Rota das Letras | Daniel Pires fala hoje sobre o poeta Bocage

Daniel Pires estará hoje a falar sobre o poeta português na sessão “Lembrando Bocage”, do Festival Rota das Letras. O autor confirma a reedição da obra completa este ano

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Festival Literário Rota das Letras cumpre hoje o seu objectivo de homenagear, a par de Camilo Pessanha, outro poeta português que esteve em Macau: Bocage. Em “Lembrando Bocage”, Daniel Pires, que dirige desde 1999 o Centro de Estudos Bocageanos em Portugal, será um dos oradores.

Ao HM, Daniel Pires falou da curta presença de Bocage no território e das poucas palavras que este escreveu sobre Macau.

“Era oficial da Marinha e foi colocado em Goa, depois em Damão e a seguir desertou e veio parar a Cantão. Em Cantão encontrou um negociante que o trouxe para Macau. E de Macau seguiu para Portugal, por volta de 1790. Cá era muito pouco conhecido, ainda não tinha publicado nenhum livro, daí ter passado despercebido. Mesmo assim escreveu alguma coisa, especialmente uma ode e um elogio às pessoas que o protegeram aqui, porque estava numa situação irregular. E escreveu também um soneto, esse sim talvez mais importante.”

Nesse soneto, “há uma caricatura” de Macau. “Nesta altura Macau estava em profunda decadência e não está muito longe da verdade aquilo que ele disse. Mas ele era uma pessoa extremamente crítica e teve consciência de aquela sociedade estava profunda decadência”.

Daniel Pires garante que a curta passagem por Macau não teve qualquer influência na poesia que Bocage viria a escrever. “Esteve aqui meses, veio para aqui apenas para esperar por um navio que o levasse de regresso ao reino. Não é mais do que isso. Bocage é um grandíssimo poeta, esteve pouco tempo cá mas o suficiente para escrever bem sobre Macau. Passou por dificuldades aqui, encontrou pessoas que o protegeram. Mas não há nada escrito nem documentos oficiais que digam que ele esteve cá. Era um jovem dos seus 24 anos e não deixou rasto nos arquivos”, disse o autor de uma tese de doutoramento sobre o poeta.

Do erotismo

Daniel Pires lançou em Setembro do ano passado a biografia ilustrada de Bocage, e este ano, numa altura em que se comemoram os 250 anos do nascimento do poeta, prepara uma reedição da obra completa em sete volumes, com a publicação da Imprensa Nacional.

O autor, apaixonado por Bocage desde que foi viver para a sua terra natal, Setúbal, considera que há ainda um grande desconhecimento dos leitores sobre a génese da poesia de Bocage e sobre o homem que foi. “Fala-se de Bocage em lugares comuns, sobre o facto de ter sido boémio e associaram Bocage à pornografia, o que não é verdade. Pode e deve ser associado ao erotismo, completamente diferente, mas alguns editores aproveitaram-se para vender livros, publicaram composições pornográficas e por baixo escreveram Bocage. Ele não publicou nenhum poema pornográfico. Depois também se associa Bocage às anedotas. Ele era uma pessoa irónica, mas daí até assinar as anedotas que correm por aí… ele tinha uma extrema sensibilidade e nunca poderia ter assinado esse tipo de anedotas”, rematou.

16 Mar 2016

Rota das Letras | Pulitzer Adam Johnson e “Cartas da Guerra”

Adam Johnson PHOTO[dropcap]A[/dropcap]dam Johnson, vencedor de um Prémio Pulitzer e autor de The Orphan Master’s Son é mais um dos convidados da mais recente edição do Festival Literário de Macau Rota das Letras. Johnson, que chega dos EUA, entra na Rota quando se confirma a saída de Junot Díaz, escritor dominicano que já não se desloca ao território “por motivos pessoais”. Díaz demonstrou, contudo, “interesse em participar numa próxima edição da Rota das Letras”.

Adam Johnson foi o vencedor do National Book Award de 2015 e Prémio Pulitzer norte-americano, autor de The Orphan Master’s Son (2012), já editado em Português (Vida Roubada). A obra, que apresenta um retrato da Coreia do Norte, valeu a Johnson o Pulitzer de ficção em 2013. Além da entrada do Pullitzer, a organização anunciou ontem a estreia na Ásia de “Cartas da Guerra”, filme de Ivo M. Ferreira. A película, que se estreou ontem no Festival de Cinema de Berlim, será exibida no primeiro dia do Festival Literário, a 5 de Março, pelas 19h30, nos cinemas do Galaxy, “marcando assim a estreia asiática do novo filme” do realizador residente de Macau.

“Cartas da Guerra” é baseado no livro “D’este Viver Aqui Neste Papel Descripto”, de António Lobo Antunes (2005), que junta as cartas enviadas pelo escritor à mulher em 1971 quando o então médico foi chamado para a Guerra Colonial. O filme está em Competição para o Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim.

15 Fev 2016

Hélder Beja, sub-director do Rota das Letras: “Vamos ter Bocage neste festival”

Com mais autores de língua inglesa, a quinta edição do festival Rota das Letras mostra que a internacionalização é o caminho a seguir, bem como o reconhecimento aos clássicos autores chineses e portugueses. Hélder Beja garantiu que, a par de Camilo Pessanha, também Bocage será recordado

[dropcap]U[/drocpap]ma ideia pensada desde o inicio transforma-se cada vez mais em realidade. A quinta edição do festival literário Rota das Letras começa também a pensar nos autores ingleses vindos de vários lugares do mundo e com diversos tipos de escrita. Jane Camens, da Austrália, Bengt Ohlsson da Suécia e Jordi Punti de Espanha são alguns dos nomes que provam isso mesmo. Pelo meio, Macau vai receber dois poetas filipinos, Ângelo R. Lacuesta e Mookie Katigbak Lacuesta, por forma a responder a uma das maiores comunidades aqui residentes.

Ao HM, Hélder Beja, sub-director e programador do festival Rota das Letras, fala de um encontro que se irá pautar ainda mais pela diversidade de palavras e de ideias. “Ao fim de duas edições começámos a perceber que era o que fazia sentido, avançar para um modelo que fosse ao encontro dos autores de língua chinesa e portuguesa, mas que se estende a outras nacionalidades”, disse em entrevista.

“Queremos posicionar o festival como sendo verdadeiramente internacional, para conseguirmos estar a par de outros festivais e fazer parcerias. A ideia de responder a outras comunidades existe, mas não é a dominante. Queremos trazer autores de outras proveniências e tornar o festival cada vez mais rico”, apontou Hélder Beja.

Para fazer esta edição, a direcção do festival decidiu desafiar Rui Zink e Lolita Hu, autores convidados de anteriores edições, para serem “padrinhos” e escolherem alguns escritores. Foi Rui Zink, por exemplo, que propôs o nome de Bengt Ohlsson.

“Vamos abrir a discussão a outras nacionalidades e a outras literaturas, que também são bastante ricas. Na Europa do Norte são mais conhecidos pelos trillers, por exemplo, e isso pode ser um processo importante para Macau”, garantiu Hélder Beja.

Parcerias a caminho

Se no início caminhava sozinho para construir um evento que une várias culturas, hoje o Rota das Letras é cada vez mais contactado por outras entidades do meio literário para parcerias e participação de escritores. Foi o que aconteceu com Jordi Punti e Owen Martell, por exemplo. “É uma coisa que nos vem acontecendo cada vez mais, e são solicitações que não implicam investimento da parte do festival. Com diferentes nuances conseguimos encontrar uma forma inteligente de internacionalizar o festival, sem queimar muitos recursos”, explicou o sub-director do evento.
Do lado luso, o destaque vai para Matilde Campilho, a jovem autora que foi a que mais livros vendeu no Festival Literário do Paraty, no Brasil. Nascida em Lisboa, Matilde viveu no Rio de Janeiro e os seus poemas ousam misturar palavras em inglês com o português de Portugal e do Brasil.

“Antes de ela ter o brilharete em Paraty já tínhamos pensado nela. Quando as notícias do Paraty saíram, tomámos uma decisão. Há uma nova geração de poetas da qual ela é apenas uma das representantes, mas acho que faz sentido. Ela é a grande estreia da literatura dos últimos anos”, confessou Hélder Beja.

Apostar nos clássicos

A quinta edição do Rota das Letras vai recordar Camilo Pessanha, autor intimamente ligado a Macau, com a presença de Paulo Franchetti, Daniel Pires e Pedro Barreiros, académicos que estudaram os poemas de Pessanha. Mas a ideia é lembrar também o poeta português Bocage.

“Bocage esteve em Macau e estamos a preparar alguma coisa, que vamos avançar em breve. Vai haver Bocage neste festival”, garantiu Hélder Beja.

Lembrar os clássicos será uma nova aposta do Rota das Letras. “Não pensamos em fazê-lo todos os anos, mas quando houver um motivo muito óbvio iremos fazê-lo. O festival tem de ter esse papel, mas temos de trazer para o presente autores que estiveram em Macau ou que têm uma relação com Macau, e que estão um pouco caídos no esquecimento. Vamos fazer esse trabalho para o Pessanha e Bocage, por exemplo, mas também para outros autores de língua chinesa”, disse o sub-director.

Luís de Camões, autor também ligado a Macau, será também recordado com o espectáculo de António Fonseca, que fará um monólogo com os poemas de Os Lusíadas. “O festival volta às artes de palco, o ano passado não teve em português, este ano vai ter com um monólogo. É notável poder ver um homem que decorou os Lusíadas todo. Acho que vai ser um momento bonito deste festival”, considerou.

O regresso ao Fado

Depois dos concertos de Camané e Aldina Duarte, a direcção do Rota das Letras sentiu que tinha de regressar ao tradicional Fado, com a presença de Cristina Branco. “Tínhamos de voltar ao Fado, e em cinco edições vamos ter três com Fado. O maior desafio é inovar, mas também diversificar. Do lado chinês tivemos uma movida mais jovem o ano passado, mas para o ano podemos trazer de novo um rapper ou um cantor de intervenção, por exemplo”, referiu.

Prestes a estabelecer uma parceria com o Festival Literário Internacional de Hong Kong, o Rota das Letras cada vez mais atravessa fronteiras, mas ainda não atingiu a desejada maturidade. “Ainda há muito para fazer, acho que o festival caminha para a maturidade, mas ainda não chegou lá. O festival precisa de uma estrutura que acompanhe o festival ao longo do ano, ainda mais profissionalizada”, rematou Hélder Beja.

10 Fev 2016

Literatura | Acabou VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa

No último dia do encontro, que decorreu na Cidade da Praia, em Cabo Verde, o escritor e jornalista angolano José Luís Mendonça descreveu o seu país como sendo uma “ilha cultural e linguística”

O escritor e jornalista angolano José Luís Mendonça apresentou ontem Angola como “uma ilha cultural e linguística” que vive um dilema de não reencontro com África, com o inglês a dominar numa sociedade cada vez mais americanizada. Para o autor de “Gíria do Cacimbo” (1986) ou “Poemas de Amar” (1998), os angolanos são “mais europeus que os países vizinhos” e estão cada vez “mais europeizados”, o que os isola no continente africano.
“As línguas que falamos são as línguas europeias: o português, inglês e o francês, que fazem de Angola uma ilha cultural e linguística. Não temos contacto com os criadores, principalmente escritores de países vizinhos”, disse. Sublinhou que, em 40 anos de descolonização, o país não conseguiu reencontrar-se com a “essência, o âmago e a forma de viver africano”.
José Luís Mendonça defende que os angolanos conhecem melhor a literatura portuguesa e brasileira do que a de Moçambique, por exemplo, e que a literatura angolana está pouco divulgada em todo o mundo. “Em Angola não temos nenhum empresário que possa fazer esse negócio, não temos quem pegue no livro e faça essa aposta”, disse, considerando que para ter sucesso é preciso sair do país.
“Um escritor que tenha projecção em Lisboa, o centro difusor, consegue ter traduções na Alemanha, na Inglaterra e na América, como os casos de Pepetela, Agualusa e Ondjaki, porque investiram muito fora de Angola”, disse.
Por outro lado, considerou que o português “está a desaparecer paulatinamente de Angola” e a ganhar cada vez mais preponderância a língua inglesa e o estilo de vida americano, onde as línguas nacionais praticamente não existem na literatura.

Outras insularidades

A insularidade e a existência ou não de uma literatura das ilhas foi o tema do principal painel do segundo dia do VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, que chegou ontem ao fim na cidade da Praia, Cabo Verde.
O açoriano de São Miguel João de Melo e o cabo-verdiano da Boavista, Germano de Almeida, abordaram as vivências de infância nas ilhas de origem, tempos em que, apesar da dimensão, as ilhas pareciam enormes e em que o movimento de emigração era constante.
“O movimento de saída era impressionante. O despovoamento dos Açores marcou-me de tal forma que elaborei uma geografia compensatória para recriar um mundo em extinção”, disse João de Melo.
Por seu lado, Germano de Almeida disse que há vários anos que não vai à Boavista “para conservar a memória da ilha da infância”, substituída hoje pelos empreendimentos turísticos. A dicotomia entre a ilha/prisão, ilha/paraíso foi também abordada, com os escritores a concordarem que pode ser perfeitamente as duas coisas.
Na parte do debate, escritora e presidente da Academia Cabo Verdiana de Letras, Vera Duarte, lançou uma vez mais o desafio aos escritores presentes para que advoguem, em cada um dos seus países, a favor da introdução no ensino fundamental de uma disciplina que estude a cultura dos países lusófonos.
João de Melo recordou, neste contexto, uma ideia lançada pelo também escritor presente no encontro, José Fanha, de criar um espaço de continuado de circulação de livros. “Só assim a lusofonia faz sentido no plano cultural”, disse, lembrando que é Portugal é mais fácil traduzir um livro em outra língua do que editá-lo no Brasil ou em Cabo Verde.
João de Melo sustentou ainda que “todos os movimentos culturais que se geram nas ilhas devem ter como sentido a universalidade”. “A geografia não pode ser vista como forma de contenção literária. Culturalmente temos que levantar e projectar estas ilhas para mais longe”, disse.
Também presentes no debate os escritores moçambicano Luís Carlos Patraquim, brasileiro João Paulo Cuenca e o timorense Luís Cardoso, falaram das suas relações e experiências de insularidade.
O encontro de escritores, promovido pela União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA) em parceria com a câmara da Praia, teve ontem um debate sobre poesia e música.

4 Fev 2016

Uma travessia do Delta Literário de Macau

Não deixando de referir e correlacionar textos tributários de códigos de género híbridos – memórias, diário, epistolografia, narrativa biográfica e autobiografia, relatos de viagens e testemunhos históricos, reconto etnográfico e, em especial, crónica –, nesta nossa cartografia de O Delta Literário de Macau, primeiro volante de um políptico a completar, consideramos a “literatura” no sentido específico de criação imaginativa em arte verbal.
Tomamos, assim, por “literatura de Macau em língua portuguesa” a criação estético-literária de autores que em Macau se descobrem ou afirmam escritores, que em Macau são editados e/ou criticados, reconhecidos e avaliados como escritores – acrescendo que, não em todos os casos mas em grande parte deles, não figuram no cânone da literatura portuguesa de acordo com os meios de reconhecimento, legitimação e valorização do seu funcionamento institucional (editores e críticos, professores e conferencistas, júris e associações, manuais e programas escolares, etc.).
Nesta literatura de Macau em língua portuguesa podemos ver confirmado e ilustrado que toda a escrita é, de algum modo, registo de certo momento de uma identidade em processo, num devir de estabilização ou de crise. Como ao longo dos séculos e em todas as latitudes, a escrita literária que agora estudamos revela-se em Macau um  modo especial de dizer esse momento; e revela-se também um fazer ou refazer da sua contingência em processo de comunicação (e de autocomunicação).
Quer nos géneros da “escrita do eu” (diário e memórias íntimas, epistolografia e narrativa autobiográfica, etc), quer no endosso ficcional a personagens romanescas ou dramáticas, a literatura desde sempre figurou e reconfigurou trajectos de formação de identidades – individuais e comunitárias, grupais e nacionais -, fazendo sentir que isso envolve muito de história das relações da subjectividade ou da entidade colectiva com o seu mundo próprio e com o universo espacial e temporal dos outros seres e das outras comunidades.
Todas as individualidades e todas as comunidades vivem aí a passagem da ordem da natureza para a ordem da cultura; todas vão modelando o real de acordo com suas línguas e demais sistemas de signos, com a historicidade das mundividências, dos horizontes de saber e de crença, dos sistemas de valores e de comportamento; e todas prosseguem  a redefinição das fronteiras do corpo ou território próprio e das interdependências existenciais, com um sentimento de continuidade temporal.
Este sentimento radica na memória singular e colectiva de um património de experiências e ideais, exige empenhamento nas tarefas do presente, gera expectativas e pede projectos para o futuro.
Embora o cuidado de definir conceitos de identidade e o interesse em explorá-los no jogo de forças dos indivíduos e das comunidades seja típica da modernidade, a vivência dessas identidades e o confronto com outras identidades atravessa toda a história do humano, sofrendo metamorfoses no processo de permanências e mudanças que lhe é inerente.
Talvez também se deva pensar o mesmo em relação a outro aspecto que, no entanto, se foi tornando mais forte e mais consciencializado na era contemporânea: deu-se a erosão dos modelos identitários tradicionais e do seu discurso monológico com suposta base numa essência, e, em contrapartida, vem prevalecendo a convicção da relatividade histórica e contextual das identidades, da sua natureza pluridimensional e da sua interdependência de outras identidades.
Assim, sendo inegável que continua a fazer-se sentir a necessidade de “reconhecimento” em que se joga uma função identitária, confirma-se hoje o que talvez já pudéssemos ter lido nas representações e figurações literárias do passado, isto é, que o humano individual e colectivo, interpessoal e inter-nacional, deriva sempre numa dialéctica de identidade e alteridade, de inclusão e exclusão, de estranhamento e acolhimento.
Mas a literatura, e em particular a literatura de autores ocidentais portugueses cujos caminhos e descaminhos da vida passaram pelo Oriente, mostra-nos mais: é nesse processo do confronto com o outro e com a sua diferença étnico-cultural e é no debate sobre a exclusão ou o acolhimento dessa alteridade que o sujeito da identidade em causa se pode conhecer melhor. Reconhece-se então com outros contornos e profundezas, sente o apelo de outra autenticidade, transforma enfim a sua identidade em função do confronto ou encontro com o outro.
Além disso, lendo sob nova luz essa literatura, daí ressalta que muitas vezes se trata da descoberta do “outro de si mesmo”: o abalo ou perturbação, que a aparente hiperidentidade do eu ou da comunidade sofre no encontro ou no confronto com o outro, gera condições propícias para aquela revelação do “outro de si mesmo”.  Convém lembrar agora que, pensando que a subjectividade se funda na distância da consciência de si, Levinas dizia: «o sujeito é hóspede e hospedeiro»; o sujeito há-de acolher o outro, porque desde logo tem de se acolher a si mesmo com um outro. Por isso, certa linha actual de renovação da leitura literária centra-se nessa relação de hospitalidade que abre a perspectiva da diferença e da sua compreensão vivencial.
Partindo dos próprios géneros tradicionais da “escrita do eu”, essa interpretação da escrita como hospitalidade e como auto-hospitalidade estende-se depois a todas as realizações da lírica, da narrativa e da dramática. Não tem dificuldade em se ilustrar na análise de diários e memórias íntimas, de obras de epistolografia e de autobiografia, etc; mas, ao mesmo tempo que vai evidenciando como todas essas modalidades de escrita do eu se tecem numa tensão entre o sonho impossível de plena fusão em si mesmo e de consciência das reservas de alteridade que em si se escondem,  também não tem dificuldade em descobrir a urgência de introspecção e auto-retrato em autores de memórias histórico-sociais (caso de Raul Brandão e tantos outros), de ensaios (afinal, desde a matriz em Montaigne…), de escritos aforísticos (caso de escrita hospitaleira dos pensamentos singulares), de biografias (a tal ponto era pressionante a emergência de traços idiossincráticos e existenciais do autor por detrás da história do biografado, que hoje entrou em voga o romance do biógrafo…), etc. 
Esta orientação de leitura traz assim nova valorização do alcance antropológico da literatura como auto-interpretação e imaginação simbólica do humano.
Essa valência da antropologia literária reforça-se ainda porque muitos textos comprovam que os gestos e movimentos de reconhecimento e de hospitalidade buscam e motivam gestos e movimentos de reciprocidade. E comprovam que, mesmo quando falta essa reciprocidade, os ganhos de autoconhecimento e auto-acolhimento podem proporcionar e acalentar processos de resiliência das identidades fragilizadas, feridas, prostradas. Podem motivar recuperações de autoconfiança e superar situações adversas à realização das potencialidades de cada homem ou de cada povo.
A refracção poliédrica que o humano encontrou na literatura de todos os tempos, e com especial acuidade na literatura moderna, traz-nos sem dúvida a contraface dessa hospitalidade na escrita e dessa resiliência pela escrita, isto é, não deixa de patentear tendências de repúdio da hospitalidade (e até da auto-hospitalidade, como se vê, por exemplo, em Rimbaud) e de exclusão violenta, com regressões do humano à cruel bestialidade (como se vê em Conrad, por exemplo).
Mas essa contraface não exclui a outra face da natureza humana nas contingências da historicidade – facto de que temos a contraprova irónica na retórica da alteridade que durante muito tempo estruturou, de forma mais ostensiva ou mais subtil, o discurso da novidade trazida pela viagem (como no caso português muito bem exemplifica a escrita da famosa Carta do Achamento do Brasil, por Pêro Vaz de Caminha).  
Ora, um tipo de literatura onde o entrechoque de tais tendências melhor se manifesta é precisamente o que incide na viagem – quer pensemos no sentido genológico  do que habitualmente se designa por “literatura de viagens” (e já aí deparamos com enorme variedade de motivações, de características temáticas e formais, de efeitos pragmáticos), quer alarguemos a nossa visão para todas as modalidades de figuração da vida e da morte como viagem (outra valência antropológica da literatura, na medida em que representa ou imagina a condição do ser como Homo viator, em religiosa peregrinação para a Transcendência celeste ou por deslocação agnóstica na imanência terrena), quer tentemos actualizar o tópico da obra ou da escrita como viagem –  viagem que é significado e metonímia, viagem que é significante e metáfora.
Depois, a modernidade literária trouxe uma melancólica auto-reflexão – uma melancolia que, no fundo, está relacionada com a incerteza que o sujeito passa a sentir acerca de si mesmo, tanto quanto passa a pensar-se não como um dado determinado e estabelecido a priori, mas sim como uma possibilidade que tem de ser constituída no texto… e que nunca lhe garantirá uma identidade definida e definitiva.
E tudo isto tem muito a ver com a obra de tantos escritores portugueses  que aportaram ao Oriente, alguns a Macau, e praticaram a arte literária “das lonjuras” (como diria Jean-Marc Moura) nem sempre hipotecada à construção do “orientalismo” como modo de discurso colaço da estratégia imperialista do Ocidente – desde Camões e Fernão Mendes Pinto até Ruy Cinatti e Maria Ondina Braga, passando por Bocage e Tomás Ribeiro, por Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes, por Alberto Osório de Castro e António Patrício.
Quanto até aqui ponderámos sobre a experiência literária da problemática de identidade e alteridade e sobre as condições de uma escrita da hospitalidade, mormente num contexto de “viagem” a Oriente, ganha particular acuidade e, ao mesmo tempo, feição diversa na leitura dos autores da literatura de Macau em língua portuguesa – bom exemplo de valência da literatura como espaço de aprendizagem da alteridade.
Assim é desde logo pela condição alocêntrica que lhe reconhecemos, em relação quer à China quer ao Ocidente português, e pelo substrato genotextual que por isso pressupomos perante as suas criações estético-literárias, mas também pela condição peculiar do contexto macaense.
Com efeito, Macau distingue-se como espaço histórico de multiculturalismo, primeiro na coabitação desigual das comunidades portuguesa e chinesa e no alheamento ou desdém preconceituoso perante as respectivas culturas, mais tarde em progressiva diluição das fronteiras entre “cidade cristã” e “cidade china” e com avanços e recuos na atenção mútua aos traços peculiares das ancestrais tradições socioculturais, aliás refractárias a movimentos de hibridização.
Com raras quebras dessa ausência de interacção de culturas ao longo dos séculos, é recente o pendor de práticas verdadeiramente interculturais, peculiares da contemporaneidade – sem rasurar as incompreensões, patentes ou veladas, que são afinal inerentes aos fenómenos de contacto entre culturas e povos (como oportunamente alegoriza Ana Maria Amaro na última narrativa, «Aves de arribação», das Aguarelas de Macau).
Gradativamente caldeada no crisol da “estética do diverso” (na acepção poetológica do poliglotismo cultural, trabalhada pelo com conhecimento de causa pelo escritor e pensador antilhano Édouard Glissant), a literatura de Macau foi despertando primeiro para o pitoresco de usos e costumes chineses ou a “cor local” do espaço macaense de multiculturalismo, sobretudo através do etnografismo lírico e romanesco. Só hodiernamente vem reflectindo (e desse modo reforçando) a interculturalidade, com o jogo de relações intertextuais, de traduções e recriações, de citações e empréstimos linguísticos, de apropriação de símbolos e mitos, etc.
Se Macau se distingue por esse processo faseado de estádios de multiculturalismo e diferentes estádios de interculturalidade, a literatura de Macau em língua portuguesa também se distingue pela comparticipação faseada nesse processo, ao mesmo tempo reflectindo e promovendo a componente intercultural da identidade plural e aberta de Macau.

*

Não escasseiam oportunidades e razões para evidenciarmos como no delta literário de Macau é recorrente a exploração ficcional e lírica da geografia física e humana do território, não já como mera manifestação epigonal de intuitos naturalistas ou realistas, mas sim segundo uma geopoética que – como sabemos melhor desde Bachelard até à Escola de Limoges – modeliza relações criativas entre as figurações formais e semânticas dos espaços macaenses, mas subentendendo que esses espaços geofísicos são indissociáveis dos processos históricos e das dinâmicas sociais e culturais que neles ocorrem e do imaginário que neles se projecta e se sedimenta. Eis aí mais uma vertente do delta literário de Macau, às vezes polarizada pelo apelo mitográfico em torno do que Luís Sá Cunha chamou o topos sagrado de Macau, e cuja exploração deixamos in progress, no âmbito aliás de implicações mais problemáticas de outra questão que a literatura como conhecimento nos chama a dilucidar – a dos traços identitários da literatura de Macau.
Não se justifica que nos continuemos a enredar excessivamente na reconsideração do problema do exotismo e do orientalismo. Todavia, não merecem ser descurados os elementos exóticos de uma literatura situada a Oriente, mas criada em óptica variável por escritores de origem ou de formação ocidental, deslocados e radicados em Macau ou filhos da terra com padrões axiológicos e culturais da portugalidade em diáspora (imperial ou pós-imperial).
A literatura estudada n’O Delta Literário de Macau confirma que os intelectuais macaenses se mantiveram apegados (com orgulho patente, ou com vinculação velada, ou até à contre coeur) às marcas históricas e culturais de identidade lusíada, como meio aliás de preservação da sua identidade comunitária (sino-lusa, não chinesa), sobretudo enquanto a própria aspiração de autonomia podia ser paradoxalmente sentida como interdependente da associação política com Portugal. Mas, mesmo enquanto tal, a mais genuína literatura de Macau em língua portuguesa deve também ser encarada como processo de legitimação da auto-imagem de uma “periferia” lusíada, mais do que como profissão do olhar imperial de um “centro” remoto (como diria a Mary Louise Pratt de Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation).
Importa, porém, chamar a atenção para a emergência de um orientalismo literário mais profundo do que os estereótipos que é costume patentear. Em nosso entender, Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes, Maria Anna Accaioli Tamagnini e Fernando Sales Lopes, mais alguns outros aparentados, vieram descobrir e assediar no Oriente, via Macau, um magistério esotérico, sempre com indefinido horizonte de sentido e com alcance prometido mas diferido, que vinha ao encontro de uma das mais subtis e sortílegas tendências da literatura ocidental: aquele sentido divinatório da vida analógica dos seres e das coisas, movida pela energia empática remanescente da unidade e da harmonia primigénias, e em que o poeta anseia iniciar-se para superar a cisão monádica dos entes e a dor da impossibilidade de comunicação plena e de plena comunhão no conhecimento e no amor.

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O trajecto que conduzimos através d’O Delta Literário de Macau permite uma percepção mais forte e mais esclarecida do devir dos centros de interesse e das motivações que de época para época foram movendo os seus escritores, das características temático-formais que subsequentemente adquiriram os seus textos, dos padrões por que se regeram, da cultura estética que a tudo isso foi subjazendo.
A esse propósito, achamos pertinente evocar certo passo, de reacção satírica e de auto-ironização local, em conto de Senna Fernandes («Ódio velho não dorme», texto notável de ilustração memorial ou ficcional do lema contido no título). Aí – já após a charneira do século XX, mas em paralelo com o que ocorrera em períodos precedentes – torna-se ficcionadamente notória a desactualização da cultura literária em Macau e a relação tardia ou frouxa com os estilos epocais euro-americanos e sua presença sincrónica na literatura portuguesa.
Tal como surge apresentado, em ambíguo radical de comunicação, só o protocolo de leitura que se estabelecer com o texto poderá determinar o seu estatuto discursivo. De qualquer modo, esse texto explora abundantes dados sobre vida em Macau durante décadas e abundantes coincidências com trajectória biográfica do autor (infância e juventude nas escolas de Macau, ida para a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, exercício da advocacia em Macau, idas a férias a Portugal, etc.); e depõe sobre a cartografia das correntes contemporâneas da literatura portuguesa, entre sátira (ao que de bluff e moda ideológico-cultural representa neste lance o pretensiosismo de Heitor, antigo amigo do liceu macaense agora lisboetamente distanciado) e auto-ironia (ao que de efectivamente retardatário, pouco informado ou pouco actualizado, terá tido a cultura literária do autor ou dos meios intelectuais de Macau): «Entre duas cervejas e debicando tremoços, estalando de superioridade intelectual, os dedos a aparar o bigodinho irritante, perguntou-me de chofre, sempre com o odioso “você” para trás e para diante, que opinião tinha eu do movimento neo-realista português. Volvi modestamente que não sabia de nada, só lera uma ligeiríssima referência num jornal de Macau. Teve claramente pena de mim e teimou no assunto. // E, na poesia, que opinião fazia de José Régio, Mário de Sá-Carneiro, Torga e Fernando Pessoa? Redargui esmagado que eram apenas nomes e não os estudara. E o movimento da Presença, o Orfeu? Nada, foi a triste resposta. Abanou a cabeça com dureza de quem está a perder tempo com um analfabeto.»
O nosso trabalho sobre o delta literário de Macau permite dar conta dos fluxos de curto, médio ou longo curso, em que se traduz esse fenómeno de cultura literária e os efeitos de arrastamentos temático e formal a que ele dá origem ou cobertura de boa consciência estética. Mas permite também descobrir, nuns casos, e corroborar, noutros casos, que o estado de coisas na república das letras macaenses se alterou sensivelmente nas décadas mais recentes; e que aquele retardamento e seus nefastos efeitos foram em grande parte fecundamente erradicados pela nova literatura de Macau em língua portuguesa.
A literatura de Macau, em especial no domínio da poesia, soube ir ultrapassando os estádios de simples concepção vivencial e de dicção elementar, caracterizado por uma ausência de construção e de densidade irónica, um derrame de cândido expressivismo com escassa “capacidade de inibição”, uma previsibilidade de temas e um gosto de estilemas estereotipados, sem rasgos de estranhamento perceptivo e expressivo – enfim, um versejar e um rimar que parecia alheado ou discordante das transformações trazidas pelo(s) Modernismo(s) de Orfeu e de Presença e pelos contrapontos do Neo-Realismo e do Neo-Modernismo nos meados do século XX, mais se mostrando temeroso dos riscos de inovação temática e de experimentação estilística. De época para época foram-se afirmando sinais iniludíveis de inconformismo com os padrões saturados e novos intuitos de expressão estética em equação com tendências literárias da Modernidade tardia.

José Carlos Seabra Pereira

2 Fev 2016

José Carlos Seabra Pereira | Professor universitário e crítico literário

Foi hoje apresentada no IPM a obra “O Delta Literário de Macau”, que analisa as letras portuguesas que por aqui têm sido produzidas. José Carlos Seabra Pereira, que recentemente recebeu o Prémio Jacinto Prado Coelho, é o autor de uma obra que relança o debate sobre a escrita local e o seu lugar na literatura lusófona

[dropcap]V[/dropcap]ai hoje lançar este tomo sobre a literatura de Macau. Mas (desculpe a brusquidão) existe uma literatura de Macau?
Existe claramente uma literatura em Macau. Quando dizemos “literatura de Macau” complicamos a questão porque se levanta uma perspectiva de identidade. Há uma literatura identitariamente macaense ou não? É um problema difícil de discutir e tem sido muitas vezes a desculpa para a ausência de uma análise mais desenvolvida da literatura que neste trabalho abordo. Eu não quis enredar-me excessivamente nessa questão.

No seu prefácio faz uma distinção entre a literatura que é inspirada, produzida e reconhecida em Macau mas que não é reconhecida em Portugal. No entanto, neste livro coloca autores que são, claramente, reconhecidos em Portugal.
Há sempre uma fronteira fluida. Existem autores em que é difícil estabelecer essa distinção mas noutros casos é fácil verificar que há autores do cânone da literatura portuguesa que, ou passaram por Macau ou porque estiveram cá durante algum tempo, escreveram em Macau ou introduziram elementos de Macau na sua ficção narrativa ou nos seus poemas líricos. Mas depois, para além desses textos, não têm nada a ver com a dinâmica do campo literário em Macau. Aqui introduzo o conceito de Pierre Bourdieu do “campo literário”. Procurei que fosse levados em devida conta os autores que estão perfeitamente integrados nessa dinâmica local, sem que isso implique, desde logo, um juízo de valor a priori. Uns não são mais valiosos do que outros. No fundo, neste volume trato aqueles que são filhos da terra ou radicados em Macau. Há escritores destes que mereceriam uma outra atenção da parte da literatura portuguesa e que acabam por não a ter. Poderiam alguns, contados pelos dedos de uma mão, claramente fazer parte dos manuais da literatura portuguesa e não fazem. Isso é injusto? Sim, mas é assim. Por outro lado, isso também se reflecte nas obras dos autores que aqui analiso como sendo de Macau, quer do ponto de vista temático, quer do ponto de vista formal. Não se trata de aqui ter nascido ou ser de origem macaense (outros vieram de Portugal e por aqui ficaram): o fundamental é ser aqui que eles se manifestam como escritores, aqui são reconhecidos como escritores; nalguns casos é aqui que eles próprios se reconhecem como escritores e é aqui que são objecto de edição, eventualmente de crítica, etc..

20012016-1Coloca, por assim dizer, autores muito diversos no mesmo saco.
Confesso francamente que para as pessoas de Macau lerem de uma forma aberta e compreensiva tudo aquilo que estariam prontas para ir procurar sobre autores contemporâneos locais, era preciso que antes não fossem como que afastadas por um gesto meu que tivesse erradicado certos autores que estariam à espera. Quem ler o livro verá a prudência de matizes que eu ponho quando abordo a obra de Camões no contexto de Macau ou como falo da questão do exótico em Wenceslau de Moraes ou da Maria Ondina Braga. Quero evitar uma reacção preconceituosa, motivada pela ausência de certos autores ou certos temas.

Peguemos no caso mais paradigmático de todos: Camilo Pessanha. Considera-o um autor de Macau? Faz parte da literatura de Macau?
O caso dele – como outro caso aqui no livro, com o século mais adiantado, que é o de Maria Ondina Braga – tem que ser considerado dos dois lados.

Mas não podemos considerar uma literatura portuguesa sem um topos determinado e localizado na Europa?
Podemos. Esta foi uma perspectiva que eu adoptei por me parecer interessante para Macau e por ser um trabalho sucessivamente adiado.

O seu trabalho parece-me importante por fixar Macau, no nosso tempo, como um local de produção e existência de uma literatura portuguesa.
E que vai evoluindo na sua relação com as outras literaturas, sobretudo euro-americanas. Houve alturas de maior desfasamento e retardamento, talvez pela distância e as dificuldades de comunicação, e outras alturas ao contrário, de perfeita sintonia e actualidade em relação ao que são os vectores fundamentais da cultura literária. É o caso do Camilo Pessanha que, ao mesmo tempo, consegue esta maravilha que é ter marcas especificamente decorrentes da sua vida aqui, no Extremo Oriente, em Macau, e ao mesmo tempo ser um maiores poetas simbolistas de todo o mundo, da literatura universal. Fechá-lo no cânone da literatura portuguesa seria empobrecê-lo.

Estamos aqui em Macau, numa situação de fronteira em relação à literatura portuguesa. Será uma fronteira limitada ou a literatura local poderá ter algum papel no contexto da lusofonia, que não está ainda bem previsto?
Situo-me nessa segunda hipótese. Hoje usamos muito o termo fronteira. Num plano rural, os extremos são o que separa uma propriedade da outra mas também é aquilo que liga. Isso também acontece no plano da cultura e em particular na evolução histórica da literatura. Hoje achamos que a existência de fronteiras é um bocado artificial…

Passámos do exotismo para a dissolução do autor. Ou seja, de um autor que mantém a sua identidade e descreve o exótico para um autor mais preocupado com as transformações que se operam em si mesmo.
E tudo aquilo que temos vindo a aprender, quer através de grandes pensadores, quer das circunstâncias da globalização, sobre identidade e alteridade, derrubaria qualquer tentativa de manter o conceito estanque de fronteira porque verificamos que estamos constantemente a encontrar, na experiência de cada um de nós e sobretudo na dos grande criadores artísticos, esse contacto do Eu com o Outro, mas mais: desde Pessoa e tantos outros, o Eu foi aprendendo a encontrar o Outro de Si mesmo. O século XXI veio acrescentar a isto que o Outro de Si mesmo se encontra na relação dialógica com a Alteridade.

Seria como dizer: “Sou mais estranho a mim próprio que um Chinês me é estranho”. Mas, afinal, o que tem a literatura de Macau de especial para oferecer diferente das outras literaturas lusófonas? O que encontrou que a pode distinguir?
Noutras épocas, em que havia um défice de poliglotismo cultural, perfeitamente explicável pelas circunstâncias, o que Macau trazia de interessante era uma espécie de tensão entre certas linhas de continuidade quase forçosamente tradicionalistas e, ao mesmo tempo, certos tropismos de diferença que a situação de tão longe da Europa e tão longe de Portugal e tão próximo da China obrigavam. Em segundo lugar, mais recentemente, em que existe mais facilidade de comunicação, por ser outro tipo de pessoas que renovam o substrato de onde saem os escritores de Macau, já oferece outras coisas, mas que podem ser também a assimilação de linhas fundamentais da cultura chinesa e também da sua poética mas num discurso literário em construção aberta com um substrato cosmopolita muito grande.

20012016-4É bom saber que não se trata apenas de uma literatura do exotismo…
De maneira nenhuma. Creio que não escondo que a literatura de Macau do século XX, durante algum tempo, apesar das qualidades inegáveis dalguns dos escritores, sofria de um certo arrastamento temático e formal, em relação ao que era uma evolução mais acelerada dos padrões literários na Europa e na América.

Falta de informação, de comunicação…
O contexto era muito diferente. No princípio do século XX, as notícias pregnantes sobre as correntes modernistas era quase nula. Arrastava-se uma literatura, que dentro do género era bem feita, mas de um neo-romantismo lusitanista, etc.. Depois, há um realismo que embora venha mais tarde do que na Europa, apesar de tudo já não está tão desfasada. A partir de Deolinda da Conceição nós temos uma vertente de realismo social que começa a acertar o passo com a qualidade de estar a reagir a condições de vida, histórico-sociais, particulares.

Deolinda da Conceição e Senna Fernandes…
Sim e também alguns aspectos da ficção narrativa de Rodrigo Leal de Carvalho. Senna Fernandes evolui e desdobra para outros aspectos que, não sendo menos locais, porque é também uma espécie de etnografismo literário, acaba por ter outras qualidades e outro alcance.

O etnografismo foi sempre uma grande tentação, sobretudo para o escritor que vem de fora.
Sim. Mas, a partir dos anos 80, há cada vez maior proximidade entre os motivos inspiradores e mesmo certos problemas do discurso literário. A literatura de Macau não está a copiar isso mas a reflecti-los e interpretá-los à sua maneira. Há uma transformação maior, com os inerentes riscos, também no plano do significante, quer nas estruturas de composição, quer no estilo, na linguagem e no gosto de uma certa experimentação formal, que nunca aqui se transforma num mero jogo formalista mas é a tentativa de renovar a criação de sentido através de novas formas. O estranhamento, a quebra das rotinas, algo que aparece muito bem nos poetas que se vêm destacando em Macau. Esta literatura torna-se cada vez menos previsível.

Nesse sentido, podemos falar de uma “literatura de Macau”, mas será difícil falarmos de um fundo comum aos autores que escrevem hoje. Tal como acontece em Nova Iorque ou Lisboa…
É verdade. No período que vai de Senna Fernandes a Rodrigo Leal de Carvalho, por contraste com outro período que poderíamos marcar com a emergência da Fernanda Dias, havia um fundo comum. Talvez fosse necessário, havia uma lacuna, um vazio a preencher. [quote_box_right]“Há escritores que conseguem, não fazendo doutrina, mas através da própria ficcionalidade da sua obra lírica ou narrativa, figurarem aspectos da condição humana. Grandes temas como o abandono, a solidão, a resiliência, etc., aparecem nos grandes narradores de Macau”[/quote_box_right]
Esses autores, mais na ficção do que poesia, encontraram formas de dar vida ficcional a realidades históricas e sociais peculiarmente de Macau. Tanto Henrique de Senna Fernandes, Leal de Carvalho e Maria Ondina Braga são criadores de grandes personagens. Podemos esquecer boa parte do enredo, mas há certas personagens que são fundamentais. Essa é a grande tradição do romance, antes do Nouveau Roman francês vir complicar as coisas: contar bem uma história e criar personagens que ficam indeléveis na memória literária. Pode-se ler o que distingue melhor o Senna Fernandes sobre a categoria da resiliência, por exemplo. Diz-se que são umas histórias de amor que acabam sempre com um final feliz. Mas, indo mais fundo, o que a gente vê é que há ali grandes fenómenos que mostram uma vertente social, comunitária, por um lado, mas ao mesmo tempo são muito individualizados, num constante processo de frustração, degradação, e depois de recuperação não por reconversão a padrões alheios, mas pela tal resiliência. De recuperação do que era o fundo próprio daquele ser. Incluindo o papel das energias amorosas. Se vamos para a Maria Ondina Braga é outro problema. São as vidas vencidas e a questão do tempo interior.

Está assim a dizer, de algum modo, que cada autor expurga os seus fantasmas no contexto de Macau… e não retrata propriamente Macau.

As duas coisas. Um bom autor faz as duas coisas. O Rodrigo Leal de Carvalho vai mais pelo lado do humor, de uma certa bonomia, uma certa tolerância. Retrata situações humanas, por vezes lancinantes, mas sempre com uma patine de humor que evita o patético.
Gostava ainda de falar do etnografismo lírico para o qual alguns poetas foram arrastados, o que se compreende. Há um valor de antropologia literária que ultrapassa isso. Há escritores que conseguem, não fazendo doutrina, mas através da própria ficcionalidade da sua obra lírica ou narrativa, figurarem aspectos da condição humana. Grandes temas como o abandono, a solidão, a resiliência, etc., aparecem nos grandes narradores de Macau. Há um património literário que não pode ficar contido nas fronteiras da comunidade de leitores de Macau.

Entende que a literatura de Macau pode ter um lugar fora desta cidade?
Claramente. Vai crescendo uma representação e figuração simbólica desta realidade, que hoje nos parece evidente, de Macau como espaço de multiculturalismo. Há muitas formas de estar instalado no multiculturalismo. Há um em que as comunidades diferentes têm que partilhar o mesmo espaço mas depressa buscam fora das obrigações do quotidiano redutos com fronteiras muito marcadas em que não há nenhuma fascinação profunda pelo Outro, nem um esforço por um diálogo e interacção. Até se passar depois para um multiculturalismo mais recente em que a própria evolução sócio-económica obriga a que a separação muito nítida (cidade cristã-cidade chinesa) se rompe e começa a haver espaços de interacção. Estamos, contudo, ainda longe de se passar do limiar da tolerância para uma política de reconhecimento. E de reconhecimento activo. Tarda a aparecer na literatura, tal como a diferença entre multiculturalismo, que pode ser estático, e interculturalidade, que é diferente.

Macau é constituído por camadas que pouco se tocam.
Eis uma modalidade pobre de multiculturalismo. A interculturalidade é mais exigente. Em “A Trança Feiticeira” encontramos uma experiência de interculturalidade, com todas as dificuldades que isso levanta aos protagonistas.

Bem, uma experiência muito sui generis. Não a mais comum…
Talvez a partir de Fernanda Dias as coisas se ponham de maneira diferente.

A perspectiva feminina é bastante interessante desse ponto de vista. A perspectiva masculina é, fundamentalmente, colonialista, na medida em que se baseia na perspectiva do macho ocidental, com dinheiro e uma sexualidade facilitada no Oriente. Isso está na literatura, se bem que escondido atrás de alguns pruridos… Fernanda Dias dá-nos outra perspectiva.
Quando havia alguma miscigenação, era sempre de homem caucasiano com mulher chinesa. Em Fernanda Dias, já aparece, de forma relativamente velada, simbolizada, mas insofismável, a relação de desejo entre a mulher de matriz europeia com o homem chinês. Isso altera as coisas e perturba o status quo até então estabelecido. Há um estádio da miscigenação que podia ficar como uma nova forma de exotismo. A literatura de Macau acrescenta a mestiçagem no sentido cultural. Uma das coisas que me atrai é não só essa mestiçagem cultural mas uma certa crioulização da língua. Vejo isso em termos de cultura e em termos de língua. A língua literária do Senna Fernandes, por exemplo: há certos passos que nos espantam. Do pitoresco isso passou para uma coerência orgânica.[quote_box_left]“O caldo de culturas de Macau é muito rico o que dá maior responsabilidade aos autores e aos editores”[/quote_box_left]

Vale a pena que esta literatura seja lida e divulgada em Portugal e nos países lusófonos?
Claro que sim. Falemos da literatura de Macau em língua portuguesa. Começaria por responder através de uma contra-prova. A Maria Ondina Braga, embora não tanto como ela merecia, acaba por encontrar um público de bons leitores e atenção de ensaístas e universitários. A literatura de Macau, quer a que está a produzir agora, quer antes na segunda metade do século XX, merece encontrar uma ressonância quer em Portugal quer noutros países. Era importante uma política de tradução. Provavelmente, em Portugal, nos círculos onde se trata da literatura, a literatura de Macau talvez seja prejudicada pela evidenciação das literaturas africanas para não falar da literatura do Brasil. Há factores político-económicos. Acontece o mesmo com a literatura de Goa ou Timor. O caldo de culturas de Macau é muito rico o que dá maior responsabilidade aos autores e aos editores.

29 Jan 2016

Rota das Letras | Festival Literário de Macau de 5 a 19 de Março

Traz-nos um prémio Pulitzer, vários autores de renome, dois regressos, mais dias de festival, mais idiomas e duas dedicatórias especiais: a Camilo Pessanha e Tang Xianzu. O Festival Literário Rota das Letras está de volta em Março

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]briu com um toque de classe com o cenário da biblioteca do edifício do Leal Senado de fundo. A organização do Festival Literário Rota das Letras levantou ontem a ponta do véu do evento que regressa em Março. Para abarcar três fins-de-semana o Festival passa de 12 para 15 dias de exposições, cinema, debates, palestras nas escolas e música ao vivo. Garante-se o Fado, anuncia-se um enigmático regresso a Macau e espera-se fechar em breve a contratação de um músico chinês de relevo. A sede dos concertos também muda, passando da Arena do Venetian para o Grande Auditório do Centro Cultural.

camilo-pessanha

Celebrar Pessanha

A homenagem a Tang Xianzu e a Camilo Pessanha são o grande destaque do Festival para este ano. Tang Xianzu por ser um dos primeiros autores chineses a estabelecer contacto com estrangeiros em Macau, tendo visitado a cidade em 1591. Um dos dramaturgos mais aclamados da dinastia Ming e da literatura chinesa em geral, Tang imortalizou Macau em vários poemas e é autor da peça de referência da dramaturgia chinesa “Pavilhão das Peónias”, tradicionalmente representada no estilo Kunqu, desenvolvido durante os primórdios da dinastia Ming (séc. XVI), e quase desaparecido durante o séc. XX tendo sido em 2001 considerado pela UNESCO como “Obra Prima do Património Oral e Intangível da Humanidade. Camilo Pessanha, o autor de “Clepsidra”, viveu e morreu em Macau e deixou um legado valioso que continua a ser objecto de estudo até hoje. Para aprofundar a sua obra, o Festival convidou Paulo Franchetti, Daniel Pires, Pedro Barreiros e Carlos Morais José.

Lolita e Zink outra vez

Regressam ao festival duas das figuras com mais impacto no contexto da edições anteriores: Rui Zink e Lolita Hu. Desafiados a trazerem um “acompanhante”, Zink escolheu o escritor sueco Bengt Olsson e Lolita o escritor de Xangai Chan Koonchung. Chan é o fundador da “City Magazine” e seu editor por 23 anos, sendo ainda guionista e produtor de cinema, co-fundador do grupo ambientalista de Hong Kong Green Power e antigo membro da direcção da Greenpeace. O seu maior sucesso até à data é “Gregorius”, que recupera uma das personagens mais repulsivas da literatura sueca: o Pastor Gregorius do romance clássico de Hjalmar Söderberg Doctor Glas, de 1905. Um dos seus últimos livros, “Rekviem för John Cummings”, sobre a vida e a morte do guitarrista de punk rock Johnny Ramone, foi nomeado em 2011 para o August Prize.

Pacheco Pereira (é desta)

José Pacheco PereiraQuase participou nas edições anteriores do Festival mas desta é que é. Conhecido comentador político, Pacheco Pereira chega a Macau. Lançou recentemente o IV volume da sua obra de maior fôlego, “Álvaro Cunhal, uma biografia política”, esperando-se vivos debates sobre a personalidade que marcou o movimento comunista em Portugal.

De Portugal, estão ainda confirmados Matilde Campilho, Luísa Fortes da Cunha, Paulo José Miranda, Pedro Mexia, Ricardo Adolfo e Graça Pacheco Jorge. O premiado autor brasileiro Luiz Ruffato também estará entre nós, assim como Marcelino Freire, Carol Rodrigues e Felipe Munhoz. A Guiné-Bissau assinalará a primeira presença no Festival com a vinda de Ernesto Dabó, do qual se espera revelar ainda os seus dotes musicais.

Letras chinesas

Além de Can Koonchung e Lolita Hu contam-se ainda confirmados na área das letras chinesas Chen Xiwo, Zhou Jianing, Wu Mingy, Shen Haobo, Zheng Yuanjie, Yang Chia-Hsien e Zhang Yueran, considerada, em 2012, como uma das 20 escritoras do futuro pela People’s Literature. O seu romance “The Promise Bird” foi considerado o Melhor Romance Saga em 2006 e o seu conto “Ten Loves” foi nomeado para o Frank O’Connor Award.

Pulitzer e Filipinas


Os idiomas Português e Chinês continuam a dominar o Festival, mas a organização pretende continuar a apostar na diversidade não só de autores e trabalhos mas também de idiomas. Assim surgem o Espanhol e o Inglês, idiomas em que se destaca Junot Diaz, o escritor dominicano naturalizado americano, professor do MIT e premiado com o Pulitzer para melhor ficção em 2008 com o livro “The Brief Wondrous Life of Oscar Wao”.

Activista conhecido pela sua participação em organizações comunitárias em Nova Iorque, no Pro-Libertad e no Partido dos Trabalhadores Dominicanos, Diaz trará na sua bagagem a prosa humorística e sarcástica que o caracteriza.
Pela primeira vez, foram ainda convidados escritores das Filipinas – um tributo da organização ao que considera uma das comunidades mais importantes da cidade.

Assim surgem Angelo R. Lacuesta e Ana Maria Katigbak-Lacuesta. Angelo recebeu diversos prémios pela sua ficção, incluindo dois National Book Awards, o Madrigal Gonzalez Best First Book Award e vários Palanca e Philippines Graphic Awards e foi director-executivo da comissão de cinema no Film Development Council das Filipinas. Ana Maria obteve, em 2014, o primeiro lugar na categoria de Poesia no Don Carlos Palanca Memorial Awards for Literature, considerado o Prémio Pulitzer das Filipinas em termos de prestígio. Jordi Puntí (Espanha), Owen Martell (País de Gales), Jane Camens (Austrália), Angelo Lacuesta (Flipinas), Ana Maria Katigbak-Lacuesta (Filipinas) e Marita Conlon-McKenna (Irlanda) fecham esta lista.

Cinema e outras artes

Os cineastas locais Tracy Choi, Emily Chan e Cheong Kin Man irão apresentar filmes seus, ao lado de Luís Filipe Rocha, o adaptador ao cinema do livro de Henrique de Senna Fernandes “Amor e Dedinhos de Pé”.

Chega ainda a documentarista portuguesa premiada Sofia Marques e, para breve, aguarda-se a confirmação de um prestigiado cineasta chinês.

No campo das artes visuais poderão ser contempladas obras do artistas locais Alexandre Marreiros e Eric Fok; do Hunan chega o pintor e calígrafo Oyang Shijian. Mu Xinxin (também na qualidade de especialista de Tang Xianzu)e Carlos Morais José), a poeta Un Sio San, o tradutor literário e poeta Carlos André e o jornalista e escritor Mark O’Neill, que divide o seu tempo entre Hong Kong, Macau e a China continental, são outros dos convidados.

O orçamento para o Festival não irá sofrer grandes alterações em relação ao do ano transacto, continuando a custar cerca de 2,3 milhões de patacas dos quais 1,4 milhões serão providenciados pelo erário público.

O centro nervoso deste evento continuará a ser o edifício do velho tribunal.

22 Jan 2016

Literatura | IC apresenta “A Noite desceu em Dezembro”, a guerra de Henrique de Senna Fernandes

É já amanhã que se apresenta a obra “A Noite desceu em Dezembro”, história em fascículos que Henrique de Senna Fernandes escreveu para o jornal Ponto Final. Será também lançada uma nova edição de “A Trança Feiticeira”, bem como a tradução para Chinês de “Os Dores”

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]morte não cala as palavras, que perduram para sempre, ainda que sejam sobre uma guerra que esteve aqui tão perto. Desaparecido há cinco anos, Henrique de Senna Fernandes, um dos nomes mais sonantes da literatura contemporânea de Macau, volta a ser lembrado amanhã, com a edição de mais uma obra.
“A Noite desceu em Dezembro”, romance escrito em fascículos já publicados no jornal Ponto Final, é agora lançado em formato livro. Para além da nova obra, o Instituto Cultural (IC) vai também lançar uma nova edição de “A Trança Feiticeira”, bem como a tradução para Chinês de “Os Dores”, no âmbito da colecção “Obra Completa de Henrique de Senna Fernandes”.
A publicação da obra faz-se não só com o apoio do IC, como da editora Praia Grande Edições e da família de Henrique de Senna Fernandes. Ao HM, Ricardo Pinto, proprietário, contou como foi o processo de publicação de um projecto editorial que sempre foi pensado para sair da gaveta.
“No Ponto Final fizemos uma iniciativa intitulada ‘Cinco Anos, Cinco Livros’, em que colocámos cinco autores a escrever um romance por fascículos e Henrique de Senna Fernandes foi um dos autores. Este foi o livro que mais tardou a ser publicado porque, embora possa ser dado como concluído, a verdade é que Henrique de Senna Fernandes tinha em mente escrever um segundo volume”, disse Ricardo Pinto.
Por ter vivenciado o período da Guerra do Pacífico e das invasões japonesas sobre a China, o escritor achava que as experiências que observou não se esgotariam numa só obra. Mas o destino tirou-lhe a oportunidade de continuar a escrever.
“As histórias que tinha sobre o período da II Guerra Mundial eram tantas que achava que havia material para um segundo volume. Depois Senna Fernandes adoeceu, acabou por falecer e acabou por não iniciar esse volume. Fomos sempre retardando a publicação desse livro à espera que o segundo volume estivesse pronto, mas com o desaparecimento de Henrique de Senna Fernandes, o projecto ficou parado”, acrescentou Ricardo Pinto.

O fascínio da guerra

Miguel de Senna Fernandes, filho do autor, garantiu estar satisfeito por mais uma obra do pai poder ver a luz do dia. “É enternecedor ver pessoas apostar num autor que já não está entre nós, mas que continua a estar no espírito de muitas pessoas. Henrique de Senna Fernandes é um autor de Macau incontornável e quem queira conhecer Macau mais a fundo não pode deixar de ler a sua obra”, contou ao HM.
Miguel de Senna Fernandes recorda que, em vida, o pai sempre falou de “A Noite desceu em Dezembro”. “A guerra foi um cenário que sempre o fascinou. A história desenrola-se nesta altura, em Dezembro. Apesar da guerra já ter eclodido nesta fase, com a invasão do Japão à China, nunca um país asiático tinha estado em guerra com o Ocidente. Temos o eclodir da II Guerra Mundial nesta zona, o ataque a Pearl Harbour acontece a 27 de Setembro e o livro tem a ver com esse cenário. O meu pai viveu esta época, não viveu na guerra mas viu Macau a ser influenciada pela guerra”, contou o advogado.
Este fascínio “é motivo mais que suficiente para inspirar o autor a fazer este livro”, considerou Miguel de Senna Fernandes. “Este livro corresponde a uma primeira parte de uma obra mais vasta e, em vida, ele disse-me que era para uma primeira parte e depois disse-me ‘logo se vê como vai ser’”, recorda.

Senna em Chinês

A tradução para Chinês de “Os Dores” constitui um marco para a obra de Senna Fernandes, que sempre lamentou ser lido numa só língua. “Lembro-me dos desabafos do meu pai, numa altura em que a projecção literária dele era só Macau, e sentia-se frustrado, porque, para além dos poucos portugueses que estavam em Macau, quem iria ler a sua obra? Mas isso nunca o demoveu de escrever. Há, de facto, que quebrar esta barreira e é fundamental apostar na tradução das obras”, considerou Miguel de Senna Fernandes.
A última vez que Macau viu novas edições das histórias do filho da terra foi em 2012, quando o IC apostou na publicação de “Os Dores” e de “Amor e Dedinhos de Pé”, ambos do autor. A cerimónia de lançamento irá decorrer na Academia Jao Tsung-I, na Avenida do Conselheiro Ferreira de Almeida, pelas 18h30 e a entrada é livre.

1 Dez 2015

Internet

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[dropcap style=’circle]S[/dropcap]eria difícil de imaginar, há duas décadas, as vantagens que a internet nos traz hoje em dia como acompanhamento de leitura. Relembro este avanço, comovido, a propósito da leitura de um livro de W.G.Sebald, Austerlitz.

No seu início descreve-se um quadro de Lucas van Valckenborch, um pintor flamengo do século XVI, em que umas figurinhas patinam no gelo em Antuérpia. Em segundos a internet oferece-me o quadro, em tamanho decente e pormenor suficiente. Vejo, entre muitos patinadores, a senhora de amarelo caída no gelo e o senhor de calções vermelhos que a ajuda a levantar-se, burgueses contentes e um grupo entretido em volta de uma fogueira.

Logo de seguida consigo ver fotografias da grandiosa Estação Central de Antuérpia onde se passa o início da história de Sebald e onde nunca estive.

Alguns dirão que os seus livros contêm fotografias porque existe neles uma necessidade imensa de mostrar e eu não poderia estar mais de acordo, mesmo que esteja enganado. Estas fotografias, abundantes, acabam por marcar ainda mais intensamente a profunda solidão que envolve as figuras que Sebald examina nos seus livros de uma maneira que só a fotografia consegue fazer.

Os seus livros são como fotografias porque estas, ao mostrar, com rigor, acabam por nos transmitir a impossibilidade de ver verdadeiramente. Sabemos, ao ver as fotografias que os seus livros exibem e ao ler as suas ideias sobre os mecanismos da memória, que a garantia de permanência e realismo que a fotografia parece oferecer não passa também de uma ilusão.

Por outro lado, as explicações de Sebald são de uma clareza ofuscante, os objectos, edifícios, paisagens e impressões oferecidos com extrema delicadeza, mas também com extrema precisão. Isso acontece, por exemplo, na descrição do cemitério de Piana, na Córsega, no texto Campo Santo que dá o título a um dos seus livros.

Esta mecânica poderia levar-nos a pensar que a escrita é mais eficaz na representação do passado que a imagem fotográfica, ou indicar para a relativa ineficácia de ambas.

Uma das malandrices que Sebald nos oferece é uma que de início passa quase despercebida, e se tal acontece é porque existe uma mestria difícil de igualar: a quase total inexistência, em alguns textos, de parágrafos. O texto Campo Santo, por exemplo, não tem nenhum e em Austerlitz há longas passagens construídas da mesma maneira.

Austerlitz, a figura protagonista do livro com o mesmo nome, é-nos mostrada pelo autor muito detalhadamente, com uma bondade que não consegue disfarçar a admiração que aquele lhe causa. No entanto, quanto mais nos é mostrado mais nos convencemos da inutilidade da demonstração.

Milan Kundera (em The Art of the Novel) fala da ilusão do presente: “There would seem to be nothing more obvious, more tangible and palpable than the present moment. And yet it eludes us completely. All the sadness of life lies in that fact. In the course of a single second, our senses of sight, of hearing, of smell, register (knowingly or not) a swarm of events and a parade of sensations and ideas passes through our head. Each instant represents a little universe, irrevocably forgotten in the next instant.” *

Em The Emigrants Sebald conta-nos a história de quatro homens cujos destinos sofreram vários tipos de desajustes devido aos acontecimentos da Segunda Grande Guerra e à perseguição que vitimou os judeus durante os anos 30 e 40.

Termina com a descrição crua de umas fotografias tiradas no gueto de Litzmannstadt, estabelecido em Lodz em 1940. A última é a fotografia de três mulheres de cerca de vinte anos, entretidas no trabalho de fazer carpetes. “interrogo-me sobre como se chamariam estas mulheres – Roza, Luisa e Lea, ou Nona, Decuma and Morta”. E depois o silêncio.

Foi também Sebald que me fez voltar a Bruce Chatwin, outro autor que se mostra obsessivo em mostrar. Regressei ao autor inglês através de uma referência directa não a si próprio mas ao seu biógrafo, Nicholas Shakespeare. Lembre-se que Chatwin tem cinco livros de ficção, todos passados em lugares muito diversos: Patagónia, País de Gales, Austrália, Benin e Checoslováquia. Shakespeare percorreu todos esses lugares em busca do seu Chatwin, e é esta viagem que Sebald elogia.**

No livro What Am I Doing Here, que reúne vários tipos de pequenos textos este espalha-se pela União Soviética, o Benim, os Camarões, Hong Kong, Paris, o Peru ou o Afeganistão.

A sua obsessão pelo nomadismo, que o leva a teorizações não aceites por todos, tem uma semelhança grande em alguns dos textos de Sebald, onde as histórias que neles se revelam implicam quase sempre uma deslocação – muitas vezes forçada.

Em What Am I Doing Here, conta-nos que encontrou em Werner Herzog uma pessoa que partilha com ele a ideia do valor sacramental de caminhar e o seu valor como actividade poética que pode curar os males do mundo e continua contando um episódio ilustrativo desta crença: quando, em 1974, Herzog soube que Lotte Eisner estava a morrer, dispôs-se a percorrer a pé, através de um inverno rigoroso, a distância entre Munique e Paris “confiante de que poderia, de certa forma, curá-la através da sua caminhada”. Quando chegou ao apartamento de Eisner esta recuperara e viveu durante mais dez anos.

O entusiasmo que os livros de Chatwin suscitam é um entusiasmo juvenil e o rosto do próprio Chatwin nunca abandonou esse brilho entre o do adolescente e o de um sério diletante.

O que não conheço em Sebald é a confusão de alguns textos de Chatwin (em Songlines), uma escrita aos tropeções, uma obsessão por compreender algo que claramente nunca conseguiu perceber e muito menos sistematizar. Mas serviu para ir ver na internet o que é um dasyurus geoffroii e pensar na nomadização e nas origens da humanidade.

Outra vantagem da internet (este pequeno passeio começou por aí) prende-se com o acesso imediato a imagens animadas e/ou música. Nunca ouvira falar de Kevin Volans antes de ler o elogio que Chatwin lhe estende num dos textos constantes de What Am I Doing Here. A leitura do texto sobre o compositor sul-africano enriquece-se rapidamente porque a internet disponibiliza várias das peças deste compositor que estudou com Stockhausen e de quem eu nunca ouvira falar.

* retirado do monumental livro de Gardiner, John Eliot, Music in the Castle of Heaven, 2013.
** ver Sebald, W.G., “The Mystery of the Red-Brown Skin”, em Campo Santo.

1 Set 2015

Os que vão morrer te saúdam

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]audar a morte é talvez a mais conseguida expressão de uma vida lúcida. Nem todos têm este maravilhoso privilégio e as nossas sociedades nada preparam de filosófico e religioso que inaugure o ciclo desta realidade, entretida que anda em ser eterna. Agora que sabemos que o Universo lentamente se apaga, ou seja, também morre, algumas lembranças dos Homens que não a sentiam como horror ou tabu, pois que ilustres são todos aqueles que a esperam de pé — “de pé, como um Poeta ou um Cavalo, de pé, como quem deve estar quem é!”
Há uma bela frase talmúdica que diz: – o último instante de vida ainda é vida –: o que fez que muitos rabis, numa fila esperando pela morte, corrigissem os últimos textos, limassem os seus “metais”, depois depusessem o livro, o lápis e partissem. Não muito diferente dos gladiadores romanos que na arena saudaram a César a sua última batalha, Buda foi saudar a Lua de Maio e sorriu, Zaratustra subiu à montanha e esperou o Sol, e aqueles que subiam também às neves para o último suspiro em provas ritualísticas como Otto Rahn, o cátaro dos Pirenéus. Aliás, os últimos Cátaros não ofereceram resistência nenhuma, descendo uma montanha para o seu sopé, onde lhes esperava a fogueira. Há muitos seres que entram nos abismos a sorrir. Que terão eles mais do que nós, os parasitas do medo, os grandes prazenteiros? Creio que eles têm mais do que nós, uma educada consciência da fragilidade e da insignificância de tudo, mas ao mesmo tempo uma forte noção da sacralidade da vida.
Certas mortes rituais não são bem-vindas, fazem parte de um espectro primitivo muito agudo, como aquele onde fazer correr sangue acalma a divindade. O Templo de Salomão tinha essa prática, pela primeira vez com sangue animal. Daí Abraão ter sido tão importante dado que põe fim ao infanticídio das sociedades pré-agrárias, aquele Anjo que impediu o Holocausto é a consciência de um novo patamar humano. Mas a saga não acaba aqui, como reminiscência ainda aparece Cristo, que vem lembrar que o Pai mata o Filho e que nessa morte o filho se Abandona. Ele não pode lutar, nem sabe, perante esse Saturno mau que engole a progenitura e, num abandono tocante e grandioso, ele quase agradece a sua sorte tão ditosa como a de um outro qualquer eleito, pois que nesses instantes que se percorre o “fio de prata” estamos cosmicamente sós, mais sós do que a nossa solidão alguma vez pôde pensar. Aqui, nem amigos, nem pai, nem família, nem povo, nem tribo… Só uma mãe alquímica e suave como a luz de Deus chora um ser que é seu, não somos amados por mais ninguém, ninguém nos viu, ninguém nos sonha, ninguém sabe dessa dor. Há inclusive uma bela passagem do Purgatório de Dante canto XXVII que explica talvez isto:

Chegados ao grau último da escada
Disse Virgílio, olhando-me nos olhos,
Com voz firme suave e sossegada.
Do lugar onde toda a alma chora
E dos duros caminhos já liberto.
Para ti, finalmente, chegou a hora.
A ajudar-te, deixa-te andar….pois não ouvirás mais os meus conselhos.
Conselhos de pai sábio ao seu menino.
A tua vontade é livre, inteira e pura.
Constituo-te senhor do teu destino.

O que pode acontecer nas várias saídas de todos nós, é nem ouvirmos o que algo nos tem para dizer, e nem sempre o suicídio parece calmo ou aceitável, afinal, não se resolve morrer: morremos.
Antero faz-me sempre uma dura impressão pela forma dolorosa da sua longa agonia, ele não merecia este esgotar-se de si mesmo, este estertor, esta lancinante dor, ele que era “santo” acabou por se diluir no seu espectro mais carregado. E também os pequenos suicídios que ao longo da jornada infringimos parecem actos de impaciência e de curiosidade, mas não lhe apanhamos o sentido, já que tantos precisam de nós…..
“Fazes falta? Não fazes falta a ninguém”. Pessoa assim o afirmava, mas podemos fazer-nos falta a nós como agentes que somos de habitantes de um deus desconhecido e isso é a mais faltosa de todas as faltas. Há quem nos procure ainda por telepatia, por puro orquestrar de factos maiores… há aqueles que prolongam os nossos segundos antes do desconhecido….é bom?! É doce, no entanto.
Nós, gladiadores de todas as batalhas diremos no Portal: Nós te saudamos! Tudo o mais foi acaso e ter nascido.

18 Ago 2015

“Nada Tenho de Meu” – #02

“Nada Tenho de Meu, um Diário de Viagem no Extremo Oriente”

Autoria: Miguel Gonçalves Mendes, Tatiana Salem Levy, João Paulo Cuenca
Montagem: Pedro Sousa
Narrador: Siung Chong
Desenho de Som: 1927 Audio
Tema Original: Pedro Gonçalves
Produção: JumpCut

21 Jul 2015

“Nada Tenho de Meu” – #01

“Nada Tenho de Meu, um Diário de Viagem no Extremo Oriente”

Autoria: Miguel Gonçalves Mendes, Tatiana Salem Levy, João Paulo Cuenca
Montagem: Pedro Sousa
Narrador: Siung Chong
Desenho de Som: 1927 Audio
Tema Original: Pedro Gonçalves
Produção: JumpCut

24 Jun 2015