour Hélène» de Pierre de Ronsard e «When you are old» de Yeats, «Spleen et Idéal» de Baudelaire e «Sacha e o poeta» de Manuel Bandeira, «Soneto amoroso definiendo el amor» de Francisco Quevedo e «Amor é fogo que arde» de Camões. Estes bastam para legendar o título do artigo recorrendo a extractos de todos os poemas. Manuel Bandeira/ Baudelaire Quando o poeta aparece Sacha levanta os olhos claros. o poeta a seguir diz coisas incríveis… Quando, por uma lei das potências supremas neste mundo aparece o poeta a mãe ergue os punhos para Deus que dela se apieda: Pierre de Ronsard/ Yeats Quand vous serez bien vieille, au soir, à la chandelle assise auprés du feu, dévidant et filant… Direz chantant mes vers, en vous émerveillant… When yoy are old and grey and full of sleep and nodding by the fire, take down this book And slowly read, and dream of the soft look.(…). Quevedo / Camões … es hielo abrasador/ es fuego helado/ es ferida que duele y no se siente/ es un sonado bien/ un mal presente/es um breve descanso muy cansado . …amor é fogo que arde sem se ver / é ferida que dói e não se sente/ é um contentamento descontente/é dor que desatina sem doer. «O Livro de Jó» / Camões …então Jó abriu a boca e amaldiçoou o seu nascimento : Pereça o dia em que nasci/ que esse dia se mude em trevas/ que trevas e obscuridade se apoderem dele/ que eclipses o apavorem/ por que não pereci no seio materno O dia em que nasci morra e pereça/ não o queira jamais o tempo dar/ não torne mais ao mundo, e, se tornar, eclipse nesse passo o Sol padeça. …/ a mãe ao próprio filho não conheça. Todas as leituras serão, neste caso, releituras na vertente de construir um hiper-poema que vá definindo, com estruturas de tempos, épocas e autores, a verdadeira marcha do texto que se está fazendo, sempre em aberto, sempre outro e sempre o mesmo. Que os vínculos que professam as correntes também ditam as proximidades e todos os nossos pares são aqueles que connosco constroem um percurso que é o mesmo. Talvez isto explique a cisão da Poesia como arte regeneradora neste momento, dado que as releituras nunca se fazem como um processo contido nos hábitos de ler. Apanhamos a marcha interrompida e avançamos em outro lado como se de uma catedral em pedra se tratasse o grande acórdão de um Poema Final. “Só uma época avara de originalidade produz tanta coisa em circuito fechado, numa demonstração lasciva das suas próprias vivências”. Só uma arrogância idílica provoca tanto desastre na linguagem escrita. A experiência de cada um não serve uma causa comum, a menos que dela se retire elementos que pertencem a toda a Humanidade e, mesmo assim, terá de o saber dizer com labor formal para produzir uma obra de arte. Nunca se viu mesmo tanta gente aparentemente unida sem espírito associativo, faculdade reservada aos de boa memória, que a construção do poema não permite que nos esqueçamos do essencial. Precisamos que a palavra volte a ser o elo mais sagrado em certos domínios e dela só se utilize esse essencial que importa. É uma blasfémia não sermos acordados por uma organização perfeita de um discurso belo como é desesperante tanto ruído para nos fazermos entender.
Sofia Margarida Mota Entrevista Eventos MancheteEntrevista | Hélder Macedo, escritor e investigador A poesia chegou cedo, o acto de dizer não também. Porque bateu o pé contra o sistema, saiu de Portugal para voltar uma e outra vez, para ainda não estar lá, estando. Hélder Macedo é um nome incontornável do passado-presente da literatura portuguesa. Está por estes dias em Macau [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ez parte do Grupo do Café Gelo. Como é que funcionava esta tertúlia, influenciada ainda pelo Orpheu? A obra de Fernando Pessoa começou a ser publicada, de facto, nos anos 1940. Nos anos 50, ainda era uma coisa recente. Fernando Pessoa era mítico, havia várias obras não só do Pessoa, como do Sá Carneiro, etc., que não eram acessíveis. O Gelo foi um bocado um acidente. Éramos jovens, com 19 ou 20 anos, e mais ou menos por acidente começámos a encontrar-nos – uns conheciam-se, outros não –, basicamente para fugirmos aos cafés literários. Porquê? Eram chatos? Eram chatos, eram estabelecidos, eram senhores pomposos, importantes. Aconteceu que um grupo de pintores alugou um quarto num sótão perto do Rossio. Não cabiam todos. Eram quatro pintores que partilhavam aquele espaço. Uns desciam e o café mais próximo era o Gelo que, nessa altura, era frequentado por uma clientela de pequena burguesia, pacata, nada intelectual, nada literária. Ia para lá para estar sossegada, não estar naquele ambiente dos cafés literários e dos cafés para estudantes. Uns foram atraindo outros para conversarmos. Eu tinha sido colega de liceu do Gonçalo Duarte, pintor, que me disse que ali tinha uma gente interessante, que eu ia gostar. Fui. Tinha conhecido o Manuel de Castro nessa altura também, ainda no liceu. Uns levaram a outros e sentimo-nos mais ou menos unidos por uma atitude existencial e política, de certa maneira, que era essencialmente de recusa do ‘status quo’, do salazarismo e até das carreiras literárias, da Brasileira, do espírito de promoção e de autopromoção que havia. No meio disto tudo, aparece lá o Mário Cesariny de Vasconcelos que, nessa altura, era um escorraçado social. Nós conhecíamos a obra dele, tinha publicado um livro ou dois. Gostámos muito dele e ele passou a ir ao Gelo. Ele também atraiu outras pessoas. Criou-se um bocado a ideia de que o Café Gelo era uma espécie de segunda ou terceira leva do surrealismo em Portugal. É e não é. E não é porquê? Todos nós beneficiámos da existência do Surrealismo, como beneficiámos da existência do Orpheu, do Futurismo, dessas coisas todas. Mas, com algumas excepções, nem os pintores, nem os escritores que depois vieram a ter o seu bocado de obra se podem caracterizar, de facto, como surrealistas. Herberto Helder não é um surrealista. É um homem que bebeu, com certeza, do Orpheu, mas bebeu da tradição bárdica do século XIX, bebeu da leitura da Bíblia, como se vê pela poesia dele. O Manuel de Castro era um homem muito interessado pelas coisas esotéricas, mas não era um surrealista. Eu não sou um surrealista. Alguns foram mais directamente influenciados pelo Surrealismo, como o Ernesto Sampaio, por exemplo, um nome de referência, extremamente importante – era a pessoa que, na altura, mais sabia de Surrealismo em Portugal, um excelente escritor. E depois também outros mais associados directamente à influência do Mário Cesariny: o António José Forte, o Virgílio Martinho, embora escrevesse mais prosa. Esses assumiram-se como surrealistas. Mas o Herberto, eu, o Manuel de Castro, não. As pessoas gostam de dar rótulos. Pronto, nada contra. A outra dimensão do Gelo, que é extremamente importante, é a ligação com os pintores. Foram fundamentais. Eles foram, de facto, os fundadores do Gelo. O João Vieira, o Gonçalo Duarte, o José Escada, o Costa Pinheiro. Alguns, depois, foram para Paris; outros, como o Costa Pinheiro, para a Alemanha. Reencontraram-se mais tarde em Paris, onde fundaram o KWY. Quando se fala no Gelo, há três Gelos: um inicial, jovens tacteantes; os que saíram e que continuaram lá fora qualquer coisa associada ao espírito do Gelo; e os que ficaram – e esses tornaram-se muito mais ortodoxos surrealistas e ficaram muito mais sob a influência directa do Mário Cesariny. Um notabilíssimo poeta, mas era um senhor que não brincava em serviço. Fingia que não, mas tinha o olho posto na glória póstuma. Ele guardava tudo, todos os papéis… E aquela mania surrealista de quem é ortodoxo e quem não é, quem é bom e quem é mau, aqueles catálogos que já em França havia e que deu sempre naquelas proliferações. Mas, se há uma coisa que unificava aquela gente toda, era uma atitude de recusa, o dizer ‘não’, o não querer pactuar política e socialmente, o desrespeitar as normas estabelecidas. A grande revolução que aconteceu no nosso tempo, recentemente, é de facto a afirmação das mulheres, que é uma coisa maravilhosa. A outra é a grande liberdade sexual, o que é espantoso. Nessa altura, os homossexuais eram perseguidos pela polícia. O Cesariny era humilhado semanalmente porque tinha de ir à polícia dizer que estava a portar-se bem. Nós tínhamos uma atitude de total liberdade em relação à própria sexualidade: cada um dormia com quem quisesse, não era obrigatório nem ser, nem deixar de ser, não entrava no assunto. Isso também era parte dessa atitude de recusa das normas estabelecidas e do sistema. Escrevi um texto que está incluído num livro de ensaios em que uso o título “A Utopia da Negação”: a negação como utopia, como desejo de recusa. O mais importante é sermos capazes de recusar, de dizer não. Os ‘sins’ organizam-se sozinhos, alternativamente. Mas temos de decidir o que não queremos. Se aceitarmos, estamos pactuando no essencial, e isso é que não pode ser feito. Essa atitude vem dessa altura e dessa vivência? Virá dessa experiência. Por outro lado, é uma atitude que levou a esta experiência. Era uma coisa partilhada. Numa loja daquelas muito lisboetas – em que tinha, de um lado, mercearia, e do outro residência do dono – o Manuel de Castro encontrou, na residência, uma coisa impressa que dizia ‘Aqui não se vende’, significando que aquilo não era a loja. O Manuel tirou aquilo e punha diariamente na mesa do café: ‘Aqui não se vende’. A nossa atitude estava, de certa maneira, simbolizada por aquilo. Nós não estamos à venda. Hoje em dia, este tipo de encontros, onde se discute o estado das coisas, da política, da literatura, praticamente não existe. Existe muito menos. É a consequência do desinteresse? Há uma grande proliferação, há muita mais gente que escreve, que pinta, uns bem, outros mal, outros assim-assim. Há uma tentativa um bocado artificial, em Lisboa, de criar uma espécie de grupos. Por exemplo, as pessoas associadas à Abysmo, uma excelente editora, sentem que são um bocado um grupo, mas é mais difícil. Há uma coisa que, felizmente, falta: a repressão. A polícia, o perigo, o proibido, o risco, as torturas, Caxias, choques eléctricos – havia um elemento de risco que agora não há. Vários dos nossos amigos – e eu – aos 18 ou 19 anos, foram presos e torturados, eram uns adolescentes, miúdos. Ainda bem que não existe. Se se quer ser maldito, é por vontade e não por necessidade. Nós tornámo-nos um bocado malditos por sanidade, porque, no fundo, a recusa era a sanidade, a recusa era portarmo-nos mal. Um termo que é muito usado e abusado – o abjeccionismo – não é tanto no sentido que se dá actualmente, da pessoa se portar abjectamente. Não, o mundo em volta é que era abjecto. Ao recusarmos aquilo estávamos, de algum modo, a fazer uma afirmação positiva através da recusa. O que acho muito interessante é que as gerações mais novas estão agora a recuperar um bocado a mitificação do Gelo com o Pacheco, o endeusar literário também do Mário Cesariny, felizmente com algumas consequências muito positivas que foi a redescoberta do Manuel de Castro, que estava esquecido – um notabilíssimo poeta. Consegui que o João Paulo Cotrim publicasse um livrinho do José Manuel Simões, “Sobras Completas”, toda a obra completa dele que ele considerava importante e que me entregou, num envelope castanho, a última vez que estive com ele em Paris. Morreu um ano depois, não querendo voltar a Portugal. Estive uns bons dez anos até conseguir editor e o Cotrim publicou. As “Sobras Completas” é um livro muito giro, muito interessante, muito bom. E há outros que podem ser descobertos. Mas está a haver um interesse grande de várias pessoas a escrever sobre o Gelo. Do Gelo à política. Foi secretário de Estado da Cultura no Governo de Maria de Lourdes Pintasilgo, numa altura complicada, no pós-revolução. Tinha trabalhado politicamente contra o regime, foi essa a razão pela qual não podia estar em Portugal. Depois regressei e, em 1975, fui convidado pelo então Governo provisório e aceitei ser Director-Geral dos Espectáculos. O Governo caiu, houve um período de várias semanas sem Governo, sem coisa nenhuma, uma coisa perfeitamente caótica. Para entrar no meu gabinete, que era no Palácio Foz, tinha de pedir licença aos piquetes. Nessa altura, como não havia muito mais que pudesse fazer, decidi publicar umas notas sobre o que poderia ser eventualmente uma política cultural, o que se poderia fazer. E isso foi publicado no Diário de Notícias que, na altura, era dirigido pelo Saramago. Decidi não continuar, voltei para Londres. No Verão de 1979, eu e a minha mulher fomos de férias a Portugal, de carro, pacatamente. Chegámos a Lisboa, fui ver os meus amigos, que se reuniam no café Montecarlo – o Carlos de Oliveira, o José Cardoso Pires, o Herberto Helder – e o [Augusto] Abelaira diz-me que se falava em mim para secretário de Estado da Cultura. Ri-me muito e disse-lhe: ‘Ah, e fala-se de si para ministro da Saúde’. Quando cheguei a casa dos meus pais, à noite, um telefonema a convidar-me. Fiquei muito surpreendido. O que deve ter acontecido foi que a Maria de Lourdes deve ter lido essas notas, achou que a coisa fazia algum sentido e decidiu convidar-me. Era um Governo provisório, diziam que era 100 dias mas afinal foram cinco meses, foi pouco tempo e, como tal, aceitei. Nunca quis ter uma carreira política. Devo ter sido a única pessoa em Portugal que foi director-geral e membro do Governo e que não tem um chavo de pensão de coisa nenhuma. Portanto, nunca quis coisa nenhuma e queria, precisamente, ter a minha total independência. Depois de o Governo se ir embora, tive três convites para deputado, de vários partidos. Recusei, não quis ter uma carreira política. Mas alguma coisa foi feita e que, depois, por ódio pessoal do Sá Carneiro à Maria de Lourdes Pintasilgo, foi apagada. O que é que foi apagado? Para já, uma coisa sem precedentes na democracia: suspenderam em bloco todos os actos que podiam ser suspensos do Governo da Maria de Lourdes Pintasilgo. Não só na cultura – nos serviços sociais, no trabalho. Tudo suspenso, para tornar a coisa uma espécie de não-Governo, o que é ideológico porque a Maria de Lourdes, sendo católica, tinha um programa muitíssimo mais à esquerda do que o Partido Socialista. Por outro lado, era uma posição antifeminista por ser mulher, que ainda por cima vivia com outra mulher. Na área da cultura posso dizer três coisas: quem criou o Museu de Arte Moderna no Porto foi o Governo da Maria de Lourdes numa sessão pública onde eu estava. Este projecto ficou parado durante uns tempos e depois foi reaproveitado pela Maria Teresa Gouveia, que criou Serralves. A origem de Serralves foi a negociação que fiz em mandar para o Porto, instalado provisoriamente no Museu Soares dos Reis, a colecção de arte moderna do Estado. Uma outra coisa que fizemos foi a compra do prédio da Cinemateca de Lisboa. São coisas que não puderam ser destruídas porque já havia investimento de dinheiro e não se podia recuar. O que fizeram foi obliterar a origem. É impensável que na Cinemateca, que foi um prédio comprado com a minha assinatura, não haja uma referência que esta aquisição foi feita no Governo da Maria de Lourdes. Também não é aceitável que, em Serralves, na sua proto-história, não seja mencionado o mesmo facto. Outra coisa que deixei organizado, e que depois foi feito pelo João de Freitas Branco, foi uma planificação dos teatros nacionais, incluindo a compra do Teatro de São João. Mas isto foi bloqueado mesmo porque foi a tempo. Depois do 25 de Abril houve um painel em que 48 pintores, desde o Pomar ao Escada, pintavam um dos 48 quadrados que faziam o painel. Era um painel fascinante que era, no fundo, a história da pintura moderna portuguesa. Este painel estava instalado no centro de exposições de um pequeno museu em Belém. O director deste museu era o João Vieira, que me disse que as instalações eléctricas naquele local estavam muito precárias. Fiz um despacho para que o espaço fosse encerrado, para que pudéssemos fazer as reparações. O meu sucessor no cargo, como o fecho tinha sido um acto do Governo anterior, mandou abrir o local. O resultado foi que ardeu e o painel desapareceu. Isto é um exemplo anedótico, mas trágico. É pena porque algumas coisas podiam ter ficado melhor, e não ficaram. A planificação da rede nacional de teatros podia ter sido feita. De qualquer forma, o que isto significa é que existiu essa atitude de antagonismo em relação ao Governo da Maria de Lourdes Pintasilgo e do que ela representava. Isso também se manifestou uns anos depois, quando foi candidata à Presidência. Trabalhei com ela nisso e tive várias reuniões, mesmo com militares, e houve uma mudança de atitude porque não aceitavam a ideia de que uma mulher pudesse ser a pessoa que comandava as forças armadas. O que falta hoje em dia à cultura em Portugal? Sou um optimista. Se vivesse em Portugal, se calhar, irritava-me mais. Há sem dúvida mais gente que lê, há uma quantidade muitíssimo maior de gente que escreve. A maior parte é uma porcaria, mas a percentagem dos que têm nível não é, certamente, inferior ao que era. O que há, talvez, é uma grande confusão entre qualidade e quantidade. Tornam-se também grandes sucessos literários pessoas cuja obra não o merece. Mas isto é um fenómeno que acontece em muitos países. Sem citar nomes, se falarmos de escritores que são celebrados como grandes escritores, muitos deles não valem nada. Há outros, menos celebrados, e que são muito bons, mas os escritores excepcionais são poucos em toda a parte. O mesmo acontece na pintura, por exemplo. Há uma democratização da criatividade literária e artística, o que não significa que haja um abaixamento de nível. O que há é gente de baixo nível que produz e que dantes não havia. Se calhar, e sendo optimista, quantidade também pode gerar qualidade. Das pessoas que dantes não tinham acesso nenhum à cultura, agora há mais que o têm e que vão produzindo coisas que se calhar são boas e que, noutras circunstâncias, nunca teriam produzido. A minha atitude é muito mais positiva do que a dos meus amigos em Portugal. Há de tudo e o facto de haver gente que lê aquela péssima literatura de aeroporto, e que compra livros no supermercado, significa que pelo menos lêem. O que faz falta em Portugal é crítica literária. Paradoxalmente, no tempo do Salazar, os jornais portugueses tinham uma coluna de crítica literária. Não era só no Diário de Notícias, mas todos os jornais de Lisboa e do Porto tinham as suas páginas literárias, coisa que agora não existe. Começou por estudar Direito. Foi, mas não acabei o curso porque tive de sair de Portugal a meio. Depois da campanha do General Delgado, envolvi-me numa intentona, as pessoas começaram a ser presas e tive de sair. E como é que apareceu a literatura? Desde pequenino. A minha mãe gostava muito de poesia, lia-me poesia, fazia-me decorar “os boizinhos” do Afonso Lopes Vieira e eu comecei a escrevinhar poesia com uns 11 anos. Fazia umas rimazitas. Naquela altura fazia três coisas: escrevia poesia, andava de bicicleta e jogava futebol. A sua escrita é biográfica, especialmente a poesia. Os romances não são biográficos, com excepção de “Partes de África”, que tem elementos autobiográficos, mas também tem falsificações. Conto como se tivesse acontecido, mas não aconteceu. Dava-me jeito, em termos de narrativa, que tivesse acontecido, o que acabou por me dar problemas porque há algumas personagens que são fusões de possibilidades de ser. É o caso de um médico que é a fusão entre um médico abnegado que conheci e um médico corrupto que havia. Misturei os dois e os filhos do abnegado cortaram relações comigo. O inspector da PIDE que também aparece nesse livro e que acabou por salvar, na verdade, São Tomé, é também a fusão de dois que conheci. Também uso a primeira pessoa com muita frequência na minha narrativa e na minha ficção, mas continua a ser uma ficção. Ponho-me nesse hipotético Hélder Macedo a contracenar com gente que não existe. A estratégia aí é dar credibilidade à ficção, mas, por outro lado, torna fictício o narrador. Na poesia é diferente. Escrevo pouca poesia. Não sou um poeta que escreve habitualmente. Costumo escrever poesia em tempos de viragem. É uma coisa interna. A poesia é uma coisa muito íntima? É. E é necessário ter muita cautela para não nos envergonharmos em público. Estamos em pleno encontro da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL). Como é que vê este congresso, o primeiro a Oriente? Quem primeiro sugeriu que fosse em Macau, fui eu. Fui presidente da AIL, depois foram simpáticos e elegeram-me presidente honorário, que é uma óptima posição: uma pessoa manda bocas e não tem de fazer nada (risos). Sempre achei que era fundamental sair da Europa. Como presidente e com o Carlos André como secretário-geral, planeámos depois de um congresso em Oxford fazer uma coisa no Rio de Janeiro. Foi a primeira vez que o congresso aconteceu fora da Europa. Mais tarde, fez-se nos Estados Unidos e depois achámos que era importante fazer em África, e acabou por acontecer em Cabo Verde que, simbolicamente, estava muito bem. A Universidade tinha acabado de ser criada. Depois disso, o passo óbvio era o Oriente. Aí a minha ideia era de que, entre os dois sítios óbvios – Goa e Macau – a escolha fosse Macau, devido à atitude dos chineses. Enquanto em Goa a língua portuguesa foi obliterada tendo tido raízes muito mais fundas do que, alguma vez, teve em Macau, aqui é mantida. Não será muito desenvolvida, mas é mantida. É até é política oficial que podemos ver nos nomes das ruas, nos documentos oficiais. É assumidamente, uma das línguas oficiais e isso é uma atitude inteiramente diferente da atitude indiana. Seria estúpido não escolher Macau. Até como uma afirmação política em relação à Índia. Não é que em Goa tenham obliterado as línguas europeias. Não. O português foi substituído por outra língua colonial, o inglês. Ora, se se mantém uma língua colonial, porque diabo de razão vão destruir uma presença cultural que lá esteve durante 500 anos? Estão a chular a história de Portugal com os monumentos, com as igrejas, retirando a identidade que fazia parte daquela gente e daquela cultura, muito mais do que aqui em Macau. Estas são as razões negativas. Como razões positivas, quando cá vim há quatro anos, a minha ideia era, precisamente, negociar a hipótese de Macau. Fui recebido pelo presidente do Instituto Politécnico de Macau que acolheu imediatamente a ideia, fala um português perfeito, lê Camões e deu-nos condições extraordinárias. A proposta acabou por ser feita em Cabo Verde com muito boas condições. Pode não atrair tanta gente como outros congressos, devido à distância. Tivemos a desistência de umas 40 pessoas do Brasil, 15 dias antes de o congresso começar devido à crise, mas ainda assim, estamos com cerca de 150 pessoas. Na sessão de abertura, a presença do Governo foi notável. O desenvolvimento da língua portuguesa é, obviamente, parte de uma política chinesa. Terão as suas razões, mas a nós também dá jeito.
Andreia Sofia Silva EventosPoesia | Professor do IPOR lança livro no próximo sábado [vc_row][vc_column][vc_column_text] “Pedaços de Espelho e Anubis” é uma edição de autor de Carlos Santos, docente do Instituto Português do Oriente. Alguns dos poemas começaram a ser escritos ainda na adolescência e atravessam várias fases da sua vida [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]arlos Santos, docente de Português do Instituto Português do Oriente (IPOR), lança este sábado o seu primeiro livro de poesia, intitulado “Pedaços de Espelho e de Anubis”. Trata-se de uma edição de autor, com apenas 150 exemplares, que será lançada na galeria Casa do Povo, em Coloane. O livro contém poemas que Carlos Santos tem escrito ao longo da sua vida. O incentivo de amigos e da esposa fez com que tivesse decidido reuni-los numa só obra. “Comecei a escrever este livro há muitos anos. Quando o comecei a escrever ainda não era um livro. Depois fui juntando os poemas e no fim pensei que tinha um livro, e determinei que acabava naquele período. Chegou uma altura e disse: ‘Isto está pronto’”, contou ao HM. “Pedaços de Espelho e Anubis” contém poemas que “podem reflectir aspectos pessoais, mas muitos dos assuntos reflectem temas com os quais me preocupei sempre ou pelos quais sempre tive interesse”. “O que pode mudar é a forma como isso se expressa. Há temas que sempre me interessaram”, disse. O ser humano e o seu poder de concretização e realização é um deles. “A guerra, as cidades, são resultado da actividade do ser humano, a própria noção de ecologia vem do ser humano. Isso interessa-me. As cidades são onde tudo isto nasce, de certa forma. O Jorge Luís Borges falava das cidades onde as ideias e as pessoas se encontravam. A maioria das invenções nasceu nas cidades.” https://www.facebook.com/events/443184949395400 Lá longe, na Rodésia Nascido em Moçambique, Carlos Santos começou a escrever muito cedo, ainda na adolescência, embora não se recorde do primeiro poema. “Se há um momento de origem, começou em miúdo. Até aos dez anos vivi na antiga Rodésia, que é hoje o Zimbabwe. Andava na escola inglesa e houve um concurso, escrevi um conto e recebi uma menção honrosa. Esse momento ficou. Sempre tive alguma apetência para as palavras. Depois começou o hábito da leitura que, para mim, era quase como beber água.” O livro que se prepara para lançar contém poemas desse período, embora muitos tenham sido revistos e trabalhados novamente. Quando fala do ser humano e das cidades, Carlos Santos fala do escritor argentino Jorge Luis Borges, embora as suas obras não sejam uma influência directa. “As influências muitas vezes não são explícitas”, assume. “Jorge Luis Borges não é uma influência explícita, porque é outra dimensão, mas influenciou-me através de textos que ele escreveu, a forma como ele vê certas ideias, o que se retira daí é que me influencia. Eu penso desta forma porque foi ele que despoletou a minha forma de pensar”, apontou. Carlos Santos ainda não se assume inteiramente como poeta, apesar de escrever desde que se lembra. Afirma ter de se habituar à ideia. A ideia é continuar a escrever versos e a publicá-los. Primeiro em Macau, se vender todos os exemplares, e depois em Portugal, sem esquecer a possibilidade de fazer uma versão online. O docente do IPOR nunca quis escrever apenas para si, deixar as poesias eternamente na gaveta. “Tenho uma ideia, quem quiser ler, muito obrigado”, afirma, sem mais pretensões. Para ele a sua poesia é, acima de tudo, algo directo. “Quero que a minha poesia seja seca, no sentido em que as palavras que lá estão têm uma função e importância, e não porque fiquem bem lá. É como ter uma bala numa pistola e ter de acertar”, conclui.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasDestruir a morte à custa da vida Um pequeno apontamento acerca de Fernando Pessoa [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] heteronímia está longe de ser mero artifício literário. Ela é expressão de profunda convicção do que deve ser o humano, daquilo que deve ser a vida humana na sua excelência. A heteronímia é expressão de uma nova weltenschaung (mundivisão), de uma nova visão do ser humano. O que está em causa no processo heteronímico de Pessoa é a excelência humana, a possibilidade de alcançar a excelência humana, isto é, a possibilidade do ser humano ser melhor do que é, de ser melhor do que lhe é imediatamente dado. Excelência essa que não visa uma prática religiosa ou ética, mas estética. Mas há um Fernando Pessoa heterónimo, que se iguala ou mesmo perde em existência para os outros heterónimos, e há um outro anterior: o que rejeita a vida para poder escrever. Aquele que rejeita a vida para criar o complexo jogo existencial é anterior a toda a criação, como o Criador é anterior à obra criada ou como a existência de algo antes do Big Bang. Por conseguinte, o privilégio deste Pessoa-criador é mais do que o do registo civil, é o privilégio do criador em relação à sua obra. Privilégio esse que lhe confere, entre outros, o privilégio da consciência da obra e dos esforços necessários para realizá-la; neste caso, a abdicação de vida, como ele tantas vezes escreve. E é precisamente nesta consciência de realização da obra, da sua obra, que a heteronímia não tem uma raiz ontológica, e sim estética. Pois tudo é jogo, nada mais do que jogo. Tudo é lúdico. Existir é brincar às existências. A ontologia aparecerá nos vários heterónimos que ele projecta, nos vários heterónimos que ele é, mas não na totalidade da obra, não na concepção da obra. Por outro lado, não se pense que esta consciência da existência como uma impossibilidade de escapar do lúdico traz em si uma facilidade para a existência, que não traz em si mesma um terrível drama. Haverá dor maior do que ter consciência de não haver verdade, de não haver existência para além do jogo, do lúdico, e ver isso com uma claridade tão grande que se recusa a vida? Fernando Pessoa deixou sempre claro ao longo dos seus textos o primado da escrita sobre a vida. A vida não interessa a ninguém. A vida só pode interessar aos animais ou à parte animal que nos habita, a parte animal que somos, nunca ao espírito, à parte espiritual que somos. Tanto no Livro do Desassossego, § 149, quanto em Reflexões Pessoais (374-5) Pessoa refere uma frase do biologista Haeckel (entre o macaco e o homem normal há menos diferença do que entre o homem normal e um homem de génio) para dissertar acerca desta distinção que lhe parece evidente e fundamental, isto é, viver segundo a carne, a mundanidade ou segundo o espírito. O que está aqui em causa, neste projecto de Pessoa, é, literalmente, à imagem da metafísica ou ontologia cristã: ganhar a vida perdendo-a. Ganha-se a vida se fizermos dela uma coisa maior do que ela é, se lhe encontrarmos um sentido que valha a pena ser seguido, fazer da vida algo que valha a pena. Por outro lado, ganhar a vida perdendo-a, já é muito diferente. Ganhar a vida perdendo-a, é um ponto de vista do entendimento ontológico ou metafísico cristão. E, embora Fernando Pessoa não fosse cristão, não acreditasse em Cristo, o seu entendimento ontológico ou metafísico da vida aproxima-se do entendimento ontológico cristão. O que é que aproxima e afasta Fernando Pessoa, e seu projecto de existir, da ontologia cristã? Imediatamente devemos responder: o para além da vida. A saber, ganhar a vida, perdendo-a, em sentido cristão, implica estar certo de haver uma vida depois da morte, uma vida em Deus para além desta vida terrena. Para Fernando Pessoa, a vida terrena esgota-se e tudo se esgota. O para além da vida, em Pessoa, é na vida. Perder a vida é perder tudo o que se tem em troca de nada. Fernando Pessoa, embora também rejeite a vida terrena, não espera alcançar Deus. Pessoa não abdica da sua vida para Deus, nem sequer para si mesmo, mas para o seu jogo. E, neste sentido, bem podemos falar de um cristianismo pagão. Fernando Pessoa, embora não numa linguagem filosófica, compreendia a falência da metafísica, isto é, da ontologia tradicional metafísica. Fernando Pessoa compreendia que a metafísica não dava conta do mistério. No fundo, podemos agora dizê-lo, a metafísica deixava escapar o jogo. Era deste modo que Pessoa compreendia a metafísica. Veja-se algumas passagens: “A metafísica – caixa para conter o Infinito (…)”; “Negada a verdade, não temos com que entreter-nos senão a mentira. Com ela nos entretenhamos, dando-a porém como tal, que não como verdade; se uma hipótese metafísica nos ocorre, façamos com ela não a mentira de um sistema (onde possa ser verdade) mas a verdade de um poema ou de uma novela – verdade em saber que é mentira, e assim não mentir.” Chega mesmo a pôr em causa, através de uma inversão completa, a posição socrática do conhecimento: “Conhecer-se é errar (…). Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho.” Há uma total desconfiança por parte de Fernando Pessoa em relação à metafísica e à possibilidade do conhecimento dos fundamentos, daquilo que faz do humano o humano, daquilo que faz do mundo o mundo, daquilo que faz do universo o universo. Uma coisa ele sabe: ele desconhece-se. Do centro deste desconhecer-se, Fernando Pessoa irá traçar uma poderosa e profunda forma de pensar que será projectada na sua própria vida. Fernando Pessoa vive o que pensa. Não há propriamente uma redução da vida ao pensar, mas há uma formalização dessa relação. A vida é uma arca vazia, que foi feita para encher de coisas. O conceito central e fundante de todo o pensamento de Fernando Pessoa é o conceito de vida. Vida é aquilo que nos é dado, aquilo que partilhamos com tudo o que há, com tudo o que existe. Por conseguinte, também a pedra tem vida. Vida é estar no universo. Mas este estar é sempre dependente de uma consciência. A frase com que termina as suas Reflexões Pessoais é: “Vida é consciência.” Vida é existir para uma consciência. Ao tornar-se um dado da consciência a pedra torna-se vida, pertence à vida, assim como os sapatos que calço ou o meu vizinho do lado. Assim a vida não nos pertence. Só somos vida para um outro. A vida é nos dada, ao nascer, e depois continuamente dada pela consciência de um outro. “Assim é a vida, mas eu não concordo.” A partir daqui, a vida assume-se claramente como inimigo, adversário ou algo incómodo. A vida é aquilo que nos mata, aquilo que nos reduz, que nos impede de sermos nós próprios. “Nunca saímos do cárcere de viver, nem com a morte que é a vida individual das muitas de que a nossa unidade ficticiamente se forma.” A vida é uma servidão. Todo o projecto de Fernando Pessoa é uma guerra contra a vida, contra a servidão e a impossibilidade de, nela, sermos nós próprios. Como pode isso ser possível? Como pode Fernando Pessoa dizer estas frases: “Que tenho eu com a vida?” ou “Que coisa reles e baixa que é a vida!” Como pode ele escapar da vida? Como se pode escapar da vida? Para Pessoa, faz sentido dizer que ele não quer ganhar a vida, ele quer ganhar à vida. Ele quer aumentar-se, quer tornar-se maior do que é, quer tornar-se à sua medida. Tornar-se à medida do humano que se pode ser para além da menoridade da vida. Esta noção de aumentar-se aparece em Reflexões Pessoais (embora seja desenvolvida de múltiplas formas em Livro do Desassossego): “2. Aumentar é aumentar-se. // 3. Invadir a individualidade alheia é. Além de contrário ao princípio fundamental [1. Cada um de nós não tem de seu nem de real senão a própria individualidade.], contrário (por isso mesmo também) a nós mesmos, pois invadir é sair de si, e ficamos sempre onde ganhamos. (Por isso o criminoso é um débil, e o chefe um escravo. ) (O verdadeiro forte é um despertador, nos outros, da energia deles. O verdadeiro Mestre é um mestre de não o acompanharem.) // 4. Atrair os outros a si é, ainda assim, o sinal da individualidade.” Pessoa perde a vida, não para ganhar Deus ou a si mesmo, mas para ganhar os outros. Aumentar-se é aumentar o número de si mesmo, desdobrar-se em muitos, fazer de si mais do que é, alargar o espaço e o tempo do que é. Veja-se a nota do filósofo António C. Caeiro à sua tradução das Píticas de Píndaro: “Apenas a vitória consegue anular a solidão máxima da disputa. O campeão granjeia a fama e a glória. O triunfo altera quem o obtém. Permite o reconhecimento, um identificação e um ‘lugar’ para ser. O brilho esplendoroso da vitória amplia. Potencia a vida. Ao vencer-se é-se maior do que se era, é-se falado. Transcende-se o espaço que se ocupa e o tempo durante o qual se existe. Expande-se e propaga-se. Mas a derrota é uma desgraça. Uma calamidade. Quem perde não apenas é esquecido como também não quer ser lembrado. A derrota extirpa a simples hipótese de ainda ser possível. Deixa o perdedor entregue a si, desamparado. Sem ilusões. Não pode senão sobreviver-se. Infame.” Por conseguinte, não se pense apressadamente que este aumentar-se está na origem da heteronímia, pois seria errado pensar assim. A heteronímia é a expressão do si mesmo, da individualidade de Pessoa; o aumentar-se é o sinal da individualidade nos outros, isto é, o reflexo da sua própria individualidade no mundo. Posso expressar-me sem que haja sinal disso, mas o sinal da minha expressão é o reflexo que o mundo dá da minha individualidade. Fernando Pessoa dá a vida em troca do mundo. Escreve ele numa das páginas dos seus diários: “Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma – nem de salas, nem de cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo se não aos meus raciocínios e aos meus projectos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia. // Devo-me à humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus. // Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo.” A vitória é aumentar-se. Multiplicar-se pelo tempo futuro. Esta multiplicação é, simultaneamente, superar as condições que esmagam o humano. Se me entregar à vida e aos seus prazeres, jamais serei lembrado, jamais conseguirei um lugar para ser. “O prazer é para os cães (…)”, escreve Pessoa enquanto Barão de Teive. Que devemos então fazer? “Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem. // É certo que, em absoluto, esta vida é impossível. Mas não é impossível relativamente.” Há nesta redução das necessidades, de algum modo, um projecto de âmbito estóico. Não podemos esquecer que os estóicos e os santos sempre atraíram Fernando Pessoa. Sempre lhe atraíram as formas mais radicais do humano, de ser humano. Por outro lado, o seu livro, atribuído ao semi-heterónimo Barão de Teive, denomina-se a educação do estóico. Mas mais do que um projecto estóico, trata-se de um projecto de lucidez humana, um projecto de aproveitamento máximo dos recursos de uma possibilidade de excelência humana. Não no sentido do humanismo, mas no sentido do humano, no sentido do jogo. A redução das necessidades não tem como fundo a contenção do sofrimento e da alegria, mas a contenção do outro, isto é, a amplificação da possibilidade máxima de se estar a só consigo mesmo. Porque o outro nos escraviza. O humano ou é só, ou é um escravo. Escreve em O Livro do Desassossego: “Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo. Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. (…) Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite (…).” E que limite é este, que aqui se fala e que devemos alcançar, se não é um limite de estóico? A resposta é-nos dada no mesmo livro, em menos de vinte páginas adiante: “Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcançava, em viver onde não se está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo (…) durar depois de não existir.” Chegamos por fim ao centro do vulcão. Aquilo que verdadeiramente importa é destruir a morte. Derrotar a morte e a realidade do mundo, os dois opressores do humano. A morte, porque nos faz desaparecer para sempre; a realidade do mundo que nos limita, nos sufoca enquanto existimos. O que esta em causa, tal como vimos para Píndaro, é a vitória. A vitória aqui não é vencer na vida, mas uma vitória mais radical: vencer da vida. Esta vitória sobre a vida é simultaneamente a vitória sobre a morte e sobre a realidade do mundo. Para se ser mais vivo depois de morto do que quando se está vivo é fundamental e necessário vencer a vida em vida. Vencer a vida no seu próprio terreno. Há como que uma estética da abstenção, uma estética que abstém-se de tudo o que não seja a própria arte a ser feita. Não é a arte pela arte, é a vida pela arte. Viver é criar. Outras frases fortes: “Viver é não pensar.; e Viver é ser outro.” Viver é ser outro, porque aquilo que somos é seres que criam, seres criadores, e na vida deixamos de ser o que somos. A vida mata-nos mais do que a morte. Mais do que viver, é necessário criar. É preciso dar a vida pela arte.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPerplexidades e equilíbrios 28/05/2017 [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]eio no DN, com perplexidade: «Nesta semana, o candidato derrotado nas primárias republicanas, o neurocirurgião Ben Carson, atual secretário da Habitação e do Desenvolvimento Urbano, responsável pelos programas de habitação social, afirmou que “a pobreza é um estado de espírito”. Ontem, um congressista republicano, questionado numa entrevista radiofónica sobre se considerava a alimentação como um direito de cada americano, hesitou, demorou e acabou por recusar subscrever essa afirmação. Trump é apenas a face mais visível de uma América que sempre existiu, mas que com o novo presidente parece ter perdido a vergonha.» Leio e cogito: é difícil imaginar pior e um cenário mais tenebroso. Porque nos começamos a situar numa orbe perigosamente próximos desta descrição: «Não se dá os mortos à sua mãe, aqui, mata-se a mãe conjuntamente, e come-se o seu pão, e arranca-se o ouro da sua boca para se poder comer mais pão, e faz-se sabão com os seus corpos. Ou então enfeita-se com as suas peles os abat-jours das fêmeas SS». Quem o conta é Roberto Antelme, no seu livro A Espécie Humana, onde testemunha a monstruosa desumanização do universo concentracionário. Políticos para quem a pobreza não passa de um estado de espírito e que não consideram a alimentação como um direito, já podiam ser carcereiros de um campo de extermínio. Já estamos a lidar com diferenças de grau mas não de natureza – isso é que se me afigura assustador. Falta pouco para começarem a falar de castas. E quando se pensa assim, igualmente o consentimento para se obter de uma mulher o que se pretende é um percalço menor, que se ultrapassa com a violência. Ē desta massa que se forma a personalidade dos novos líderes da direita. Se se associar a esta mentalidade a abstracção algorítmica, fica o futuro duro de roer. Isto pedia aqui uma tirada de génio de Groucho Marx, mas (não digam a ninguém) o comediante perdeu a dentadura e nenhum osso se rói por delegação. 30/05/2017 A Maria João Cantinho ganhou o Prémio Glória de Sant’Anna com o seu excelente livro de poesia Do Ínfimo. Para se entender o que isso significa teria de se começar por saber quem foi a Glória de Sant’Anna, uma estupenda poeta portuguesa que teve “o azar” de ter feito toda a sua carreira poética em Moçambique. Ē uma poeta da geração da Sophia de Mello Breyner e não lhe deve em rigor e talhe poético. Terá menos volume de trabalho (a sua obra completa não ultrapassará as duzentas páginas), mas a qualidade pede-lhe meças. O problema é que poucos sabem e quando regressou a Portugal o seu caminho estava condenado a ser discreto. Do Ínfimo é um livro à altura da sua patrocinadora. A Maria João Cantinho é muito mais conhecida como ensaísta e crítica, e agora como directora de revistas literárias (cf. revistacaliban.net), mas este é o seu quarto livro de poesia. Como poeta, apareceu numa altura que lhe era adversa, nos anos noventa, um período em que tudo o que não fosse “poesia do quotidiano” era claramente descriminado. Houve uma ditadura do quotidiano e a sua poesia mais metafórica e de laivos existenciais e mesmo metafísicos foi silenciada. Até por causa das suas influências, mais alemães e francesas, contra a vaga anglo-saxónica que sobraçou o país. Do Ínfimo é uma magnífica oportunidade para a conhecer. É um livro de grande equilíbrio, que tem arquitectura e é meditado, denotando ampla consciência do seu ofício. Sendo discursivo não cai no vício da retórica; o seu léxico medido e uma expressividade controlada não perdem de vista os seus efeitos emocionais embora prescinda de se meter em ponta dos pés, no afã de cativar o leitor por um “sensacionalismo das imagens”. Para além do conjunto, coeso, Do Ínfimo alia duas coisas que raramente casam com esta eficácia: a sobriedade não neutraliza a capacidade digressiva de quem reflecte e faz o poema reflectir-se. Como disse atrás, nestes poemas a ênfase não está no brilho (as imagens fulgurantes) mas antes na justeza das palavras. São versos que testemunham um desencontro com as idealidades, disfóricos, versos de onde se parte ou nos quais se vinca que algo se perdeu e que quando encenam um retorno recortam um céu plúmbeo em fundo. Contudo, a tristeza que neles se plasma foge de consolidar-se como a abstracção de um saber, ou da congelação melancólica. Daí que surdam laivos de revolta e vários poemas reclamem um certo cariz social. E, característica tanto mais curiosa quanto o poeta alemão tem sido um dos objectos de estudo dos seus ensaios, dir-se-ia que contra o Paul Celan, estes poemas desencadeiam-se discursivamente, de forma articulada, por vezes apoiados em refrões que lhes marcam o ritmo, com Cantinho a procurar ainda balbuciar uma unidade (na sua leitura do mundo), um rosto, mesmo que amarrotado, como é o que se alude no primeiro poema do livro. Se este é um livro que coou de alguma tristeza (o mundo não está bonito) a autora não se lhe entrega num trânsito irreversível e final, da mesma forma que a clausura do círculo se liberta pela espiral, impondo a sua dignitas, uma ética. E aqui deixo um dos seus poemas, DA VISÃO EM FILIGRANA: Desdobra-se o nojo, o sangue, a vida/ que se celebra no avesso da noite,/ o olhar acossado no nada, esta raiva/ uma bomba prestes a detonar/ na flor amaldiçoada/ de um silêncio esventrado.// Porque passas tu sem ver/ as sombras e o escuro incêndio da folhagem/ o cheiro e o dia, onde tudo se entorpece/ as ruas antigas de um muro/ onde sentiste que as palavras/ te tinham abandonado em definitivo.// Para que nos serve a língua, o coração/ em salmo adiado, se a linguagem nos abandonou/ e nos sentámos na grande pedra/ a olhar o vazio/ a decifrar modos de sentido/ que nos traem, sempre/ fugindo na sombra dos dias.// Ē esta a pobreza/ que nos faz voar/ ao encontro das árvores/ e do céu.”
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasDesacertos na recta do tempo Santa Bárbara, 16 Abril [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] silêncio de um editor é sempre ofensa, falta de consideração, desrespeito, desatenção. De Profundis, diz o outro. «Não quero martelo e rima/Aqui no Largo da Graça/Quero ficar onde estou/para saudar a quem passa.» Horta Seca, Lisboa, 18 Abril Os dias andam tristes. Talvez nem tanto, apenas embrulhados em circunstâncias miúdas que não permitem abrir os braços e acolher de peito feito a cidade. Eis se não quando uma dúzia de páginas tintadas de azul e vermelho chegam pelo correio e impõem paragens. A história breve de uma solidão faz-se desdobrar por Bárbara R. em grandes planos e geometrismos e desacertos neste pequeno álbum auto-editado. O Sol da Sra. Azul celebra a vizinhança, a atenção ao outro, com simplicidade extrema. Detalhe: fá-lo assente na imperfeição. A impressão riso deste meu exemplar 51 em 90 torna-o único e não me canso de nele descobrir pormenores: de gente, de casas, de percursos. A gentileza de Bárbara deu-me a ver os velhos que ainda cruzam as ruas da cidade dos turistas cegos. Sim, ainda há velhos em Lisboa. Não sei se há sol ou Primavera. Monumental, Lisboa, 19 Abril Autismo, do mano Valério, dobra os 1500 exemplares em três anos bem medidos e atira-se em segunda edição. As sobras no armazém parecem desmenti-lo, mas há leitores para romances assim. De choque, dizem alguns. De rasgo, digo eu. Horta Seca, Lisboa, 20 Abril Faz 30 anos que Rui Baião, Al Berto e o mesmo Paulo da Costa Domingos, que passa a deixar-me prova de vida da frenesi, agora em edição viúva (!), cozinharam antologia que daria brado: Sião. Escolhas pessoalíssimas, a reinventar-se poema único de fôlego capaz de estabelecer correspondências íntimas de Antero a Fernando Luís Sampaio. «Nenhum detém uma ciência, sequer empírica, dos destinos da Poesia. Nenhum propôs a outrem cânone que não constituísse já a sua coluna vertebral e fado seu, irreversível». Palavras do ímpar editor, noutra ocasião comemorativa, de 1991, e que agora revela, entre outras mais ou menos provocatórias na brochura Sião – Doc. Interno, publicada a pretexto da exposição que comemora, na associação cultural do Porto, Sismógrafo, as tais três décadas da Sião. E que celebrava «o centro urbano, as sociedades nocturnas, pessimistas, decadentistas e que se afastavam da escrita agrária, bucólica do século XIX.» Numa altura em que surgem editoras como cogumelos, mesmos nos dias em que não chove, incautas que julgam que para editar basta imprimir livros, as reflexões suscitadas pelas dezenas de títulos postos a nu no chão ao longo da parede são de extrema importância. Contra o esquecimento, pela afirmação de uma ética. Uma editora faz-se, antes de mais, lugar de resistência pela reflexão, contra a vida, apesar dela, em nome de uma ideia de literatura que nos desarruma, que investe língua adentro, que experimenta, que pensa cada aspecto do não. O logótipo da faz-se «de um cabrito alado em silhueta, e era originalmente a asa de um recipiente persa, em ouro, talvez um jarro». A espiral foi inscrita pelo Paulo Costa Domingos e não deixou ainda de girar sobre si. A palavra vem de verso de Mário de Sá-Carneiro: «Um frenesi hialino arripiou/Pra sempre a minha carne e a minha vida.» A frenesi arrepiou. A frenesi arrepia. Basta subir, página a página, à última cidade do Armagedão. Casa da Cultura, Setúbal, 21 Abril E 30 anos passaram desde a morte do Zeca. Quantas décadas contém cada canção sua? As granadas de mão estão cheias de referências, supostas impurezas, nomes concretos, de lugares exactos, insultos dirigidos, asneiras de criar bicho, múltiplos sinais do seu tempo, que só tolos acharão passados pois são afinal palmos de terra sobre os quais se erguem cabanas, lares, fortalezas. Sopram nelas ventos que confluem em espiral, forças de assombrar futuros. Olha ele a cantar-me ao ouvido: «a fadiga é um dom da natureza/ Chiça!/ Com as minhas tamanquinhas/Com as minhas/ Com as minhas tamanquinhas/ P’ra quem não faz fortuna/ Mata as penas e faz covinhas». Desconfio, não tenho certezas, aprendi com ele a world music ou que o surrealismo era redondo vocábulo e isto de viver uma soma agreste. Utilidades, portanto. «Era um redondo vocábulo /uma soma agreste/revelavam-se ondas/em maninhos dedos/polpas seus cabelos/resíduos de lar». Onde andam os vinis da minha infância a querer-se outra coisa? Mas Quem Vencer Esta Meta Que Diga Se a Linha é Recta comemora estes anos todos, os dele feitos meus. O mano José Teófilo [Duarte], que fez dele boa causa, comemorou o design na obra do José Afonso a partir da arte de José Santa-Bárbara, José Brandão, João de Azevedo, Alberto Lopes, produtores das imagens que me forram a memória. Venham mais cinco será o meu preferido? Ou antes Com as minhas tamanquinhas? Onde rodam os discos da minha infância pouco farta, mas rica? Conheci há pouco um velho amigo, o João Azevedo, que traz perfumes das quatro partidas do mundo, sendo nele mais intenso o de Moçambique, que por um triz não visito agora. As linhas não são todas rectas. O João vem de celebrar 50 anos de pinturas, em boa companhia de mais três nados na Figueira da Foz de costas para terra. Folheio o testemunho impresso, passeio pelas cores, pelos rostos. Invisto tempo nos Ícaros, divertem-me os crocodilos, céu apesar de quedas, horizontes que mordem. Pinta agora barcos apinhados de gente, refugiados. Parecem farpas as suas cores. Mas há sempre rostos, quase gritos. «A formiga no carreiro/andava à roda da vida/caiu em cima/de uma espinhela caída.» Mudemos de rumo.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasRita Taborda Duarte | A poesia é um acto de resistência [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ens vários livros de poesia editados – em Novembro passado escrevi aqui no jornal acerca do teu Roturas e Ligamentos – e outros tantos de literatura para jovens. Além de tudo isto és também professora de literatura na universidade. Presumo que sejam registos diferentes de pensares a palavra e o mundo. Gostava que me falasses desses diferentes registos. Os registos da poesia e da escrita para a infância são muito similares: partem até de uma mesma atitude sobre o mundo e o modo como o relacionamos com a nossa própria linguagem. As crianças têm, perante a língua, uma atitude de espanto, desconfiança, mesmo incompreensão; nada do que lhes és dito lhes surge como estático, consabido, pré-definido; apreendem cada palavra à imagem da fluidez do seu mundo; constantemente, usam vocabulário novo e são inventivas, quando se apercebem de que a língua é pobre e fica aquém de toda a complexidade do seus universos. Os adultos, que por cá já andam há mais tempo, olham a língua de longe e do alto; usam a linguagem como uma moeda de troca gasta, cansada, repetitiva, como se não percebessem que a língua não tem a função de representar o mundo, mas de o ser, de o construir. Assim, a poesia está próxima do olhar inaugural da criança e do seu espanto; é uma arte que se move por uma rebelião contra as palavras, num perpétuo braço de ferro contra elas. Aliás, as palavras, amiúde, não seduzem o poeta coisa nenhuma: agridem-no, ludibriam-no. E ao escritor cabe esta incomodidade, esta raiva, por ter de escrever com as palavras, tão gastas, usadas, não para dizer o mundo (para isso, basta-nos, simplesmente, uma mão cheia de enredos de dicionário), mas para o reconstruir à sua imagem. A verdade é que todos nós passamos boa parte da vida a aprender a ajustar-nos à nossa língua materna; a diferença do poeta é que este procura passar todo o resto da sua vida a tentar desaprendê-la, a desfamiliarizar-se dela, buscando recuperar o olhar inaugural das crianças, quando se confrontam com a linguagem pela primeira vez e a descobrem cheia de enigmas. Na faculdade, eu não ensino literatura (dou aulas na Escola Superior de Comunicação Social), o que, na verdade, me dá uma enorme liberdade para falar de literatura, exactamente do modo que me apetecer. Ou seja, sem rodriguinhos, nem punhos de renda e sem ir cheia de pruridos e cerimónias «ao encontro do texto literário»; pelo contrário, posso ir «de encontro ao texto»; que é exactamente a forma como se deve ler: provocando-lhes umas justas amolgadelas e claro, saindo de dentro dele, do texto, também com algumas mazelas. Recentemente, há um mês, lançaste um novo livro para crianças, Animais e Animenos e outros bichos mais pequenos, em parceria com o artista plástico Pedro Proença. A ideia partiu de quem? No caso particular de Animais e Animenos e outros bichos mais pequenos (Caminho, 2017) o texto surgiu primeiro. E apareceu, efectivamente e uma vez mais, como espécie de necessidade infantil (para se escrever para crianças, assim como para se ser poeta, deve-se ser um bocadinho infantil) de perceber que por dentro das palavras vivem outras palavras e ainda outras palavras, ainda, que podemos sempre desconstruir, transformando-as, ainda, noutras diferentes, que por sua vez edificam outras coisas novas no mundo. Dos Animais (que são «mais») passei, assim, para os animenos (que são, claro está, «menos»). O desafio ao Pedro surgiu como uma evidência, diria mesmo uma necessidade óbvia: quem melhor do que ele para dar corpo e forma a animenos inventados? Ele que é o especialista em fazer nascer de um traço criaturas que já lá viviam, sem nós nos termos apercebido? Eu criei os animenos com palavras, é certo, mas o Pedro é que acaba por ser o verdadeiro criador, ao dar-lhes sopro da vida. No princípio aqui foi o verbo, mas foi o Pedro Proença que do verbo lhes deu vida. Qual a importância da artes visuais na tua vida, tendo em conta que ela atravessa tanto os teus livros? A relação mais óbvia e imediata que me ocorre, digo-te por antinomia, terá a ver com o facto de eu não ser não ser capaz sequer de desenhar uma linha direita; uma iletrada por completo a desenhar seja o que for, por isso também a minha admiração por quem cria mundos palpáveis, com formas, texturas e cores, assim, só com um mover rápido de mão. Tenho uma admiração enorme por isso, já que nem as letras (a minha suposta matéria prima) consigo desenhar… Mas, agora que falas nisso, vejo que tens razão em algo de que nem me tinha bem apercebido. Além dos livros infantis, os meus livros de poesia têm, de facto, uma componente visual forte; um livro de 2004, «Sentidos das coisas» é todo feito a partir da percepção (não só, mas também visual), e grande parte desses poemas de então partiam de objectos pictóricos (quadros, pinturas, esculturas), que, não estando reproduzidos no livro, são pictoricamente reinterpretados através de imagens (ilustração e fotografia) do Luís Henriques. Também Roturas e Ligamentos, o meu último livro de poesia, é um livro duplo: o meu texto interliga-se com a relação poético-pictórica (incrível e belíssima) do André da Loba, que forma a outra face do livro. Na verdade, a questão da percepção (a minha tese de mestrado é sobre isso mesmo, mas a propósito da percepção crítica sobre a poesia) e o modo como incorporamos em nós o que vemos é muito interessante, porque podemos ler tanta ambiguidade na percepção visual como na linguagem; a pintura, por exemplo, é bem o exemplo disso mesmo. A pintura fará ao mundo o mesmo que a poesia: rasura-o e escreve por cima. Na verdade, não acredito nada naquela máxima velhinha de São Tomé… Não: «crer para ver», assim é que deve ser; como fazem as crianças, os poetas, os pintores e melhor ainda farão os poetas-pintores. Voltando à poesia, aquando da leitura do teu Rotura e Ligamentos, não pude deixar de ver o quanto para ti a ética se liga à palavra. Para além da estética, a palavra é um instrumento ético. Não apenas no sentido da “palavra dada”, isto é, não apenas no sentido de nós com os outros, mas principalmente no sentido da responsabilidade por nós mesmos. Nós somos as palavras que usamos, as palavras que lemos, as palavras que pensamos e até as palavras que calamos. Gostava que nos falasses disto. A poesia, por si só, é, quanto a mim, um acto de resistência; de resistência contra a própria língua que está aquém ‒ se não a torcermos, se não a torturarmos ‒ de todo o mundo que há por dizer e por construir. Enquanto não percebermos que a poesia não é algo sequer essencial, sendo simplesmente a essência, vamos continuar a tornar o mundo mais pobre e mais unidimensional. É isto que nos diz um dos verso de Carlos de Oliveira ( um neo-realista que percebeu que a poesia por si mesma é uma arma de resistência, exactamente pela própria carência da linguagem: Rosa martelo fala disto mesmo no seu ensaio sobre Carlos de Oliveira) que me habita a memória desde há muito tempo: «elevar a torre do meu canto/ é construir o mundo /pedra a pedra.» A literatura, a poesia, não é, mau grado o platonismo, uma forma mais ou menos incipiente de imitação, sequer de representação, da realidade; é, sim, uma construção do real… sem ela, teremos menos mundo no mundo à nossa volta. Só por isto a poesia será uma questão ética e também uma forma de resistência política. Uma linguagem pobre, rasteira, reflecte um mundo igualmente indigente e em vez de o edificar torna-o mais rarefeito. Mesmo que não trate de temas políticos, a literatura é sempre um proposta ética, que não se limita a aceitar simplesmente o mundo como ele supostamente é; torna-se parte activa na sua reconstrução e funda um modo de o recriar, mais do que o re(a)presentar. É o que tu dizes, na tua própria questão: o mundo é a linguagem, e nós somos as palavras que usamos e também as que calamos. Em tempos numa entrevista [para o jornal Abril Abril] a uma pergunta similar lembrei-me da formulação de Jorge Luís Borges que dizia que todos os livros eram auto-biográficos. Penso que, parafraseando o escritor argentino, podemos também dizer que toda a literatura é política: alguns textos poderão até iniciar-se desta forma «Aconteceu certo dia em Alepo», outros poderão iniciar-se assim : «Num certo lugar da Mancha, cujo nome amanhã o direi», na tradução de Aquilino, que sempre recordo. Na verdade, tudo o que sabemos do mundo muda-nos; tudo o que escrevemos acrescenta mais mundo ao mundo; e as palavras são parte intrínseca deste mundo que habitamos: não são o revestimento, são o miolo. Entendes que a poesia hoje em Portugal atravessa um bom momento? Penso que terá acontecido uma coisa muito interessante com a poesia, nos nossos dias; por ser o parente mais pobre da literatura, aquele mais miserável e esfarrapado, a que os grandes grupos editoriais fecham a porta com um misto de náusea e condescendência (as pessoas são condescendentes com os poetas, e isto acontecerá talvez, como já disse, por eles serem tendencialmente infantis), foram sendo criadas editoras mais pequenas, que publicam, militantemente, livros de poesia, com um desmedido desprezo pelos mercados, e com verdadeiro gosto e entusiasmo pelo trabalho poético, pela palavra dita e escrita; editoras independentes, que acabam por juntar os poetas, promover leituras, tertúlias, e que permitem que a poesia ocupe, de facto, contra todas as expectativas, a cidade, o espaço público. A poesia, efectivamente, excede, graças a essas editoras, o circuito interno comercial do livro fechado, que tantas vezes se resume ao vendável ou não vendável ou a um lugar provisório na estante da livraria: isso é muitíssimo interessante. A abysmo, a que pertenço (e eu sinto a ideia de pertença relativamente à abysmo de uma forma muito forte, como casa que de facto acolhe a minha poesia e a de poetas que muito admiro) é um exemplo disso mesmo. Mas muitas outras editoras, pequenas, têm tido um papel relevante para impedir que se expulse definitivamente os poetas da República; pequenas casas editoriais que fazem um notável trabalho de resistência, com catálogos muitos diversos, mesmo perspectivas diferentes, mas espaços que acolhem resistentemente e com critério a poesia. Citando algumas, e vou pecar por esquecer injustamente outras, reconheço as chancelas do «homem do saco», onde também já editei, na «douda correria», em «do lado esquerdo», «averno», «língua morta», «tea for two», «licorne», «mariposa azual», como alguns exemplos que têm tido uma defesa activa da poesia, contra todas as circunstâncias, divulgando e revelando, contra a maré, novas vozes poéticas. Que projectos tens para este ano? Estou a escrever um novo livro de poesia, que penso que estará terminado depois do Verão. Já tem título, de há uns dias para cá: por agora chama-se «A Cabeça do Louva- a- Deus». Curiosamente, é um livro que não é para crianças (soa mal dizer que é um livro para adultos: rasteiras da nossa linguagem), mas que parte de imagens, desenhos a tinta da china, do Pedro Proença. Desta vez, aconteceu o processo inverso: ele desenhou (são cerca de quarenta desenhos, belíssimos e terríveis, com um louco imaginário fundado em mitologia) e eu, a partir dessas imagens extremamente fortes, estou a fazer o que a poesia faz naturalmente ao mundo; ao mesmo tempo a resistir-lhe, a provocá-los, e a apr(e)endê-los, também; tornando-os meus e, consequentemente, naturalmente, rasurando-os… com palavras.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasMortais e outros voos Torre do Tombo, Lisboa, 20 Março Poema de Mário Cesariny (1968) [dropcap style≠’circle’]Ú[/dropcap]ltima reunião de um grupo de trabalho sobre livrarias independentes, a ideia da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, que reuniu profissionais do sector para reflectir e sugerir medidas práticas ao Ministro da Cultura capazes de travar o seu definhamento e morte. Se bem que algumas tenham surgido nos últimos meses, e na sequência das conversas que tivemos, não consigo afastar esta sensação de miúdo com dedo no buraco do dique. O óbvio desamor ao livro e à leitura, a inexorabilidade de práticas comerciais tóxicas e selvagens, se não cultivadas, pelo menos ignoradas pelo Estado, e o nosso atavismo organizativo condenam-nos à sempiterna dependência da bondade de estranhos. Alinhavaram-se definições, na vã tentativa de circunscrever o sentido de independente, e propuseram-se medidas de alcance variável, mas o que está por fazer depende afinal da capacidade de cada actor construir independências. Cesariny dizia: «Faz-se luz pelo processo /de eliminação de sombras». Vou ficar à espera de uma rede que se faça cama elástica e permita pulos, cambalhotas, mortais e outros voos. Horta Seca, Lisboa, 22 Março Que crueldade! Seres tão frágeis não deviam andar para aqui e para ali, de trás para frente, de casa para o escritório. Outras formas há de preservar as formas além do museu. São frágeis, mas de todo o terreno. Um fotógrafo dado à moda que pouco vem a Lisboa, Sal Nunkachov, criou editora, a Paper View, não apenas para dar corpo às suas visões de um punk benigno, mas para acolher projectos, sobretudo fotográficos, de outrem. Por exemplo, os nus de praia de Leonor Ribeiro, esculturas a preto-e-branco que parecem tintadas de bronze, reflexos de sol a brutalizar as massas, a dançar nas águas, a desfazerem-se com suave raiva no fim, afinal: a areia. Matéria que nos fica nas pontas dos dedos, pois a capa deste Sand está impressa em lixa. Não se trata apenas de fotografia, mas de impressão. Sal experimenta. Em periódica Newds, no caso a #10, imprime a negro sobre papel preto explodindo em pleonasmo. No tradicional jogo das escondidas de quem se despe, a escuridão acrescenta luzes. Lá dizia o mesmo Mário: «Ora as sombras existem/as sombras têm exaustiva vida própria/ não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela /intensamente amantes loucamente amadas /e espalham pelo chão braços de luz cinzenta /que se introduzem pelo bico nos olhos do homem». Em Pin Hole, soma-se o verde e o desfoque e a objectiva sublima o desejo, amachuca o ser no parecer, ou pelo contrário. Fulgurantes são ainda as sobreposições de Here’s How To Do It e Round Abount. Sempre corpos femininos, rostos, torsos, cabelos e atitudes, mas por cima de moldes da Burda, no primeiro, e de cartas e mapas arrancados a atlas, no segundo. Estas sedes abrem-me o apetite. CCB, Lisboa, 23 Março Ainda Cesariny, o de Pena Capital (Assírio & Alvim): «Por outro lado a sombra dita a luz /não ilumina realmente os objectos/os objectos vivem às escuras /numa perpétua aurora surrealista /com a qual não podemos contactar /senão como amantes /de olhos fechados /e lâmpadas nos dedos e na boca». Após a gravação de mais um Obra Aberta, com Nuno Saraiva e António Gonçalves, descemos para visita guiada à exposição que homenageia Mário Cesariny, sublinhando a sua veia experimental, libertária e iconoclasta. E lá vimos as sismogravuras, os aquamotos e os objects trouvées, figuras onde o acaso vai de mão dada com o impulso artístico. Quem diz acaso diz a água, movimento dos eléctricos ou recolha do lixo. Interessa-me, sobremaneira, a colagem, essa faculdade de romper cortes no visto para deixar surgir o imprevisto. Fico horas ouvendo esta homenagem a Satie (ao lado, na imagem) e acabo a perder os óculos. Perder as lentes na noite, quem me manda mensagens? No aniversário da morte, ressuscito pedaço de texto antigo. «Cesariny vem de um tempo em que viver era rasgar possibilidades, Mário, e as contas não foram ainda feitas, de Vasconcelos, pelo que não sabemos quanto lhe devemos em desejo e ventania, em confusão e lucidez, em verticalidade e camisolas de alças, inteireza e veludo com nódoas. Afiou cada âncora como palito, de maneira que os dentes acabaram por se tornar estrelas. Lugares irrequietos onde só se vislumbram regressos, como este, fazem-se difíceis de atracar aos mapas e só com muita sorte e acaso se conseguem indicações capazes de levar o viajante ao encontro da sua perdição, aquela que buscamos com íntimo desespero ao fugir-lhe. Noite e dia, trabalham algures os pianos escravos a escrever no chão com navalhas as maldades, que são outros tantos caminhos. Esta personalidade geográfica caracteriza-se pela aguda magreza que explode mais tarde, por vezes antes, em largueza de vistas.» Museu Bernardo, Caldas da Rainha, 25 Março Paulo José Miranda anima com extrema facilidade qualquer grupo, em girândola de assertivas observações, leituras selvagens e ditos de espírito. Mal se desloca para um palco recolhe-se, encolhe-se, isola-se, hesita-se. Passa a mão pelo rosto à procura da frase certa e a coreografia rima com gaguejo. Depois a gargalhada põe fim à fase do aquecimento e o poeta solta-se. Voltou a acontecer em «Bem em Tempos de Mal», sessão dos encontros íntimos que José Ricardo Nunes anima em descomprometido e irónico Museu Bernardo, com a cumplicidade de, entre outros, Henrique Fialho. Gente que ama a poesia das mais activas formas, pelo comentário em tertúlia ou pela leitura em voz alta. Às tantas, Fialho (atentíssimo leitor, a conferir no seu blogue Antologia do Esquecimento) sublinha a (omni)presença de Deus na obra do mano convidado e pergunta-lhe em que ponto está essa produtiva relação. «Sou viciado em Deus, estou em recuperação, mas a qualquer momento posso ter uma recaída», respondeu. A noite chuvosa ganhou esplendor acetinado, à maneira da impressão de preto sobre negro: precisamos mexer corpo e colagem para detectarmos mancha e brilho.
Isabel Castro EventosPoesia | Associação Amigos do Livro em Macau assinala Dia Mundial Depois de alguns anos de pausa, na Fundação Rui Cunha volta-se a comemorar o Dia Mundial da Poesia. O regresso é feito com a ajuda da voz dos mais jovens e pela articulação de vários meios de expressão artística Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 – Macau, 1926) [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi a um verso de Camilo Pessanha, um verso “muito significativo” – “Eu vi a luz em um país perdido” –, que Fernando Sales Lopes foi buscar a ideia que lança o evento marcado para o final da tarde de hoje. Quando forem 18h30, a Fundação Rui Cunha recebe uma sessão em que se assinala o Dia Mundial da Poesia, num retorno da efeméride ao espaço. Nos últimos anos, a data tem coincidido com o Rota das Letras, razão que levou Sales Lopes a não avançar com qualquer tipo de iniciativa. Este ano, o festival literário já terminou, não há sobreposição de eventos, pelo que o historiador e poeta decidiu juntar de novo um grupo de pessoas para lembrar a importância do dia e, sobretudo, da poesia que se faz nas várias línguas de Macau. O acontecimento de hoje vai além de um conjunto de poemas ditos. A organização – a Associação Amigos do Livro em Macau – decidiu conjugar esforços com várias entidades e o resultado é uma sessão que conjuga diferentes formas de expressão artística. Vai haver música a acompanhar poemas, fotografias para ver hoje (e também durante o resto da semana), e um documentário em permanente exibição. “O programa do evento divide-se em duas partes fundamentais”, aponta Fernando Sales Lopes. “Uma delas é a evocação de Camilo Pessanha. A Associação Amigos do Livro encerra as comemorações dos 150 anos do seu nascimento com esta sessão”, explica. Esta primeira parte começa com uma leitura de poemas de autores locais que se inspiraram, de algum modo, no poeta português que morreu em Macau a 1 de Março de 1926. Depois, vão ser ditos poemas de Camilo Pessanha. “São poemas ditos por gente mais crescida, mas também por adolescentes, pessoas de várias idades. Alguns serão musicados, o que, espero, dará um ar interessante à sessão.” O evento conta com a presença de alunos da Escola Portuguesa de Macau, que se associam à iniciativa. Ainda a propósito do grande nome do simbolismo em língua portuguesa, destaque para uma pequena exposição biobibliográfica e para o documentário de Francisco Manso “Camilo Pessanha, um poeta ao longe”, ambos para ver na Galeria da Fundação Rui Cunha. Da aproximação Para a segunda parte do evento, ganha importância outra colaboração: vai ser feita uma leitura de obras de poetas de Macau a partir de imagens fotográficas, criadas sob a sua inspiração, pela ArtFusion. Estas fotografias integram a exposição “Nas Lentes da Poesia”, que poderá ser vista até ao dia 29. “É uma leitura fotográfica poética. Também vai haver intervenção musical”, antecipa Sales Lopes. “E artes performativas.” Para a construção da sessão, o responsável teve essencialmente em conta “o bilinguismo e a intervenção dos jovens”. Porque vão ser ditos poemas em português e em chinês, vai haver tradução escrita para ambas as línguas, com a distribuição de um libreto. “Há muitos poetas em Macau”, nota Fernando Sales Lopes. A poesia é uma forma de escrita particularmente comum entre os autores portugueses, mas entre os chineses também. “Claro que há aqui um problema que é o desconhecimento mútuo. Esta sessão também se insere nisso. Também é objectivo desta associação mostrar que é necessário e tentar que haja apoios para formar gente em tradução literária, para que se saiba o que os autores chineses estão a escrever e eles saibam o que estão os autores de língua portuguesa a fazer”, conclui.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasAssim pudesse acender-me [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho até aqui, tirando os textos sobre os autores da Antiga Grécia, escrito sobre poetas de gerações mais novas do que a minha. Hoje, e antes de terminar este formato, abro uma excepção para um livro de finais do século passado, de um autor de uma geração bem anterior à minha, que trata de um tema algo arredado da temática poética contemporânea: o amor. Opus Affettuoso trata-se de um livro de poesia com 55 poemas curtos, intitulados de I a LV, e ainda um poema final, mais extenso, de três páginas, intitulado “Última Núpcia”. O tema do livro é o amor, sim. E este amor não tem qualquer conotação pejorativa, negativa ou indigente. O amor que aqui aparece, ao longo destes poemas, é o topos humano, o lugar do humano. O amor não é somente um lugar, também faz de nós um lugar. O amor é o lugar desconhecido que habitamos, que habita-nos e para o qual e com o qual caminhamos. Sabemos que há, mas não sabemos o quê, não sabemos quando, nem a natureza do seu aparecimento: “EU NÃO SEI SE / conheci a luz ou a sombra / quando bebi na tua pele. (…).” [XIV] Não podemos saber se subimos ou se descemos, se vamos para bem ou se vamos para mal quando amamos. Não é possível ao humano aceder a esse conhecimento. “(…) de quem não sabe / se é folha ou chão boca saliva / porque tudo em nós é luz líquida / que não conhecemos saboreamos / apenas.” [VIII] Aquilo que sabemos, aquilo que apenas podemos saber é que à beira do corpo há luz. Há uma luz que se acende dentro de nós na beirada de outro corpo, nos campos da amada. Isso, sim, isso sabemos. Uma luz líquida, uma luz que sai de nós e do outro e que ilumina a ambos, uma luz que nasce de um corpo contra outro, de boca contra boca, de sexo contra sexo. XV ENTRO PÉ ANTE PÉ no pátio da minha amada – arco iluminado. Saio limpo e vazio do barro de minha amada – de novo abandonado. Estamos, portanto, num universo de luz e sombras. A luz do corpo e a sombra da alma. Sombra do pensamento que nos estrangula de ausência. Não é o outro que nos dá o ser, quer o outro seja Deus, quer seja a amada; o que nos dá o ser é a sensualidade do outro, o toque do outro e no outro: “(…) do ser que sou agora luz reunida / pela mão no joelho que se abre (…)”. Ser é ser um momento de sensualidade, ser um momento onde nos acabamos, onde nos esquecemos, onde nos abandonamos. Ser é descansar de nós, e só se descansa sensualmente. O amor é o contrário de nós, sabemo-lo logo nos primeiro três versos do livro: “AMO-TE PORQUE NÃO ME AMO / inteiramente. O que me falta / é infinito / (…).” [I] O infinito, aqui, não é a luz, mas a sombra. A sombra do corpo que dá luz em contacto connosco. Queremos o que não sabemos, queremos mais do que podemos, queremos a sombra estendida do mundo. Mais: nós somos a sombra estendida do mundo; somos o que pensa, o que se entrega às sombras, ao desejo de infinito. E só no corpo, só no corpo do outro, da amada, descansamos das sombra que somos, do infinito que nos atormenta. Estar connosco, remetido à nossa própria sombra, ao pensamento, ao infinito desejado é ser perdido, ser em luta connosco, com a necessidade de infinito e a sua impossibilidade. O amor nasce desta consciência: a luta, em nós, entre a necessidade e a impossibilidade de infinito. Amo o outro porque não sou infinito, porque o que o meu pensamento deseja não tem reciprocidade. O amor é o que nos resta. Na impossibilidade de sermos infinitos, de nos amarmos a nós mesmos inteiramente, resta-nos o amor, que nos dá descanso, que nos recolhe dos demónios do dia. XXVII NÃO ACENDAS a luz não abras a janela. O teu sexo lâmpada viva ilumina-me a noite escura. Não abras o dia, ilusão impura. O momento da sensualidade, aquele momento de descanso de nós mesmos, de ser, descanso de pensar, de ser sem ontologia é, contudo, frágil. Demasiado frágil. “A LUZ QUE ME DÁS, ESQUIVA E DURA, / serve-me de abrigo onde desfeito / é já meu cansaço. (…)” [XXXVIII] A luz já é esquiva e dura, abriga e descansa, mas não é fácil de acontecer. A luz não acontece quando se quer, nem quando queremos. A luz do corpo, essa luz líquida, nascente de um com o outro, é bem menos forte, bem menos presente do que o dia, do que a luz demoníaca do dia, que é a luz que revela a nossa sombra, o nosso eu; não o nosso ser, mas o nosso eu. Eu é precisamente o que não quero. O que quero é eu e tu. Pensar é o que não quero, o que quero é meu corpo no teu. Quero luz, a preciosa, rara e líquida luz; não quero a sombra que me habita, que sou eu, que é Eu, e que o dia vai revelar-me. No amor escapamos da humanidade como se falta a uma aula. O amor é a possibilidade de descanso de nós, desse Eu assombrado que nos impede de ser. “(…) Deixa-me levar o sabor / da pequena lâmpada / para que eu possa suportar a travessia / dos pátios que me separam / da próxima noite.” [XXXIV] Ficar entregue a mim (Eu) é caminhar pelas sombras do mundo, pelas sombras do dia, espalhando em mim e fora de mim a minha própria sombra; a minha sombra de ser. Chegar a um corpo, haver um corpo que nos receba, é o que melhor nos pode acontecer. O que melhor nos pode acontecer para não cairmos na sombra do Eu, na angústia da falta de infinito. Depois do corpo da amada, “eu” é uma pedra contra mim mesmo. Pois quando amo, quando estou apaixonado, e é deste amor que o livro fala, eu sem o outro sou uma sombra de mim mesmo, um escuro enorme. Leia-se um poema, onde claramente se vê a luz nascer à beira do corpo do outro. Luz que apaga as palavras, o pensamento, que apaga a sombra que somos. Luz redentora, porque ofusca o Eu, ofusca o que nos afasta de ser, da experiência ancestral do Ser. A TUA PELE NÃO É A LUZ mas estou perto ofuscado e sem palavras não preciso delas ouço o tumulto a coroação da minha verdade a que vem de ti olhar para ti silenciosa e em silêncio desaprender a musica dos outros a grata imperfeição do mundo e enlouquecer onde fui sábio outrora Mas que corpo é esse que o poeta fala? É um corpo qualquer? É o corpo do dia-a- -dia, que desejamos a caminho do trabalho ou de casa, na esperança de voltarmos a ser, de nos esquecermos de nós? Não. O corpo onde vamos acontecer, de onde recebemos nosso ser e ao outro o concedemos, não é esse corpo. O corpo não é do mundo. Há, no mundo, corpos; mas não são estes de que o poeta fala. O corpo que Casimiro de Brito canta é o corpo afectivo, o corpo para além do acontecimento, que nos dá o ser e devolve ao outro o seu ser. É o amor. O amor feito carne, nos muros da pele, nas águas que escorrem pelas calhas, pelas ranhuras do humano, pelos seus orifícios. Leia-se estes versos de “Última Núpcia”: “(…) a linguagem dos animais horizontais / que bebem na lua o olhar que nela / outros amantes deixaram esquecido (…)” O que outros esqueceram é a matéria que nos concederá o ser. A maioria das vezes o que há é esquecimento, esquecimento de um corpo no outro, de um corpo face a outro. Este corpo não é do mundo. Amor e mundo não se entendem. O amor é a experiência do lugar por excelência: o topos dos topos. O amor repele para longe a doença do desconhecido, do infinito, da angústia. O amor qua lugar. O amor enquanto topos. O amor não tem lugar, ele é um lugar. Mais: é o Lugar do humano. Nestes poemas, a casa do humano não é a linguagem, mas o amor, o outro humano com quem fabricamos a luz líquida a que os versos várias vezes se referem ao longo deste livro. “(…) A tua mão / sem palavras sem pensamentos / acaricia-me os joelho / sob a luz que do céu / fatigada / cai.” [XLIII] Fora do amor, fora do corpo da amada, no mundo, ficamos expostos a nós mesmos, a todas as intempéries da palavra e do pensamento. “(…) Armas tão frágeis / as que temos: o mel a saliva o / sêmen. (…)”. [VI] E, para além de sermos desprovidos de armas eficazes, que combatam o mundo e nossa sombra, há ainda a fragilidade da amada, os “(…) ramos frágeis / da minha amada. (…)” [XI] Aquilo que nos dá o ser, nosso encontro corpo a corpo com a amada, é muito frágil, quase impossível de sobreviver, de prosseguir pelo tempo fora. Não é só o mundo, com seus dias derramando nossas sombras, que nos enfraquece o amor, que nos enfraquece o encontro, a possibilidade da luz líquida, também nossos próprios corpos são frágeis, vulneráveis. Veja-se o que protege a amada: XXX APENAS um cinto passageiro a envolve. Um veio mais leve do que a brisa da manhã. O fio de água dos meus braços. Tudo nos conduz à consciência da fragilidade. Mas essa consciência não se dá no amor, não se dá nesse lugar do ser, no lugar onde recebemos e damos ser. A consciência da fragilidade do amor, da fragilidade da amada, no corpo desabrigado da minha amada [XLVIII] e de nós para a amada, de mim para a amada, essa fragilidade dá-se no mundo, nos dias, na sombra, como reconhece o poeta, vagueando pelas ruas, companheiro dos cães “(…) e deito-me / de novo. Desamparado. / Apenas um jogo / de lençóis bastava.” [XVI] Sem amor, não temos onde ficar, não temos lugar onde ficar. Sem amor somos nós vagueando como cães, passeando nossa sombra pelo mundo.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteEntrevista | Ouyang Jianghe, poeta: “Sou o que escrevo” Ouyang Jianghe é um dos poetas com mais relevo na China. Uma escrita simples, ritmada e de interpretação complexa marca o trabalho do autor que abandonou a exultação dos grandes acontecimentos históricos para se dedicar à expressão pessoal. O poeta falou ao HM do que escreve, dos desafios da tradução e da descoberta que fez [dropcap]N[/dropcap]asceu em Sichuan, na altura da Revolução Cultural. Como é que nestas circunstâncias a poesia apareceu na sua vida? Penso que precisava de me descobrir e não sabia como. A poesia não é só um meio de expressão das opiniões acerca do sentido do mundo e da vida. O processo de escrita é uma descoberta que se confunde com a própria vida. Expressamos o que dentro de nós se transformou, na nossa forma de ver o que nos rodeia. Por outro lado, é nesse processo que aprendemos a moldar a própria vida. Acaba por ser a escrita que se impõe e que nos faz o que somos. Escrever acaba por se confundir com o que somos. Faz parte da segunda geração de autores que deixa a tradição histórica e recorre ao quotidiano. No seu caso, através de uma simplicidade de palavras que não corresponde à complexidade dos conteúdos. De facto, recorro aparentemente a vocabulário muito simples. Uso palavras que as pessoas podem realmente compreender a um nível superficial. Mas as ideias e pontos de vista subjacentes são outros. Faço um processo de condensação de ideias que se escondem em vocábulos. É também uma poesia muito visual em que uso os caracteres enquanto símbolos. É uma forma de encriptação de informação. A leitura passa a ser outro processo, o de interpretação dessa linguagem encriptada, o da procura e descoberta do que está omisso e secreto. Muita da minha poesia usa palavras muito simples, mas o processo é muito complexo. Podemos ainda fazer uso de grandes figuras como o Confúcio, e ressuscitá-las. É o “voltar a viver”. Mas a ideia principal é, de facto, esconder a complexidade atrás das palavras simples e é trabalho dos leitores interpretar o texto. O que nos leva a outra questão. Para o público estrangeiro, que lê as traduções, há outro elemento que é a própria tradução. Como é que vê o seu trabalho, tão específico na língua chinesa, traduzido? É realmente muito difícil traduzir o meu trabalho. A maior dificuldade, penso, é conseguir transmitir as ideias que estão ali condensadas. O processo de tradução engloba muitas camadas que se sobrepõem. Numa tradução mais superficial, e que deverá ser a primeira, é a tradução do significado básico da palavra. Estamos ao nível mais simples mas fundamental para uma primeira leitura. Um poema também tem muita técnica de escrita implícita, que inclui a expressão do imaginário e em que é usada, por exemplo, a metáfora. Encontramos aqui o segundo nível da tradução: o entendimento e interpretação do imaginário. Fazer a sua tradução e encontrar um possível equivalente na língua de chegada que possa espalhar de alguma forma, a imagem do poema. Estamos perante um terceiro produto? O poeta e tradutor americano Forrest Gander assinala que, num poema, o que pode ser traduzido não é realmente a parte mais importante. O que não pode ser traduzido é o cerne. Quando um poema é traduzido é recriado. Deixa de ser o original e passa, de facto, a ser um novo produto com um novo significado e capaz de ser interpretado por outra cultura, a que fala a língua de chegada. Podemos mesmo dizer que aparece numa espécie de terceira linguagem. A imagem dentro de cada poema só fica completa quando passa por uma tradução. A tradução acaba por findar um ciclo de criação. É também um processo feito a dois, durante o qual, na troca que proporciona, se consegue abranger as muitas interpretações possíveis. É tornar o poema completo de novo, até para o próprio poeta. Quando um poema é traduzido também pode perder o seu som, que um poema também é música. Mas pode ser criada uma nova canção. O processo implica perdas, mas também implica uma nova criação e é capaz de dar ao texto uma nova vida. Outra questão relevante é que quando pensamos em tradução associamos sempre a línguas diferentes. Na verdade, os poemas podem ser traduzidos dentro do mesmo idioma. No chinês acontece frequentemente. Um poema tem de ser traduzido dentro da própria língua porque é necessário ir além do tal significado superficial e nem os nativos de chinês podem muitas vezes compreender o texto se não tiverem estas traduções. Acontece com muitos dos nossos grandes poetas, como Li Bai ou Du Fu. A razão é que a interpretação e compreensão das ideias que formam um poema exigem um conhecimento vasto e profundo de toda uma realidade linguística, cultural e histórica que não é acessível a todos. O processo da tradução, seja qual for, vai resgatar as palavras e significados exilados. Deixou de escrever durante uma década, o que marca dois períodos de criação com características diferentes. Porquê a paragem e o que é que aconteceu neste período para levar à mudança? O período que abrange o momento em que comecei a escrever até ter decidido parar tem dois aspectos. Na primeira fase, ainda era muito jovem e escrevia em Sichuan, onde estava muito limitado à minha experiência pessoal, com as características culturais e sociais daquela província. A minha escrita não era tão pessoal mas mais dirigida às pessoas, o que fazia com que abordasse mais aspectos sociais e políticos e, talvez, mais rebeldes. A intenção era chegar a um público. Em 1993 fui para os Estados Unidos durante cinco anos. Não sabia inglês e a minha forma de expressão e pensamento mudou. Como não falava a língua, não podia falar para os outros e tinha monólogos comigo próprio. Foi quando senti que alguma coisa estava a acontecer e a mudar. Ao falar comigo percebi que afinal falava com ninguém e, por vezes, com uma espécie de fantasma. Por vezes transformava esse fantasma em alguém que admirasse, como Li Bai. Expressava-me para o vazio e isso fez com que me visse obrigado a ouvir-me. Esta voz transformou-se, mais tarde, nos meus poemas. Se não tivesse ido para os Estados Unidos, se calhar nunca tinha percebido isso. Foi também ali que comecei a ver poesia em tudo. Recordo uma situação em que fui a um museu e vi uma moeda grega. Era dinheiro, mas sem valor e muito bonito. Pensei que podia escrever sobre este dinheiro transformado em arte e história e que, dadas as imagens e o relevo, era uma escultura com um padrão. Foi também quando comecei a trabalhar na rima e na sua integração no poema. Percebi que a minha poesia também podia ter forma, podia ser uma peça. Podia desenhar as palavras. A mudança que ocorreu em mim e no meu trabalho pode ser metaforizada numa conhecida história de um prisioneiro que gostava muito de jogar xadrez. Enquanto detido, fazia-o sozinho, até que conseguiu sair em liberdade. Foi quando percebeu o que tinha aprendido antes, na sua solidão. Ganhou os campeonatos em que participou. Quando parei de escrever desenvolveram-se muitas coisas dentro de mim, e os Estados Unidos acabaram por ser a minha prisão. Quando voltei à escrita, o que saiu foi o resultado dessas observações. A palavra e a rima chinesa transformaram-se nas minhas peças de xadrez que, quando jogadas, ganhavam asas. A China está a mudar e o Ocidente parece estar cada vez mais interessado na literatura que se faz no país. Como é que vê este interesse crescente? O desenvolvimento da China e o interesse por ela e pela sua literatura é de facto uma coisa relativamente nova, mas considero que é um fenómeno essencialmente político. Há pessoas que estão satisfeitas com isso e outras que nem tanto. Recordo que em 2008, enquanto falava com um tradutor sobre esta questão, ele dizia-me que o crescimento da China fez com que o país existisse para o mundo. Na sua opinião, essa é a razão que leva à necessidade de conhecimento acerca deste país, porque passou a representar um tipo de ameaça. Passou a ser importante saber o que era esta China que ganhava cada vez mais relevo económico no mundo. Qual era a raiz deste país? Até aí, havia muito poucas pessoas a querem saber da China. É aí que também entra a literatura enquanto forma de aceder à cultura chinesa. Por outro lado, a razão para a falta de conhecimento da literatura chinesa assenta em dois pilares. Por um lado, a questão da tradução. Por outro, penso que há um mal-entendido entre Ocidente e China, e as pessoas que procuram a literatura chinesa não estão realmente interessadas nos livros, mas sim em procurar as circunstâncias políticas e económicas de um país. Procuram a controvérsia e querem ouvir as vozes que mais lhes convêm e o que esperam saber. Querem ouvir essencialmente vozes políticas. Não estão abertas a histórias que relatem uma sociedade contemporânea, buscam a confusão e não verdadeiramente um retrato descritivo. Penso que não têm realmente um interesse pela língua e literatura do país. A realidade de hoje não é só de hoje. O que vemos hoje tem passado e já abarca o futuro. A poesia é também isso, uma mostra do que foi, é e poderá ser a sociedade chinesa. No que faço também é isso que tento mostrar: o lado literário do que se faz hoje na China. Já não é a primeira vez em Macau. É a quarta. Mas a ocasião que mais me marcou aqui foi a terceira visita. Vim integrado numa comitiva para conversarmos acerca dos passos a dar no território para o desenvolvimento da arte contemporânea. Fiquei muito espantado porque a única coisa que se passou foi um almoço sem mais conteúdos. No entanto, Macau não deixa de ser uma inspiração, até mesmo devido aos casinos, e ao poder e significado do dinheiro. Já escrevi sobre isso. Aqui, quando se joga não se vê o dinheiro real, são tudo fichas. Mas por exemplo, quando se perde, o dinheiro que não se vê torna-se visível apesar de já não existir. O mesmo acontece com as palavras. Às vezes só ganham peso depois de desaparecerem.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA Barca da Morte [dropcap style≠’circle’]D.[/dropcap] H. Lawrence tem um belo poema muito ao estilo de uma velha barcarola, com o título deste enunciado. Ele, que foi o escritor dos «Amores no Feno» e de toda uma atmosfera que o coroou de erótica neblina, ele – e talvez por isso – fosse um desbravador indómito, poético, um arauto que se debruçou de forma muito bela sobre a morte, essa porta da iniciação que não está desligada da sexualidade e cujo movimento retorna ao ponto fixo de uma mesma força — lembro que lhe tocava em profundidade o orgasmo dos condenados à morte por enforcamento. Estes homens não tinham como hoje as respostas organizadas para todos os efeitos como se fossem a parte robótica de si mesmos. Eles estavam animados de uma película cuja deidade desconhecemos, nós, os transmissores de todos os fenómenos em que nunca acreditamos. Decerto que Lawrence, até devido à sua saúde frágil ao longo da vida, se interrogou acerca da morte e essa imensa indagação deu origem a belas reflexões como naquele pequeno conto, «O homem que morreu», é encantador e quase crístico pela forma como se levanta um defunto e se vai lembrando em seu redor (Jerusalém) dos cheiros e dos elementos. Isto tudo a partir de um estranho cantar de um Galo que à mesma hora em que é libertado acciona nele a ressurreição…. No seu belo poema «Canção da morte» formas tautológicas que tão emblematicamente o mantiveram como um mestre do suspense sedutor, mas foi nesta Barca que o seu dom se demorou um pouco mais, talvez até mais, que nas formas de uma mulher. Esta viagem parte do Outono, eufemisticamente, pois que é nele que embarcamos de forma compenetrada e silenciosa rumo a ela, e ele afirma que: é tempo de ir/ do adeus ao próprio eu/ de encontrar uma saída do eu caído/e, no ar, a morte, como um cheiro de cinzas!/ E no corpo ferido, a alma assustada/(…) Sim, toda esta inquietude e formação de um outro ser que renasce na viagem para depor o eu vencido é bonita de celebrar como um rito muito puro de passagem, e inquire-nos de forma bastante frontal: Já construíste a tua barca da morte, a tua?/ Constrói a tua barca da morte, vais precisar dela. Todos vamos precisar de construir tal Barca e mesmo que os preconceitos do nosso tempo não assumam esta causa como uma condição articulada de profunda humanidade, ela deve ser trabalhada como a Arca da Aliança, com madeiras belas e ramos de acácia. Não devemos estar impreparados diante do desconhecido, dos desconhecidos, tudo o que é transpor um portal tem de ser “vivido” com um rito que quebre as formas saturadas. Daí, cada um, quando a vida começar a fechar o postigo das possibilidades, se deva abeirar daquele mar de dentro e, sem vontades pessoais, abrir espaço abstractamente para deixar passar a Barca. Morremos sempre por uma causa mas quase sempre nascemos por um mistério. Nós que já atravessámos tantos mares, que temos marcas de vida em permanência, que temos todas as cicatrizes como trunfos de uma guerra muita vezes inglória, que nem sempre escolhemos, pois que somos escolhidos na abrangência das decisões, que navegamos quando não é preciso e vivemos quando não faz falta, que de tanto estarmos vivos temos uma engrenagem parada em movimento permanente, podemos ter a gravidade dos iniciados quando desta Barca se tratar. É sempre bom para a alma contemplar outras entradas sem a visão das coisas ao redor e suas certezas, é bom sairmos deste local onde a nossa vida deixou de ter o interesse pretendido: morrendo, estamos morrendo/ agora só nos resta aceitar a morte/ e construir a barca/ agora, lança à água a pequena barca/ agora, que o corpo morre e a vida parte, lança a alma frágil/ na frágil barca da coragem, na arca da fé. Talvez que a morte seja um Dilúvio e sejamos nós a construir a Arca, a Barca, para atravessar aquela grande provação de águas que galgam toda a firme certeza que tivéramos de haver terra… talvez que tenhamos essa ideia profunda de voltar a navegar num oceano sem fim e só nesse fim a Pomba, a Luz, a Fonte sejam na nossa travessia tudo o que desejámos saber, contemplar. Se mudados atravessarmos tudo isto e renascermos, não seremos apenas o desejo pessoal de uma condição que ficou, pois que muitos nos tomaram para sermos e, na senda de ser abarcámos a Barca, como a insígnia mais pessoal do enviado que somos, que fomos, dos seres únicos em que cada um se tornou. É muito bonita a analogia com a passagem bíblica… – e Noé construiu uma Arca – constrói a tua Barca – a pomba voltou ainda com um ramo de oliveira para lembrar, talvez, a ressurreição… mas era cedo e Noé não desceu, mais tarde largou de novo a ave e ela não mais voltou. O pássaro da alma que vai tentar a vida uma outra vez dizendo que ela continua, indicando outro ciclo, esta é uma bela noção de imortalidade que, estando plasmada em nomes, símbolos e incompreensíveis formas, nós conhecemos como taumaturgos de um processo imenso… Temos medo, sim, do dilúvio, que a Barca se afunde pelo peso sombrio das nossas memórias deixadas, temos medo de atravessar esse imenso nevoeiro e não sabemos se a sombra da alma fará mais escura a travessia… se a bloqueia em porto incerto… mas os que estão livres das questões e não zelam pelo nada como parte descartável para uma vida que contaminou estes mares, entram nela como nas longas catedrais, plenos de respeito pela travessia. Saiba a nossa guardar intacto o assombro de merecer este Poema, tão cheio de vida, como esta morte que se anuncia às portas da Primavera. Lawrence, quase fecundou o momento – este momento – onde vamos descendo no grande e belíssimo instante da jornada. Desce o dilúvio, e o corpo como uma concha polida Emerge extraordinário e belo. E a pequena barca torna a casa, deslizando, trémula, E a frágil alma desembarca, volta a casa. Cheia de paz. O coração renovado embala-se na paz, Mesmo na do próprio esquecimento. Constrói a tua barca da morte, a tua! Vais precisar dela. espera-te a viagem do esquecimento.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasCláudia R. Sampaio: “A poesia requer sempre um silêncio” [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ens três livros de poesia publicados: Os Dias Da Corja (Do Lado Esquerdo, 2014), A Primeira Urina Da Manhã (Douda Correria, 2015) e Ver No Escuro (Tinta da China, 2016), sentes que são livros estanques, com estéticas e propósitos literários distintos ou há uma continuidade entre eles, tanto ao nível temático quanto estético? A nível temático acho que há uma continuidade. Os meus livros falam muito de perda, solidão e de uma barreira que está sempre quase a ser ultrapassada além-limite. Quanto à forma, sinto que mudei um pouco, há uma evolução, fui-me descobrindo. Escreveste, não sei se ainda escreves, roteiros de telenovelas. Achas que isso te marca negativamente perante a crítica ou perante a maioria dos leitores de poesia. Ou hoje em dia os leitores de poesia separam com mais facilidade a poesia do que se tem de fazer para ganhar a vida? A crítica não me preocupa e nem sequer penso se isso marca negativamente a opinião que podem ter acerca da minha poesia. São coisas tão distintas que acho que não se pode confundir um trabalho que não dependia de mim com aquilo que realmente sou e que atravessa o que escrevo. Acho que as pessoas que me rodeiam pensam o mesmo. Participas num grupo de leitura de poesia e música, Belos, Recatados e do Bar, juntamente com o músico Pedro Moura, o poeta José Anjos, o escritor Valério Romão e o filósofo António de Castro Caeiro. Gostas de ler poesia em público, ou para ti só faz sentido num projecto como esse que vocês têm? E como nasceu essa ideia? Os Belos, Recatados e do Bar já existiam antes de eu e o Pedro Moura fazermos parte do grupo. Um dia convidei-os para lerem no meu café literário Folhas d’Erva (que entretanto já encerrou) e eles insistiram para que eu também me juntasse à leitura e para que o Pedro tocasse. Correu tão bem que a partir daí já não nos separámos. Gosto de ler poesia em público porque é uma coisa esporádica e que nesses momentos me dá bastante prazer. Há outros momentos em que só me faz sentido ler aqueles mesmos poemas quando estou sozinha. A poesia requer sempre um silêncio. Mas ao ler em público há uma partilha com o outro, acabamos por despertar a atenção para certos poemas e muitas vezes é uma maneira de os darmos a conhecer. Em pouco tempo de publicação, desde 2014, parece-me que tens tido um reconhecimento bastante bom por parte da critica e do público? Concordas? Não sei. Houve sim uma maior visibilidade com o Ver no Escuro (Tinta-da-China) e, por consequência, acabei por ter mais retorno quanto à opinião de leitores que gostaram muito e que me enviam mensagens via Facebook a agradecer por tê-lo escrito, o que me deixa sempre num misto de surpresa e de contentamento. Entendes que a poesia hoje em Portugal atravessa um bom momento? Sim, sem dúvida. O que sinto é que as pessoas se interessaram novamente por poesia, mesmo as gerações mais jovens, e estão a deixar de lado o estigma de que a poesia é uma coisa lamechas para gente triste. Basta ver a sala cheia de caras novas num evento de poesia para perceber isso. Também há cada vez mais gente a escrever e mais editoras interessadas em publicar novos poetas, o que é sempre bom. Desde que isto tudo não faça da poesia um espectáculo oco de variedades, acho belíssimo. Que projectos tens para este ano, ou intenções? Tenho um livro pronto, já com editora e que sairá em breve. A única coisa que está a atrasar o processo é a falta de título, o meu eterno calcanhar de Aquiles. Entretanto já comecei a escrever outro livro, que é uma espécie de história-poema-longo e que terá uma banda sonora do Mário Fonseca, em piano. A ideia é, para além de publicar o livro acompanhado de cd, fazermos espectáculos ao vivo. Também gostava de conseguir arranjar um trabalho.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA vertigem de nunca estar a ser [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Ver no Escuro, terceiro livro de poesia de Cláudia R. Sampaio, editado em 2016 pela Tinta da China, o título dá-nos de imediato uma pista. Ver no escuro pode querer dizer várias coisas, entre elas a situação literal de alguém que, em casa ou na rua, se esforça por ver o que está diante de si, envolto no escuro. Por outro lado, ver no escuro, e como título de um livro de poesia, pode muito bem querer dizer-nos, indicar-nos que estamos prestes a entrar num espaço, o do livro, onde alguém escreve como se o mundo estivesse fechado num breu e a linguagem o iluminasse. Por outro lado, e de um modo mais literal, ver no escuro também é o modo como a autora termina o livro: “fazendo-me ver no escuro” Mas eis a última estrofe do livro: “Agora mato-me escrevendo / e aqui ressuscito em rua beijando pés / Eu sou esta verdade / Sou a desorientada concentração / das noites desertas / E ascendo-me, grata, / com a poesia dançando entre a / vida e a morte, magnífica / tapando-me a boca toda, / fazendo-me ver no escuro” (p. 78) Parece claro, este ver no escuro, para a poeta, é o próprio acto da poesia, o acto de escrever poesia. E, contrariamente à poesia de Catarina Santiago Costa e ao seu Tártaro – lido aqui semanas atrás –, Cláudia R. Sampaio não se vira do avesso, nem convoca uma linguagem à revelia da linguagem dos dias, à revelia da linguagem que levamos à rua. Em Ver no Escuro deparamo-nos com a mesma linguagem que levamos à rua a passear, a mesma linguagem com que agradecemos a quem nos acende o cigarro, mas com uma eficácia poética conseguida através de um desequilíbrio sintáctico. Aqui, é o verso que repõe a dimensão metafísica da linguagem e não a palavra. “Tragam-me um homem que me levante com / os olhos / que em mim deposite o fim da tragédia / com a graça de um balão acabado de encher / tragam-me um homem que venha em baldes / solto e líquido para se misturar em mim / (…)” (p. 39) São inúmeros os versos ao longo do livro, onde a distorção da linguagem ilumina partes escuras da existência. Deixemos aqui apenas mais um exemplo, que se prende com o próprio sentido de ver no escuro, que a poeta quer que se veja, independentemente de nos deixar a liberdade de vermos outros, que nos parecem até mais pertinentes: “Passei todo aquele poema a viver.” (p. 63) Mas Ver no Escuro é também, ou principalmente, um livro sobre o medo do esquecimento. Quando alguém morre, o seu esquecimento dói muito a quem o amou um dia, e continua a amar. Os primeiros tempos de luto, vive-se no paradoxo de lembrar e da dor da lembrança, que nos faz querer esquecer, e este querer esquecer quantas vezes não faz nascer uma culpa inconfessável? Como se não fôssemos dignos, não estivéssemos à altura do amor que nos foi dado. Ou, na tese mais forte e, paradoxalmente, mais calmante para a existência, como se nada pudesse ser feito contra o esquecimento de quem um dia nos amou tanto. “E no fim são todos cinza” (p. 7), canta a poeta no final do primeiro poema. Mas o esquecimento do outro, para nós e para aqueles que compõe o mundo, não é o único esquecimento que dói, a única ausência que faz vibrar a existência, contorcendo-a de uma dor que parece não existir de facto, uma dor que não é uma pedra sobre um rim, uma pedra sobre um braço, uma pedra sobre a fronte. O esquecimento é uma pedra sobre a existência. Uma pedra a dizer para onde vamos, para onde todos caminhamos. Todos os dias se morre: “Os dias começam com a despedida / de qualquer coisa / nem a água dura para sempre / nem a cova impiedosa deste colchão” (p.40) Todos os dias o mundo caminha para o seu desaparecimento. Tudo está a desaparecer diante dos nossos olhos. Escreve a poeta, este poema à página36: Morro todos os dias especialmente depois do lanche quando pego no regador fininho onde despejo o dilúvio dos olhos e vou regando as plantas à espera de descendência. A dor que mais parece macerar a existência, neste livro, é o esquecimento de si mesmo. Tudo caminha, não apenas para deixar de ser, mas para o esquecimento de ter sido, que é não o não-ser, mas o buraco negro do ser. Quem consegue deixar um pai morto transformar-se num buraco negro de ser? Uma mãe, uma avó, um irmã ou uma irmã? Quem, como Orfeu, em podendo, em tendo forças, não vai ao mais fundo dos infernos resgatar o esquecimento desses que o amaram? Resgatar do esquecimento quem o amou é resgatar o próprio amor. Aqui, neste livro, a tentativa de resgate é a do próprio. Orfeu desce ao Hades, não para resgatar a sua amada, mas a si mesmo. Somos nós, cada um de nós, que está morto para si mesmo. Cada um de nós, vivos, ou assim o julgamos, arrasta-se pelo Hades em busca de si mesmo – já tínhamos visto aqui, semanas atrás, algo semelhante no Tártaro, de Catarina Santiago Costa. Escreve Cláudia R. Sampaio: “Estou viva. / E penso que para além de mim / não há quem o saiba.” (p. 62) Estes versos, que ecoam Álvaro de Campos, sublinham a dor de esquecimento que nos assalta e que pode ter estas formulações: se ninguém me sabe viva, estarei eu viva? Se ninguém me lembra, lembrar-me-ei eu de mim mesma? “Existo até à memoria / como um peixe às voltas” (p. 65) Ver no Escuro é também, ou principalmente, um livro sobre o medo do esquecimento A memória é tudo. Aqui, Deus é a memória de todos. Só Deus se lembra de tudo e de todos. Só Deus transporta em Si o que alguém foi; não apenas o que é, mas o que foi. E é aqui, neste lugar místico, que o sentido da poesia em Cláudia R. Sampaio aparece. O poema é uma imitação falhada de Deus. Imitação, porque toca os interstícios da existência e faz dela memória; falhada, porque nenhum poema nos leva a nós, a um eu que preste, é sempre uma ficção de eu, uma possibilidade de eu. “E dentro desta anáfora descobri que um / momento nunca é igual a outro. Como um poema. / Como eu, que nunca sou igual / a mim própria. Às vezes sou eu sem ser.” (p. 63) Ou ainda, como ela mesma canta acerca do amor: “E agora sou uma esponja e encolho / porque ainda estamos a reduzir-nos / em violentíssimo eco / Adeus, eus, eus” (p. 33) E o que diz acerca do amor pode ser dito acerca de cada um de nós e da poesia, como ela mesma escreve neste verso, à página 58: “não adianta escrever se não somos”. Esta redução do humano à impossibilidade de permanência, ver o humano pelo que não pode, atravessa todo o livro. “E dentro desta anáfora descobri que um / momento nunca é igual a outro. Como um poema. / Como eu, que nunca sou igual / a mim própria. Às vezes sou eu sem ser.” (p. 63) O humano é o que não é, a não ser em relâmpagos. Pior: o humano é o que já foi, e não há memória que nos salve. “Sou instante.” Mas não se segura o instante. Ninguém é o que é. O humano é aquele que vai sendo. A poeta, nos seus poemas, vive esta vertigem de nunca estar a ser, de sempre ter sido, e de estar arrastar a morte pelos dias até ao desaparecimento completo, até ao buraco negro do esquecimento. “E tudo é outro nome que não este.” (44), termina assim um dos poemas mais longos deste livro. O esquecimento é, podemo-lo dizer agora, apenas o outro lado de não se estar a ser, mas de sempre termos sido. É a parte angustiante do ter sido, o futuro do ter sido. Mas um futuro que não trará uma memória, não trará um passado. O nosso fim, o fim daquele que é ter sido, é um infinito buraco negro. Esta é a vertigem que percorre este livro de Cláudia R. Sampaio, propositadamente ad nauseam. Terminemos com um poema da autora (pp. 70-1): Sou instante. É assim que escrevo, com a alma enfiada nos dedos ou os dedos enfiados nos olhos miraculosamente sentada, respirando, sendo a faca cortada ao meio sendo a coluna um pouco torta perto de uma janela quase sempre aberta como se daí viesse tudo. Talvez a cabeça enfiada neste corpo seja um grito que vem de outra boca, ou de asfaltos, ou de peixes voadores. Talvez este desencontro inscrito em mapas venha de pássaros desajustados bicando planetas. Eu devia ser a água vertida em bebedouros imundos, tornando-os úteis devia ser a noite de sexo incendiada, em que o fôlego fosse altar devia ser do espaço onde me coubesse eu-só devia ser trocada por três côdeas ou por um livro do Cesariny ou por um pranto Qualquer coisa que me levasse daqui. Porque eu descalço-me antes de caminhar sobre mares. Com estes dois pezinhos aprendizes, assim me vou até ao fundo e no meio das convulsões e dos impulsos que me calçam, deverei existir Que a minha verdade me seja entregue por quem me entrar no infinito: ninguém Não duvido de que ficarei sozinha e há tanta beleza nisto que tremo toda enfiando um dedo na eternidade Podemos ser abandonados por todos mas seremos imortais por conta própria.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasDesejos de mais luz Santa Bárbara, 26 Fevereiro Antero de Quental por Almada Negreiros, retrato patente na exposição da Fundação Calouste Gulbenkian [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ontinuo sem perceber este preconceito em relação ao conto, que o desvaloriza como mero exercício literário entre a sublime poesia e o trabalhoso romance, que o arruma sem mais na prateleira das fracas audiências. Que género se aplicaria melhor ao ritmo de vida de hoje, ao nosso nível de literacia, ao tamanho do metropolitano de Lisboa? Ainda assim, há quem insista, por exemplo, em traduzir o cubano Virgilio Piñera, um dos grandes contistas latino-americanos, além de poeta, enfim, intelectual, a merecer leituras em cabal que inclui dramaturgia, romance, ensaio e percurso. Aliás, na lista de projectos, desesperante para apenas 24 horas em cada dia e uma conta bancária despida, tenho a edição do seu notabilíssimo La isla en peso, traduzido pelo Cabrita. Deixemos para depois o depois que acontecerá e concentremo-nos na certeza deste «O Grande Baro e Outras Histórias», com escolha e tradução de Rui Manuel Amaral, a partir de três volumes (de 1956, 1970 e no póstumo de 1987). O cubano cria ambientes claustrofóbicos, constrói exímias arquitecturas narrativas, esculpe íntimas personagens tendo o absurdo como pano de fundo, mas sustentando-se em uma cirúrgica atenção aos mecanismos do quotidiano. No beco sem saída dos dias, a escapatória pode estar no muro. A nenhum conto, maior ou menor, lhe falta a lógica interna de uma granada, com diálogos afiados, detalhes luxuriantes e olhar raiado de ironia. Leia-se pedaço d’«A Carne», que abre o cuidado volume (e rima com a contracapa). «Ali chegado, fez saber que cada pessoa deveria cortar da nádega esquerda dois bifes, em tudo semelhante a uma amostra de gesso que pendia de um reluzente arame. E declarou que deveriam ser dois bifes e não um, porque se ele próprio cortara da nádega esquerda um belo bife, convinha que a coisa avançasse a bom ritmo, isto é, que ninguém comesse um bife a menos. Assentes estes pontos, todos se dedicaram a cortar dois bifes das respectivas nádegas esquerdas. Era um espectáculo glorioso, mas que dispensa mais descrições». Detalhe de importância: assim começa a Snob, editora que absorve a livraria homónima de Guimarães, entretanto arrumada em caixas e tornada nómada pelo Duarte Pereira, com a cumplicidade da Rosa Azevedo. Procura, além de personalidade literária virada para raridades, estratégias outras de financiamento e circulação. Longa vida ao absurdo de editar! Santa Bárbara, 28 Fevereiro Perdido nas correrias, nem vi chegar a festa da carne. Não consegui a pausa, apenas o bálsamo de umas quantas páginas editadas por outros. A Anne, da Chandeigne, no meio da confusão da abertura da nova Librairie des éditeurs associés, teve tempo e gentileza para me enviar o encantatório álbum Le Chant du Marais, no qual Pascal Quignard vai de compor, com a ajuda ilustrativa de Gabriel Schemoul, uma perturbadora melodia sobre o desejo e a inveja. Um jovem cantor mata o seu concorrente sem com isso conseguir calar a voz que maravilhava a Paris do século XVI. Ainda parece ganhar com o sucedido, mas apenas o tempo necessário para que a armadilha se estenda em barroco esplendor. Schemoul põe a passar, em baixo contínuo, uma corrente de naturezas mortas, flores e raízes, restos, aqui um peixe, pequenos seres obreiros da decomposição, mariposas, ali um crânio. O fluxo passa por construções de carpintaria absurda, cruzamento de instrumento de tortura com exercício de geometria descritiva. Poderosa metáfora, a inveja feita máquina que se alimenta dos restos mortais do desejo. Nestas águas navega também «O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja», assinado pelo director do Hoje Macau. (Hesitei em escrever nestas páginas sobre ele, evitando mal-entendidos talvez morais. No espírito do diário, entendo dever obediência apenas aos apetites do dia, pelo que). Qual contador, são inúmeras as gavetas, portas, passagens e compartimentos secretos deste poderoso romance disfarçado de histórico, que fervilha de ideias. Pisando o chão do milenar confronto entre metades do mundo, possui como núcleo o projecto católico, centrado em Macau, de um arquivo de confissões destinado a facilitar o entendimento dos males do mundo. Dele se extrai caso exemplar, este de Vasques. Com ele andaremos por Coimbra, pelo desejo de partida, baloiçaremos em caravelas, instigaremos motins, conheceremos o exótico, o delírio, mas sobretudo o fel pestilento da inveja. Vasques rouba manuscrito de Camões e por ele se deixa devorar em crescendo. «Aquela obra era demasiado genial para lhe ser permitida a existência. Nós, os mortais, não aguentaríamos viver à sua sombra. Destruí-la seria um acto humanitário, uma bondade digna do grande amigo do Homem.» O achado desta narrativa, a pimenta desta viagem encontra-se na construção fantasmática de Camões, que nunca aparece estando omnipresente, magnífica e tóxica paisagem. Por instantes desfaz-se em volutas de perfume, quase sempre se ergue tornado arrasador. Causado sempre por aquele que em seu escravo se converteu. A inveja faz de nós escravos necrófagos. Biblioteca Pública, Ponta Delgada, 2 Março «Amem a noite os magros crapulosos,/ E os que sonham com virgens impossíveis,/E os que se inclinam, mudos e impassíveis,/ À borda dos abismos silenciosos…» O lançamento da Poesia Completa de Antero, na sua terra natal, aconteceu intenso por via do atentíssimo Luiz Fagundes Duarte, pelo olhar esclarecido de Leonor Sampaio, pelas leituras de Nelson Cabral, e as versões criadas por Ana Paula Andrade para a voz dos alunos do Conservatório Regional. Mas não consigo esquecer a carta. A Biblioteca, pela mão de Iva Matos e de Margarida Mota Oliveira, preparou pequena mostra de manuscritos e primeiras edições. E nela brilha com a luz do enigma uma simples missiva dirigida, como hoje, uma quinta-feira, «á noite», ao seu médico. «Peço-lhe o obséquio d’uma nova visita sua, amanhã, por qualquer hora que mais lhe convier, desde a uma da tarde até ao anoitecer. Sinto-me cada vez peor e desejaria ser novamente interrogado e examinado.» No dia seguinte, ao anoitecer, suicidava-se não longe daqui. Ajudará este volume a vencer esta morte? «Eu amarei a santa madrugada,/ E o meio-dia, em vida refervendo,/E a tarde rumorosa e repousada.//Viva e trabalhe em plena luz: depois,/Seja-me dado ainda ver, morrendo,/O claro sol, amigo dos heróis!» (de Mais Luz!)
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasCatarina Santiago Costa: “Tenho sempre um especial interesse pela poesia feminina” [dropcap]T[/dropcap]ens dois livros de poesia editados, ambos pela Douda Correria e ambos em 2016, Estufa e Tártaro (acerca do qual se escreveu recentemente aqui no Hoje Macau). Consideras que são livros diferentes, isto é, com estéticas diferentes, ou antes pelo contrário, há uma continuidade do primeiro livro no segundo? Estufa foi editado em Dezembro de 2015; Tártaro, em Junho de 2016. O que se passou foi que, aquando do lançamento da Estufa, já o Tártaro estava na gaveta da Douda Correria. O segundo não prolonga nem completa o primeiro. Estufa foi escrito sem saber que era livro, teve de ser cortado à catanada e depois muito cinzelado; o Tártaro nasceu, como o próprio nome indica, caoticamente. Talvez de tão impetuoso, parecia impossível de ser mexido e de uma deformidade fatal. Teve de dormir para ser cirurgicamente cortado e colado. A parceria com a Douda Correria é para continuar? Não sei o que o futuro trará mas sei que a Douda Correria dança um pas de deux com os seus autores. Editora livre que é, não dita sentenças nem espera (muito menos exige) exclusividade. Quase todos os autores da Douda relacionam-se com outras editoras. Mas confesso que gosto de ser convidada e foi isso que o Nuno Moura fez, convidou-me a enviar-lhe a Estufa. Quando chegou a vez do Tártaro, já me sentia confortável para o enviar por iniciativa própria. Há neste momento, em Portugal, muitas jovens mulheres a publicar poesia, e com qualidade. Sugeres alguma explicação para isso? Na minha opinião, o aumento consistente da educação e da emancipação das mulheres, que, como sabemos, são processos lentos e demoram décadas a produzir resultados palpáveis. O importante é que, mais ou menos jovens, não faltam poetas vivas para encher as estantes dos leitores: Regina Guimarães, Ana Luísa Amaral, Rosa Maria Martelo, Adília Lopes, Cláudia R. Sampaio, Raquel Nobre Guerra, Rosalina Marshall, Maria Sousa, Inês Dias, Rita Taborda Duarte, Ana Tecedeiro, Matilde Campilho e tantas, tantas mais. Quais as tuas afinidades electivas, na poesia? Tenho sempre um especial interesse pela poesia feminina, especialmente a de americanas do século XX – Sylvia Plath, Anne Sexton, Sharon Olds… E, apesar de ser do século XIX, também tenho uma fixação pela Emily Dickinson, que tem poemas de uma mística sensual que me cativam – há ali um contraste que gera um equilíbrio estranho. A Emily Dickison é uma poeta extraordinária. E, para além da mística sensual, com a que te identificas, há também uma solidão imensa naquelas páginas. Sim, era uma monja confinada ao domicílio, que chegou a frequentar um seminário, e que convoca uma sensualidade e um erotismo místicos que verte na sua poesia. O resultado é uma contenção explosiva. Atesta-o, por exemplo, este poema (aqui, na tradução do Jorge de Sena): “Morri pela Beleza – mas mal eu / Na tumba me acomodara, / Um que pela Verdade então morrera / A meu lado se deitava. // De manso perguntou por quem tombara… / – Pela Beleza – disse eu. /– A mim foi a Verdade. É a mesma Coisa. / Somos Irmãos – respondeu. // E quais na Noite os que se encontram falam – / De Quarto a Quarto a gente conversou – / Até que o Musgo veio aos nossos lábios – / E os nossos nomes – tapou.” Estás a escrever um novo livro? Penso que sim. Mas ainda não tenho a certeza. O que te leva a não ter a certeza? Tenho escrito em torno de um tema que me tomou – não o determinei mas constato que estou cativa daquele lugar. Mas só digo que escrevi um livro quando não há ponto de retorno, quando já ali está, mesmo que venha a ser sujeito a alterações. Ainda estou naquele estágio em que posso implodir tudo. Para além da poesia, escreves prosa, ficção ou ensaio? Por minha iniciativa, escrevo sempre poesia. Mas já escrevi notícias, fiz entrevistas, press releases, sempre em trabalho. Fui convidada a escrever um texto dramático infanto-juvenil em conjunto com a Teresa Coutinho (actriz) e o Pedro Moura (guitarrista) para a Trupe do Bichos. Estou a gostar imenso da experiência. Mas não tenho nenhum projecto em prosa no horizonte.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasArquitectura e poética [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Maputo existe um hotel, o Taj Mahal, onde os mictórios do bar se localizam exactamente por trás do balcão da recepção. E a porta de tal fétido lugar tem de há muito os gonzos enferrujados pelo que a primeira visão que algum hóspede pode ter, quando faz o registo de entrada ou pede a chave do quarto, será a de uma morcela que urina. Será igualmente um modo insólito para se entrar no teor desta crónica que pretende dar conta de uma feliz exposição de arquitectura que inaugurou em Maputo, mas através do bizarro exemplo talvez se entenda a oportunidade de uma verdadeira lição de arquitectura numa terra que foi perdendo qualquer noção do que seja um plano urbanístico, a ordenação do território, o respeito pelos planos directores das cidades ou a adequação arquitectónica. A exposição é de José Forjaz, o arquitecto decano no país, que aos 84 anos, decidiu mostrar 40 projectos não edificados, no Instituto Camões. Numa nova deriva prévia, vou contar o que me aconteceu na ida à casa de uma amiga. Ela não estava e fiquei na sala à espera dela, a espreitar a estante. E então aí vi um livro que se chamava “How to think like Leonardo da Vinci”. Fiquei estarrecido. Eis que nos impingem métodos para chegar instantaneamente às vistas largas do Leonardo sem termos de passar pelo esforço de subir à montanha, aplainando de imediato o terreno. O que acontece é que o vale altíssimo a que ele chegou e a percepção que aí ganhou era indissociável do processo da subida, das dificuldades e dos conseguimentos na escalada e nenhum livro de 300 páginas, que se lêem em oito horas, supre os quarenta anos da subida, as vicissitudes, os méritos e os sentimentos frustres que tanto acompanharam o Leonardo no seu percurso. E só aí, na sua provação, pôde converter o estudo das topologias do terreno que tanto o cansaram em vantagens e conhecimento. Ora a lição que se tira destes projectos no papel de José Forjaz, considerado internacionalmente como um grandes arquitectos de África, é o seu flagrante aspecto totalizador. A relação com a arquitectura é aqui pensada de um modo total – fazendo convergir no esquisso todos os aspectos da relação do homem com o ambiente e a paisagem, o corpo, o espaço físico, material, a memória tangível ou intangível dos lugares, o solo, a meteorologia, a antropologia, a economia, a energia, a estética, a funcionalidade, a geomancia, etc., etc. Ou seja, só a idade faz o arquitecto – não há recurso à mentira. Vamos agora ao aspecto poético. Não se confunda poético com estético, que pode ser a sua declinação em estereotipo, em cânone. O que em rigor é bom como aquisição vernacular imediata mas é sempre mau quando uma conquista expressiva se torna hábito. O poético não é um mero jogo das formas, é uma relação mais profunda e exige, entre outras, duas características basilares. Uma delas, assenta naquilo que a arquitectura partilha com as outras artes, o ritmo. O ritmo está para a arquitectura como as estrofes, as rimas e as aliterações estão para o poema. Mas também acontece que de uma forma plástica a arquitectura nos traduza, por vezes, acordes musicais. Um poeta espanhol, o José Bergamin chamava à tourada a “música calada”. Não está mal visto, mas podemos deslocar esta definição, se calhar até com mais propriedade, para certas obras de arquitectura. Outro atributo da poética é especificamente arquitectónica e define-se pela empatia revelada entre o projecto e o lugar, numa espécie de co-nascimento retroactivo. Bom, o sentido de uma paisagem, o que estrutura o seu campo visual, não resulta de uma análise intelectual dos elementos que a compõem mas de uma apreensão sintética das relações que os unem. É como se a paisagem ajudasse o seu espaço construído a encontrar a sua verdade perceptiva. O José Forjaz que num seu texto fala sobre as relações entre a arquitectura e a medicina não poderia deixar de ser sensível a este aspecto. A poética, nestes projectos, encontra-se no encontro entre a experiência sensível de estar diante da paisagem e de se tornar evidente que o espaço construído fala com ela, ou melhor que ele diz o que a paisagem queria dizer de si mesma. Este sentido inscrito no sensível é mais do que uma troca, ao mesmo tempo material e cultural, que se estabelece entre o homem e o seu meio, é entender o mundo como uma ressonância em que todos os elementos interagem para dar mais do que a soma do todo. Isto até pode acontecer de maneiras muitos diferentes. Pode dar-se por “substracção”, como na Casa de Chá, um projecto para o Japão, que ilustra a crónica, em que a transparência se funde no espaço em vez de lhe impor intrusamente um volume, ou noutro exemplo, este construído, no caso do Memorial de Mbuzini, erguido no lugar onde se deu o acidente de avião que vitimou Samora Machel, em que um dos elementos estruturantes para a idealização do memorial foi o vento, tão presente na colina. O que deve ter sido compreendido por muito poucos. Mas é por isso que uns são dotados de poética e outros não. O mais vulgar exemplo desta espécie de simbiose ou de sentimento-paisagem é a célebre Casa na Cascata do Lloyd Wright. Aquela casa enriquece a paisagem, era como se a cascata tivesse corpo mas lhe faltasse algo, houve a partir dela um co-nascimento, algo mais do que uma simples correcção sintáctica. A cascata e a vivenda mobilizam um traço de união entre o espaço e o espírito. È o mesmo que eu encontro por exemplo no projecto do Museu de Arte Tomihiro, no Japão, um museu destinado a duas artes quase intangíveis, a aguarela e a poesia (cf. em Caliban.pt) Aqui só lamento que a tecnologia não permitisse ainda ao José Forjaz ter posto o museu a levitar sobre a encosta, sendo aliás ao que o projecto propende.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasDeus é o nada a olhar-se ao espelho [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]itornelos, Abysmo, 2014, é o primeiro e único livro publicado pela poeta Joana Emídio Marques, até à data. O livro é composto de três partes: “Ritornelos”, com 52 poemas; “Cânticos da Floresta”, com 14 poemas; e “Litanias”, com 8 poemas. E entre cada poema da primeira parte do livro encontramos as belas ilustrações de Bárbara Fonte (nas duas partes finais do livro, as ilustrações aparecem no início e não entre poemas). Uma vez mais, o título do livro dá-nos alguma indicação fenomenológica acerca daquilo que nos mostra. Ritornelos é um termo musical (dois pontos seguido de uma barra vertical), que indica a repetição de uma parte da partitura, isto é, a repetição da sua execução musical. Pode também tratar-se da indicação de um refrão. Aqui, e partindo da sua função musical, a palavra remete para uma ideia próxima da do devir e não da repetição, como se se tratasse da vida como uma repetição infinita, mas sempre diferente. Em suma, um voltar atrás, não da mesma maneira – isso seria um eterno retorno – mas sempre de modo diferente. Múltiplos modos diferentes e nenhum melhor do que o anterior, pois trata-se de um devir sombrio, como se o infinito ou a repetição do infinito não passasse do eco de uma gargalhada de Deus: “(…) tudo isto / que se repete repetindo-se / eco da gargalhada de Deus.” (p. 51) O devir aparece-nos logo nos primeiros versos: “Acordando infinitamente / para o que há-de vir / (…)” Embora seja ao ritornelo 25, da primeira parte, página 57, que o devir se assume em toda a sua pujança: O que se torna tempo não poderás somá-lo é abissal e infinito esperar que nasça o princípio no interior do que só vês de fora. Não, não podes somá-lo entre os dedos idênticos nem à verdade nem à carne, o que se torna tempo é este exacto instante que se cumpriu se perdeu. O termo devir aparecia já à página 47: “como se soubesses o devir do tempo / (…)”. Não há, contudo, ou parece não haver um sentido positivo neste devir, em Joana Emídio Marques. O devir é negro, sombrio, onde a morte mesma não é abrigo. Escreve à página 29: “O Ser não devolve o não Ser / o símbolo não devolve o sentido.” Ou ainda nos versos finas do poema à página 63: “Um homem cai / num buraco aberto pelo tempo / mergulha / na láctea corrente de lírios e desaparece. / Depois outro e outro ainda / até não haver qualquer rumor / que não seja o da Babilónia / bebendo sofregamente / na corrente fluvial os lírios de leite.” Esta presente consciência da perda, contínua consciência de uma falta de sentido, ou pelo menos de uma qualquer possibilidade de alcançá-lo, vê-lo-emos melhor no final deste texto. Por ora, mostremos como no humano, a única possibilidade de fuga, que seria a invenção do outro, a transformação do outro numa amplificação do eu, acaba sempre por se virar contra nós, porque é sempre nas palavras e na necessidade que elas têm de sentido que o outro vive, como escreve a poeta no belo ritornelo 39: Eras agora voltas ao fogo à tarde de experimentar estar entre os reflexos. Eras agora a voz vem desmembrar o passado em presente. Eras sem acidente que evocasse o princípio. Eras, quando eu era eu te designava te existia. Este poderoso poema, imerso numa ontologia do devir, em que tornar-se é o único lugar disponível, repete a palavra “eras”, como expressão fundamental do humano. “Eras”, segunda pessoa do pretérito imperfeito do verbo ser, sugere a ideia de nevoeiro, a ideia de estarmos imersos num ambiente em que não vemos o que está a acontecer, ambiente próprio da memória e da literatura – era uma vez –, que pressupõe um nunca ter sido. Este ver, em cada um de nós, simultaneamente uma memória de outro e um nunca ter sido, revela-nos antes de mais como um ser de palavra, um ser de continua transformação através da palavra, que é o modo como a consciência tem acesso ao que não é a própria consciência, um reflexo de si mesma, que é já um outro. Dito de outro modo: “Eras / agora voltas ao fogo / à tarde de experimentar estar entre os reflexos”; cada um de nós é para nós mesmos um reflexo derivado de se experimentar, isto é, um reflexo derivado dos outros. “Eras” é uma expressão reflexa de nós mesmos, aqui e agora e no tempo, que também ele só existe numa permanente mudança, “o que se torna tempo / é este exacto instante / que se cumpriu / se perdeu.” (25, p. 57) Por isso, Beirute – no ritornelo 27 – somos todos nós e todos os tempos do mundo. Beirute será ainda amanhã, quando amanhã talvez nem exista; Beirute será ainda no início dos tempos, quando este talvez não tenha sequer existido. “Beirute / e já não há carne que possa chamar um nome / (…) // E já não há carne / a que se possa chamar um nome. / Só Deus atravessando uma palavra, / carregando-a nos braços / devolvendo-a ao sono, anuncia: / Beirute.” A capital da Síria, para além do que hoje é, para além do que foi ao longo dos tempos, assume também aqui o símbolo de não sentido do mundo, de não sentido do humano. Estamos continuamente entre, a caminho de nos tornarmos nós mesmos – em sentido nietzschiano – e de nos tornarmos nada; um nada que já fomos e que tornaremos a ser. Mas também encontramos a identidade entre devir e existência na segunda parte do livro, em “Cânticos da Floresta”. À página 131, cântico 3, Joana Emídio Marques escreve: “Já não sou a minha carne / e o carrossel gira, / gira, gira, gira, / passa por ti e não pára. / Já não sou a tua carne / és Outra, és Tu.” No fundo, a vida não pode ser vivida a não ser que seja uma criação. Melhor seria dizer, como se adivinha que a poeta diga, a vida só pode ser vivida se imaginada, como quem agora lança uma linha ao mar e imagina um peixe no futuro. Mas, para além desta sombra de Nietzsche, evidentemente um Nietzsche apropriado pela poeta, ou até mesmo um Nietzsche à revelia da poeta, estende-se também uma solidão enorme, onde o início do cântico 4, à página 133, o enuncia de modo belo e aterrador: “Aqui / na casa das cadeiras vazias / (…)”. Este aqui somos nós na beira da página, e sempre na beira da vida. Mas esta solidão, que é reflexo da impossibilidade de reconciliação com o espelho, com os outros, connosco – e qual nós, aquele que estamos para ser, aquele que fomos ou aquele que vamos sendo? – já se encontrava desde o início do livro, em todo o primeiro poema, que começa “Acordando infinitamente / para o que há-de vir / as horas caminham no sentido contrario ao dos pássaros” (e poucos livros terão um início tão próximo da perfeição), e o poema termina “E agora onde me vão eles enterrar?” Esta impossibilidade de reconciliação, seja com o que for ou com quem for, ancora num imenso solipsismo, fazendo deste livro, já longe de Nietzsche, um devir negro, um devir sombrio. Este solipsismo, encontra-se enunciado de modo mais metafísico ao poema 3 da primeira parte do livro: “Entre os possíveis e as coisas / não ser nada, / nem sequer inclassificável.” Por isso, podemo-lo dizer agora, a presença contínua de Deus ao longo do livro nos aparece mais como nada do que como Todo. Deus é a solidão perfeita, redonda, sem mácula, sem passado, sem futuro, sem lembrança ao rés da pele, sem desejo. Quando se escreve Deus, neste livro, escreve-se nada e solidão. Deus surge no livro apenas ao poema 16, com os seguintes versos: “No fim da penumbra / Deus chamou-te a olhar / três noivas-cilindro / erguendo sobre o mundo seus corpos brancos / seus corpos-silo / prostrado na solidão dos milénios.” Aparece depois várias vezes ao longo do livro e, quando não aparece literalmente, aparece em metonímias, sinédoques, antonomásias. Mas sempre significando o misterioso absoluto e infinito nada. Deus é o nada que se olha no espelho. O silêncio a parte musical do nada. Porque a solidão, que é o nada fazendo-se humano, tem também o seu lado musical, o silêncio, e que percorre as páginas deste livro, como não poderia deixar de ser, sendo ele tão musical, desde o título ao último verso. Recuperemos agora aquilo que mostrámos atrás acerca da consciência de uma falta de sentido, ou pelo menos de uma qualquer possibilidade de alcançá-lo. Este livro de Joana Emídio Marques, uma espécie de itinerário de Deus a Deus (que é o nada a olhar-se ao espelho), começa com os versos já citados, “Acordando infinitamente / para o que há-de vir”, e termina com este “Se acordar agora adormecerei?”, perfazendo formalmente um percurso no sonho. Toda a existência é sonho, ou parece ser um sonho, algo que não é nem ser, nem não-ser. Ritornelos mostra-nos que nunca chegaremos a saber se existimos ou se sonhamos, se estamos vivos a caminho da morte ou mortos a caminho da vida. O devir, o nada, a solidão… o que é este mundo? O que é eu? Por quê a vida? “ – Eu Sou, / gritei depois de morta.” (p. 107) Terminamos com um poema de Joana Emídio Marques, o cântico 8, à página 139: Não sou eu que vivo, mas a flor que dando-se às eternidades pretéritas respira no que desconhece a beleza inaugural do dia. Já não sou eu que vivo mas o tempo estranhado pelo sem-tempo em madrugadas tão plenas que tecem caminhos. Um dia, quando voltar da morte e me detiver em frente à janela que me puxa par adentro do segredo e do mistério ter-te-ei despido. Já não sou eu que vivo e se gritar afogo-me no meu próprio eco neste campo de escombros átomos explodindo nas carnes das casas. Já não sou eu que vivo mas o grito o milagre nos corredores da noite nas mãos dadas a ninguém. Entranhas de Deus espalhadas sobre a tua ausência.
Paulo José Miranda Em modo de perguntarMaria João Cantinho: “Não quero ser nada” [dropcap]T[/dropcap]ens uma obra dividida pelo ensaio e pela poesia, e ambas reconhecidas. Gostava que falasses acerca do modo como entendes cada uma delas, no teu modo de escrita, e também em relação aos outros, ou seja como vês essas escritas para além da tua. Creio que sou mais reconhecida no ensaio do que na poesia, pois tenho publicado poesia em editoras discretas. Hoje, a ideia de fronteira, relativamente aos géneros, está mais esbatida e temos uma tradição fortíssima de poetas que são ensaístas ou vice-versa, o que mostra que a escrita não pode ser tomada de uma forma monolítica. A concentração da poesia (e a sua exigência de rigor e de contenção) é compatível com a respiração do ensaio. Eu diria que são passagens que se abrem (ou se fecham) e que a poesia bebe nas margens do não-dito, do não-explicável, do que não é racionalizável, do imediato, da pulsão, ao passo que o ensaio procura a claridade e a explicação ou, pelo menos, a sua tentativa. Temos uma tradição forte, na poesia contemporânea portuguesa, de autores que são também ensaístas, estou a pensar no Luís Quintais, mais pertencente à nossa geração, mas também em poetas como António Cabrita, Luís Miguel Nava (cuja precoce morte não nos deixou senão um conjunto breve de ensaios) Manuel Gusmão, Helder Macedo, o jovem poeta Ricardo Gil Soeiro (a meu ver o caso mais consistente desse paralelismo nos escritores mais jovens) e Gólgona Anghel, já sem falar do genial Jorge de Sena, Joaquim Manuel Magalhães, entre outros. Mas parece haver ainda um certo preconceito, de ambos os lados, em relação a tal. O que une o ensaio e a poesia, neste caso concreto, é essa capacidade de leitura e de interpretação das potencialidades da linguagem, o conhecimento profundo da própria tradição e dos autores. De uma forma geral, os ensaístas são grandes leitores e isso faz muita diferença (a meu ver) na poesia. Não entram nela de forma ingénua e desavisada. Devo dizer-te, no entanto, que a poesia portuguesa, um pouco contrariamente ao que se diz, está muito viçosa. Não quer dizer que seja tudo igualmente bom e o tempo há-de acabar por separar as águas, mas entre tanta coisa que se publica, neste universo de pequenas editoras, como a Douda Correria, a Língua Morta, a Averno, a Mariposa Azual e muitas outras editoras pelo país, cuja distribuição nos dificulta o acesso (estou a pensar nas editoras do Porto e de Coimbra), há muita coisa de qualidade. Em movência, proveniente de vários filões. Muitos poetas jovens que estão a fazer um excelente trabalho e é preciso esperar a evolução deles para avaliar a qualidade. As tertúlias, o trabalho militante de lugares que já são hoje de «culto», como o Irreal, o Povo, terças-feiras clandestinas, etc., são notáveis pela esperança que vieram criar para a jovem poesia portuguesa e fomentam o diálogo e o espaço propício à criação. Respeito muito quem trabalha assim, de forma militante, à margem das «facilidades» das grandes editoras, que sempre tiveram um trabalho mais facilitado. A poesia é hoje, mais do que nunca, um espaço de resistência, de contra-poder. E isso é profundamente político. Outra das tuas actividades é a de coordenadora ou directora de um novo projecto cultural online chamado Caliban. Como surgiu essa ideia e como está a correr? Não gosto muito de escarafunchar em histórias tristes, tanto mais que a Caliban é a história muito feliz do que se faz com finais tristes. Não gosto do termo directora, é demasiado formal para o meu gosto, prefiro o de coordenadora, é mais feliz e mais justo. O nome partiu desse engenhoso poeta que ambos conhecemos, o António Cabrita, mas houve muita gente amiga que se associou imediatamente ao projecto, com muito entusiasmo, também do lado brasileiro, amigos como Marcia Tiburi, Rubens Casara, Bartira Fortes, Renato Rezende. Os outros foram chegando, para utilizar uma expressão brasileira. Energia positiva gera mais energia positiva. A Caliban é lida em Portugal e no Brasil. Creio haver ainda alguma suspeita num certo meio intelectual português, que torce o nariz ao online, mas que nos lê «às escondidas», o que me diverte. É bom sinal. Todos os dias se somam novos seguidores e num universo tão pequeno como é o da literatura (não é um jornal genérico), com conteúdos ligados à arte e à literatura, à poesia, crónica, etc., não é de esperar que haja uma adesão maciça. Mas somos lidos nas comunidades portuguesas e recebo respostas muito positivas de quem mora longe e não tem acesso ao que se vai fazendo por cá. Creio que teremos de abolir este preconceito contra a revista electrónica (que o Brasil já não tem, por exemplo, ainda que ame o suporte de papel) para vencermos a resistência do leitor bem-pensante. As redes sociais, por seu lado, ao facilitarem a divulgação do projecto, têm sido óptimas para a sua divulgação, pois até agora, ao fim de seis meses, só uma rádio se interessou por nós. Mas estamos de saúde, é um projecto democrático e que pretende, antes de mais, dar voz e dar a conhecer quem não passa no crivo dos jornais e das revistas literárias, mas que, nem por isso, tem menos qualidade. Temos colaboradores (que têm tanta autonomia como eu ou o Cabrita) portugueses e brasileiros (e deste lado é preciso dizer que contamos com ensaístas e poetas extraordinários, como Alberto Pucheu, Renato Rezende, Luciana Brandão, Ney Ferraz Paiva, Vicente Franz Cecim, Marcia Tiburi, Rubens Casara, Marcio Seligmann-Silva, Danielle Magalhães, Yasmin Nigri, Bia Dias, etc.) que tão generosamente se dispõem a colaborar. É o tipo de projecto que fundas e deixas crescer livremente, espero que em breve possamos conseguir, de alguma forma, financiar, se houver interesse. Tens um doutoramento em filosofia. Como entendes essa relação, em ti, entre a filosofia e a poesia? É uma relação de profunda inquietação. Não que acorde angustiada a pensar em problemas existenciais todos os dias (os meus são mais prosaicos como pagar as contas, etc.), mas a filosofia esconde-se nos interstícios de tudo o que fazemos, uma espécie de animal intruso e invisível, que reclama o alimento, mas que também nos indica algo a partir dela, dessa necessidade de compreender, dessa paixão autofágica, como sabemos. Faço parte de uma linhagem poética que consideraria metafísica, não tenho nada a ver com o que se faz (e que eu respeito) hoje, a poesia do quotidiano, sou sempre movida pelos meus autores, muito atraída pela uma tradição mística, mas sem me deixar vencer por ela, nesse sentido de querer ser uma mística. Eu não quero ser nada, deixo que as palavras me guiem, o meu prazer é o da descoberta, esse trabalho da contenção da linguagem e da sua força, um trabalho de homenagem permanente, de dívida para com os meus autores, os meus temas. Não sei se o doutoramento tem aqui algum peso, pois eu nunca penso nisso nem quero que a erudição transpareça em exercícios fúteis de estilo, isso não me interessa para nada. Eu diria que a poesia me mantém à tona dessa inquietação filosófica. Sem a escrita acho que não vivia bem, não sei sequer se sobreviveria, nunca me aconteceu estar longe dela, desde que me lembro. Que projectos para este ano? Para já, uma tradução, que penso acabar este mês. Mas tenho um romance, que sairá em Maio, pela editora Deriva. Depois, vou atirar-me a um livro de ensaio, que conto publicar na Documenta/Sistema Solar. Só estou à espera de ter tempo para me consagrar a ele. E o resto vai acontecendo, é o trabalho académico, os textos ensaísticos que vou publicando em revistas, as conferências planeadas, um congresso internacional que estou a co-organizar, sobre memória e arquivo, com os meus ilustres colegas da Nova (Comunicação e História de Arte) e da Clássica (Centro de Filosofia). E a Caliban.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA cara do que não dura [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é porque Deus não existe, que o humano deixa de pensar. E entenda-se pensar em sentido kantiano, em sentido de um para além do conhecimento, um para além do que nos é possível conhecer. Assim, o verso “que vida tem afinal a morte” (p. 29), é um verso fincado num assombro para além do conhecimento, fincado nas inóspitas terras da metafísica. Esta breve introdução serve de pretexto para falarmos de um livro do poeta Miguel Manso, Supremo 16/70, Artefacto/Sr. Teste, 2013. À imagem de um livro acerca do qual já aqui foi lido, Fera Oculta, de Vasco Gato, também este é um livro escrito (embora este seja anterior ao de Vasco Gato) sob a égide de uma pessoa. No caso do poeta de Fera Oculta era o filho do poeta, que estava para nascer; neste caso de Supremo 16/70 é o avô do poeta, que acabara de morrer, “agora que ardeste / e nos choveu o cinzento do que foste” (p. 12). Parafraseando José Régio, só a morte nos guia e mais ninguém. E este é um livro que nasce desta consciência, e do confronto entre a acção e a memória, entre a alegria do amparo e a tristeza da perda. Acerca da alegria, em forma de memória, leia-se: XIII julgava ser isso a alegria: ver-te debaixo da parreira varrendo a farinha dos sapatos deixavas o ouro do teu ofício sobre a mesa abeirávamo-nos do almoço E leia-se um poema onde a perda se faz sentir, como uma lâmina: X herdei de ti a máquina de barbear (eu que não faço a barba) para enfrentar o terror de limpar os teus pelinhos póstumos escanhoei o rosto e durante semanas aleijei-o com o teu cheiro Toda a escrita, na sua essência, são cartas escritas a nenhures para nós mesmos, e este livro fá-lo exemplarmente. Mas fá-lo, não centrado (ou somente centrado) em si, na dor da perda, mas também na dor daquele que estava à beira de ser perda; centrado também na dor do avô. Muitos são os versos que captam ou tentam captar a dor do fim, a dor de estar a acabar-se tudo. Há uma dupla dor neste livro: a do narrador e a do narrado. O primeiro sente a vida através da perda, e mostra isso em inúmeros versos, o segundo sente (deixa-se sentir na pena do neto) a vida “tremendo de velhice” (p. 20) Neste livro precioso, Miguel Manso traça a vida do avô desde o seu abandono à velhice, “contemplas pretéritos a essa luz” (p. 20), passando pelo corpo sem vida, a aguardar o que se faça dele, “estás tão despido como no começo” (p. 33), ao momento em que se torna cinza “e nos choveu o cinzento que foste” (p. 12), até que finalmente se torna verso, “e o que nesse canto me ofereceste devolvo / pior no recanto tardio de uns versos” (p. 16). Tal como o poeta escreve no poema XII, “(…) como habitar este corpo / suspenso entre limites” (p. 26), trata-se também de um livro, como já havíamos visto na introdução desta leitura, que coloca as perguntas metafísicas da existência, para além de todos os detalhes e mentiras ou factos biográficos. Miguel Manso faz do avô, assim como mais tarde Vasco Gato irá fazer com o filho por nascer, um ser para sempre. Quando se lê um verso, que está entre aspas, sugerindo uma fala daquele que está a ser narrado ‘“já cá não estou a fazer nada’” (p. 13), sentimo-lo como sendo uma fala universal. Na verdade, é uma fala universal e impessoal, de todos e de ninguém, embora no poema seja a única fala pessoal, e que em algum momento feriu mais do que agora ao ler nos fere. Num poema os versos não são apenas palavras. O poema usa as palavras como a acupunctura usa as agulhas, como instrumentos para atacar os nervos. Entre os nervos e a intenção há uma agulha, um verso. O verso entrepõe-se entre o conhecimento e o pensar, entre aquilo que se pode saber, através da experiência, e aquilo que não se pode evitar pensar, ou porque nos angustia ou simplesmente porque nos rouba o ponto de vista usual do dia a dia. É o caso da morte de alguém próximo, é o caso de uma descoberta para nada, como entender que se quer dizer e não haver palavras com que dizer. Escreve o poeta, no seu último poema, o único poema vestido de prosa: “(…) Não entender, estender-se, no vazio. Ainda / tratamos por aqui de coisas imaginadas, imagináveis. / Dentro delas ou fora, dentro-fora, há inimaginações / insuportáveis, alargando em complexidade e alheias / (como assim?) à linguagem. (…)” (p. 39) O escândalo entre haver o que sente e não haver como dizê-lo, o escândalo de um verso iluminar este imaginado inimaginável, o escândalo da proximidade entre a morte (essa desconhecida) e a linguagem (essa estranha). E “Como assim?”, pergunta que revela o escândalo de não se saber o que se está a passar, fica ainda mais acesa entre parêntesis, como que indicando que o que é importante em nossas vidas é sempre entre parêntesis. É entre parêntesis que a vida se passa. É no parêntesis do quotidiano que as perguntas fundamentais são feitas. Leia-se o poema III, à página 15: paraste numa rua decaída como o Sol o abatimento da bengala tornando devagar a caminho de casa única cedência da alegria o perfume das laranjas o complô acriançado dos pássaros o branco fabuloso desses muros – se afastasses da ideia o aperto que arquitectam – alguém te chamou, olhaste saudou-te com um entusiasmo forçado e no fim trocou o teu nome pelo nome do teu pai (eu só te conheci a mãe) não corrigiste esse nem nenhum outro desacerto (o mais premente e perturbador de todos visto assim não tem cura) e seguiste à sombra do teu morto ainda mais calado O poema III mostra-nos aquilo que dissemos anteriormente, mas de um modo magistral, de um modo que só a grande poesia consegue, nesse seu modo particular de viver entre o dizer e o saber que é impossível fazê-lo, nesse modo que não é apenas o de um avô, mas o de todo aquele que está condenado a viver o seu melhor entre parêntesis, o modo de seguir à sombra do nosso morto, ainda mais calado. De que adianta corrigir o que quer que seja, se é a vida ela mesma que fará todas as correcções necessárias, principalmente as que não têm cura? Um dos versos que o poeta escreveu, logo no primeiro poema do livro – “e tem a cara do que não dura” (p. 12) – responde a esta e a todas as questões do humano, porque a finitude dói mais do que a ausência de Deus. Terminemos esta leitura com esta cara, a cara do que não dura, que não é só um humano na sua vida, mas também um humano na sua vida a ver e a sofre com outro, com um outro poema de Miguel Manso, à página 32, onde o poeta faz da dor do outro a nossa dor, mostrando claramente que esta não é menos que universal. XVIII o instante em que desligas a tv é tarde e todo o desgosto mal contigo tomba turvado nos teus braços e secaram-te as lágrimas.
Andreia Sofia Silva Entrevista EventosManuel Afonso Costa: “Uma parte da minha alma é oriental” “Memórias da Casa da China e de Outras Visitas” é o mais recente livro de poesia de Manuel Afonso Costa, lançado ontem pela editora portuguesa Assírio e Alvim. A obra não representa apenas um regresso do poeta às publicações, ao fim de dez anos. É também uma forma de assumir que o Oriente, a China, lhe entrou em casa, que é como quem diz, pela alma adentro [dropcap]Q[/dropcap]uando é que começou a pensar este livro, a escrevê-lo? Esse livro surge numa linha de continuidade, de uma poética que lhe é anterior. Não há um momento inaugural em que tenha decidido escrever poemas que obedecem a um determinado critério ou objectivo. Não há um thelos, no sentido de finalidade, de algo que esteja definido à priori. Isso acontece, talvez, no romance, em que a pessoa se senta para contar uma história. Para começar algo do zero. Sim. Com a poesia, a pessoa desde que começa a escrever, a determinada altura da vida, não deixa de o fazer e acaba por ir reunindo poemas suficientes para publicar. Não tem de existir uma ruptura, um ponto final e depois o começar de outra coisa. Dentro dessa linha de continuidade, tem de haver o aparecimento progressivo de alguma coisa diferente e nova. Mas deixe-me referir que vai haver um encontro de literatura e filosofia, em Macau e em Lisboa, promovido pelo Instituto Internacional de Macau, onde vão falar da minha poesia, com o tema “O aparecer da China na poesia de Manuel Afonso Costa”. Portanto há uma realidade que aparece, que é a China, sendo que não poderia aparecer apenas a partir dos livros. Aparece também a partir da sua vivência com a sociedade. Exacto. Já conhecia a China, teoricamente, já tinha visto gravuras, já tinha lido livros. Já tinha tido acesso à poesia chinesa, há muitos anos, mas nada tem que ver com o choque com a realidade. Este livro fala das memórias da casa na China. Claro que não é a casa onde eu vivi, é uma casa simbólica, é o lugar China, no sentido lato, onde vivi e tive o meu espaço próprio. A descrição do seu livro fala precisamente da casa enquanto símbolo. Metaforicamente falando, que tipo de casa é esta? É uma casa que alberga a sociedade chinesa? Em concreto, não. Diria que a minha poesia é muito fenomenológica, está sempre muito ligada às vivências. Foi muito importante vir para o Oriente e entrar em contacto com uma realidade. Esta desafia-nos. Existe a intencionalidade da nossa consciência, mas existe também a intencionalidade quase provocatória da realidade sobre nós. A realidade estimula-nos a reagir. Viver aqui, numa sociedade com um grafismo e arquitectura diferentes… Mas não me refiro só a Macau, embora seja o elemento predominante, porque foi o sítio onde passei os meus últimos anos de Oriente. Fui muitas vezes a Hong Kong nos anos 90 e vivi quase um ano em Zhuhai. Então é todo o conjunto que me estimula. Quando me refiro à casa, é uma casa simbólica. Não é essa casa, com a sua arquitectura própria. Ela é concreta porque está plantada num lugar diferente, um lugar cuja entourage [o que está à volta] é diferente. Refiro-me a uma parte do mundo onde vivi grande parte da minha vida, e a nossa vida é toda feita de casa em casa. De vivência em vivência. Vamos deixando nessas casas um bocado de nós enquanto lá vivemos. Ficam ligadas a elas todas as memórias. É em casa que escrevemos (eu pelo menos), amamos, cozinhamos, dormimos. A casa desempenha um papel extraordinariamente rico nas nossas memórias. A casa é opaca, está de alguma maneira fechada, uns afectos abrem-se, outros nem tanto. Ao mesmo tempo, a realidade exterior entra pelas paredes da casa. Se não, viveria aqui como se estivesse a viver em Lisboa ou em Paris. Estamos permanentemente em contacto com uma língua diferente e um grafismo diferente. Uma das coisas que mais me impressionou foi andar meio perdido por certas zonas de Macau, onde são ostensivos e quase histéricos os painéis publicitários mostrados ao exterior. Isso dá uma certa geometria estética, colorida, de luz e caracteres, algo extraordinariamente intenso. É essa realidade que entra em contacto com a casa, que entra dentro de nós. E quando escrevemos ou pintamos, enquanto artistas, damos conta dessa transmigração das realidades. Disse que este livro é o resultado do que tem vindo a publicar até aqui. A última obra intitula-se “Caligrafia Imperial e Dias Duvidosos”. Passou de uma referência à caligrafia, um elemento muito característico da cultura chinesa, para essa vivência da China. De que forma é que estas obras se interligam? Têm um ponto em comum. O livro “Caligrafia Imperial e Dias Duvidosos” tem cerca de 17 poemas que publiquei numa revista de cultura, sendo uma réplica literária minha do quadro dos tributários que está no museu em Taipé, uma obra de um imperador chinês do século XVIII. É uma obra chinesa, megalómana, e sensibilizou-me muito, tal como a Cidade Proibida e as Muralhas da China. Depois dou-lhe o nome de caligrafia [ao livro] porque um dos elementos do quadro dos tributários é a caligrafia: há uma gravura e há um texto. Com isso o imperador captou toda a realidade, que não conseguiu captar com os sentidos. Foi uma das primeiras formas de ligação à cultura e sociedade chinesa, e à grandeza da poesia e cultura chinesas. Há uma continuidade porque os primeiros poemas deste livro [Memórias da Casa da China e de Outras Visitas] também foram publicados na revista de cultura, na minha segunda passagem pela China. Estes novos poemas não abordam o quadro dos tributários, mas fazem referência a alguns poetas chineses e à literatura chinesa. O modo de dizer da poesia chinesa é sempre mais sentencioso do que o nosso e esse é um aspecto que me sempre atraiu. É uma poesia despojada, onde as coisas aparecem como se fossem sentenças, mas depois não são para ler à letra. Contém outra realidade e sou sensível a essa ironia muito bem disfarçada e austera da poesia chinesa. Chamei-lhe casa pela simples razão de que agora tenho o direito de me referir a uma casa na China. Ao fim de tantos anos… Já tenho uma parte da minha alma que é oriental. Eu já tenho uma casa na China. Acharia pretensioso se dissesse isso em 1994, tendo acabado de chegar a Macau. Passou muito tempo, com tantas experiências, e tendo uma parte da minha vida que ver com esta realidade, posso dizer que tenho uma morada no Oriente. O livro “Caligrafia Imperial e Dias Duvidosos” foi publicado em 2007, há exactamente dez anos. Porquê esse interregno? Muitas pessoas me perguntam isso. Creio até que este livro é melhor do que o anterior, e acredito que o próximo venha a ser melhor que este. Houve uma continuidade de escrita, fui apurando, em termos de savoir-faire, que é muito importante. Há uma maneira de fazer, com prática, experiência e continuidade. Não vou ser hipócrita: nunca deixei de ler e escrever. A escrita e a poesia são as maiores paixões da minha vida. Acontece que não paro muito em lado nenhum. Estive em Macau de 1993 a 2000, depois fui-me embora, estive em França, nos Estados Unidos, e desde 2011 vivo em Macau. Perco os contactos, as rotinas. Depois tive duas filhas, fiz o doutoramento, algo megalómano, e não tendo nunca deixado de escrever, fui pondo um pouco de lado as questões mais burocráticas. Isso porque é mais fácil escrever do que publicar. Os livros deveriam aparecer publicados por milagre. Gosto infinitamente mais de escrever e ainda mais de ler. É também crítico literário. É algo que falta em Macau? Sim, mas não é só em Macau. Temos de ser justos. Em Portugal a crise nesse domínio é avassaladora. E a poesia está, em larga medida, a desaparecer das livrarias por esse mundo fora. Em França escreve-se e publica-se muito pouca poesia. Como explica isso? Há uma tendência clara de uma crise das humanidades, está tudo interligado. O fim do latim e do grego para mim é catastrófico, e basta ler o George Stein [crítico literário] para se perceber porque é que é catastrófico. Há um desinvestimento nas áreas literárias, e os jornais são um espelho da sociedade. Fala-se da crise, dos números, das taxas. Houve um tempo em que todos os jornais, na sua maioria, tinham suplementos literários. Eu, que era uma pessoa com poucas posses, comprava sempre esses suplementos, que eram autênticos dossiers que tinha em casa. Os críticos eram verdadeiros profissionais, criticavam o que gostavam e o que não gostavam.