Os sons nunca ouvidos

*por Fa Seong

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]acau, esta pequena cidade próspera e internacional, aparentemente tem tudo: grandes receitas, grandes casinos, grandes edifícios de luxo, segurança social, qualidade de vida (para alguns), pessoas de diferentes países… Mas o facto é que um espaço não pode ser meramente os seus aspectos especiais, os não vulgares, ou que apenas não trilham o caminho comum.
É triste, bem triste, quando ouço que determinadas lojas vão fechar a porta em Macau. Não estou a falar de lojas de marca, nem restaurantes que ofereçam set lunch para aumentar o volume de negócios, mas sim lojas que vendem artigos antigos, produtos criativos e artísticos, ou desta vez, uma loja onde se vendiam discos de música independente. E é este o foco desta minha crónica.
Chama-se Pin-to Música e é (ou era) uma loja escondida no Leal Senado. A entrada e o corredor do edifício onde fica é sempre utilizada por uma sapataria do primeiro andar para colocar cartazes e promover a sua mercadoria “tão barata” (99 patacas). Paisagens que nada combinam com a livraria Pin-to, mesmo no outro lado da sapataria, nem com a loja de música do andar de cima.
Não sei se algum dos caros leitores já teve a oportunidade de ir a essa loja de música, que tem precisamente dez anos de história. A livraria até é conhecida pelas pessoas de Macau – pelos menos todas as vezes que fui lá não fui a única cliente, havia vários outros a escolher livros, a ler livros no sofá ou a brincar com os dois gatos que lá habitam).
Regressei à Pin-to Música há mais de meio ano. O espaço pequeno e super calmo, é um sítio onde se pode ouvir música bem especial: electrónica, Jazz, clássicos experimental… Mesmo que sejam tipos de música que não costumo ouvir nem conheço bem, no momento em que entrei na loja senti-me confortável e especial. Acho que se deve ouvir música sem limites e, com a minha curiosidade de sempre, gosto de conhecer diversos tipos de música.
Mas a página do Facebook da loja trouxe notícias tristes na semana passada. A Pin-to Música vai fechar a porta no fim deste mês, porque o senhorio não renovou o contrato de arrendamento.
“(A abertura da) Pin-to Música foi uma decisão pessoal, caprichosa e inoportuna. Felizmente, nestes anos, a música funciona de acordo com os seus passos. Mas finalmente vamos sair deste pequeno espaço que conseguimos com esforço há dez anos”, escreveu o dono no facebook.
Sem hesitar muito, essa novidade motivou-me a dar mais uma volta à loja. Como de costume, na Pin-to Livros havia vários clientes, mas ao entrar na Pin-to Música, apenas estava a funcionária, sozinha, com a música.
Era para conversar com o dono mas ele não estava, pelo que acabei por falar com a funcionária. Pedi para que me recomendasse uns CDs, preferencialmente de música bem ligeira, e ela apresentou-me uma cantora de Inglaterra e um CD de mistura de piano, guitarra e outros instrumentos.
Durante a escolha, aproveitei para conversar com a jovem funcionária. Para ela, ali não há diferença entre os dias úteis e os fins-de-semana, porque todos os dias são iguais – com poucos clientes. Ela compreende, porque considera que em todo o mundo o mercado de livraria é sempre maior do que o da venda de CDs.
Quis saber qual é o plano depois do fecho da loja, mas a funcionária não quis falar mais sobre isso. Só através do Facebook consegui saber mais. Para o dono, a abertura da loja foi um “acto experimental”. Queria saber como é que neste mercado de música tão pequeno em Macau, as músicas que ele escolhe trazem repercussões ou ressonâncias. Confia que “cada pessoa, desde que aberta a isso, pode sentir a beleza de música” e é possível encontrar amigos do peito mesmo que se goste de música tão pouco popular. E isso tornou-se até o lema que ensinou aos seus funcionários: “apresentar músicas pouco populares com uma atitude amigável”, partilhou no Facebook.
Aprecio muito o espírito do dono: tem recursos limitados e enfrenta este mercado de “lei da selva” (em chinês弱肉強食), mas conseguiu fazer o que gosta, contrariando a regra de criar negócios iguais aos outros e dando, ao mesmo tempo, oportunidade para que sons pouco conhecidos pudessem “estrear” neste território.
“Há quem considere que aquelas músicas são tão insignificantes que não têm nenhuma força de influência, mas para nós deixar aquelas músicas expressarem-se é o significado da abertura da loja”, disse.
Como não sei se posso ainda passear numa loja de música deste estilo comprei ambos os CDs que a funcionária recomendou e tentei mudar um pouco o hábito de, quando quero ouvir música, abrir o YouTube ou uma aplicação no telemóvel. Regressei a um momento que me faz feliz: pôr o CD na aparelhagem durante uma tarde preguiçosa.

15 Jul 2016

Chiu! A malta quer ver a bola!

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]sta semana que amanhã finda teve um sabor diferente para os Portugueses, mundo da Lusofonia em geral e todos os seus simpatizantes (Ola Galicia, mando aquí un gran abrazo!). A noite de domingo para segunda marcou um momento que ficará para sempre guardado na nossa novecentista História como o fim de todos os “eu já sabia, e com eles os “o que é que tu querias?”, e ainda os “não se esperava outra coisa”, já para não falar dos insuportáveis “o contrário é que seria de admirar” – Portugal ganhou uma grande competição internacional futebolística! Não, não foi em Sub-17, Sub-19, Sub-21, Submarinos, nem no torneio de Toulon para os tolos, e nem no insípido, irrelevante e indiferente torneio olímpico (o que já não era mau de todo; era melhor que nada…): foi no Euro! Esse mesmo, o Europeu de futebol organizado pela UEFA, seniores, masculinos e sem ser para cegos, amblíopes e outros deficientes, presidiários, sem abrigo, sacerdotes católicos ou de orientação especificamente LGBT – um Euro a sério! Sim, um desses! Não, não está a sonhar!
Teve graça, por acaso teve. Foi a expressão máxima da ironia, que num torneio onde praticamente a nossa selecção andou duas semanas por França a “apanhar bonés” e sem dar uma para a caixa, acabaria por contornar os Adamastores, e sem dar ouvidos aos velhos do Restelo lá fez da Tormenta esperança, e da esperança certeza. Não fomos tanto assim iguais aos gregos em 2004, como por aí se disse, e talvez as semelhanças se ficassem pelo título conquistado na final frente à equipa da casa, mais nada – e logo por azar fomos nós. Sejamos honestos: ninguém esperava grande coisa dos gregos, que foram como um pobrezinho a quem fazemos sempre uma sandes quando nos bate à porta, ou damos umas roupas que já não queremos, até ao dia quando nos distraímos e o ingrato nos rouba as pratas. Sim, eu sei que esta metáfora pode não ser do gosto de muita gente, mas lá está: não se pode agradar a gregos e troianos.
Nem encontro muitas semelhanças entre esta epopeia com a outra dos dinamarqueses em 92, quando nem se haviam qualificado para o torneio final na vizinha Suécia, mas acabariam repescados por um motivo atroz: a guerra na ex-Jugoslávia, país que tinha ficado em 1º lugar no grupo da Dinamarca. E assim os “vikings” – são todos “vikings” estes dinamarqueses, noruegueses e agora até os islandeses, valha-me Odin para aturar tamanha presunçåø – foi até ali ao lado mostrar a holandeses e alemães como se faz. Um típico argumento de Hans-Christian Andersen com realização de Ingmar Bergman, portanto. Chato, frio, descartável – a nossa aventura foi outra, meus. Foi a vez do “não estamos nem aí”, e mais ninguém senão o nosso capitão poderia ter sintetizado todo este sentimento numa só frase: “Se perdermos, que se faça amor” (versão auto-censurada).
E que final memorável aquela em Paris, meus senhores. Como tivemos garra, e como olhámos o adversário nos olhos sem medos, e podia vir qualquer um que estava ali Portugal; os novos, os velhos, os brancos e os pretos e até um cigano! Tínhamos um madeirense, dos Palopes um de cada se não estou em erro (terá faltado S. Tomé? Moçambique? Who cares?). Até com dois desertores contávamos nas nossas fileiras, um tal “monsieur Adrien” e um outro “monsieur Raphael”, e ainda o Cédric que nasceu na Alemanha, o Pepe que importámos do Brasil, e como cereja no topo do bolo o nosso guarda-redes, que se chama…Patrício. De ir às lágrimas, de tão poético, que até parecia estar escrito que seria desta. E a comandar todo esta macedónia de lusitanidade? O Santos. Tinha que ser com um Santos que íamos lá. Ou com um Silva, ou quem sabe um Antunes, alguém que transmitisse aquela imagem de quem acaba de abrir a tasca e atende os primeiros fregueses do dia enquanto limpa a um pano as mãos que haviam acabado de esquartejar um galinácio: “ Atão o quéque vai ser póchenores? Um eurozito? Então sai um eurozito qué a especialidade da casa”.
Não foi nenhuma tragédia grega, não senhor. Nem o rei ia nu, nem haviam sereias, e só ganhámos um jogo no tempo útil, e depois? Ganhámos o jogo que interessava antes do jogo que decidia, e aí fomos tudo o que nos tem faltado, cum camano. Finalmente fomos grandes na hora de ser grandes. Pelo meio fomos repescados, mal amados, desprezados – e até pelos nossos, e eis os velhos do Restelo para a epopeia ficar completa. Até cheguei a ter pena dos maldizentes, coitaditos, que quiseram dar uma de chicos-espertos que apostam em todos os cavalos menos um, e no fim ganha esse, que à partida até parecia manco e aparentava um ar de que depois da corrida ia directo do Hipódromo para a fábrica da cola. Mas pode ser que esta vitória lhes ensine uma lição, especialmente aos aficionados do pessimismo, aos profetas da desgraça que apregoam os seus ais ao ritmo do velhinho e decrépito faduncho lusitano: “ai como EU sofro”, “ai como EU ganho mal”, “ai como EU sou infeliz”, e depois? Não tem cunha? Tivesse! Não rouba? Roubasse! Se for apanhado? É porque foi burro, e eu não vejo os que estão bem na vida a queixarem-se de como estes adoram arrastar os restantes com eles para a fossa do “ai Jesus como sofro, coitadinho de mim”. Vão lá sofrer para outro lado e não chateiem, que a malta quer ver a bola. E Portugal foi campeão ou não? TOMA!

14 Jul 2016

A Terra do Eu

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m dia, uma grande tempestade acompanhada de um tremor de terra abriu um buraco na terra perto onde um pastor, de seu nome Gyges, apascentava o rebanho. Curioso, entrou buraco adentro para descobrir um sem número de maravilhas. E o corpo de alguém, de aparência importante, que nada mais tinha do que um anel. Esse anel, veio Gyges a descobrir, conferia o poder da invisibilidade, uma faculdade que acabaria por utilizar para entrar no palácio, seduzir a rainha, matar o rei e usurpar o trono.
A história é contada por Platão na “República”, para referir uma tentativa de Glauco em convencer Sócrates a proporcionar uma melhor definição de justiça convencido que estava de que as pessoas só agem com justiça, quando estão preocupadas com a reputação. Ou seja, temem que os seus actos injustos, façam com que os outros lhes retribuam a injustiça. Para Glauco, tanto o justo como o injusto cederiam ao anel da invisibilidade pois esta livra-os da culpa.
Mal comparado, talvez como um par de óculos escuros nos permite atitudes que a sua ausência inibe, pois escondidos os olhos, a mentira sai mais fácil.
O mito de Gyges traz-nos à lida o egoísmo psicológico, todos os homens são egoístas em tudo o que fazem, e o único motivo pelo qual alguém age é apenas o interesse próprio.
Em suma, o egoísmo psicológico, uma tese que argumenta que cada um tem apenas um objectivo: o seu próprio bem estar.
Há mais de uma dezena de anos, ao passar por uma situação menos confortável em Macau, alguém com muitos anos de terra dizia-me para relaxar porque esta sempre foi uma terra boa, solidária, onde todos são ajudados a cair de pé.
Tinha razão. Assim, era. Passado. Para mim, essa história acabou, ou está prestes a cair no esquecimento dos tempos. Essa particularidade que deixava Macau incólume dos egocentrismos que assolam o resto do mundo tem vindo a esvair-se como a areia de uma ampulheta que perdeu o condão de se virar.
Noto eu, mas também tenho notado em várias entrevistas a pessoas comuns da terra que vão surgindo na imprensa. Quando instados a compararem os dias de hoje com um passado não muito longínquo, a falta de solidariedade que era tão normal como o ar que se respirava nota-se recorrentemente como um dos principais factores diferenciadores dos tempos.
Terra de egos, onde os que podem criam impérios mais ou menos minúsculos, quiçá para se sentirem grandes na pequenez que os rodeia, Macau tem conseguido transformar-se nessa cidade moderna, e não direi humana porque cada vez menos acredito nas qualidades beatíficas dessa espécie a que eu próprio pertenço.
Somos assolados pelo barulho de brocas, em casa e no trabalho, porque o dono da obra prefere partir o chão ou as paredes a arranjar uma solução de decoração alternativa. Engarrafamo-nos em longos minutos para percorrer distâncias ridículas porque alguém parou em segunda fila, a obra foi mal planeada ou ninguém lhe aprouve parar na grelha amarela. Atabafamos em gases de carros porque toda gente quer andar de cu tremido numa terra que o saudoso padre Teixeira corria diariamente de lés a lés. Tememos ficar a gemer sozinhos no meio da rua porque ninguém quer ter problemas, sofremos com patrões iníquos que tomam decisões a seu bel-prazer porque sabem que os Serviços Laborais não vão levantar uma palha, levamos com maus serviços de empresas porque o Conselho dos Consumidores não serve para coisa nenhuma, vemos o ambiente degradar-se à nossa volta porque ninguém fiscaliza os prevaricadores (a menos que estejamos a falar de fumadores), assistimos a episódios de racismo diário porque na terra da harmonia isso nem sequer faz sentido, vemos ideias usurpadas porque ninguém protege os autores…
É como se um deus gozão tivesse despejado um saco de anéis de Gyges num desses dias de temporal para ficar a gozar o prato, ou, se calhar, foi mesmo Glauco que continua, lá no além, a teimar com Sócrates que a teoria dele é válida para toda a eternidade e nem Macau, essa terra pacata onde as pessoas ainda tinham uma réstia de decência, conseguiu resistir na sua ânsia de ser moderna.
Às vezes interrogo-me se percebemos mesmo que a morte é o único destino certo.

Música da semana

“There Is A Happy Land” (David Bowie, 1967)

There is a happy land where only children live
They don’t have the time to learn the ways Of you sir, Mr. Grownup
There’s a special place in the rhubarb fields underneath the leaves
It’s a secret place and adults aren’t allowed there Mr. Grownup,
Go away sir
Charlie Brown got’s half a crown, he’s gonna buy a kite

13 Jul 2016

Asfixia

[dropcap style≠’circle’]À[/dropcap]s vezes sentimo-nos asfixiados, por várias razões. Levamos uma vida que asfixia a nossa criatividade ou o nosso prazer. Tentamos ser humanos e tentamos inserirmo-nos nas normas bem estabelecidas, nas normas que deveriam guiar o nosso pensamento e a nossa acção. Asfixiamo-nos a nós próprios e, com sorte, apercebemo-nos quando ainda não é tarde demais. Há sempre qualquer coisa a asfixiar-nos, com o trabalho chato, com o patrão que é pouco razoável, com as memórias que nos atormentam, com os traumas que não desaparecem, com os filhos que choram e não percebemos porquê. Asfixiamos a nossa sexualidade porque tentamos ser normais, ou às vezes asfixiamo-nos mesmo, literalmente.
A asfixia erótica ou (autoerótica) tem os seus primeiros registos no século XVII quando se começou a reparar que homens condenados à forca tinham muitas vezes uma erecção no momento da morte. O mecanismo de supressão de sangue ao cérebro estimula sensações de prazer e facilitadoras do orgasmo e, por isso, houve quem usasse a técnica de asfixia para o tratamento de disfunções erécteis. Mas não só, os curiosos do sexo experimentavam-no sozinhos e acompanhados. Mas atenção que este fetiche (que é considerado uma parafilía) pode levar à morte acidental. Para um adepto de bondage, a ideia de ter alguém a apertar o seu pescoço é excitante o suficiente, os outros praticantes dependem da questão fisiológica: a asfixia erótica pode ser tão viciante como a cocaína. Orgasmos exaltados pela ausência de sangue no cérebro.
Desconfia-se que a primeira morte acidental por asfixia erótica tenha sido de um homem que, de facto, pediu assistência profissional para levar a cabo a experiência – uma prostituta de uma Londres de alguns séculos atrás – mas que gostou tanto que decidiu continuar, mesmo depois de ela ter-se ido embora. Sozinhos somos menos capazes de travar o que é que seja que provoque a asfixia. Estima-se que acidentes desta natureza sejam frequentes, mas nem sempre são identificados. Para os adolescentes que são encontrados mortos com os órgãos genitais em mão e pornografia ao lado, a família tende a ‘limpar’ o cenário, para que a sua última imagem não seja tão sexualizada.
Mas a asfixia pode culminar das mais variadas circunstâncias – talvez vinda de um campeonato europeu de futebol? São jogos futebolísticos que para além de causadores de stress, não permitem o oxigénio circular livremente no corpo. Uma tensão (e asfixia) não erótica, no verdadeiro sentido do termo, mas potencialmente sexy. Jogadores a correrem de pernas ao léu de lá para cá, de cá para lá, com o calor do verão a fazer-nos transpirar que nem porcos, mas a guinchar de excitação. Chutos e pontapés mal dados que fazem saltar um batimento cardíaco, acoplados de sorrisos que nos fazem ter esperança…
A asfixia pode ser tanta coisa, na prática e no conceito. Contudo, só pode ser exercitada com cuidado (muito cuidado), e às vezes com algum entusiasmo. Nos últimos dias desta pobre alma que vos escreve, a asfixia tem sido a descrição básica diária. Mas, quem poderia adivinhar? Portugal ganha o Campeonato Europeu de Futebol e parece que nada mais importa. Na asfixia quotidiana e (ocasionalmente) sexual, o alívio de ter um orgasmo prevalece, e aquela soneca pós-coito impõem-se, como sempre, com sonhos de vitória.
Depois de doze anos a suster a respiração pelos 11 (mais pelos jogadores e menos pelos milhões), já podemos respirar de alívio. Já se alcançou o objectivo, já vimos os meninos jeitosos a abanarem os bícepes sem camisa. O orgulho da diáspora Portuguesa exaltou-se! Usam-se camisas vermelhas e verdes, ou ‘verde bebés’.
A expansão e a retracção de oxigénio mal explicada pelo futebol, contribuí para a popularidade do jogo, onde se usa uma bola (e não duas). Especialmente, enquanto analisava asfixia erótica ( assuntos sérios!) – algo aconteceu em Paris que deixou o pessoal contente, até a mim. Dedico, por isso, o que é que seja de sexo, ao futebol de Portugal. A asfixia fica para a próxima.

12 Jul 2016

Médicos de Hong Kong enfrentam mudanças

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 8, o website “www.scmp.com” anunciou a conclusão da discussão da adenda à proposta de lei sobre o “Registo de Médicos”. Foi resultado de uma Segunda Leitura, que teve lugar no Conselho Legislativo de Hong Kong. Está concluída mais uma etapa do processo inerente à aprovação da proposta de lei. Mas, de facto, não são notícias por aí além, porque apenas 32 horas separam este elenco legislativo do final do seu mandato. No caso de não se conseguir concluir todos os procedimentos necessários à aprovação da proposta de lei, o novo Conselho Legislativo, que tomará posse em Setembro, terá de pegar no processo a partir da estaca zero. Todo o trabalho desenvolvido pelo actual Conselho terá sido em feito em vão.
Uma das razões que justifica a lentidão da discussão da proposta de lei, assenta numa campanha de obstrução desencadeada pelo Dr. Leung Ka-lau, o delegado responsável pelo sector da saúde. Leung pediu constantes adiamentos à discussão.
“O processo vai ser demorado. O debate continuará na próxima reunião do Conselho Legislativo, a realizar quarta-feira” declarou o Ministro da Saúde, Dr. Ko Wing-man.
A proposta pretende atrair mais leigos para o Conselho Médico de Hong Kong, que passará a ter um total de 32 membros. O Governo espera que esta proposta de lei aumente a credibilidade deste Conselho, sobretudo no que respeita à capacidade de gerir e dar resposta às queixas de mau atendimento médico. Os grupos que defendem os direitos dos utentes também estão a favor de uma maior transparência.
Um dos casos que provocou mais celeuma foi a morte do filho do conhecido cantor Peter Cheung e da famosíssima Eugina Lau. Este caso data de 2005. O bebé morreu 24 horas após o nascimento. O casal apresentou queixa ao Conselho Médico, acusando o médico assistente de negligência. O julgamento só teve lugar em Maio de 2014, nove anos após o sucedido.

O resultado da Segunda Leitura da proposta de lei expressou-se da seguinte forma, 53 votos a favor, 8 contra e 4 abstenções. Este resultado indica que existe uma forte probabilidade de a proposta ser aprovada durante a sessão da próxima semana.
Actualmente existem cerca de 13.000 médicos em Hong Kong. O Conselho Médico é composto por 28 membros, metade dos quais são eleitos pela classe médica, sendo os restantes indigitados pelo Governo. A proposta de lei pretende a criação de mais quatro membros, a serem indigitados pelo Governo e provenientes de áreas não relacionadas com a saúde, ficando assim em minoria os membros eleitos pela classe.
Todos sabemos que para se ser médico é preciso estudar imenso. Não é qualquer um que o consegue. Em Hong Kong, são necessários pelo menos seis anos para formar um médico e durante este período os estudantes desfrutam apenas de um mês de férias anuais. Para além disso os médicos estão sujeitos a uma enorme quantidade de normas que regulam as suas condutas profissionais. Ficando em minoria no Conselho Médico, a autonomia da classe será afectada. É, pois, compreensível o seu mal-estar.
Um dos deveres do Conselho Médico é a definição de modelos processuais. Estes modelos não são apenas académicos, estendem-se às competências profissionais. Este corpo de conhecimentos e capacidades não será facilmente entendido por um homem de leis. É por este motivo que o melhor regulador de qualquer classe profissional é um organismo constituído pelos seus próprios membros. Neste sentido, a indigitação de quatro elementos oriundos da área do Direito, não será útil ao Conselho Médico.
Agora analisemos o ponto de vista do público em geral. O vulgar cidadão está alheio às dificuldades e exigências da profissão médica. Mas o senso comum diz-lhe que não é normal um caso como o de Peter Cheung arrastar-se durante nove anos. Talvez este caso tenha sido uma excepção, no entanto o website “www.hk.on.cc” publicou mais números no dia 29 do mês passado. Estes números demonstram que é preciso esperar pelo menos 17 meses para dar início a uma investigação por negligência médica. Se a situação envolve procedimento disciplinar contra o médico, então será preciso esperar mais 41 meses. Por outras palavras, vão ser necessários 58 meses para concluir uma queixa contra um médico. Será este tempo aceitável para o público em geral?
Se a proposta de lei for aprovada, mais de metade dos membros do Conselho Médico passará a ser indigitada pelo Governo. O medo de que o Governo passe a controlar o Conselho é compreensível. Alguns comentadores também sugerem que o objectivo deste controlo é diminuir a exigência nos exames de admissão, de forma a que médicos vindos de outros lugares, especialmente da China continental, pudessem vir a ser admitidos em Hong Kong. Com esta entrada de médicos vindos do exterior, o número destes profissionais aumentaria bastante em pouco tempo e a falta de médicos nos Hospitais de Hong Kong poderia ser resolvida rapidamente.

Mais uma vez todas estas preocupações são compreensíveis, mas parece que até ao momento, não existem provas claras de que seja este o objectivo do Governo.
Colocar mais quatro homens de leis no Conselho Médico poderá fazer aumentar a confiança do público, mas acabará com a “confiança mútua” entre o Governo de Hong Kong e a classe médica. As próximas duas semanas vão ser determinantes para o Governo fazer um balanço entre os interesses da classe médica e a confiança do público.
Como Macau vai criar em breve a sua própria Faculdade de Medicina e um Conselho Médico, este caso pode servir de exemplo para ponderar as diversas questões com antecedência.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

11 Jul 2016

Terras: lei nova, razões antigas

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s concessões atribuídas a 14 lotes de terreno nas Zonas C e D do Lago Nam caducam ao cabo de 25 anos, mais precisamente em finais de Julho. A posse dos terrenos passa para o Governo da RAEM. Na sequência da decisão, as empresas detentoras das concessões agendaram uma audiência pública, que esteve marcada para Junho, mas que foi entretanto cancelada. A audiência foi reagendada para 5 de Julho (terça-feira) e rebaptizada de “Seminário sobre o impacto da Nova Lei de Terras nos investimentos, na economia e na sociedade macaenses”. Acrescente-se ainda que, o deputado Gabriel Tong Io Cheng, professor de Direito, apresentou uma moção na Assembleia Legislativa, onde exigia esclarecimentos sobre a Nova Lei de Terras, sem esperar que o Chefe do Executivo para tal tivesse dado permissão. A moção foi apresentada para figurar como adenda à Nova Lei de Terras. A fim de decidir se a moção de Tong está em conformidade com o Regimento da Assembleia Legislativa e com o poder da iniciativa legislativa dos deputados, estipulado na Lei Básica, o presidente da Assembleia Legislativa, Ho Iat Seng, enviou o documento para análise dos conselheiros jurídicos da Assembleia. A moção apresentada por Tong inclui uma particularidade, o prazo retroactivo, a contar a partir da data da entrada em vigor da Nova Lei de Terras. Expliquemos por outras palavras, os lotes de terrenos tomados pelo Governo da RAEM ao abrigo da lei durante esse prazo, por não terem sido aproveitados para construção no período designado para tal, podem ter as concessões renovadas. Este processo envolverá interesses financeiros na ordem de biliões de patacas e incontáveis processos legais. Se for avante, os esforços para solucionar os problemas levantados pelos terrenos desocupados terão sido feitos em vão.
De acordo com o parecer N.º 3/IV/2013 da 1.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa sobre o Artigo No. 48 (Renovação de Concessões Provisórias) da Nova Lei de Terras, afirma-se “estabelecendo a comparação com a lei vigente, foi aditado este artigo, que prevê expressamente que, em princípio, as concessões provisórias não podem ser renovadas. No entanto, a concessão provisória pode ser renovada a requerimento do concessionário e com autorização prévia do Chefe do Executivo, caso o respectivo terreno se encontre anexado a um terreno concedido a título definitivo e ambos estejam a ser aproveitados em conjunto. …. O proponente esclareceu que, no sentido de dar cumprimento ao princípio de aproveitamento útil e efectivo dos terrenos, prevê-se que a não concessão provisória pode ser renovada. No entanto, há que ter em conta, na prática, surgem situações em que o concessionário é compensado com pequenas parcelas de terreno devido ao facto de o Governo ter ocupado, para arruamentos, parte dos seus terrenos de concessão definitiva em reaproveitamento, assim, definiram-se disposições excepcionais para os casos em que os terrenos de concessão provisória são anexados a terrenos de concessão definitiva e ambos estão a ser aproveitados em conjuntos. A Comissão manifestou o seu acordo em relação a esta intenção legislativa, todavia, durante a discussão, alguns deputados levantaram questões… segundo os esclarecimentos do proponente, o objectivo é a fiscalização intensiva sobre o aproveitamento dos terrenos concedidos, por isso, insiste se a concessão provisória não pode, em princípio, ser renovada. Excepção para a situação em que um terreno de concessão provisória seja anexado a um terreno concedido a título definitivo e ambos estejam a ser aproveitados em conjunto. No entanto, não vão ser considerados quaisquer outros casos excepcionais …. A Comissão manifestou o seu acordo em relação à explicação e às respectivas alterações introduzidas pelo proponente”.
Por este trecho os leitores podem entender facilmente os motivos que determinaram a criação da Nova Lei de Terras. O deputado Leonel Alves, que esteve presente no seminário de 5 de Julho (terça-feira) era membro da Comissão Permanente da Assembleia Legislativa e encarregue do exame na especialidade da Lei de Terras.
Em resposta à opinião expressa por alguns participantes no seminário de que “os deputados legislavam a favor do açambarcamento de terrenos”, Leonel Alves afirmou : “discordo totalmente desta opinião, até porque estive envolvido na elaboração da lei”. Se nos reportarmos à I Série. N.º IV – 108 do Diário da Assembleia Legislativa, encontramos os registos do exame na especialidade das diferentes propostas de lei, que decorreu na Assembleia Legislativa a 9, 12 e 13 de Setembro de 2013. Desde a página 73 à 82, constam em detalhe as discussões e as votações do exame na especialidade dos Artigos 41 a 63 da Lei de Terras. Nesta discussão os deputados Au Kam San, José Pereira Coutinho, Ng Kuok Cheong, Cheang Chi Keong, Chan Wai Chi, Tsui Wai Kwan and Mak Soi Kun manifestaram as suas opiniões. A discussão focou-se na alínea 1) do n.º 2 do artigo 55 (Dispensa de concurso público) e no Artigo 57 (Prémio). No entanto nenhum deputado apresentou qualquer reclamação sobre a Renovação de Concessões Provisórias. No final, o Presidente da Assembleia Legislativa presidiu à votação em separado destes dois artigos e à votação geral dos artigos 41 a 63. Os artigos foram todos aprovados na votação. Os deputados são apenas responsáveis pela elaboração das leis e não pelo “açambarcamento de terras”. O Governo da RAEM só toma posse de terrenos em cumprimento da lei não procede ao “açambarcamento de terras”.
Os factos falam por si. As razões que determinaram a elaboração da Nova Lei de Terras são muito claras. Já quanto aos motivos que levaram a que fosse apresentada a moção de esclarecimento sobre “a concessão provisória não poder ser renovada”, peço aos leitores que me elucidem, porque eu sozinho não chego lá.

8 Jul 2016

Animais e outros que tais

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]í está a famigerada lei da protecção dos animais, finalmente aprovada após um bom par de anos de discussões, hesitações e reprovações. O diploma passou na Assembleia Legislativa com os votos a favor de quase todos os deputados, com excepção de dois que votaram contra e uma abstenção, havendo ainda um deputado que esteve ausente deste momento verg…verdadeiramente histórico. O deputado ausente foi Ma Chi Seng, e os dois votos contra foram de Pereira Coutinho e o seu colega de bancada Leong Veng Chai, com o primeiro a justificar-se com as “deficiências na redacção da versão em português da lei”. Quero acreditar que sim, que terá sido esse o motivo porque o deputado votou contra, e que não o fez por mero despeito – recorde-se que Coutinho havia apresentado propostas de lei idênticas a esta, que foram no entanto reprovadas pelos seus colegas de hemiciclo que tanto o estimam. Fosse o sarcasmo um mamífero senciente, e estava agora metido num grande sarilho, por dele ter “abusado”.
Esta ideia da redacção deficitária da lei foi corroborada por Leonel Alves, que se absteve pela mesma razão que Coutinho votou contra, o que levou a sra. Secretária para a Administração e Justiça a prometer uma revisão atempada da versão portuguesa do diploma. Infelizmente sou induzido a pensar que a lei podia até ter sido elaborada por uma criança semi-alfabetizada, e passaria na mesma, uma vez que foi o Governo a apresentá-la. Em teoria o órgão legislativo tem entre outros o dever de fiscalizar o órgão executivo, mas em Macau a teoria fica por isso mesmo, e na prática o que se passa é…”um caso exemplar de coordenação” entre os dois poderes. Vá lá, se não for com um bocadinho de humor a empurrar, fica muito mais difícil de digerir.
Confesso que para falar deste tema fui rever o artigo que escrevi nas páginas deste mesmo jornal a 20 de Fevereiro de 2014, aquando de uma das “negas” à proposta de Pereira Coutinho, e nem de propósito verifiquei que na conclusão deixei expressa essa mesma ideia: de que uma eventual lei deste tipo dependeria da iniciativa do Executivo. No entanto há a reter as intervenções de alguns deputados, que mais uma vez deram a entender que a sua “praia” é outra. Podiam abster-se de proferir certas afirmações que em nada os dignificam, mas alguns até se parecem divertir com aquilo que consideram “inútil” – afinal os cães e gatos não votam.
E é sobretudo de cães e gatos que se trata esta lei, se deixarmos de fora os preciosismos. O nº 1 do artº 8º, por exemplo, determina que a utilização de animais em circos, exposições e espectáculos ao público (sic) carece de autorização prévia do IACM, com excepção dos peixes. Podem ficar descansados os domadores de bacalhau e restantes carapaus de corrida. Li as partes que interessavam do diploma – até às disposições finais e transitórias, portanto – e não me pareceu tão mal elaborado assim. Quer dizer, pareceu-me “normal”, sabendo o que a casa gasta. No entanto aprendi uma palavra nova: “occisão”. Por instantes fiquei a interrogar-me o que tinham os habitantes do sul de França (os occitanos) a ver com os bicharocos desta jurisdição tão distantes, mas depois vim saber que esta é a versão animalesca de “assassinato”, e mais aliviado fiquei quando o próprio dicionário me garantiu que se tratava de uma palavra “pouco usada”.
Mas é disto que a lei se trata no essencial: criminalizar o abandono e os maus tratos aos animais, com multas até 100 mil patacas e penas de prisão até dois anos, respectivamente. Se no primeiro caso fica tudo claro como a água, pois no caso dos cães existe um “chip” implantado no animal que identifica o dono, no segundo caso muda tudo de figura. Primeiro é preciso entender que esta lei não foi feita para os cães e gatos. Por muito que certas pessoas insistam em atribuir aos bichos sentimentos como a nostalgia ou qualidades como o ouvido musical, não convencem ninguém de que estes seres irracionais conseguem assimilar o conceito de “lei”, e de que esta em particular foi feita para eles, e de que se podem socorrer da mesma caso seja necessário. Isto tudo para dizer que o crime de maus tratos a animais não depende tanto de queixa, mas mais de denúncia.
É aqui que entra a questão da sensibilidade de cada um para este tipo de coisas, pois há quem relativize um pontapé numa galinha, e há também quem queira boicotar a Irlanda por causa das corridas de galgos (para bom entendedor…). Não conheço ninguém que maltrate animais por prazer, mas talvez seja por culpa própria, pois não frequento os mesmos locais que os sádicos e os psicopatas que se excitam com o sofrimento de outros seres vivos. Posto isto, não é despiciendo ponderar a hipótese da tal “denúncia” ser feita em moldes que podem variar conforme quem denuncia. Há quem veja um indivíduo tropeçar num cachorro por acidente no momento em que o bicho se atravesse à sua frente quando ia a sair de casa, e há quem veja um biltre que esperava que o pobre animal passasse pela sua porta para lhe saltar em cima e espezinhá-lo. Louvada seja a lei, que protege os animais irracionais da eventual sacanice de outros que às vezes se esquecem que são racionais. Mas quem protege os verdadeiramente racionais da ira dos que teimam em comportar-se como irracionais?

7 Jul 2016

Hotel Estoril – Carta aberta ao Secretário Alexis Tam

Carta Aberta ao Ex.mo Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura do Governo da Região Administrativa Especial de Macau

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]x.mo Secretário Executivo para os Assuntos Sociais e Cultura,
Remonto à notícia publicada nos jornais da RAEM em 6 de Junho de 2016, onde se divulgou que, “por uma questão política, o projecto do Hotel Estoril deixaria de ser entregue por ajuste directo a Siza Vieira, já que muitos arquitectos locais manifestaram interesse em participar no processo de requalificação da zona do Tap Seac, o que só seria possível com um concurso público”, e venho muito respeitosamente levar ao conhecimento de V. Ex.cia o seguinte:
1. O interesse manifestado por arquitectos locais no projecto para o local do antigo Hotel Estoril, que determinou a retirada do convite de V. Ex.cia feito ao arquitecto Siza Vieira, imbui-se em sentido de suplante de outro arquitecto numa tarefa profissional, que os membros da comunidade profissional não estão autorizados a intentar.
2. Foi esse o sentido do voto da comunidade de arquitectos de Macau, representada pela Associação de Arquitectos de Macau (AAM), em Assembleia Geral da União Internacional dos Arquitectos (UIA) de 1996, Barcelona, reiterado em Pequim, em 1999, em matéria de standards profissionais, entre outros, que:
“Os arquitectos não devem tentar tomar o lugar de outro arquitecto numa tarefa profissional”,
3. A modalidade de concurso público de arquitectura reserva-se às obras onde o interesse do Dono de Obra não reside na sua afinidade com um determinado arquitecto, mas antes na melhor solução que possa ser acolhida de entre várias propostas.
4. Todavia, para a iniciativa que envolve o antigo Hotel Estoril, a RAEM já expressara afinidade com um arquitecto, nomeadamente consultando e usando o bom nome do arquitecto Siza Vieira, fazendo disso contrapartida pública.
5. A possibilidade anunciada de um novo convite extensível ao mesmo arquitecto, mas já no âmbito de um concurso público, também não harmoniza a retirada do convite inicial, antes coloca o mesmo arquitecto no embaraço de recusar tal convite, caso os novos termos não sejam aceitáveis ou não sejam do seu interesse.
6. Como também, as regras típicas de ingresso nos concursos públicos de arquitectura não permitem a participação de concorrentes que tenham tido intervenção ou contacto com o mesmo programa ou objecto de estudo, e naturalmente pressupõem que a realização do concurso não vá suplantar outros arquitectos em tarefas profissionais.
7. Situações que competem às associações profissionais supervisionar e que, verificando-se, regulam-se pelo standard 5.6 do diploma mencionado na mesma nota1 acima, i.e.:
“Os arquitectos não devem participar em quaisquer concursos de arquitectura declarados inaceitáveis pela UIA ou pelas suas secções nacionais”,
8. Por outro lado, desde o estabelecimento da RAEM, lamentavelmente, não existe obra de arquitectura construída na RAEM que tenha resultado de concurso público de arquitectura.
9. Isso sequer se deveu à falta de concursos, mas antes ao facto de que todos os concursos públicos de arquitectura lançados na RAEM foram abortados na sequência de vícios, ou não tiveram prosseguimento ao abrigo da disposição de não adjudicar que as entidades organizadoras reservaram.
10. E correram mediante declaração exigida aos participantes, em como os mesmos autorizam que as suas ideias possam ser incorporadas gratuitamente em outros projectos, i.e. que outros se apropriem de acervo intelectual, e que esse uso sequer seja oneroso.
11. Por isso, a expectativa de o concurso público de arquitectura ser “mais transparente” para a adjudicação de obra pública de arquitectura, é cenário que nunca teve resultado na RAEM e é confiança que não assiste.
12. O interesse de participação expressado a V. Ex.cia por arquitectos pauta-se antes pela legítima expectativa em realizar obra de aquitectura, mas tal expectativa não se concretiza retirando convites já feitos, envolvendo profissionais em concursos que não têm resultado, em moldes que se revelam hostis à própria comunidade profissional.
13. A polémica anterior em torno do Hotel Estoril emergiu em sentido de opinião sobre os conteúdos programáticos da iniciativa, mas a polémica que suscita a retirada do ajuste directo com um arquitecto, a pedido de outros arquitectos, já se revela em sentido estrutural. Testa a sociedade de matriz humanista e os seus dirigentes, e aflige a profissão de arquitecto que teve origem nessa matriz de sociedade e que dela depende.
Assim, suscita-se o empenho de V. Ex.cia em harmonizar o convite já efectuado ao arquitecto Siza Vieira e o interesse expresso por arquitectos da RAEM, i.e. de participar no processo de requalificação da zona do Tap Seac, que não se limita ao lote do antigo Hotel Estoril, porque o que se decidiu derradeiramente não contribui para o bom nome da RAEM e dos arquitectos da RAEM, não serve de orientação para a comunidade profissional, sequer se antevê quais os benefícios que uma comunidade profissional ou a RAEM possam daí retirar.

Cumprimenta respeitosamente,
Delft, 4 de Julho de 2016

Mário Duarte Duque

6 Jul 2016

Humor Britânico

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] saída do Reino (ainda) Unido da Comunidade Europeia é, provavelmente, dos melhores episódios de humor britânico dos últimos tempos.
Tudo tem piada. As tiradas do Homem B, também conhecido por Boris Johnson, e a sua retirada de cena após ter ajudado a pegar fogo ao mato é de partir a rir. Também não deixam de ter piada as declarações do seu companheiro de folguedos, Nigel Farage, que depois de ter andado em campanha com um autocarro vermelho onde se lia em letras garrafais que os 350 milhões de libras que o Reino Unido enviava por semana para a Europa iriam para prover o Serviço Nacional de Saúde, no dia imediatamente a seguir à votação confessou ter sido um exagero de campanha com o qual não concordava, nem sequer podia garantir tal coisa.
Agora demitiu-se porque já ter conseguido o que queria, mas não sem dizer que continuaria sentado no Parlamento Europeu. Humor do melhor.
Não menos divertida foi a reacção de muitos britânicos após o resultado do referendo. Como se tivessem passado a noite no pub a enfrascarem-se e no outro dia acordassem ao lado do diabo da Tasmânia.
Mas a onda de humor ultrapassou as fronteiras do reino ilhéu e chegou aos sisudos alemães. Ou seja, não vejo outra forma de explicar duas coisas: primeiro a corrida da Merkel ao convocar o núcleo dos fundadores como se isso tivesse algum valor institucional e, depois, quando ela vem garantir, que nem rainha de Inglaterra, que o referendo britânico era irreversível.
Ou achamos piada ou então apercebemo-nos de forma vívida porque é que os ingleses, e muitos outros, estão fartos desta Europa.
Mas a piada maior ainda é o facto de praticamente toda a campanha do “sai” ter sido baseada num chorrilho de mentiras. Senão vejamos, ponto por ponto, os grandes argumentos dos secessionistas:

1. Queda nos níveis de imigração
Ninguém na campanha deu quaisquer valores alvo a atingir. Nunca. Para além disso, a grande maioria dos imigrantes não vêm da UE mas sim de ex-colónias britânicas. Até o deputado conservador Dan Hannan disse que as pessoas que esperam ver a imigração descer vão ficar “desapontadas”.

2. Os milhões extra para o Serviço Nacional de Saúde.
Já se sabe que era mentira. Farage dixit.

3. Permanecer no mercado único.
A sério? A noiva fica no altar e depois vai tomar chá e bolinhos com o amante que a deixou? Alguém acredita nisso? Basta ver as reacções dos lideres europeus. Quem vai querer criar um mau exemplo para que outros sigam?

4. Soberania de volta.
Primeiro nunca a perderam e o que vão ter é um novo primeiro-ministro não eleito.

5. Líder mundial em pesquisa e desenvolvimento
Os investimentos do Reino Unido em ciência e universidades caíram desde a recessão. Para além disso, o Reino Unido recebeu 7 mil milhões de libras em financiamento da UE, só para ciência, entre 2007 e 2013.
Isto para não referir que a grande maioria dos principais cientistas britânicos, onde se inclui Stephen Hawking e os membros todos da Royal Society de Cambridge, entre muitos outros, terem assinado uma carta a dizer que o Brexit seria um desastre para ciência britânica.

6. Poupar 2 mil milhões de libras em energia
Prometeram acabar com o IVA nas contas de energia doméstica. É possível mas não vai poupar dinheiro nenhum porque a maior parte da energia consumida nas ilhas é importada e, com a queda da libra, isso significa… inflação, ou seja, electricidade mais cara.

7. Uma Grã-Bretanha maior
Logo a seguir ao resultado do referendo a economia do Reino Unido caiu de quinta maior do mundo para sexta com mais de 200 mil milhões de libras varridas do mercado accionista. Ou seja, um valor igual ao das contribuições do Reino Unido UE durante 24 anos!

Humor do melhor. “Nonsense” na sua melhor forma.
Somado a tudo isto está a ameaça da Escócia de se libertar de vez dos ingleses e até as Irlandas, num caso sui-géneris, falam unir-se e deixar os ingleses e os galeses a falarem sozinhos.
A questão deixa de ter piada quando se percebe o impacto que estas decisões levianas têm na vida de milhões, entre residentes e não residentes, para além dos impactos que se têm vindo a sentir um pouco por todo o mundo.
Pessoalmente, acho que não vai acontecer Brexit nenhum porque o referendo é meramente indicador e o famoso artigo 50, uma obra prima da legislação, vago e que não deixa ninguém perceber como se gere, de facto, a saída de um estado membro, só pode ser accionado após aprovação no parlamento.
Terão os deputados conservadores coragem para accionarem o botão de implosão do Reino Unido? Tenho sérias dúvidas.
Mais não seja, os quatro milhões que já assinaram uma petição a pedir novo referendo (mais gente do que a diferença de um milhão que ditou o resultado) devê-los-ão fazer pensar duas vezes.
Um ponto positivo no meio disto tudo, apesar de potencial: pode ser que este abanão sirva para que a UE se reforme e medidas para aumentarem os níveis de transparência e democraticidade da união sejam tomadas. Talvez seja pedir muito, talvez não.
Juncker anda doido a querer acabar com a comissão e parece que começa a surgir uma tendência para unir mais ainda a Europa. O euro continua a ser um engulho também e muito ainda se irá passar nos próximos tempos. Mas com Brexit ou sem ele nada ficará igual, à excepção daquele gosto amargo que nos fica quando percebemos que andamos a ser governados por uma cambada de inconscientes meninos da escola.

Música da Semana

“Who Can I Be Now? – David Bowie (1975)

Please help me
Who can I be now? You found me
Who can I be? Fell apart, you found me
Now can I be now? You found me
Now can I be real? Can I be?

Who can I be now? You found me
Who can I be? Fell upon, you found me
Now can I be now? You found me
Now can I, can I be real? Can I be real?
Can I be real? Can I be?
(Who) can I be?
Yeah, yeah
(Now) Yeah, can I be (now)?
You found me
(Now) can I be free?
Can I…

6 Jul 2016

O sonho que se desvanece

“Probably the most important element for the UK is the extent to which the UK state can establish favourable tax and regulation conditions for competition and entrepreneurship; because of this, in leaving the EU we avoid many damaging features of EU intervention and this will be beneficial, regardless of the structure of trade. The most desirable option is a new treaty with the EU that largely withdraws from EU joint arrangements but collaborates on particular issues of common interest, such as rights of migration, free capital movements, and possibly trade agreements on particular industries like cars where there is large-scale cross-investment. Of course political cooperation will continue in areas of mutual interest as with all our allies.”
Should Britain Leave the EU? An Economic Analysis of a Troubled Relationship
Patrick Minford

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]possível fim do sonho europeu, fez que os cidadãos britânicos fossem votar a 23 de Junho de 2016 num referendo que decidiria se o Reino Unido continuaria “Bremain” ou não “Brexit”, como Estado membro da União Europeia (UE), decidindo desse modo, qual o futuro que desejavam para o seu país. O eventual “Brexit” seria o primeiro caso de saída de um país da UE. O “Brexit” venceu por 51,9 por cento contra o “Bremain” com 48, 1 %, e uma taxa de participação de 72,2 por cento. A chegada ao referendo tem por detrás uma história de desamor entre o Reino Unido e a Europa, que explicam os argumentos esgrimidos pelas duas partes, bem como as consequências para o país e além das suas fronteiras.
A palavra “Brexit” para o Reino Unido é saída e entrou por analogia com outro conceito, o de “Grexit”, ou o cenário hipotético da saída da Grécia da zona euro afectada pela crise económica, e ao mesmo tempo circulava nos meios de comunicação social, uma palavra cujo significado, é o oposto da primeira palavra, sendo “Bremain”, um acrónimo para “Britain” e “remain” (permanecer). A desconfiança dos britânicos, em relação ao projecto de integração europeia não é nova. A França, Alemanha, Itália, Holanda, Bélgica e Luxemburgo assinaram o Tratado de Roma, em 1957, que criou a Comunidade Económica Europeia (CEE), antecessora da UE.
Os seis países, convidaram o Reino Unido para participar nas negociações prévias, tendo rejeitado o convite e ameaçado de boicotar o projecto, oferecendo um plano alternativo. Nos anos seguintes, dado o sucesso da nova associação e do declínio britânico, o Reino Unido constatou que tinha cometido um erro, e pediu em Julho de 1961 para se juntar à CEE, mas a sua adesão foi vetada pela França. O Reino Unido conseguiu finalmente aderir à CEE, em 1973, mas passado muito pouco tempo, a opinião pública britânica encontrava-se dividida acerca das vantagens e desvantagens da adesão e em 1975, o governo britânico realizou um referendo, sobre a permanência ou saída da CEE, tendo 67 por cento dos votantes, manifestado a favor da permanência nas instituições comunitárias. Após a criação da UE, em meados da década de 1990, os eurocépticos juntaram-se e criaram o “Partido do Referendo”.
A nova formação política participou nas eleições de 1997, não tendo conseguido assento no Parlamento, tendo-se dissolvido pouco tempo depois. A outra organização política de extrema-direita, com ideias semelhantes, o “Partido de Independência do Reino Unido (UKIP na sigla na língua inglesa)”, teve mais sucesso nas eleições para o Parlamento Europeu, em 2014, conquistando a maior quantidade de votos pelo Reino Unido, com vinte e quatro dos setenta e três assentos a que tinha direito. O acontecimento actual começou em 2013, quando num discurso, o actual primeiro-ministro inglês, prometeu que se acaso fosse reeleito em 2015, renegociaria a posição do país na UE, e convocaria uma consulta popular sobre a permanência no bloco comunitário, sendo que uma das principais queixas sobre a UE é a sua complexidade burocrática. Os defensores do “Brexit” afirmam que as directivas da União dificultam a economia e limitam a soberania britânica. O primeiro-ministro britânico comprou os ovos para uma omeleta que nunca imaginou fazer, e que o teria como recheio.
A UE é uma fonte de gastos desnecessários, para os eurocépticos, na qual o Reino Unido investia o equivalente a catorze mil e quatrocentos milhões de dólares anualmente, ou seja, cerca de 0,5 por cento do PIB, e um outro argumento diz respeito à restrição da imigração, dado que os apoiantes do “Brexit” vêem os imigrantes como uma ameaça ao mercado de trabalho e um peso social. Os líderes da campanha para o Reino Unido sair da UE, antes da realização do referendo, tinham anunciado que em caso de vitória, endureceriam as condições que permitiriam os europeus residirem no país. O direito automático de todos os cidadãos da UE a viverem e trabalharem no Reino Unido terminaria, conforme o comunicado conjunto divulgado no início de Junho de 2016, pelo ministro da Justiça inglês, ex-prefeito de Londres e secretário de estado do emprego inglês.
Os que se opunham ao “Brexit” argumentavam que a saída do país da UE, iria ter um custo maior que o actual, e cortaria os laços com os seus parceiros europeus, com consequências catastróficas para a economia e comércio do país, e assinalavam que abandonar a União, poria em perigo a influência do Reino Unido no mundo. Os argumentos a favor e contra a permanência do Reino Unido na UE tinham como temas fundamentais a imigração, criminalidade e comércio. Quanto à imigração, os apoiantes da saída, afirmam que o Reino Unido nunca poderia controlar a imigração até que saisse da UE, dado que a liberdade de circulação dá aos demais cidadãos da UE, o direito automático de viver no país. Os contrários, afirmam que a saída da UE não iria resolver a crise da imigração, e transferiria para as portas de entrada no Reino Unido o problema, pois o controlo de fronteiras britânico mudaria de Calais, em França, para Dover, no Reino Unido. Quanto à criminalidade, os apoiantes da saída, afirmam que a norma europeia de detenção e entrega, permite que os cidadãos britâncos sejam enviados ao estrangeiro, e acusados em tribunais estrangeiros, frequentemente por delitos menores. A saída poria fim a esta prática.
Os contrário à saída, afirmam que apenas graças à norma de detenção e entrega, violadores, assassinos e outros criminosos perigosos condenados por delitos no Reino Unido, podem ser devolvidos se fugirem para o estrangeiro. A saída da UE impediria que se fizesse justiça. Quanto ao comércio, os apoiantes da saída afirmam que as ligações do Reino Unido com a EU, estão a travar a sua relação com os mercados emergentes. Por exemplo, não existe nenhum acordo comercial importante com a China e a Índia. Sair da UE permitiria ao Reino Unido diversificar as suas ligações internacionais. Os contrário à saída, afirmam que 44 por cento das exportações do Reino Unido, destinam-se a outros países da UE. Criar barreiras com os países com os quais o Reino Unido comercia será prejudicial. O referendo é formalmente consultivo. O governo britânico prometeu que se os apoiantes do “Brexit” fossem a maioria, seria adoptado o processo de saída da UE. O direito de um Estado membro sair da UE está contido no artigo 50.º do Tratado de Lisboa, norma análoga da Constituição Europeia, e em teoria um Estado membro só tem de notificar a UE do seu desejo de sair, e iniciar-se-ão no mais curto espaço de tempo as negociações, sobre como desenvolver as relações existentes no futuro, num prazo de dois anos, que pode ser prolongado. Após as negocições, o processo de “Brexit” termina.
Quanto às consequências do “Brexit” para o Reino Unido, dependerão do resultado das negociações com a UE, como por exemplo, em relação ao comércio entre o Reino Unido e os seus antigos parceiros do bloco comunitário. É de recordar que a UE é o destino de quase metade das exportações do Reino Unido, e as possíveis consequências do “Brexit”, poderá ser o colapso da libra esterlina, pois desde meados de 2015, tem-se desvalorizado de 1,6 dólares para 1,4 dólares. A previsão de alguns bancos é que o “Brexit” poderá fazer desvalorizar a moeda inglesa, em 20 por cento, bem como é uma forte ameaça para Londres como centro financeiro mundial. A London School of Economics (LSE), prevê que a saída do Reino Unido da UE, pode ter um custo entre 2,2 por cento e 9,5 por cento do PIB, enquanto o Ministério das Finanças, prevê uma descida de 6,2 por cento do PIB.
Os defensores do “Brexit”, afirmam que o prejuízo para a economia será muito menos grave. Quanto a outras possíveis consequências além das económicas, o historiador e escritor inglês Antony Beevor, afirma que a saída do Reino Unido da UE poderá ser o pior exemplo na história de atirar pedras ao seu próprio telhado, e ainda que a União não tenha cumprido o seu objectivo de um um bloco mais estreito e tenha defeitos, a verdade é que o Reino Unido sai e provoca a sua desintegração, ganhando imediatamente o estatuto de nação mais odiada, não só na Europa, mas muito mais além. Os apoiantes do “Grexit” acreditam em três grandes vantagens, que são mais emprego, mais baixos preços de todos os bens e um futuro más sólido. O aumento do euroceptcismo, fez o “Brexit” abrir a porta para que outros Estados membros renegociem a sua relação com a UE.
A sondagem publicada uma semana antes do referendo, pelo Centro de Investigações Pew, revelou ter terminado o amor dos europeus pela UE em dez dos maiores Estados membros do grande bloco comunitário. Os resultados indicam que os europeus não vêem com bons olhos a prespectiva do “Brexit”. Todavia, a percentagem dos europeus que ainda confiam no projecto comunitário têm vindo a descer, reflectindo o descontentamento generalizado pelas políticas adoptadas pela UE. O ministro das Finanças alemão, disse numa entrevista à imprensa alemã que, se acaso ocorresse o “Brexit”, outros Estados membros poderiam seguir o mesmo caminho do Reino Unido. É impossível prever o que pode acontecer. A Holanda, por exemplo, tem uma ligação tradicional e íntima com o Reino Unido, e desconhece-se como irá reagir. A saída do Reino Unido pode provocar que países como a Dinamarca, Holanda e Suécia exijam com maior força e frequência um referendo sobre a sua permanência na UE, sendo também factor importante o que acontecer nas eleições presidenciais francesas de 2017.
O “Partido para a Liberdade” é a primeira força política da Holanda, e afirmou que o “Brexit” facilitaria a outros Estados membros uma tomada de decisão. O “Partido dos Democratas Suecos”, que mantêm o equilibrio do poder, é a favor da permanência na UE, mas tudo fará para limitar a sua influência. Os dirigintes do “Partido Popular Dinamarquês”, segunda força política do país, esperavam que o Reino Unido permanecesse na UE, apenas porque era a melhor oportunidade, para o país renegociar a sua relação com o bloco comunitário. A “Frente Nacional”, em França, tem vindo a dizer há longo tempo que pretendia renegociar a permanência da França na UE se ganhar as eleições de 2017. A líder da Frente Nacional considerou que o referendo britânico é um momento essencial na história da Europa, e sugeriu que cada Estado membro deve ter a capacidade de decidir a sua permanência no bloco comunitário. A terceira maior força política da Alemanha, a “Alternativa para a Alemanha”, assinalou que o “Brexit” proporcionaria uma oportunidade para incrementar a reforma da UE.
O “Partido da Liberdade da Áustria”, que por pouco não ganhou as eleições presidenciais, realizadas em Maio de 2016, também quer renegociar a relação do país com a UE. Além das fronteiras europeias, economistas, especialistas e empresários da Europa advertiram do perigo de uma eventual saída do Reino Unido da UE, para a economia global. O “Brexit” seria mau para o Reino Unido (Desunido), para a Europa e para o mundo, incluindo os Estados Unidos e a China. Num mundo global conectado é leviano afirmar que existem alguns países que escapam ilesos ao acontecido e aos efeitos negativos, senão catastróficos, que se irão repercutir em tempo. O Fundo Monetário Internacional, emitiu uma das mais graves previsões, a 24 de Junho de 2016, descrevendo o impacto da saída do Reino Unido da UE, como negativa e substancial, preocupação que produziu eco nas declarações dos responsáveis políticos mundiais.
O investigador principal do “Instituto Peterson para a Economia Internacional”, afirmou que basicamente, todos dizem mais ou menos o mesmo, ou seja, de que não existe dúvida de que a economia irá passar mal. Os mercados financeiros, após tomarem conhecimento dos resultados do referendo, começaram a sentir estremecimentos, inclusive nos Estados Unidos, onde os rendimentos dos títulos do Tesouro cairam para níveis mínimos desde 2012.
O responsável máximo pela política e comércio do grupo “British American Business”, afirmou que neste momento, ninguém sabe como será o mundo com o Reino Unido fora da UE e que só por si, cria uma incerteza que as empresas não desejam ver. A agência de classificação de risco de crédito “Standard & Poors (S&P)” apresentou um índice de sensibilidade da saída do Reino Unido da UE. O índice incluiu factores como a correlação dos países exportadores para o Reino Unido e o seu PIB, os fluxos migratórios, as procuras das empresas do sector financeiro aos casais britânicos e o investimento directo estrangeiro no Reino Unido. Cada critério é avaliado de 0 a 1, e as avaliações no total contribuem para o índice. Além de 18 países da UE, a agência analisou o Canadá e a Suíça. Como resultado, o índice da Irlanda é de 3,5, o de Malta é de 2,9, o do Luxemburgo é de 2,4 e o de Chipre é de 2,3, sendo estes quatro países da UE, os mais vulneráveis ao “Brexit”.
O primeiro-ministro do Reino Unido, a 6 de Junho de 2016, manifestou aos ingleses uma posição crítica em relação ao “Brexit”, afirmando que a saída da UE seria como uma bomba sob a economia britânica, e que o pior é que fomos nós que a lançámos. Entretanto, os líderes da UE dã-se conta da ameaça existencial que o projecto europeu está a enfrentar. O Presidente do Conselho Europeu, reconheceu o perigo de ruptura do bloco e disse que obcecados com a ideia de integração imediata e total, os líderes da UE não percebem que as pessoas comuns, os cidadãos da Europa, não partilham o mesmo euroentusiamo, pelo que estariamos diante do inicio do fim do projecto europeu? O resultado do referendo favorável ao “Brexit” pode bem ter respondido à pergunta, mais quando o próprio Reino Unido se parece desintegrar, com a Escócia a querer permanecer na UE, mesmo que para isso tenha de declarar a independência e a Irlanda do Norte, que votou 56 por cento contra o “Brexit”, a reivindicar a reunifição com a República da Irlanda.

5 Jul 2016

Nota à imprensa – Gabriel Tong

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o exercício do seu dever de informar, vários órgãos de comunicação social de Macau (entre os quais, o presente jornal) fizeram referência à apresentação de uma Proposta na Assembleia Legislativa de Macau, subscrita por mim, Gabriel Tong, cujo objecto consistiria na introdução ou consagração de alterações ou modificações à Lei de Terras actualmente em vigor.

Pese embora se possam compreender as dificuldades que o tratamento informativo e mediático deste tema possa despertar, sobretudo atendendo à sua específica natureza técnico-jurídica, é extraordinariamente importante clarificar, designadamente para a correcta prestação de informação aos residentes de Macau, que a referida proposta apresentada na Assembleia Legislativa não visa proceder a qualquer alteração ou modificação relativamente à Lei de Terras actualmente em vigor. Bem diferentemente, o propósito e o objecto da Proposta apresentada à Assembleia Legislativa (tal como é clarificado pela respectiva “Nota Justificativa”) é antes — e apenas — o de clarificar o sentido, ou o significado, de normas que já constavam da anterior Lei. Assim, o que a referida Proposta pretende é tão só clarificar e fixar o significado de normas legais da actual Lei de Terras, cuja única interpretação (ou sentido jurídico) possível poderá ser, eventualmente, conducente a determinadas soluções concretas atribuídas a vários casos mediáticos que respeitam ao fim do prazo de concessão de vários terrenos na RAEM, tal como vem sendo noticiado.

Este esclarecimento é essencial para que o público de Macau possa estar ciente acerca da verdadeira natureza da Proposta acima referida, já que, nestas como noutras matérias, é indispensável a correcta informação prestada a todos os residentes do Território quanto a tão ponderosas questões.

Em suma: não foi apresentada qualquer proposta de alteração da Lei de Terras; do que se trata é da apresentação de uma Proposta que visa esclarecer e fixar com rigor aquilo que já decorre da Lei de Terras actualmente vigente, sem qualquer alteração a esta.

Tong lo Cheng
1 de Julho de 2016

4 Jul 2016

Desastres e habitação precária

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] website “scmp.com” publicou, no passado dia 27, um artigo sobre um incêndio de grandes dimensões que deflagrou num edifício empresarial em Ngau Tau Kok, Hong Kong. O incêndio esteve activo durante 108 horas e só foi extinto dia 26. Dois bombeiros pereceram no local.
O fogo começou no 3º andar do edifício, numa zona alugada em segmentos para depósitos individuais.
Segundo a Wikipédia, o negócio que gere os depósitos individuais, também designados por “unidades de armazenamento” dedica-se ao aluguer de espaços (salas, cacifos, contentores e zonas exteriores), por regra, durante curtos períodos de tempo (contratos mensais). Os utilizadores deste serviço tanto podem ser empresas como pessoas individuais.”
O desastre acabou por atingir proporções tremendas porque, devido à antiguidade do prédio, não existiam aspersores de água de combate a incêndios. Além disso, havia demasiado material acumulado, evidentemente porque o senhorio tentou rentabilizar o espaço ao máximo. O 3º andar estava inteiramente destinado ao negócio de aluguer de espaços para armazenamento. A área foi dividida em mais de 100 “pequenas unidades”. Pesou ainda a dificuldade criada por uma série de acessos complicados a este piso e que também não permitiam uma saída fácil.
Mas se no local só existissem materiais armazenados o problema não teria sido tão grave. O pior é que quando o fogo começou foram vistas neste preciso local algumas crianças ocupadas com os trabalhos escolares e adultos a cozinhar. Foi também vista uma outra mulher em trajes de trazer por casa. Tudo indica que havia pessoas a viver no armazém. Portanto, o depósito estava a ser utilizado como habitação por algumas pessoas. Os contratos de arrendamento deste espaço proibiam os inquilinos de viver no local. Mas depois da hora de expediente, digamos depois das 18.00, o pessoal do armazém sai, ficando o local sem vigilância. Por isso é fácil a partir dessa hora a quem tiver acesso instalar-se no armazém. O que faz com que a condição expressa no contrato, de não habitar o local, não sirva para nada.
Os bens armazenados neste tipo de depósitos representam também outro problema. Ninguém conhece a natureza dos pertences que aí são guardados. Podem ser materiais perigosos. No momento da assinatura do contrato o senhorio não tem forma de saber que tipo de objectos vão ser armazenados. É usual mencionar-se no contrato a não permissão de guardar materiais perigosos, no entanto, na prática, verifica-se que posteriormente não existe qualquer inspecção. Os termos do contrato valem o mesmo que um papel em branco. São inúteis.
A polícia de Hong Kong já deu início à investigação. Compete-lhes apurar as causas do incêndio e determinar se efectivamente havia pessoas a viver no armazém.
Este negócio de aluguer de pequenas unidades de espaço para depósito tem vindo a desenvolver-se nos últimos 10 anos. Como os preços dos alugueres de casas em Hong Kong sobem constantemente, a maior parte das pessoas deixa de ter capacidade de os pagar. Uma família de quatro pessoas que viva num apartamento minúsculo não consegue guardar a maior parte dos seus pertences.
E é evidente que estes apartamentos minúsculos passam a ser a única opção para a maior parte das pessoas sem dinheiro para pagar uma casa em condições. Antigamente existia em Hong Kong o sistema de “apartamentos subdivididos”, ou seja, um apartamento de tamanho normal subdividido em partes mais pequenas que se alugavam individualmente. Mas mesmo assim estas rendas ainda eram altas e, por causa disso, quem não as podia pagar começou a mudar-se para estes espaços de depósito individuais. Não é de admirar que actualmente haja pessoas a viver nesses sítios.
É de salientar que este incêndio não só matou duas pessoas como serviu para pôr a nu um grave problema de habitação. O Governo de Hong Kong já anunciou que vai proceder a inspecções nestes locais para impedir que de futuro ocorram casos semelhantes. Parece ser uma boa medida enquanto se espera pela regulamentação do sector. No entanto, já se divisa um outro problema. Como este negócio de aluguer de unidades de armazenamento não está oficialmente registado, não é possível determinar o número exacto de locais deste género existentes em Hong Kong. E deste modo como é que se pode assegurar uma inspecção completa?
Os conteúdos do enquadramento legal serão também outro problema. Como foi dito, de momento não existe registo oficial deste actividade em Hong Kong. Será melhor que passe a haver? E qual o significado legal dos registos? Serão estes registos renovados anualmente? Será obrigatória a instalação de aspersores de água? De que forma se vai assegurar que os materiais armazenados não são perigosos nem existem explosivos? Estas são algumas das questões com que o Governo de Hong Kong terá de lidar.
Como sabemos, em Macau também existe este negócio. Como as rendas, também são muito altas em Macau, compreende-se que os senhorios tentem rentabilizar os espaços que têm disponíveis até ao seu limite. Aqui, também por vezes é difícil encontrar a saída de cada andar. As questões que foram atrás colocadas também se aplicam em Macau. Existem aspersores de água em cada andar? Existem pessoas a viver nestes depósitos individuais de mercadorias? Que tipo de materiais é que aí estão guardados? São questões em que, quer o Governo, quer os inquilinos, devem reflectir.
Este caso que se deu em Hong Kong é uma grande lição para Macau. A prevenção é sempre o melhor remédio. O que há a fazer é tirar ensinamentos desta situação para impedir que o mesmo suceda em Macau.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

4 Jul 2016

Nascer para competir?

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ou o tipo de pessoa que pensa e reflecte muito, por mim e pelos outros, por tudo ou por nada. “Fa Sheng” em Chinês é qualquer coisa como “pensamento floreado”. E eu estou sempre a pensar.
É com muito prazer que vos apresento esta minha coluna de opinião. Estreio-me com um assunto bem quente. Há pouco tempo explodiu nas redes sociais o caso de uma mãe que já está a trabalhar para o sucesso do seu filho, quando este ainda nem sequer nasceu. Sim, a criança ainda está dentro da barriga da sua progenitora e a mãe já está a planear a sua vida. Ainda assim, nota a publicação, a mãe acha que já vai tarde. A preparação, diz, deveria começar antes sequer de ficar grávida.
O caso suscitou uma enxurrada de opiniões. O tema ocupa espaço ainda num programa produzido pelo canal televisivo chinês de Hong Kong, a TVB, que pretende, de forma bem irónica, retratar este tipo de casos. Os pais assumem, pelo canal, o papel de “monstros” da organização, dos preparos, do futuro dos seus filhos, que ainda bem pequeninos já têm de saber coisas que só dizem respeito, ou deveriam dizer, aos adultos. Que só eles sabem e que é inútil às crianças.
No programa, existem uma mãe e uma criança de quatro anos. A progenitora prepara a sua filha para aprender várias línguas, para além da língua materna. Mas não só. É preciso ainda dominar a matemática, a dança, o piano e, ao mesmo tempo, ser master em programação. Os pais acreditam que com mais conhecimentos, capacidades, qualificações e, até, prémios, os miúdos ganham um estatuto que lhes permite entrar numa escola de renome e alta qualidade. Chega-se ao ponto de uma mãe exemplificar que existem escolas – “conhecidas e boas” – que apenas admitem alunos que tenham nascido em Janeiro, portanto é preciso pensar que para o filho ter sucesso tem de se calendarizar a ejaculação do pai. Não vão as contas baterem errado.
Acredito piamente que esse conceito existe também entre os pais de Macau. Vejo que as famílias mais abastadas metem sempre os seus filhos em escolas consideradas as melhores. Pensam que podem ter melhor formação, ou apenas querem mostrar aos outros pais que os filhos são alunos de boas escolas. Escolas que normalmente ensinam em Inglês ou Português. Escolas como a Pui Ching, que é considerada muito boa, mas cujos alunos já foram descobertos a roubar em lojas e a matar animais na rua. (Devo dizer que esta situação é muito mais notória em Hong Kong).
No caso que menciono das redes sociais, a mãe já está a sofrer por causa da questão das creches. Qual será aquela que o seu filho poderá frequentar? A progenitora já se está a comprar livros e álbuns de músicas – tudo em Inglês – e vai lendo para o seu filho para que ele – ainda dentro da barriga – comece a ficar familiarizado com a língua…
Mais vale prevenir do que remediar, porque no caso desta mãe, o seu filho mais velho não foi muito bem sucedido na entrevista para o jardim-de-infância. A mãe acha que não lhe preparou bem o futuro e, por isso, o filho não conseguiu expressar as suas capacidades tão bem quanto outras crianças. Comparado com essas, o seu filho não conseguia contar nem dizer as letras do abecedário e a mãe achou mesmo ele tinha um atraso mental. Posto isto, não há dúvidas: a mãe sente que tem de preparar o seu segundo filho melhor.
Já não bastava um mundo de competição entre os adultos? Agora começa-se desde criança? Precisam mesmo de competir antes de nascerem? Compete-se pelos bons serviços de saúde, pelas vagas em creches, nos jardins-de-infância, nas escolas e depois nas universidades. Uma vida de competição.
Uma outra mãe admitiu no programa que exige ao filho saber como são os amigos, para poder comparar e saber quem é o melhor. Um dos pais falou mesmo numa geração “zombie”, onde os jovens se comportam de igual modo, uns atrás dos outros, onde ninguém foge ao estipulado, nem se questiona, até porque nem sabem como agir de outra forma.
É verdade que todos os pais querem o melhor para os filhos, querem que eles sejam os melhores, que tenham um bom futuro, mas não percebo desde quando é que a escola perdeu o poder de ensinar e passar bons conhecimentos aos alunos. Desde quando é que deixou de ser suficiente, sendo necessário encher os calendários dos miúdos cheios de actividades extra-curriculares. Tudo em nome de certificados e prémios. Tantas crianças sem vida social, sem contacto com o mundo lá fora só pelo “bom futuro”, só por “dinheiro”.
Nós adultos, quando enfrentamos muitos afazeres, reclamamos muito. “Quem me dera voltar aos meus tempos de criança. Bons velhos tempos”, dizemos tantas vezes. Relembramos vidas desafogadas, horas de brincadeira, erros sem pressões. Era-nos possível errar. Parece que isto deixou de existir na sociedade actual. Com estes pais exigentes, em nome dos seus próprios interesse e não das crianças, estamos a criar adultos infelizes, atrofiados e sem amor à vida.

Fa Seong 花想

1 Jul 2016

Vacina anti-britânica

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] referendo da última semana que ditou a saída do Reino Unido da União Europeia teve mais que esse efeito, que agora temos como certo que realmente se concretizará: ensinou-nos também um pouco mais sobre nós próprios, sobre os outros, e sobretudo do que cada um espera retirar para si daquilo que no fundo é suposto pertencer a todos. O efeito imediato do Brexit teve um impacto alarmante, com mais incidência nos mercados, e todas as previsões apontavam para o mais negro dos cenários. Este despertar em sobressalto levou a que nos dias seguintes surgisse um novo neologismo condizente com a surpresa de quem foi dar este salto no escuro e deu consigo a pensar que se calhar fez a escolha errada – o “bregret”, uma sensação de arrependimento que bate mais forte que a ressaca comum. É como acordar no dia seguinte e a última coisa que se lembra da noite anterior foi aquela primeira bebida, ainda a procissão ia no adro. Exactamente isso que estão a pensar, sim, mas aqui não basta um mero “check-up” médico para afastar os piores receios. Esta é uma aventura cujas consequências não a deixarão apagar-se da memória. Será necessário aprender a viver com elas.
Se há um responsável máximo por aquilo que tanto pode vir a ser um simples virar de página da História, como um terrível equívoco é sem dúvida alguma o primeiro-ministro britânico David Cameron, que doravante poderá muito ser referido como “aquele pateta que feriu de morte o projecto da construção europeia” – mas terá sido mesmo de morte? Agora que as potências mundiais extra-UE começam a digerir a “brain and kidney pie” que o eleitorado britânico lhes serviu em dose cavalar, é de altura de adaptar as relações do Reino Unido a esta nova realidade, que os restantes elementos da União querem ver concretizada “o mais brevemente possível”. E de facto convém que assim seja, uma vez que manter um membro “morto” pode levar a que os restantes gangrenem, mas em condições normais seria quase uma certeza que a UE iria funcionar sem o Reino Unido, e não era mais ou menos isso que acontecia? Os britânicos nunca estiveram de alma e coração na União, rejeitaram o Euro, e basicamente estavam ali descontentes por não conseguirem retirar as o maior número de benefícios enquanto evitavam compromissos – no fundo resiste ainda na velha Albion uma certa mentalidade imperialista, arrogante e supremacista. Foi com essa arrogância que Cameron procurou um estatuto dentro da UE que os dotasse de mais regalias, mas mediu mal o momento, e acabou dar um tiro não no pé, mas nas duas pernas.
Do muito que li sobre o Brexit nestes seis dias, há duas opiniões que me pareceram pertinentes, e vindas de quem tem uma perspectiva que nos pode dizer mais a nós, portugueses: Miguel Esteves Cardoso, ou MEC, o português mais britânico do mundo, e Lucy Pepper, britânica de North Devon, no sudoeste de Inglaterra, mulher dos sete ofícios de quem tenho a inexcedível honra de trocar impressões de quando em vez (dentro daquilo que permite a sua típica arrogância britânica, que no caso dela é encantadora). Frontal como sempre, MEC fala de dois Reino Unidos: o cosmopolita, europeísta e de horizontes mais largos, e do outro, conservador, tradicionalista, fechado e retrógrada, e sugere a criação de dois estados: um dentro da UE, com os 48% que optaram pela permanência concentrados nas áreas metropolitanas de Londres e Manchester, e os restantes anti-europeístas numa área que se chamaria “Reino Unido da Inglaterra e do País de Gales”, onde se proibiria “toda e qualquer imigração”. Lucy Pepper, que vive em Portugal porque “é provavelmente o melhor país do mundo para se viver”, e “muito dificilmente consegue imaginar-se a viver noutro lugar” (é adorável, a sério!) fala das diferenças entre as duas campanhas, e de como os apologistas do Brexit faziam uso do ódio, do medo, quase como em jeito de chantagem. Convém referir que estes dois cronistas se encontram à direita do compasso político.
E foi exactamente no aspecto que ambos MEC e Lucy Pepper referiram que se decidiu por uma saída sem retorno do Reino Unido, que paradoxalmente poderá deixar de o ser a médio prazo caso a Escócia e o País de Gales decidam eles próprios referendar a saída dessa união, nem que seja com o pretexto de quererem continuar ligados à UE. E isto que sirva de aviso aos restantes estados membros, pois com uma eventual implosão da União e sem a respectiva coesão entre os seus membros, não há limites para o que poderá acontecer em países como a Bélgica, Itália e especialmente a Espanha, onde os movimentos separatistas ganhariam força com o argumento de que mais nada os impediria de alcançar uma total autonomia. E isto pode acontecer a bem, mas o mais provável é que corra muito mal.
De Portugal e dos portugueses tenho observado um misto de apreensão e optimismo irresponsável. Quem como eu se lembra de como era o país e de quão distante estava o resto da Europa, apesar de geograficamente próxima, não olha com bons olhos um eventual retrocesso que nos vetaria a um estatuto ainda mais periférico que o actual. Dos outros que acreditam que isto é uma boa ideia, tudo o que oiço em constante “replay” é a colectânea “Os maiores êxitos do Populismo Saudosista Lusitano”, mas isto tem uma razão de ser. Um dia destes lia uma notícia que dava conta das implicações do Brexit no campeonato inglês de futebol, a Premier League, e de como os jogadores comunitários iam passar a contar como estrangeiros. Num dos comentários lia-se qualquer como “como se isso tivesse interesse para mim, que tenho que viver com 600 euros por mês depois de uma vida a trabalhar”. É este o problema dos portugueses em particular, quando falam do 25 de Abril, por exemplo, e de como as coisas lhes correram mal, como se a liberdade que foi conquistada em nome de todos os tivesse a eles como “convidado especial”. Certamente que os que souberam aproveitar o bem que adveio de sermos os donos do nosso próprio destino, e integrados no seio de outros como nós com o propósito de nos tornarmos ainda mais fortes temem o que pode sair deste Brexit. De facto a UE tem pecado por não atender às necessidades dos cidadãos europeus, e é pena que tenha que acontecer a saída de um dos seus principais elementos para se repensar o projecto. Mas será que se uma das pernas está manca, temos mesmo que cortá-la?

30 Jun 2016

Os muros das lamentações

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s imagens valem mil palavras, certo? Então aqui ficam três. Acompanhadas de duas sugestões.

I. Com a falta de espaços bravios que tanta falta fazem ao desenvolvimento saudável das crianças porque se encerram os poucos que ainda por aí andam com estas cercas de má catadura? Temporários que sejam porque não deixar que sejam apreciados? As brincadeiras que eu ali não faria se tivesse 10 anos…

II. Mas já que gostam de os tapar, porque o verde é feio, ou porque as ervas picam, sei lá… porque é que o Governo não contrata (sim, contratar) os artistas locais para os decorarem? Será melhor andarmos entaipados por estas cercas de “amarelo-já-morri”?

Música da Semana

“Where Have All The Good Times Gone” (David Bowie, 1973)

(…)
“Won’t you tell me
Where have all the good times gone
Where have all the good times gone
Where have all the good times gone

Once we had an easy ride 
and always felt the same
Time was on our side 
and I had everything to gain
Let it be like yesterday
Please let me have happy days”
(…)

29 Jun 2016

Direito ao sossego

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 11, o website “money.cnn.com” publicou um artigo sobre a proposta de um novo direito a implementar em França. Designado por “direito a desligar”, assegura que os funcionários não serão obrigados a responder a emails de serviço, durante os períodos de descanso. Se a proposta for aprovada entrará em vigor em Julho de 2017.
A norma prevê que uma empresa com mais de 50 funcionários não poderá enviar emails ao pessoal fora do horário de serviço. Aos empregados é assegurado o direito a não responder. O intuito desta norma é reforçar a ideia das 35 horas de trabalho semanais que se quer levar à prática.
Os franceses acham que os patrões mantêm os empregados a trabalhar para lá do horário normal através do mail. A pressão continua fora das horas de serviço. Os emails funcionam como um laço que prende os trabalhadores às preocupações laborais e invadem as suas vidas privadas. A casa deixa de se distinguir do escritório.
Um dos pontos interessantes deste direito é não implicar qualquer sanção. Funciona mais como um incentivo e o governo espera que o empregador implemente a regra voluntariamente, não estando prevista qualquer penalização em caso de infracção.
O “direito a desligar” confere obviamente protecção aos empregados. Mas, digamos, existem alguns princípios fundamentais que sustentam este direito. Os franceses acreditam em dois conceitos de tempo, “Chronos” e “Keiros”. Consultemos as respectivas definições na “Wikipedia”,
“Chronos é a personificação do tempo na filosofia pré-socrática, sendo mencionado em obras literárias posteriores.”

Keiros é outro deus grego. Representa a ocorrência de um acontecimento especial num determinado período de tempo. O “tempo K” é o tempo de produção, o tempo criativo. Por isso, quanto mais prolongado for o tempo de trabalho menor será o “tempo K”, e a capacidade de produção e criação diminuirá.
Este direito permite a liberdade depois do horário laboral e garante que as pessoas deixem de ser incomodadas pelos emails dos patrões. Reforça também a ideia das 35 horas de trabalho semanal, que se quer ver respeitada em França. Mas será esta história é assim tão simples?
O “direito a desligar” traz consigo algumas implicações. Em primeiro lugar, se a empresa for francesa e não precisar de estabelecer comunicações para outros fusos horários, não haverá consequências de maior para ninguém. Mas se a empresa for estrangeira e, ou, tiver de lidar com clientes que se encontrem noutros fusos horários, pode causar várias perturbações. A empresa terá nesse caso de indigitar os responsáveis pelas relações internacionais, sobretudo nos casos que impliquem diferença de horários.
O trabalho por turnos, com horários nocturnos, poderá ser uma solução para o problema. Mas implicará certamente um aumento das despesas empresariais, na medida em que estes horários rotativos implicam um pagamento extra.
Em segundo lugar, nos tempos que correm, os emails fazem parte das comunicações electrónicas. O Whatsapp, o Wechat, o Facebook e etc. são todos ferramentas de comunicação electrónica. E se a lei que regulamenta a recepção dos emails não se estender a outras plataformas de comunicação? Por exemplo, se um empregador enviar uma mensagem a um funcionário via Whatsapp, após o horário laboral, para o avisar que na manhã seguinte tem de efectuar determinada tarefa. O empregado só vai ter de se ocupar desse serviço posteriormente, dentro do seu horário de trabalho e não tem de responder à mensagem logo a seguir. Mas se o “direito a desligar” não cobrir outras plataformas, como por exemplo o Whatsapp, então o empregado poderá arranjar problemas, se não responder de imediato ao patrão. Neste sentido, a protecção oferecida por este direito pode não ser suficiente.
Em terceiro lugar, por vezes os emails são identificados como lixo, e nesse caso, não aparecem no “Correio Recebido”. Noutros casos, por qualquer motivo, podem extraviar-se. Em ambas as situações os emails foram enviados, mas não foram recebidos. O “direito a desligar” garante ao empregado a possibilidade de não responder fora do horário de trabalho, mas se o email se perder, nunca mais poderá responder. Nesse caso quem será responsabilizado pela perda do email? É obviamente uma questão que não é abrangida por este direito, mas na nossa vida de todos os dias a perda de emails é um problema que não conseguimos evitar.

A pressão laboral em Hong Kong é enorme. É comum receber-se emails e mensagens dos patrões fora das horas de serviço. Podem ser 11.00 h da noite, sendo que a pessoa tem de estar no escritório às 9.00h da manhã, mas mesmo assim, tem de responder às mensagens do patrão, se não quiser arranjar lenha para se queimar. A injustiça nas relações laborais pode ser facilmente demonstrada.
Em Macau a pressão talvez não seja tanta como em Hong Kong. Mas ainda assim não impede os patrões de enviarem mensagens às 11.00h da noite. O empregado talvez possa não responder, mas uma coisa é certa; no dia seguinte vai ter de apresentar explicações.
O “direito a desligar” é uma boa ideia. Mas, na prática, levanta algumas questões. Para o concretizar será necessário encontrar respostas antecipadamente. A implementação desta norma pode assegurar que os trabalhadores de Hong Kong e Macau deixem de sofrer a interferência dos patrões fora das horas de serviço e garantir-lhes o direito ao sossego

 
Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

27 Jun 2016

Especial 24 de Junho | Tem na únde, Macau-filo?

– Tenho trinta, quase quarenta anos de Macau, porque não sou macaense?
– Mas … juntas-te à malta?
– Huh?…

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem subscreve este artigo não é especialista algum, quando muito um mero curioso nestas coisas de Identidade, matéria complexa, nem sempre condensável em escassas páginas. Mas, vamos a isto.
Quando me interrogam, “o que é um Macaense”, adopto aquela postura de não a responder directamente, porque assaltar-me-ia invariavelmente a frustração antecipada de quão vã é tentativa de o definir. Ao meu interlocutor limito-me apenas a fazer um paralelismo: “o que é um português?”.
Não é uma questão fácil e é por isso que tenho alimentado, através da Associação dos Macaenses, a constante organização de Colóquios sobre esta temática. Como já era de esperar, nunca se vislumbrou conclusão alguma, pois quanto mais se indaga mais dúvidas somam, e talvez por esta razão, alguns dos meus amigos muito simpaticamente até me perguntaram: “Ó Miguel, já encontraste a tua identidade?!”
Ela de facto permanece no segredo de Deus que deve estar a rir-se dizendo “Procura, filho, que vais longe, vais!”

O paradigma

Corresponde à ideia corrente que o Macaense é o euroasiático de ascendência portuguesa e chinesa, nascido em Macau (passe-se o pleonasmo), culturalmente católico, de língua materna portuguesa. A miscigenação continua a ter um peso preponderante nesta matéria.
Isto não deixa de ser verdade, na grande maioria dos casos, mas o Macaense vai mais além disto. Não me parece que uma definição o possa conter.
Além do mais, a Macau moderna com as novas regras sócio-culturais que o tempo se encarregou de impor.
Macau de hoje situa-se numa zona geográfica de grande expansão e de rápido crescimento económico. O Delta do Rio das Pérolas é hoje zona de explosão económica, de uma China que acordou poderosa e imperial, onde se concentram interesses financeiros transnacionais de valores nunca imaginados. Henggin – ou Montanha, se quisermos – afirma-se como plataforma tecnológica do futuro, a que Macau terá de aceder para a sua sobrevivência económica.
A nossa cidade, por sua vez, constitui uma importante peça deste “puzzle” destinada a ser o eixo de indústria de jogo da China, embelezada com a sigla “centro de turismo e de lazer”. É também o “rendez-vous” dos Países de Língua Portuguesa, no âmbito de uma ousada e inteligente estratégia económica global da China.
E ela é tão impressionantemente pequena que basta usarmos o aplicativo “Google Earth” para assim o reconhecermos.
E aí se situa o Macaense actual.
Tal como os seus antepassados, com a sina de ter de se adaptar a todos os contextos sócio-culturais a que se sujeita, ele molda-se para fazer parte integrante e tirar o melhor proveito desta nova realidade. Se a estratégia do casamento (com elementos de etnia chinesa), foi importante para a sua afirmação social, a língua torna-se um instrumento que lhe abre as portas para outros horizontes. O Macaense moderno é fluente no Mandarim e no Inglês.
Contudo, sem querer menosprezar a língua que deu origem ao seu nome, ele adopta, em relação a ela, uma atitude pragmática: “lamento, mas há outras prioridades.” Por mais cruel e estigmatizante que possa parecer para a susceptibilidade de alguns, ela traduz o instinto de sobrevivência para o Macaense e para a sua prole que resiste em ficar numa cidade, que há muito deixou de ser aquela dos brandos costumes e bairrista dos tempos de outrora.
O Macaense actual deixou de ser o mero funcionário público. Ele procura sair de Macau e é licenciado pelas universidades de toda a parte do mundo. Os que regressam à terra natal, trazem outros valores, outras visões da vida. Ele é hoje um profissional livre, um realizador de cinema, gestor de títulos, estilista, mestre e doutor.
Ele está “por dentro” desta Macau nova até esta o pode levar. Novos veículos de comunicação foram adoptados.
Porém. reagem os da “velha” guarda e de forma nem sempre simpática. “Acabaram-se os macaenses! “, clamam uns. “Se eles não falam Português como podem ser macaenses?”, bradam outros. “E os seus filhos que estudam nas escolas chinesas e internacionais?” e outras interrogações semelhantes, todas elas legítmas não cessam de se fazerem ouvir nos Colóquios sobre a Identidade.
E porque “teriam” de o falar para serem Macaenses? A aceitar isso como verdade, teriamos que rejeitar essa condição a tantos outros que estão na Diáspora, para os quais a língua de Pessanha não faz parte do seu dia-a-dia.
Todavia, nenhum dos “degenerados” deixa de se sentir Macaense. “I am Macau-Filo”, “Ngó hai Tou sang (sou macaense)”, “Me? Macau-Chai”. E o tom é de ostensivo orgulho.
O que pode estar por trás disso?

A diferença como ponto de partida. Macau e a Portugalidade
Sem pretender um tom de autoridade, julgo que tentar explicar o Macaense através da enumeração das suas características palpáveis, provou que não levaria a sítio algum por ser manifestamente insuficiente. E porque não inverter o processo através da diferença. A diferença aqui, não no sentido discriminatório, nem de qualquer complexo, mas apenas como:
O que temos de diferente em relação a outras comunidades e povos?
Ao tentar responder a isso, vejo o forte laço de pertença a Macau. Não apenas aquela minúscula terra no Sul da China, mas também e sobretudo o espaço cultural específico que representa, feito de memória, tradições, História e histórias, noção de família, vivências, relatos, registos, transmitidos de geração em geração. Um Macau de contrastes e de povos que se mesclam, que se entendem numa linguagem comum.
E vejo algo mais. Este laço de pertença é especial, pois vai-nos remeter por sua vez para um espaço ainda mais global (civilizacional), que explica a nossa ascendência, como povo “sui generis” neste sudeste asiático.
A Portugalidade é um palavrão inventado para designar muitos fenómenos identitários que têm por base a noção de pertença a Portugal. Mas ela nada tem, necessariamente, a ver com a nacionalidade ou a língua portuguesas, enquanto tais, ainda que ambos sejam importantes para a sua afirmação. Mas é ela que justifica por que certas pessoas – e não são poucos neste mundo – são portuguesas… sem o serem juridicamente. Linguisticamente.
A Portugalidade explica a génese de Macau do Macaense, pelo périplo português que deixou aqui sementes que germinaram uma cultura diferente – de Portugal e da China – cultura de uma comunidade singular.
Ser Macaense é ter esta noção de diferença pela sua ligação a este mundo global, através do seu nome e da sua ancestralidade, ainda que não fale mais português, ainda que para si Portugal seja apenas CR7 e Benfica.
Quando um Macaense diz “nossa Malta”, “nos-sa genti” ou “we Macaista” ele fá-lo com orgulho, porque sem ele querer, ele exprime este duplo legado que o torna diferente da imensidão de gente que o circunda, nesta absorvente China Nova.
E que interesse tem isto tudo? Tem. Ele dá-nos alento para continuar.

Miguel de Senna Fernandes
24 Jun 2016

Especial 24 Junho | O nome do santo nome

[dropcap style≠’circle’]
T[/dropcap]odas as coisas querem nome, de todas uma inominável, apenas duas se não explicam. Deus e o da Cidade do seu nome santo. Cidade nomeada, explicada em étimos de ilusão erudita, venha a deusa A-Ma e com Deus converse, os dois sorrindo da verdade dos homens, quantificadas em métricas de razão equívoca, história prolongada dos tempos da Babel, fabulosa origem dos desencontros. 
Esteve a verdade sempre tão à tona, mas não a direi, porque o pouco que sei aprendi, e cada um que aprenda, aprende-se não se ensina, encontre-se na perdição das fábulas da vida e distinga-se delas o joio do trigo. Coma o homem pão de joio antes de provar o trigo, saiba encontrar a ordem natural das coisas, todo o caos é ordem e o inverso também, equívocos não.
Pela memória das ruas antigas povoadas de deuses mascarados de homens anónimos, quanto mais humildes mais deuses, salpicam o caminho altares tão humildes que mais valera serem baixares, tão próxima é a natureza dos manes ocultos pelo fumegar do incenso, deuses olhando deuses, fantasmas cheirando a poéticas de nostalgias diferentes, sons inaudíveis musicando o compasso do tempo dos pregões. De que terra és tu que não falas à minha, o meu pregão é outro, não compro nem tãopouco vendo, apenas olho entre o belo e o horrendo, e assisto da janela dos nomes à procissão do tempo deslizando pela cidade, dois préstitos e um caminho, todos passando, obra de deuses para quem todos os becos são saídas de onde remanesce a fragrância indescritível de odores que dão à alma o que o corpo precisa, não há nariz ou palavra que descreva, apenas se suspeita ou adivinha.
Também António de Lisboa, Pádua e Macau é nome de santo, em tempos de desespero lembrado e lá vai mais um ai meu Deus e, quando passa, lá ficaram Deus e o santo para os outros que a vida continua e o resto pode esperar.
Transforma-se a cidade na cadência do minuto, mas não o dia hoje como ontem igual, apenas nós diferentes, uns para igual outros crescendo, cada um em si mandando, alguns obedecendo, futuro não é do que se constrói, antes daquele que dispõe o que o homem põe, seja ovo seja calhau, diga-se assim e já não é mau.
Tem a escrita a cidade que suscita, lugar ritmado de cidadania, utopia que não é mania, apenas matéria concreta do amanhã. Mas quem saberá senão nós, que esta história antiga de que não falo, é fio retalhado, nodulado, amarrado, sugado e consentido, abandonado e pressentido, dorido e ressentido, a factura está pronta, alguém terá de ficar, ficam os homens, e os últimos que paguem a conta.
Não vai ninguém abaixo, homens são como árvores, morrem de pé à maneira de Goya, perdoe- -se aos crucificadores que cravos não ferem alma que não tem corpo, apenas corpo tem alma, e firam mais que por cada cravo cravado dez se irão cravar, assim diz Alá e não sei se existe, heterónimo dos deuses todos, um só da eternidade vindo, cada um crê no que quer. Incrédulo é o que vê sem se chamar Tomé a história que corre.
Quisesse o homem ser fraterno e encontraria o irmão, que mando e poder são inverdades patenteadas, ontem disse, hoje não disse ontem. Mais fácil é julgar que amar, que julguem e odeiem, dói o ódio a quem odeia, perdido entre ser anás ou caifás, venha o diabo e escolha. Não te distraio que estás distraído, como se fosses o centro de um quadrado. 
Quadrado é raíz de cidade, módulo de passados antepassados, cidade velha, cidade nova, mas que é isto de arqueologia, a tua voz é de cá? Apenas existo vivendo, fingindo que escrevo escrevendo, escrevo assim e depois? Não me sabes ler assim ou queres que seja outro? Sou eu apenas, mero grão de arrozal, não enche o papo a galinha assim, cada grão outro e não felizmente igual, como cidadãos em dias de festa.
Festas de faço minha cidade, pena que sejam festas contadas, contas breves de dias, fossem festa os anos e não dias, e talvez um querubim viesse e mudasse o tempo, e desse aos homens a suprema esperança do desafectado afecto, e estes à natureza se dessem, e transformasse por ordem do Supremo, que de onde está em lugar que não é, em tudo e todos mandando segundo a lei de Moisés, Buda e Pessoa, sabendo construír os dias em noites de vigília, porque já tudo está escrito muito antes de ser dito e nada se apaga , analfabetos somos da eternidade, desencontrados na festa, perdidos da fraternidade, mando de Deus e da sua natureza.
Fraternidade, afectos apressadamente suprimidos em lugar interior, trocados pelo fácies social, pacto, tacto, olfacto, contacto, não me toques nem aqui nem ali, nem hoje nem ontem, amanhã não estou. Sou contrato de trato maltrato e… como está, contente-se e é muito. Não sabe o homem que hoje é já seu passado e outro dia se passará, rosário finito de diversas finitudes. Olhe-se o compósito propósito de restar o que resta. Só eu sei o que presta, hã? que dizes ó ponto, fala alto! um momento. Não ouço, estão-me a ouvir, repete depressa, onde foste ponto? ah que te pesponto!
Máscaras e biombos, teatros de vidas consabidas na monotonia de uma pobre nota que não é sol, quando muito ré fingindo de lá para aqui.
De novo se foram o santo, o dia e a festa, e uma solidão tremenda paira sobre os homens, esvaziados de cheios de nada, clepsidra quase vazia, fumegando memórias e aromas de ópio e de fantasmas de homens e mulheres daqui contemplando tudo na sua translucência sem tempo, equador às voltas no eixo, as horas a dar e a cobrar. Dobra-se também o fazedor de dobragens que sempre há montanha maior, e todas as verdades já eram mentiras antes de serem novas verdades.
Olhe-se para dentro, onde reside o divino espezinhado, enclausurado e amordaçado, e invoquemos o santo nome do nome, e, se tempo tiver que tem, mesmo de longe e de toda a parte, perdoar e abençoar os nossos atalhos de barro, e com a vontade de um pensamento, transformar de novo o barro em homem.

24 Jun 2016

Lei demorada

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a antiga China existiam estes dois ditados, “é raro um homem viver até aos 70 anos” e “ter um idoso em casa é um tesouro raro”. Mas, com os avanços do sistema de saúde, a esperança de vida aumentou a ponto de já ser possível viver até aos 100 anos. No entanto, viver muito não é sinónimo de viver bem, sobretudo, quando o sistema de segurança social não providencia as necessidades dos idosos sem um fundo de poupança. Nesse caso, ficam desprotegidos no final da vida e podem facilmente tornar-se num encargo para a família. Em Macau, o Regime de Segurança Social garante uma pensão de sobrevivência, a quem tenha contribuído para o Fundo de Segurança Social. No entanto esta pensão não cobre de forma alguma todas as despesas. Nesse sentido, surgiu uma proposta para a criação de um Fundo de Previdência Central, para o qual descontarão empregados e empregadores. É certamente a resposta às necessidades da população.
Esta recomendação encontra-se descrita em detalhe na “Proposta de Consulta da Reforma do Sistema de Segurança Social e Protecção na Terceira Idade”, publicada em 2008. Mas, queremos salientar o facto do Governo da RAEM não ter implementado, ao longo de todos estes anos, o enunciado da proposta, preferindo esperar que o Conselho Permanente de Concertação Social concluísse a sua discussão, o que só veio a acontecer recentemente. Mas finalmente, a tão esperada proposta de lei do “Regime de Previdência Central não Obrigatório”, acabou por surgir. Sendo por natureza não obrigatório, implica, como é bom de ver, que as contribuições para o Fundo de Previdência Central não são obrigatórias. Caberá aos empregadores e empregados chegar a um acordo quanto às contribuições para este Fundo. Os conteúdos da proposta de lei definem regras específicas das quais ficará a depender a implementação de certas medidas. Estas regras estão particularmente explícitas na elaboração da reversão de direitos, e destinam-se a impedir desvios de fundos deste organismo.
Após aturada discussão no seio do Conselho Permanente de Concertação Social, a proposta, composta por 54 artigos, subiu à Assembleia Legislativa onde foi debatida durante dois dias. Foi finalmente aprovada por meio de uma votação na generalidade, com 25 votos a favor e 3 votos contra. Contudo, o resultado não reflectiu o ambiente de intenso debate que se prolongou por duas sessões, o que leva a concluir que todo este aparato faz parte do jogo político e tem como objectivo chamar a atenção do público em geral e dos eleitores em particular.
Durante os dois dias de discussão, que antecederam a votação na generalidade, vários oradores reclamaram para si o estatuto de representante da região socialmente mais desprotegida. Estes oradores não estavam satisfeitos com os conteúdos dos diferentes artigos da proposta de lei e apresentaram mais exigências. Os discursos foram repetitivos o que dificultou a tarefa do Presidente da Assembleia Legislativa. A proposta de lei acabou por ser aprovada na generalidade, o que significa que muito provavelmente só passará ao exame na especialidade no próximo ano. E mesmo que a proposta de lei seja aprovada nesta legislatura, terá ainda de esperar pela conclusão do processo eleitoral e pelo novo elenco legislativo. Este calendário de discussão permitiu que os actuais deputados tivessem desperdiçado muito tempo. O modelo que permite que uma proposta de lei possa esperar três anos até ser aprovada, originou que o Regime de Previdência Central não Obrigatório possa entrar em vigor apenas em 2020. Se os macaenses não tomarem outras medidas, a sua protecção básica na vida pós-aposentação não ficará salvaguardada.
A implementação do Fundo de Previdência Central é uma medida urgente para a população idosa de Macau, como prova a criação deste Fundo por muitas instituições locais. Desde a apresentação da “Proposta de Consulta da Reforma do Sistema de Segurança Social e Protecção na Terceira Idade”, em 2008, só agora o Governo da RAEM avançou com a lei de regulamentação do Regime de Previdência Central não Obrigatório, uma medida que peca por tardia. Se o Governo da RAEM quisesse verdadeiramente assegurar uma protecção adequada a todos os seus residentes, não teria levado três anos a apresentar a proposta a debate e, teria sim, usado esse período de tempo para analisar e aprender com a experiência das regiões vizinhas de modo a estabelecer para o Regime de Previdência Central Obrigatório o melhor modelo possível.

24 Jun 2016

O sonho indiano

“Maintaining rapid yet environmentally sustainable growth remains an important and achievable goal for India. The country’s main problems lie in the disregarding of the essential needs of the people. There have been major failures both to foster participatory growth and to make good use of the public resources generated by economic growth to enhance people’s living conditions; social and physical services remain inadequate, from schooling and medical care to safe water, electricity, and sanitation.”

An Uncertain Glory: India and its Contradictions
Jean Drèze and Amartya Sen

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Índia não pensa no tão ansiado e cobiçado papel de ser uma superpotência económica, que parece ter ficado enterrado no passado e de que se recorda com receio. O aumento do preço do petróleo devido à guerra no Iraque, em 1991, deixou a Índia com apenas duas semanas de reservas em dólares para as importações de petróleo bruto. O Fundo Monetário Internacional concedeu empréstimos, tendo como contrapartida a liberalização da sua economia autárquica. O então ministro das finanças e depois primeiro-ministro, afirmou, parafraseando o escritor francês Victor Hugo, de que nenhuma força podia parar uma ideia quando o seu tempo tivesse chegado, mudando assim, o curso da história moderna do país asiático, com a abertura da economia, e nascia a “Índia brilhante”.
As duas décadas seguintes podem ser consideradas, como o período mais próspero que a índia viveu, durante toda a sua longa e rica história. Os centros comerciais tornaram-se nos novos templos e o oásis da nova classe média, os hambúrgueres da multinacional McDonald’s, uniram-se ao apimentado menu local e as estradas atulhavam-se de Toyotas, Audis e Fords, e não se discutia se a Índia seria uma superpotência, mas quando atingiria tal estatuto. Os sonhos de prosperidade e poder internacional da Índia foram dissolvidos com a pior situação económica, que o país enfrentou em duas décadas. Acredita-se que tenha sido o prognóstico exagerado de uma crise eminente, em 2013, que parecia querer reavivar o insucesso de 1991, quando o então primeiro-ministro afirmou que tinham reservas monetárias para apenas seis meses, mas que não tinha comparação com a situação desse fatídico ano, com a promessa de não voltarem a viver a crise na balança comercial.
A taxa de câmbio era fixa e passou a estar ligada ao mercado. As reservas apenas cobriam três semanas de importações em 1991, e a Índia foi forçada a comprometer o seu ouro para pagar os seus compromissos, tendo realizado profundas reformas para abrir a sua economia. A falsa crise de 2013 deveu-se ao grande volume de importação de ouro e pedras preciosas, traduzindo-se num investimento em activos improdutivos. As importações dessas mercadorias no país que é considerado o maior comprador de pedras preciosas do mundo, atingiu um valor máximo de cento e sessenta e duas toneladas, em Maio de 2013, após a queda dos preços internacionais, obrigando a um aumento de 8 por cento nos impostos. O deficit na conta corrente atingiu o valor único de 4,8 por cento do PIB, enquanto o crescimento económico, caiu para 5 por cento.
A Índia tenta conter a sede insaciável de ouro pelos seus cidadãos, por meio de medidas como o aumento de impostos de importação, proibição da importação de moedas e medalhões, e a obrigação dos compradores nacionais pagarem em dinheiro. O último dos problemas da terceira economia asiática e décima mundial era o colapso da sua moeda, em que a rupia acumulou níveis máximos e contínuos de desvalorização em relação ao dólar, tendo atingido 20 por cento, entre Janeiro e Junho de 2013. A decisão da Reserva Federal dos Estados Unidos de retirar o plano de estímulo monetário conhecido como “Operação Twist”, no final de 2012, traduzido na compra de quarenta e cinco mil milhões de dólares mensais em “Treasuries”, instrumentos da dívida soberana americana, de longo prazo, fez que o dinheiro resultante das vendas de uma quantidade semelhante de dívida a curto prazo, permitisse aos investidores acesso a dinheiro barato, fazendo-os livrar da moeda indiana.
A fraqueza monetária forçou o banco central da Índia a elevar as taxas de juros, quando a economia sofria uma desaceleração, tendo crescido apenas 4,4 por cento no primeiro trimestre do ano fiscal de 2013, sendo o terceiro trimestre consecutivo de desaceleração do crescimento. A situação actual da Índia, é de lenta recuperação, sendo que na década de 2000, o país cresceu a uma média anual de cerca de 8 por cento. O objectivo era superar a taxa de crescimento anual de 10 por cento, mas apenas a China teve um crescimento superior, tendo o PIB desacelerado no exercício fiscal de 2012-2013, fixando-se em 5 por cento, e a taxa de inflação situou-se acima dos 7 por cento, sendo o ritmo mais lento de crescimento dos últimos dez anos, tendo as exportações e a produção industrial estagnado.
Os planos de gastar milhares de milhões de dólares em auto-estradas, aeroportos e linhas de caminhos-de-ferro desvaneceram-se. A esperada liberalização nos sectores da segurança social, nomeadamente das pensões, bancos, defesa e educação não foram possíveis de se concretizar. As hesitações na tomada de decisões criaram incerteza e desconfiança. A Walmart não actua directamente na Índia por condicionalismos legais, operando através da Best Price Modern Wholesale, a Ikea irá abrir a sua primeira loja na Índia, em Hyderabad, no segundo semestre de 2017, pelo que em 2012, nenhuma destas multinacionais ou semelhantes, operavam directamente na Índia.
O governo indiano esperava que essas multinacionais melhorariam o antiquado sector agrícola e ajudassem a aperfeiçoar as pobríssimas infra-estruturas do país, pois cerca de 40 por cento das frutas e legumes danificavam-se a caminho dos mercados, devido ao mau estado das estradas e à falta de cadeias de frio. A história do desenvolvimento do mundo, oferece poucos exemplos de uma economia que cresce tão rapidamente, e por um período tão longo de tempo, com resultados demasiado limitados, quanto à diminuição das carências dos cidadãos, como afirmaram o Prémio Nobel da Economia Amartya Sen e seu colega economista Jean Drèze no seu livro “An Uncertain Glory: India and its Contradictions”. No país do elefante um terço das pessoas, ou seja, mais de quatrocentos milhões de pessoas, não têm electricidade, enquanto no país do dragão apenas 1 por cento das pessoas, carece de electricidade.
A população alfabetizada na Índia é de 74 por cento, enquanto na China é de 95 por cento. Os economistas recorrem à comparação com o Bangladesh, país considerado um caso perdido pelos especialistas em desenvolvimento, até recentemente. A população do Bangladesh tem maior expectativa de vida que a da Índia, as mulheres morrem menos de parto, maior número de crianças do sexo feminino frequenta a escola, os níveis de alfabetização são mais altos e existe menos desnutrição infantil. A sociedade é considerada boa quando o mais idoso e o mais jovem, têm acesso a uma vida digna. A alfabetização, desenvolvimento da condição da mulher, saúde, política ambiental, luta contra a pobreza, programas de liderança para a juventude e projectos para a infância são acções que devem ser implementadas em todos os países, e em particular na Índia.
O Banco da Criança foi uma iniciativa criada em Maio de 2013, na Índia, por crianças e para crianças, com o objectivo de as ensinar a importância da poupança e planeamento financeiro, quer para a sua educação, como para doarem uma parte das suas poupanças, com o fim de ajudarem as crianças mais pobres. Mais de mil e quinhentas crianças, em 2015, pequenos aforradores, participaram no projecto, que é de bem-estar e desenvolvimento para todos, expressando a visão de Mahatma Gandhi, quanto ao futuro da sociedade humana. A Índia celebrou a 15 de Agosto de 2007, com toda a pompa, circunstância e triunfalismo o sexagésimo aniversário da sua independência da Grã-Bretanha.
O segundo país mais populoso do mundo, parecia ter deixado para trás a memória do processo doloroso, que levou à divisão por critérios religiosos da antiga colónia britânica e à criação simultânea da Índia e do Paquistão, que até então incluía o Bangladesh. Estimulado pela expansão económica e pela sua capacidade de inovação tecnológica, o governo indiano convenceu-se de ter encontrado um modelo de desenvolvimento sustentável duradouro. O então primeiro-ministro nas comemorações da memorável data, afirmou, que podia assegurar que para cada um dos cidadãos e para a Índia, o melhor estava para acontecer, destacando as mudanças necessárias de forma a evitar que um terço dos indianos continuasse a sobreviver com menos de um dólar diário.
A Índia efectivamente não pode converter-se num país com ilhas de alto crescimento, paredes meias com vastas áreas que não recebem qualquer benefício do desenvolvimento, tendo o governo indiano anunciado um multimilionário plano de investimentos para incentivar as infra-estruturas, agricultura que é a principal actividade económica e melhorar o nível de educação, que não consegue resolver o analfabetismo, e que afecta uma terça parte da população. O grande sonho da Índia, é o mesmo que tinha o pai da independência, Gandhi, que sempre sonhou e lutou por um país livre, que só conseguiria a sua prosperidade e felicidade com a erradicação total da pobreza. O principal objectivo do Estado é garantir um crescimento equitativo e geral, evitando uma distribuição de rendimentos de forma desigual e opaca.
O sonho de Gandhi era conseguir um país independente, isento de abusos e da exploração indevida. O seu método foi a paz, ou seja, por meio de manifestações não violentas, como as célebres marchas pacíficas, e nunca de uma Índia divida em três países, e menos com conflitos no seu interior, como acontece com o Paquistão sobre Caxemira, ou tendências separatistas em vários grupos étnicos que compõem o país. O sonho de Gandhi era libertar a Índia, e só é possível de realizar pela eliminação da pobreza. Mahatma Gandhi ainda vive na Índia, e não existe cidade alguma do país, onde a sua imagem não seja parte integrante da arquitectura, e o seu retrato decore as paredes dos escritórios de qualquer repartição pública, assim como não há escola alguma, onde a história do pai da nação indiana não seja disciplina obrigatória.
Todavia, as ideias pelas quais morreu há sessenta e oito anos quase desapareceram. Gandhi entrou para a história como um símbolo do pacifismo mundial. Através da sua estratégia da não-violência ou desobediência civil, conseguiu a independência da Índia, mas o objectivo de Gandhi não era só acabar com a colonização britânica, mas incutir o respeito e tolerância entre as diferentes religiões, eliminar a pobreza extrema em que viviam centenas de milhões de cidadãos, e promover o desenvolvimento com base em uma economia rural. Era um retornar à terra, ao elementar. A Índia actualmente é um país muito diferente daquele que o Mahatma (Grande Alma) sonhou. A intolerância entre os hindus e os muçulmanos provocou na curta história independente da Índia e Paquistão, três guerras sangrentas e numerosos conflitos civis, que fizeram centenas de milhares de mortos e mais de 30 por cento da população ainda continua a viver na pobreza extrema, apesar das novas medidas económicas neoliberais adoptadas em 1991, permitirem que apenas 20 por cento dos indianos possam viver de acordo com os parâmetros de uma sociedade de consumo.
O restante da população apenas sobrevive, e o país sangra, vítima da corrupção. O homem Mahatma sentir-se-ia traído pela actual Índia, se acaso estivesse vivo, e é um desrespeito para a sua memória, que a vila portuária na costa noroeste da Índia, onde nasceu, seja um refúgio de traficantes de álcool, jóias, medicamentos e outros produtos, com o beneplácito das autoridades, e apesar do seu nome se encontrar enraizado na memória nacional, para as novas gerações de indianos Mohandas Karamchand Gandhi, com a sua túnica e roca, parece apenas uma figura distante de um livro de história. Os críticos de Gandhi vêm de todas as direcções. Se os nacionalistas hindus o acusam de ter sido a favor dos muçulmanos, as castas mais baixas, que o governo nega existirem, censuram-no de ter pregado a paciência em vez da revolução. Gandhi foi assassinado por um grupo de fundamentalistas hindus que não o perdoou de defender os muçulmanos, e morreu vítima da mesma intolerância que actualmente o crítica e que ameaça o futuro da região.

24 Jun 2016

Um canhão e uma cabana

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem durante uma das pausas para o café (leia-se um dos momentos em que a cada meia hora se vai espreitar o Facebook – e nem falo por mim) deparei com uma animada discussão em torno de mais uma declaração do deputado e empresário Fong Chi Keong na última terça-feira, durante a discussão da proposta de lei do regime de providência central não obrigatório. Penso que nem é preciso acrescentar que foi uma “gaffe”, pois tão habituados que estamos às flatulências intelectuais do deputado que “já nem cheira”. Desta vez sinto que terá ficado qualquer coisa perdida na tradução, mas a “punchline” era bem esclarecedora: os ocidentais contentam-se com duas refeições e praia – faltou acrescentar “antes do chichi, cama”, lógico.
O deputado assumidamente “pro-establishment”, empresário da área da construção civil e herdeiro de um dos Patriotas que elevaram Macau até mais próximo do Céu (literalmente) é tão conhecido pelas suas intervenções extemporâneas que granjeou a alcunha de “canhão Fong”. Para quem vem de fora e não está ao corrente do que (não) se faz de política em Macau, pode ficar sem entender bem o que isto significa, devido à sua ambiguidade – é “canhão” porque diz o que pensa quando muito bem entende e não tem papas na língua, ou fala quando a melhor opção seria abster-se de o fazer? As duas coisas, mas com um “twist” bem patenteado nesta sua mais recente declaração: ele fala de tudo mas nem sempre sabe o que diz, e se já toda a gente ouviu a expressão “act locally, think globally”, pode-se dizer que ele inaugurou o conceito pioneiro de “do nothing locally, think even less globally”.
Imagino a forma como entregou aquela pérola, “os ocidentais contentam-se com duas refeições e praia”, com um ar sério, mudando de assunto logo a seguir, como se aquilo que acabara de dizer fosse “mesmo assim, e se não é passa a ser”. Recordo-me de duas situações mais ou menos parecidas, e que na altura me deixaram perceber esse seu traço de carácter. A primeira foi durante a fase inicial da discussão sobre a proibição do fumo nos casinos, e como o deputado “fuma desde jovem e ainda não morreu”, não vê onde está o mal das pessoas fumarem, que assim sempre podem “conversar com o cigarro” – uma expressão em chinês para descrever a sensação de relaxamento induzida pela nicotina. A outra ocasião teve a ver com a possibilidade de se discutir a união de facto entre casais do mesmo sexo, e aqui foi mais expedito: “a homossexualidade foi tornada ilegal há mais de mil anos”. Sim, mil anos parece tempo mais que suficiente para que se esqueça essa lamentável tragédia que foi a homossexualidade. Querem lá ver esta gente, sempre a querer lembrar o passado, recusando-se a viver o presente? Valha-nos o canhão Fong.
Mas quando toca a defender a sua dama, Fong demonstra que sabe ser um político “a sério”. Durante um debate sobre a “bolha” imobiliária, que tornou praticamente impossível a um jovem da classe média adquirir a sua primeira habitação, Fong exclamou exaltado: “mas porque é que os jovens devem sair de casa dos pais, separando-se assim a família?!”. Sim senhor, um acto de “realpolitik” que de uma assentada promove o fortalecimento do núcleo familiar, e estimula a economia – a sua e de poucos mais, mas isso são detalhes. Durante uma das (frequentes) polémicas relacionadas com a ligação íntima de alguns deputados com o Executivo, Fong explicou a razão da sua empresa de construção ser sempre escolhida na hora de se procederem a trabalhos de restauração na sede do Governo: “como eles já me conhecem, e eu estou mesmo ali à mão de semear, não me custa nada mandar lá uns homens, pronto, para ser sincero é uma chatice”; coitado do senhor, que se sacrifica tanto em nome da celeridade em detrimento da burocracia, e ter que abrir concursos, e tal, que chatice. Obrigado, tio Fong.
Fong é ainda um bom patriota, e um ainda melhor patriarca. Quando em 2010 o Prémio Nobel da Paz foi atribuído ao dissidente chinês Liu Xiaobo, o deputado democrata Ng Kwok Cheong propôs na Assembleia Legislativa que se fizesse um louvor ao escritor que Pequim considera “persona non grata” – uma das costumeiras provocações da ala democrática, que sabia muito bem que esta proposta ia ser chumbada, mas Fong não se conteve, levantou-se e deixou saber o que pensava de Liu: “um criminoso”, acusando os democratas de “cumplicidade numa conspiração para ocidentalizar a China!”. Ah esses mercadores do ópio em forma de ideias. Mas o melhor guardei para o fim, e toda a gente se lembra certamente da intervenção quase surrealista do canhão Fong a propósito da lei que criminalizou a violência doméstica: “quando o homem quer, e a mulher não quer, há problema”. Esta foi uma frase que me ficou na memória, pois fez-me recordar de uma visita que fiz nos tempos de escola a uma exploração suínicula nos arredores do Montijo, quando o nosso cicerone explicou o processo de cobertura da fêmea do animal: “a gente leva o porco p’a cobrir a porca, mas ela na quer, e gente tem c’ajudar, qué quessade fazer”? De facto, um dilema.
Mas e depois? Isto não é Portugal, onde recentemente um ministro se demitiu por ter prometido distribuir “bofetadas” a dois jornalistas, que esquecendo-se que se tratava do ministro da cultura não entenderam que eram “bofetadas platónicas”, e aqui há uns anos um outro ministro foi obrigado a renunciar ao cargo por ter feito com os dedos um par de corninhos a um deputado em pleno parlamento. Mas coisa de somenos importância, e feita à socapa. Quem sabe se precisam lá de um canhão destes para lhes mostrar como se faz? E com duas refeições por dia e praia, ainda faziam dieta e ficavam com boas cores. Que tal?

23 Jun 2016

Wabi Sabi, a falta que nos faz

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]evemos todos algo a pelo menos um professor. Neste caso, devo-o ao professor Jorge Cavalheiro em cujas aulas de cultura do Japão tive o privilégio de participar.
Trazia-nos ele um conceito completamente novo para mim e que se viria a tornar dos elementos mais importantes da minha vida; wabi-sabi.
Por um lado, ao explicar-me sentimentos, por outro, ao sistematizar a ideia do prazer pela imperfeição que eu sentia quase sem perceber a razão porquê.
Vivemos numa sociedade obcecada pela perfeição. O consumidor exige, o fabricante faz, a formação ocidental do prazer pela simetria condiciona-nos, torna-nos mestres do Photoshop, escravos da quimérica perfeição, alucinados pelo que é novo, brilhante e opulento.
O wabi-sabi traz-nos de volta ao que cale realmente valem a pena. À apreciação das imperfeições, à noção de impermanência e no quão bonito tudo isso é.
Não é fácil traduzir wabi-sabi, nem a tal me arrogaria, por isso limito-me à definição que me pareceu mais conveniente de todas as que fui ouvindo – o perfeito-imperfeito.
Contava-nos o prof. Cavalheiro, uma das muitas histórias de Seno Rikyu, um monge zen do séc. XVI, e um dos grandes responsáveis pela popularização do conceito.
‘Um dia, Seno mandou um discípulo limpar o jardim. Um dia passou ele na tarefa, assegurando-se de tudo deixar impecável. Trabalho terminado, e ao ser questionado pelo rapaz se bem executado, Rikyu respondeu abanando o ramo de uma árvore e provocando a queda de algumas folhas. Agora estava terminado’. Nada podia ser demasiado perfeito, acreditava Rikyu, pois a perfeição não deixa a mente criativa trabalhar. Além disso, o monge alertava para o respeito pela passagem do tempo, pelo rústico, pelos objectos modestos, às vezes consertados. Para a importância de tudo isso para o nosso próprio equilíbrio.
Considerando mais bonitas as coisas quando nelas podemos apreciar as marcas do tempo e a sua própria individualidade. Neste raciocínio, uma taça rústica tem muito mais valor do que outra, incólume, nova e perfeitinha.
Como diz o arquitecto Tadao Ando, “wabi-sabi é a arte de descobrir beleza na imperfeição e profundidade na natureza, aceitando o ciclo natural de crescimento, declínio e morte.”
Numa perspectiva mais actual, para Ando, wabi-sabi é “autenticidade, mercados de rua e não hipermercados; madeira envelhecida e não laminados; papel de arroz e não vidro”.
Uma forma de apreciar a vida como ela é, o prazer simples de admirar o musgo num muro, as folhas que cobrem a rua depois de um vendaval ou por ser hora disso; as flores vermelhas das “árvores dos exames” que todos os anos nos estendem tapetes escarlates pela cidade.
As teorias de Rikyu ficaram bem vincadas no desenho da cerimónia do chá, ainda hoje feita de acordo com o seu método, onde as loiças são rústicas, a simetria não faz parte da decoração da cabana (não pavilhão) do chá, que deve situar-se num lugar discreto do jardim, mas onde seja possível observar a passagem das estações pela janela. Um lugar de paz, onde os samurais eram proibidos de entrarem armados, desenhadas que foram umas bainhas no exterior para que as espadas aí fossem deixadas.
Rikyu criou a cerimónia do chá como resposta à moda extravagante da época na corte japonesa, onde o chá era ingerido em sumptuosas loiças chinesas durante cerimónias faustosas ocorridas nas varandas em noites de lua cheia.
“O chá é para todos”, disse Rikyu e transformou o processo num momento simples, de reflexão, de paz e sem ostentações, acessível a qualquer um.
À Lua Cheia contrapôs a meia lua, ou a lua em dia com algumas nuvens. As loiças chiques substituiu-as por outras mais simples, adquiridas em artesãos pelas aldeias em que passava, ou outras mais velhas mas bem remendadas.
Às vezes, quando apanho um japonês falo-lhe de wabi-sabi. A maioria sorri confessando que o Japão anda esquecido disso. É normalmente um sorriso que aparenta saudade de tempos melhor vividos.
Esqueceram-se eles, esquecemo-nos nós porque, em boa verdade, não é preciso conhecer a formulação deste conceito para percebermos a importância de nos relacionarmos com a impermanência, para reconhecermos os sentimentos que nos invadem quando desligamos o complicador e nos deixamos enlevar pela simplicidade, por objectos com carácter, por formas mais genuínas de vida.
Lembrei-me disto um dia destes num desses autocarros wabi-sabi da Transmac. Os minis onde ainda se tem o prazer de escancarar uma janela, mas onde, nalguns, as clássicas campainhas, discretas e vintage, foram substituídas por uma lâmpada sem graça e um estridente órgão electrónico que nos faz pensar duas vezes se devemos mesmo tocar para sair.
Macau precisa muito de wabi-sabi. O mundo precisa muito de wabi-sabi, para que possamos respirar e sonhar um pouco melhor.

22 Jun 2016

Orlando

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Orlando em Orlando vai a uma discoteca à noite para dançar. O lugar chama-se Pulse e não discrimina nem rejeita ninguém. Esta foi a primeira ida à discoteca e não foi difícil para o Orlando adorar o ambiente, a música e as pessoas.
Mas o Orlando em Orlando não estava à espera de presenciar o terror tão de perto, tão pessoalmente. Ninguém entende à primeira o que se passa. Uma discoteca, por definição, é um lugar barulhento, confuso e escuro. Quanto entra um homem a disparar com uma arma de fogo, o ruído dos tiros podiam ser parte da música. Mas não eram.
Foi a tragédia na qual o Orlando de Orlando saiu ileso quando muitos foram fatalmente alvejados e outros ficaram em estado muito grave. Os olhos do mundo viraram-se para Orlando e para a pequena discoteca que viu o que nunca esperaria ver: medo, violência e morte. O resto vimos nós nas notícias. Mas o Orlando de Orlando é fictício, apesar de poder descrever qualquer sobrevivente desta fatídica noite de saída nocturna, à partida inofensiva.
A discoteca Pulse é uma discoteca gay, frequentada por gays, simpatizantes, exploradores, pessoas que acreditam e respeitam a liberdade sexual de cada um. O atirador que entrou ali dentro matou sem dó nem piedade por razões que ainda não são claras. Poderão ser sido razões ideológicas, psicológicas ou sociais. O comportamento social humano é assim, muito complexo, complexo demais para reduzir qualquer infeliz acto à tendência Trump-tizada que justificam comportamentos e pensamentos islamofóbicos. O atirador era, muito provavelmente, um homem com dificuldades psicológicas e emocionais que se desenvolveram ao longo dos anos, em combinação com uma ou outra pressão social por aceitação e bem-estar, e a cereja em cima do bolo, o fácil acesso a uma arma de fogo. Um criminoso carrega em si uma complexidade imensa de entendimento do mundo em que dá sentido a actos atrozes como este. Para este homem, o que é que seja que o tenha movido, o alvo seriam os homossexuais. O alvo foram as pessoas que amam livremente, fora da norma expectável homem – mulher e que muitos ainda julgam ‘imoral’ e pouco ‘natural’.
Não consigo deixar de reparar que esta violência contra um grupo, é movida por um ódio incompreensível que existe e que se generaliza a todos os membros afiliados. Os ‘gay,’ os ‘muçulmanos’, os ‘judeus’, os isto, os aquilo, os, os… São discursos e actos comunicativos que espalham uma norma onde é aceitável discriminar pessoas, só porque as percebemos como parte de um grupo diferente, desconhecido e pouco compreendido. A violência ainda existe contra os homossexuais, todos os dias, de todas as formas. A mais recente tendência preconceituosa onde julgam todos muçulmanos terroristas, cresce as olhos vistos. Isto tem que parar.
Ultimamente que a comunicação social traz ao nosso conhecimento o que de horrível tem acontecido, o desespero e o stress colectivo e individual aumenta. E é perfeitamente normal, envolvermo-nos em ideias ainda mais rancorosas perpetuando a violência e a incompreensão é que não. O amor, aquele sentimento mais puro e que une as pessoas, tem que ganhar. É por amor que nos juntamos, é por amor que somos homossexuais, heterossexuais ou bissexuais. O amor vencerá se amarmos esta humanidade que mais parece podre de ideias generalistas, preconceituosas e discriminatórias. O Orlando foi à discoteca para conhecer alguém, para dar uns beijinhos, para sair umas quantas vezes e para se divertir. Celebrava-se a liberdade no amor quando, inesperadamente, o cenário mostrou-se uma banheira de sangue. O Orlando só queria ser feliz.
O Orlando somos todos nós, nós pessoas que saímos e nos divertimos esperando unicamente uma valente ressaca no dia a seguir. O Orlando somos nós à procura do amor e a procurá-lo nos sítios que julgamos certos, com as pessoas certas. Nós somos todos Orlando, quer queiram, quer não.

21 Jun 2016

Chovem benesses

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 5 o website “Yahoo, Hong Kong” anunciou que na Suíça tinha sido apresentada uma proposta para distribuição de 2.500 USD mensais aos cidadãos. Este valor seria atribuído a todos os maiores de 18 anos. Aos menores caberia a quantia mensal de 625 dólares. Mesmo as pessoas com emprego teriam direito ao subsídio.
A proposta data de 2013. A legislação suíça prevê que no caso de uma proposta de lei ter sido assinada por um mínimo de100.000 pessoas, deverá ser submetida a sufrágio nacional.
Os apoiantes da proposta defendiam que este valor poderia garantir a manutenção dos direitos básicos e da dignidade dos cidadãos. A partir do momento em que recebessem este valor, as pessoas poderiam deixar de trabalhar e passar a dedicar-se a qualquer actividade que desejassem; como por exemplo, o estudo, o empresariado ou, simplesmente, usufruir da companhia dos familiares. Os defensores da ideia acreditavam ainda que a proposta poderia reduzir a carga de responsabilidades do Governo no que concerne à gestão do fundo de aposentações, seguros laborais e Segurança Social.
O ano passado, os adeptos da moção organizaram um sorteio para promover a ideia e Carole foi a vencedora. O prémio consistia na atribuição mensal de 2.500 dólares, ao longo de 12 meses. Logo após receber esta benesse Carole voltou a estudar.
Actualmente, o subsídio de sobrevivência na Suíça é de 2.219 dólares mensais e abrange cerca de um oitavo da população.
Mas os opositores da ideia argumentaram que a distribuição desta soma aumentaria muito a carga financeira do Governo, avaliada para 2016 em 660 biliões de dólares. Se a proposta tivesse sido aprovada a despesa teria aumentado para 2.080 biliões.
Sabem qual foi o veredicto final? “Rejeitada”. Mais de 70% dos cidadãos opôs-se à proposta de distribuição de dinheiro.
Mas a história não se fica por aqui. Na Finlândia será apresentada uma proposta semelhante em 2017, mas a quantia a distribuir será inferior e a atribuição condicional. Por outras palavras, a distribuição ficará dependente de certas condições.
Não é surpreendente que este projecto de lei tenha sido rejeitado. O resultado indica claramente que a maior parte dos cidadãos é consciente. É fácil perceber que se toda a gente tiver dinheiro sem precisar de trabalhar, o Governo não vai conseguir angariar impostos.
Imaginemos que depois de descontar os impostos o contribuinte fica apenas com 25% dos seus ganhos, os outros 75% vão para o Estado. Se você estivesse na pele deste contribuinte teria motivação para continuar a trabalhar? Perante esta situação toda a economia do País colapsaria.
É sabido que em Macau todos os residentes recebem anualmente uma certa quantia. Nos últimos anos o valor tem rondado as 9.000 patacas per capita. No entanto este valor não se compara aos 2.500 dólares mensais da proposta suíça. Em primeiro lugar, o valor distribuído em Macau é encarado como um bónus, ou subsídio. Não é um pagamento mensal e não permite que as pessoas deixem de trabalhar. A distribuição desta verba aos residentes não aumenta a despesa do Governo de Macau.
Em segundo lugar, ninguém está à espera das 9.000 patacas anuais para sobreviver, é um valor que os residentes podem poupar ou gastar, como melhor entenderem. Esta distribuição é um acto benéfico para os habitantes de Macau.
Contudo, é necessário voltarmos um pouco atrás. Este tipo de pagamento proporciona felicidade aos residentes individualmente, mas não beneficia de forma significativa a sociedade em geral. Por exemplo, se colocássemos o total destas verbas na Segurança Social, garantiríamos melhor qualidade de vida aos cidadãos com mais de 65 anos. Nessa altura as 9.000 patacas darão provavelmente mais jeito.
Independentemente da forma como é feita, a distribuição de dinheiro é sempre boa para os residentes. Mas se se transformar num pagamento regular a longo prazo, passa a ser negativa. E se este pagamento acarretar um grande aumento da despesa do Governo, então será muito mau para a sociedade em geral.
A ideia de distribuição de dinheiro na Suíça é boa, mas dá origem a muitos problemas. É o tipo de distribuição que não pode ser facilmente implementado.

20 Jun 2016