Hoje Macau EventosÓbito | Morreu o Nobel da Literatura V.S. Naipaul O Prémio Nóbel da Literatura, V.S. Naipaul morreu ontem com 85 anos. O aclamado escritor de ascendência indiana deixou a sua marca na literatura internacional, apesar das muitas posições polémicas que defendeu e que lhe valeram acusações de racismo e sexismo [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]escritor V.S. Naipaul, prémio Nobel da Literatura em 2001, morreu ontem com 85 anos na sua casa em Londres, anunciou a família. A mulher de Vidiadhar Surajprasad Naipaul, Nadira Naipaul, anunciou que o escritor “morreu rodeado por aqueles que amava, depois de ter vivido uma vida recheada de criatividade e propósito”. Naipaul foi agraciado com o Nobel da Literatura em 2001 por ter “uma narrativa perceptiva unida e um escrutínio incorruptível em trabalhos que nos obrigam a reparar na presença de histórias reprimidas”. Com uma carreira que abarcou meio século, o escritor viajou, numa descrição do próprio citada pela Associated Press (AP), como um “colonial descalço” da rural ilha de Trinidad (Trindade e Tobago) para a classe alta inglesa, conquistou os mais cobiçados prémios literários e um título de nobreza (foi ordenado cavaleiro), e foi elogiado como um dos maiores escritores ingleses do século XX. Entre as suas obras mais aclamadas estão os romances, traduzidos em português, “A Curva do Rio” ou “Uma Casa para Mr. Biswas”, sendo ainda autor de “Uma Vida pela Metade”, “Num Estado Livre”, “A Máscara de África” ou “Para Além da Crença”, entre dezenas de outros. A sua obra explorava o colonialismo e a descolonização, o exílio e as lutas do homem comum num mundo em desenvolvimento – temas que ecoam as suas origens e a sua trajectória. Escritor polémico Apesar de a sua escrita ser amplamente elogiada pela compaixão em relação aos mais pobres e aos deslocados, Naipaul ofendeu muitas pessoas com o seu comportamento arrogante e piadas sobre antigos súbditos do império britânico. A AP recorda quando apelidou a Índia de “sociedade de escravos”, gracejou que África não tem futuro e explicou que as mulheres indianas usam um ponto vermelho na testa para dizer: “a minha cabeça é vazia”. Em 1989 Naipaul riu-se da ‘fatwa’ (decreto religioso islâmico) contra Salman Rushdie, também escritor britânico, também de ascendência indiana, dizendo que era “uma forma extrema de crítica literária”. Outro caribenho laureado com o Nobel da Literatura, Derek Walcott, criticou que a prosa de V. S. Naipaul ficava manchada pela sua “repulsão em relação aos negros”. O escritor de Trinidad C.L.R. James disse-o de outra forma, escrevendo que os pontos de vista de Naipaul reflectiam simplesmente “o que os brancos queriam dizer, mas não se atreviam”. Da Índia para o mundo Vidiadhar Surajprasad Naipaul – Vidia, para os que o conheciam de perto – nasceu a 17 de Agosto de 1932, na ilha de Trinidad, descendente de indianos empobrecidos embarcados para as Índias Ocidentais como trabalhadores em regime de semi-escravatura. O seu pai era um aspirante a romancista autodidacta cujas ambições foram destruídas por falta de oportunidades. O filho estava determinado a deixar a sua terra natal o mais cedo possível, e anos mais tarde referiu-se repetidamente ao lugar onde nasceu como pouco mais do que uma plantação. Em 1950, Naipaul ganhou uma das poucas bolsas de estudo do Governo para estudar em Inglaterra e deixou para trás a sua família para iniciar estudos de Literatura Inglesa na University College, Oxford. Foi lá que conheceu a sua primeira mulher, Patricia Hale, com quem casou em 1955. Depois de se diplomar, Naipaul passou por um período de dificuldades financeiras e apesar da sua educação em Oxford, viu-se rodeado por um ambiente hostil e xenófobo em Londres, tendo escrito numa carta à sua mulher: “esta gente quer quebrar-me o espírito… querem que saiba qual é o meu lugar”. A estreia literária aconteceu em 1957, com o livro “The Mystic Masseur”, um livro com humor sobre a vida das pessoas pobres de um gueto em Trinidad. Em 1959 conquistou o Somerset Maugham Award com a colecção de contos “Miguel Street” e em 1961 publicou aquele que a crítica considerou uma obra-prima, “Uma Casa para Mr. Biswas”, e que prestou tributo ao seu pai, contando a história de um homem com uma vida restringida pelos limites de uma sociedade colonial. Seguiram-se outros prémios, o título de nobreza de Cavaleiro em 1990 e o Prémio Nobel da Literatura em 2001. A AP recorda que à medida que crescia o seu prestígio literário crescia também a sua reputação de homem difícil com personalidade irascível, sendo descrito como um homem reservado que não tinha muitos amigos. Um dos poucos, o escritor norte-americano Paul Theroux, e de quem acabaria por se afastar, tendo o americano em 1998 descrito Naipaul numa biografia como “racista, sexista, que fazia birras terríveis e batia em mulheres”. Apesar de ter ignorado o livro de Theroux, acabaria por autorizar em 2008 uma outra biografia onde admitia alguns dos factos relatados pelo americano e confessava que acreditava que a sua confissão de recorrer a prostitutas tinha contribuído para a morte da sua primeira mulher, que morreu de cancro de mama em 1996. Dois meses depois da morte de Patricia Hale casou com a sua segunda mulher, Nadira Alvi, depois Nadira Naipaul, uma colunista paquistanesa.
Sofia Margarida Mota Eventos MancheteRota das Letras | Jung Chang e JP Simões marcam abertura do festival literário [vc_row][vc_column][vc_column_text] Começa já no próximo dia 10 de Março o festival literário local “Rota das Letras”. Os nomes já começaram a ser divulgados há algumas semanas e ontem foi dada a conhecer a lista completa de convidados. O destaque vai para a presença na abertura do evento da autora de “Cisnes Selvagens”, Jung Chang e do concerto do português JP Simões [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ão cerca de 60 os convidados da sétima edição do festival literário de Macau, “Rota das Letras”. Jung Chang, autora de “Cisnes Selvagens – Três Filhas da China”, considerado pelo Asian Wall Street Journal o livro mais lido sobre a China e que retrata uma centena de anos no país através dos olhos de três gerações de mulheres, tem presença confirmada na abertura da edição deste ano do evento. A informação foi dada ontem em conferência de imprensa pelo director, Ricardo Pinto. De acordo com o responsável a presença de Jung Chang merece especial destaque. “Na minha geração, eram os romances da Pearl S. Buck, hoje em dia talvez “Os Cisnes Selvagens” seja, de facto, essa porta de entrada na literatura chinesa e, sobretudo na história recente da China. É uma autora com uma dimensão enorme, popularíssima”, referiu. A autora é ainda conhjecida pelas obras “Mao: A História Desconhecida” e “A Imperatriz Viúva – Cixi, a Concubina que mudou a China”. As obras de Jung Chang estão traduzidas em mais de 40 idiomas, tendo vendido acima dos 15 milhões de exemplares. Vencedora de diversos prémios, incluindo o UK Writers ‘Guild Best Non-Fiction e o Book of the Year UK, foi distinguida com doutoramentos honoris causa por universidades no Reino Unido e nos EUA. Nascida na província de Sichuan em 1952, durante a Revolução Cultural (1966-1976), Jung Chang trabalhou como camponesa, “médica de pés descalços”, operária siderúrgica e electricista, antes de se tornar estudante de Inglês na Universidade de Sichuan. Mudou-se para o Reino Unido em 1978 e doutorou-se em Linguística pela Universidade de York, tornando-se a primeira pessoa da China comunista a obter tal grau numa universidade britânica. Vidas multiculturais Ricardo Pinto destacou ainda a presença de Li-Young Lee, poeta americano premiado e autor de várias colectâneas de poesia e da autobiografia “The Winged Seed: A Remembrance”. Nascido em Jacarta, filho de pais chineses, “Lee cedo aprendeu sobre a perda e o exílio”, refere a organizção. O seu avô, Yuan Shikai, foi o primeiro Presidente republicano da China logo após o período provisório de Sun Yat-sen, e o pai, cristão fervoroso, foi o médico de Mao Tse-Tung. Quando o Partido Comunista da China se estabeleceu, os pais de Lee mudaram-se para a Indonésia. Em 1959, o seu pai, depois de passar um ano como prisioneiro político do Presidente Sukarno, fugiu com a família para escapar à xenofobia contra os chineses. Depois de um périplo de 5 anos, passando por Hong Kong, Macau e Japão, fixaram-se nos Estados Unidos em 1964. Ricardo Pinto espera ainda que a presença em Macau do escritor durante duas semanas possa vir a inspirar os seus escritos futuros. “Espero que Li-Young Lee use estas duas semanas para escrever algumas histórias sobre o território”, disse. Por fim, o director do “Rota das Letras” sublinhou a presença de Marco Lobo. Com ligações a Macau, o escritor residente em Tóquio é conhecido pelo seu interesse na diáspora portuguesa. O facto de ter tido acesso a uma educação multicultural que teve início em Macau e Hong Kong, e se estendeu pela Ásia, Europa e pelas Américas permitiu-lhe observar de perto as diversas sociedades em que a cultura portuguesa se difundiu. Os seus romances históricos, “The Witch Hunter’s Amulet” e “Mesquita’s Reflections”, exploram a temática dos conflitos culturais envolvendo raça e religião, aponta o organizador. No que toca aos países lusófonos, a Rota das Letras traz ao território Rui Cardoso Martins, escritor e argumentista, autor das crónicas “Levante-se o Réu” e “Levante-se o Réu Outra Vez” — Grande Prémio APE/Crónica 2016 e dois prémios Gazeta. Tem ainda quatro romances publicados, com destaque para “Deixem Passar o Homem Invisível”, Grande Prémio APE, 2009. Também Isabel Lucas, jornalista, crítica literária e autora de “Viagem ao Sonho Americano” vai marcar presença no território. Com um pé na literatura e outro na música, vai estar em Macau Kalaf Epalanga, membro da ex-banda Buraka Som Sistema e autor de três romances. Juntam-se a estes, a historiadora e escritora Isabel Valadão, a professora catedrática, poeta, ensaísta e dirigente do projecto Literatura-Mundo Comparada em Português, Helena Carvalhão Buescu, a cabo-verdiana Dina Salústio, e Albertino Bragança de São Tomé e Príncipe. Outro dos convidados do festival deste ano é o romancista, jornalista e professor universitário filipino Miguel Syjuco. O seu romance de estreia, Ilustrado, foi NY Times Notable Book em 2010 e vencedor do Man Asian Literary Prize. Estes nomes vão juntar-se à dissidente e ativista dos direitos humanos norte-coreana Hyeonseo Lee, a Suki Kim, que passou seis meses infiltrada naquele país, aos lusófonos Maria Inês Almeida, Rui Tavares e Ana Margarida de Carvalho, Ungulani Ba Ka Khosa, de Moçambique, e Julián Fuks, do Brasil. Os autores locais terão também um papel importante no programa da Rota das Letras. A poetisa, catedrática e cronista Jenny Lao-Phillips, o catedrático e escritor de infanto-juvenil Paul Pang, o poeta Rui Rocha, o poeta e historiador Fernando Sales Lopes e a romancista Isolda Brasil participarão em várias sessões ao longo das duas semanas do evento. Outras artes No que toca às artes plásticas e visuais, o “Rota das Letras” volta a apresentar uma série de exposições. Uma mostra colectiva de artistas e arquitectos locais, com curadoria da arquitecta Maria José de Freitas traz nomes como Ung Vai Meng, Carmo Correia, Adalberto Tenreiro, António Mil-Homens, Chan In Io, João Miguel Barros, Francisco Ricarte, Gonçalo Lobo Pinheiro e Manuel Vicente numa exposição sob o tema “River Cities Crossing Borders: History & Strategies”, no Edifício do Antigo Tribunal. O artista local João Ó exibirá “Modelo para Impossível Tulipa Negra”, parte de um projecto maior intitulado Palácio da Memória. Apresentado inicialmente no Museu Nacional da História Natural e da Ciência, de Portugal, o projecto reflecte sobre a figura e feitos do sacerdote e cientista Matteo Ricci, jesuíta italiano do século XVI que se estabeleceu, via Macau, na China continental. O nome invoca a “Carta Geográfica Completa de Todos os Reinos do Mundo”, desenhado por Ricci em 1584 e impresso em xilogravura em 1602. Na Livraria Portuguesa de Macau, o “Rota das Letras” apresenta “Paisagens Literárias de um Viajante”, uma exposição do artista português Rui Paiva, que viveu em Macau durante vários anos. Juntamente com a sua obra e objectos de colecção, Rui Paiva irá lançar o seu livro recentemente publicado, “Nuvem Branca”, livro de artista e de vida. Duas outras exposições organizadas por parceiros de longa data do Festival, a Fundação Oriente e a Creative Macau, farão também parte do programa. “Rostos de Poesia”, do artista chinês Chen Yu, será inaugurada a 13 de Março na Casa Garden, seguida por uma sessão de poesia. “Pinacatroca”, pelo cartonista local Rodrigo de Matos, estará patente na Creative Macau de 22 de Março a 21 de Abril. Letras na tela São cinco os filmes apresentados pela sétima edição do festival literário de Macau. A realizadora portuguesa Rita Azevedo Gomes terá duas películas: “Correspondências”, baseado na troca de correspondência entre Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de Sena, e “A Vingança de uma Mulher”. Ju Anqui traz a Macau o seu último título, “Poet on a Business Trip”. O escritor e realizador Han Dong irá mostrar “At the Dock”. Já o poeta Yu Jian apresentará o documentário “Jade Green Station”.[/vc_column_text][vc_column_text css=”.vc_custom_1518569357434{margin-top: 10px !important;border-top-width: 1px !important;border-right-width: 1px !important;border-bottom-width: 1px !important;border-left-width: 1px !important;padding-top: 8px !important;padding-right: 8px !important;padding-bottom: 8px !important;padding-left: 8px !important;background-color: #f9f9f9 !important;border-left-color: #777777 !important;border-left-style: solid !important;border-right-color: #777777 !important;border-right-style: solid !important;border-top-color: #777777 !important;border-top-style: solid !important;border-bottom-color: #777777 !important;border-bottom-style: solid !important;}”] Ritmos, canções e letras JP Simões apresenta-se actualmente sob o nome Bloom A edição deste ano conta ainda com a apresentação de dois concertos. No sábado, 10 de Março, pelas 21h, no Pacha Macau, JP Simões-Bloom subirá ao palco, seguido da DJ Selecta Alice. Bloom é o novo pseudónimo de JP Simões, músico e compositor português que esteve envolvido em vários projectos como Pop dell’Arte, Belle Chase Hotel e Quinteto Tati. De acordo com a organização, “a busca de uma nova sonoridade levou-o para caminhos musicais bastante distintos do seu trabalho habitual”. “Tremble like a Flower” é o nome do seu primeiro álbum a solo, que se move por ambientes próximos do folk e do blues atravessados por paisagens psicadélicas, e será apresentado em dueto com o músico, compositor e produtor Miguel Nicolau. Logo a seguir, a DJ Selecta Alice toma o controlo da pista de dança. Ela é uma das impulsionadoras e pioneira da World Music em Dj set em Portugal. Curadora do palco do Sacred Fire no Boom Festival, Selecta Alice homenageia nos seus sets a cultura da festa e da celebração da vida através da música e do ritual da dança. Os ritmos de África, América Latina, Balcãs e Índia são paragens obrigatórias nas suas viagens sonoras à volta do mundo. Domingo, 18 de Março, pelas 20h, é a vez de Zhou Yunpeng subir ao palco no Teatro D. Pedro V. Zhou é um cantor folk e poeta natural de Shenyang, que ficou cego aos nove anos. Aos 10 anos, começou a frequentar a Escola para Crianças Cegas de Shenyang e, posteriormente, o Instituto de Educação Especial da Universidade de Changchun (1991), onde estudou Língua Chinesa. Concluído o curso, mudou-se para Pequim e começou a sua carreira musical. Em 2011, recebeu os prémios de “Melhor Cantor Folk” e “Melhor Letrista” da Chinese Media Music, e o seu poema “The Wordless Love” foi considerado “Melhor Poema” pela revista People Literature. Também participou no filme Detective Hunter Zhang e assinou a banda sonora do mesmo – a película veio a ganhar o galardão de Melhor Filme no Festival de Cinema Golden Horse (Taiwan). Em 2017, foi responsável pela banda sonora do filme At the Dock. Contos com fartura A edição deste ano ao concurso de contos contou com uma adesão recorde. Foram um total de 190 textos recebidos nas línguas portuguesa, chinesa e inglesa. “A maioria são em português com participantes de Portugal, Macau e muitos do Brasil”, referiu o director de programação, Helder Beja. Para o responsável, o aumento do número de trabalhos recebidos é visto com muito “bons olhos na medida em que é o reflexo do trabalho que o festival tem vindo a desenvolver ao longo dos anos”. [/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]
Hoje Macau EventosIsolda Brasil lança primeiro romance em português [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] escritora Isolda Brasil, radicada em Macau, distinguida em 2015 com um prémio literário nos Estados Unidos, lança “O Último Sangue da Trindade”, o seu primeiro romance em português, com a chancela da Alfarroba. O livro “conta a história de várias gerações de uma família extremamente matriarcal”, habitante de uma ilha que, embora sem ser identificada, encontra “paralelismo com os Açores, acompanhando acontecimentos históricos do arquipélago ao longo do século XX, ainda que ‘en passant’, com muitos elementos de realismo mágico”, explicou a autora, em entrevista à agência Lusa. A saga familiar, narrada por uma das bisnetas de Trindade (a quem se deve o título da obra), explora “um universo feminino em que os homens assumem um papel muito particular”, desvelando “mulheres que são sempre só mulheres ou mães que são sempre só mães a vida toda, sem nunca chegarem a ser mulheres”. Embora seja madeirense, Isolda Brasil mudou-se muito cedo para os Açores, pelo que conhece bem a realidade com a qual encontra paralelismo a ilha que concebeu como palco para o desenrolar da história d’ “O Último Sangue da Trindade”. “Os Açores são conhecidos pelos fenómenos meteorológicos, pelo que os estados de humor ou os episódios marcantes que acontecem na vida das personagens têm um impacto muito grande no tempo”, explica a escritora, dando o exemplo de uma tempestade de granizo desencadeada por um desgosto amoroso. “Esta presença vincada do elemento mágico por toda a narrativa, em íntimo convívio com a história da família, e em sobreposição do real acaba por trazer um forte elemento místico à história”, salienta Isolda Brasil, advogada de profissão. “O Último Sangue da Trindade” tem ainda a singularidade de não estar dividido por partes ou capítulos, tornando una, a “série de histórias intricadas” que dão vida ao romance de cerca de 500 páginas. “É um aspecto que perturba um pouco as pessoas, mas que é propositado”, porque “pretende-se transmitir a ideia ou a sensação de estares sentada a ouvir uma história oral a ser contada”, algo que a própria linguagem também vai sustentando, sublinha Isolda Brasil. “Quando um acontecimento acaba, há sempre um elemento de ligação para o seguinte – todas as histórias estão interligadas”, frisa a escritora de 39 anos. Reconhece que ‘encaixar’ o romance num formato de “história corrida”, sem qualquer separador, foi “a parte mais difícil e a que mais trabalho deu”, mas considera que a escolha que fez, fruto da vontade de “fazer algo diferente”, acabou por conferir um “encadeamento distinto” à obra. “O Último Sangue da Trindade” figura como o primeiro livro em português de Isolda Brasil que, em 2015, venceu, na categoria de romance, o prémio revelação de escritores independentes dos Estados Unidos The IndieReader Discovery Awards (IRDA, na sigla em inglês). A obra premiada foi “The Wanton Life of My Friend Dave”, uma edição de autor que lançou em 2014 sob o pseudónimo de Tristan Wood, e que marcou a sua estreia no mundo da escrita ao qual gostava, confessa, de dedicar-se a tempo inteiro. “O que eu gosto realmente de fazer é escrever. A escrita é a minha paixão e era o que gostava de fazer da minha vida”, sublinha a autora d’“O Último Sangue da Trindade”, obra que terminou há dois anos, mas que apenas agora é dada à estampa. Isolda Brasil começou por ‘pôr-se à prova’ no género literário do conto, com “Love Letters from Macau” a valer-lhe, em 2013, uma menção honrosa no concurso inserido no Rota das Letras, que seria depois publicado no segundo volume da colecção de contos do Festival Literário de Macau, que se realiza em três línguas (português, chinês e inglês). “O Último Sangue da Trindade” vai estar disponível nos escaparates das livrarias nos próximos dias, sem que haja lugar a uma sessão de lançamento em Portugal devido à ausência da autora, embora não esteja descartada a hipótese de uma apresentação da obra em Macau, onde vive.
Hoje Macau EventosFestival Literário de Cabo-Verde com representação de Macau [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau está representado com o escritor Carlos Morais José na Festa do Livro, na Cidade da Praia. O evento começou ontem e reúne 40 autores, numa programação que se estende às escolas, com espetáculos musicais e debates. A organização, a cargo do Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas e da Biblioteca Nacional de Cabo Verde com produção executiva da Booktailors, aponta o evento, que vai decorrer em vários espaços da capital cabo-verdiana, como “o maior evento literário dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP)”. O Morabeza “pretende assumir-se como um ponto de ligação entre os vários continentes onde a expressão portuguesa está presente e viva”, afirma a organização, referindo parcerias firmadas com o Festival Rota das Letras, de Macau, o Festival da Palavra, de Porto Rico e Nova Iorque, e o Literatura em Viagem, de Matosinhos. A programação da festa tem prevista uma feira do livro, mesas de debate, concertos, sessões de poesia, acções de formação, visitas a escolas e universidades, um colóquio dedicado ao poeta Eugénio Tavares (1867-1930), um seminário internacional sobre o escritor cabo-verdiano Luís Romano, que se radicou no Brasil na década de 1960, e ainda a pintura de um mural pelo duo Acidum. De acordo com o programa, o Morabeza abriu ontem com uma sessão especial por Olinda Beja, na livraria da Biblioteca Nacional de Cabo Verde, intitulada “Escrever como quem planta ocás” e dedicada ao público infantil e juvenil. Também ontem foi apresentada a reedição da “Obra de Eugénio Tavares”, na Biblioteca Nacional de Cabo Verde. Um pouco de tudo Até domingo, quando encerra o evento, está prevista a realização de dez mesas-redondas sob diferentes motes como “É doce morrer no mar”, uma canção dos brasileiros Jorge Amado e Dorival Caymmi, ou “Tantu stória pa-m Kontâ-bu”, que aborda a tradição oral, um ciclo de conversas com os escritores “em diversas universidades das ilhas” cabo-verdianas, e a apresentação do livro “Debaixo da nossa Pele – Uma Viagem”, de Joaquim Arena. Entre os cerca de 40 autores que vão participar neste evento, foram já anunciados os nomes de Germano Almeida, autor de “O Testamento do Senhor Napumoceno”, José Eduardo Agualusa, que recentemente publicou “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” e recebeu este ano o Prémio IMPAC de Dublin pelo romance “Teoria Geral do Esquecimento”, e ainda Afonso Cruz, Alexandra Lucas Coelho, José Rodrigues dos Santos, Valter Hugo Mãe, Vera Duarte e Álvaro Laborinho Lúcio. Na área dos espectáculos, um trio composto pelos músicos Isabella Bretz, Matheus Félix e Rodrigo Lara apresentará “Canções para abreviar distâncias”, que inclui poemas de José Luís Peixoto (Portugal), Adélia Prado (Brasil), Mia Couto (Moçambique), Vera Duarte (Cabo Verde), Conceição Lima (São Tomé), Odete Semedo (Guiné-Bissau), Ana Paula Tavares (Angola) e Crisódio Araújo (Timor-Leste). “Mais do que um encontro de escritores, esta festa literária procura ser um palco internacional para a produção literária cabo-verdiana e para o desenvolvimento do meio editorial local”, afirma a organização da Morabeza – Festa do Livro.
Hoje Macau EventosPrémio José Saramago | Brasileiro Julián Fuks é o vencedor deste ano [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m valor superior a 230 mil patacas será entregue ao escritor brasileiro pelo romance “A Resistência”, publicado em 2015. Esta é a segunda vez que a obra é premiada. O Prémio José Saramago 2017, no valor pecuniário de 25 mil euros (mais de 230 mil patacas), distinguiu o romance “A Resistência” do autor brasileiro Julián Fuks, foi ontem anunciado na Casa dos Bicos, em Lisboa, sede da Fundação José Saramago. “Estamos perante um excelente romance. Colocando-se no registo de atestação de uma experiência pessoal intensa, Julián Fuks conseguiu alcançar em ‘A Resistência’ o difícil patamar da contenção discursiva no interior daquele arco simultaneamente emocional e intelectual que define as construções literárias mais cativantes”, afirma, na sua declaração, o crítico literário Manuel Frias Martins, um dos membros do júri. O Prémio José Saramago foi instituído pela Fundação Círculo de Leitores, em 1999, com o objectivo de distinguir jovens escritores de língua portuguesa, cuja idade não ultrapasse os 35 anos, aquando da publicação da obra. A obra “A Resistência”, de Fuks, publicada em 2015, recebeu no ano passado, no Brasil, o Prémio Jabuti para o Melhor Romance. Em “A Resistência”, segundo a Fundação Círculo de Leitores, o autor desenvolve a história de uma família argentina a partir de 1976, quando se deu o golpe de Estado que derrubou a Presidente María Estela Perón, e instaurou o poder ditatorial de uma junta militar, que governou o país até Dezembro de 1983. “‘Meu irmão é adoptado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adoptado’, anuncia, logo no início, o narrador deste romance. O leitor descobre-se à partida imerso numa memória pessoal que se revela também social e política”, lê-se na mesma informação à imprensa. “Do drama de um país, a Argentina a partir do golpe de 1976, desenvolve-se a história de uma família, num retrato denso e emocionante. Adoptado por um casal de intelectuais que logo iria procurar exílio no Brasil, o rapaz cresce, ganha irmãos e as relações familiares tornam-se complexas. Cabe então ao irmão mais novo o exame desse passado e, mais importante, a reescrita do próprio enredo familiar”, refere o mesmo comunicado, que remata: “Um livro em que emoção e inteligência andam de mãos dadas, tocando o coração e a cabeça dos leitores”. Percurso feliz Julián Fuks, filho de pais argentinos, nasceu em São Paulo, no Brasil, em 1981. O autor publicou o primeiro livro, “Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu”, em 2004, tendo ganhado o Prémio Nascente da Universidade de São Paulo. Em 2007 e 2012 foi finalista do Prémio Jabuti, com os livros “Histórias de Literatura” e “Cegueira”, respectivamente. O autor foi também finalista do Prémio Portugal Telecom, actual Oceanos, e do Prémio São Paulo de Literatura, com “Procura do romance”. A revista Granta apontou-o como um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros. “A Resistência” é o seu quarto romance, com o qual recebeu o Prémio Jabuti Melhor Romance, se classificou entre os finalistas do Prémio Oceanos, no ano passado, e pelo qual recebeu a Menção Honrosa no Prémio Rio de Literatura. O júri da edição deste ano do Prémio José Saramago foi constituído pela poetisa angolana Ana Paula Tavares, pela professora de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa Paula Cristina Costa, pelo escritor português António Mega Ferreira, pela investigadora Nazaré Gomes dos Santos, da Universidade Autónoma de Lisboa, além de Manuel Frias Martins, crítico literário e ensaísta, doutorado em Teoria da Literatura e vice-presidente da Associação Portuguesa dos Críticos Literários, de Pilar del Rio, presidente da Fundação José Saramago, e da escritora Nelida Piñon. O Prémio Saramago é bienal e, nas edições anteriores, distinguiu os escritores Paulo José Miranda, José Luís Peixoto, Adriana Lisboa, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, João Tordo, Andréa del Fuego, Ondjaki e Bruno Viera Amaral.
Hoje Macau EventosCabo Verde | VII Encontro de Escritores de Língua Portuguesa Começa amanhã o sétimo Encontro de Escritores de Língua Portuguesa na capital cabo-verdiana da Praia. No evento, que decorrerá até domingo, participa o autor de Macau Carlos Morais José, entre um elenco com quase três dezenas de convidados ligados às letras e comunicação [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]rranca amanhã mais uma edição do Encontro de Escritores de Língua Portuguesa na cidade da Praia. Este ano, a capital de Cabo Verde recebe 26 participantes de várias áreas das letras e da comunicação, com painéis onde participam personalidades ligadas à literatura, cinema, televisão, rádio e internet. O encontro é organizado pela União das Cidades Capitais de Língua Portugal (UCCLA) em parceria com a vereação da cultura da Câmara Municipal da Praia. O evento procura estabelecer pontes entre as diversas disciplinas abordadas e tem como objectivo contribuir para o diálogo e enriquecimento recíproco entre autores dos vários cantos do mundo onde se fala português. Entre os portugueses contam-se nomes como Carlos Morais José, Diana Andringa, António-Pedro Vasconcelos, José Carlos Vasconcelos, Rui Simões, Nuno Rebocho. A participação cabo-verdiana estará a cargo de Vera Duarte, Fátima Bettencourt, Daniel Medina, Rony Moreira, César Schofield Cardoso e Carlos Santos. Do Brasil chegam Thiago Braga e António Carlos Secchin. A representar Moçambique estará Ana Mafalda Leite, Olinda Beja representa São Tomé e Príncipe, Zezé Gamboa vem de Angola e Emílio Tavares Lima da Guiné-Bissau. Antes do Festival Em declarações à Lusa, o vereador da cultura da cidade da Praia, António Lopes da Silva referiu que os participantes do encontro vão discutir as diversas formas como a literatura penetra interdisciplinarmente no quotidiano mediático, seja na cinema, na rádio, televisão ou online. “Não vamos falar só de literatura, mas também de tudo o que está à sua volta”, salientou o autarca, referindo que o objectivo é entrar noutros campos que dominam a comunicação. António Lopes da Silva acrescentou à Lusa que “é interessante ver como nos tempos modernos a literatura também se adapta a novas formas de apresentar e discutir ideias”. O evento que reúne autores lusófonos é o aperitivo servido antes da estreia do Morabeza – Festa do Livro, organizado pelo Ministério da Cultura de Cabo Verde. O festival, também na cidade da Praia, reúne cerca de quatro dezenas de autores entre 30 de Outubro e 5 de Novembro. Os dois acontecimentos fazem parte do esforço do município da Praia para colocar a cidade na rota dos eventos culturais de relevo dentro do universo lusófono. Este é o segundo ano consecutivo em que o encontro se realiza na Praia depois das quatro primeiras edições terem sido em Natal, no Brasil, e da quinta edição em Luanda.
Hoje Macau EventosMan Booker Prize | Paul Auster, Ali Smith e George Saunders entre os finalistas Os escritores Paul Auster, Emily Fridlund, Mohsin Hamid, Fiona Mozley, George Saunders e Ali Smith são os seis finalistas do Prémio Man Booker. No próximo mês, é distinguida a melhor obra de ficção do ano escrita em língua inglesa [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] anúncio foi feito ontem e a lista inclui “4 3 2 1”, de Paul Auster (ver texto nestas páginas), “History of Wolves”, de Emily Fridlund, “Exit West”, de Mohsin Hamid, “Elmet”, de Fiona Mozley, “Lincoln no Bardo”, de George Saunders, e “Outono”, de Ali Smith. Entre as obras finalistas, estão publicados em Portugal os livros de Paul Auster, Ali Smith e George Saunders. Nesta edição do Man Booker prize, ficaram para trás “Days Without End”, de Sebastian Barry, “Solar Bones”, de Mike McCormack, “Reservoir 13”, de Jon McGregor, “O Ministério da Felicidade Suprema”, de Arundhati Roy, “Home Fire”, de Kamila Shamsie, “Swing Time”, de Zadie Smith, e “A Estrada Subterrânea”, por Colson Whitehead. O júri do prémio Man Booker deste ano é presidido por Lola Young, antiga professora de Estudos Culturais da Universidade de Middlesex e responsável cultural da Autoridade da Grande Londres. Entre os membros do júri encontram-se ainda as escritoras Lila Azam Zanganeh e Sarah Hall, bem como o artista Tom Phillips e o presidente da Real Sociedade Literária britânica, Colin Thubron. Os membros do júri consideraram que os romances, cada um à sua maneira, desafiam e alteram suavemente os preconceitos – sobre a natureza do amor, sobre a experiência do tempo, sobre questões de identidade e até mesmo a morte. A lista dos finalistas, que apresenta três mulheres e três homens, abrange uma ampla gama de assuntos, desde a luta de uma família que tenta manter a sua auto-suficiência na Inglaterra rural, até uma história de amor entre dois refugiados que tentam fugir de uma cidade sem nome, na agonia de guerra civil. No quarto ano em que o prémio foi aberto a escritores de qualquer nacionalidade, a lista é composta por dois escritores britânicos, um britânico-paquistanês e três americanos. Livros do desafio “Com seis livros únicos e audazes que colectivamente pressionam as fronteiras da convenção, a lista curta deste ano reconhece autores estabelecidos e introduz novas vozes na cena literária. Jocosos, sinceros, inquietantes, ferozes: aqui está um conjunto de romances de tradição, mas também radicais e contemporâneos. O alcance emocional, cultural, político e intelectual destes livros é notável, e as formas como desafiam o nosso pensamento são um testemunho do poder da literatura”, considerou Lola Young. Ali Smith faz parte da lista do Booker pela quarta vez, enquanto Fiona Mozley figura como a mais jovem autora da lista, com 29 anos, e uma das duas estreantes na corrida ao prémio, juntamente como Emily Fridlund, de 38 anos. Os outros dois autores americanos são Paul Auster e George Saunders, o primeiro, de 70 anos, com o romance mais longo da lista, que lhe levou três anos e meio, trabalhando seis dias e meio por semana, a ser escrito, enquanto George Saunders, contista, se estreia com o seu primeiro romance. O prémio Man Booker, no valor de 50 mil libras, distingue anualmente um livro de ficção escrito em inglês e publicado no Reino Unido no ano do galardão, independentemente da nacionalidade do autor. O vencedor vai ser anunciado no dia 17 de Outubro. Em 2016, o Prémio Man Booker foi atribuído ao norte-americano Paul Beatty, com o romance “O Vendido” (“The Sellout”). Quatro caminhos para um só homem no novo livro de Auster O autor Paul Auster afirmou que a sua obra mais recente, “4 3 2 1”, resulta da combinação de circunstâncias inesperadas com o material genético, pré-existente, que compõe todos os seres humanos. Paul Auster considerou, num encontro com jornalistas no âmbito do Festival Internacional de Cultura, que o romance procura responder à pergunta “E se…?”, delineando quatro caminhos distintos para um mesmo personagem, Archie Ferguson: “Em inglês há o termo ‘nature nurture’, que surge [da combinação] do ser natural e genético, com a maneira como se é educado ou o ambiente em que se cresce”, realidades que “estão interligadas e são impossíveis de separar”. Este foi o mote fornecido pelo escritor norte-americano, de 70 anos, para abordar as questões feitas acerca do processo de escrita do romance, precedido por um hiato de sete anos, em que “a frequência com que algo inesperado acontece” foi, à semelhança de outras das suas obras, o dilema “que sempre o preocupou”. Na opinião de Auster, o princípio de que diferentes circunstâncias conduzem, necessariamente, a pessoas de personalidades distintas, revela a importância de “dar espaço ao inesperado para viver a vida com algum tipo de coerência”. Como tal, aquilo a que gosta de chamar “os mecanismos da realidade” difere das crenças “no destino, na fé e na intervenção divina”, concepções nas quais o romancista recusa acreditar. Ao escrever “4 3 2 1”, nomeado como candidato ao prémio Booker deste ano, Auster quer provar que “o estranho faz parte da normalidade” e que, no papel de arquitecto das suas narrativas, este “não manipula as personagens”, optando por “lhes dar vida” para depois “as seguir, sem as guiar” a um caminho concreto. No decorrer da conversa, Auster frisou que “não escolheu tornar-se um escritor”, sendo que foi a profissão que o escolheu a ele: “Não se trata de uma opção. (…) Ser um artista de qualquer tipo é como apanhar uma doença da qual nunca se recupera. [Ser escritor] é uma obrigação.” Na óptica de Auster, “o papel [social] da escrita mantém-se o mesmo há 500 anos”, algo que se complementa com o processo de leitura, “uma experiência muito íntima” que se faz individualmente. Posteriormente, ressalva que ler histórias “é uma forma excelente de confrontar medos ou ansiedades em relação ao mundo, de modo seguro”. Auster avisa que Donald Trump está “apenas no início” O escritor Paul Auster afirmou, de passagem por Portugal, que o mundo “entrou numa nova era” com o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mas que “ainda não é possível fazer arte” baseada no Governo que este constituiu. Num encontro com jornalistas, no âmbito do Festival Internacional de Cultura com o propósito de debater os temas suscitados pela sua nova obra, “4 3 2 1”, Auster debruçou-se sobre o panorama político do seu país de origem, voltando a tecer críticas a Trump, uma figura que classifica como um indivíduo “furioso, irracional, instável e narcisista: um perigo que se alimenta da atenção” que o mundo lhe dá. O autor afirmou que Trump “está apenas no início”, o que impede reflexões artísticas exactas. Na óptica do escritor, primeiro cabe “aos jornalistas apurarem a verdade de tudo o que se passa agora”, partindo do princípio que o “bom jornalismo” é o “trabalho mais importante para o bem-estar do mundo”. Auster adianta que a mesma profissão está “sob ataque”, colocando em risco “a fé das pessoas na verdade”, numa fase em que nunca os jornalistas foram tão necessários, numa discussão dentro do contexto da narrativa quadripartida do romance mais recente, em que uma das quatro versões do protagonista, Archie Ferguson, toma a decisão de enveredar pelo universo jornalístico. O escritor, vencedor de múltiplos prémios literários, receia que Trump continue “a persuadir as pessoas de que as mentiras [que conta sejam] verdade”, já que o 45.º Chefe de Estado norte-americano utiliza “as mesmas tácticas que os Nazis nos anos 1930 e 1940”, tornando-se “uma pessoa perigosa para governar o país mais poderoso do mundo”. Um país à parte Apesar de todos os tumultos sociais que acontecem, diariamente, Auster insiste que a inspiração para as narrativas de ficção não parte do mundo exterior, mas antes “do inconsciente”, que depois se mistura com os factores sociais “de um país construído por imigrantes”, no qual Nova Iorque funciona como um antídoto contra a crescente divisão visível nos Estados Unidos. “Nova Iorque é encarada como a cidade representante do ideal norte-americano, [sendo que] 40 por cento dos seus habitantes nasceram noutros países [mas], às vezes, acho que a cidade devia abandonar os Estados Unidos e transformar-se num estado separado, porque o resto do país não percebe [o que o local simboliza]”, disse. Questionado mais directamente quanto às falhas do Partido Democrata, de acordo com Auster “tudo se alinhou perfeitamente” a favor do magnata, reduzindo as hipóteses de Hillary Clinton, que perdeu votos devido “a um país misógino”. O romancista “queria que Hillary percorresse o país da mesma forma que Martin Luther King [aquando do Movimento dos Direitos Cívicos]”, contrastando com o método de Trump, ao escolher “incitar o pior da natureza humana”, com “30 a 35 por cento do país a adorar aquilo que ele faz”. Estas são as razões que levam Paul Auster a concluir que “uma grande percentagem do eleitorado americano jamais votaria” em Hillary Clinton. Portugal foi o sétimo país europeu por que passou, no espaço de um mês, para promover “4 3 2 1”, algo que levou o autor a verificar que as mudanças e a “nova era” de que fala se tratam de “um fenómeno global” que coloca a Europa e os Estados Unidos em posições similares, seja devido aos resultados do Brexit [referendo que determinou a saída do Reino Unido da União Europeia], ou devido à vitória de Donald Trump.
Sofia Margarida Mota Eventos MancheteEntrevista | Rui Vieira Nery, musicólogo É, desde 2012, o director do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas. Rui Vieira Nery tem estado no território no âmbito do 12º. Congresso de Lusitanistas e acredita que a cultura, com o tempo, pode ter o lugar que merece nas prioridades políticas portuguesas [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] seu interesse pela música não é de estranhar, dado o seu contexto familiar, mas acabou por se formar, inicialmente, em História. Porquê?Pois, sou filho de um grande guitarrista de fado, um dos melhores do seu tempo, o Raul Nery, e, como tal, cresci a ouvir fado em minha casa. A minha mãe era uma melómana apaixonada por música clássica. De uma maneira ou de outra, a música fez sempre parte, desde criança. Ao mesmo tempo, interessei-me sempre por história e, a par da minha aprendizagem como pianista, que foi como comecei, sempre me interessei por pensar a música numa perspectiva histórica. Quando fui fazer o curso de História, acabei por perceber que podia ser historiador sem deixar a música. Foi por isso que escolhi a musicologia histórica e acabei por fazer o doutoramento em Musicologia na Universidade do Texas. Deixei de tocar, deixei de ser intérprete, mas continuei sempre ligado ao universo da música, embora numa perspectiva mais historiográfica. Não tem saudades de tocar? Tenho muitas. Mas era muito exigente comigo e não teria gostado de continuar a tocar se não conseguisse chegar a um nível que considerasse satisfatório e, para o conseguir, teria de me dedicar inteiramente à prática instrumental, que não poderia acumular com o meu trabalho de musicólogo. Tive de fazer uma opção e escolhi aquilo que achei que poderia fazer melhor. Mas custa-me muito e sinto muito a falta de fazer música. Uma das suas obras tem que ver com o encontro de culturas no mundo, “O Vilancico Português do Século XVII: Um fenómeno Intercultural”. Esta multiculturalidade de que hoje em dia tanto se fala já vem de há muito. Sim. Uma coisa que é característica do processo de globalização em que as chamadas Descobertas portuguesas se inserem é o encontro de culturas. Portugal levou consigo uma matriz cultural europeia e depois encontrou, nos vários lugares a que chegou, culturas vivas e ricas. Ao contrário de outros países que estiveram em expansão colonial nesse período, Portugal incorporou muitas das componentes dessas culturas que foi encontrando na sua própria cultura. Costumo dizer que somos uma cultura eminentemente mestiça e que essa é uma das características mais individuais da cultura portuguesa. Essa capacidade de experimentar outras canções, outras danças, outros temperos e outros namoros. Daí nascem muitas manifestações culturais e artísticas que são o resultado desse diálogo intercultural. Isto acontece logo a partir do séc. XVI. O estudo a que se refere é sobre o vilancico religioso desta altura em que temos cantigas em português, espanhol e em crioulo, cantadas na igreja, mas compostas por compositores portugueses de formação, digamos, “clássica”, que incorporam ritmos, melodias e danças populares de África e do Brasil. Temos também um exemplo mais acabado e mais moderno que é o próprio fado. Começa por ser uma dança cantada afro-brasileira, depois é apropriado pelos portugueses e transformado num fenómeno puramente nacional. O fado é “nosso”? Claro que é nosso. As primeiras manifestações que encontramos descritas e que tratam do fado são do Brasil, do início do séc. XIX. As primeiras manifestações da prática documentada em Portugal são já da década de 1820/30 e tudo indica que esta dança cantada, como muitas outras que foram chegando a Portugal ao longo dos séculos XVII e XVIII, foi apropriada pela cultura popular de Lisboa e foi transformada localmente. Costumo dizer que se um brasileiro tivesse chegado a Portugal em 1850 e visse cantar e dançar o fado em Lisboa perguntaria: ‘Mas o que é que eles estão a cantar e a dançar?’ Ou seja, Portugal apropria-se deste fado e fez dele uma manifestação puramente portuguesa. Integra este Congresso de Lusitanistas dedicado à língua portuguesa e à cultura de língua portuguesa e que, cada vez mais, se alarga a várias expressões. Penso que a Associação Internacional de Lusitanistas (AIL) tem tido uma preocupação em alargar o seu âmbito e passar do estudo da linguística e dos estudos literários em português para um estudo das várias culturas de expressão portuguesa. A língua não existe no vácuo, mas sim como um veículo de comunicação e de cultura. A língua é a comunicação do dia-a-dia, mas também é a poesia, a prosa, o cinema, o teatro e, de certa maneira, marca o nosso olhar sobre o mundo. As artes plásticas feitas por uma comunidade que fala português estão marcadas por um olhar que também tem a influência da língua e das suas estruturas. Como tal, faz sentido que não estudemos apenas a comunicação oral e escrita e que se veja, cada vez mais, o português como um veículo de culturas. Uma das coisas mais interessantes no caso do português é, precisamente, a riqueza e a variedade dessas muitas culturas a que serve de base. O português transformou-se num grande mosaico de expressões culturais diferentes, umas vezes concordantes, outras vezes em conflito, mas todas elas enraizadas na mesma língua. A AIL e os seus congressos seguem essa tendência. Estamos no final do encontro. Qual o balanço que faz? É um balanço muito positivo. Em primeiro lugar, pelo próprio facto de termos vindo para Macau. O último congresso foi em Cabo Verde e era muito importante que a AIL fizesse um congresso agora na Ásia, porque isso é a universalidade da própria língua portuguesa e da vitalidade destas comunidades que falam português. Por outro lado, e independentemente do lugar em que o congresso se faz, o nível científico é muito elevado. Estamos perante investigadores de múltiplas nacionalidades com um alto nível de pesquisa, de reflexão científica e de produção intelectual, e estamos aqui, a partir da língua portuguesa, a discutir questões de grande actualidade, podemos mesmo dizer questões de ponta, no debate científico internacional. Pode dar alguns exemplos dessas questões de ponta? A questão da própria diversidade cultural, do diálogo intercultural, da cultura como um veículo de inclusão ou de exclusão social. Tudo isto são questões muito importantes. A questão da ligação entre cultura erudita e cultura popular. São aspectos que estão na agenda dos estudos culturais em todo o mundo, e que nós aqui estivemos a discutir a partir da língua portuguesa e das culturas de expressão portuguesa. Como é que vê o valor da língua portuguesa para a China? É um valor óbvio. A China tem vindo a emergir como um grande parceiro geopolítico, cultural e económico à escala planetária. É muito importante estreitar, cada vez mais, as relações entre a cultura ocidental e a cultura chinesa porque somos parceiros naturais, digamos que numa nova ordem mundial que seja sustentável, justa e equilibrada. A aposta que a China faz no desenvolvimento do estudo da língua portuguesa é muito importante. O Governo Central definiu como prioridade importante o estudo e a promoção do português, e Macau, dentro dessa perspectiva, tem um papel de plataforma fundamental. O território é, naturalmente, um espaço de articulação. Macau tem um conjunto de instituições de ensino superior de grande qualidade e o Instituto Politécnico, em particular, tem feito um trabalho extraordinário. Estamos no bom caminho. A língua e o seu ensino podem ajudar-nos a descobrir as culturas de outras partes e de outras áreas. Para a semana vou estar no Congresso Mundial das Humanidades em Liége, na Bélgica, e é presidido por um investigador chinês. Este fenómeno está cada vez mais a suceder. Já há uma representatividade da investigação chinesa? A investigação chinesa é gigantesca e só por ignorância é que tem havido esta espécie de separação artificial entre o mundo académico europeu e norte-americano, por um lado, e o mundo académico chinês. Só temos a ganhar, de um lado e do outro, com a troca de experiências e de sabedorias. Temos um futuro muito entusiasmante nesta descoberta mútua e penso que o português pode ser um dos veículos nessa comunicação. Temos um espaço de língua comum que junta estas valências e que faz a ponte com esta realidade tão importante como é a realidade chinesa, o que acho muitíssimo positivo. Estamos perante um tempo áureo da língua portuguesa? Estamos a atravessar um período difícil para o planeta. Difícil em termos da paz mundial, em termos da justiça social, da sustentabilidade ecológica. Mas dentro desse quadro, que tem muitos elementos preocupantes, a entrada clara da China nas inter-relações à escala global é um factor muito positivo para a paz e para o desenvolvimento. Neste sentido, há perspectivas muito entusiasmantes de futuro, se todas as partes se souberem relacionar e encontrar caminhos partilhados. Está neste congresso a representar a Fundação Calouste Gulbenkian, um nome maior na cultura em Portugal. Como é que está a cultura portuguesa? Tem aspectos muito positivos, sendo que o principal é a grande quantidade de jovens agentes culturais que foram formados nas últimas duas, três décadas. Parece um lugar-comum, mas temos possivelmente a geração com maior número de profissionais da cultura com formação avançada. Naturalmente, aumenta a massa crítica e aumenta também o topo de gama dessa massa crítica. Temos, como nunca tivemos, um grande número de artistas, de escritores, de músicos, de investigadores nas áreas culturais. Este é o lado positivo. O lado negativo é o facto de a sociedade portuguesa ter dificuldade em encontrar formas de acolher essas novas gerações de profissionais da cultura e de lhes dar oportunidades de aplicarem a formação especializada. Acredito que, pouco a pouco, vamos tendo mais consciência da importância que este sector tem para o desenvolvimento global do país. Não é um luxo, não é um objecto decorativo para o qual se olha depois de se tratarem das coisas “importantes”. É parte das coisas importantes. É um factor de desenvolvimento essencial. Diria que, em termos das políticas públicas para a cultura, ainda há muito que fazer. Precisamos de mais orquestras, de mais teatros, de mais apoios para o cinema, de mais galerias de exposição, de mais oferta cultural à população em geral. É disso que estamos a falar: oferecer o acesso à cultura aos cidadãos, o que é uma obrigação constitucional. Tudo isso existe, penso, numa escala muito pequena em relação àquilo que seria o potencial do país. Hoje em dia fala-se muito da marca Portugal. É reconhecida internacionalmente em grande parte pelo impacto da cultura. Pelo cinema que ganha prémios em todos os festivais, pela música que faz um enorme sucesso em todo o circuito da world music, pelos escritores portugueses já traduzidos em muitas línguas, pelos sapatos que têm um design original e criativo. Já são efeitos da transferência da área artística para a área económica. Estamos a falar de factores de desenvolvimento essenciais para o país e que precisam de maior investimento na esfera cultural para depois terem esse impacto reprodutor. Mas sou um optimista por natureza e acredito que os próprios cidadãos irão ter, cada vez mais, noção desta necessidade de cultura e irão passando isso para as esferas de decisão política.
João Luz Entrevista EventosEntrevista | Duarte Drumond Braga, académico Começou por se interessar pelas representações da Ásia na cultura e literatura portuguesa, mas passou para o lado do estudo das pessoas que escreveram em português em territórios asiáticos. Hoje em dia, Duarte Drumond Braga estuda um tesouro cultural de valor inestimável e totalmente desconhecido: o acervo literário indo-português e as relações entre Goa e Macau [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo começou a sua incursão pelas literaturas em português no Oriente? Trabalhei um pouco a questão das representações da Ásia na cultura e na literatura portuguesa. Depois quis estudar o outro lado, as pessoas que estiveram na Ásia e escreveram em português. As literaturas em língua portuguesa na Ásia são traduções literárias muito pouco estudadas, desconhecidas, talvez a mais conhecida seja mesmo a de Macau. Há uma literatura em português em Timor, mas a menos conhecida dos três é a de Goa, algo misteriosa por ser uma literatura de consumo interno. Encontra-se a estudar esse espólio literário indo-português. O que tem encontrado? Estou a estudar a relação entre Goa e Macau na literatura portuguesa, ao abrigo de uma bolsa de pós-doutoramento da Universidade de São Paulo, o projecto “Pensando Goa (Fapesp)”, assim como o projecto do “Orientalismo Português”, da Faculdade de Letras. O projecto de São Paulo é megalómano, com mais de 40 investigadores portugueses, brasileiros, americanos, indianos, e propôs-se estudar esse acervo. Se temos, mais ou menos, a noção das literaturas africanas em língua portuguesa, quem são os seus autores, que livros escreveram, existem também listagens, dicionários e índices. Muito pouco disso existe na literatura indo-portuguesa. Ainda há um trabalho de reconhecimento do acervo que tem de ser feito e que tenho ajudado a fazer no âmbito desse grupo. O acervo é enorme, o que é surpreendente tendo em que conta que o português sempre foi altamente minoritário em Goa, talvez até mais do que em Macau. É uma produção que está ligada aos goeses católicos, que escreviam em português, e é um pouco uma literatura de consumo interno. Há muita coisa que não chegou a sair de lá. Apesar de ser de consumo interno, isso não quer dizer que seja uma literatura provinciana, é interna só no sentido em que há uma comunidade pequena que produz e lê essa literatura. Em que estado de conservação se encontra o acervo? Estamos a falar sobretudo de produção do século XIX e XX, porque tudo o que está para trás é meio incerto, pouco conhecido. Há autores goeses a escrever em português logo desde o século XVI, mas as coisas mais antigas estão em mau estado de conservação. As coisas mais modernas, séculos XIX e XX, estão em condições relativamente frágeis, mas aceitáveis. Há muitas coisas em bibliotecas em Pangim, sobretudo, outras estão em bibliotecas privadas dispersas por Goa. Uma parte importante deste projecto da Universidade de São Paulo é digitalizar o máximo de coisas possível, mesmo as coisas que estão em bom estado e que se vão deteriorando com o clima, a humidade, para ficarem preservadas. Também há a questão de, eventualmente, disponibilizar na Internet algumas das obras para que caíam em domínio público e serem conhecidas. O grande problema aqui é que estamos a falar de autores que ninguém leu, que não têm reedições modernas. Apesar de haver, e isto é impressionante, editoras a publicar actualmente em português em Goa. A editora do Frederick Noronha é um exemplo. Chama-se Goa 1556, a data da introdução da imprensa na Índia via Goa. Embora o público leitor seja reduzido, publica-se literatura, até ensaio, memórias em português. Isto apesar de o inglês ter ganhado protagonismo. As famílias que falavam o português mudaram para o inglês, o português é falado mais como uma língua doméstica. Quem eram estes escritores? Existe diáspora portuguesa em Goa, assim como em Macau, mas a questão é que o grosso desta literatura é produzida mesmo pelos goeses. Os portugueses quando conquistaram Goa forçaram camadas vastas da população hindu a converterem-se em massa. Esses conversos adoptaram nomes cristãos, portugueses, geralmente o nome do padre que foi o padrinho. Fizeram uma conversão cultural, abandonaram os moldes culturais do hinduísmo, adoptaram o catolicismo. São esses que no século XIX, e antes, produzem essa literatura. Mas há também os descendentes de portugueses nascidos na Índia, já não são diáspora, são segundas e terceiras gerações. Que retrato da sociedade se pode tirar deste acervo? É um meio bastante misterioso que ainda estamos a tentar compreender. Podíamos traçar alguns paralelos com a comunidade macaense na medida em que os goeses se assumiram como portugueses do Oriente. Mas, na verdade, têm uma entidade distinta dos portugueses e souberam marcá-la bem nos momentos chave. Tenho usado como chave para ler os goeses uma frase de um autor chamado João da Veiga Coutinho. Um nome portuguesíssimo. Ele publicou um livro chamado “Uma Espécie de Ausência”. Nesse livro ele diz “nós goeses éramos portugueses, mas não éramos os portugueses”, para mim está aí o segredo todo. Éramos portugueses, pertencíamos ao império, tínhamos cidadania portuguesa, mas não éramos “os portugueses”. Não éramos os portugueses no sentido em que éramos subalternizados pelos portugueses que estavam no topo da hierarquia colonial. Também nesta frase ele está a tentar demarcar-se, criar uma identidade distinta dos portugueses, reclamando para os goeses uma forma também de ser português. Porém, é preciso evitar cair no discurso perigoso de ver estes territórios como meras projecções de Portugal, são territórios complexos, multilinguísticos. A literatura em língua portuguesa nunca existiu sozinha, ela intrinca-se com o inglês, com o concani, portanto é preciso deixar claro que são territórios muito plurais, tal como Macau. De maneira alguma são projecções de Portugal no Oriente. Por outro lado, os goeses sempre que lhes conveio politicamente, simbolicamente, quiseram reclamar para si também uma pertença a essa identidade portuguesa. Em que moldes se tem estabelecido a ligação Goa – Macau em termos literários? É importante entender que Goa, Macau e Timor funcionam um pouco em rede, em sistema. São espaços insulares do Império na Ásia, dependem uns dos outros e quanto mais para trás mais eles estão ligados. Os governadores de Macau vinham de Goa, eram eleitos e vinham para cá porque Goa era bem mais importante do que Macau nos séculos XVI, XVII e ainda no XVIII. Essa situação só vai terminar, creio, que em 1844/45. Timor também, a certa altura, depende de Macau. Isto funciona em rede em termos administrativos e eclesiásticos. Creio que Timor pertenceu à diocese de Macau durante uma data de anos. Não há um contacto muito directo entre escritores de Goa e Macau. Ainda um pouco fora da literatura, há goeses que viveram em Macau e vice-versa. Um exemplo interessante é a Escola Médico-Cirúrgica de Goa, que a certa altura era a única unidade de ensino superior no Ultramar. Houve macaenses que foram estudar medicina para Goa, uma ligação um pouco inusitada. Neste contexto de rede, quais as distinções entre a literatura de Goa e Macau? É preciso ver que estamos a falar só da produção em língua portuguesa, que é um recorte sempre artificial. Estamos a falar só de secções. Parece-me que a grande diferença é que a literatura goesa em língua portuguesa está bastante ligada a esta comunidade católica, embora tenha havido também hindus que escreveram em português. Os críticos têm visto a literatura de Macau em português como algo de mais vasto, não seria apenas a literatura produzida pelos filhos da terra, pelo Henrique de Senna Fernandes, a Deolinda da Conceição, mas seria algo mais vasto. Como o acervo que descobrimos é tão vasto eu creio que, por agora, é melhor ter algum cuidado, conhecer primeiro o que é que os goeses, de facto, produziram, para depois aprenderemos como é que podemos colocar essa literatura. Acredito que seja possível no futuro falarmos em literaturas asiáticas em língua portuguesa, incluindo Timor, pensarmos como um sistema, uma rede, tenho defendido isso. Passarmos a ver que outro sentido ganha a literatura de Goa lida junto com a literatura de Macau, com a literatura de Timor, no fundo literaturas insulares longe da metrópole, de alguma forma isoladas. Por outro lado, é preciso ter em atenção a circulação dos portugueses que passam por estes territórios e vão escrevendo sobre eles, por exemplo, a Maria Ondina Braga que antes de vir para Macau sai de Goa. Há este caso dos intelectuais portugueses que tiveram esta mobilidade. Os textos que estes autores portugueses foram escrevendo também dão corpo às literaturas de cada um desses espaços. Que peso tem este acervo indo-português? Penso que as literaturas de língua portuguesa de Goa e Macau têm de entrar urgentemente no estudo das literaturas em língua portuguesa. A literatura portuguesa, brasileira e as africanas estão muito ligadas à ideia de “nação”. Macau e Goa são outras realidades. Temos de conhecer estas literaturas para podermos repensar “the larger picture” e redefinir o quadro do que são as literaturas em língua portuguesa, como aconteceram, quais os contactos que existiram entre elas. Sabemos que um dos primeiros jornais moçambicanos tinha goeses na sua fundação. Até no próprio famoso jornal publicado em Macau, Ta-Sii-Yang-Kuo, há um goês na sua fundação. Há relações que estão mal estudadas e que têm de ser conhecidas para sairmos um pouco daquela ideia de que a literatura está ligada à nação.
Hoje Macau EventosLisboa acolhe o primeiro Fórum Literário Portugal-China [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Fórum Literário Portugal-China, cujo programa inclui debates no Centro Científico e Cultural de Macau e uma passagem pela Feira do Livro de Lisboa, acontece no âmbito do memorando de entendimento assinado em 2015, entre Portugal e a China, de apoio mútuo à edição e promoção da literatura dos dois países. Em Lisboa estarão seis personalidades chinesas ligadas ao livro, entre as quais o escritor Su Tong, finalista do Man Booker International Prize em 2011, Tie Ning, romancista e presidente da Associação Chinesa de Escritores, e os autores Chi Zhijian e Zhang Wei. A eles juntam-se ainda três autores portugueses: José Luís Peixoto, Dulce Maria Cardoso e Gonçalo M. Tavares. De acordo com a Direcção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas, o memorando assinado em 2015 em Pequim prevê “o apoio à divulgação recíproca da literatura chinesa e portuguesa, seja através do apoio à tradução de obras literárias, seja através da participação de autores no outro país”. O fórum em Lisboa incluirá ainda um encontro dos autores chineses com editores portugueses.
Sofia Margarida Mota Eventos MancheteCarlos Botão Alves, autor de “O Oriente na Literatura Portuguesa”: “Uma cultura procura na outra o que lhe falta” “O Oriente na Literatura Portuguesa – Antero de Quental e Manuel da Silva Mendes” é o mais recente trabalho de Carlos Miguel Botão Alves, professor e investigador no Instituto Politécnico de Macau. É uma análise de textos dos autores portugueses com vidas e reconhecimentos diferentes mas, que em comum, têm uma forte influência da cultura oriental, e dos princípios budistas e taoistas Como é que escolheu a temática deste livro? Vem na linha de várias discussões que tive com professores de Portugal que me alertaram, desde a minha formação inicial na Universidade Católica, para a necessidade de explorar não tanto a filosofia, porque não é um saber racional autónomo no Oriente, mas antes a sabedoria oriental que tem vindo a ser aperfeiçoada. Depois, em Paris, quando fiz a minha formação específica em Tradução, o estudo foi melhorado com o diálogo muito próximo com a professora Helena Carvalhão Buesco. Apareceu uma área de estudo de Antero de Quental que teria que ver com o Budismo. Eram pesquisas do final de séc. XIX e tinham uma perspectiva assumidamente eurocêntrica. Quando fui leitor de português em Deli, de 1993 a 1995, tive ocasião de apurar ainda mais o campo de estudo da influência budista e pude delimitar mais concretamente o âmbito da minha análise. Foi um trabalho que esteve a marinar e a ser desenvolvido desde 2001/02 até 2014/15, quando acaba por ser redigido. E porquê o paralelismo com Manuel da Silva Mendes, autor que viveu em Macau? Tive contacto com os textos de Manuel da Silva Mendes já em Macau em 1990. Apercebi-me que o que se tinha escrito até à data sobre ele tinha muito que ver com a vertente da reflexão política e, sobretudo, com a análise que fazia pelo empenhamento que tinha na política portuguesa. Era republicano, do Norte, e com génese num proletariado que poderia existir na época. Explorava-se muito os seus escritos no sentido da análise de um socialismo utópico e mesmo anárquico. Mas muito pouca coisa, ou mesmo quase nada, apareceu relativamente aos textos que fez e a que chamo de ensaios. São artigos que publicava dedicados à exploração que fazia das temáticas da filosofia oriental. Quando comecei a colocar a par os textos de Antero de Quental e os de Manuel da Silva Mendes pensei que faria todo o sentido aproximá-los no sentido de criar linhas de leitura que pudessem ser exploradas por quem quisesse estar interessado pela sabedoria do Oriente. Esta parceria entre os autores pode parecer um pouco desequilibrada porque Antero de Quental tem um lugar mais que estabelecido no panorama literário português e Manuel da Silva Mendes nem tanto. Mas a literatura comparada tem também este objectivo, o de trazer para o palco autores não tão conhecidos por via de outros já reconhecidos. Pensei ainda que seria interessante fazer este paralelismo porque desenvolvi a minha vida em França e Portugal, e depois em Macau e na índia. Aqui tenho os dois mundos. Tive sorte por ter dedicado mais de dez anos a leituras para poder escrever o livro. Tive uma mulher que tomava conta de mim e das crianças, o que é muito importante. Pude analisar os textos em profundidade e dar uma visão cultural da segunda metade do séc. XIX e da primeira do séc. XX. O virar do século é fundamental na formação de consciências tanto a Oriente, como a Ocidente. São dois autores empenhados politicamente, ou seja, o que fazem não é uma mera reflexão filosófica, não é uma satisfação individual, quase egoísta. São autores que procuram precisamente, no aliar da tradição ocidental com a oriental, instrumentos de análise para poderem ter uma praxis. São homens extremamente activos, homens que escrevem, que insultam, que vão para os jornais. Mas, ao mesmo tempo, eram pessoas que percebiam que esta prática intensa só faria sentido se fosse bem grudada na realidade, e a realidade é reflexiva. Não se trata de uma mera erupção intelectual e é isso que está pouco estudado na literatura portuguesa. Em Portugal não temos muitos exemplos de autores que estejam no entrecruzamento dos registos literário e filosófico. Literariamente somos riquíssimos mas, do ponto de vista de uma reflexão metafísica e ético-moral, será bastante difícil encontrar nomes. O virar do século proporcionou alguns enquanto excepção: o Feijó, o Quental, o Silva Mendes em Macau e, mais tarde, o Luís Gonzaga Gomes. Os textos em que me baseei foram precisamente os da compilação de Luís Gonzaga Gomes. Era o principal discípulo de Manuel da Silva Mendes, no sentido de que é filho da terra e tinha a riqueza de poder ler e escrever a “outra língua”. O livro começa precisamente com uma frase do Umberto Eco acerca da tradução de conceitos. Como é que estes autores, do final do séc. XIX, desenvolviam estes conceitos que, muitas vezes, não existiam na sua própria cultura? O despertar dos estudos orientais acabou por ser um conceito abusado no sentido mais negativo de uma imposição europeia face ao outro, para o minimizar. Os estudos orientais eram uma tentativa de tornar o Oriente manejável e dominável aos olhos de um Ocidente que imperava. Muito além disso, os estudos orientais começam precisamente pela análise filológica, primeiro em França e depois nas universidades alemãs, no final do séc. XVIII, início do séc. XIX. Na viragem do séc. XIX para o séc. XX temos um retorno à filologia. Temos uma tentativa de procurar nos textos uma verdade, ou aspectos dessa verdade, percebida como o entendimento que o Homem pode ter de si na realidade, baseando-se na compreensão dos textos orientais por defeito da filosofia e do pensamento europeu. Digamos que é por deficiência, mas os contactos culturais são sempre assim, uma cultura procura na outra o que lhe falta. Institucional e politicamente, os impérios estendiam-se pelo Oriente mas, culturalmente, estes homens não tinham uma pretensão de domínio. Silva Mendes sentava-se nos templos de Macau a falar com os monges. Estes homens estavam numa tentativa de procurar, na cultura oriental, o que não era visível e podia colmatar deficiências que, naquele momento, a cultura europeia tinha – uma cultura muito marcada pela industrialização e pelo positivismo que também teve o despontar da procura do novo homem com Feuerbach e Nietzsche. Antero de Quental e Silva Mendes procuravam, aqui, um novo sopro de espiritualidade que a Europa não teria de forma tão vibrante. É essa confluência que quero mostrar quando falo de tradução cultural. Não é propriamente uma tradução de termos, mas sim a procura que uma cultura faz de elementos na outra cultura por deficiência e a capacidade que determinados autores têm de se apropriarem desses conhecimentos que observam na outra cultura, e de os trazerem e tornarem palavras na própria para que façam sentido. É o que me parece que estes dois autores fizeram: uma leitura do mundo e do percurso humano. São homens muito empenhados na renovação do ser humano com ideias de igualdade. Um pensamento ainda muito actual? Deveríamos voltar às línguas clássicas. A gritaria que se passou em França pela tentativa de tornar opcionais as línguas clássicas europeias, como o grego e o latim, é um exemplo dessa necessidade. Há uma urgência em voltar a encontrar a origem e o sentido de determinadas culturas num mundo que pode vir a perder sentido quando demasiadamente globalizado. Quando a ênfase da globalização reside na mera globalização – e a globalização não é propriamente uma troca ou um encontro, mas antes o esbater de características –, podemos correr um risco e, daí, a actualidade dos estudos deste tipo. Há a necessidade de procurar num mundo globalizado, não só as nossas raízes, mas também aquelas que temos através do confronto, do contraste e do diálogo com a alteridade. Para o fazer, é necessário estarmos conscientes daquilo que somos. Só há diálogo quando há troca e só há troca quando temos alguma coisa para dar. São autores que fazem uma reflexão própria e a tradução cultural que operam não é só de termos budistas e taoistas para análise metafísica mas, sobretudo, para orientações ético-morais. São autores de charneira e formativos da nossa cultura. O texto da não-acção, por exemplo, tem uma ressonância extremamente oriental, mas se lermos os textos pré-socráticos o conceito já lá está. Claro que os franceses vão de imediato dizer: “Pois, mas os textos pré-socráticos são da Ásia Menor”. A não-acção não tem a ênfase no não, mas sim na acção. Não é não fazer nada mas é, sobretudo, a promoção máxima do ser humano em reflexão. É isso que é o Oriente. A procura que o sujeito faz dentro de si e da sua própria natureza. Quando isso acontece, a acção exterior, a do fazer, deixa de ter sentido porque passa a ficar orientada por esse autoconhecimento. O “conhece-te a ti mesmo do Sócrates”, não é se não isto. Os autores de Macau são muito pouco conhecidos internacionalmente e este é um livro que tenta promover um deles. Porque é que a literatura feita cá não chega a Portugal? Macau tem autores diferentes. Tem pessoas que pensam sobre determinadas questões e fazem-no de uma forma diferente. Na Índia é a mesma coisa, existem vários autores que não são conhecidos de todo em Portugal, no Brasil, etc., porque as edições portuguesas não são feitas para serem publicadas nos lugares onde se fale o português. Se olharmos para a Oxford University Press e para a Cambridge University Press, promovem um mesmo título e uma edição aparece ao mesmo tempo nos vários centros do mundo anglófono. Nós não temos essa tradição, não temos a divulgação feita e agilizada de tal forma que permita que o mundo de língua portuguesa lhe aceda. É um mundo muito vasto, o que é bom, mas muito disperso geograficamente e sem essa ligação de editoras, de crítica textual e de academias. Outra questão é a da tradução. Os meus colegas, por exemplo da Universidade de Hong Kong, não conhecem as obras de autores portugueses porque não estão traduzidas. Se nos quisermos dar a conhecer, temos de dar o texto preparado com outras linguagens e não podemos fugir à tradução para as línguas principais: o inglês e o francês. A língua portuguesa tem um papel fundamental no diálogo entre Oriente e Ocidente. Foi a primeira a chegar e a última a ir embora, mas tem de saber traduzir-se para outras línguas. A língua, quando comunica, comunica também a cultura. A língua é sobretudo cultura, é uma visão do mundo. Ao se conhecer uma língua percebemos o mundo de uma forma diferente, mais rica.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasRápida, a sombra, de Vergílio Ferreira: O regresso e a memória Ferreira, Virgílio, Rápida a Sombra, Bertrand, Lisboa, 1993 Descritores: Literatura Portuguesa, Romance, Memória, Regresso, Paraíso Perdido, 214, [2] p.: 21 cm, ISBN: 972-25-0269-7. [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Rápida a Sombra dominam os temas que são estruturais na obra de Vergílio Ferreira, como por exemplo a ideia de um regresso, que é quase sempre a uma aldeia. A ideia de regresso após um longo afastamento está também no Cântico Final, no Para Sempre, em Signo Sinal e em outros romances. É o regresso que geralmente potencia a elaboração de uma espécie de balanço reflexivo através do uso da memória. A analepse é uma das figuras de estilo mais caras a Vergílio Ferreira, desde logo por isso, porque os regressos e os exercícios de memória são recorrentes. Contudo neste romance, Rápida a Sombra, o regresso de Júlio Neves é-nos dado apenas em termos imaginários enquanto em Para Sempre se trata de um regresso definitivo, o que de facto também não muda nada, pois a ideia de regresso é sempre ao mesmo tempo real e fictícia. O romance usa espaços distintos e não só a cidade e a aldeia, mas também o escritório, a praia, as várias casas, etc., mas o que não é nomeável, sendo porém muito mais da ordem do arquétipo ontológico, é a oposição mais estruturante entre o espaço do visível e o espaço do invisível. São as figuras femininas que delimitam, em minha opinião, as fronteiras, ou seja, as verdadeiras fronteiras, aquelas que separam e organizam duas modulações de Ser. Este é outro tema recorrente nos romances de Vergílio Ferreira. Há sempre duas mulheres paradigmáticas tal como neste romance Helena, a sua mulher, e Hélia, mulher sonhada e paradigma de desejo e nostalgia. É esta bifurcação ôntica que permite a instauração de três domínios existenciais, o da memória, o da realidade presente e o da pura imaginação. O visível e o invisível, contudo, não são afins de nenhum dos três domínios de forma esquemática ou simplista. O invisível pode fazer a sua erupção tanto através da imaginação como da memória, o que parece óbvio, mas pode também irromper, fazer a sua aparição, a partir justamente da realidade. Como diz Vergílio Ferreira, em Rápida a Sombra “só o invisível se vê, a irrealidade é real, nos intervalos do real e do visível!”. É esse, o papel próprio da ficção, do romance e da novela em particular, dar a ver um tipo de realidade que mais nenhuma arte é capaz de dar, essa espessura existencial que se não vê. Neste sentido radical há uma aparição em toda a arte do romance. O romance é a forma de arte em que o invisível, o intangível puro, se torna visível e aparece. O romance é sempre a expressão de uma epifania porque nos narra a experiência do acesso ao rosto do que é invisível e não tem rosto. Em boa verdade devo desdobrar este conceito de narrativa em dois elementos, o que ela, narrativa, narra e o que pela narrativa se faz aparecer, pois são duas realidades imbrincadas mas distintas. Narrando uma ordem de coisas e de factos o narrador, através do seu poder, faz aparecer outra ordem de factos e de coisas. É como se de uma arte da prestidigitação se tratasse. Vergílio Ferreira di-lo e nesse sentido diz o mesmo que Milan Kundera, embora por outras palavras: “Todo o real tem atrás de si outro real. E é nesta diferença que se insere a distinção entre o ‘saber’ e o ‘ver’. Saber que se é mortal só é ver que se é mortal quando se passa para o lado de lá do saber. É onde está a ‘aparição’. O que está para lá é do domínio do intangível e do sagrado. Como aos deuses, não se lhe pode ver a face. Ou só em breves instantes de privilégio”. Não partilho com Vergílio Ferreira, no entanto, a ideia de que a aparição, a epifania portanto, responda a uma pergunta. Partilho com Kundera a ideia da insustentável leveza do ser. Num romance a narrativa faz aparecer essa dimensão da existência, única, essa erupção do que se não vê, justamente porque não pergunta nem questiona, não especula nem investiga; narra apenas e narra, quase que se pode dizer, de uma forma intelectualmente pobre e não filosoficamente pretensiosa; pois é a narrativa do aparentemente nada que faz fulgurar, nunca porém de repente, mas como uma moinha que de nós se apropria, uma outra dimensão da existência. A dimensão da existência que o romance mostra e da qual nos faz participar é rigorosamente como um estado de alma que aos poucos se apodera de nós e nos mantém cativos durante um certo tempo. Sinopse e Ficha Crítica de Leitura Vergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neorrealismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano. Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993). O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.
Andreia Sofia Silva EventosRota das Letras | Gei Fei poderá estar presente em 2018 Terminada mais uma edição do festival literário Rota das Letras, Hélder Beja, director de programação do evento, fala da diversidade de autores que passaram por Macau e levanta a ponta do véu para a próxima edição: Gei Fei, autor chinês contemporâneo, que começou a publicar na década de 80 [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hegou ontem ao fim a edição deste ano do festival literário Rota das Letras, que durante duas semanas trouxe ao edifício do antigo tribunal uma panóplia de autores de vinte nacionalidades diferentes, sem esquecer os concertos e os espectáculos. Para Hélder Beja, director do programação do festival, essa diversidade cultural foi um dos pontos altos. “O ano passado tivemos várias nacionalidades mas este ano tivemos mais: cerca de vinte, uma coisa nova para Macau e para este festival. A maior parte das sessões tiveram bastante público. Esse para mim é o grande resumo: a diversidade resultou e o festival tem de continuar a ser essa ponte entre a China e os países de língua portuguesa, mas deve ser mais do que isso e, a partir de agora, vai ser ainda mais isso”, contou ao HM. A pensar nisso, Hélder Beja falou de um importante nome da literatura contemporânea chinesa que já foi convidado e que poderá mesmo marcar presença em 2018: Gei Fei. “Ainda não veio, há-de vir, está convidado. Queremos trazê-lo para o ano, mas tudo depende muito das agendas dos autores”, apontou Hélder Beja. “Os pontos altos desta edição foram os que esperávamos: a passagem por Macau de pessoas como o Pedro Mexia ou Yu Hua. Houve pontos altos surpreendentes, como a Jéssica Faleiro, uma autora que nos surpreendeu a nós e que recebeu a atenção do público, e Bruno Vieira do Amaral, por ser um autor com muita qualidade e por ter o dom da palavra, sem ser deselegante, o que é raro de encontrar”, acrescentou Hélder Beja. Ao nível dos espectáculos e performances, o subdirector do Rota das Letras destaca a presença de Sérgio Godinho, “como autor e como músico”, e ainda da “performance lindíssima da Vera Paz, uma das mais lindas em seis anos de festival”. Palavras do mundo Num lugar onde vários idiomas se misturam, o director de programação do Rota das Letras considera que a ligação entre a literatura chinesa e os autores internacionais acaba por ser mais imediata, por comparação com o distanciamento físico da literatura portuguesa. “Esse encontro [da língua chinesa] é até mais fácil do que o encontro com a literatura em língua portuguesa. Isto porque os autores que trazemos aqui já estão traduzidos para inglês, mas não estão em português. Na literatura em português há um maior desconhecimento, o que é normal, porque os autores vivem noutro hemisfério, que passa mais pela língua portuguesa”, adiantou. Cheng Yongxin, director da revista literária Harvest, editor e escritor, disse ao HM ter ficado surpreendido com a diversidade cultural que este festival conseguiu trazer. “Fiquei muito surpreendido quando recebi o convite e quando vi este festival, achava que Macau era um lugar só com casinos, mas este festival teve uma grande escala, com tantos escritores. A literatura tem uma grande influência em pessoas tão diferentes e de todo o mundo, então penso que este evento é muito importante.” Quanto aos autores de Macau, Hélder Beja referiu que é objectivo da direcção do festival continuar a convidar cerca de seis nomes por edição. “Há que ser muito estruturado em algumas coisas. Há três anos decidimos ter seis autores de Macau em cada edição, não achamos ser possível haver mais autores de Macau do que esse número, muitas vezes porque não há. Temos de fazer um trabalho de ir à procura de autores que não têm nada publicado numa outra língua que não seja o chinês. Queremos continuar a trazer autores de língua portuguesa de Macau, de língua chinesa e também autores internacionais que façam de Macau a sua casa.” “Um livro excelente” Em relação ao concurso de contos, os vencedores foram João Carvalho da Silva, que, apesar de ser português, venceu na categoria de conto em inglês. A brasileira Adi Berenice e Silva venceu na categoria do conto escrito em português, enquanto que Chi Pang Loi foi o vencedor de língua chinesa. O livro com os contos vencedores e com contos escritos por alguns autores da edição 2016 do festival foi ontem lançado. “O concurso correu bem, não tivemos mais submissões do que o ano anterior. Estendemos o prazo e isso ajudou. Este quinto livro é excelente, tivemos muitas contribuições dos autores de 2016”, rematou Hélder Beja.
Sofia Margarida Mota EventosRai Mutsu escreve para recordar Macau [dropcap style≠’circle’]“O[/dropcap] Sonho da Ilha Verde” é o mais recente projecto de Rai Mutsu. Desta feita, o jovem escritor de Macau vai além das palavras e integra um projecto com várias dimensões artísticas. A música está a cargo da banda de Fortes Pakeong Sequeira com o projecto Blademark e a imagem é da responsabilidade da realizadora Emily Chan. A ideia é continuar o trabalho a que Rai Mutsu se dedica desde que começou a escrever: preservar uma Macau prestes a desaparecer. “Este trabalho aborda os bairros pobres que existiam na Ilha Verde e onde cresceram muitos dos artistas locais”, afirma ao HM. “São sítios cheios de histórias de infância e que caracterizam as formas de pensar dos locais”, acrescenta. As histórias, ensaios e poesia de Rai Mutsu procuram sempre as memórias do território. Para o escritor, esta é uma forma de evitar que se percam as características de Macau. “Nos últimos anos, Macau tem mudado muito e de forma muito rápida.” As alterações não se registam apenas na aparência do lugar. A maior mudança deu-se nas mentalidades das pessoas. “Antes do início do desenvolvimento abrupto de Macau, nos anos 2000, as pessoas tinham uma vida simples em que os desejos eram poucos. Com o enriquecimento da região, temos mais escolhas e as pessoas começaram a querer mais”, defende. Esta mudança de mentalidade dá origem à mudança física e “a arquitectura deixa de ter importância para dar lugar a edifícios que tragam dinheiro”. “Quero, com os meus trabalho, ter um apontamento que possa comunicar um pouco do que foi a cultura de Macau”, diz. Literatura aos bocados A escrita no território existe, considera, sendo que está muito fragmentada e, por isso, “não tem peso”. A língua é o maior obstáculo, quer para o lado de quem escreve em português, como para quem o faz em chinês. A razão, aponta, é não existir uma verdadeira plataforma capaz de traduzir as obras das várias comunidades de Macau para que se possam conhecer umas às outras. Rai Mutsu escreve para a comunidade chinesa, porque é quem o consegue ler. No entanto, fica o lamento: “Temo que os meus livros não cheguem às outras comunidades”. O abismo de entendimento entre as culturas de Macau, considera, poderia ser colmatado com a própria literatura. “As várias comunidades têm diferentes formas de pensar que, por vezes podem causar conflitos. A literatura feita e partilhada podia ter um papel importante em desmistificar preconceitos, resolver conflitos e atenuar as diferenças culturais”, aponta. Rai Mutsu gostava de viver da escrita, mas “viver como autor em Macau só é fácil se o objectivo não for ganhar dinheiro”. Não obstante, considera que o território dá liberdade criativa, mas “o que acontece é que as pessoas acabam por ir trabalhar para o Governo e, como tal, têm de passar a ter mais cuidado com o que escrevem”. As soluções passam por adoptarem heterónimos ou mesmo deixarem a escrita. Outros há, afirma, que recorrem à ficção ou à poesia. A razão, aponta, é serem géneros que permitem múltiplas interpretações. Rai Mutsu lança a 24 de Março um novo livro de poemas, “Desta Vez Venho Sozinho”.
Hoje Macau EventosHong Kong recebe em Março festival para jovens leitores [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde 2012 que a região vizinha tem um Festival Internacional de Jovens Leitores (HKIYRF, na sigla inglesa). O cartaz de 2017 já foi tornado público e os bilhetes também já estão à venda. Durante dez dias, a partir de 6 de Março, escritores de renome e autores em princípio de carreira juntam-se no evento da antiga colónia britânica. Em comum têm o facto de escreverem para leitores que vão dos quatro aos 17 anos. O festival tem como grande objectivo “encorajar as crianças e os adolescentes a descobrirem o prazer da leitura e a diversidade de livros, ao facilitar a interacção entre autores e jovens leitores, através de workshops e de sessões com os escritores”, explica a organização. O cartaz é vasto e são muitos os convidados. Os promotores do HKIYRF destacam Sarah Brennan, de Hong Kong, autora das colecções best-seller “Chinese Calendar Tales” e “Dirty Story”. Também a norte-americana Roshani Chokshi merece uma referência especial: “The Star Maiden”, uma das suas obras, ganhou o British Fantasy Science Award. Matthew Cooper, de Hong Kong, escreveu três livros para crianças que têm a região como espaço de acção. Sarah Davis, da Nova Zelândia, ilustrou mais de 37 livros. A sua primeira obra (também) enquanto escritora foi publicada este ano. Além de vários autores de Hong Kong, Nova Zelândia e Estados Unidos, vão estar presentes escritores e ilustradores de Singapura, Austrália, Reino Unido e Coreia do Sul. Acções motivadoras O festival tem um programa especial para as escolas. “Todos os anos, levamos autores aos estabelecimentos de ensino para ajudarmos a promover os níveis de literacia em Hong Kong. Acreditamos que a literatura é – e deveria ser – uma componente essencial no ensino de línguas. Queremos contribuir para motivar os alunos dos mais diversos contextos e de diferentes níveis de leitura a desenvolverem o interesse pelos livros e pelas artes que lhes estão associadas”, nota a organização. Do cartaz fazem também parte eventos abertos ao público em geral: estão agendados vários workshops e palestras para os dias 11 e 12 de Março. Vão decorrer na Comix Home Base, em Wanchai. O HKIYRF é organizado pela organização sem fins lucrativos responsável pela organização anual do Festival Literário Internacional de Hong Kong.
Isabel Castro EventosLiteratura | Rota das Letras acontece entre 4 e 19 de Março Só lá para meados do próximo mês é que o programa completo é divulgado, mas a organização do evento decidiu já deixar algumas pistas do que vai ser a sexta edição. O Rota das Letras vem aí, com vontade de trazer mais autores internacionais a Macau [dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]runo Vieira do Amaral é um autor português. Clara Law é uma realizadora nascida em Macau a viver na Austrália. Philippe Graton é fotógrafo, escritor e autor de banda-desenhada, herdeiro de uma obra que colocou Macau no mundo da BD. Graeme Burnet é escocês e esteve quase a ganhar o Booker deste ano. Nas duas primeiras semanas de Março, vão passar por cá – fazem parte da lista de convidados do Rota das Letras, o festival literário de Macau. À sexta edição, o formato é para manter, explica ao HM Hélder Beja, director de programação do evento. O festival continua a ter várias dimensões: em torno da literatura, elemento principal, concentram-se outras manifestações artísticas. Vai haver cinema, artes plásticas e música. “Haverá com certeza uma aposta forte num dos segmentos que é revelado aqui nesta pequena breve apresentação do festival: a banda desenhada, os comics”, explica Hélder Beja. “Pela primeira vez, o festival vai explorar esse campo e anunciará, nos próximos tempos, mais alguns convidados nessa área.” O nome revelado por ora é Philippe Graton. O fotógrafo e escritor belga é filho de Jean Graton, criador da série de BD Michel Vaillant, da qual faz parte o icónico álbum “Rendez-vous à Macao”. Há quatro anos, Philippe Graton decidiu ressuscitar Michel Vaillant, retomar as aventuras deste piloto de automóveis inventado pelo pai e continuar a série. Vaillant celebra 60 anos em 2017 – na presença em Macau, Graton vai falar do seu trabalho e inaugurar uma exposição. Quem por lá passar vai poder ver as provas originais do álbum “Rendez-vous à Macao”, um trabalho de 1963. O melhor dos primeiros De Portugal chega Bruno Vieira do Amaral, um autor que é, para o director de programação do Rota das Letras, aquele que tem o melhor primeiro romance de todos os escritores que se estrearam na literatura portuguesa nos últimos sete ou oito anos. “‘As Primeiras Coisas’ é um livro especial porque não é uma narrativa de grande fôlego, são curtas narrativas que, todas juntas, criam um todo. É como se fossem contos que fazem parte todos da mesma história. Passa-se na margem sul de Lisboa, de onde ele é natural. É um livro escrito de uma forma muito peculiar”, explica Hélder Beja. Sobre Bruno Vieira do Amaral, o responsável pelas escolhas do Rota das Letras diz que “é um escritor imensamente bem-humorado na melhor tradição de alguns dos nossos melhores escritores, como Eça de Queirós, que sabem olhar para a realidade e subvertê-la de uma forma muito rara, com uma linguagem muito contemporânea e com histórias dos nossos dias”. Todos os caminhos foram dar, de certa maneira, a Bruno Vieira do Amaral, um autor com as características que o Rota das Letras procurava. “Publicou este livro pela Quetzal com Francisco José Viegas, que já foi convidado do festival, também por isso não nos é de todo estranho. Trabalha há muitos anos na revista Ler, com Francisco José Viegas”, prossegue Hélder Beja. Com o romance “As Primeiras Coisas”, o escritor de 38 anos venceu, no ano passado, o Prémio Literário José Saramago. A obra valeu-lhe também o Prémio Fernando Namora 2013 e o Prémio PEN Narrativa do mesmo ano. “Recebeu tudo o que podia receber, ao ponto de ter deixado de trabalhar numa editora para se dedicar a tempo inteiro à escrita”, assinala o director de programação do festival de Macau. Vieira do Amaral foi ainda uma das dez novas vozes da literatura europeia pela Literature Across Frontiers. “Curiosamente, é uma instituição cuja directora também já esteve em Macau, no ano passado. Todas estas ligações faziam sentido”, afirma. “Provavelmente até pode ser que tentemos trazer mais alguém que seja seleccionado para este programa das novas vozes da literatura europeia através da Literature Across Frontiers, com quem gostaríamos de continuar a trabalhar, já que o fizemos no ano passado para trazer um autor do País de Gales e um autor espanhol, e há a possibilidade de voltarmos a tentar fazer isso.” Da Escócia e do passado Ainda em relação a escritores, o Rota das Letras de 2017 vai contar com a presença do autor escocês Graeme Burnet, que chega ao festival através de uma parceria com a Universidade de Macau. Burnet foi um dos finalistas do Prémio Man Booker 2016, com o livro “His Bloody Project: Documents relating to the case of Roderick Macrae”. A obra, que conta a história de um jovem de 17 anos que comete um triplo homicídio, foi a mais vendida de entre todas as finalistas do Booker, nota a organização. Antes, com “The Disappearance of Adèle Bedeau”, o escritor venceu o Scottish Book Trust New Writer Award em 2013. Hélder Beja adianta que, na componente literária do festival, o evento vai trazer a Macau escritores de países lusófonos e da China Continental, e cada vez mais autores internacionais. “É uma aposta clara, estamos também a trabalhar para tentar ter alguns autores do Sudeste Asiático. Tive oportunidade de ir agora à conferência em Cantão da Asia Pacific Writers & Translators, onde conheci muitos escritores também dessa região do mundo, porque trabalham muito não só com os escritores australianos e neozelandeses, mas também com escritores do Sudeste Asiático. Haverá novidades nesse campo e também será um novo passo do festival em relação ao passado”, explica. “Depois, teremos autores de língua espanhola, de língua inglesa, de língua francesa. Estamos agora a trabalhar muito arduamente para tentar fechar o programa o mais rapidamente. É sempre complexo, mas o conceito será semelhante.” Em 2017 há ainda um regresso a Camilo Pessanha. “Provavelmente no início de Janeiro anunciaremos mais algumas novidades sobre o que pensamos fazer. Não será à escala do ano passado, porque entretanto não faria sentido, mas achamos importante voltar a assinalar e também porque houve coisas que quisemos fazer no ano passado e não pudemos, pessoas que quisemos trazer, pelo que vamos aproveitar e trazê-las agora”, conta Hélder Beja. As outras telas Quanto ao cinema, está já anunciada a participação da cineasta Clara Law. “Não será a única atracção ao nível do cinema no festival. Estamos também a trabalhar noutras direcções e algumas delas já bastante avançadas.” “Nascida em Macau e radicada desde os anos 1990 na Austrália, Clara Law regressa ao território para mostrar algumas das suas obras. Autora de filmes como ‘Autumn Moon’, vencedor do Leopardo de Ouro no Festival de Cinema de Locarno em 1992; e de ‘Temptations of a Monk’ (1993), ‘Floating Life’ (1996) e ‘The Goddess of 1967’ (2000), igualmente aplaudidos e premiados no circuito internacional, Clara Law fez também uma incursão pelo documentário com ‘Letters To Ali’ (2004), história de um jovem refugiado afegão que procura asilo na Austrália”, resume a organização. Quase 50 anos depois deixar Macau, Clara Law esteve recentemente no território a filmar parte do seu novo filme, “Drifting Petals”, parcialmente passado na cidade. “Também teremos artes plásticas neste festival. Quanto aos concertos, a música continuará a fazer parte. Estamos também a tentar perceber em que moldes. No ano passado, não fizemos os concertos de grande dimensão no Venetian, mas fizemos concertos também com uma grande dimensão no Centro Cultural de Macau. Estamos agora a tentar tomar uma decisão até ao final do ano e perceber qual será a escala da presença musical no festival”, explica o director de programação. O público que falta Para Hélder Beja, o Rota das Letras deverá manter a dimensão que atingiu na última edição – “uma edição comemorativa, especial”, a dos cinco anos de existência. “Fizemos o festival crescer para os 15 dias e este ano não vamos sair daí. A escala será exactamente a mesma. Acho que o festival não precisa de crescer mais do que já cresceu”, defende. Quanto ao público que se quer chamar para o evento, o responsável assume que, “claramente, é preciso continuar a apostar muito junto das comunidades locais chinesas”, mas também diz que “não é esse o público que falta captar”. “Já conseguimos esse público, mas queremos muito mais do que aquilo que já temos. Isso passa muito por fazer mais parcerias com entidades locais, por estar mais presente nos meios de comunicação de língua chinesa, o que não é nada fácil, mas é preciso continuar esse caminho.” Hélder Beja assinala, no entanto, que há um segmento da população local que ainda tem uma participação tímida no festival: a comunidade anglófona. “Tivemos algumas pessoas no ano passado mas, para a escala que sabemos que a comunidade tem aqui, não foi relevante. Estamos a tentar perceber porquê: se é porque a informação não chega ou se é porque, de facto, é uma comunidade muito especial, porque sabemos que é muito ligada ao ramo da hotelaria, que poderá não ter, à partida, grande interesse por este tipo de actividade cultural. Mas não podemos ter esse preconceito, não queremos tê-lo e vamos fazer um esforço para tentar captar essa franja da sociedade de Macau”, vinca. O Festival Literário de Macau voltará a ter por base o edifício do Antigo Tribunal.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA bizarria como fonte [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e cada vez que vou ao Porto, acontecem-me coisas estranhas. Na verdade, acontecem-me coisas estranhas em todo o lado. Para a maior parte das pessoas, a ingerência cíclica da bizarria nas suas vidas é, no mínimo, um indesejado impedimento de que se livram tão depressa quanto lhes é possível: é aquele maluco no autocarro que afiança transportar material radioactivo nos bolsos e ser perseguido por todas as agências de espionagem mundiais; é a velhota no talho a pedir repetidamente ao incrédulo mas cada vez mais divertido talhante para lhe assegurar que na carne moída não usam gato; são todas conversas com que as pessoas esbarram dia-a-dia e que estão a montante ou a jusante das suas zonas de habitualidade e conforto. Viram costas. Despedem o assunto com um sorriso anémico e um encolher de ombros. Fingem perceber. A criança temente às coisas estranhas do mundo que há em cada um de nós estanca subitamente e, ao longe, o medo criando raízes até passa por uma apreciável e salutar dose de educação. Para um escritor, no entanto, o absurdo não interrompe a vida. Pelo contrário. O absurdo e as suas diversas tonalidades de bizarria são o combustível que alimenta a linha de montagem da maior parte das produções literárias. Combustível tanto mais valioso como de achamento imprevisível: pode andar-se tempos infindos, nas zonas onde a bizarria mais prolifera, numa procura atenta do melhor e mais refinado absurdo, sem lograr topá-lo sequer de longe. Por isso me é particularmente difícil, mesmo que a intuição me alerte para a possível enxurrada de um tédio interminável, afastar-me das conversas com alguns sujeitos que, a pretexto de me cravarem um cigarro, se entregam imediatamente a uma espécie de confissão diarística temperada com LSD. Regressava da apresentação do meu livro de contos “da Família”, no Porto, quando, à entrada do hotel, um rapaz aproximadamente da minha idade e cujo ganha-pão é encaixar os carros no tetris confuso do estacionamento urbano disponível, se acerca de mim, numa educação inversamente proporcional ao seu aspecto andrajoso, e me pede o habitual cigarro com que conto aforrar karma suficiente para, na minha velhice, ser agraciado com a bondade alheia de um cigarro ocasional. Acabadas de cumprir as formalidades referentes ao lume e demais agradecimentos, o rapaz, olhando-me fixamente, pergunta-me: não achas que a esquizofrenia pode ser um acto de deus? Não sendo as intervenções divinas a minha especialidade, malgrado ou talvez por causa dos quatro anos num colégio de freiras de onde até da catequese consegui ser dispensado derivado a motivos de fazer “demasiadas questões”, achei precavido esperar pela sequência de pensamentos subjacentes à interrogação, até porque tinha a certeza de quem formula semelhante pergunta deve ter muitas mais coisas a dizer. Deus, como percebi de imediato – e como sempre – foi sol de pouca dura. A esquizofrenia, essa, foi ficando. A conversa, custosa não tanto pelo tema mas sobretudo pelo frio – uns típicos três graus numa noite de Dezembro, no Porto – assemelhava-se ao percurso confuso de um atirador furtivo incerto do seu alvo: era o pai, os maus-tratos recebidos na infância, a “filha da puta da droga”, expressão repetida ao ponto de se tornar mais uma forma de pontuar a conversa, a mãe, omnipresente pela total ausência dela no discurso, a vida e as suas minudências esclavagistas, a vida de pobre, a vida de quem é abandonado por deus, a vida da rua. Mais de meia hora decorrida sobre o início da conversa, o Vítor – vamos assumir que se chamava, Vítor, dada a minha impossibilidade crónica de me lembrar de nomes próprios – confessa-me, aliviado como não o vira ainda, que “tinha um problema”. A única coisa que não esperava e que me fez confusão na frase foi, na verdade, o tempo verbal. No entanto, pela primeira vez na conversa, o Vítor não muda de assunto, não tergiversa, não entra e sai dos temas sem qualquer tipo de ordem ou sequência. Pela primeira vez na conversa, o Vítor está absolutamente focado. Sabes, principia, eu ouvia – para logo corrigir – e ainda ouço, um escaravelho que está sempre num raio de oito milhas à minha volta (escusado será dizer que a custo consegui suprimir a natural tentação de lhe perguntar se se tratavam de milhas marítimas ou terrestres). Não me deixava descansar, dormir, comer uma bucha em tranquilidade. É daqueles barulhos, sabes, tipo frigorífico ou água a pingar, à noite, sabes, e eu abanava a cabeça em sinal de assentimento, cada vez mais curioso, e quando me aproximava dele, estás a ver, prosseguia, o gajo calava-se, mas era só o tempo de eu voltar para onde estava e o gajo começar a fazer barulho outra vez. Ia dando em maluco, afirmava, com aquele olhar de quem procura no interlocutor o conforto da empatia. E como resolveste o assunto, perguntei. O Vítor, não se fazendo de rogado, até porque estava à espera da pergunta desde que começara a falar no escaravelho, começa a despir as múltiplas camisolas com que se protegia da noite invernosa do Porto. Chegado à pele, aponta, orgulhoso, para uma das inúmeras garatujas que tatuara no corpo. Vês, afirma, orgulhoso, ele continua a fazer barulho, mas agora sei sempre onde está. Queres mais um cigarro, Vítor? Quero.
Sofia Margarida Mota EventosJane Camens | Macau pode vir a acolher encontro internacional de escritores e tradutores A escritora australiana Jane Camens esteve em Macau numa sessão na Livraria Portuguesa que assinalou o final do encontro anual da associação que dirige. Ao HM falou dos desafios da escrita e da tradução, e do desejo de que a iniciativa venha a acontecer no território [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau pode vir a acolher o encontro anual promovido pela Asia Pacific Writers & Translators Inc (APWT). A iniciativa, que tem como objectivo promover o contacto entre profissionais do meio literário, nomeadamente escritores e tradutores da região asiática, vê o território como especialmente atractivo para o efeito. O desejo foi manifestado por Jane Camens, directora da entidade, que vê na possível realização da iniciativa em Macau uma forma de ter presentes mais autores portugueses, ao mesmo tempo que considera que é um lugar especial no que respeita às competências da tradução. Para Jane Camens, Macau é um lugar isolado no que respeita à internacionalização literária. O facto não se deve à falta de autores ou de tradutores, mas porque as obras dos escritores locais, na sua maioria, não estão traduzidas. “Em Macau vejo muito poucos trabalhos a serem traduzidos para inglês, quer escritos em língua portuguesa, quer em língua chinesa”. A falta de acesso a trabalhos em inglês faz com que se sinta “bloqueada”. “Parece que Macau é um mundo privado e essa também é uma das características que me fascina aqui.” Mas é também em Macau que Jane Camens vê a profissão do tradutor como uma das mais bem desenvolvidas. A autora e ex-residente do território considera que, dada esta característica de “excelência na tradução”, a cidade reúne condições para receber o encontro internacional da associação que dirige. “Estivemos aqui e conversámos com representantes da Universidade de Macau acerca da possibilidade de organizar o encontro no território. Pode ser uma oportunidade de trazer mais escritores portugueses e, francamente, penso que, aqui, existem profissionais com capacidades de tradução incríveis”, explica ao HM. A coexistência de duas línguas e as consequências profissionais que isso traz podem ter benefícios para aprendizagem da própria APWT: “Penso que, a esse nível, também podemos aprender muito do que é feito aqui em Macau ao nível da tradução”. A tradução não é preguiçosa O trabalho de tradutor não é o de um transcritor numa outra língua. Jane Camens salvaguarda que esta não é a sua área mas, enquanto autora, vê o tema da tradução profundamente debatido nos encontros que organiza e fala do seu passado. “Tive uma experiência com profissionais que traduziram textos meus para espanhol e o conselho dado por um poeta italiano presente foi de que os tradutores não se devem sentir obrigados a ficar presos ao texto. Também são criadores e o texto final é de alguma forma deles, pelo que é necessário que se sintam livres para trabalhar isso mesmo”, ilustra Jane Camens. No entanto, a missão não é simples, especialmente no que respeita a traduções literárias. A função exige um trabalho árduo e merecedor de mais reconhecimento. Jane Camens refere que “a escolha e o leque de vocabulário são os elementos mais importantes quando se fala de tradução literária. Um tradutor não pode ser preguiçoso no seu trabalho nem com as palavras que utiliza e a correspondência entre palavras tem de ser muito clara”. Já Sanaz Fotouhi, assistente executiva da APWT, diz ao HM que um dos maiores desafios enfrentados pelos tradutores, até há pouco tempo, foi a falta de reconhecimento. “Muitas vezes as pessoas, ao lerem um trabalho traduzido, fazem-no como se estivessem a ler o original e não têm noção de que existe um tradutor que transpôs e recriou aquela obra para que pudesse ser lida por outras pessoas, noutras línguas”, explica. Para Sanaz Fotouhi, “quando um livro é traduzido, é transformado numa outra obra e é por isso que agora os grandes prémios literários consideram a tradução”. Da China para a China No final do encontro anual que teve lugar em Cantão, Janes Camens não podia estar mais satisfeita. “Este encontro foi surpreendentemente gratificante. Teve a presença de muitos escritores internacionais e foi um sucesso tremendo. Tivemos participações da Islândia, de Itália e mesmo de Portugal. Mas o que mais surpreendeu foi a adesão de escritores chineses”, referiu ao HM. Relativamente à presença de literatura feita na China Continental e dos seus autores nas iniciativas promovidas pela APWT, a participação ainda não é muita, mas já se começa a fazer sentir. A iniciativa de Cantão “proporcionou um espaço para que os autores chineses comunicassem com outros de outras origens porque achamos que isso não acontece com frequência”, apontou Jane Camens. A autora considera ainda que não existem muitas plataformas internacionais de encontro de autores do Continente porque “já existe um mercado interno massivo na China e, por isso, os autores podem tender a dizer que não precisam de sair do país. No entanto, qualquer escritor gosta de ser lido o mais alargadamente possível”.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDes-fotar: contra o vórtice das imagens [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]conteceu em Maputo. Dois casais. Um deles tinha uma teleobjectiva e entretinham-se a tirar fotos em grupo. Estranho, faziam tudo para tapar a cara. Intrigava-me esse gesto de antepor um punho, três dedos abertos, a mão cerrada entre o clic e o rosto. Punham-se em pose para, afinal, ocultar a cara. Às duas por três, uma transpôs o murete que separa a esplanada do passeio e pediu à amiga, tira-me uma foto. E um segundo antes da outra carregar no botão ela disparou o braço para a frente com os dedos em vê a tapar o rosto e nomeou a coisa: Des-foto. Era um gesto pensado e por desconcertante que pareça tem atrás de si um conceito. A Des-foto é o oposto da Selfie ou a sua simétrica paródia? Não imagino se a Des-foto é invenção deles ou a imitação de uma vaga que pela primeira vez vi aflorar em solo moçambicano. A Des-foto organiza uma tensão na imagem: o sujeito aderiu à representação mas suspendendo-a, antepondo à sua imagem algo que a trunca. É uma espécie de burka da fotografia? Por outro lado, se isto for uma moda, corresponderá este novo rito a uma reacção epidérmica, contra-fóbica, à saturação de imagens em que naufraga o mundo – ainda que usando o pêlo do cão agressor para curar a mordidela? Gosto da foto que encima esta crónica. É de um fotógrafo moçambicano e chama-se….. O visado reage, como se avisasse: “eh, sou pobre mas resta-me o direito à minha imagem!”. E contra a imagem da sua pobreza contrapõe a dignidade de manter isso em reserva, exige o recato do silêncio. Uma vez viajei pelo Yémen com um realizador que para disfarçar o seu mal-estar, naquele mundo distintíssimo do nosso, se armava com duzentas máquinas a tiracolo. Por milhares de livros que tenhamos lido, por fotos que tenhamos visto, por volumosa que tenha sido a informação digerida, quando estamos no terreno é o corpo quem reage e não a nossa armação racional. Ele defendia-se com a brutalidade do seu aparato tecnológico. E só conseguia lidar com a fobia que o tomava através da mediação da imagem, do antídoto da distância. Atravessávamos Hadramouth, um longo oásis ligado às antigas rotas das especiarias, e vimos um grupo de pedreiros a amassar tijolos com a mesma técnica dos tempos bíblicos. Eu dispunha-me a fazer uma reportagem e parámos o carro. Ele correu, para despachar o serviço, e antes de qualquer conversa, do mínimo protocolo, rondou os pedreiros como um urubu e clic, clic, zás, catrapás, colheu duas dúzias de imagens em cima dos atónitos iemanitas. Instalou-se um clima de hostilidade que impediu qualquer conversa útil: os pedreiros dispensavam ser souvenires, e como tínhamos agido sem consentimento saímos dali de mãos vazias e, por sorte, vivos. Sem consentimento: é assim que mais de metade das imagens percorrem o mundo, através das redes sociais, das revistas, dos canais televisivos, formatando opiniões a partir de simulacros destituídos de contexto. É o modo mais perigoso de sobrepormos à realidade “um banco de irreais” que deformam a nossa percepção e a embaraçam em estereótipos e lugares-comuns que nos coarctam o raciocínio. Temos de reaprender a pensar para-além das imagens, a desnaturalizá-las, mais ainda quando com o advento das imagens digitais se torna suspeita a velha máxima de que “uma imagem vale mil palavras”. Pior, não apenas proliferam as imagens em que não há nada que ver, como assistimos, como insinuou Braudillard, a uma escalada do politeísmo que tem agora nos objectos e nas suas imagens o seu avatar: «Hoje, todas as coisas querem manifestar-se. Os objectos técnicos, industriais, mediáticos, os artefactos de toda a classe, querem significar ser vistos, ser lidos, ser gravados, ser fotografados. Cremos fotografar tal ou qual coisa por prazer e em realidade é ela que quer ser fotografada nada mais somos que a figura que os põe em cena, secretamente movidos pela perversão auto-publicitária de todo o mundo circundante. (…) Já não é o sujeito quem representa o mundo (i will be your mirror!): é o objecto quem refracta o sujeito e, subtilmente, por meio de todas as nossas tecnologias, e lhe impõe a sua presença e a sua forma aleatória.» Dir-se-ia, estamos possessos. Será por isso que uma democracia apoiada sobretudo na retórica das imagens é uma democracia enlanguescida, que já não reflecte no significado das suas emoções colectivas e se limita a traduzi-las em espectáculo? Eis o triste ensinamento que nos trazem os “talk-shows”, cujo formato impede o raciocínio de desenvolver-se e obriga à lógica redutora do slogan, os “reality shows”, os últimos episódios da democracia-capturada-pelos-media, no Brasil, e a deprimente campanha para as eleições nos EUA. Temo que Des-fotar não passe de mais uma moda idiota, mas se trouxer a alguns a necessidade de reflectir sobre o que é uma imagem, o que é uma representação, e se os levar em conformidade a proceder a uma espécie de “economia das imagens”, constituirá, afinal, um acto ecológico. E talvez ajude aqui um dito de Blanchot, que podemos usar como lema: “todos os dias há uma coisa para não ver”.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDe Dylan aos golpes da espionagem [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje é a cerimónia de entrega do Prémio Nobel de Literatura. A nomeação de Bob Dylan, indubitavelmente um grande artista, como Nobel não me provoca alergia mas não me alegra. Explico-me: como professor preocupa-me muito o baixo quociente de atenção de que se mostram capazes os alunos. Entre outros factores, identifico a «síndrome pop», o facto do grosso dos jovens crescer condicionado pelo formato da canção pop, que dura três minutos. São fisgados por um tipo de atenção breve e, como na comunicação oral, sustentada em refrões. Na educação clássica e na formação musical não se apurava apenas a educação do gosto e do ouvido, os alunos afeiçoavam-se a uma intensificação da concentração e dos seus vários níveis de escuta. Uma das razões porque o público da pop não ouve Mahler, prende-se – mais do que à complexidade estrutural das sinfonias do músico vienense -, com a sua duração, que excede as pautas de atenção em que foi adestrado. Depois de décadas só a ouvir canções de três minutos, o que equivale a uma corrida de cem metros no atletismo, uma peça musical de uma hora corresponderá a uma maratona. Acresça-se que a este carácter redutor, a cultura pop institucionalizou a diversão: o mais das vezes uma escapatória para a preguiça intelectual. Premiar um ícone da cultura de massas é um sinal de cedência a este regime balizado por dois limites: a ideia de diversão como único combustível das intensidades sensoriais (esquecendo que a aventura intelectual também oferece diversão e até felicidade); a ideia de que o que é difícil e exige mais atenção deve ser reconvertido para se tornar mensurável e acessível. Esta atribuição também parte do equívoco de considerar-se que a literatura carece de público e de que há que achá-lo onde o público está. Ora, este raciocínio enferma do mesmo erro que cometia a velhinha que, à noite, perdera uma moeda no princípio da rua mas a procurava adiante, debaixo do halo de luz do candeeiro público. Se as pessoas hoje lêem menos Proust ou Joyce não é porque esses livros não contenham ingredientes que possam interessar os jovens de hoje, mas porque o mundo se trivializou e a atenção se tornou uma habilidade só para especialistas. 1/11/2016 Sinopse para uma comédia, escrita na minha aula de Guionismo, onde desenvolvemos um breve apontamento de Billy Wilder, infelizmente nunca elaborado: Ano, 2020. Instalou-se no mundo uma Nova Guerra Fria que separa Povos Com Zika de Povos Sem Zika. Num congresso de cientistas da saúde africanos, realizado em Kingshasa, destaca-se o trabalho de Ónus, um académico moçambicano – um homem íntegro e que só tem por fraqueza gostar de uma pinguinha. É a ele que os observadores americanos, enviados por Hillary, escolhem para ser o inconsciente portador da fórmula secreta de uma “bomba” cujo poder curativo mudará a face do continente, que será posteriormente resgatada por agentes sul-africanos (- os americanos não se arriscam a passar-lhes directamente a fórmula para não serem acusados de favoritismo na ONU). Para tal, convidam-no para uma festa, embriagam-no, raptam-no e depois tatuam-lhe no pénis a fórmula. Que só pode ser lida em erecção. O cientista acorda azamboado e de ressaca no hotel, a uma hora do seu embarque de regresso, e, com a pressa, não dá por nada. Chega a casa, em Maputo, desfaz as malas e toma um duche, antegozando a noite maravilhosa que terá com Bárbara, a sua mulher. É aí que dá conta: tem algo tatuado no sexo. Ónus entra em pânico: não há desculpas que justifiquem aquela inscrição (que não consegue ler) e a sua estranha amnésia. Ainda por cima, acontecer-lhe a ele, fidelíssimo à mulher! À noite, a culpa inibe-lhe a erecção. Como acontece pela primeira vez, entre eles, a mulher graceja e adormecem após uma boa galhofa. Ou antes, ela. Ele não, está à rasca. E ao longo da semana repete-se a nega. A esposa começa a desconfiar que ele tem outra. E o sentimento de culpa dele adensa-se. Os outros países africanos começam a enviar-lhe mulheres cientistas de grande aparato físico, para o atraírem a uma cilada sexual. A lasca zimbaweniana – uma enóloga – embriaga-o ao falar-lhe sobre uma enzima que dá às uvas o tamanho de melões, sem o conseguir levar para o quarto. A enviada etíope atrai-o ao quarto sob promessa de lhe mostrar um besouro em cuja carapaça a natureza desenhou o Rato Mickey. Mas um copo a mais de Mateus Rosé fá-lo sucumbir no sono, no sofá, antes dela regressar da casa-de-banho, nua e em oferenda. A África do Sul envia uma Mata-Hari capaz de derreter um iceberg quando expõe o mamilo esquerdo, o menos abrasivo. A ingenuidade de Ónus é mais uma vez enrolada pelo parlapié duma colega cientista e sobe ao quarto dela, num intuito académico. Martini puxa Martini, e eis Ónus enfiado na cama dela, atarantado mas nu. Contudo, como é homem de uma obstinada fidelidade, a erecção não tem lugar. A sul-africana – uma cientista de renome – não está com meias medidas e tira da mala um x-acto para decepar o membro murcho. Debruça-se sobre a cama, o olhar amortecido de Ónus nem se apercebe do brilho da lâmina… É então que Bárbara, que o seguia sorrateira há uma semana, abre a porta num pontapé. Com dois golpes de Karaté despacha a espia boer e amarra-a ao cadeirão. Ónus, a quem a entrada de rompante da mulher pusera sóbrio, observa deliciado a limpeza com que a sua mulher o salva – sim, é sua, a mais felina das mulheres! E o entusiasmo proporciona-lhe a maior erecção da sua vida. Ónus e Bárbara, lêem então, contristados, a fórmula que ele exibe, tatuada no pénis: Abstinência!
Sofia Margarida Mota Eventos MancheteHan Lili | Literatura local é de qualidade mas precisa de divulgação A literatura de Macau está bem e recomenda-se. A ideia é passada pela académica Han Lili que esteve no Fórum do Livro de Macau em Lisboa para apresentar e discutir a produção e necessidades da actividade literária local [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] necessário divulgar a literatura que se produz em Macau. A sugestão é deixada pela académica e poetisa Han Lili, após ter participado no primeiro Fórum do Livro de Macau em Lisboa. A também professora do Instituto Politécnico de Macau foi, a convite da Associação Amigos do Livro, dar a conhecer um pouco da produção literária que se faz na região, de modo a suscitar a discussão acerca da temática. Um dos problemas que a produção literária local atravessa é a falta de divulgação e o Fórum proporcionou um momento para que tal fosse feito. Com um balanço “muito positivo” do evento, Han Lili não deixa de sublinhar o facto de mesmo as pessoas que são de Macau e que estavam presentes em Lisboa desconhecerem algumas das traduções que já existem de obras escritas em chinês na região. A situação demonstra que “a produção literária que por cá se faz não é suficientemente divulgada, e o Fórum proporcionou um momento de debate acerca das dificuldades e caminhos a seguir de modo a motivar a literatura local”, refere Han Lili no balanço que faz da sua participação na iniciativa. Divulgação é prioridade “Os escritores locais enfrentam muitos desafios, porque o mercado não tem muita procura”, afirma a académica, pelo que considera “imperativo que sejam divulgados na China Continental e com iniciativas como o Fórum do Livro de Macau”, para que as traduções possam ser incentivadas e as obras possam rumar a outros continentes. “Há falta de informação em Macau acerca do que cá se produz literariamente, e é preciso divulgar e materializar esta ponte entre as duas culturas”, ilustra ao HM. No cerne das questões debatidas em Lisboa esteve a necessidade de apoio social e institucional para divulgar a literatura de Macau. “Para dar a conhecer livros é necessário que as pessoas saibam que existem e que os leiam, é preciso público.” Neste sentido, é urgente que se passe à sensibilização social de modo a fomentar o hábito de ler obras escritas por locais. Han Lili considera ainda que “se houver este mercado e esta procura, será uma forma de incentivar os próprios tradutores a realizar um trabalho mais exaustivo e elaborado, de modo a ter o sucesso necessário na sua função”. No entanto, a dificuldade em traduzir este tipo de obras, e especialmente a poesia, é vivida na primeira pessoa pela académica. Paralelas à necessidade de tradução para uma maior divulgação estão as dificuldades associadas ao processo de passar conceitos, nem sempre concretos, para um outro sistema linguístico. No sentido de promover o bilinguismo e a sua materialização no que respeita à tradução literária, Han Lili considera que as directivas de Pequim no sentido de desenvolver a língua portuguesa são fundamentais e “já se notam”. “A estratégia do Governo Central e respectiva implementação das Linhas de Acção Governativa já se reflectem, por exemplo, nos cursos de Tradução que são motivo de cada vez mais candidaturas”, explica, sem deixar de salientar que é preciso mais. Para traduzir uma obra literária não basta ser tradutor, há que ter sensibilidade e dominar por completo as culturas em que as línguas com que se trabalha se inserem. “No mercado é muito difícil encontrar tradutores de qualidade, sobretudo de obras literárias, área em que não chega ter o curso e é preciso ter a sensibilidade necessária para, por exemplo, poder traduzir poesia.” A ilustrar a situação, Han Lili dá o seu próprio exemplo enquanto poetisa. “Não traduzo os meus poemas, ou os escrevo em português ou em chinês, porque há elementos que não podem ser traduzidos”, explica. No entanto, na opinião da académica, os escritores locais estão cada vez mais incentivados e precisam de mais iniciativas por parte das próprias instituições. A académica, que foi falar de literatura chinesa de Macau à capital portuguesa, considera que o tema engloba não só a literatura produzida por autores locais, mas também a que foi escrita por outros desde que seja sobre o território, ou feita por quem por cá tenha passado. “Para poder alargar a dimensão que abrange a literatura de Macau, recorri à definição proposta por José Seabra Pereira, em que literatura de Macau não significa que seja escrita por pessoas de Macau, mas sim aquela que é sobre a terra, porque Macau não é um conceito geográfico”, explica Han Lili ao demonstrar que o tema é alargado. Na calha para o futuro Macau já tem uma produção literária “sólida”, afirma ao HM, que se reflecte tanto no que respeita à escrita em português como em chinês, e mesmo em obras traduzidas, algumas pelos próprios autores. Han Lili destaca Yao Jingming, que escreve em chinês, português ou mesmo inglês. No entanto, “apesar de Yao Jingming fazer as suas traduções, tem muitas obras que ainda não têm versão em português”. Para a professora, o académico é um exemplo do que de sólido e de qualidade se faz em Macau ao nível da escrita”. “Além de ter uma sensibilidade poética, [Yao Jingming] consegue escrever em línguas diferentes, sem que interfiram uma com a outra”, explica. Outra referência proposta para futura tradução é a poetisa Susana Yun ou Tai Ki, que “é uma excelente romancista”. Ao recorrer a pequenas histórias, Tai Ki consegue tecer um argumento complexo e muito estruturado, o que lhe valeu o prémio de literatura, durante três anos, atribuído pela Fundação Macau: “Isto demonstra que a qualidade começa a ser reconhecida”.
Isabel Castro EventosSubdirector do Rota das Letras fala em Bali da experiência de Macau [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]alou-se de Macau por estes dias em Ubud, onde se realiza um dos mais importantes festivais literários do Sudeste Asiático. Hélder Beja, co-fundador do Rota das Letras, esteve em Bali. Uma viagem que se pode reflectir nas próximas edições do evento do território Sempre que pode, Hélder Beja faz as malas e viaja até à cidade onde está prestes a acontecer um festival literário. Foi assim com o festival literário de Paraty, em 2014, e foi assim também há uns meses, quando viajou até à Colômbia para a Feira do Livro de Bogotá. Desta vez, o destino foi mais próximo, mas há muito desejado. “Era um festival a que queria vir há muito tempo”, conta ao HM, ao telefone a partir de Bali. “Vim à semelhança da forma como estive nos outros festivais. A decisão de vir aos encontros literários é minha, venho por minha conta. Mas como sou um dos organizadores do festival literário de Macau, acabo por ter um tipo de envolvimento diferente nos festivais do que tem um visitante normal”, explica o subdirector do Rota das Letras. “No caso de Ubud, quando entrei em contacto com os organizadores fui convidado para fazer parte de um painel precisamente sobre festivais literários.” Hélder Beja participou, no final da semana passada, numa das muitas sessões que constituem o intenso programa principal do Festival de Escritores e Leitores de Ubud, uma iniciativa organizada na ilha indonésia há já 13 anos. O subdirector do Rota das Letras partilhou a mesa com a directora do festival de Bali, a australiana Janet DeNeefe, a escocesa Jenny Niven, responsável pelo aparecimento do festival literário de Pequim, e com Michael Williams, director do Wheeler Centre na Austrália, para uma sessão sobre “a vida secreta dos festivais” em torno dos livros e da escrita. Das ideias que deixou na sessão acerca do Rota das Letras, Hélder Beja destaca o facto de ter causado muito interesse a particularidade de ser trilingue – em Ubud, apesar de haver tradução para bahasa, a língua mais usada acaba por ser o inglês. “As pessoas ficaram muito curiosas com essa parte, com a parte linguística”, relata, assim como com a duração mais prolongada do festival de Macau, em comparação com outros eventos do género. A ideia da “memória palpável”, com a publicação dos livros de contos no âmbito do Rota das Letras, também foi um aspecto que mereceu atenção: “Acharam muito curioso o convite que lançamos aos escritores, todos os anos, para escreverem sobre Macau e depois traduzirmos tudo”. O festival literário de Macau é ainda diferente da maioria dos certames do género pelo facto de a grande maioria dos conteúdos do programa ser de entrada livre. “Expliquei porquê, porque é de facto bastante diferente do que acontece aqui, em Paraty ou em Bogotá.” O outro universo de escritores Sobre a experiência em Ubud, Hélder Beja refere ainda a possibilidade de conhecer escritores do Sudeste Asiático – e aqui a viagem até Bali poderá ter influência em futuras organizações do Rota das Letras, sobretudo no que toca à lista de autores convidados. Este ano com o tema “Tat Tvam Asi” – qualquer coisa que, em português, poderá ser traduzida como “eu sou tu, tu és eu” – o festival de Ubud juntou centenas de escritores, pensadores, artistas, analistas e activistas. Num dos painéis desta edição, que terminou ontem, esteve em análise o trabalho da jornalista e escritora portuguesa Susana Moreira Marques, autora do livro “Agora e na Hora da Nossa Morte”, uma obra que resulta da experiência ao lado de uma equipa de prestação de cuidados paliativos ao domicílio, em Trás-os-Montes. A diversidade de convidados vai ao encontro do objectivo da organização – reforçar “a identidade colectiva da Indonésia” – num palco que, avalia Hélder Beja, é “o sítio ideal para um festival cultural de qualquer natureza”. “Dizia na sessão que, depois de chegar, um organizador de um festival literário de qualquer parte do mundo fica um bocadinho deprimido com o seu próprio festival, porque a localização é imbatível. São indiscritíveis os espaços, só comparáveis – mas até superiores – aos que vi em Paraty, e não comparáveis a nada do que tenha visto noutros sítios. Ubud é um sítio especialíssimo”, afirma. Macau não tem o mesmo cenário, é “menos idílico”, mas o subdirector do Rota das Letras espera que o festival de cá possa vir a ser também “uma referência no mapa dos festivais literários da Ásia”.
Andreia Sofia Silva SociedadeFestival Rota das Letras registou défice nas contas [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] Festival Literário Rota das Letras tem vindo a registar um défice nas contas finais todos os anos. A garantia foi dada ao HM por Ricardo Pinto, director da Praia Grande Edições, empresa responsável pela organização do evento. “Temos conseguido que o défice do festival tenha sido reduzido de ano para ano, mas não é muito fácil controlar o orçamento do festival, são muitas as condicionantes e os factores imprevisíveis. Temos procurado que o orçamento possa crescer um pouco mas a conjuntura não é muito favorável, já que estamos numa altura em que uma série de entidades têm evocado a situação de menores receitas a nível global.” Deve e haver Ricardo Pinto falou ao HM no seguimento de uma carta enviada por um dos vencedores do concurso de contos, Darío Bravo, em que este se queixa do atraso no pagamento do prémio, de 10 mil patacas. Entretanto o valor já foi pago, segundo confirmou Ricardo Pinto e Hélder Beja, director do festival. “Os gastos excederam as receitas e estamos a levar mais algum tempo do que gostaríamos, mas os pagamentos serão todos efectuados. Dentro de duas a três semanas todos os pagamentos relacionados com o festival estarão feitos”, confirmou Ricardo Pinto. O vencedor de língua portuguesa, oriundo do Brasil, enviou a carta a todas as redacções de vários meios de comunicação locais e às empresas patrocinadoras do Rota das Letras, falando de má gestão. “O porquê desta mensagem: tornar público que os organizadores do IV Concurso Rota das Letras não cumpriram a palavra e que eles não têm ideia de quando isso será resolvido; se daqui a um mês, um semestre ou um ano. Se isso se deveu a uma falha organizacional, sugiro que em futuras edições os promotores do evento só anunciem o prémio se tiverem lastro económico, isto é, se estiverem em reais condições de cobrir possíveis percalços e contratempos. Aproveito a oportunidade para desabafar: o assunto me é desconfortável, e eu gostaria de ter sido poupado deste constrangimento”, pode ler-se na carta. Ao HM, Hélder Beja garantiu que sempre respondeu aos e-mails e que nunca foi dito que o pagamento seria efectuado com um ano de atraso. Jane Camens, outra das vencedoras do concurso, também já recebeu o seu prémio, disse a própria ao HM.
Sérgio de Almeida Correia VozesRota do prazer [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão sou editor, não sou escritor, não sou organizador de nada. Nem mesmo da minha vida, que de cada vez que julgo estar a reorganizá-la se desorganiza logo de seguida, por qualquer razão, deixando-me sem jeito. A confrontação com esta realidade ajuda-me a imaginar, porque não posso fazer mais do que isso, o que será a organização de um festival literário que envolve cerca de seis dezenas de entidades, entre patrocinadores principais e secundários, muitos editores e dezenas de autores que chegam dos cinco continentes, visitas a escolas, momentos e espaços para crianças, jovens e adultos, palestras, conferências, exposições, espectáculos musicais, do fado à ópera chinesa, projecção de filmes, lançamento de livros, reservas em hotéis, serviços de catering, organização de viagens, coordenação de horários, workshops de escrita e leitura, sessões de poesia, acompanhamento de convidados, num conjunto de actividades que se desenrola em múltiplos espaços, com recolha de imagens, e onde tudo acontece em três línguas que nada têm em comum (português, chinês e inglês), havendo por isso mesmo exigências de tradução simultânea para que as iniciativas recolham o interesse do público e não se tornem numa chatice. Se a tudo isto somarmos o facto de haver público interessado, de várias nacionalidades e de todas as idades, de diariamente se poderem ler entrevistas nos jornais locais com os autores convidados, escutar programas na rádio ou ir acompanhando o que se vai passando pela televisão, vendo-se crianças, jovens, adultos e menos jovens, pais e filhos, ouvindo, debatendo, discutindo, aprendendo em salas cheias, sendo possível encontrá-los em simultâneo nos diversos eventos sem que a idade, a experiência ou o currículo façam alguma diferença, e em que os que gostam de livros se misturam com os que começam a gostar por se sentirem estimulados pelo ambiente para gostarem e apreciarem a leitura e a escrita, poder-se-á ter uma ideia, estando longe, do trabalho envolvido e da importância de uma iniciativa desta natureza numa cidade de 650 mil habitantes. Existe nisto tudo uma dimensão extraordinária, que vai para lá daquilo que seria a imaginação quando a poucos quilómetros daqui a censura é um dado adquirido, não há liberdade de acesso à Internet, raptam-se editores e livreiros e há quem cumpra pesadas penas pelo simples facto de não pensar de acordo com os cânones oficiais. É verdade que mesmo aqui a democracia não passa de uma miragem, mas ter a possibilidade de ouvir quem vem do outro lado da fronteira discutir abertamente com quem chegou de países livres e de terras de democracia consolidada questões relacionadas com a liberdade de expressão e de edição e com os direitos humanos faz da Rota das Letras um espaço único de intercâmbio de ideias, de reflexão, de crítica e debate. A cidade abre-se para receber os visitantes, acompanhá-los e aprender com as suas experiências. Torna-se possível falar abertamente com os autores, ouvir o que têm para contar e ensinar, e tudo pode acontecer numa sessão de apresentação de uma obra, num workshop ou partilhando-se uma refeição que a própria organização se encarregou de preparar com inscrições abertas a quem queira participar. E até pode dar-se o caso de se ser apresentado e almoçar ou jantar com autores que nunca se leu e em que a leitura é estimulada por esse encontro. Numa dessas ocasiões, estando eu já sentado com mais alguns convivas numa das mesas de um restaurante por onde a Rota passou, vieram perguntar-me se ali à minha beira se podiam sentar três dos autores. Tive então o gosto de conhecer e trocar impressões com gente de estilos e preocupações muito distintas — um é escritor, tradutor e professor da Universidade Nova, com passagens pelo Massachusetts e Vermont, o outro é especialista em Pessanha e Bocage, escreveu sobre Moraes e Raul Proença, e o terceiro é uma das estrelas da nova literatura do Brasil, vencedor do Prémio Machado de Assis, reconhecido cronista e foi escritor-residente da Universidade da Califórnia (Berkeley) — no que se revelou um momento de excelente convívio que me fez interessar por escritas para mim ainda desconhecidas. Não deixa de ser fascinante poder ler um autor consagrado que não se conhecia depois de se ter tido a sorte de com ele conviver primeiro. Em vez de se ler o livro ou conhecer a obra e só depois, um dia, encontrar o autor, toma-se um outro percurso. O exercício aqui será o de procurar na escrita os traços da pessoa com quem se esteve, de tentar encaixar e reconhecer o homem na sua obra e nas próprias palavras. Sublinho nestas linhas a Rota das Escolas, parte do programa que passou pela Universidade de Macau, pelo Instituto Politécnico de Macau, pelo Instituto de Formação Turística, pela Universidade de S. José, pela Escola Portuguesa e por outras escolas chinesas e internacionais, pela importância que tem na atracção de gente jovem para a leitura e a escrita. Outros marcos foram o relevo dado à divulgação de literaturas menos conhecidas da região onde Macau se insere e a renovação da aposta na divulgação de autores dos países lusófonos, aliás em linha com o que vinha de trás. A pujança de que a língua portuguesa nesses países dá mostras nos diversos géneros em que se manifesta é garantia da sua continuidade e perenidade nas suas múltiplas expressões, cada vez mais avessas — é a minha convicção pelo que tenho visto e ouvido — a qualquer espartilho ortográfico que force a sua unificação e se sobreponha à liberdade de criação por razões comerciais. Tenho pena, porque não estava de férias, de não ter estado em todos os lugares em que gostaria. Culpo-me por ter falhado apresentações de livros onde gostaria de ter estado e de não ter ouvido mais autores, consolando-me apenas com o facto de os seus livros por cá ficarem. Entretanto, seria muito importante que a equipa se mantivesse, que a Rota das Letras pudesse continuar a contar com o dinamismo, a experiência e o amor às letras do Ricardo Pinto, do Hélder Beja, do Yao Feng e de toda aquela gente jovem e interessada, entre tradutores e voluntários, que se esforça para que tudo corra bem. E que o festival visse o seu público crescer, penetrando mais fundo na comunidade, se possível em espaços mais amplos e bairros mais recuados, tornando-se num pilar da existência, infelizmente cada vez mais erodida, em especial em matéria linguística, de um segundo sistema na RAEM. A Rota podia ter durado mais uma semana, talvez mesmo mais duas ou mais três. Mas não. Acabou porque tinha de ser assim. Não houve prolongamento e tornou-se inútil o desempate por grandes penalidades porque já se sabia que seria a equipa dos livros e da leitura a vencedora. O público aplaudiu e anseia por mais. A 5.ª edição da Rota das Letras acabou porque tudo tem o seu tempo e entre duas edições é preciso recomeçar tudo outra vez, fazer de novo para voltar a ser diferente em 2017. Venha então a 6.ª edição, se possível depressa.