Exílios & Insílios

26/07/20

[dropcap]«Q[/dropcap]uem escreve está no exílio da escritura; é lá a sua pátria, onde não é profeta», cunhou Blanchot em L’Écriture du désastre. Eu sublinharia: onde precisamente não é profeta. Pelo que exilados seremos todos, desde que comandados pelo devaneio e por esse incessante ofuscamento de uma cicatriz na luz. Há vezes que dolorosa, de outras encontrando uma fraternidade na fuga. Talvez seja isto a escrita: uma fraternidade na fuga. Mas há exílios e exílios.

Também o Ovídio, exilado em Tomis (na foz do Danúbio), encontrava um remédio para o seu mal-estar no sonambulismo da escrita. Trôpega, havia perdido o seu auditório e os Getas, junto dos quais estava exilado, não o compreendiam; ao cabo de uns anos sentiu que lhe encalhava o navio na língua, perdia a linguagem, secando-se-lhe a veia poética.

Os seus poucos correspondentes suspeitavam que ele exagerava nas suas lamúrias. Quando se está longe e isolado, é difícil explicar que a distância amplifica o silêncio e vai tornando irreais, migratórios, até os espaços físicos onde exercitamos a nossa ausência. A terra estrangeira, perguntava-se Robert Bolano, é ela uma realidade objectiva, geográfica, ou é antes de mais uma construção mental em movimento perpétuo?
E no entanto, soube-o Segalen como ninguém, a nossa personalidade alimenta-se de tudo o que é o seu antípoda: «É pela Diferença, e no seio do Diverso que se exalta a existência». É bem verdade, e senti que isso actuou em mim como um anzol que foi ao fundo de mim repescar a maiêutica. Contudo, que cansaço.

Neste meu afastamento intermitente tive o tempo e a oportunidade de ler textos magníficos sobre o exílio, o ensaio de Linda Lê, as observações de Edward Said, os Diários de Gombrowicz, o texto laminar de Joseph Brodsky, donde tiro este excerto certeiro:

«(…) se há algo de bom no exílio, é o facto de ensinar a humildade (…) o exílio é a lição suprema dessa virtude. E isso é especialmente precioso para um escritor porque lhe dá a perspectiva mais ampla possível.

“E avanças em humanidade”, como disse Keats. Perder-se na humanidade, na multidão – multidão? – entre bilhões; tornar-se uma agulha naquele famoso palheiro – mas uma agulha que é procurada por alguém: é disso que se trata quando falamos de exílio. (…) Mede-te não por teus pares escritores, mas pela infinidade humana: é quase tão terrível quanto a inumana. É a partir daí que deves falar e não a partir da tua inveja ou ambição.»

Chegaram-me estas notas por causa do livro que descobri hoje que o meu amigo Nazir Can havia lançado no Brasil sobre a literatura moçambicana e que se chama: O campo literário moçambicano: tradução do espaço e formas de insílio (Kapulana, 2020). Fiquei preso ao substantivo «insílio», cujo significado me instigava e resolvi averiguar, tendo descoberto que ganhou a armadura de um conceito muito explorado nos ensaios do sul-americano Mario Benedetti para identificar “a condição dos cidadãos que foram forçados por poderes coactivos a adotar uma atitude passiva e uma semi-impotência que os destitui de sua autonomia moral e de sua iniciativa psicológica”.

Para ter chamado a palavra à capa é porque Nazir encontrou em muitos textos essa característica, ao ponto de a desenvolver como chave e parece-me ser um achado para traduzir o indisfarçável mal-estar de grande parte da intelectualidade moçambicana, tal como aliás “a curiosa nostalgia do exílio em plena pátria” (Benedetti), muito presente no impasse que muito para além do Covid se faz sentir no quotidiano do país.

Nós não nos libertamos de um hábito atirando-o pela janela: é preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau, dizia Mark Twain – e poderíamos citar um hábito como o medo.

Sem o ter lido, conhecendo-lhe a inteligência e a capacidade de análise suspeito que este livro estará para Moçambique como Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço, esteve para Portugal, e espero que o livro se possa comprar em Maputo.

27/07/2000

A caixa com livros estava na varanda. Abria-a e o livro que estava por cima era A Festa de Babete, de Karen Blixen. Estava o frescor que acaricia as têmporas e lhes dá a agudez da atenção. Resolvi ler finalmente a História Imortal, por causa do Orson Welles (filme que nunca vi). Fui ao guarda-fato vestir um blusão e sentei-me na varanda a ler a pequena novela. Foi como visitar uma casa mobilada com biombos que o vento vai trocando de lugar. Depois disto só um iogurte de cerejas, coisa impossível de arranjar por estas bandas. Absolutamente devastador…

28/07/20

A cultura de massas é o resultado de uma arte combinatória de tudo o que já foi assimilado. As belíssimas orquestrações das canções dos Beatles ou do Elton John, em termos de linguagem da música, mais não fazem do que usar os padrões musicais conquistados pelos movimentos musicais do século XIX. Tiveram sucesso popular, depois de um século de acomodação a essa sensibilidade musical. Parecem agora simples: houve uma educação do gosto e da sensibilidade. Quem lembra hoje as resistências suscitadas pelas dissonâncias que o jazz introduzia na música?

Isto em si é normal. Grave é que para um filho da cultura de massas não exista o mundo antes de si, a memória da tradição cultural, e o presente não passe do pomar onde supostamente colhe os lucros. Daí que um destituído como Bolsonaro consiga ser presidente e possa dizer sem ser imediatamente electrocutado por raio divino que criar uma lei de combate às fake news é uma tentativa de limitar a liberdade de expressão, por não entender que a liberdade não existe em abstracto e está irmanada com a responsabilidade. Não é sequer perversão ou maldade, ele não entende mesmo. Esta incapacidade de discernimento é comum a quem teve uma exclusiva educação ancorada nos “valores” da sociedade de massas, onde até o capital se converteu, antes de mais, “numa estética mercantilizada” que fez naufragar tudo numa terrível, irrevogável, indistinção.

30 Jul 2020

Os filósofos e a escrita

[dropcap]O[/dropcap]s filósofos não gostam de se saber escritores. Provavelmente porque a palavra “escritor” designa uma função especulativa em que a criatividade assenta mais no jogo puro da palavra ou na construção de aparatos ficcionais sem critérios que sejam os filosóficos. É assente que assim é. Provavelmente ainda porque o ofício do escritor se prende mais com a literatura e com a poesia. E, no entanto, vasta é a tradição filosófica que mergulha no universo da poesia e nas mais variadas tipologias literárias (narrativas, epístolas, exercícios, fragmentos, etc.). É assente que assim também é.

Colocando estas duas hipóteses entre parêntesis – vamos, pois, suspendê-las – haverá uma terceira que soa de um modo talvez mais convincente. Dir-se-á então que a escrita é entendida pelos filósofos mais como um meio de “representar” factos e pensamentos e não tanto como uma máquina que cria e visa os seus próprios mundos. Esta suposição não deixa de ter interesse, na medida em que houve filósofos que se sentiram obrigados a moldar a linguagem, provando assim que ela não era, à partida, apenas um utensílio transparente. Não foi por acaso que Heidegger, evitando contaminações, criou uma linguagem própria, aliás bastante compósita e até artificiosa, e que Wittgenstein fez praticamente o mesmo (entregando-se a uma lógica de fragmentos e a processos metonímicos que lhes serviam de leme).

A pergunta seria: quando se ‘pensa’, haverá alguma coisa fora do texto? No fundo, o que se faz é escrever. Os filósofos pensam, mas escrevem. Pensar não teria fim (nem sintaxe duradouramente controlada), mas escrever tem sempre um fim e uma geometria que vistoria e que permite reexaminar. Por isso, os filósofos são escritores, ainda que alguns possam crer na relação entre o que representa e o que seria representado e outros creiam no sentido enquanto pura fonte de intersubjetividade (lançado na interação com o outro). Mesmo devaneando sobre a escrita na sua função de seta (índices que alegadamente apontariam para coisas concretas), os filósofos não deixam de se conter dentro do mapa da escrita.

Fora do mapa da escrita, haverá outros textos, inúmeras camadas de uma longa linhagem que a história (em jeito de vendaval) atirou sobre o nosso presente. Até porque tudo aquilo que não se gravou em escrita, fosse em que escrita fosse, foi esquecido, foi removido da experiência, simplesmente desapareceu. Como seria bela a totalidade da ‘Poética’ de Aristóteles, se a pudéssemos pensar. E que tributo deveríamos prestar todos os dias a Andronico de Rodes (Séc I a.C.) que fez perdurar até nós a obra de Aristóteles (sem desmerecer o trabalho dos tradutores siríacos e árabes a partir do séc. IX d.C.). Perdurar significa aqui, de qualquer maneira, manter por escrito. A escrita, sempre a escrita. Pensar e salvaguardar o pensamento é, de facto, escrever.

A escrita é um móbil específico do humano. Por outras palavras: ela é aquilo em que nos movimentamos, em que habitamos, em que vivemos e jamais um par de ferramentas para tratar do jardim. As ferramentas e o jardim somos nós mesmos, sem separações, impelidos ao dia-a-dia do mundo. Coisas despidas de palavras existem e são inúmeras, mas não ficam. São como uma sombra que se despede de nós, até que a escrita as reflicta, as hipnotize e as coloque no meio do nosso tumulto. Os arqueólogos, quando descem ao fundo da terra, o que procuram são inscrições, traçados, casos, ou seja: escritas.

É verdade que um signo, qualquer signo, pode ser sempre usado fora da linguagem (olho à noite para a lua e prevejo que amanhã vai chover), mas diluir-se-á no nosso devir. Posso contemplar o rosto de um familiar, posso amaciar o ramo da nespereira, posso auscultar a gata a lamber as patas, mas esses actos apagar-se-ão, já se apagaram. Retê-los e albergá-los é procurar o sentido, mas não resistirão se não corarem à luz da linguagem. Razão por que os filósofos, os semióticos, os botânicos, os biólogos são, ao fim e ao cabo, escritores. Escritores de literatura? Não. Mas escritores, sim. E sem mácula alguma.

2 Abr 2020

Aulas de teoria da literatura

[dropcap]D[/dropcap]avid, que se lê Dávi, ensinava teoria da literatura na universidade de Araraquara, a mesma onde Jorge de Sena um dia ensinou, e costumava dizer aos seus alunos no início do curso, que literatura era tão importante para vida como respirar, e tal como respirar ninguém repara. Antes que alguém pudesse pedir uma justificação para essa afirmação, mostrava um pequeno vídeo no “youtube” – vinte e poucos segundo – onde se vê Paulo Leminsky numa sala de aulas, de pé, a dizer “O prazer de usar a linguagem é um dos prazeres maiores, junto com o sexo, comida, bebida e drogas. O uso da linguagem dá um barato fundamental ao ser humano.

Não é preciso justificar isso à luz de nada. Isso aí é que é fundamental, as outras coisas é que têm de se justificar.” Depois passava o link do vídeo, para que os alunos pudessem rever o vídeo em casa.

Escusado será dizer que ganhava a sala de aula logo no início. O sentido daquelas aulas era o exercício de aproximação ao barato fundamental do ser humano: a linguagem. Um aluno, daqueles que escrevem antes de ler, como quem fala antes de pensar, pergunta a Dávi se nesse caso a auto-ficção não seria o barato maior, visto o próprio fazer uso da linguagem a partir de si e inventando-se. Se a auto-ficção não é o que toda a literatura almejava alcançar, uma espécie de Meca da literatura. Dávi ficou um pouco em silêncio e depois disse: “Sabe, no Brasil a auto-ficção é um pouco diferente da dos outros países, porque se acentua mais o auto. E você deve saber também que no Brasil, de modo geral, auto é sinonimo de carro e não de ‘mesmo’ ou de ‘próprio’. Quem daqui é que não reparou na oficina da Avenida Portugal, que se chama Auto Reparadora, como se auto fosse de automóvel e não de ‘mesmo’. Nesse sentido, se pensarmos numa ficção automóvel, talvez tenha razão. De preferência cabriolet, com os cabelos ao vento.”

O garoto insistia: “Mas não é a auto-ficção uma literatura válida?” Dávi respondia: “Pode até ser, dependendo do caso. Mas o problema da grande maioria desse ramo da literatura é que faz com que jovens como você acreditem que têm uma vida para contar e que isso basta para ser literatura. A literatura é uma vida para inventar. Literatura não é contar o que lhe aconteceu, aquilo que sente ou julga sentir. O barato, a que Leminsky se referia, não é ser eu, mas ser outros.

A linguagem é uma droga que me permite ser outros. E ninguém começa a ser outro a escrever. É a ler que se começa a ser outro.”

A conversa acabou por ali. No dia seguinte, uma das alunas preferidas de Dávi, que já conhecia de outra disciplina que ensinava na universidade, latim, aproximou-se dele no bar. Há muito que Dávi sabia que Jú começara a ler muito cedo, com Monteiro Lobato, que ainda hoje adorava, depois leu o Proust, o Joyce, o Canetti, o Hemingway, o Guimarães Rosa, o Raduan Nasar, e mais recentemente Aldyr Garcia Schlee e Trevisan, uma lista improvável, para alguém tão jovem, embora fosse verdade, e estava agora a tentar escrever, sem que lhe ocorresse contar a sua vida. estudava ainda latim, ela e apenas mais um aluno. Mas o que ela queria dizer a Dávi é que as palavras de resposta ao seu colega fizeram-na compreender melhor o vídeo do Leminsky, que já conhecia da net e ainda não tinha compreendido bem. “Queria agradecer-lhe por isso, Dávi.”

Tinha já deixado o seu sorriso para trás, afastava-se de Dávi, quando este ousou perguntar, elevando a voz no bar: “O que é que você aprendeu mesmo, Jú?” Ela voltou-se, sorrindo, e respondeu: “Que a vida é sempre menos que a literatura. E que ser-se outros é sempre mais do que ser-se o mesmo. Acabei também por encontrar a justificação que há muito procurava para as minhas tentativas de escrever: é o preço que se tem de pagar por se ler tanto. Ainda que a conta nunca fique paga. Ainda que se escreva só para nós e nunca para um livro. O barato é ler.”

Acenou um adeus e lá seguiu bar afora com a certeza própria da juventude e o conforto de que tudo pode mudar mais a cada página do que a cada esquina.



22 Out 2019

Onde os sonhos vão para morrer

[dropcap]I[/dropcap]sto da escrita, é uma carreira ou um hobby?

A pergunta de um milhão de euros antes dos impostos. Aqui estamos, há quase duas horas, trocando histórias sobre uma coincidente ida a Moçambique em Maio: o entrevistador de férias, eu em trabalho: um festival literário. Tenho de listar características minhas, positivas e menos positivas. Falar do que gosto e do que não gosto. Declamar o meu percurso profissional não desde o início, que os currículos não devem ter tantas páginas, mas da última década; manter o contacto visual, sorrir muito. Tenho de concordar com os turnos e a frequência com que são alterados, mas parece que não estou a fazer um trabalho muito bom a convencê-lo e ele faz-mo saber. Esta empresa, sita na mesma rua que o meu antigo empregador, está à procura de colaboradores, e eu de emprego. Estou desempregada, pelos padrões normais, sem subsídio e, pelos vistos, sã da cabeça. Saio de lá sem ser seleccionada. Reencontro o anúncio vários dias depois.

Começa sempre da mesma maneira: perguntamos a toda a gente se sabem de alguma coisa. Ponderamos trabalho remoto e, dos trabalhos anteriores, a quais poderíamos voltar sem grande sacrifício. Repetimos baixinho: já estive aqui antes, vai correr tudo bem. Mas também dizemos a nós mesmos que o melhor é não escolher tanto porque podemos acabar sem nada. O tempo está a passar. Aceita, resigna-te, afinal essa é a norma. Essas vozes destrutivas por vezes soam mais alto do que deveriam. Descobrimos novos sites. Olhamos para o LinkedIn e prometemos que é desta que vamos criar um perfil. Passamos horas a actualizar o currículo e procrastinamos quando se trata da versão inglesa. Onde está o Herbert Richers quando precisamos dele?

― Faz tanta coisa ― pergunta ela ― como é que vai ter tempo de trabalhar connosco?

Respondo que sou muito organizada. Ri-se. Mas não deveria esta ser uma pergunta retórica? A maioria das pessoas trabalha porque precisa. Trabalha para pagar as contas. E depois morre. Quando entro numa outra sala e tenho quatro rostos a avaliarem-me, e me perguntam onde me vejo daqui a cinco anos, não é só o facto de ainda se fazerem estas perguntas ou as dinâmicas de grupo e os testes online e os testes de lógica que me faz abanar a cabeça internamente. É a violência de ter de me comprometer a ficar para sempre ali, de prometer que nunca vou querer tornar um sonho em mais do que um hobby, que sou igual a quem me entrevista; que acordo, vou trabalhar, volto para casa, vejo televisão e repito tudo nos dias seguintes. Que a sexta-feira é o momento mais desejado da semana, que no fim-de-semana é que é, que odeio segundas.

Por cada cinquenta respostas a anúncios, dez entram em contacto. Mas há assim tantos anúncios, ou estamos a ver anúncios iguais repetidos até à exaustão? Por vezes, quando finalmente ligam, já nem nos lembramos de nos termos candidatado, quanto mais de qual era a vaga. O ordenado mínimo foi feito para jovens que vivem em casa dos pais sem terem de contribuir para as despesas e, no entanto, nas entrevistas de grupo, essa bela invenção, as pessoas assinam primeiro e pensam depois, se é que o fazem. Eu já estive assim tão desesperada, provavelmente até mais. Facilmente se colocam filtros no que nos causa ansiedade, aumentos/perdas de peso, doença, stress, infelicidade. O glitter eventualmente sai, até da memória, e ficam só o alcatrão e as escoriações. Valem as amizades.

Há aquelas empresas de que nunca obtemos resposta, outras mandam um email automático de rejeição. Há aquelas cujos critérios ninguém entende, quando pessoas com percursos profissionais distintos se candidatam para a mesma oferta e nenhuma é sequer chamada para uma entrevista. Serão anúncios só porque sim, e os candidatos escolhidos antes interna e secretamente? Acontece sermos seleccionados, informarem que a formação foi adiada, passar uma semana e não termos um mail, telefonema, pombo correio. Acontece ficarmos especados três dias à espera de uma entrevista por vídeo chamada (nós que odiamos vídeo chamada) e haver uma boa samaritana que salva a coisa à última hora. Coisas que jamais seriam permitidas aos candidatos são praticadas abusivamente pelas empresas. Horas nocturnas já “incluídas” no vencimento base, ou seja, inexistentes, e subsídios de turno iguais para todos, quer trabalhem de dia ou de noite. Não basta sorrir: é preciso entrar, sentar, ouvir, calar, não fazer muitas perguntas, aliás apenas duas: onde é que eu assino e quando é que começamos? Não podemos pensar e muito menos alto, Deus não permita perceberem que somos seres pensantes e que os detalhes são importantes porque tudo faz diferença. É a nossa vida, afinal.

Lembro-me de, em conversa com o Miguel Somsen, ele comentar que a arte é a nova gravidez. O que os recrutadores acham interessante é o que os assusta. Aos candidatos, assustam a restauração e os horários repartidos. As lojas de roupa e as folgas a cada sete dias. As vendas porta a porta. O call center ou, como lhe chamo, o lugar onde os sonhos vão para morrer.

25 Jul 2019

Isto não está a correr nada bem

[dropcap]N[/dropcap]ão vai acabar já, diz-se que ainda vai durar um par de décadas ou pouco mais. O sopro. Durante o intervalo, coisas estranhas acontecem. Algumas, rasto de ideias. Outras, erguem-se sem entendimento. Indiferente, o argumento diário continua a ser escrito. Quem segura a pena? Debruçado sobre a bancada, a separar palavras: bonitas para um lado, feias para o cesto da reciclagem, para que possam ter outra vida. O pensamento surge, murmura e apoquenta-se. Faltam ligaduras. Mas isso também se arranja no mercado dos domingos. O indispensável visco que liga a semente ao solo e forma um texto comprido. Com vírgulas extraviadas. Que atravessam ruas.

Materializando, a coisa vai. É país, empresa, aplicação. Um bocado de lata? Não se pode dizer ao certo. Ouve-se falar. Vê-se. Para que a nação avance, o poder está caído para um dos lados. Seres ímpios e invisíveis. Maquinismos que contêm todo o conhecimento e riqueza. Não são homens em cima de guindastes, são aquilo a que chamam números, ou contas de somar. O valor está sempre a subir, como o brilho que ilumina a ignorância. A. B. C. É esta a sigla. Das cronografias.

Só uma, para começar. Conceberam essa coisa a que não puseram nome, mas a que todos chamam de Centro. É uma experiência. Como o vulcão ou o colapso de uma mina. Aí, nesse lugar, espaço aborrecido e desmesurado, fica o âmago de tudo. Foi assim que escreveram no livro das cobranças. Teologia base: o âmago de tudo. Medula, talento, clave. Um parafuso no meio do solo. Pense-se num lugar, escolhido com o dedo na esfera a girar: aqui! E o imaculado cosmos nasce. O meio onde se dividem as frequências. É linguagem encriptada, não compreensível na totalidade. Deve deixar-se assim, com pontas soltas e nada em claro, como segurança para o imprevisível. Olhos menos bem-intencionados afloram tentações suicidas. Medo, muito medo.

O meio. Na grafia chinesa é um pequenino rectângulo horizontal com um traço vertical que atravessa exactamente o ponto central, deixando uma mão cheia de pixéis de cada lado a cobrir o espaço vazio. Para esta determinada posição, no Centro, convergem milhões de seres vivos munidos de razão desviados dos seus caminhos através de cartografia digital, contradizendo as indicações boca-a-boca. Mapas da Google, da Apple, da Microsoft e outras versões open source, assim como as aplicações que os usam, ou os guias Michelin que se desdobram igualmente com as mãos, prestam indicações desacertadas. A todos eles, num raio de cem ou mais quilómetros, essa é outra incógnita, foi dito que era preciso passar por ali. Que passando por ali, pelo âmago de tudo, se encontrava o melhor itinerário. O mais rápido, o mais interessante para a vista. Ao chegarem, atraídos por um magnetismo raro, que lhes empurra as hormonas para fora da tampa, os condutores ou transeuntes desvairados, param. Fazem-no sem juízo aparente. Os carros avariam, a gasolina falta, não há como evitar a necessidade desmesurada de aliviar a bexiga, que emerge sem aviso. Por todas as razões a direcção é aquela.

O trânsito é imenso, todas as estradas confluem para o mesmo ponto, exactamente onde está o parafuso, simbolicamente encriptado e colocado como a marca do caos, só para se ter a certeza de que existe. Um ponto no meio de lugar nenhum. Um campo vazio com milhares de toneladas de pavimento onde todos confluem. O primeiro viajante reza, os outros ressoam e transcrevem as coordenadas. Fazem contas à vida. Despedem-se das famílias. Perdendo a compreensão, não chegam a entranhar. Os que regressam, não voltam a ser iguais. O resultado não favorece ninguém. Alguns ainda gritam pela mãe. Engarrafamento milenar.

Outro exemplo, um restaurante. Fica na Metrópole. Projecto pioneiro deixado nas mãos da robótica e da Inteligência Artificial. A polémica estalou quando foi anunciado que neste empreendimento, área com vários milhares de metros quadrados, não iria existir um único empregado. Espaço amplo, como se sugere. No meio – pequeno rectângulo com traço por cima –, fica a cozinha. Eixo autónomo que roda sobre si como os dias que passam, lá em cima, no fuso do guindaste. Lugar ermo, aparafusado, onde por meio de refrigeração severamente controlada se guardam os ingredientes possíveis para a elaboração de todas as gastronomias. Armários metálicos e gavetas desenhados na perfeição. Aqui, por uma equação liminar é possível preparar qualquer receita, ao gosto de cada cliente. O código está aberto.

O pensamento surge, murmura e apoquenta-se. Faltam ligaduras. Mas isso também se arranja no mercado dos domingos. O indispensável visco que liga a semente ao solo e forma um texto comprido. Com vírgulas extraviadas. Que atravessam ruas.

A preferência é executada através de uma aplicação móvel, que acompanha, examina e notifica, sem esquecer o instante mais residual, o batimento cardíaco de cada bálsamo, a desagregação visceral a determinado elemento, a mais oculta agitação do palato. Tudo é contabilizado. A escolha criteriosa do que se vai comer só é efectuada nas primeiras ocasiões, a partir daí a processo de cálculo que navega no dispositivo sugere e, por critério pleno, acerta. Acerta sempre. Conhece o mais íntimo desejo, aquele ainda não presente na consciência. Representações animadas com a volumetria ideal completam o processo. Imaginação lúdica. Um oceano cresce nas membranas gustativas.

O cliente chega, pára à porta do restaurante e a viatura é prontamente recolhida no tapete rolante, para um lugar na rede de estacionamento horizontal e vertical. Lá dentro, já configurado pelo engenho que traz no bolso, encaminha-se para a sua mesa, seguindo indicações cintilantes no chão por entre o labirinto de mesas. A aterragem ocorre sem turbulência. Os passageiros batem palmas. A ergonomia do assento vai sendo melhorada a cada utilização, eliminando desconfortos e aperfeiçoando posturas. Todo o ambiente conferido ao lugar da refeição é recolhido do imaginário. Aromas, sensações, reminiscências oníricas. Traduzidos em calorias, proteínas e nutrientes.

A aplicação é configurada de modo a repercutir o gosto do utilizador, não esquecendo desprazeres e alimentos passíveis de rejeição física. Mas até aqui, ao longo dos tempos, o mecanismo vai agregando novos elementos, necessários para a melhoria física e uma saúde melhor, combatendo maus hábitos e ânimos rasos. We are what we eat. As rotinas alimentares traçam o gosto e o desgosto. Uma câmara com reconhecimento facial cria padrões de satisfação e proporciona ajustes em tempo real. A miríade de opções é infinita. Na cozinha, um bailado de braços robóticos sincroniza-se entre si, recolhendo os alimentos frescos, cortados na altura, os refrigerados e os naturais. Corte e temperaturas ideais, fornos e dispositivos a vapor. O resultado é encaminhado para as mesas por uma tapeçaria rolante. Apurado a cada garfada, a escolha e o resultado são sempre perfeitos para o cliente, estabelecendo um padrão biográfico sem igual. As quantidades são ajustadas às necessidades e à purificação da alma.

O restaurante também une e proporciona associações entre os utilizadores, juntando-os à mesma mesa. Para os mais ávidos ou solitários, uma companhia virtual que ouve e dialoga é a opção a tomar. De igual modo, o conhecimento flui, proporcionado tempo de qualidade. Nada é desperdiçado. O piscar de olhos. Eficiência energética, estrito controle de produtos e despesa nula com funcionários, minimizam os custos deste prazer gastronómico. No final, a conta é debitada na aplicação e o transporte está à porta. Na segunda oportunidade a primeira impressão é sempre revigorada. O carro não avaria, a gasolina não falta. O cliente volta para novo fluxo de indicações boca-a-boca.

Haveria mais para dizer. Ainda não foste à Metrópole? Então estás à espera de quê?

16 Jul 2019

Ler e escrever foram invenções tramadas

[dropcap]A[/dropcap] escrita e a leitura são episódios recentes. São invenções que conheceram os seus inícios em meados do quarto milénio a.C.. Ocupam menos de 2 por cento de toda a história do ‘Homo sapiens’ que conta já com cerca de 350 mil anos de vida. A neurocientista Maryanne Wolf escreveu sobre o tema e sublinhou, há uma década, que estas aquisições se ficaram a dever ao uso de potencialidades genéticas originalmente destinadas a processos de outra natureza. A história da escrita e da leitura é, portanto, também, a história do hábil aproveitamento de certas aptidões em benefício de práticas inesperadas. Ler e escrever ter-se-iam transformado, nesta linha de ideias, em dispositivos eminentemente artificiais que, ao contrário da visão, por exemplo, requerem aprendizagens e monitorizações individuais.

Maryanne Wolf, directora do ‘Center for Reading and Language Research’ da Tufts University (Boston) tem trabalhado ao longo dos anos com leitores de todas as idades, especialmente com leitores disléxicos, condição que, segundo a autora (em obras de 2007 e de 2018*), comprova que os nossos cérebros nunca foram geneticamente preparados para o acto de ler. Para o conseguir com o sucesso que todos conhecemos, foi necessário fazer uso da extrema plasticidade da mente humana que é capaz de forjar ligações inopinadas, visando sempre novos desafios. Somos, pois, seres geneticamente permeáveis às rupturas e dispomos de uma capacidade ímpar de alterar o que nos é dado por natureza. Daí, também, talvez, termos alcançado o comprovado epíteto de maior predador do planeta.

Há, no entanto, uma estranheza nesta descrição de M. Wolf que decorre do facto de uma transformação tão artificial ter acontecido em todo o globo em fracções temporais relativamente próximas. Bastará recordar que as mais distintas culturas e linguagens naturais geraram formas de escrita bem diversas, tendo cada uma delas mobilizado conexões neurais próprias (escritas verticais com vaivéns diferenciados ou escritas horizontais, movendo a atenção da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda). O alcance desta plasticidade foi assim levado aos limites em todo o mundo com uma eficácia estonteante como se existisse, de facto, uma aptidão universal que o justificasse.

A questão não deixa de ser fascinante e entronca na discussão sobre os nomes que Platão pôs em marcha entre Crátilo e Hermógenes, o primeiro reivindicando uma origem natural para os nomes e o segundo reivindicando um legado puramente artificial. No caso da escrita e da leitura, as provas que M. Wolf sustenta para demonstrar um cariz artificial falam por si, embora a sua aplicação universal nos faça pensar que a propensão genética para as incorporar não fosse, afinal, tão desconforme.

A intimidade e a co-naturalidade entre os humanos e a escrita foi tal que, praticamente em todas as culturas humanas, ela veio substituir as mediações da transcendência que existiam até então. No mundo semítico, a escrita e a leitura proporcionaram aos deuses (ou a um deus único) um discurso próprio e atribuíram-lhe até o papel de emissor e de criador do “verbo”. A escrita e a leitura possibilitaram a normalização da imagem da transcendência e possibilitaram que a memória abandonasse o seu nomadismo no tempo (um ‘passa-palavra’ irregular) para se fixar ou sedentarizar com uma outra regularidade de tipo orgânico. Não deixa de ser curioso que, no mundo judaico, por exemplo, a fixação por escrito do grosso da tradição oral só tenha tido lugar, de maneira sistemática, após o exílio (538 a.C.), ou seja, depois de uma prova de nomadismo forçado.

O nosso tempo está vertiginosamente a abandonar toda esta herança. A tecnologia tem-nos fornecido novas aproximações e captações (no tempo e no espaço) e também novas escritas. Se a imagem móvel do século XX vivia da conjunção entre o princípio de persistência retiniana e a ideia de projecção, as imagens digitais, baseando-se em algoritmos e não em originais reduplicados, implicam uma plasticidade sem fim que se aproxima do modo como a mente processa as suas imagens. Esta virtualidade sacraliza a tecnologia, dilui a função clássica da memória orgânica (histórica) e faz do futuro um continente a ser vivido no agora-aqui (sem grande idealidade para os chamados fins últimos). A redenção na nossa era passa pela invenção de capacidades genéticas (tendo o cyborg, para já, como meta) que se adaptem às novas escritas e não o contrário, tal como sucedeu há 5.500 anos.

Quando, em 1974, Barry Leiner e Vinton Cerf criaram o protocolo TCP/IP, pouca gente se apercebeu da dimensão histórica do facto. Como Cerf referiria mais tarde: “A única coisa que queríamos era que os bits fossem transportados através das redes, apenas isso”**. O alcance deste protocolo foi, e é ainda hoje, radical e os seus impactos podem ser resumidos em três grandes linhas: proeminência à mobilidade dos dados, garantindo liberdade aos conteúdos e às escritas; dissociação da rede (e das suas escritas) da ideia de propriedade e, por fim, adopção da rede enquanto espaço auto-organizado e vocacionado para o crescimento espontâneo, imprevisível e não-regulado. Estas três linhas persistiram nas transformações que o mundo foi conhecendo nas últimas décadas: a superação das dicotomias ideológicas nos anos oitenta, o optimismo tecnológico dos anos noventa, a ‘quebra de vertigem’ na primeira década do século XXI e a imersão definitiva dos ‘pós-millenials’ no aquário da rede já nesta segunda década. Daí que as futuras gerações vão, com toda a certeza, deixar de se baralhar com a diferença entre escritas naturais e artificiais e ‘lerão’ as investigações de Maryanne Wolf como um estimulante testemunho arqueológico. O que já não seria nada mau.


*Vale a pena recorrer às ciberlivrarias para encomendar os dois livros de Maryanne Wolf. O mais conhecido é Proust and The Squid. The Story and Science of The Reading Brain (Harper, New York, 2007) e o mais recente, escrito cerca de uma década depois, é: Reader, Come Home: The Reading Brain in a Digital World (Harper, New York, 2018).
**V.G. Cerf and P.T. Kirstein: Issues in Packet Network Interconnection. IEEE Proceedings, Vol.66, No. 11, November 1978, pp. 1386-1408. /30/ L. Evenchick.

24 Jan 2019

Sabendo como e porquê

[dropcap]N[/dropcap]ão há facilidade em nenhuma escrita que se interrogue, não somente sobre o seu objecto como sobre si própria. E, nessa estranha dança entre formas e conteúdos, joga-se mais que uma vida: um momento de discernimento ou um mergulho na boçalidade. E seja: um momento pode valer por uma eternidade.

Aliás, será também a eternidade um momento, por exemplo para Deus, como o é para quem já abandonou este espaço de efemeridades. Tijolo a tijolo, página a página, palavra a palavra, beijo a beijo, aparentemente o tempo passa, embora seja apenas visível no nosso corpo ou na face enrugada da Terra.

Valha-nos a invenção da idade para podermos ir compreendendo um pouco mais as coisas, ao mesmo tempo que o saber acumulado se transforma numa espécie de corrida pela cegueira. Crescer significa, afinal, deixar de ver.

E, sabendo como e porquê, existe o advento da morte, essas pequenas mortes que diariamente nos rodeiam, as mortes ínfimas. De seres e trajectos. De ideias. De mistérios.

Sabendo como e porquê, abandonamos para voltar a encontrar. Existem metamorfoses do descanso no sono insatisfeito. Há um ruído, de dentes rangidos, de onda agigantada para nunca rebentar. Voltaremos a casa e aos espelhos familiares. Ao calor do forno onde se consome a lenha amável. Ao charco fétido, à lama de chocolate onde na infância se reflectia a esguia lua, às cabanas silenciosas, às estradas por asfaltar. A isso tudo voltaremos.

Sabendo como e porquê.

22 Jan 2019

A dupla face do escritor

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que me liga à minha mulher, sem muito custo (embora isto não seja isento de pequenas tensões), para além do óbvio das filhas e das afinidades, foi ela ter aceitado implicitamente que vivemos em adultério e que a minha “legítima” é o isolamento que penhoro na escrita.

A escrita exige esta dimensão da exclusividade, nada saudável, e não admite rival, ou só a espaços quando, por cansaço, nos alheamos mutuamente. Melhor: em tempos normais, na escrita sou polígamo.

Entretanto, não tem nada de humano o desapego a que a escrita nos confina – é o contrário das tretas que ensino em Comunicação Interpessoal, ó meu querido George Bateson perdoa-me lá – e lamento reconhecer que troco um contacto humano de terceiro grau pela escrita de um conto que me satisfaça ( – embora se dissesse o contrário também seria verdadeiro).

Se a disciplina da escrita me trouxe um aparente apaziguamento dos instintos – sou fiel ao “amor único” – é porque na verdade apenas sublimo momentaneamente (e constato como o D.H. Lawrence que está por estudar a força da sublimação), não se espere de mim o menor acatamento dos meus “penchements” selváticos, aprendi apenas a dizer não e a regatear o tempo, sendo certo que se fosse católico estaria frito por pecados de pensamento e omissão.

Na verdade estou, pelo meu lado, absolutamente encurralado pelo egoísmo da escrita que me acua e trepana e devora a pouca inteligência às colheradas, como faz Hannibal aos seus incautos.
Se houver um escritor que diga que se quisesse dispensava esta crueldade é porque ainda não é um adicto, e vive em pura bazófia como um artesão de best-sellers que está carimbado da medula às sinapses pelas fórmulas.

Há, por outro lado, um bocadinho de balela romântica na afirmação de Aragon de que nunca terá escrito uma história de que não conhecesse previamente o desenvolvimento e que terá sido sempre, ao escrever, como acontece ao leitor, que ele contactou pela primeira vez com uma paisagem ou com as personagens de que vai descobrindo o carácter, a biografia e o destino. É uma espécie de heroísmo à rebours. A verdade fica-se pela metade, apesar do mais importante estar de facto no que desconhecíamos antes de ter acontecido a escrita.

Esta ignorância é como uma lapa que simbioticamente se confunde com a pele e nos faz desejar a insegurança de um pensamento em estado nascente, em látego.
Quem conviveu comigo nos jornais durante vinte anos sabe que eu nunca estive “integrado”, sempre um bocado à margem, o que me tornava suspeito, pois quem é que este gajo se julga, pensavam.

Nunca me julguei assado ou cozido, sentia-me apenas em liberdade condicional e um tipo entre comas porta-se de outra maneira e não dá excessiva importância ao que está a fazer. Por isso seria incapaz reunir os artiguelhos e as minhas suspicazes opiniões em livro. Alguns bons artigos hei-de ter escrito, mas irritam-me mais as opiniões que ao Valter Hugo Mãe o Herberto Helder ( – e já repararam como está parecido o escritor com o vate?).

Há antes algo de que padeço e está para além da minha inteligência ou do aparato, e o que faço agora é unicamente um meio, uma travessia.

O melhor só pode estar para vir, posto que nas costas fica o rasto dos meus fracassos. Todos os poemas que publiquei até hoje, todos as narrativas, carecem ainda do ímpeto do arpão do capitão Ahab. Só me resta não parar de lançar o arpão até que da sua ponta nasça a baleia.

Porque o escritor almeja, como lembrava o Proust, embora isso esteja esquecido, inventar dentro da língua uma língua nova, e para que tal enxurrada suceda não são permitidas folgas.
Enfim, mais ao menos. Na verdade, só se entra no “paraíso” pela porta dos fundos, tirem o cavalinho da chuva os que ambicionam lá penetrar pelo portão da frente – só a quem se distrai do seu propósito lhe acontece penetrar.
Permitir esta distracção é o que visam as correntes alternas da vigília. Afinal (como no amor) só lá penetra quem já é transparente.

A muitos títulos preferia viver em Paris do que em Maputo, mas a vantagem de estar em Maputo é que somos irrecuperavelmente o outro e ficamos extensivamente sujeitos à pressão do olhar “nativo” – como irredimíveis estrangeiros. Esta condição mantém no ponto uma tensão que nos situa e não autoriza que alguma vez sejam amorfos os lugares. Ficamos então adequadamente desconfortáveis, gerando-se um clima propício à criação.

É claríssimo que o meu isolamento em Maputo me fez crescer como escritor, que o meu anonimato me desencadeou uma energia nova, que a distância me recuperou o pleno sentido das proporções (ainda que a distância gere equívocos e provoque silêncios e mal-entendidos: quem não me conhece como pessoa e não vê os meus gestos, o meu riso, toma às vezes por literal o que é irónico, pura paródia, e confunde-me com meu personagem momentâneo) e que mesmo em termos humanos ganhei um lastro que não tinha. No fundo, saí da esfera da literatice para a do vivido.

O que visto de fora me parece acrescentar uma pele áspera e insensível, como a do Rinoceronte de Ionesco. Sócios iméritos da vida.

Bom, há duas horas que me mantenho na esplanada, garatujando e lendo, enquanto a Teresa se ocupa das crianças na piscina. Há que ir substitui-la durante um pedaço, dar umas braçadas com as miúdas, ver como a Jade simula o mecanismo das ondas com o chouriço ou sonhar que um dia ouvirei a Luna tocar violino debaixo de água; riremos com algumas partidas durante cinco minutos, até que o chapão de uma boer na água me lembre uma freira a mergulhar num charco de rãs e isso me arranque à piscina para vir anotar num caderno encardido e já de língua de fora mais um cabotino canteiro de flores.

29 Mar 2018