Aulas de teoria da literatura

[dropcap]D[/dropcap]avid, que se lê Dávi, ensinava teoria da literatura na universidade de Araraquara, a mesma onde Jorge de Sena um dia ensinou, e costumava dizer aos seus alunos no início do curso, que literatura era tão importante para vida como respirar, e tal como respirar ninguém repara. Antes que alguém pudesse pedir uma justificação para essa afirmação, mostrava um pequeno vídeo no “youtube” – vinte e poucos segundo – onde se vê Paulo Leminsky numa sala de aulas, de pé, a dizer “O prazer de usar a linguagem é um dos prazeres maiores, junto com o sexo, comida, bebida e drogas. O uso da linguagem dá um barato fundamental ao ser humano.

Não é preciso justificar isso à luz de nada. Isso aí é que é fundamental, as outras coisas é que têm de se justificar.” Depois passava o link do vídeo, para que os alunos pudessem rever o vídeo em casa.

Escusado será dizer que ganhava a sala de aula logo no início. O sentido daquelas aulas era o exercício de aproximação ao barato fundamental do ser humano: a linguagem. Um aluno, daqueles que escrevem antes de ler, como quem fala antes de pensar, pergunta a Dávi se nesse caso a auto-ficção não seria o barato maior, visto o próprio fazer uso da linguagem a partir de si e inventando-se. Se a auto-ficção não é o que toda a literatura almejava alcançar, uma espécie de Meca da literatura. Dávi ficou um pouco em silêncio e depois disse: “Sabe, no Brasil a auto-ficção é um pouco diferente da dos outros países, porque se acentua mais o auto. E você deve saber também que no Brasil, de modo geral, auto é sinonimo de carro e não de ‘mesmo’ ou de ‘próprio’. Quem daqui é que não reparou na oficina da Avenida Portugal, que se chama Auto Reparadora, como se auto fosse de automóvel e não de ‘mesmo’. Nesse sentido, se pensarmos numa ficção automóvel, talvez tenha razão. De preferência cabriolet, com os cabelos ao vento.”

O garoto insistia: “Mas não é a auto-ficção uma literatura válida?” Dávi respondia: “Pode até ser, dependendo do caso. Mas o problema da grande maioria desse ramo da literatura é que faz com que jovens como você acreditem que têm uma vida para contar e que isso basta para ser literatura. A literatura é uma vida para inventar. Literatura não é contar o que lhe aconteceu, aquilo que sente ou julga sentir. O barato, a que Leminsky se referia, não é ser eu, mas ser outros.

A linguagem é uma droga que me permite ser outros. E ninguém começa a ser outro a escrever. É a ler que se começa a ser outro.”

A conversa acabou por ali. No dia seguinte, uma das alunas preferidas de Dávi, que já conhecia de outra disciplina que ensinava na universidade, latim, aproximou-se dele no bar. Há muito que Dávi sabia que Jú começara a ler muito cedo, com Monteiro Lobato, que ainda hoje adorava, depois leu o Proust, o Joyce, o Canetti, o Hemingway, o Guimarães Rosa, o Raduan Nasar, e mais recentemente Aldyr Garcia Schlee e Trevisan, uma lista improvável, para alguém tão jovem, embora fosse verdade, e estava agora a tentar escrever, sem que lhe ocorresse contar a sua vida. estudava ainda latim, ela e apenas mais um aluno. Mas o que ela queria dizer a Dávi é que as palavras de resposta ao seu colega fizeram-na compreender melhor o vídeo do Leminsky, que já conhecia da net e ainda não tinha compreendido bem. “Queria agradecer-lhe por isso, Dávi.”

Tinha já deixado o seu sorriso para trás, afastava-se de Dávi, quando este ousou perguntar, elevando a voz no bar: “O que é que você aprendeu mesmo, Jú?” Ela voltou-se, sorrindo, e respondeu: “Que a vida é sempre menos que a literatura. E que ser-se outros é sempre mais do que ser-se o mesmo. Acabei também por encontrar a justificação que há muito procurava para as minhas tentativas de escrever: é o preço que se tem de pagar por se ler tanto. Ainda que a conta nunca fique paga. Ainda que se escreva só para nós e nunca para um livro. O barato é ler.”

Acenou um adeus e lá seguiu bar afora com a certeza própria da juventude e o conforto de que tudo pode mudar mais a cada página do que a cada esquina.



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