Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasO romance diante do espelho [dropcap]O[/dropcap] grande problema do romance é instruir-se dentro dos limites que a linguagem (gerada para o efeito) lhe dita. Não me estou a referir ao desaguisado do tempo das vanguardas, nem à despolarização do mundo pós, muito menos a teorias literárias, a códigos rígidos ou a cânones. Instruir significa pontificar, descobrir e compreender-se a si mesmo dentro de certas fronteiras. Por exemplo: existe uma pedagogia para se saber olhar de alto a baixo diante de um espelho. É uma disciplina de que o romance é excelente aluno há já alguns séculos: conseguir criar uma pose e um dado ângulo para poder ser lido, contemplado e convenientemente interpretado. Os romancistas seguem o ângulo e o rasto sem perceberem a sua invisibilidade (invisível é o fio do marionetista). Tal como os pintores do paleolítico que orientavam a tinta – ou o sangue – seguindo as fissuras e as falhas das rochas mais escarpadas, assim os romancistas perseguem o seu rasto. Seguir o ângulo e o rasto não é copiar ou navegar apenas paralelamente à costa. Seguir o rasto pode ser transgredir, reinventar, descolar ou jorrar a tinta à Pollock para cima do nada. Seja de que modo for, os romancistas progridem sob a sombra do rasto. Sentam-se continuadamente ao espelho. Investem na pose para cada circunstância concreta da navegação. Agarram-se copiosamente ao leme para melhor captarem o que a linguagem (para aquele efeito) lhes dita. Uma página de um romance tem que se sentir fielmente dentro do seu aquário, com a temperatura ambiente e a luz apropriadas aos seres vivos que apresenta, preserva e põe em acção. Não há um lado de fora, só existe um lado de dentro. Há muito que se sabe que representar é um logro, sobretudo num mundo em que as identidades se esbatem e em que tudo é cada vez mais um simulacro (e não um reflexo ‘real’ seja do que for). O rasto é afinal o plano inclinado que empurra silenciosamente a escrita para o lado de dentro desse aquário com paredes de vidro que tão bem simula o infinito ou, se se preferir, um indefinido – mas tão aparente – espectro de possibilidades. Essa página (que são todas as páginas de todos os romances do mundo) sabe que foi treinada para criar alguns impactos, de acordo com o seu próprio DNA que lhe concede uma matéria e um modo específico para a poder moldar. Enfim, essa especificidade possibilita rotações de diversos tipos, mas não deixa de ser uma especificidade. Por exemplo, estamos a ler ‘Devoção’ de Patti Smith, é ainda de noite, Eugénia tem uma espingarda nas mãos e Alexandre está nu, meio a dormir, deitado no colchão. Acorda mais divertido do que alarmado e, ao ver Eugénia aos pés da cama com o cano virado para si, repete três vezes a palavra “Philadelphia” antes de levar o tiro e de, ao amanhecer, o seu corpo ser colocado “debaixo de terra”. A acção é atravessada por uma inevitabilidade. Já vinha de trás, como sempre sucede. Um ou outro imponderável (ou deslocações aparentemente inesperadas) complementam esse caminho inevitável, caso da reiterada palavra “Philadelphia” que se ‘ouve’ ou da sensação de ‘divertimento’ imputada a Alexandre. Há que dar voz ao acaso, sabendo-se que o que lhe equivale na escrita não passa de um belo felino com a cauda de fora (mais um simulacro com as devidas unhas à mostra). Constata-se, por fim, uma certa rudeza que acompanha os actos, no sentido em que o guião sugerido se cumpre sem digressões. A economia lexical cria conotações bem mais produtivas, já se sabe (questão de oficina, pois há coisas que realmente se aprendem no ginásio literário, basta exercitar qb. e ter alguma humildade). Tal como a ave de rapina se agarra à sua presa, também a gramática ata sempre os nós à rede de factos que (potencialmente) pareceria querer libertar-se e disseminar-se. É superior às suas próprias forças. Uma mancha de óleo que se disperse em alto mar acabará igualmente por se limitar aos seus contornos. Em oceanografia, existem modelos que simulam a circulação das manchas de óleo tendo em conta a composição química dos elementos, as correntes, o vento e as ondas. Mas uma coisa é certa: estas manchas geradas pelas (criminosas) injecções dos petroleiros não sobem pela estratosfera acima criando aí uma cinematografia aérea. Há gramáticas e forças (como a da gravidade) que não o autorizam. A narrativa literária também está comprimida à sua fatalidade chã: não se descomprime de modo a permitir interpretar Alexandre independentemente da espingarda, ou de modo a permitir interpretar Eugénia independentemente de estar aos pés da cama a olhar para Alexandre. O que se lê já está vincado pela sua própria ciência oceanográfica. O leme do escritor exercita a pulsão e o poder até de comover os leitores, mas fá-lo apenas no interior do seu aquário (para dentro do qual saltamos na nossa operação de leitura). Ler é, pois, uma descida às águas de um aquário, porventura de um oceanário. Mas é uma descida com instrutores que somos nós próprios a criar a temperatura e o cromatismo do romance (e até o tipo de algas que desejamos reconhecer ao longo desse mergulho algo alucinogénico). O que ele nos empresta é um modelo de simulação que permite respirar dentro de água. Assim se efectiva a instrução dos efeitos: o romancista pontifica, a obra ejecta o seu produto e o leitor explica-se (e compreende-se) a si mesmo dentro da invisibilidade das fronteiras que lhe são dadas. Não é uma má experiência, convém sublinhar. Por vezes pode incendiar os sentidos ou até dar sentido a uma vida inteira. Há quem acredite nisso piamente. Mas é uma experiência problemática e sobretudo frágil como o são todos os submarinos que cruzam as águas em profundidade. Uma falha, um corte de energia, algum tempo fora de prazo ou uma brevíssima explosão e o livro logo é atirado para o canto da prateleira. Diferente seria um projecto literário que fosse capaz de transformar o aquário discursivo numa cinematografia aérea e assim atrair os leitores para um voo tão desconforme quanto absolutamente irrrealizável. Como sou um escritor ainda jovem, não perdi a esperança de vir a realizá-lo.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasAulas de teoria da literatura [dropcap]D[/dropcap]avid, que se lê Dávi, ensinava teoria da literatura na universidade de Araraquara, a mesma onde Jorge de Sena um dia ensinou, e costumava dizer aos seus alunos no início do curso, que literatura era tão importante para vida como respirar, e tal como respirar ninguém repara. Antes que alguém pudesse pedir uma justificação para essa afirmação, mostrava um pequeno vídeo no “youtube” – vinte e poucos segundo – onde se vê Paulo Leminsky numa sala de aulas, de pé, a dizer “O prazer de usar a linguagem é um dos prazeres maiores, junto com o sexo, comida, bebida e drogas. O uso da linguagem dá um barato fundamental ao ser humano. Não é preciso justificar isso à luz de nada. Isso aí é que é fundamental, as outras coisas é que têm de se justificar.” Depois passava o link do vídeo, para que os alunos pudessem rever o vídeo em casa. Escusado será dizer que ganhava a sala de aula logo no início. O sentido daquelas aulas era o exercício de aproximação ao barato fundamental do ser humano: a linguagem. Um aluno, daqueles que escrevem antes de ler, como quem fala antes de pensar, pergunta a Dávi se nesse caso a auto-ficção não seria o barato maior, visto o próprio fazer uso da linguagem a partir de si e inventando-se. Se a auto-ficção não é o que toda a literatura almejava alcançar, uma espécie de Meca da literatura. Dávi ficou um pouco em silêncio e depois disse: “Sabe, no Brasil a auto-ficção é um pouco diferente da dos outros países, porque se acentua mais o auto. E você deve saber também que no Brasil, de modo geral, auto é sinonimo de carro e não de ‘mesmo’ ou de ‘próprio’. Quem daqui é que não reparou na oficina da Avenida Portugal, que se chama Auto Reparadora, como se auto fosse de automóvel e não de ‘mesmo’. Nesse sentido, se pensarmos numa ficção automóvel, talvez tenha razão. De preferência cabriolet, com os cabelos ao vento.” O garoto insistia: “Mas não é a auto-ficção uma literatura válida?” Dávi respondia: “Pode até ser, dependendo do caso. Mas o problema da grande maioria desse ramo da literatura é que faz com que jovens como você acreditem que têm uma vida para contar e que isso basta para ser literatura. A literatura é uma vida para inventar. Literatura não é contar o que lhe aconteceu, aquilo que sente ou julga sentir. O barato, a que Leminsky se referia, não é ser eu, mas ser outros. A linguagem é uma droga que me permite ser outros. E ninguém começa a ser outro a escrever. É a ler que se começa a ser outro.” A conversa acabou por ali. No dia seguinte, uma das alunas preferidas de Dávi, que já conhecia de outra disciplina que ensinava na universidade, latim, aproximou-se dele no bar. Há muito que Dávi sabia que Jú começara a ler muito cedo, com Monteiro Lobato, que ainda hoje adorava, depois leu o Proust, o Joyce, o Canetti, o Hemingway, o Guimarães Rosa, o Raduan Nasar, e mais recentemente Aldyr Garcia Schlee e Trevisan, uma lista improvável, para alguém tão jovem, embora fosse verdade, e estava agora a tentar escrever, sem que lhe ocorresse contar a sua vida. estudava ainda latim, ela e apenas mais um aluno. Mas o que ela queria dizer a Dávi é que as palavras de resposta ao seu colega fizeram-na compreender melhor o vídeo do Leminsky, que já conhecia da net e ainda não tinha compreendido bem. “Queria agradecer-lhe por isso, Dávi.” Tinha já deixado o seu sorriso para trás, afastava-se de Dávi, quando este ousou perguntar, elevando a voz no bar: “O que é que você aprendeu mesmo, Jú?” Ela voltou-se, sorrindo, e respondeu: “Que a vida é sempre menos que a literatura. E que ser-se outros é sempre mais do que ser-se o mesmo. Acabei também por encontrar a justificação que há muito procurava para as minhas tentativas de escrever: é o preço que se tem de pagar por se ler tanto. Ainda que a conta nunca fique paga. Ainda que se escreva só para nós e nunca para um livro. O barato é ler.” Acenou um adeus e lá seguiu bar afora com a certeza própria da juventude e o conforto de que tudo pode mudar mais a cada página do que a cada esquina. https://www.youtube.com/watch?v=toj6V_nFVGA
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasA literatura não é um divertimento [dropcap]U[/dropcap]m autor que se sobrevive é como se tivesse escrito a sua obra num tempo a que já não pertence”, escreveu Vergílio Ferreira no seu volume ‘Pensar’ (1992). É verdade que o tempo é cada um de nós a erguer o dia-a-dia, embora o dia-a-dia no-lo devolva através de uma síntese geralmente disfórica que não convida à identificação. O que construímos parece transformar-se numa simples gota de orvalho que se esvai no meio do temporal (o vórtice da duração). Razão por que, quando se fala de literatura, é de erguer o tempo que deveria falar-se e não do eco massivo e passivo do mundo que se abate sobre nós. Colocar de lado todo esse manancial constituído por linguagens abrasivas (um caudal que se espalha via enxurrada de net e tv) é, ao mesmo tempo, olhar para o palco vazio e, de repente, sem circunspecções, observar a nudez que sobra. Encaro essa nudez como um corpo no meio da rebentação das ondas e ainda assim de pé, hirto. Um corpo que não se revê no tempo, seja em que tempo for. Desse modo persistirá: num lugar em que é possível não pertencer a absolutamente nada. Tal como Mallarmé escreveu no seu poema ‘Salut’: “Uma embriaguez me faz arauto,/ Sem medo ao jogo do mar alto,/ Para erguer, de pé, este brinde”. Sem se suspenderem as conexões práticas e imediatas, ou seja, todo o discorrer em fluxo do que é emergente e momentâneo, creio que esse corpo se iria transformar de modo passivo na própria água do mar, isto é: limitar-se-ia a ecoar e repetir outras linguagens, perdendo esse ardil (próprio dos infinitésimos) chamado identidade. Quem diz linguagem diz formas de poder, policiamento discursivo, repetição de esquemas, de matrizes, de palavras de ordem, reprodução social pura. Creio que a actividade literária começa no preciso momento em que temos a consciência de poder deter todo o oceano e de conseguirmos ser, na vertical, um corpo que se afirma, tentando rasgar e moldar a grande massa líquida da linguagem, de acordo com uma dada intencionalidade. Nem que seja por instantes (instantes em que deixamos de pertencer a essa malha de armadura que separa o que se diz ser realidade dos olhos que a contemplarão). Deter o oceano é escrever e escrever não é apenas teclar e estar fora de todas as maratonas que outra coisa não fazem do que reproduzir-se sem qualquer novidade; escrever é sobretudo mergulhar em si e não limitar o esforço de olhar para onde nunca se olha, o esforço de escutar o que nunca se escuta, o esforço de tocar com a linguagem onde dificilmente ela tocará. Penetrar no inominável será escrever a primeira das letras. É por isso que a literatura corresponde a uma parte ínfima da voragem de livros que hoje se escrevem e publicam. Para ser literatura, para além da poesia que é a pérola inicial (“tout brûle dans l´heure fauve”*), há duas categorias básicas: sulcar e reinventar a linguagem, por um lado, e, por outro, dizer o imprevisto, o incomparável, aquilo que salta inventivamente para um patamar em que o ser se altera, se redescobre e sobretudo problematiza. Sem estas duas categorias, que são categorias de esforço e não de facilitismo, não entendo que haja literatura (e nela, claro, consigo incluir o ensaio que herda do tempo dos irmãos Schlegel, especialmente de Friedrich, o epíteto de “desdobramento criativo”). Um livro aprazível, modelado com toda a gramaticalidade e com um enredo situado nos limites do provável, não é literatura; é divertimento. No meu caso, para me divertir prefiro desenhar cidades, circular pelos passeios, comer um bom caril ou saborear o lúpulo das cervejas Trevo da Caparica. Vivemos hoje num mundo que substituiu o essencial da reflexão e do dever-ser (quer do que se levantava para as divindades pré-modernas, quer do que se levantava para os altares civis da esfera moderna) por um fluxo razoavelmente controlado de trilhos privados. Este sublimar generalizado – que todos vemos nas nossas cidades – fez o ‘ethos’ sair de cena em nome das grandes absorções individualistas: o consumo pelo consumo, o espectáculo pelo espectáculo, as viagens pelas viagens, a praia pela praia, o ginásio pelo ginásio, a rede pela rede, a informação pela informação, os festivais pelos festivais e o livro-divertimento pelo livro-divertimento. Prezando muito um universo plural em que o conhecimento e o prazer podem ser uma escolha e não uma fatalidade cega, penso que a literatura e outras artes têm, hoje em dia, uma responsabilidade única: a de os sujeitos se conseguirem conectar consigo próprios, respeitando, por outro lado, aquilo que os legitima: a intersubjectividade. Precisamente o oposto de quem vive e respira colado à máquina, mortificado antes de tempo face a face ao iphone, deslizando num ‘deixa andar’ de melopeias e auriculares que rema a sós contra a turba, ou que se cinge a copiar gestos, a reiterar sombras vazias e a purgar as infinitas azias de existir. A literatura é um repto importante, mas não é uma vaca sagrada. Todavia, no seu nicho, que já não é felizmente um nicho de famosos (hoje circunscrito a fantasmas em estado de ‘zapping’ que aparecem e desaparecem nos media), estar de pé contra as ondas e levedar uma respiração singularizada torna-se num dever maior. É isso, afinal, que devia fazer a literatura ser o que ela na sua essência é. ‘Salut’ e ‘L´Aprés-Midi d´un faune’ em Mallarmé, S., Poésies, Bookking Internationale, Paris, 1993, pp. 13 e 48.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasO feirante acidental Galeria do 11, Setúbal, 1 Junho [dropcap]C[/dropcap]ontinua por fazer uma história da ilustração portuguesa. Os contributos do Jorge [Silva] acabarão, tenho esperança, por erguer esse pano de fundo. E nele quantas figuras, de súbito, brilharão como Manuel Lapa (1914-1979), que tem nesta a sua primeira exposição? Que sabemos nós dele, sem uma única entrevista, depoimento, enfim, nada mais que vestígios? Saberes instáveis e disciplinas discretas, como a ilustração, prestam-se a passarem entre os pingos de chuva da nossa comum atenção, mas convenhamos: tratamos mal a nossa memória. E perdemos com isso. Este autor, ainda assim notado como pintor, assina um enorme contributo para a nossa história visual, pela quantidade do trabalho, muito dele ao serviço das várias vertentes, educativas e outras, da propaganda do Estado Novo, mas sobretudo por um expressionismo riquíssimo em meios e assente no combate «Da Luz e das Sombras». As dicotomias sobre as quais o Jorge desenhou a exposição prolongam essa ideia revelando os vários rostos do artista, do livro ao cenário, das revistas às tapeçarias, do folclore à santidade, da espada à lebre: das sombras do mundo, do sal da terra, do sonho e da ilusão, do riso e das lágrimas, do céu e do inferno, da espada e do trono, da presa e do caçador (algures na página momento muito meu, assinado por Manuel Lapa). Acontece bastante cor, ainda que em tons baços, mas a força essencial exprime-se a preto e branco. Mesmo nos retratos, algo parece estar a acontecer, só o movimento nos traz o real perseguido. As massas servem de contraste para a figura, anunciam a peripécia, sugerem ambientes. E tantas nuvens passam por estes céus, estas decorativas, aquelas significantes, outras apenas correndo ininterruptamente. São sinal da elegância que habita este lugar. O equilíbrio entre originais, publicações e reproduções faz ainda desta exposição caso exemplar. E contém até o pormenor de um caderno de desenhos que não escapou incólume aos acidentes do tempo. Parece vociferar, no meio do dinamismo e da celebração de uma obra, que o comum descuido tem um preço: arde e até a água queima. Largo José Saramago, Lisboa, 4 Junho Ninguém pergunta: qual o gesto mais comum na vida de um editor? Talvez por se dar por adquirido que a óbvia resposta seria a leitura. Não: carregar com livros, eis o que mais fazemos. Fui, portanto, carregado de exemplares, que queria exemplares, para a conversa com a Carla Oliveira, da Orfeu Negro, a convite do Jorge [Silva], no âmbito do «Faz-me Um Livro», ciclo dedicado ao design, edição e ilustração, comissariado pela Silvadesigners para a Fundação José Saramago. Tal como com outros deveres, estou atrasadíssimo com o primeiro catálogo da casa, com o qual pretendo fazer avaliação, mapa movediço do que foi sendo feito, aventando meia dúzia de porquês, enumerando episódios, falando dos modos, assumindo falhas e colhendo logotipos desta horta de abysmos, tão rica já. Estou atrasado, ia dizer, por carregar livros, o que não deixa de ser verdade. Dá muito trabalho sobreviver, nem sempre roubamos o tempo que nos permita pensar. E o catálogo há-de resultar de pensamento. E de tempo. Apesar das diferenças, reconhecemo-nos, a Carla e eu, em muitas das dificuldades da profissão neste momento concreto. Não vos cansarei com a enumeração, mas os livros que levei eram dos que nos são devolvidos cansados e maltratados pelas livrarias. Apenas um sinal da irracionalidade deste processo que faz com que um livro não vendido possa acabar massacrado pelo hábito de o (mal)tratar como mercadoria. E não será? A mística arreigada ao objecto afirma que não, que se trata de um mudador de vidas, um abridor de horizontes, um «amigo». Fomos, espero, muito para além do fado habitual, dissemos das ânsias e desejos dos autores, da interferência do editor no processo criativo e da importância dos títulos e das capas. Acabámos falando, antes do mais, da paixão de continuar a esticar o objecto-livro em todas as direcções. Falámos sempre de livro na mão. Feira do Livro, Lisboa, 8 Junho Temo tê-lo repetido de mais: estreámo-nos na Feira do Livro com pavilhão próprio, partilhado com a Livros do Meio, editora que mora em assoalhada destas páginas. Havíamos participado antes de modos diferentes, sem grande intensidade, estou em crer que por não arranjarmos maneira de nos relacionarmos com o modelo. O ano passado tivemos até resposta entre o absurdo e o irritante a propostas solicitadas de animação, que nos permitiu anotar o interesse mínimo, para dizer o mínimo, que os organizadores devotam à poesia. A Feira evoluiu afastando-se do livro e da cultura em direcção ao comércio e entretenimento de massas. Passa pelo Parque muita gente, mas a pensar mais no passeio do que nos livros. Estes merecem a atenção de um olhar se os preços se agacharem tanto que rastejem pelos cêntimos, dando razões aos génios do marquetingue que dizem ser tudo igual, desde que com capa e páginas. Toda a lógica sopra a favor das grandes superfícies, digo, grupos editoriais que aqui copiam as ditas, com a sua lógica suicidária de descontos e neutralização. A programação da Feira não consegue apresentar-se com uma ideia forte, integrada e assente no essencial: o livro, o autor, a literatura. No concreto, o investimento revelou-se imenso, nos maravedis e no trabalho, sobretudo com o que se estraga e desperdiça. Ainda assim, pela primeira vez expusemos ao vento, à chuva e ao calor, mas também a alguns olhares interessados, o catálogo completo. A localização que nos calhou em azar afastou-nos das rotas, mas ainda assim demos um ar da nossa graça. Horta Seca, Lisboa, 10 Junho Um dos melhores jornais do mundo, The New York Times, cedeu à sanha moralista que envenena a opinião pública e, na sequência de críticas a um desenho de opinião do António [Antunes], que se “atrevia” a criticar as relações caninas entre a política norte-americana e israelita, anunciou o fim dos cartoons políticos. O principal visado, Chappatte, escreveu um texto que desafia os editores a não baixarem os braços. Só um sábio coquetel de resistência e inteligência nos poderá trazer oxigénio a estes tempos em que os gases das massas em fúria cega nos impedem de respirar horizontes. E também Martin Rowson, no The Guardian, disse o óbvio, lembrando as ameaças crescentes aos canários dos fundos da mina: «the New York Times’ decision is particularly irksome in its intoxicating combination of cowardice, pomposity, over-reaction and hypocrisy. » O NYT ofendeu-nos muito e merece castigo. Feira do Livro, Lisboa, 13 Junho Ficará da experiência adulta no Parque duas dezenas de páginas de certa edição especial que se atreveu a pensar, através do poema, do ensaio, do desenho e da pintura, que sentidos se colecionam nas massas difusas do etéreo em movimento. O jornal «Nuvens» teve, à sombra do pavilhão nefelibata, singelo lançamento, regado a duas versões da Trevo, a mais literária das cervejas do burgo. Foi um ar que se lhe deu, um corpus nubilum nascido de cadáver esquisito. «E se fosse a terra um modo movediço, reflexo chão do movimento acima? Como assentar escada na canção? Nuvem feita canção, verso que foge, cão.”
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasO que diz Tavares [dropcap]D[/dropcap]iz Tavares: “Os leitores estão cansados, as pessoas trabalham muito, têm vidas duras e há uma literatura para cansados, para pessoas que vêm do trabalho e que querem ler um livro como quem quer ter uma massagem ao final do dia. Mas a função da arte e da literatura não é descansar. É acordar, perturbar, reflectir. Não deveríamos ver arte ou ler livros quando estamos cansados. A literatura e a arte exigem muito de nós.” De tão iterado e brandido o mantra da arte – e concomitantemente do artista – como ventoinha ou despertador das consciências, ele já ascendeu a esse grau superior do consenso e nível zero da inteligência que é o lugar-comum. Contudo, a putativa evidência e a pressuposta unanimidade de tal função não resiste ao escrutínio de uma mesmo que módica racionalidade. Ia a dizer Tavares: “Mas a função da arte e da literatura não é […]” – alto aí… O quer que ele diga a seguir virá na sequência de um passo em falso que é o de jungir a arte a um “deve ser.” Logo ela tão predisposta a nunca ficar onde a querem pôr e a transbordar as margens em que a tentem conter. Delibera Tavares: arte “é acordar, perturbar, reflectir”. Priva-se, então, da qualidade de arte aquela que demande o sublime? Não pode a arte avocar-se como pesquisa, experiência ou experimentação formal? E porque se estreita a categoria de arte – que é como quem diz: acomoda-se – à finalidade de inquietar, desafiar, desacatar, criar desconforto, ou até invectivar, afrontar e amotinar? Destitui-se de ser arte a obra que se concebe e oferece como consolação? Precisamente a missão de consolar os “cansados” que tanto precisam do refrigério que só a arte entrega. À rédea curta a que Tavares vincula a arte é indispensável o contributo do chicote com que ele, o soberbo e esclarecido artista, se atribui a missão de flagelar os “cansados”. “Mutatis mutantis” esta atitude reproduz um método antigo aplicado com grande êxito pela Inquisição: se macerares a carne, desprendida dos pecados do corpo a alma se libertar-se-á e só assim estará afim de contemplar a maravilhosa verdade. Reitera Tavares: “Está a fazer-se cinema e literatura para cansados, no sentido em que é entretenimento, que serve para acalmar. […] Se for um livro forte ninguém cansado o consegue ler.” Definitivamente Tavares não escreve para os leitores que há. Apieda-se deles, os “cansados,” e não os culpa, coitados, do cansaço que sofrem nem das escolhas a que este os sujeita – o desmiolado “entretenimento.” Mas, tenham lá paciência, enjeita-os sem dó – acha-os incapazes de ler um “livro forte”. Tavares presume, portanto, escrever para um leitor que esteja ao seu nível embora constate a sua inexistência. Deste postulado logicamente deriva que Tavares adjudica a si a prerrogativa de julgar quem se elevará a esse seu nível de exigência. Esta fraude é usual chamar-lhe “criação de novos públicos.” Não é difícil perceber que só considera terapêutico arremessar um “murro no estômago” – execrável clichê – de outrem, quem não seja espancado pela vida das 9 às 5 ou em horário alargado. Quem se põe para além das cólicas e constipações do homem comum – o “cansado.” Ora isto traz a lume a questão da legitimidade que Tavares arroga. Que deus, pacto social ou constituição agraciou Tavares como “conducator” dos leitores? Quem o nomeou sherpa do escrúpulo e da lucidez? Que foro lhe outorgou a distinção de vate dos porvires? Quem o designou com a santificada vestal da grei? Pois nada nem ninguém. O que Tavares sobretudo demonstra é a contumaz falta de generosidade que em demasiados casos é característica do artista contemporâneo, em particular o que opera nas artes narrativas. Esta pungente supressão de empatia com o leitor que se lhe apresenta decorre do movimento tectónico que tem vindo a reposicionar a manifestação da arte não como um processo e uma dinâmica de partilha, mas como um exercício narcisista e misantrópico de expressão pessoal e egocêntrica. O problema não são os leitores “cansados,” o problema são os Tavares de quem afinal os leitores estão deveras cansados de ouvir.
Sofia Margarida Mota Eventos MancheteEntrevista | “A Ásia é a grande interrogação” – José Luís Peixoto, escritor O escritor José Luís Peixoto apresentou ontem, no festival literário Rota das Letras, a tradução para português do livro “Palavras de Fogo” do poeta chinês Jidi Majia. O autor falou ao HM dos desafios da tradução, da vontade de aprender mandarim, da intenção de escrever um livro sobre Macau e da possibilidade de cá viver [dropcap]E[/dropcap]stá em Macau como convidado do festival literário Rota das Letras, este ano dedicado à poesia, género que marcou a sua estreia na escrita. O que acha desta iniciativa? Faz todo o sentido. Hoje em dia, e um pouco por toda a parte, há vários festivais exclusivamente dedicados à poesia. Faz todo o sentido, até se olharmos para a nossa tradição a este nível não só na língua portuguesa, mas também no âmbito da China e este é um festival que faz o cruzamento integrando ainda o que se faz em Macau. A poesia é uma linguagem universal. Na verdade, acho que toda a literatura o é, mas a poesia é de uma forma ainda mais radical. A poesia tenta falar daquilo que é absolutamente humano, daquilo que não muda, daquilo que é verdade agora e que continuará a ser verdade daqui a muitos séculos. No nosso mundo, neste momento, precisamos também deste olhar, que é um olhar que muitas vezes não é tão favorecido pelo sistema. Aquilo que se tornou habitual foi avaliar o sucesso em termos de conta bancária e a poesia é um outro património, é um outro tipo de contabilidade. Creio que, enquanto seres humanos, enquanto pessoas vivas, vai haver um momento em que vamos fazer a nossa contabilidade pessoal. Aí, a poesia vai ter realmente o papel que efectivamente merece. Falou de valores e já escreveu de forma crítica acerca do papel do individualismo na sociedade contemporânea. Sinto que o individualismo não é mau em si próprio. Somos indivíduos e creio que a liberdade em absoluto é uma questão do indivíduo, do respeito pela sua especificidade. O indivíduo tem de reconhece-se a si e aos outros de modo a permitir-se ser livre. Sinto que aqui na Ásia, esta questão pode ser vista de uma forma relativamente diferente. Claro que existe um outro aspecto, e que é transversal no nosso tempo: o do egoísmo, do completo desprezo pelo outro. Por outro lado, sinto que aqui em Macau, ao lado deste país com mais de mil milhões de pessoas, o individualismo não seria uma questão negativa. Como português, vindo de outra cultura, às vezes sinto um certo choque quando me deparo, aqui, com um certo entendimento que anula o indivíduo. Existem duas dimensões desta questão: por um lado, o egoísmo que é um defeito, nunca é positivo, e por outro o facto de também não nos podermos anular. A própria escrita, e neste caso a poesia, também é muitas vezes um trabalho de auto-análise e de reconhecimento da nossa própria existência. O simples facto de acharmos que temos alguma coisa para dizer aos outros é um acto que demonstra uma certa crença no indivíduo. FOTO: Sofia Margarida Mota Está cá para apresentar a tradução de “Palavras de Fogo” do poeta chinês Jidi Majia. Antes de mais, a poesia é traduzível? Acho que a poesia é tão traduzível como qualquer outro texto. Claro que a poesia, leva até às últimas consequências uma série de características que também existem nos outros textos. Ou seja, pela própria proposta de condensação que existe no texto, há aspectos que são trabalhados de uma forma mais radical. Essa dificuldade da tradução e impossibilidade da fidelidade absoluta fica mais visível quando se traduz poesia. No entanto, não creio que haja muitas diferenças em relação à tradução de um texto em prosa. Depende do grau de exigência que tivermos em relação à comparação do original com a tradução. Pessoalmente, sinto que, desde que não se caia no equívoco de acreditar que o texto traduzido é exactamente o texto original, a tradução é um compromisso, uma tentativa de ponte. No caso dos textos portugueses e do seu conhecimento na China e dos textos chineses no âmbito da língua portuguesa, acho que há muitas pontes para abrir e para construir. Por outro lado, a questão da tradução não é só uma questão da linguagem. O texto não é só linguagem, o texto também é cultura. O tradutor competente é capaz de transmitir no seu texto, o valor cultural dos elementos presentes no texto original. Esse texto traduzido é da responsabilidade do tradutor, para o melhor e para o pior. É a ele que devem ser atribuídos os créditos e também ser pedidas responsabilidades. Como foi traduzir um texto de poesia chinesa para português? Traduzi “Palavras de Fogo” para português, mas não a partir do original porque ainda não sei mandarim – mas estou a pensar aprender sabendo que é uma missão para a vida inteira. Tive oportunidade de conhecer o poeta, Jidi Majia, num contexto privilegiado e que foi justamente na sua província natal, em Sichuan. O autor pertence a uma etnia chinesa que curiosamente tem, mais ou menos, o mesmo número pessoas que Portugal, à volta de 10 milhões. Achei isto muito curioso. No passado, já traduzi alguma poesia, mas só para revistas. Nunca tinha traduzido um livro inteiro. Eu sei, até pelos meus próprios livros, que a condição ideal da tradução é, em primeiro, lugar traduzir da própria língua. Ainda assim, sei que, neste caso em particular, essa circunstância era impossível. Acabei por fazer uma primeira versão daqueles poemas a partir do inglês, do francês, do castelhano e do galego e depois uma aluna de mestrado da Universidade de Macau, Yuo Yupin, que conheci em Pequim e que tinha traduzido uns poemas meus para uma revista de poesia chinesa, fez um trabalho de revisão e de comparação com o original. Muitos aspectos sobre os quais gosto de escrever têm relações interessantes com a poesia deste autor. Ele fala muito do seu contexto, da sua aldeia, das características daquele povo e daquela realidade que se afasta muito da imagem que a maioria dos portugueses têm da China. Em que sentido? Hoje em dia temos a visão de uma China que remete para as grandes metrópoles, Xangai ou Pequim, e para as grandes indústrias. A China é a fábrica do mundo. Mas aqui estamos a falar de algo muito concreto, que fica numa região que também não é muito conhecida. Jidi Majia ao mesmo tempo que fala sobre o seu lugar, também tem muita consciência do que se passa no resto do mundo. Ao longo do livro é interessante perceber que o autor faz muitas referências a outros poetas internacionais, demonstra ter uma visão da poesia contemporânea e de estar integrado nesse código, digamos assim. É curioso, estávamos a falar da poesia ser na sua natureza uma linguagem universal e, ainda assim, há especificidades importantes. A literatura, como disse, depende muito da cultura. Apesar de acreditar que a poesia é uma linguagem universal que aspira a falar dos problemas do ser humano em qualquer parte do mundo e em qualquer época, também sei que há diferentes entendimentos sobre o que é a poesia. A tradição é importantíssima na fixação daquilo que é a visão da poesia, seja onde for. Um outro aspecto fundamental é a própria língua e aqui estamos a falar de dois sistemas linguísticos que são muitíssimo diferentes. Enfim, sinto que um texto original em mandarim, vai ser um parente do texto traduzido, neste caso em português, mas isso não deve ser desmotivante para traduzir textos. Acredito profundamente na tradução. A própria escrita é também um acto de tradução, de outras linguagens que às vezes nem são palavras. Outro género que tem desenvolvido na sua escrita é a literatura infantil. Como é escrever para crianças? Tenho muita vontade de escrever mais livros de literatura infantil. Tenho muitas ideias nessa área. Sinto que escrever literatura infantil não é tão diferente de escrever poesia. São áreas que precisam de uma dedicação muito particular e, por isso, já não publico poesia há algum tempo. Neste momento, estou cheio de boas intenções a esse nível porque terminei um romance há pouco mais de uma semana. A escrita de um romance tem que ser uma grande obsessão e é uma obsessão em que todas as outras tarefas são perturbadoras. Neste momento, tenho muita intenção de terminar um conjunto de poemas e construir um volume que gostaria de publicar no ano que vem. Tenho também a intenção de trabalhar numa quantidade de ideias que tenho para livros de crianças que como dizia não são tão diferentes de escrever para adultos. Acho que há alguns elementos que se podem ter mais em consideração quando se escreve para crianças: privilegiamos mais a imaginação e a liberdade criativa. Ao mesmo tempo temos de ter consciência do código que se está a criar. Não é que hajam temas que não possam ser tratados pelas crianças, mas acredito que há certas formas de tratar esses temas que devem ser tidas em consideração, como não infantilizar os textos ou o próprio público leitor. Recentemente lançou “Caminho imperfeito”, onde fala da Tailândia e de Las Vegas. Já escreveu sobre a Coreia do Norte. Para quando um livro sobre Macau? Um dia. Já escrevi sobre Macau, não em livro, mas não estou satisfeito com as coisas que escrevi. Sei que há uma diferença grande entre aquilo que publico em livro e o que publico noutras plataformas. São espaços com papéis diferentes. Não é que seja mais ou menos importante, mas é diferente. Os jornais, por exemplo, são do momento. Isso tem a sua importância, precisamos dessa informação, precisamos do relato daquele momento, de quem somos nesse momento. Mas os livros, a literatura, a meu ver, tem na sua natureza, esta proposta de eternidade, esta tentativa de atravessar o tempo, que a muitos níveis é uma intenção vã e que não se cumpre. O tempo e a efemeridade das coisas é imensa, é maior que tudo. Mas, é uma ambição nossa, enquanto seres humanos, a de nos confrontarmos com o impossível. É o amor absoluto, a liberdade absoluta, a eternidade. Em última análise, sabemos que não conseguimos nada disto, mas esse é o nosso horizonte. É isso que se passa nos textos que publico em livro. Já os textos que publico noutros lugares, não é que me arrependa deles, mas sei que foram daquele momento. Era o que eu conseguia naquele momento. Os livros têm outra abrangência, têm outra convicção. A convicção é muito importante. Não podemos ter constantemente uma convicção profunda em tudo o que fazemos. Como também não podemos viver sempre no amor absoluto e profundo. Temos diferentes necessidades, diferentes momentos. Em relação a Macau, é um tema irresistível, principalmente para quem tenha interesse por este continente imenso que é a Ásia. O que é o seu caso. Sim, e privilegio muito, dentro das possibilidades de contactos e de projectos, aqueles que dizem respeito à Ásia. Dizer só a Ásia é muito vasto, ainda assim, acho que a Ásia é a grande interrogação. É impressionante estar, por exemplo, numa cidade chinesa, quase como se estivesse noutro planeta. Ando sozinho nas ruas a pensar: o que é que estas pessoas pensam. É tão evidente que dispõem de outros valores, de outras formas de entender o mundo. Também acredito que somos todos humanos e partilhamos o mais elementar, mas sinto uma grande vontade de vir tantas vezes a Ásia até que deixe de ser exótica. Acho que é a sexta vez que venho a Macau e na primeira vez repara-se numa coisa, na segunda já se vê outra, e em cada vez que regresso deparo-me com realidades diferentes. Existem tantos mundos diferentes aqui e tão condensados. Sinto claramente que, quando ando nas ruas e me cruzo com certas pessoas, não tenho nenhum acesso à realidade delas apesar de estarmos ali no mesmo lugar. Acho que isso é um potencial de trabalho incrível. Acredito que um dia irei empenhar-me a escrever sobre isso, mas vai exigir mais que aquilo que fiz até aqui. Para isso tenho de pensar em vir viver aqui algum tempo.
Sofia Margarida Mota EventosLiteratura | José Luís Peixoto entre hoje e quinta-feira na UM [dropcap]O[/dropcap]escritor português José Luís Peixoto vai estar entre hoje e quinta-feira na Universidade de Macau para conduzir um oficina de escrita no Centro Bilingue Chinês-Português daquela instituição. A iniciativa é dirigida à promoção da escrita de ficção literária e está estruturada em quatro sessões a decorrer das 15h às 17h30. O objectivo é “divulgar a língua e cultura portuguesa” e “fazer com que cada um dos participantes produza um texto literário, percebendo a estrutura, criatividade e métodos envolvidos no processo de criação”, aponta a organização em comunicado. José Luís Peixoto, recebeu em 1997, aos 23 anos, o Prémio Jovens Criadores atribuído pelo Instituto Português da Juventude, com a obra de ficção “Morreste-me”, dedicada ao pai. Em 2001, o autor começa a destacar-se no panorama da literatura portuguesa ao receber o Prémio Literário José Saramago, da Fundação Círculo de Leitores com o romance “Nenhum Olhar”. Da sua obra, que se encontra traduzida em mais de 25 línguas, fazem parte seis romances, seis livros de ficção, três séries de poesia e dois livros infantis.
João Luz EventosLiteratura | Rota das Letras arranca quinta-feira com a poesia como tema A oitava edição do festival literário, Rota das Letras, está à porta com datas marcadas entre 14 e 24 de Março. Este ano a programação será compactada em menos dias e pela primeira vez terá um tema: a poesia. Miguel Sousa Tavares e José Luís Peixoto são dois dos principais convidados portugueses, num ano em que se celebram Sophia de Mello Breyner, Adé dos Santos Ferreira, Herman Melville, Walt Whitman e Jorge de Sena [dropcap]“A[/dropcap] poesia é o início de tudo, a primeira interpretação do mundo.” Foi assim que Carlos Morais José, director de programação do festival literário Rota das Letras apresentou a oitava edição subordinada ao tema da poesia. É para mostrar a universalidade desta arte que o Rota das Letras de 2019 propõe uma programação que trespassa o género literário na multiplicidade de formas que pode apresentar. “Queremos mostrar às pessoas que há muitas formas diferentes de apresentar poesia, podemos fazê-lo simplesmente através do recitar, podemos fazer através do teatro, do cinema ou através da pintura”, acrescenta o director de programação. Um dos destaques do cartaz deste ano vai para a celebração do 100º aniversário de Sophia de Mello Breyner. A efeméride vai ser assinalada com a presença do jornalista e escritor Miguel de Sousa Tavares, filho da poetisa, no dia 15 pelas 19h, nas Oficinas Navais. Durante a palestra, intitulada “O percurso literário de Sophia”, o filho da poetisa irá recitar alguns poemas da mãe. A Associação Cultural D´as Entranhas também vai assinalar o aniversário da autora portuguesa com a performance “Sophia”, no mesmo dia e local, às 21h. O grupo vai partir da poesia de Sophia de Mello Breyner, e reinterpreta-la, num formato que em nada se assemelha a um recital. “Pegar nos monstros é sempre complicado, ainda por cima tratando-se da Sophia”, revelou Vera Paz, responsável pela associação. Também Jorge de Sena terá destaque nesta 8ª edição do festival literário. “Vamos apresentar um documentário sobre o Jorge de Sena realizado por um professor de uma universidade e South Lake City, nos Estados Unidos”, desvenda Ricardo Pinto. O director do festival explica que o académico, além de ter trabalhado com o poeta, fez também várias antologias poéticas de Angola e de Moçambique, destacando-se como um grande promotor da poesia em português. Poemas de cá Adé Ferreira dos Santos será outro dos destaques da edição deste ano do Rota das Letras. O poeta macaense vai ser recordado com um recital inteiramente feito em patuá. Será um raro momento de leitura de poesia, apontou ontem Carlos Morais José. Durante o evento será ainda publicado um dicionário de Crioulo de Macau. Também Camilo Pessanha vai ser recordado na 8.ª edição do festival literário de Macau, desta feita com a apresentação do filme “Pe San Ié” de Rosa Coutinho Cabral que tem Carlos Morais José como protagonista. Clássicos de sempre Os 200º aniversários de Herman Melville, autor de “Moby Dick” e de Walt Whitman vão ser assinalados na edição deste ano do Rota das Letras com a apresentação de dois documentários sobre a vida dos incontornáveis escritores norte-americanos. Outra das datas assinaladas pelo Rota das Letras é o centenário do movimento do 4 de Maio, que marca a Nova Literatura na China. O festival vai trazer alguns dos escritos de autores que marcaram esta altura, entre eles, Lu Xun, Hu Shi e Zhu Ziqing. O grupo de teatro de Macau Rolling Puppets vai levar à cena, a peça de teatro de marionetas “Droga”, uma adaptação do romance homónimo de Lu Xun publicado em 1919. A peça será representada durante os últimos três dias do festival, nas antigas Oficinas Navais. Ode nunca vista O Rota das Letras apresentará ainda o espectáculo de Pedro Lamares “Ode Marítima”, baseado no poema de Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa. Vai ser a primeira vez que a “Ode Marítima” é declamada integralmente num palco de Macau. “A forma dos sentimentos – quando a poesia inspira a arte” é o nome da exposição que vai estar patente nas Oficinas Navais, a partir de dia 23, e que reúne trabalhos de artistas locais baseados em excertos de poemas dos autores celebrados na edição 2019 do Rota das Letras. Rui Rasquinho, Carlos Marreiros, Fortes Pakeong Sequeira, Joaquim Franco, Konstantin Bessmertny, Cherry Tsang são alguns dos autores que aceitaram o desafio. Sons da festa Na música o destaque vai para o cantor português Salvador Sobral, vencedor do Festival Eurovisão da Canção em 2017, que fará a sua primeira visita a Macau para um concerto marcado para o dia 17 de Março no Teatro Broadway. A festa de encerramento do festival vai estar a cargo da banda de Taiwan Wednesday & Bad to the Bone. O concerto está marcado para as 22h30, do dia 24 de Março, no LMA. Depois da performance da banda de Taiwan, a noite prossegue em festa. Apesar de mais curta, a edição deste ano é mais condensada, apontou Carlos Morais José. “Esta edição encurtou-se mas concentrou-se no tempo que existe, em termos de quantidade é a mesma coisa. O tempo é que é mais curto, porque entendemos que duas semanas era muito tempo. Dez dias é uma coisa mais concentrada e permite uma acção mais eficaz”, disse. O director do festival, Ricardo Pinto, salienta neste aspecto o “período de transição” que o Rota das Letras atravessa, mas confessou estar “muito feliz” com a programação final.
Diana do Mar EventosLançada agência para ligar o mundo literário lusófono ao asiático Chama-se Capítulo Oriental, a nova agência literária dedicada a escritores lusófonos e asiáticos. Hélder Beja é o rosto por detrás do projecto, que incorpora também uma editora vocacionada para livros de e sobre Macau [dropcap]F[/dropcap]oi oficialmente lançada ontem a Capítulo Oriental, descrita como a “primeira agência literária com o objectivo principal de trabalhar entre a Ásia e os países e territórios de língua portuguesa”. O novo projecto abraça também uma vertente editorial, vocacionada para obras de e sobre Macau, onde se encontra sediada. O primeiro título com a sua chancela vai ser lançado já em meados do mês, no âmbito do VIII Festival Literário – Rota das Letras, a ter lugar entre os próximos dias 15 e 24. Hélder Beja, que, em 2018, deixou o cargo de director de programação do Rota das Letras, ao fim de sete anos, lidera a Capítulo Oriental realizando um sonho há muito almejado. “Este projecto surge muito no seguimento do que tem sido o meu trabalho ao longo da última década, dedicado e ligado à literatura dos países de língua portuguesa e também da Ásia. Era uma ideia que tinha há alguns anos, que foi preparada com calma”, explicou ao HM. Trabalhar entre “estes dois mundos enormes” figura como o principal intento da Capítulo Oriental, idealizada para dar a conhecer a “diferentes públicos” a carteira de mais de 60 autores, muitos deles premiados, de Macau, Hong Kong, Taiwan e China, Índia, Filipinas, Tailândia, Singapura, Malásia, Coreia do Sul ou Austrália, bem como de Portugal, Brasil, Moçambique, Cabo Verde ou Guiné Bissau, entre outros. O projecto tem, na verdade, “quatro braços”, dado que, além da agência literária propriamente dita (o principal) e de editora, vai cobrir ainda as áreas de eventos e tradução. “A Capítulo Oriental pretende servir de ponte entre a Ásia e os países de língua portuguesa através do agenciamento de direitos autorais, incentivando traduções, promovendo a participação dos seus autores em festivais e feiras do livro, organizando eventos e publicando antologias multilingues em Macau”, diz um comunicado enviado às redacções pela recém-criada agência literária que, entretanto, assinou acordos com entidades congéneres, como a Bookoffice e a Storyspell (Portugal) e a MTS Agência (Brasil), bem como com editoras independentes. O próximo passo será “trabalhar caso a caso, com os autores representados, tentando colocá-los em diferentes editoras de um lado e doutro, no sentido de tentar ter autores asiáticos traduzidos para a língua portuguesa e vice-versa”, indicou Hélder Beja, reconhecendo tratar-se de um “processo longo” que “não vai acontecer de um dia para o outro”. Rampa de lançamento Já a editora vai dar a conhecer-se ao público dentro de dias, com o lançamento dos primeiros dois títulos, ambos da autoria de escritores de Macau: “A Humidade dos Dias”, de Luís Mesquita de Melo, e “Vidro Imaculado”, livro trilingue de poesia, de Jenny-Lao Phillips. O primeiro vai ser lançado este mês, durante o Rota das Letras, enquanto o segundo tem publicação agendada para Abril. A “pequena” editora – como lhe chama Hélder Beja – “vai fazer um trabalho interessante”: “Além de autores de Macau, queremos publicar e traduzir autores que escrevem sobre Macau. Entre os autores que representamos há vários que têm obras sobre Macau ou relacionadas com Macau e, nesses casos, ponderamos mesmo vir nós a assumir a tradução e a edição dessas obras que têm ligação muito forte a Macau”. “Esses projectos estão já num ponto mais avançado e acredito que não demorará muito até que consigamos apresentar algo”, complementou. A aventura dos cinco Além do mentor e director, a Capítulo Oriental tem mais quatro elementos. Além de Helena Ramos (vocacionada para os países de língua portuguesa) e Annie Wang (vocacionada para os países asiáticos, em particular para a China), que trabalham directamente para o projecto, a agência literária tem outros dois sócios. Em causa “dois pequenos investidores” que Hélder Beja prefere não nomear. À equipa ‘titular’ juntar-se-ão outras pessoas à medida que os projectos forem ganhando forma. “Há um grande grupo de pessoas que costumava trabalhar connosco – comigo acima de tudo – que trabalharão connosco sempre que haja projectos, sempre que for necessário”, explicou Hélder Beja, referindo-se a peças-chave como tradutores ou revisores de texto. A Capítulo Oriental ganhou forma às expensas dos sócios, não contando, pelo menos na fase de arranque, com qualquer tipo de financiamento. “Neste momento, é o nosso trabalho e o nosso próprio investimento que está a levar a agência para a frente. Obviamente que, no futuro, a ideia é tentar encontrar os parceiros certos e os apoios necessários para os projectos”.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasManuela Ribeiro e a medula do tempo [dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]xistem liturgias: são escritas que irrompem do gelo do quotidiano, suspendendo-o. Por vezes, detêm a locomoção do ramerrame mais trivial, refreiam o trânsito das palavras e disfarçam-se daqueles fossos de orquestra onde se imaginam melopeias ainda por compor. São instantes movidos pela intensidade, podem durar anos, mas passam-se apenas em horas. O jogo dos dias esfuma-se nos raros momentos em que essas florestas compactas se estendem na palma da mão e nos brindam. E nos surpreendem. Na passada sexta-feira, Hélia Correia afirmava, nas Correntes d´Escritas, que o entusiasmo é um dom que nos é dado pelo deus. A frase (e os seus constituintes, um a um) deverá ser entendida como um ser vivo que se move num território de encantamento e que habitará apenas no ‘passado do passado’: a vorverganggenheit, tal como Blumenberg soletraria. Esse território, que é a ‘Grécia da Hélia’, consiste num mundo líquido que precede o lajeado do pensamento organizado, mesmo aquele que, na etimologia de Platão (no diálogo ‘Íon’), faz equivaler a palavra a “ser tomado pelo deus” (“En+theos” – com a devida assessoria do meu mano António de Castro Caeiro). De lá se resgata a água dos rios perdidos, de lá afloram novos rostos e cumplicidades, de lá se conserta até a complacência da perda. Em vinte anos de Correntes d´Escritas, passei pelo doce labirinto apenas quatro vezes, mas três nos últimos três anos. Em 2017, foi lá que me imaginei a fechar a porta à morte do meu pai (sim, a morte tem portas: condutas que arrastam a imortalidade para aquele tipo de máscaras que se evaporam na face, achincalhando-a). O ano passado, percebi que os amigos de infância se podem engendrar de um âmago para outro. Este ano, confesso que o portento foi mais terreno, mas fez-me confundir a precisão dos teodolitos com a vaga ideia de que o mundo é um guindaste invisível que nos capta, que nos murmura e que nos captura em segredo (João, o Baptista, pregava no deserto, mas era ouvido e era essa a pujança da coisa). Não me passa pela cabeça sacralizar a literatura e até creio que a sua força, hoje em dia, decorre do estado de nicho (meio exilado e meio desterrado) a que chegou. E concordo, há muitos muitos anos, com a verdade de que a poesia é mesmo a linha da frente. Vou ainda mais longe: estou em crer que o ‘produto livro’ é cada vez mais um lodo cheio de bacilos nefastos. A única coisa que a poesia e a literatura têm em comum com esse lodo é que encarnam num corpo em forma de livro. Por uma questão de nitidez, adoraria que a poesia e a literatura encarnassem noutra configuração e noutros formatos. E que se vendessem, não em livrarias, mas em poerias e em literarias. Mas isso só seria possível numa espécie de ‘Grécia da Hélia’. Ser contemporâneo (mesmo dos mais íntimos) é desafiar as vagas do poente num mesmo arco do tempo. É essa a inevitabilidade da nossa vida, mesmo para os adoradores da pureza que se imaginam no ar, lançados por catapultas. Após uma semana de Correntes d´Escritas, voltei a perceber que o entusiasmo é realmente um dom. Eu explico: sabemos que a ciência dos dias tem atrelados de todo o tipo e que a maior parte das carruagens se perde pelo caminho. Esta operação, que é a operação de existir, torna-se ainda mais vincada nestas calendas digitais em que o presente insiste em ser uma ‘black box’ que apaga todos os vestígios à sua volta. Pouco sobra. De qualquer modo, é nestas paisagens de quase desolação que, inesperadamente, se erguem as liturgias. São arquipélagos sem oceano à volta: traços salientes no meio da brancura que permitem decifrar tudo o que afinal é branco. Eu explico melhor ainda: descobri um poeta nas Correntes, chama-se José Rui Teixeira e acaba de ser publicado na colecção ‘Elogio da Sombra’, dirigida pelo Valter Hugo Mãe (‘Autópsia’ – poesia reunida). Trata-se de uma poesia que já se domiciliava no ‘passado do passado’, naquele mundo de liquidez que felizmente subsiste para nos tramar as modas e as vogas… e eu é que lhe cheguei já tarde (ora leia-se e releia-se: “O inferno é uma colecção de borboletas,/ onde domestico cruelmente a beleza/ e exercito pacientemente o escrúpulo”). Descobrir um poeta é também uma metáfora de muitas outras circum-navegações, é claro. Poderia falar, durante horas, de muitos outros que me tocaram especialmente, mas permitam-me a ênfase para o João Rios (‘Reter o amor do gancho do talho’) e para o José Anjos (‘Uma fotografia apontada à cabeça’), ambos editados pela Abysmo. No restante do vasto descobrimento, testemunhei muitas outras vozes e tentações, ao longo da longa semana em que contracenei com as (vigésimas) Correntes d´Escritas. Uma polifonia de fundo para sacudir os dias: foi um prazer ter trabalhado com dezenas de professores bibliotecários ao lado de um equipa de luxo (Ana Margarida de Carvaho, Filipa Melo, Henrique Correia, Isabel Bezelga, Margarida Fonseca Santos e Paulo Faria); foi um prazer ter levado as Sessões Ícone da EC.ON – Escola de Escritas às Correntes d´Escritas e foi ainda um grande prazer ter apresentado um livro (‘Primeira Linha de Fogo’ de Ana Margarida Carvalho) e ter visto um outro meu (‘Ficcionalidades de Prata’) – ambos com a chancela da Nova Mymosa – ser tão bem apresentado por essa alma antiga que é a Marta Bernardes. As atmosferas perduram bem mais do que os factos, diz-se. Mas não serão elas que conservam a medula do tempo. Quem o faz é, provavelmente, o tal dom de que nos possuímos através do deus que se desoculta, quando menos esperamos. Mas há uma pessoa, por trás dos cenários mais ínvios, que, há anos e anos, mantém um jeito de ligação directa com esta ventura. O seu nome é Manuela Ribeiro.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasLer e escrever foram invenções tramadas [dropcap]A[/dropcap] escrita e a leitura são episódios recentes. São invenções que conheceram os seus inícios em meados do quarto milénio a.C.. Ocupam menos de 2 por cento de toda a história do ‘Homo sapiens’ que conta já com cerca de 350 mil anos de vida. A neurocientista Maryanne Wolf escreveu sobre o tema e sublinhou, há uma década, que estas aquisições se ficaram a dever ao uso de potencialidades genéticas originalmente destinadas a processos de outra natureza. A história da escrita e da leitura é, portanto, também, a história do hábil aproveitamento de certas aptidões em benefício de práticas inesperadas. Ler e escrever ter-se-iam transformado, nesta linha de ideias, em dispositivos eminentemente artificiais que, ao contrário da visão, por exemplo, requerem aprendizagens e monitorizações individuais. Maryanne Wolf, directora do ‘Center for Reading and Language Research’ da Tufts University (Boston) tem trabalhado ao longo dos anos com leitores de todas as idades, especialmente com leitores disléxicos, condição que, segundo a autora (em obras de 2007 e de 2018*), comprova que os nossos cérebros nunca foram geneticamente preparados para o acto de ler. Para o conseguir com o sucesso que todos conhecemos, foi necessário fazer uso da extrema plasticidade da mente humana que é capaz de forjar ligações inopinadas, visando sempre novos desafios. Somos, pois, seres geneticamente permeáveis às rupturas e dispomos de uma capacidade ímpar de alterar o que nos é dado por natureza. Daí, também, talvez, termos alcançado o comprovado epíteto de maior predador do planeta. Há, no entanto, uma estranheza nesta descrição de M. Wolf que decorre do facto de uma transformação tão artificial ter acontecido em todo o globo em fracções temporais relativamente próximas. Bastará recordar que as mais distintas culturas e linguagens naturais geraram formas de escrita bem diversas, tendo cada uma delas mobilizado conexões neurais próprias (escritas verticais com vaivéns diferenciados ou escritas horizontais, movendo a atenção da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda). O alcance desta plasticidade foi assim levado aos limites em todo o mundo com uma eficácia estonteante como se existisse, de facto, uma aptidão universal que o justificasse. A questão não deixa de ser fascinante e entronca na discussão sobre os nomes que Platão pôs em marcha entre Crátilo e Hermógenes, o primeiro reivindicando uma origem natural para os nomes e o segundo reivindicando um legado puramente artificial. No caso da escrita e da leitura, as provas que M. Wolf sustenta para demonstrar um cariz artificial falam por si, embora a sua aplicação universal nos faça pensar que a propensão genética para as incorporar não fosse, afinal, tão desconforme. A intimidade e a co-naturalidade entre os humanos e a escrita foi tal que, praticamente em todas as culturas humanas, ela veio substituir as mediações da transcendência que existiam até então. No mundo semítico, a escrita e a leitura proporcionaram aos deuses (ou a um deus único) um discurso próprio e atribuíram-lhe até o papel de emissor e de criador do “verbo”. A escrita e a leitura possibilitaram a normalização da imagem da transcendência e possibilitaram que a memória abandonasse o seu nomadismo no tempo (um ‘passa-palavra’ irregular) para se fixar ou sedentarizar com uma outra regularidade de tipo orgânico. Não deixa de ser curioso que, no mundo judaico, por exemplo, a fixação por escrito do grosso da tradição oral só tenha tido lugar, de maneira sistemática, após o exílio (538 a.C.), ou seja, depois de uma prova de nomadismo forçado. O nosso tempo está vertiginosamente a abandonar toda esta herança. A tecnologia tem-nos fornecido novas aproximações e captações (no tempo e no espaço) e também novas escritas. Se a imagem móvel do século XX vivia da conjunção entre o princípio de persistência retiniana e a ideia de projecção, as imagens digitais, baseando-se em algoritmos e não em originais reduplicados, implicam uma plasticidade sem fim que se aproxima do modo como a mente processa as suas imagens. Esta virtualidade sacraliza a tecnologia, dilui a função clássica da memória orgânica (histórica) e faz do futuro um continente a ser vivido no agora-aqui (sem grande idealidade para os chamados fins últimos). A redenção na nossa era passa pela invenção de capacidades genéticas (tendo o cyborg, para já, como meta) que se adaptem às novas escritas e não o contrário, tal como sucedeu há 5.500 anos. Quando, em 1974, Barry Leiner e Vinton Cerf criaram o protocolo TCP/IP, pouca gente se apercebeu da dimensão histórica do facto. Como Cerf referiria mais tarde: “A única coisa que queríamos era que os bits fossem transportados através das redes, apenas isso”**. O alcance deste protocolo foi, e é ainda hoje, radical e os seus impactos podem ser resumidos em três grandes linhas: proeminência à mobilidade dos dados, garantindo liberdade aos conteúdos e às escritas; dissociação da rede (e das suas escritas) da ideia de propriedade e, por fim, adopção da rede enquanto espaço auto-organizado e vocacionado para o crescimento espontâneo, imprevisível e não-regulado. Estas três linhas persistiram nas transformações que o mundo foi conhecendo nas últimas décadas: a superação das dicotomias ideológicas nos anos oitenta, o optimismo tecnológico dos anos noventa, a ‘quebra de vertigem’ na primeira década do século XXI e a imersão definitiva dos ‘pós-millenials’ no aquário da rede já nesta segunda década. Daí que as futuras gerações vão, com toda a certeza, deixar de se baralhar com a diferença entre escritas naturais e artificiais e ‘lerão’ as investigações de Maryanne Wolf como um estimulante testemunho arqueológico. O que já não seria nada mau. *Vale a pena recorrer às ciberlivrarias para encomendar os dois livros de Maryanne Wolf. O mais conhecido é Proust and The Squid. The Story and Science of The Reading Brain (Harper, New York, 2007) e o mais recente, escrito cerca de uma década depois, é: Reader, Come Home: The Reading Brain in a Digital World (Harper, New York, 2018). **V.G. Cerf and P.T. Kirstein: Issues in Packet Network Interconnection. IEEE Proceedings, Vol.66, No. 11, November 1978, pp. 1386-1408. /30/ L. Evenchick.
Andreia Sofia Silva EntrevistaRogério Miguel Puga estudou as referências culturais nos livros de Deolinda da Conceição e Henrique de Senna Fernandes Na colectânea de contos “A Cabaia”, de Deolinda da Conceição, Rogério Miguel Puga encontrou a descrição da condição feminina da mulher chinesa. No romance “Amor e Dedinhos de Pé”, de Henrique de Senna Fernandes, descobriu uma caricatura da comunidade macaense. O académico da Universidade Nova de Lisboa apresentou ontem um estudo na Universidade de Macau sobre as referências culturais destas obras “intemporais” e defende que a literatura macaense deve ser mais estudada [dropcap]D[/dropcap]esenvolveu o estudo sobre a “Identidade, Género e Auto-estereótipos: Temas da Literatura Macaense na Obra de Deolinda da Conceição e Henrique de Senna Fernandes”. Porquê estes dois autores? A única razão de ter estudado estes e não outros autores é por considerar que a literatura macaense é produzida por autores macaenses. No caso da Deolinda, temos esta antologia de contos em que ela fala, sobretudo, sobre a mulher chinesa e a sua condição. “A Cabaia” é uma metáfora para a condição feminina chinesa. Henrique de Senna Fernandes fala sobretudo da comunidade macaense, das questões de identidade, de religião. São dois autores macaenses a escrever sobre Macau e a comunidade macaense. Não é um português que chega a Macau e escreve sobre o macaense, são dois macaenses a escreverem sobre si próprios. É curioso ver que estereótipos os próprios macaenses utilizam para se definir, como a Igreja Católica ou as afirmações que eles próprios fazem sobre os chineses, às vezes negativas. É, sobretudo, esse interesse: o de uma visão interna da comunidade macaense que se representa textualmente a si própria, de uma forma realista. O estudo que elaborou procurou detalhes culturais nas obras dos dois autores. Quais são as grandes referências culturais que pode apontar? Na obra de Deolinda da Conceição é sobretudo a condição feminina. Ela foi uma mulher macaense com uma biografia muito interessante, pois ousou viver numa comunidade muito tradicional. Os romances de Senna Fernandes representam-na assim, como sendo uma sociedade muito conservadora. A protagonista de “Amor e Dedinhos de Pé” sofre esse peso da sociedade conservadora e, ao mesmo tempo, o livro carnavaliza essa sociedade, critica, para que o “vira pau osso”, a personagem, possa vencer no final. Ela vai contra essa sociedade. Aos olhos da sociedade macaense, altamente conservadora e religiosa, onde as mulheres são muito frustradas e castradas, é ela que, no fundo, vai dar a mão ao estroina que cai em miséria e que é renegado para as sombras do bairro chinês. Tudo isso se passa numa sociedade de bons costumes, e é este desnudar de uma sociedade de fachada e hipocrisia que acho muito interessante, e é algo que o Henrique de Senna Fernandes faz com muita subtileza. Os romances e os contos são também interesses como memória. No caso da Deolinda da Conceição, são contos que falam da condição feminina e do seu fardo. FOTO: HM É um pouco a condição dela, foi uma mulher que ousou ser jornalista e ter uma vida pessoal. Ousou amar. Isso faz de Deolinda da Conceição uma figura ímpar na comunidade macaense e até no universo cultural macaense. Sobretudo numa altura em que era difícil fazê-lo, hoje é mais fácil. Só por isso é uma figura por quem eu tive sempre um grande carinho e que gosto sempre de reler, porque há uma enorme sensibilidade pela vida humana e, sobretudo, pela condição feminina da mulher chinesa, que sofria, trabalhava, cuidava dos filhos e muitas vezes era obrigada a isso. Isso torna os contos da Deolinda muito interessantes. Há também os contos e poemas do Adé, ou da Maria Pacheco Borges, que tem uma colectânea de contos. Mas optei por estes autores porque os acho mais representativos e porque a qualidade literária é maior. São contos e romances com um cunho regional, no sentido em que descrevem o quotidiano de Macau no início do século XX. São também documentários, apesar de ficcionais. São narrativas literárias realistas, mas nunca os poderemos tomar como fontes primárias históricas. São repositórios de vivências. Macau, na altura, era um espaço de tolerância, sobretudo porque os portugueses não falavam chinês e a maioria dos chineses não falava português, havia a religião, várias barreiras. Prefiro olhar para Macau como um espaço de tolerância social e cultural. O que o surpreendeu mais neste processo de estudar obras de macaenses que escrevem sobre si próprios? É a construção e a desconstrução. No caso do Henrique de Senna Fernandes é algo inconsciente, pois há a construção de uma identidade local e depois há a desconstrução dessa identidade na mesma obra. É possível, sobretudo com a imagem do carnaval e o comportamento do Francisco, o protagonista. O facto de ele maldizer toda a gente, subverter a norma, há um processo de desconstrução dessa ordem que ele transforma em caos, e depois no fim a ordem é restabelecida fora do tecido urbano de Macau. Não é por acaso que [a personagem] se regenera fora da sociedade macaense cruel. Ele é o rei do carnaval que maltrata toda a gente e depois chega a páscoa, o tempo da mortificação, em que ele é destronado, e depois bate no fundo e tem de se reerguer. É um romance de formação também, pois acompanhamos a formação da personalidade de ambos os personagens, masculina e feminina. Este estudo é o ponto de partida para um trabalho mais aprofundado sobre a literatura macaense? Sim. Gostava de vir a estudar o corpus da literatura macaense, a forma e o conteúdo. Sobretudo em termos de estudos culturais, o que é que há na literatura macaense, o que ela tem de específico. Basta irmos ao índice de “A Cabaia” para vemos palavras como “calvário de ling fong”, “esmola”, “arroz e lágrimas”. Quer os substantivos, quer os adjectivos, são representativos de uma imagem da condição feminina que a Deolinda da Conceição também achou que representava a tal cabaia. Há termos simbólicos muito pesados, os diminutivos. Apesar de serem obras escritas em português, não os podemos considerar literatura portuguesa? Também são. Podem enquadrar-se em algum movimento literário português? Designaria ambas como obras de cariz realista. São contos e romances realistas que representam muito próximo da realidade o que era a condição feminina e o quotidiano de Macau no início do século XX. No caso da Deolinda da Conceição, são usados termos muito específicos que revelam um jogo de espelhos, da mulher macaense que escreve sobre a mulher chinesa, algo que acho muito interessante. É um jogo de espelhos por considerar que a mulher macaense também tem um pouco de mulher chinesa? Sim. O narrador desta obra tem um ponto de vista muito ocidental. Este livro é escrito por uma mulher macaense para ser lido por portugueses. Há uma preocupação com o futuro leitor, que está implícito na obra. Estes autores acabam também por funcionar como tradutores culturais e linguísticos quando utilizam palavras específicas, por exemplo do patuá. Há um glossário. Outro estudo interessante são os elementos paratextuais, as capas, as várias edições, o que muda, as introduções que são ensinadas pelos editores. Há muitas obras dispersas que não estão contextualizadas em períodos históricos ou correntes literárias. Considera que faz falta um levantamento da literatura macaense? Penso que não, porque a literatura macaense surge, sobretudo, no século XX e tem poucos autores, a Deolinda, o Henrique, Adé, Maria Pacheco Borges, e pouco mais. O que há são autores portugueses, chineses e ingleses a escrever sobre Macau. Falta, sobretudo, divulgar a literatura produzida por macaenses, e estudá-la. Inseri-la na literatura mundo, dar-lhe alguma visibilidade. Poder-se-á publicar muita coisa que está perdida na imprensa do século XX de Macau, contos literários, crónicas. Seria interessante formar uma equipa multidisciplinar e publicar tudo de novo em formato de antologia. Isso foi feito com os textos de Luís Gonzaga Gomes, mas há outros autores. Nessas crónicas descreviam a realidade e depois ficcionavam-na nos seus romances, e o que me interessa muito é esta dimensão antropológica da literatura, porque [os livros] não são só figuras de estilo. É preciso estudar e questionar esta dimensão. Há várias leituras que se podem fazer do livro “Amor e Dedinhos de Pé”. Pode ser vista como uma obra realista da realidade macaense, mas também pode ser um artificio irónico de desconstrução da comunidade, de análise. O que é que este estudo e a leitura das obras lhe trouxe de novo? Sobretudo o conhecimento da comunidade chinesa e macaense, os hábitos e costumes. Tive de ir pesquisar sobre determinados rituais e costumes especificamente chineses. E foi esta sensibilização para a condição feminina intemporal e para a condição humana no fundo. A condição humana não muda, os nossos fantasmas não mudam. Continua a ser a cabaia. As mulheres já não vestem cabaias, mas elas constituem uma metáfora, continuam a existir. “A Cabaia” recorda-nos que o feminismo continua a ser muito necessário. Livros como “A Cabaia” recorda-nos isso e que a condição feminina não é assim tão livre quanto isso. As obras do Henrique de Senna Fernandes ensinam-nos muito sobre a tolerância a partir da intolerância, e a sua importância, pois perdemos cada vez mais a empatia social. São obras intemporais.
Hoje Macau EventosMorreu o escritor britânico John Burningham [dropcap]O[/dropcap] autor britânico John Burningham, que ficou conhecido por ter escrito e ilustrado dezenas de livros para crianças, morreu na sexta-feira aos 82 anos em consequência de uma pneumonia, foi ontem anunciado. Formado em ilustração e design gráfico, John Burningham estreou-se na literatura para crianças em 1963 quando publicou um livro sobre Borka, um ganso que nasceu sem penas, com o qual recebeu o prémio Kate Greenaway Medal, o primeiro de várias distinções ao longo da vida. Em 1970 voltaria a receber a mesma distinção com “Mr. Gumpy’s outing”, uma das obras mais conhecidas do autor, inédita no mercado português. O mais recente reconhecimento foi em 2018, com a atribuição de um prémio de carreira a John Burningham e à mulher e autora Helen Oxenbury. Em Portugal estão publicados apenas alguns títulos do autor: “Aldo”, “A prenda de natal de Henrique Semprespera” e “Vai chegar um bebé”, o único que fez com Helen Oxenbury. Citada pelo jornal The Guardian, Francesca Dow, da editora Penguin Random House, recordou John Burningham como um “verdadeiro pioneiro do livro ilustrado e um inesgotável e inventivo criador de histórias”. “Nunca falou com superioridade com as crianças, sempre as tratou com o maior respeito”.
Hoje Macau EntrevistaA literatura lusófona é afectada pela periferia linguística, diz Ondjaki [dropcap]A[/dropcap] literatura lusófona está “numa certa periferia linguística” a nível internacional, apesar de o português ser uma das línguas mais faladas do mundo, considera Ondjaki, um dos escritores angolanos mais conhecidos em Portugal. “Nós, os do mundo da língua portuguesa, lemo-nos”, mas as traduções do português não são suficientes para saírem desse universo, comparadas com a dimensão de outras expressões linguísticas, como inglês ou o francês, reflecte o escritor. Ondjaki, nascido sob o nome Ndalu de Almeida, deu uma entrevista à agência Lusa, em Nova Iorque, poucos dias depois de ter visitado a Feira do Livro de Guadalajara, que decorreu no México, entre 24 de Novembro e 2 de Dezembro, e que tinha Portugal como convidado de honra. Apesar do pouco conhecimento que os autores actuais têm fora “do mundo da língua portuguesa”, Ondjaki afirma que é inegável a qualidade que existe e que deve continuar a existir. Na visão do escritor, “temos de continuar a batalha” explorando as traduções para mercados que têm mais força, como o inglês, francês ou alemão, e “continuar a gerir a nossa literatura com qualidade”, para que a literatura lusófona seja fortalecida a nível internacional. Em Guadalajara, o ficcionista, poeta e autor de livros infantis, inseridos no Programa Nacional de Leitura, participou numa mesa de debate com Pilar del Rio e Gonçalo M. Tavares, sobre o escritor José Saramago, que dá o nome ao prémio que ganhou em 2013 pelo romance “Os Transparentes”. Nesse mesmo festival, fez parte de uma performance artística com o artista plástico António Jorge Gonçalves e o pianista Filipe Raposo, dando continuidade a uma vasta lista de apresentações ao vivo que o autor tem realizado em várias partes do mundo. Ondjaki tem explorado a performance artística e não hesita em participar em actividades de improvisação em frente ao público, sendo estas “oportunidades de estar com outros artistas” e de rever amigos, diz o escritor à Lusa. Além de leituras ao público, o autor participa em projeções de textos escritos ao vivo, com improvisação musical ou improvisação imagética (pintura) por outros artistas – uma “oportunidade de experimentar outras sensações, para depois voltar à escrita”, resume. Com uma vasta obra editada em vários países, Ondjaki diz que “a performance é uma reescrita, uma oportunidade para escrever de outra maneira”, mas também “tem um grau de risco, porque não tem tempo para editar, não tem tempo para rever”. “Um momento que vive e morre aqui”, assegura o autor à Lusa. Sobre os temas literários com que se costuma relacionar, Ondjaki diz que “qualquer tipo de literatura, incluindo aquela que às vezes pensamos ser para crianças, deve abordar qualquer tipo de temática social, (…), mas, sobretudo, se isso se acasalar com o objectivo literário do escritor”. Ondjaki defende também que todos os leitores devem ser habituados à reflexão sobre os grandes problemas da actualidade, de forma “urgente”. Homossexualidade, desigualdade, exclusão social ou ecologia são alguns dos temas que o autor e sociólogo defende que devem ser introduzidos na educação das crianças, em tenra idade, para que sejam discutidos e debatidos. “Para que a criança não tenha de lidar com o racismo quando esse racismo já está profundamente incorporado na pessoa”, exemplifica Ondjaki. “Quando se trata do meu universo infantil”, diz o escritor, “tento descobrir que parte do labirinto da infância se pode tornar labirinto da literatura. Porque a literatura também é um labirinto. E a nossa vida também. E os nossos sonhos também”.
Hoje Macau EventosFestival Literário Palavras de Fogo ambiciona ser um dos maiores a nível internacional [dropcap]A[/dropcap]presidente da Arte-Via Cooperativa, a escritora Ana Filomena Amaral, manifestou a ambição de que o Festival Literário Internacional do Interior – Palavras de Fogo venha a ser um dos maiores a nível internacional. “Já na primeira edição tivemos convidados de Macau, Bangladesh, Tailândia e, para este ano, já estão confirmados de Pequim, Tailândia, Macau, e, portanto, nós queremos ultrapassar e derrubar todas as fronteiras”, disse a autora lousanense, numa conferência de imprensa em que anunciou uma parceria com a Universidade de Coimbra. Segundo Ana Filomena Amaral, que em Dezembro apresenta, em Goa, o seu último romance, “O Director”, “não há limites para este festival” “Vamos até onde nos deixarem ir, até onde nos apoiarem e até onde conseguirmos ir. Assim como falamos do Festival de Pequim, que é um dos maiores do mundo, um dia também gostaríamos de ser um dos cinco maiores festivais literários do mundo e estamos a trabalhar para isso”, disse a escritora. Realizado em Junho pela primeira vez, em homenagem às vítimas dos incêndios florestais de 2017, o Festival Literário Internacional do Interior – Palavras de Fogo vai decorrer pela segunda vez entre 14 a 17 de Junho de 2019, com o alto patrocínio da Presidência da República. Presente na conferência de imprensa, o vice-reitor da Universidade de Coimbra Luís Menezes considerou “irrecusável” a proposta da Arte Via Cooperativa e do consórcio do festival, “porque ver hoje o mundo com a abrangência que ele tem só faz sentido se todos estiverem juntos e se houver trabalho conjunto”. “Coimbra prepara agora a campanha da candidatura a Capital Europeia da Cultura em 2017. Esta dimensão transcende todos os desafios para a cidade e região, mas cria-nos a responsabilidade de lançar desde muito cedo sementes que possam ir crescendo para chegar ao ano da celebração e termos algo extremamente importante”, disse. “Só posso apadrinhar e comprometer-me a deixar esta semente protocolada para que este projecto tenha pernas para andar e crie esta consistência e sustentabilidade para que, daqui a nove anos, se tudo correr bem, tenhamos aqui um festival com dimensão nacional, pelo menos”, salientou. A Arte-Via Cooperativa e o consórcio do Festival Literário Internacional do Interior – Palavras de Fogo apresentaram, em Setembro, a criação de um prémio literário nacional para a descoberta de novos escritores, com idade até 35 anos. A iniciativa é suportada pela Direcção Regional de Cultura do Centro, que atribui um prémio de 7.500 euros à obra premiada, no seguimento de uma sugestão do Presidente da República, aquando da primeira edição do festival Palavras de Fogo. O concurso literário vai distinguir um texto original no domínio da ficção, romance ou novela, escrito em língua portuguesa, por autor de nacionalidade portuguesa, com idade não superior a 35 anos, incluindo a edição da obra.
Hoje Macau EventosEscritora Agustina Bessa-Luís recebe título ‘Honoris Causa’ [dropcap]A[/dropcap] Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) atribui no dia 23, em Vila Real, Portugal, o doutoramento ‘Honoris Causa’ a Agustina Bessa-Luís como reconhecimento pela obra da escritora. “A atribuição de um doutoramento ‘Honoris Causa’ a Agustina Bessa-Luís sublinha o reconhecimento, por parte da UTAD, do interesse da obra da autora e da sua ligação ao Douro” afirmou à agência Lusa o reitor da academia transmontana, António Fontainhas Fernandes. A UTAD está a dedicar o ano de 2018 à escritora, com a realização de vários eventos, como colóquios, exposições e um ciclo de cinema. Este ano assinalam-se também os 70 anos da publicação de “Mundo fechado”, uma das primeiras obras de Agustina Bessa-Luís. “Agustina é uma das vozes mais importantes da literatura portuguesa, mas alguém com uma vida fértil em diversos domínios da cultura”, salientou Fontainhas Fernandes. O reitor citou Eduardo Lourenço para lembrar que “Agustina é incomparável”, o que “sublinha o lugar de relevo que a sua obra ocupa no panorama das letras nacionais”. A escritora nasceu em Vila Meã, Amarante, em 1922, e possui mais de 50 títulos publicados, entre romances, contos, peças de teatro, biografias romanceadas, crónicas de viagem, ensaios e livros infantis. Muitas das suas obras estão traduzidas em diferentes idiomas e algumas adaptadas ao cinema, nomeadamente por Manoel de Oliveira. Foi agraciada com inúmeros prémios, como o Prémio Eça de Queirós (1954), Prémio Nacional de Novelística (1967), Prémio D. Diniz (1981) Grande Prémio Romance e Novela (1983 e 2001), Prémio Camões (2004). Foi igualmente distinguida com a Ordem de Santiago da Espada (1980) e Officier de l’Ordre des Arts e des Lettres, atribuído pelo governo francês (1989). Até à data recebeu três doutoramentos ‘Honoris Causa’, pela Universidade Lusíada, Universidade do Porto (ex aequo com Eugénio de Andrade) e Tor Vergata, de Roma. A homenagem pela academia transmontana a Agustina Bessa-Luís partiu de um desafio lançado pelo presidente do Conselho Geral da universidade, Silva Peneda.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasAs pessoas são estranhas [dropcap]É[/dropcap] possível que o mundo precise de ser salvo. É pouco provável que isso venha a acontecer. Ou mesmo que seja desejável. E enquanto os grandes desígnios da Humanidade não se cumprem, observemos o que para aqui nos interessa: os seus pequenos desígnios, iguais e da mesma forma espantosos. O amador da natureza humana tem uma vantagem sobre os restantes indivíduos: há sempre qualquer coisa passível de deter o seu olhar, por mais irrelevante ou marginal que possa parecer. Normalmente são factos disfarçados de trivialidade, reservados para rodapés ou comentários ociosos que facilmente se esquecem. Mas, caro leitor, estes pequenos afluentes humanos que correm ao lado do grande rio da História não deixam de ser reais. Como esta notícia recente, por exemplo: um cientista russo, Serguei Savitsky, esfaqueou o colega com quem se encontrava em serviço numa remota estação científica na Antárctida. Até aqui nada de novo – altercações violentas acontecem um pouco por todo o lado. Mas o motivo não: a vítima não parava de contar ao agressor os finais dos livros que o outro estava a ler. Pausa para o leitor sorrir, como eu fiz. Só que este pequeníssimo alfinete no Grande Esquema Das Coisas pode ter mais do que se lhe diga (para além de Savitsky ter ficado com a honra duvidosa de ser o primeiro homem condenado por esfaqueamento na Antárctida). É que a coisa já tem antecedentes. E com elementos comuns. Explico: em Setembro de 2013 dois homens discutiam acaloradamente as obras de Immanuel Kant. Subitamente um deles, provavelmente por um qualquer imperativo categórico, disparou várias balas de borracha sobre o interlocutor, acabando assim o debate. Eram ambos russos. Mas continuem comigo: quatro meses depois do incidente que relatei, outro esfaqueamento. Desta vez a discussão era outra mas o tema também era relevante: o que é superior, a prosa ou a poesia? Um ex-professor resolveu colocar o argumento definitivo sobre esta matéria em forma de arma branca; a vítima, um homem de 67 anos, não resistiu aos ferimentos. Aconteceu no sul de Sverdlovsk que fica – adivinhastes – na Rússia. Que conclusões poderemos tirar daqui, leitor ? Pessoalmente acho qualquer tipo de violência inaceitável; mas poderei dizer que não compreendo estes homens ? Ou estes acontecimentos confirmam as teorias de que existe uma identidade colectiva (e nestes casos em particular a famosa Alma Russa)? Ou mais prosaicamente que o vodka pode prejudicar qualquer discussão literária ? Não sei responder. Como de costume vou buscar santuário ao que já foi escrito (e tudo já foi escrito) para tentar compreender as coisas, E encontro-me com esta famosa locução de Publius Terentius Afer (194 a.C ? – 159 a.C), um autor romano de várias sátiras e comédias: “Homo sum, humani nihil a me alienum puto”, ou seja “Sou homem; nada de humano me é estranho”. Uma atitude distanciada e quase blasé sobre aquilo que somos e fazemos. Mas felizmente, e por mais banal que isso possa parecer ainda é possível maravilhar e estranhar. E quem sabe, isso sim poderá salvar qualquer coisa, por mais pequena que seja. O mundo, nunca se sabe.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasA luz do desejo Praça da Fruta, Caldas da Rainha, 4 Outubro [dropcap]E[/dropcap]difício que já foi banco alberga tesouro maior. Se não é museu, engana bem, tantas vezes as portas generosamente se abrem para entrarmos no «cofre» onde se expõe a maior – dizem-me, em coro a Isabel [Castanheira] e a Margarida Araújo – colecção de cerâmica caldense. João Maria Ferreira faz parte daquela raça de coleccionadores cuja paixão o leva, não tanto à acumulação, mas a descobrir o máximo sobre o objecto do seu desejo. A projectar sobre ele luz. Sem eles, muito património se teria perdido nas voragens do tempo e desatenções estatais. Faltou tempo para apreciar cada detalhe, cada história, cada brilho. Obrigatório voltar, e não apenas por causa de Bordalo. A simpatia de João Maria a isso obriga. Outros pretextos podem ainda acontecer, que das idas ao Oeste costumam resultar aventuras. Museu Municipal, Óbidos, 4 Outubro Além das muralhas, de pedra e humidade, este lugar está cheio de igrejas, vãos de silêncio onde a luz troca carícias com as sombras. As fotografias que Fernando Lemos tomou de Hilda Hilst ergueram outro desses espaços dedicados ao sagrado. E ao desejo. Na dança entre o olhar e o modelo, sendo no essencial pose, a intimidade encandeia de natural. Ela entrega-se sobre a mesa, mão estendida, olhar fugindo; ele desce para recolher o movimento. Só em três dos doze retratos se cruzam os olhos de ambos, mas em todos ela e ele se tocam. Dela emana absoluta liberdade, de pálpebras cerradas solta tranquilidade. As pupilas, as unhas-garras e o cigarro dizem tão só arrebatamento. «Já não sei mais o amor/ e também não sei mais nada./ Amei os homens do dia/ suaves e decentes esportistas./ Amei os homens da noite/ poetas melancólicos, tomistas,/ críticos de arte e os nada.» Assim lhe disse ela, Hilda, a ele, Lemos. «Agora quero um amigo./ E nesta noite sem fim/ Confiar-lhe o meu desejo/ o meu gesto e a lua nova.» Circula (pelo menos na Ler Devagar) cuidado volume (Edições SESC), com organização e texto de Augusto Massi, além de fotomontagens inéditas de Fernando Lemos. Ao texto de enquadramento não se podia pedir mais. A recomposição pelo artista das imagens da memória sublinha mais a luz e os olhos, rasgando, colando, focando, desejando. Os retratos, esses, brilham de intensidade. Não consigo deixo de me abrigar neles, templos portáteis de melancólico gesto, lua nova em noite sem fim. (Na página, exemplo do diálogo entre lâmpada, digo lua, e olho.) Fernando Lemos foi para o Brasil, em 1953, cansado da ditadura. Tantos anos depois, inverte-se o movimento de outros artistas por via das trevas que ameaçam o mais solar dos países. Casa José Saramago, Óbidos, 5 Outubro Orquestrada pelo [José] Anjos, assisti intermitentemente às tentativas do [João] Barreiros, do Filipe [Homem Fonseca] e do [Luís] Carmelo para materializarem a incorpórea ideia de «realidade aumentada». (Já vos disse que o tema do Fólio deste ano procurava tactear o futuro?). Ela anda aí, não apenas nos livros de ficção científica, não apenas na literatura ela mesma, não apenas nos delírios tecnológicos, mas sobretudo nas expansões comerciais das redes. Retive duas notas. Esta de que os esforços mais recentes limitarão a nossa liberdade de escolha, ainda que anunciem o contrário. E outra: nos primeiros esforços de contar o mundo (Gilgamesh, Mahâbhârata) logo este se viu aumentado. Nem tanto resolvido. Isso poderia ter acontecido na longa conversa, partida e logo reunida em um sem número de outras, mal se juntaram a nós o António [de Castro Caeiro], alegre com a realidade física das «Constituições», e o Henrique [Manuel Bento Fialho], solto de uma prestação televisiva de primeira. Disfrutando a sombra de digníssimas oliveiras, à força de um pão com sabor a verdade, devidamente regado, a tarde discorreu como rio fresco pelas margens da FC nacional e internacional, do cinema de género, das memórias, da inevitável filosofia, além de desabafos vários e pitada de má-língua. Nasceu ali, creio, a ideia intensamente hodierna de um festival literário cosplay: cada fã só teria entrada se vestisse a pele do seu escritor de eleição. Quanto tardará a acontecer tal visão do inferno? Museu Abílio, primeiro, Museu Municipal depois, Óbidos, 6 Outubro Cedo, demasiado cedo, o mano Tiago [Ferreira] expôs com desarmante clareza os desafios que enfrentamos face à tecnologia, sobretudo o seu braço armado, a robótica. Acalmou uma ou outra ansiedade, talvez tenha despertado outras, mas afirmou confiança invejável no futuro. Pelo que conheço dele no presente, descansou-me. Deu por título à masterclass, Apocalípticos ou integrados, piscando o olho a Umberto, e logo ecoando na do mano António [de Castro Caeiro], que à velocidade da luz, nos fez perceber que é nos momentos em que tudo parece impossível que o futuro se nos rebenta nas mãos: «o piscar de olhos da eternidade age sobre nós». O apocalipse ilumina, afinal, outra possibilidade de sermos em andamento. Assim saibamos ler cada sinal, cada brilho. Casa abysmo, Óbidos, 6 Outubro O primeiro andar do Jacinto [Gameiro], ali na Rua Direita, quase caía com o peso do bom humor e da luz que o Carlos [Querido] lançou sobre «As Constituições Perdidas de Aristóteles», finalmente vertidas em português de lei pelo António [de Castro Caeiro], e embrulhadas com sabor e saber pelo Miguel [Macedo], aproveitando bem do passado o que ele pode conter de futuro. Por junto, também com o mano [José] Anjos, parecíamos aviadores de balcão, mas, se olharmos às circunstâncias, servíamos possibilidades. Cada constituição começa por esta altura a instituir-se, com perigos, identidade, mas também expectativa, probabilidade outra. De súbito, veio a Raquel [Santos] arrancar-me daqui… Museu Municipal, Óbidos, 6 Outubro …para aqui. Estava para começar a sessão de homenagem ao arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, que se espraiou singela e luminosa, com o Nuno [Miguel Guedes] a gerir conversa solta com Luís Coimbra e o Vasco [Medeiros Rosa]. Falando de futuro, houve quem no passado tivesse razão antes do tempo, que fizesse do seu presente pavimento de utopia ajardinada: parques naturais, desenvolvimento sustentável, arquitectura integrada, luta anti-nuclear, amor à terra, hortas urbanas e política, bem entendido, de tudo se falou. Com soberano respeito pelas diferenças. Sim, é possível. Fui surpreendido, neste contexto, por públicos agradecimentos do Zé [Pinho] e do Humberto Marques, que preside à Câmara. Protestei comovido. O prazer tinha acontecido antes nas longas sessões de preparação, sonhando possibilidades, fazendo pontes, discutindo identidades e constituições e braços amigos, os da robótica. Bons malandros, Óbidos, 6 Outubro Um dos segredos mais divertidos e mal guardados do Fólio neste lugar sagrado de pândega. E desejo. Recolhidas as díspares colheitas do dia, vão chegando ao longo da noitada infindável os poetas tomistas e alguns esportistas. A cada um, a Zélia e o Luís [Cajão] oferecem o conforto de um repasto, temperado pelo carinho, e a última bebida da noite ou a primeira da madrugada. Hoje, estivemos a ler futuros nas mãos até cheirar a jornais do dia e o dia raiava.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasTirar do sério Diário de Notícias, 23 Setembro [dropcap]A[/dropcap] liberdade nunca chegou a ser um absoluto, que a de outro era fronteira. Mas na grande área das ideias, da cultura, parecia estar para sempre aberto esse lugar-comum, o da opinião escrita e publicada. Qualquer de nós podia dizer a maior asneira, com limites estabelecidos, até legais. Por estes dias nublados, percebemos que a ameaça continua, de maneira mais subtil e venenosa. Estamos obrigados a extrema auto-vigilância, para não tocar nos nervos. Somos todos apenas sistema nervoso, portadores de dor fundamental, continuada e logo vociferante, doravante vítimas em explosiva potência. As palavras são os alvos primeiros, mas as imagens merecem ataque, sobretudo as humorísticas. O DN abordou o assunto, a pretexto dos cuidados com que as caricaturas devem agora ser esculpidas, e a Cláudia [Marques Santos] achou por bem ouvir-me. Titubeio como habitualmente, e cada frase devia ser desmultiplicada, mas ficou dito. «”Hoje [o escrutínio] já não é tanto acerca da liberdade, mas acerca da identidade”, defende o escritor e editor com um percurso ligado à banda desenhada João Paulo Cotrim. “Há nas populações urbanas do mundo inteiro esta hipersensibilidade às chamadas causas fraturantes. A questão do feminismo, do racismo, da homossexualidade. E, depois, a questão da religião. A religião o que trouxe para isto, e contagiou todas as outras áreas, foi a questão da ofensa. Quando o direito à ofensa foi uma conquista civilizacional. Tens de poder ofender”, continua. “Agora, diz-se que a minha identidade justifica que eu não seja ofendido, que eu possa ser exatamente o que quero. As pessoas não percebem é que o humor é precisamente o oxigénio. No fundo, está-se a tentar acabar com o ambíguo, que é o que tem graça nestas coisas. As ruas estão completamente sujas, mas as cabeças das pessoas estão completamente limpas”, diz, apontando para o perigo de a censura ter invadido a cultura, espaço onde “não é suposto resolver-se problema algum”. “É sobretudo uma infantilização do leitor, do consumidor de cultura, de qualquer pessoa. Aquele pobre não vai perceber que… Isto também estupidifica. Não dá a possibilidade às pessoas de fazerem as leituras que querem.”» (A apresentação diverte-me, por esquecer o lado talvez mais interessante no contexto, o de investigador com obra publicada, para me pôr na pele que não descola, a da banda desenhada…) Livraria da Adega, Óbidos, 28 Setembro Muito pelas portas travessas da amizade, a abysmo envolveu-se deveras na edição deste ano do Fólio, que vestiu o tema: «Ócio. Negócio. A Invenção do Futuro.» (Os cóbois da Rua Castelo eram de cerâmica e subiam muralhas?). Sei de menos do negócio, aspiro dolorosamente ao ócio e raramente penso em futuro, a não ser para o imaginar como maneira dos tempos se atarem em um nó à mão de semear. (K. Dick ou Orwell escreveram sobre que acontecimento desta semana?). Mantenho as minhas dúvidas sobre o exacto alcance destas iniciativas, se produzem horizonte ou nevoeiro, mas acredito em encontros. (Na foto, que ilustra a página, o Edgar Libório apanhou-me de costas. Prefiro esta versão do logotipo para colorir à deste ano, toda ela preenchida de óbvio. Ou será óbvidos?). Logo na primeira sexta, a conversa, que partia da ideia de «Fora do Lugar», colocou alta a fasquia, com intervenções desassombradas e sabedoras, como deviam ser todas, mas raramente acontecem nestes eventos. Cada um, o Hugo [Mezena], o José [Riço Direitinho] ou o Henrique [Manuel Bento Fialho], soube descer da sua vigia de escritor ao encontro de leituras desafiantes e rompendo logo ali fronteiras. A pluralidade temática está bem vincada na moderna prosa. Talvez até tenha estado sempre, de maneira ou outra, se mergulharmos além dos modismos. Saídos da Livraria da Adega e, provado o Medronho, fui com o Henrique falar um pouco mais desse quase romance sobre a geração dos sem lugar nascidos pós-Abril. Em «A Festa dos Caçadores» também há cóbois de mítico antigamente, gente vulgar de hoje, fulgor poético que alimenta, esse sim, o porvir. Artes e Letras, Óbidos, 28 Setembro Não chegou a ser surpresa, que o [José] Pinho já mo teria anunciado: o Luís [Gomes] mudou a sua gruta de Ali Babá para Óbidos. Livros são ainda poucos, mas o chumbo dos tipos e as prensas permitem que se chame atelier ao Artes & Letras O.2. Passei os olhos pela micro-exposição em torno de Moby Dick, enquanto o Zacarias corria a desafiar-me com enorme cubo de granito na boca. Acolhi a sua generosidade, uma plaquete de Inês Caria, com quatro linóleos e versos, apropriadíssima ao momento, «De Passagem»: «FUI NEVOEIRO NESTA/ PAISAGEM / uma forma cobrindo/ a manhã// irregular». Depois aconteceu Bordalo. Celebrando o regresso do herói da campanha africana contra Gungunhana, Freire de Andrade, os seus camaradas de armas encomendaram ao artista belíssima homenagem sobre pergaminho, encimada pelo retrato, riquíssima no detalhe decorativo, de fino recorte colonialista, com primoroso trabalho de cor, assentando o conjunto em minuciosa evocação da famosa batalha de Magul. Não sei se foi o patriotismo exaltado ou o ódio de Rafael ao Ultimato lhe guiou a mão, mas a peça brilha de tão extraordinária. E o original estava ali, em pasta de couro que recolhe a preciosidade em sóbria exuberância. Fiquei assombrado. Pavilhão Atlântico, Lisboa, 30 Setembro Vinte anos depois, ao menos para mim, mais ainda nesta tarde quente de domingo, a grande nave de bojo nos céus continua a chamar-se assim. Só porque sim, que nem são fortes os laços que me prendem ao Parque das Nações, excepção feita para as árvores ou o «Homem Sol», de Jorge Vieira. Está feita, e apresentámo-la, entre amigos, esta cápsula do tempo, para qual o Bruno [Portela] me convocou, pondo-me em lugares perdidos da adolescência, mas sobretudo mergulhando-me em fragmentos desfocados, decadentes, enferrujados, abandonados, miseráveis da minha cidade. «Uma Cidade Pode Esconder Outra» tem detalhes poderosos, como a capa ser negra e maleável ou a omnipresença da torre que arde, que celebramos logo na capa, com vermelho que reflecte. No miolo, imensas nuvens atravessam os olhares. Casa José Saramago, Óbidos, 2 Outubro Graças à generosidade do João [Brazão] e da sua cervejeira Trevo, levámos à Casa Abysmo e a outros lugares de prazer, duas cervejas IPA, ambas com o mesmo nome, mas com duas ilustrações distintas do Nuno [Saraiva], retiradas de «Moléstias, embustes e pontinhos amantes – escrita quotidiana em Portugal entre os séculos XVI e XIX», cuja apresentação ali falhámos: um casto cupido e um belzebu flautista. Imagino que comentário suscitaria a Buñuel, que se alegrou ao descobrir a delícia do sentimento de pecado, que celebrava a bebida a ponto de afirmar ter passado a maior parte da sua vida ligeiramente nas nuvens, e praticar como ninguém a arte do dry martini. Indispensável, este «A Propósito de Buñuel», com que o Javier [Rioyo] e José Luiz López-Linares celebraram o seu centenário. O homem que viveu «comodamente entre múltiplas contradições» apresenta-se, pela voz e olhares de amigos, familiares, colegas e colaboradores, um enorme investigador do mistério, que bem sabia tirá-lo do sério. Exemplo maior, pérola na ostra, encontra-se no seu erotismo. Os beijos são-lhe suprema obscenidade: «repugnam-me»! E depois o riso, que o atravessava como relâmpago. Cada dia, para o ser tinha que provocar gargalhada. Beijo-o na boca por isto.
Hoje Macau Eventos“Torto Arado” do escritor brasileiro Itamar Vieira Junior vence Prémio LeYa de Literatura [dropcap]”T[/dropcap]orto Arado”, do escritor brasileiro Itamar Vieira Junior, é o romance vencedor do Prémio LeYa de Literatura, no valor monetário de 100 mil euros, com edição prevista pelo grupo editorial, anunciou hoje Manuel Alegre, que presidiu ao júri. O Prémio LeYa de Literatura é o maior galardão para uma obra inédita escrita em língua portuguesa, e o júri desta 10.ª edição, contou com os novos membros, a escritora angolana Ana Paula Tavares, a jornalista e crítica literária portuguesa Isabel Lucas e o editor, jornalista e tradutor brasileiro Paulo Werneck, que substituíram o escritor angolano Pepetela e os professores e críticos brasileiros José Castelo e Rita Chaves, que saíram. Além do escritor Manuel Alegre, que mantém a presidência do júri desde o início, continuam também a fazer parte Lourenço do Rosário, professor de Letras e ex-reitor da Universidade Politécnica de Maputo, José Carlos Seabra Pereira, professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Coimbra, e o escritor e poeta Nuno Júdice. O júri reuniu-se na terça-feira e hoje na sede do grupo LeYa, em Alfragide, no concelho da Amadora, nos arredores de Lisboa. Ao galardão candidataram-se, este ano, 348 originais provenientes de 13 países, a maioria, de Portugal e Brasil, embora tenham chegado “obras de países tão diversos como Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, China ou até mesmo da Islândia”, segundo o grupo editorial. No ano passado, o vencedor foi o romance “Os Loucos da Rua Mazur”, de João Pinto Coelho. O galardão foi atribuído pela primeira vez em 2008, ao brasileiro Murilo Carvalho, pelo romance “O Rastro do Jaguar”, e por duas vezes não teve vencedor – em 2010 e em 2016 -, dada a qualidade dos originais a concurso, segundo justificou então o júri. “O Olho de Hertzog”, de João Paulo Borges Coelho, venceu o prémio em 2009, “O Teu Rosto Será o Ultimo”, de João Ricardo Pedro, em 2011, “Debaixo de Algum Céu”, de Nuno Camarneiro, foi o vencedor em 2012, ao qual se sucedeu “Uma Outra Voz”, de Gabriela Ruivo Trindade, em 2013. Em 2014 venceu o romance “O Meu Irmão”, de Afonso Reis Cabral, e, em 2015, “O Coro dos Defuntos”, de António Tavares.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSobre o medo, a violação e o Nobel [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stou honestamente cansada. Estou cansada de ver o mundo nos meus olhos de mulher, que podiam ser uns olhos quaisquer. Cansada da forma leviana como se nomeiam putas. Cansada de tocar a cassete, rebobinar e tocar a cassete de novo. Cansada de ter medo que este mundo esteja a trnasformar-se de forma dramática e que a humanidade que outrora julgava garantida, é afinal altamente contestada. E este cansaço destrói o espírito, o desejo ou a esperança. Pelo menos destrói-me um pouquinho de cada vez. Nem o Nobel pela Paz me trouxe conforto. Mas eu admito a culpa, como já admiti antes. Admito a minha pouca tolerância em perceber como é que as mulheres são sempre as culpadas e manipuladoras em casos de violação, como é que a cultura do estupro é banalizada, de como discursos machistas, homofóbicos e racistas são apoiados pelas massas. A culpa também é minha, mas não entendo se foi a minha inactividade política ou a minha rejeição ideológica. Não é uma dificuldade particularmente minha, leia-se, as comunidades intelectuais foram apanhadas de surpresa também. Aquelas elites que passam o tempo a pensar nestas coisas estão na dúvida sobre o que é que está a correr mal neste mundo. A primeira assumpção é de que a ignorância impera. Ignorância face aos factos e a ausência de uma educação formal acerca de como funciona a sociedade, a política ou o sexo! – não estava a brincar quando escrevi na semana passada que o que falta é mais e melhor educação sexual e de género nas instituições formais de educação e não só – mas o problema do argumento ‘falta de educação’ é que é condescendente. E quem é que gosta de condescendência? Ninguém, porque assim que alguém assume a ignorância do outro, mais cedo ou mais tarde este outro levanta as garras de raiva e contestação. Porque as pessoas têm egos. Mesmo para aqueles que adoram discutir, discutem para quê? Para descobrir quem é que tem razão, e ninguém quer ser aquele que é o estúpido que não sabe nada. Isto é um problema que afecta todas as partes. Se há coisa que a bela da internet trouxe foi a possibilidade de ter acesso a informação – mas há quem tenha estragado isso também. A segunda assumpção é de que as pessoas são machistas, violentas e isentas de um pingo de humanidade. Ninguém gosta de ser chamado uma coisa tão verdadeiramente feia. Cada um de nós protege-se da melhor forma que podemos, e se isso implica ter que reconstruir as nossas realidades colectivamente para que assim sejam, não vejo melhor justificação para o pensamento construtivista – e com isto eu não quero dizer que estamos deliberadamente a criar mundos paralelos. O que acontece é que cada um de nós vive nas nossas bolhas, vivemos na ilusão de que, por exemplo, a violação é categoricamente definida de vítimas e violadores de características particulares. Vivemos na ilusão que os conceitos são universalmente definidos mas não o são. Depois deparo-me com o choque que é um acordão judicial português de ‘sedução mútua’ num caso de violação, toda a história do ‘quarto de Las Vegas’ ou o candidato a Presidente que diz que os homossexuais são resultado de ‘falta de porrada’. Se calhar não sair da minha bolha é minha responsabilidade, se calhar não ter saído da bolha não me preparou para estas notícias destruidoras de espírito, não sair da bolha torna-me incapaz de perceber verdadeiramente o que se passa. A Nadia Murad e o Denis Mukwege ganharam o nobel da paz pelo seu trabalho na sensibilização, prevenção e reparação da violência sexual em contexto de guerra. Por isso como vêem, nem tudo é terrível. Só é desafiante ser um idealista nos dias que correm.
Andreia Sofia Silva EventosSaramago, 20 anos de Nobel | O autor difícil que os alunos chineses continuam a procurar Celebraram-se esta segunda-feira os 20 anos da atribuição do prémio Nobel da Literatura a José Saramago, falecido em 2010. Em Macau a sua obra continua bem presente nos currículos de quem estuda português nas universidades e, na Livraria Portuguesa, é um dos escritores lusos mais vendidos [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s temas dos livros são fracturantes e polémicos, a pontuação, na maioria das vezes, não existe, mas isso não fez esmorecer o fascínio e interesse que os leitores continuam a ter na obra de José Saramago, único escritor português agraciado com o prémio Nobel da Literatura. Foi há 20 anos que Saramago o recebeu da Academia Sueca, tendo-se tornado um autor ainda mais lido e traduzido em todo o mundo, incluindo na China. Em Macau, José Saramago continua a ser um autor muito presente nos currículos dos que aprendem tradução e interpretação da língua portuguesa na Universidade de Macau (UM) e Instituto Politécnico de Macau (IPM). Apesar de nem todos os alunos escolherem a área da literatura, deparam-se com textos de Saramago durante a licenciatura. “É um dos grandes escritores portugueses e acho que os alunos de português têm de conhecer e ler este autor”, disse ao HM Yao Jingming, director do departamento de português da UM. “A obra dele faz parte das leituras dos nossos alunos, sobretudo os livros que são mais fáceis de ler, como o ‘Ensaio sobre a Cegueira’, por exemplo. Também damos alguns excertos de outros livros para os alunos lerem”, acrescentou. Em o “Ensaio sobre Cegueira”, Saramago questiona o actual sistema eleitoral dos países democráticos, quando a população de um território vota em branco, na sua maioria, não elegendo qualquer candidato político. O tema não é acessível a quem é nativo de chinês, sem esquecer a questão da pontuação. “Para os nossos alunos, sobretudo os de literatura, [Saramago] é ainda um escritor um bocado difícil de ler e de compreender, mas é importante que tenham uma noção da sua escrita. Ele continua a ser lido na China e as suas obras continuam a ser traduzidas para chinês.” Yao Jingming, ele próprio tradutor de poesia e habituado à linguagem complexa dos poetas portugueses, assegura que o Nobel português “fala sobre outro pensamento e realidade, como a religião, e com uma outra mentalidade”. “Era comunista, sempre mostrou ter uma atitude muito própria, e para o compreender é necessário conhecer a sua história e até a história de Portugal”, frisou. No caso do IPM, os alunos estudam os escritos de Saramago no terceiro ano da licenciatura, adiantou Han Lili, directora da Escola de Línguas e Tradução do IPM. “Fazemos uma abordagem geral em que são seleccionados alguns ensaios do autor, com pequenos textos. Já há algumas obras traduzidas para chinês, como é o caso do ‘Memorial do Convento’ e o ‘Ano da Morte de Ricardo Reis’. Os alunos são motivados a ler estes livros desde o segundo ano para que tenham uma aproximação das obras na sua língua mãe.” Uma questão de gramática O facto dos alunos do IPM lerem primeiro em chinês e depois em português reveste-se numa tentativa de aproximação à escrita de Saramago. “Não corresponde às normas gramaticais tradicionais e temos de abordar este aspecto, para que os alunos compreendam que determinadas formas de escrever do autor são uma opção pessoal e não uma forma comum de escrever em português.” Han Lili assegura que o gosto pelas obras do Nobel é genuíno. “Há alunos que gostam mesmo do autor. Recordo-me de uma aluna da Universidade de Pequim a quem recomendei Saramago e que depois acabou por fazer, em Macau, o mestrado e doutoramento sobre o autor, além de que já traduziu duas obras dele para chinês.” Se na UM há um projecto de investigação a decorrer, no IPM não há nenhum aluno a debruçar-se sobre a obra de Saramago. “Ao nível da licenciatura não temos nenhum projecto de tradução, é um autor que exige um nível de proficiência mais elevado. Pode ser uma boa opção para mestrados e doutoramentos.” Boas vendas Na Livraria Portuguesa nota-se bem o fascínio que os livros de José Saramago. De acordo com Filipa Didier, responsável pelo espaço, é um dos autores mais procurados. “Neste momento temos livros em português, inglês e chinês. É um dos autores que mais vende. Não temos muitos turistas a comprar, mas sim mais membros da comunidade portuguesa e estudantes de português, sobretudo os que vêm da China e fazem cá os cursos de Verão”, assegurou. Para Filipa Didier, Saramago “é um autor de referência e muitos procuram-no por indicação dos professores, e também ouviram falar dele por causa do prémio Nobel”. “Os títulos em inglês têm uma procura relativa, sendo que, dos sete títulos que temos, o mais procurado é a tradução do ‘Ensaio sobre a Cegueira’. Este sucesso está ligado ao facto de ter sido feito um filme sobre o livro”, frisou Filipa Didier, que acrescenta: “20 anos depois do Nobel, o sucesso de Saramago está longe de se esgotar”. Este sucesso ao nível das vendas deixou Joaquim Coelho Ramos, director do Instituto Português do Oriente (IPOR), surpreendido. “Parece que há muita procura pela obra de Saramago e vai ao ponto de, quando a livraria não consegue dar resposta com o material que tem cá, encomenda a pedido das próprias pessoas. Os títulos da primeira fase são muito procurados, quando ele trouxe novas visões estruturais à produção literária, e é isso que mantém o interesse e a actualidade”, rematou.
Hoje Macau EventosPrémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho para Álvaro Manuel Machado e Ana Luísa Amaral [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s livros “O significado das coisas”, de Álvaro Manuel Machado, e “Arder a palavra e outros incêndios”, de Ana Luísa Amaral, são os vencedores ex-aequo do Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho, da Associação Portuguesa dos Críticos Literários. No comunicado enviado à agência Lusa, a Associação Portuguesa dos Críticos Literários (APCL) afirma que “O significado das coisas”, de Álvaro Manuel Machado proporciona, “com o rigor e a vitalidade da perspetiva comparatista que marca uma carreira ensaística já com várias décadas, leituras iluminantes de autores dos séculos XIX e XX, como Teófilo Braga, Antero de Quental, Eça de Queirós, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, Raul Brandão, Agustina Bessa-Luís, Mário Cláudio e vários outros”. Álvaro Manuel Machado é professor na Universidade Nova de Lisboa, e a obra foi publicada pela Editorial Presença. “Arder a palavra e outros incêndios”, publicado pela Relógio d’Água, é “um conjunto de ensaios orientados por um pensamento maturo e livre sobre vários autores portugueses e anglo-saxónicos”. “Sem ficar fechada nos limites doutrinais do feminismo, Ana Luísa Amaral, [professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto], tira da sua interrogação sobre a identidade de mulher os recursos de uma profunda renovação do sentido da literatura”. O júri foi constituído por Cristina Robalo Cordeiro, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Maria João Reynaud, professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde leciona a disciplina de Literatura Portuguesa dos séculos XIX e XX, e orienta seminários de Poesia Portuguesa Contemporânea, e Paula Morão, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde colabora com o Centro de Estudos Clássicos, e também com o Centro de Estudos Portugueses da Universidade de Coimbra. O Prémio Jacinto do Prado Coelho do ano passado foi entregue a Maria José Reynaud, pela sua obra “Margens, ensaios de literatura” publicada pelas Edições Afrontamento.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasMensagem (Botschaft) [dropcap]E[/dropcap]u tinha pensado de mim para mim que dias mais lindos Só aqueles poderiam ser chamados, quando nós, ao falar, Transformávamos a paisagem diante dos olhos num domínio Da nossa alma: quando nós, colina acima, Subíamos para o bosque na direcção da sombra, Aí, onde tudo nos envolvia como algo de já vivido, Pois, aí, nos prados distantes, nós encontrávamos, em sossego, o sonho das vidas passadas de criaturas jamais supostas. Encontrávamos aí vestígios do seu terem por lá andado e do seu beber E sobre o lago: uma conversa a deslizar Reflectia abóbadas mais fundas do que o céu. Eu tinha, então, pensado naqueles dias, E que a seguir a estas três coisas: ter saúde, Fruir do próprio corpo e da vida, E de pensamentos, asas de jovens águias, Apenas uma coisa conta: Estar na companhia de amigos. Assim, eu quero que tu venhas e comigo bebas Daquelas taças que são a minha herança, Adornado com folhagem e crianças aladas, E que comigo te sentes no muro do Jardim. Dois jovens estão de guarda no seu portão. Nas suas cabeças, com um olhar absorto e Meio desviado, há um destino monstruoso Que te olha para te empedernir: quero que te cales E olhes para a paisagem Que tu vês estender-se à tua frente; Pois, talvez, então, um verso teu me aconchegue Na solidão futura e que, de quando em quando, Uma lembrança tua se aninhe na sombra E que, ao cair da noite, a estrada entre as copas escuras role, E que caminhos sem sombra rolem e rolem para aí Como relâmpagos do ouro mais fino.