Vacina anti-britânica

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] referendo da última semana que ditou a saída do Reino Unido da União Europeia teve mais que esse efeito, que agora temos como certo que realmente se concretizará: ensinou-nos também um pouco mais sobre nós próprios, sobre os outros, e sobretudo do que cada um espera retirar para si daquilo que no fundo é suposto pertencer a todos. O efeito imediato do Brexit teve um impacto alarmante, com mais incidência nos mercados, e todas as previsões apontavam para o mais negro dos cenários. Este despertar em sobressalto levou a que nos dias seguintes surgisse um novo neologismo condizente com a surpresa de quem foi dar este salto no escuro e deu consigo a pensar que se calhar fez a escolha errada – o “bregret”, uma sensação de arrependimento que bate mais forte que a ressaca comum. É como acordar no dia seguinte e a última coisa que se lembra da noite anterior foi aquela primeira bebida, ainda a procissão ia no adro. Exactamente isso que estão a pensar, sim, mas aqui não basta um mero “check-up” médico para afastar os piores receios. Esta é uma aventura cujas consequências não a deixarão apagar-se da memória. Será necessário aprender a viver com elas.
Se há um responsável máximo por aquilo que tanto pode vir a ser um simples virar de página da História, como um terrível equívoco é sem dúvida alguma o primeiro-ministro britânico David Cameron, que doravante poderá muito ser referido como “aquele pateta que feriu de morte o projecto da construção europeia” – mas terá sido mesmo de morte? Agora que as potências mundiais extra-UE começam a digerir a “brain and kidney pie” que o eleitorado britânico lhes serviu em dose cavalar, é de altura de adaptar as relações do Reino Unido a esta nova realidade, que os restantes elementos da União querem ver concretizada “o mais brevemente possível”. E de facto convém que assim seja, uma vez que manter um membro “morto” pode levar a que os restantes gangrenem, mas em condições normais seria quase uma certeza que a UE iria funcionar sem o Reino Unido, e não era mais ou menos isso que acontecia? Os britânicos nunca estiveram de alma e coração na União, rejeitaram o Euro, e basicamente estavam ali descontentes por não conseguirem retirar as o maior número de benefícios enquanto evitavam compromissos – no fundo resiste ainda na velha Albion uma certa mentalidade imperialista, arrogante e supremacista. Foi com essa arrogância que Cameron procurou um estatuto dentro da UE que os dotasse de mais regalias, mas mediu mal o momento, e acabou dar um tiro não no pé, mas nas duas pernas.
Do muito que li sobre o Brexit nestes seis dias, há duas opiniões que me pareceram pertinentes, e vindas de quem tem uma perspectiva que nos pode dizer mais a nós, portugueses: Miguel Esteves Cardoso, ou MEC, o português mais britânico do mundo, e Lucy Pepper, britânica de North Devon, no sudoeste de Inglaterra, mulher dos sete ofícios de quem tenho a inexcedível honra de trocar impressões de quando em vez (dentro daquilo que permite a sua típica arrogância britânica, que no caso dela é encantadora). Frontal como sempre, MEC fala de dois Reino Unidos: o cosmopolita, europeísta e de horizontes mais largos, e do outro, conservador, tradicionalista, fechado e retrógrada, e sugere a criação de dois estados: um dentro da UE, com os 48% que optaram pela permanência concentrados nas áreas metropolitanas de Londres e Manchester, e os restantes anti-europeístas numa área que se chamaria “Reino Unido da Inglaterra e do País de Gales”, onde se proibiria “toda e qualquer imigração”. Lucy Pepper, que vive em Portugal porque “é provavelmente o melhor país do mundo para se viver”, e “muito dificilmente consegue imaginar-se a viver noutro lugar” (é adorável, a sério!) fala das diferenças entre as duas campanhas, e de como os apologistas do Brexit faziam uso do ódio, do medo, quase como em jeito de chantagem. Convém referir que estes dois cronistas se encontram à direita do compasso político.
E foi exactamente no aspecto que ambos MEC e Lucy Pepper referiram que se decidiu por uma saída sem retorno do Reino Unido, que paradoxalmente poderá deixar de o ser a médio prazo caso a Escócia e o País de Gales decidam eles próprios referendar a saída dessa união, nem que seja com o pretexto de quererem continuar ligados à UE. E isto que sirva de aviso aos restantes estados membros, pois com uma eventual implosão da União e sem a respectiva coesão entre os seus membros, não há limites para o que poderá acontecer em países como a Bélgica, Itália e especialmente a Espanha, onde os movimentos separatistas ganhariam força com o argumento de que mais nada os impediria de alcançar uma total autonomia. E isto pode acontecer a bem, mas o mais provável é que corra muito mal.
De Portugal e dos portugueses tenho observado um misto de apreensão e optimismo irresponsável. Quem como eu se lembra de como era o país e de quão distante estava o resto da Europa, apesar de geograficamente próxima, não olha com bons olhos um eventual retrocesso que nos vetaria a um estatuto ainda mais periférico que o actual. Dos outros que acreditam que isto é uma boa ideia, tudo o que oiço em constante “replay” é a colectânea “Os maiores êxitos do Populismo Saudosista Lusitano”, mas isto tem uma razão de ser. Um dia destes lia uma notícia que dava conta das implicações do Brexit no campeonato inglês de futebol, a Premier League, e de como os jogadores comunitários iam passar a contar como estrangeiros. Num dos comentários lia-se qualquer como “como se isso tivesse interesse para mim, que tenho que viver com 600 euros por mês depois de uma vida a trabalhar”. É este o problema dos portugueses em particular, quando falam do 25 de Abril, por exemplo, e de como as coisas lhes correram mal, como se a liberdade que foi conquistada em nome de todos os tivesse a eles como “convidado especial”. Certamente que os que souberam aproveitar o bem que adveio de sermos os donos do nosso próprio destino, e integrados no seio de outros como nós com o propósito de nos tornarmos ainda mais fortes temem o que pode sair deste Brexit. De facto a UE tem pecado por não atender às necessidades dos cidadãos europeus, e é pena que tenha que acontecer a saída de um dos seus principais elementos para se repensar o projecto. Mas será que se uma das pernas está manca, temos mesmo que cortá-la?

30 Jun 2016

Os muros das lamentações

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s imagens valem mil palavras, certo? Então aqui ficam três. Acompanhadas de duas sugestões.

I. Com a falta de espaços bravios que tanta falta fazem ao desenvolvimento saudável das crianças porque se encerram os poucos que ainda por aí andam com estas cercas de má catadura? Temporários que sejam porque não deixar que sejam apreciados? As brincadeiras que eu ali não faria se tivesse 10 anos…

II. Mas já que gostam de os tapar, porque o verde é feio, ou porque as ervas picam, sei lá… porque é que o Governo não contrata (sim, contratar) os artistas locais para os decorarem? Será melhor andarmos entaipados por estas cercas de “amarelo-já-morri”?

Música da Semana

“Where Have All The Good Times Gone” (David Bowie, 1973)

(…)
“Won’t you tell me
Where have all the good times gone
Where have all the good times gone
Where have all the good times gone

Once we had an easy ride 
and always felt the same
Time was on our side 
and I had everything to gain
Let it be like yesterday
Please let me have happy days”
(…)

29 Jun 2016

Direito ao sossego

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 11, o website “money.cnn.com” publicou um artigo sobre a proposta de um novo direito a implementar em França. Designado por “direito a desligar”, assegura que os funcionários não serão obrigados a responder a emails de serviço, durante os períodos de descanso. Se a proposta for aprovada entrará em vigor em Julho de 2017.
A norma prevê que uma empresa com mais de 50 funcionários não poderá enviar emails ao pessoal fora do horário de serviço. Aos empregados é assegurado o direito a não responder. O intuito desta norma é reforçar a ideia das 35 horas de trabalho semanais que se quer levar à prática.
Os franceses acham que os patrões mantêm os empregados a trabalhar para lá do horário normal através do mail. A pressão continua fora das horas de serviço. Os emails funcionam como um laço que prende os trabalhadores às preocupações laborais e invadem as suas vidas privadas. A casa deixa de se distinguir do escritório.
Um dos pontos interessantes deste direito é não implicar qualquer sanção. Funciona mais como um incentivo e o governo espera que o empregador implemente a regra voluntariamente, não estando prevista qualquer penalização em caso de infracção.
O “direito a desligar” confere obviamente protecção aos empregados. Mas, digamos, existem alguns princípios fundamentais que sustentam este direito. Os franceses acreditam em dois conceitos de tempo, “Chronos” e “Keiros”. Consultemos as respectivas definições na “Wikipedia”,
“Chronos é a personificação do tempo na filosofia pré-socrática, sendo mencionado em obras literárias posteriores.”

Keiros é outro deus grego. Representa a ocorrência de um acontecimento especial num determinado período de tempo. O “tempo K” é o tempo de produção, o tempo criativo. Por isso, quanto mais prolongado for o tempo de trabalho menor será o “tempo K”, e a capacidade de produção e criação diminuirá.
Este direito permite a liberdade depois do horário laboral e garante que as pessoas deixem de ser incomodadas pelos emails dos patrões. Reforça também a ideia das 35 horas de trabalho semanal, que se quer ver respeitada em França. Mas será esta história é assim tão simples?
O “direito a desligar” traz consigo algumas implicações. Em primeiro lugar, se a empresa for francesa e não precisar de estabelecer comunicações para outros fusos horários, não haverá consequências de maior para ninguém. Mas se a empresa for estrangeira e, ou, tiver de lidar com clientes que se encontrem noutros fusos horários, pode causar várias perturbações. A empresa terá nesse caso de indigitar os responsáveis pelas relações internacionais, sobretudo nos casos que impliquem diferença de horários.
O trabalho por turnos, com horários nocturnos, poderá ser uma solução para o problema. Mas implicará certamente um aumento das despesas empresariais, na medida em que estes horários rotativos implicam um pagamento extra.
Em segundo lugar, nos tempos que correm, os emails fazem parte das comunicações electrónicas. O Whatsapp, o Wechat, o Facebook e etc. são todos ferramentas de comunicação electrónica. E se a lei que regulamenta a recepção dos emails não se estender a outras plataformas de comunicação? Por exemplo, se um empregador enviar uma mensagem a um funcionário via Whatsapp, após o horário laboral, para o avisar que na manhã seguinte tem de efectuar determinada tarefa. O empregado só vai ter de se ocupar desse serviço posteriormente, dentro do seu horário de trabalho e não tem de responder à mensagem logo a seguir. Mas se o “direito a desligar” não cobrir outras plataformas, como por exemplo o Whatsapp, então o empregado poderá arranjar problemas, se não responder de imediato ao patrão. Neste sentido, a protecção oferecida por este direito pode não ser suficiente.
Em terceiro lugar, por vezes os emails são identificados como lixo, e nesse caso, não aparecem no “Correio Recebido”. Noutros casos, por qualquer motivo, podem extraviar-se. Em ambas as situações os emails foram enviados, mas não foram recebidos. O “direito a desligar” garante ao empregado a possibilidade de não responder fora do horário de trabalho, mas se o email se perder, nunca mais poderá responder. Nesse caso quem será responsabilizado pela perda do email? É obviamente uma questão que não é abrangida por este direito, mas na nossa vida de todos os dias a perda de emails é um problema que não conseguimos evitar.

A pressão laboral em Hong Kong é enorme. É comum receber-se emails e mensagens dos patrões fora das horas de serviço. Podem ser 11.00 h da noite, sendo que a pessoa tem de estar no escritório às 9.00h da manhã, mas mesmo assim, tem de responder às mensagens do patrão, se não quiser arranjar lenha para se queimar. A injustiça nas relações laborais pode ser facilmente demonstrada.
Em Macau a pressão talvez não seja tanta como em Hong Kong. Mas ainda assim não impede os patrões de enviarem mensagens às 11.00h da noite. O empregado talvez possa não responder, mas uma coisa é certa; no dia seguinte vai ter de apresentar explicações.
O “direito a desligar” é uma boa ideia. Mas, na prática, levanta algumas questões. Para o concretizar será necessário encontrar respostas antecipadamente. A implementação desta norma pode assegurar que os trabalhadores de Hong Kong e Macau deixem de sofrer a interferência dos patrões fora das horas de serviço e garantir-lhes o direito ao sossego

 
Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau

27 Jun 2016

Especial 24 de Junho | Tem na únde, Macau-filo?

– Tenho trinta, quase quarenta anos de Macau, porque não sou macaense?
– Mas … juntas-te à malta?
– Huh?…

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem subscreve este artigo não é especialista algum, quando muito um mero curioso nestas coisas de Identidade, matéria complexa, nem sempre condensável em escassas páginas. Mas, vamos a isto.
Quando me interrogam, “o que é um Macaense”, adopto aquela postura de não a responder directamente, porque assaltar-me-ia invariavelmente a frustração antecipada de quão vã é tentativa de o definir. Ao meu interlocutor limito-me apenas a fazer um paralelismo: “o que é um português?”.
Não é uma questão fácil e é por isso que tenho alimentado, através da Associação dos Macaenses, a constante organização de Colóquios sobre esta temática. Como já era de esperar, nunca se vislumbrou conclusão alguma, pois quanto mais se indaga mais dúvidas somam, e talvez por esta razão, alguns dos meus amigos muito simpaticamente até me perguntaram: “Ó Miguel, já encontraste a tua identidade?!”
Ela de facto permanece no segredo de Deus que deve estar a rir-se dizendo “Procura, filho, que vais longe, vais!”

O paradigma

Corresponde à ideia corrente que o Macaense é o euroasiático de ascendência portuguesa e chinesa, nascido em Macau (passe-se o pleonasmo), culturalmente católico, de língua materna portuguesa. A miscigenação continua a ter um peso preponderante nesta matéria.
Isto não deixa de ser verdade, na grande maioria dos casos, mas o Macaense vai mais além disto. Não me parece que uma definição o possa conter.
Além do mais, a Macau moderna com as novas regras sócio-culturais que o tempo se encarregou de impor.
Macau de hoje situa-se numa zona geográfica de grande expansão e de rápido crescimento económico. O Delta do Rio das Pérolas é hoje zona de explosão económica, de uma China que acordou poderosa e imperial, onde se concentram interesses financeiros transnacionais de valores nunca imaginados. Henggin – ou Montanha, se quisermos – afirma-se como plataforma tecnológica do futuro, a que Macau terá de aceder para a sua sobrevivência económica.
A nossa cidade, por sua vez, constitui uma importante peça deste “puzzle” destinada a ser o eixo de indústria de jogo da China, embelezada com a sigla “centro de turismo e de lazer”. É também o “rendez-vous” dos Países de Língua Portuguesa, no âmbito de uma ousada e inteligente estratégia económica global da China.
E ela é tão impressionantemente pequena que basta usarmos o aplicativo “Google Earth” para assim o reconhecermos.
E aí se situa o Macaense actual.
Tal como os seus antepassados, com a sina de ter de se adaptar a todos os contextos sócio-culturais a que se sujeita, ele molda-se para fazer parte integrante e tirar o melhor proveito desta nova realidade. Se a estratégia do casamento (com elementos de etnia chinesa), foi importante para a sua afirmação social, a língua torna-se um instrumento que lhe abre as portas para outros horizontes. O Macaense moderno é fluente no Mandarim e no Inglês.
Contudo, sem querer menosprezar a língua que deu origem ao seu nome, ele adopta, em relação a ela, uma atitude pragmática: “lamento, mas há outras prioridades.” Por mais cruel e estigmatizante que possa parecer para a susceptibilidade de alguns, ela traduz o instinto de sobrevivência para o Macaense e para a sua prole que resiste em ficar numa cidade, que há muito deixou de ser aquela dos brandos costumes e bairrista dos tempos de outrora.
O Macaense actual deixou de ser o mero funcionário público. Ele procura sair de Macau e é licenciado pelas universidades de toda a parte do mundo. Os que regressam à terra natal, trazem outros valores, outras visões da vida. Ele é hoje um profissional livre, um realizador de cinema, gestor de títulos, estilista, mestre e doutor.
Ele está “por dentro” desta Macau nova até esta o pode levar. Novos veículos de comunicação foram adoptados.
Porém. reagem os da “velha” guarda e de forma nem sempre simpática. “Acabaram-se os macaenses! “, clamam uns. “Se eles não falam Português como podem ser macaenses?”, bradam outros. “E os seus filhos que estudam nas escolas chinesas e internacionais?” e outras interrogações semelhantes, todas elas legítmas não cessam de se fazerem ouvir nos Colóquios sobre a Identidade.
E porque “teriam” de o falar para serem Macaenses? A aceitar isso como verdade, teriamos que rejeitar essa condição a tantos outros que estão na Diáspora, para os quais a língua de Pessanha não faz parte do seu dia-a-dia.
Todavia, nenhum dos “degenerados” deixa de se sentir Macaense. “I am Macau-Filo”, “Ngó hai Tou sang (sou macaense)”, “Me? Macau-Chai”. E o tom é de ostensivo orgulho.
O que pode estar por trás disso?

A diferença como ponto de partida. Macau e a Portugalidade
Sem pretender um tom de autoridade, julgo que tentar explicar o Macaense através da enumeração das suas características palpáveis, provou que não levaria a sítio algum por ser manifestamente insuficiente. E porque não inverter o processo através da diferença. A diferença aqui, não no sentido discriminatório, nem de qualquer complexo, mas apenas como:
O que temos de diferente em relação a outras comunidades e povos?
Ao tentar responder a isso, vejo o forte laço de pertença a Macau. Não apenas aquela minúscula terra no Sul da China, mas também e sobretudo o espaço cultural específico que representa, feito de memória, tradições, História e histórias, noção de família, vivências, relatos, registos, transmitidos de geração em geração. Um Macau de contrastes e de povos que se mesclam, que se entendem numa linguagem comum.
E vejo algo mais. Este laço de pertença é especial, pois vai-nos remeter por sua vez para um espaço ainda mais global (civilizacional), que explica a nossa ascendência, como povo “sui generis” neste sudeste asiático.
A Portugalidade é um palavrão inventado para designar muitos fenómenos identitários que têm por base a noção de pertença a Portugal. Mas ela nada tem, necessariamente, a ver com a nacionalidade ou a língua portuguesas, enquanto tais, ainda que ambos sejam importantes para a sua afirmação. Mas é ela que justifica por que certas pessoas – e não são poucos neste mundo – são portuguesas… sem o serem juridicamente. Linguisticamente.
A Portugalidade explica a génese de Macau do Macaense, pelo périplo português que deixou aqui sementes que germinaram uma cultura diferente – de Portugal e da China – cultura de uma comunidade singular.
Ser Macaense é ter esta noção de diferença pela sua ligação a este mundo global, através do seu nome e da sua ancestralidade, ainda que não fale mais português, ainda que para si Portugal seja apenas CR7 e Benfica.
Quando um Macaense diz “nossa Malta”, “nos-sa genti” ou “we Macaista” ele fá-lo com orgulho, porque sem ele querer, ele exprime este duplo legado que o torna diferente da imensidão de gente que o circunda, nesta absorvente China Nova.
E que interesse tem isto tudo? Tem. Ele dá-nos alento para continuar.

Miguel de Senna Fernandes
24 Jun 2016

Especial 24 Junho | O nome do santo nome

[dropcap style≠’circle’]
T[/dropcap]odas as coisas querem nome, de todas uma inominável, apenas duas se não explicam. Deus e o da Cidade do seu nome santo. Cidade nomeada, explicada em étimos de ilusão erudita, venha a deusa A-Ma e com Deus converse, os dois sorrindo da verdade dos homens, quantificadas em métricas de razão equívoca, história prolongada dos tempos da Babel, fabulosa origem dos desencontros. 
Esteve a verdade sempre tão à tona, mas não a direi, porque o pouco que sei aprendi, e cada um que aprenda, aprende-se não se ensina, encontre-se na perdição das fábulas da vida e distinga-se delas o joio do trigo. Coma o homem pão de joio antes de provar o trigo, saiba encontrar a ordem natural das coisas, todo o caos é ordem e o inverso também, equívocos não.
Pela memória das ruas antigas povoadas de deuses mascarados de homens anónimos, quanto mais humildes mais deuses, salpicam o caminho altares tão humildes que mais valera serem baixares, tão próxima é a natureza dos manes ocultos pelo fumegar do incenso, deuses olhando deuses, fantasmas cheirando a poéticas de nostalgias diferentes, sons inaudíveis musicando o compasso do tempo dos pregões. De que terra és tu que não falas à minha, o meu pregão é outro, não compro nem tãopouco vendo, apenas olho entre o belo e o horrendo, e assisto da janela dos nomes à procissão do tempo deslizando pela cidade, dois préstitos e um caminho, todos passando, obra de deuses para quem todos os becos são saídas de onde remanesce a fragrância indescritível de odores que dão à alma o que o corpo precisa, não há nariz ou palavra que descreva, apenas se suspeita ou adivinha.
Também António de Lisboa, Pádua e Macau é nome de santo, em tempos de desespero lembrado e lá vai mais um ai meu Deus e, quando passa, lá ficaram Deus e o santo para os outros que a vida continua e o resto pode esperar.
Transforma-se a cidade na cadência do minuto, mas não o dia hoje como ontem igual, apenas nós diferentes, uns para igual outros crescendo, cada um em si mandando, alguns obedecendo, futuro não é do que se constrói, antes daquele que dispõe o que o homem põe, seja ovo seja calhau, diga-se assim e já não é mau.
Tem a escrita a cidade que suscita, lugar ritmado de cidadania, utopia que não é mania, apenas matéria concreta do amanhã. Mas quem saberá senão nós, que esta história antiga de que não falo, é fio retalhado, nodulado, amarrado, sugado e consentido, abandonado e pressentido, dorido e ressentido, a factura está pronta, alguém terá de ficar, ficam os homens, e os últimos que paguem a conta.
Não vai ninguém abaixo, homens são como árvores, morrem de pé à maneira de Goya, perdoe- -se aos crucificadores que cravos não ferem alma que não tem corpo, apenas corpo tem alma, e firam mais que por cada cravo cravado dez se irão cravar, assim diz Alá e não sei se existe, heterónimo dos deuses todos, um só da eternidade vindo, cada um crê no que quer. Incrédulo é o que vê sem se chamar Tomé a história que corre.
Quisesse o homem ser fraterno e encontraria o irmão, que mando e poder são inverdades patenteadas, ontem disse, hoje não disse ontem. Mais fácil é julgar que amar, que julguem e odeiem, dói o ódio a quem odeia, perdido entre ser anás ou caifás, venha o diabo e escolha. Não te distraio que estás distraído, como se fosses o centro de um quadrado. 
Quadrado é raíz de cidade, módulo de passados antepassados, cidade velha, cidade nova, mas que é isto de arqueologia, a tua voz é de cá? Apenas existo vivendo, fingindo que escrevo escrevendo, escrevo assim e depois? Não me sabes ler assim ou queres que seja outro? Sou eu apenas, mero grão de arrozal, não enche o papo a galinha assim, cada grão outro e não felizmente igual, como cidadãos em dias de festa.
Festas de faço minha cidade, pena que sejam festas contadas, contas breves de dias, fossem festa os anos e não dias, e talvez um querubim viesse e mudasse o tempo, e desse aos homens a suprema esperança do desafectado afecto, e estes à natureza se dessem, e transformasse por ordem do Supremo, que de onde está em lugar que não é, em tudo e todos mandando segundo a lei de Moisés, Buda e Pessoa, sabendo construír os dias em noites de vigília, porque já tudo está escrito muito antes de ser dito e nada se apaga , analfabetos somos da eternidade, desencontrados na festa, perdidos da fraternidade, mando de Deus e da sua natureza.
Fraternidade, afectos apressadamente suprimidos em lugar interior, trocados pelo fácies social, pacto, tacto, olfacto, contacto, não me toques nem aqui nem ali, nem hoje nem ontem, amanhã não estou. Sou contrato de trato maltrato e… como está, contente-se e é muito. Não sabe o homem que hoje é já seu passado e outro dia se passará, rosário finito de diversas finitudes. Olhe-se o compósito propósito de restar o que resta. Só eu sei o que presta, hã? que dizes ó ponto, fala alto! um momento. Não ouço, estão-me a ouvir, repete depressa, onde foste ponto? ah que te pesponto!
Máscaras e biombos, teatros de vidas consabidas na monotonia de uma pobre nota que não é sol, quando muito ré fingindo de lá para aqui.
De novo se foram o santo, o dia e a festa, e uma solidão tremenda paira sobre os homens, esvaziados de cheios de nada, clepsidra quase vazia, fumegando memórias e aromas de ópio e de fantasmas de homens e mulheres daqui contemplando tudo na sua translucência sem tempo, equador às voltas no eixo, as horas a dar e a cobrar. Dobra-se também o fazedor de dobragens que sempre há montanha maior, e todas as verdades já eram mentiras antes de serem novas verdades.
Olhe-se para dentro, onde reside o divino espezinhado, enclausurado e amordaçado, e invoquemos o santo nome do nome, e, se tempo tiver que tem, mesmo de longe e de toda a parte, perdoar e abençoar os nossos atalhos de barro, e com a vontade de um pensamento, transformar de novo o barro em homem.

24 Jun 2016

Lei demorada

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a antiga China existiam estes dois ditados, “é raro um homem viver até aos 70 anos” e “ter um idoso em casa é um tesouro raro”. Mas, com os avanços do sistema de saúde, a esperança de vida aumentou a ponto de já ser possível viver até aos 100 anos. No entanto, viver muito não é sinónimo de viver bem, sobretudo, quando o sistema de segurança social não providencia as necessidades dos idosos sem um fundo de poupança. Nesse caso, ficam desprotegidos no final da vida e podem facilmente tornar-se num encargo para a família. Em Macau, o Regime de Segurança Social garante uma pensão de sobrevivência, a quem tenha contribuído para o Fundo de Segurança Social. No entanto esta pensão não cobre de forma alguma todas as despesas. Nesse sentido, surgiu uma proposta para a criação de um Fundo de Previdência Central, para o qual descontarão empregados e empregadores. É certamente a resposta às necessidades da população.
Esta recomendação encontra-se descrita em detalhe na “Proposta de Consulta da Reforma do Sistema de Segurança Social e Protecção na Terceira Idade”, publicada em 2008. Mas, queremos salientar o facto do Governo da RAEM não ter implementado, ao longo de todos estes anos, o enunciado da proposta, preferindo esperar que o Conselho Permanente de Concertação Social concluísse a sua discussão, o que só veio a acontecer recentemente. Mas finalmente, a tão esperada proposta de lei do “Regime de Previdência Central não Obrigatório”, acabou por surgir. Sendo por natureza não obrigatório, implica, como é bom de ver, que as contribuições para o Fundo de Previdência Central não são obrigatórias. Caberá aos empregadores e empregados chegar a um acordo quanto às contribuições para este Fundo. Os conteúdos da proposta de lei definem regras específicas das quais ficará a depender a implementação de certas medidas. Estas regras estão particularmente explícitas na elaboração da reversão de direitos, e destinam-se a impedir desvios de fundos deste organismo.
Após aturada discussão no seio do Conselho Permanente de Concertação Social, a proposta, composta por 54 artigos, subiu à Assembleia Legislativa onde foi debatida durante dois dias. Foi finalmente aprovada por meio de uma votação na generalidade, com 25 votos a favor e 3 votos contra. Contudo, o resultado não reflectiu o ambiente de intenso debate que se prolongou por duas sessões, o que leva a concluir que todo este aparato faz parte do jogo político e tem como objectivo chamar a atenção do público em geral e dos eleitores em particular.
Durante os dois dias de discussão, que antecederam a votação na generalidade, vários oradores reclamaram para si o estatuto de representante da região socialmente mais desprotegida. Estes oradores não estavam satisfeitos com os conteúdos dos diferentes artigos da proposta de lei e apresentaram mais exigências. Os discursos foram repetitivos o que dificultou a tarefa do Presidente da Assembleia Legislativa. A proposta de lei acabou por ser aprovada na generalidade, o que significa que muito provavelmente só passará ao exame na especialidade no próximo ano. E mesmo que a proposta de lei seja aprovada nesta legislatura, terá ainda de esperar pela conclusão do processo eleitoral e pelo novo elenco legislativo. Este calendário de discussão permitiu que os actuais deputados tivessem desperdiçado muito tempo. O modelo que permite que uma proposta de lei possa esperar três anos até ser aprovada, originou que o Regime de Previdência Central não Obrigatório possa entrar em vigor apenas em 2020. Se os macaenses não tomarem outras medidas, a sua protecção básica na vida pós-aposentação não ficará salvaguardada.
A implementação do Fundo de Previdência Central é uma medida urgente para a população idosa de Macau, como prova a criação deste Fundo por muitas instituições locais. Desde a apresentação da “Proposta de Consulta da Reforma do Sistema de Segurança Social e Protecção na Terceira Idade”, em 2008, só agora o Governo da RAEM avançou com a lei de regulamentação do Regime de Previdência Central não Obrigatório, uma medida que peca por tardia. Se o Governo da RAEM quisesse verdadeiramente assegurar uma protecção adequada a todos os seus residentes, não teria levado três anos a apresentar a proposta a debate e, teria sim, usado esse período de tempo para analisar e aprender com a experiência das regiões vizinhas de modo a estabelecer para o Regime de Previdência Central Obrigatório o melhor modelo possível.

24 Jun 2016

O sonho indiano

“Maintaining rapid yet environmentally sustainable growth remains an important and achievable goal for India. The country’s main problems lie in the disregarding of the essential needs of the people. There have been major failures both to foster participatory growth and to make good use of the public resources generated by economic growth to enhance people’s living conditions; social and physical services remain inadequate, from schooling and medical care to safe water, electricity, and sanitation.”

An Uncertain Glory: India and its Contradictions
Jean Drèze and Amartya Sen

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Índia não pensa no tão ansiado e cobiçado papel de ser uma superpotência económica, que parece ter ficado enterrado no passado e de que se recorda com receio. O aumento do preço do petróleo devido à guerra no Iraque, em 1991, deixou a Índia com apenas duas semanas de reservas em dólares para as importações de petróleo bruto. O Fundo Monetário Internacional concedeu empréstimos, tendo como contrapartida a liberalização da sua economia autárquica. O então ministro das finanças e depois primeiro-ministro, afirmou, parafraseando o escritor francês Victor Hugo, de que nenhuma força podia parar uma ideia quando o seu tempo tivesse chegado, mudando assim, o curso da história moderna do país asiático, com a abertura da economia, e nascia a “Índia brilhante”.
As duas décadas seguintes podem ser consideradas, como o período mais próspero que a índia viveu, durante toda a sua longa e rica história. Os centros comerciais tornaram-se nos novos templos e o oásis da nova classe média, os hambúrgueres da multinacional McDonald’s, uniram-se ao apimentado menu local e as estradas atulhavam-se de Toyotas, Audis e Fords, e não se discutia se a Índia seria uma superpotência, mas quando atingiria tal estatuto. Os sonhos de prosperidade e poder internacional da Índia foram dissolvidos com a pior situação económica, que o país enfrentou em duas décadas. Acredita-se que tenha sido o prognóstico exagerado de uma crise eminente, em 2013, que parecia querer reavivar o insucesso de 1991, quando o então primeiro-ministro afirmou que tinham reservas monetárias para apenas seis meses, mas que não tinha comparação com a situação desse fatídico ano, com a promessa de não voltarem a viver a crise na balança comercial.
A taxa de câmbio era fixa e passou a estar ligada ao mercado. As reservas apenas cobriam três semanas de importações em 1991, e a Índia foi forçada a comprometer o seu ouro para pagar os seus compromissos, tendo realizado profundas reformas para abrir a sua economia. A falsa crise de 2013 deveu-se ao grande volume de importação de ouro e pedras preciosas, traduzindo-se num investimento em activos improdutivos. As importações dessas mercadorias no país que é considerado o maior comprador de pedras preciosas do mundo, atingiu um valor máximo de cento e sessenta e duas toneladas, em Maio de 2013, após a queda dos preços internacionais, obrigando a um aumento de 8 por cento nos impostos. O deficit na conta corrente atingiu o valor único de 4,8 por cento do PIB, enquanto o crescimento económico, caiu para 5 por cento.
A Índia tenta conter a sede insaciável de ouro pelos seus cidadãos, por meio de medidas como o aumento de impostos de importação, proibição da importação de moedas e medalhões, e a obrigação dos compradores nacionais pagarem em dinheiro. O último dos problemas da terceira economia asiática e décima mundial era o colapso da sua moeda, em que a rupia acumulou níveis máximos e contínuos de desvalorização em relação ao dólar, tendo atingido 20 por cento, entre Janeiro e Junho de 2013. A decisão da Reserva Federal dos Estados Unidos de retirar o plano de estímulo monetário conhecido como “Operação Twist”, no final de 2012, traduzido na compra de quarenta e cinco mil milhões de dólares mensais em “Treasuries”, instrumentos da dívida soberana americana, de longo prazo, fez que o dinheiro resultante das vendas de uma quantidade semelhante de dívida a curto prazo, permitisse aos investidores acesso a dinheiro barato, fazendo-os livrar da moeda indiana.
A fraqueza monetária forçou o banco central da Índia a elevar as taxas de juros, quando a economia sofria uma desaceleração, tendo crescido apenas 4,4 por cento no primeiro trimestre do ano fiscal de 2013, sendo o terceiro trimestre consecutivo de desaceleração do crescimento. A situação actual da Índia, é de lenta recuperação, sendo que na década de 2000, o país cresceu a uma média anual de cerca de 8 por cento. O objectivo era superar a taxa de crescimento anual de 10 por cento, mas apenas a China teve um crescimento superior, tendo o PIB desacelerado no exercício fiscal de 2012-2013, fixando-se em 5 por cento, e a taxa de inflação situou-se acima dos 7 por cento, sendo o ritmo mais lento de crescimento dos últimos dez anos, tendo as exportações e a produção industrial estagnado.
Os planos de gastar milhares de milhões de dólares em auto-estradas, aeroportos e linhas de caminhos-de-ferro desvaneceram-se. A esperada liberalização nos sectores da segurança social, nomeadamente das pensões, bancos, defesa e educação não foram possíveis de se concretizar. As hesitações na tomada de decisões criaram incerteza e desconfiança. A Walmart não actua directamente na Índia por condicionalismos legais, operando através da Best Price Modern Wholesale, a Ikea irá abrir a sua primeira loja na Índia, em Hyderabad, no segundo semestre de 2017, pelo que em 2012, nenhuma destas multinacionais ou semelhantes, operavam directamente na Índia.
O governo indiano esperava que essas multinacionais melhorariam o antiquado sector agrícola e ajudassem a aperfeiçoar as pobríssimas infra-estruturas do país, pois cerca de 40 por cento das frutas e legumes danificavam-se a caminho dos mercados, devido ao mau estado das estradas e à falta de cadeias de frio. A história do desenvolvimento do mundo, oferece poucos exemplos de uma economia que cresce tão rapidamente, e por um período tão longo de tempo, com resultados demasiado limitados, quanto à diminuição das carências dos cidadãos, como afirmaram o Prémio Nobel da Economia Amartya Sen e seu colega economista Jean Drèze no seu livro “An Uncertain Glory: India and its Contradictions”. No país do elefante um terço das pessoas, ou seja, mais de quatrocentos milhões de pessoas, não têm electricidade, enquanto no país do dragão apenas 1 por cento das pessoas, carece de electricidade.
A população alfabetizada na Índia é de 74 por cento, enquanto na China é de 95 por cento. Os economistas recorrem à comparação com o Bangladesh, país considerado um caso perdido pelos especialistas em desenvolvimento, até recentemente. A população do Bangladesh tem maior expectativa de vida que a da Índia, as mulheres morrem menos de parto, maior número de crianças do sexo feminino frequenta a escola, os níveis de alfabetização são mais altos e existe menos desnutrição infantil. A sociedade é considerada boa quando o mais idoso e o mais jovem, têm acesso a uma vida digna. A alfabetização, desenvolvimento da condição da mulher, saúde, política ambiental, luta contra a pobreza, programas de liderança para a juventude e projectos para a infância são acções que devem ser implementadas em todos os países, e em particular na Índia.
O Banco da Criança foi uma iniciativa criada em Maio de 2013, na Índia, por crianças e para crianças, com o objectivo de as ensinar a importância da poupança e planeamento financeiro, quer para a sua educação, como para doarem uma parte das suas poupanças, com o fim de ajudarem as crianças mais pobres. Mais de mil e quinhentas crianças, em 2015, pequenos aforradores, participaram no projecto, que é de bem-estar e desenvolvimento para todos, expressando a visão de Mahatma Gandhi, quanto ao futuro da sociedade humana. A Índia celebrou a 15 de Agosto de 2007, com toda a pompa, circunstância e triunfalismo o sexagésimo aniversário da sua independência da Grã-Bretanha.
O segundo país mais populoso do mundo, parecia ter deixado para trás a memória do processo doloroso, que levou à divisão por critérios religiosos da antiga colónia britânica e à criação simultânea da Índia e do Paquistão, que até então incluía o Bangladesh. Estimulado pela expansão económica e pela sua capacidade de inovação tecnológica, o governo indiano convenceu-se de ter encontrado um modelo de desenvolvimento sustentável duradouro. O então primeiro-ministro nas comemorações da memorável data, afirmou, que podia assegurar que para cada um dos cidadãos e para a Índia, o melhor estava para acontecer, destacando as mudanças necessárias de forma a evitar que um terço dos indianos continuasse a sobreviver com menos de um dólar diário.
A Índia efectivamente não pode converter-se num país com ilhas de alto crescimento, paredes meias com vastas áreas que não recebem qualquer benefício do desenvolvimento, tendo o governo indiano anunciado um multimilionário plano de investimentos para incentivar as infra-estruturas, agricultura que é a principal actividade económica e melhorar o nível de educação, que não consegue resolver o analfabetismo, e que afecta uma terça parte da população. O grande sonho da Índia, é o mesmo que tinha o pai da independência, Gandhi, que sempre sonhou e lutou por um país livre, que só conseguiria a sua prosperidade e felicidade com a erradicação total da pobreza. O principal objectivo do Estado é garantir um crescimento equitativo e geral, evitando uma distribuição de rendimentos de forma desigual e opaca.
O sonho de Gandhi era conseguir um país independente, isento de abusos e da exploração indevida. O seu método foi a paz, ou seja, por meio de manifestações não violentas, como as célebres marchas pacíficas, e nunca de uma Índia divida em três países, e menos com conflitos no seu interior, como acontece com o Paquistão sobre Caxemira, ou tendências separatistas em vários grupos étnicos que compõem o país. O sonho de Gandhi era libertar a Índia, e só é possível de realizar pela eliminação da pobreza. Mahatma Gandhi ainda vive na Índia, e não existe cidade alguma do país, onde a sua imagem não seja parte integrante da arquitectura, e o seu retrato decore as paredes dos escritórios de qualquer repartição pública, assim como não há escola alguma, onde a história do pai da nação indiana não seja disciplina obrigatória.
Todavia, as ideias pelas quais morreu há sessenta e oito anos quase desapareceram. Gandhi entrou para a história como um símbolo do pacifismo mundial. Através da sua estratégia da não-violência ou desobediência civil, conseguiu a independência da Índia, mas o objectivo de Gandhi não era só acabar com a colonização britânica, mas incutir o respeito e tolerância entre as diferentes religiões, eliminar a pobreza extrema em que viviam centenas de milhões de cidadãos, e promover o desenvolvimento com base em uma economia rural. Era um retornar à terra, ao elementar. A Índia actualmente é um país muito diferente daquele que o Mahatma (Grande Alma) sonhou. A intolerância entre os hindus e os muçulmanos provocou na curta história independente da Índia e Paquistão, três guerras sangrentas e numerosos conflitos civis, que fizeram centenas de milhares de mortos e mais de 30 por cento da população ainda continua a viver na pobreza extrema, apesar das novas medidas económicas neoliberais adoptadas em 1991, permitirem que apenas 20 por cento dos indianos possam viver de acordo com os parâmetros de uma sociedade de consumo.
O restante da população apenas sobrevive, e o país sangra, vítima da corrupção. O homem Mahatma sentir-se-ia traído pela actual Índia, se acaso estivesse vivo, e é um desrespeito para a sua memória, que a vila portuária na costa noroeste da Índia, onde nasceu, seja um refúgio de traficantes de álcool, jóias, medicamentos e outros produtos, com o beneplácito das autoridades, e apesar do seu nome se encontrar enraizado na memória nacional, para as novas gerações de indianos Mohandas Karamchand Gandhi, com a sua túnica e roca, parece apenas uma figura distante de um livro de história. Os críticos de Gandhi vêm de todas as direcções. Se os nacionalistas hindus o acusam de ter sido a favor dos muçulmanos, as castas mais baixas, que o governo nega existirem, censuram-no de ter pregado a paciência em vez da revolução. Gandhi foi assassinado por um grupo de fundamentalistas hindus que não o perdoou de defender os muçulmanos, e morreu vítima da mesma intolerância que actualmente o crítica e que ameaça o futuro da região.

24 Jun 2016

Um canhão e uma cabana

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem durante uma das pausas para o café (leia-se um dos momentos em que a cada meia hora se vai espreitar o Facebook – e nem falo por mim) deparei com uma animada discussão em torno de mais uma declaração do deputado e empresário Fong Chi Keong na última terça-feira, durante a discussão da proposta de lei do regime de providência central não obrigatório. Penso que nem é preciso acrescentar que foi uma “gaffe”, pois tão habituados que estamos às flatulências intelectuais do deputado que “já nem cheira”. Desta vez sinto que terá ficado qualquer coisa perdida na tradução, mas a “punchline” era bem esclarecedora: os ocidentais contentam-se com duas refeições e praia – faltou acrescentar “antes do chichi, cama”, lógico.
O deputado assumidamente “pro-establishment”, empresário da área da construção civil e herdeiro de um dos Patriotas que elevaram Macau até mais próximo do Céu (literalmente) é tão conhecido pelas suas intervenções extemporâneas que granjeou a alcunha de “canhão Fong”. Para quem vem de fora e não está ao corrente do que (não) se faz de política em Macau, pode ficar sem entender bem o que isto significa, devido à sua ambiguidade – é “canhão” porque diz o que pensa quando muito bem entende e não tem papas na língua, ou fala quando a melhor opção seria abster-se de o fazer? As duas coisas, mas com um “twist” bem patenteado nesta sua mais recente declaração: ele fala de tudo mas nem sempre sabe o que diz, e se já toda a gente ouviu a expressão “act locally, think globally”, pode-se dizer que ele inaugurou o conceito pioneiro de “do nothing locally, think even less globally”.
Imagino a forma como entregou aquela pérola, “os ocidentais contentam-se com duas refeições e praia”, com um ar sério, mudando de assunto logo a seguir, como se aquilo que acabara de dizer fosse “mesmo assim, e se não é passa a ser”. Recordo-me de duas situações mais ou menos parecidas, e que na altura me deixaram perceber esse seu traço de carácter. A primeira foi durante a fase inicial da discussão sobre a proibição do fumo nos casinos, e como o deputado “fuma desde jovem e ainda não morreu”, não vê onde está o mal das pessoas fumarem, que assim sempre podem “conversar com o cigarro” – uma expressão em chinês para descrever a sensação de relaxamento induzida pela nicotina. A outra ocasião teve a ver com a possibilidade de se discutir a união de facto entre casais do mesmo sexo, e aqui foi mais expedito: “a homossexualidade foi tornada ilegal há mais de mil anos”. Sim, mil anos parece tempo mais que suficiente para que se esqueça essa lamentável tragédia que foi a homossexualidade. Querem lá ver esta gente, sempre a querer lembrar o passado, recusando-se a viver o presente? Valha-nos o canhão Fong.
Mas quando toca a defender a sua dama, Fong demonstra que sabe ser um político “a sério”. Durante um debate sobre a “bolha” imobiliária, que tornou praticamente impossível a um jovem da classe média adquirir a sua primeira habitação, Fong exclamou exaltado: “mas porque é que os jovens devem sair de casa dos pais, separando-se assim a família?!”. Sim senhor, um acto de “realpolitik” que de uma assentada promove o fortalecimento do núcleo familiar, e estimula a economia – a sua e de poucos mais, mas isso são detalhes. Durante uma das (frequentes) polémicas relacionadas com a ligação íntima de alguns deputados com o Executivo, Fong explicou a razão da sua empresa de construção ser sempre escolhida na hora de se procederem a trabalhos de restauração na sede do Governo: “como eles já me conhecem, e eu estou mesmo ali à mão de semear, não me custa nada mandar lá uns homens, pronto, para ser sincero é uma chatice”; coitado do senhor, que se sacrifica tanto em nome da celeridade em detrimento da burocracia, e ter que abrir concursos, e tal, que chatice. Obrigado, tio Fong.
Fong é ainda um bom patriota, e um ainda melhor patriarca. Quando em 2010 o Prémio Nobel da Paz foi atribuído ao dissidente chinês Liu Xiaobo, o deputado democrata Ng Kwok Cheong propôs na Assembleia Legislativa que se fizesse um louvor ao escritor que Pequim considera “persona non grata” – uma das costumeiras provocações da ala democrática, que sabia muito bem que esta proposta ia ser chumbada, mas Fong não se conteve, levantou-se e deixou saber o que pensava de Liu: “um criminoso”, acusando os democratas de “cumplicidade numa conspiração para ocidentalizar a China!”. Ah esses mercadores do ópio em forma de ideias. Mas o melhor guardei para o fim, e toda a gente se lembra certamente da intervenção quase surrealista do canhão Fong a propósito da lei que criminalizou a violência doméstica: “quando o homem quer, e a mulher não quer, há problema”. Esta foi uma frase que me ficou na memória, pois fez-me recordar de uma visita que fiz nos tempos de escola a uma exploração suínicula nos arredores do Montijo, quando o nosso cicerone explicou o processo de cobertura da fêmea do animal: “a gente leva o porco p’a cobrir a porca, mas ela na quer, e gente tem c’ajudar, qué quessade fazer”? De facto, um dilema.
Mas e depois? Isto não é Portugal, onde recentemente um ministro se demitiu por ter prometido distribuir “bofetadas” a dois jornalistas, que esquecendo-se que se tratava do ministro da cultura não entenderam que eram “bofetadas platónicas”, e aqui há uns anos um outro ministro foi obrigado a renunciar ao cargo por ter feito com os dedos um par de corninhos a um deputado em pleno parlamento. Mas coisa de somenos importância, e feita à socapa. Quem sabe se precisam lá de um canhão destes para lhes mostrar como se faz? E com duas refeições por dia e praia, ainda faziam dieta e ficavam com boas cores. Que tal?

23 Jun 2016

Wabi Sabi, a falta que nos faz

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]evemos todos algo a pelo menos um professor. Neste caso, devo-o ao professor Jorge Cavalheiro em cujas aulas de cultura do Japão tive o privilégio de participar.
Trazia-nos ele um conceito completamente novo para mim e que se viria a tornar dos elementos mais importantes da minha vida; wabi-sabi.
Por um lado, ao explicar-me sentimentos, por outro, ao sistematizar a ideia do prazer pela imperfeição que eu sentia quase sem perceber a razão porquê.
Vivemos numa sociedade obcecada pela perfeição. O consumidor exige, o fabricante faz, a formação ocidental do prazer pela simetria condiciona-nos, torna-nos mestres do Photoshop, escravos da quimérica perfeição, alucinados pelo que é novo, brilhante e opulento.
O wabi-sabi traz-nos de volta ao que cale realmente valem a pena. À apreciação das imperfeições, à noção de impermanência e no quão bonito tudo isso é.
Não é fácil traduzir wabi-sabi, nem a tal me arrogaria, por isso limito-me à definição que me pareceu mais conveniente de todas as que fui ouvindo – o perfeito-imperfeito.
Contava-nos o prof. Cavalheiro, uma das muitas histórias de Seno Rikyu, um monge zen do séc. XVI, e um dos grandes responsáveis pela popularização do conceito.
‘Um dia, Seno mandou um discípulo limpar o jardim. Um dia passou ele na tarefa, assegurando-se de tudo deixar impecável. Trabalho terminado, e ao ser questionado pelo rapaz se bem executado, Rikyu respondeu abanando o ramo de uma árvore e provocando a queda de algumas folhas. Agora estava terminado’. Nada podia ser demasiado perfeito, acreditava Rikyu, pois a perfeição não deixa a mente criativa trabalhar. Além disso, o monge alertava para o respeito pela passagem do tempo, pelo rústico, pelos objectos modestos, às vezes consertados. Para a importância de tudo isso para o nosso próprio equilíbrio.
Considerando mais bonitas as coisas quando nelas podemos apreciar as marcas do tempo e a sua própria individualidade. Neste raciocínio, uma taça rústica tem muito mais valor do que outra, incólume, nova e perfeitinha.
Como diz o arquitecto Tadao Ando, “wabi-sabi é a arte de descobrir beleza na imperfeição e profundidade na natureza, aceitando o ciclo natural de crescimento, declínio e morte.”
Numa perspectiva mais actual, para Ando, wabi-sabi é “autenticidade, mercados de rua e não hipermercados; madeira envelhecida e não laminados; papel de arroz e não vidro”.
Uma forma de apreciar a vida como ela é, o prazer simples de admirar o musgo num muro, as folhas que cobrem a rua depois de um vendaval ou por ser hora disso; as flores vermelhas das “árvores dos exames” que todos os anos nos estendem tapetes escarlates pela cidade.
As teorias de Rikyu ficaram bem vincadas no desenho da cerimónia do chá, ainda hoje feita de acordo com o seu método, onde as loiças são rústicas, a simetria não faz parte da decoração da cabana (não pavilhão) do chá, que deve situar-se num lugar discreto do jardim, mas onde seja possível observar a passagem das estações pela janela. Um lugar de paz, onde os samurais eram proibidos de entrarem armados, desenhadas que foram umas bainhas no exterior para que as espadas aí fossem deixadas.
Rikyu criou a cerimónia do chá como resposta à moda extravagante da época na corte japonesa, onde o chá era ingerido em sumptuosas loiças chinesas durante cerimónias faustosas ocorridas nas varandas em noites de lua cheia.
“O chá é para todos”, disse Rikyu e transformou o processo num momento simples, de reflexão, de paz e sem ostentações, acessível a qualquer um.
À Lua Cheia contrapôs a meia lua, ou a lua em dia com algumas nuvens. As loiças chiques substituiu-as por outras mais simples, adquiridas em artesãos pelas aldeias em que passava, ou outras mais velhas mas bem remendadas.
Às vezes, quando apanho um japonês falo-lhe de wabi-sabi. A maioria sorri confessando que o Japão anda esquecido disso. É normalmente um sorriso que aparenta saudade de tempos melhor vividos.
Esqueceram-se eles, esquecemo-nos nós porque, em boa verdade, não é preciso conhecer a formulação deste conceito para percebermos a importância de nos relacionarmos com a impermanência, para reconhecermos os sentimentos que nos invadem quando desligamos o complicador e nos deixamos enlevar pela simplicidade, por objectos com carácter, por formas mais genuínas de vida.
Lembrei-me disto um dia destes num desses autocarros wabi-sabi da Transmac. Os minis onde ainda se tem o prazer de escancarar uma janela, mas onde, nalguns, as clássicas campainhas, discretas e vintage, foram substituídas por uma lâmpada sem graça e um estridente órgão electrónico que nos faz pensar duas vezes se devemos mesmo tocar para sair.
Macau precisa muito de wabi-sabi. O mundo precisa muito de wabi-sabi, para que possamos respirar e sonhar um pouco melhor.

22 Jun 2016

Orlando

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Orlando em Orlando vai a uma discoteca à noite para dançar. O lugar chama-se Pulse e não discrimina nem rejeita ninguém. Esta foi a primeira ida à discoteca e não foi difícil para o Orlando adorar o ambiente, a música e as pessoas.
Mas o Orlando em Orlando não estava à espera de presenciar o terror tão de perto, tão pessoalmente. Ninguém entende à primeira o que se passa. Uma discoteca, por definição, é um lugar barulhento, confuso e escuro. Quanto entra um homem a disparar com uma arma de fogo, o ruído dos tiros podiam ser parte da música. Mas não eram.
Foi a tragédia na qual o Orlando de Orlando saiu ileso quando muitos foram fatalmente alvejados e outros ficaram em estado muito grave. Os olhos do mundo viraram-se para Orlando e para a pequena discoteca que viu o que nunca esperaria ver: medo, violência e morte. O resto vimos nós nas notícias. Mas o Orlando de Orlando é fictício, apesar de poder descrever qualquer sobrevivente desta fatídica noite de saída nocturna, à partida inofensiva.
A discoteca Pulse é uma discoteca gay, frequentada por gays, simpatizantes, exploradores, pessoas que acreditam e respeitam a liberdade sexual de cada um. O atirador que entrou ali dentro matou sem dó nem piedade por razões que ainda não são claras. Poderão ser sido razões ideológicas, psicológicas ou sociais. O comportamento social humano é assim, muito complexo, complexo demais para reduzir qualquer infeliz acto à tendência Trump-tizada que justificam comportamentos e pensamentos islamofóbicos. O atirador era, muito provavelmente, um homem com dificuldades psicológicas e emocionais que se desenvolveram ao longo dos anos, em combinação com uma ou outra pressão social por aceitação e bem-estar, e a cereja em cima do bolo, o fácil acesso a uma arma de fogo. Um criminoso carrega em si uma complexidade imensa de entendimento do mundo em que dá sentido a actos atrozes como este. Para este homem, o que é que seja que o tenha movido, o alvo seriam os homossexuais. O alvo foram as pessoas que amam livremente, fora da norma expectável homem – mulher e que muitos ainda julgam ‘imoral’ e pouco ‘natural’.
Não consigo deixar de reparar que esta violência contra um grupo, é movida por um ódio incompreensível que existe e que se generaliza a todos os membros afiliados. Os ‘gay,’ os ‘muçulmanos’, os ‘judeus’, os isto, os aquilo, os, os… São discursos e actos comunicativos que espalham uma norma onde é aceitável discriminar pessoas, só porque as percebemos como parte de um grupo diferente, desconhecido e pouco compreendido. A violência ainda existe contra os homossexuais, todos os dias, de todas as formas. A mais recente tendência preconceituosa onde julgam todos muçulmanos terroristas, cresce as olhos vistos. Isto tem que parar.
Ultimamente que a comunicação social traz ao nosso conhecimento o que de horrível tem acontecido, o desespero e o stress colectivo e individual aumenta. E é perfeitamente normal, envolvermo-nos em ideias ainda mais rancorosas perpetuando a violência e a incompreensão é que não. O amor, aquele sentimento mais puro e que une as pessoas, tem que ganhar. É por amor que nos juntamos, é por amor que somos homossexuais, heterossexuais ou bissexuais. O amor vencerá se amarmos esta humanidade que mais parece podre de ideias generalistas, preconceituosas e discriminatórias. O Orlando foi à discoteca para conhecer alguém, para dar uns beijinhos, para sair umas quantas vezes e para se divertir. Celebrava-se a liberdade no amor quando, inesperadamente, o cenário mostrou-se uma banheira de sangue. O Orlando só queria ser feliz.
O Orlando somos todos nós, nós pessoas que saímos e nos divertimos esperando unicamente uma valente ressaca no dia a seguir. O Orlando somos nós à procura do amor e a procurá-lo nos sítios que julgamos certos, com as pessoas certas. Nós somos todos Orlando, quer queiram, quer não.

21 Jun 2016

Chovem benesses

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 5 o website “Yahoo, Hong Kong” anunciou que na Suíça tinha sido apresentada uma proposta para distribuição de 2.500 USD mensais aos cidadãos. Este valor seria atribuído a todos os maiores de 18 anos. Aos menores caberia a quantia mensal de 625 dólares. Mesmo as pessoas com emprego teriam direito ao subsídio.
A proposta data de 2013. A legislação suíça prevê que no caso de uma proposta de lei ter sido assinada por um mínimo de100.000 pessoas, deverá ser submetida a sufrágio nacional.
Os apoiantes da proposta defendiam que este valor poderia garantir a manutenção dos direitos básicos e da dignidade dos cidadãos. A partir do momento em que recebessem este valor, as pessoas poderiam deixar de trabalhar e passar a dedicar-se a qualquer actividade que desejassem; como por exemplo, o estudo, o empresariado ou, simplesmente, usufruir da companhia dos familiares. Os defensores da ideia acreditavam ainda que a proposta poderia reduzir a carga de responsabilidades do Governo no que concerne à gestão do fundo de aposentações, seguros laborais e Segurança Social.
O ano passado, os adeptos da moção organizaram um sorteio para promover a ideia e Carole foi a vencedora. O prémio consistia na atribuição mensal de 2.500 dólares, ao longo de 12 meses. Logo após receber esta benesse Carole voltou a estudar.
Actualmente, o subsídio de sobrevivência na Suíça é de 2.219 dólares mensais e abrange cerca de um oitavo da população.
Mas os opositores da ideia argumentaram que a distribuição desta soma aumentaria muito a carga financeira do Governo, avaliada para 2016 em 660 biliões de dólares. Se a proposta tivesse sido aprovada a despesa teria aumentado para 2.080 biliões.
Sabem qual foi o veredicto final? “Rejeitada”. Mais de 70% dos cidadãos opôs-se à proposta de distribuição de dinheiro.
Mas a história não se fica por aqui. Na Finlândia será apresentada uma proposta semelhante em 2017, mas a quantia a distribuir será inferior e a atribuição condicional. Por outras palavras, a distribuição ficará dependente de certas condições.
Não é surpreendente que este projecto de lei tenha sido rejeitado. O resultado indica claramente que a maior parte dos cidadãos é consciente. É fácil perceber que se toda a gente tiver dinheiro sem precisar de trabalhar, o Governo não vai conseguir angariar impostos.
Imaginemos que depois de descontar os impostos o contribuinte fica apenas com 25% dos seus ganhos, os outros 75% vão para o Estado. Se você estivesse na pele deste contribuinte teria motivação para continuar a trabalhar? Perante esta situação toda a economia do País colapsaria.
É sabido que em Macau todos os residentes recebem anualmente uma certa quantia. Nos últimos anos o valor tem rondado as 9.000 patacas per capita. No entanto este valor não se compara aos 2.500 dólares mensais da proposta suíça. Em primeiro lugar, o valor distribuído em Macau é encarado como um bónus, ou subsídio. Não é um pagamento mensal e não permite que as pessoas deixem de trabalhar. A distribuição desta verba aos residentes não aumenta a despesa do Governo de Macau.
Em segundo lugar, ninguém está à espera das 9.000 patacas anuais para sobreviver, é um valor que os residentes podem poupar ou gastar, como melhor entenderem. Esta distribuição é um acto benéfico para os habitantes de Macau.
Contudo, é necessário voltarmos um pouco atrás. Este tipo de pagamento proporciona felicidade aos residentes individualmente, mas não beneficia de forma significativa a sociedade em geral. Por exemplo, se colocássemos o total destas verbas na Segurança Social, garantiríamos melhor qualidade de vida aos cidadãos com mais de 65 anos. Nessa altura as 9.000 patacas darão provavelmente mais jeito.
Independentemente da forma como é feita, a distribuição de dinheiro é sempre boa para os residentes. Mas se se transformar num pagamento regular a longo prazo, passa a ser negativa. E se este pagamento acarretar um grande aumento da despesa do Governo, então será muito mau para a sociedade em geral.
A ideia de distribuição de dinheiro na Suíça é boa, mas dá origem a muitos problemas. É o tipo de distribuição que não pode ser facilmente implementado.

20 Jun 2016

A doença e a virtude

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s cem milhões de patacas que a Fundação Macau doou à Universidade de Jinan saíram do bolso da população mas estão a custar cada vez mais caro ao Governo. Em causa está, uma vez mais, a sua imagem, a sua transparência e, sobretudo, os critérios de transferência de dinheiros públicos. Numa palavra, a sua credibilidade e virtude (德 de), conceito tão caro ao actual presidente chinês.
Poderão não ter violado a lei. Mas que lei é essa e quem a fez? E de que modo essa mesma lei facilita este tipo de “transferência”, com a mera aprovação daqueles a quem, de algum modo, se destinava?
A população, claramente, não gostou. A manifestação, organizada pela Associação Novo Macau, contou com cerca 3000 pessoas. É significativo para a RAEM. Sobretudo se tivermos em conta o grau de educação dos participantes, bastante mais elevado, em média, dos que participam na marcha do Ou Mun. Ou seja, pessoas com que Pequim tem de contar no futuro. É bom dar-lhes razões para virem para a rua gritar? Parece que não.
Não satisfeitos com a gritaria, as forças de segurança resolveram intimidar os organizadores da manifestação, fazendo-os comparecer na esquadra para prestar declarações e, eventualmente, encontrarem um modo de os acusarem de desobediência. Do lado da ANM, devem ter batido palmas. Ninguém poderia pedir melhor publicidade. Lá voltaram a Universidade de Jinan, os cem milhões, os curadores da escola, o pessoal da Fundação Macau e as acusações de perseguição política para as páginas dos jornais, para as rádios, para a televisão e, sobretudo, para as redes sociais, onde este Governo e a oligarquia que o rodeia é tratado com notável pouca consideração.
Ao invés de enterrarem o assunto, as autoridades de Macau, num arguto movimento, fazem questão de o trazer de novo à superfície. Se o haviam de fazer esquecer, empenham-se em relembrá-lo a toda a gente. Houve desobediência? Dos manifestantes? A sério? Soubesse a ANM organizar-se e tinham tido 500 pessoas a acusarem-se ontem, na mesma esquadra, do mesmo crime dos organizadores. Desta vez, estes esqueceram-se de carregar no botão…
Um dos problemas é que a ANM mudou. Ng Kuok Cheong e Au Kam San são hoje o que pode chamar de “democratas gordos”. Mexem-se pouco, é-lhes difícil actuar. Na sua história têm muito de protesto contra a falta de democracia mas, raramente, colocaram em questão os interesses da oligarquia ou fizeram-no de forma suave e pouco eficaz. Ou não percebiam o que estava realmente em jogo ou fingiam não perceber.[quote_box_right]“Gostará Pequim de arriscar tanta insatisfação, tanta desarmonia, tanta tinta a escorrer, tanta língua a dar a dar, tanta contestação, aparentemente desnecessária, na terra dos milhões?”[/quote_box_right]
Os novos líderes parecem ser de outra loiça. Daquela que se parte no choque com os que querem legislar e governar de acordo com o boletim meteorológico do seu mercado e, nesse sentido, pressionam sem maneiras o Governo. Passando as ditas “causas fracturantes” (cuja resolução, aliás, seria um sinal de progresso para a RAEM) para Jason Chao, outros poderão tratar do que realmente interessa à população, criando algum mal-estar em certos meios. Que força realmente terão é difícil de dizer. Tal dependerá da conjuntura, talvez de mais um extraordinário evento. Mas gostará Pequim de arriscar tanta insatisfação, tanta desarmonia, tanta tinta a escorrer, tanta língua a dar a dar, tanta contestação, aparentemente desnecessária, na terra dos milhões?
Também graças aos esforços das autoridades, o caso dos cem milhões doados à Universidade de Jinan teima em não desaparecer. É um caso perigoso. Está colado ao modo como por aqui se governa como uma doença má. Veremos até que ponto este corpo governativo a consegue rejeitar e com que cara lhe sobreviverá.

17 Jun 2016

A quimera do minchi

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje gostaria de dedicar mais a um artigo a esse interminável processo de integração numa sociedade que me vai parecendo cada vez menos estranha, mas na qual nem tudo facilmente se entranha (vénia à Pessoa do poeta, já agora). E por falar em entranhar, mastigar, degustar e engolir, há no seio da comunidade macaense, que aproveito para saudar, a noção de que todos os seus “cozinhadores” sabem fazer “Minchi” – e aqui por “cozinhadores” quero dizer qualquer um que se consiga orientar na cozinha, e não necessariamente um “chef”, qui vendê merenda pá juntá unchinho sapeca pa olá filo-fila crecé, sân nunca? Deveras.
O “Minchi” é um prato que basicamente consiste de carne de vaca e de porco moída (em inglês “minced”, daí o seu nome) e frita com chalotas picadinhas, posteriormente misturada com batatas cortadas em pedacinhos e fritas separadamente, e tudo servido numa cama de arroz branco com um ovo estrelado por cima – eis o “Minchi” clássico. Atente-se ao uso o abuso dos “inhos”, ora nas chalotas que são picadinhas, ora nas batatas (ou batatinhas) em pedacinhos, mas o “Minchi” é mesmo assim, um “pratinho”, que não é complicado de se fazer, agrada a miúdos e graúdos, e nem é preciso dentes rijos para o poder apreciar. Aliás, pensando melhor, nem é preciso ter dentes, de todo. O “Minchi” é o prato-bandeira de Macau e dos macaenses, por assim dizer. Não vou ao ponto de afirmar nem a brincar que “quem não gosta de Minchi não é macaense”, pois ultimamente essa temática tem dado pano para mangas – digamos apenas que uma casa macaense com certeza, há sempre “Minchi” sobre a mesa.
A diferença entre cada “Minchi” reside no tempero, conforme o gosto de cada um, e o segredo – se o há – está na quantidade e na qualidade do “sutate”, outro nome que se dá ao comum molho de soja. Assim a pergunta que se impõe é a seguinte: onde se come “o melhor Minchi de Macau”? Lá está, esta é uma pergunta impossível de responder, assim como impossível é também confeccionar o “Minchi” perfeito, que reúna o consenso dos exigentes palatos maquistas. Se perguntarem a dez macaenses “quem faz o melhor Minchi de Macau”, sete respondem “a minha mãe”, e é possível que os restantes digam “a minha mulher/irmã/tia”, e é muito improvável que elejam o da sogra como o melhor (por respeito à sua própria mãezinha, pensavam o quê?). Se pedirem para indicar um estabelecimento, é de esperar alguma hesitação, após a qual respondem “o sítio A não é mau”, ou “fulano tal faz assim-assim”. Agora não esperem é que digam que “é bom” e muito menos “o melhor”, o que seria entendido quase como um sacrilégio! Cuza? Estopôr! Azinha zaprecê de io sa diante!
Caso o leitor se queira aventurar nessa quimera do “Minchi”, atrevendo-se a alcançar a perfeição e obter a aprovação unânime dos Macau-filo, desiluda-se: o “minchi” perfeito está para os macaenses com o a pedra filosofal estava para os antigos alquimistas. Pode ser que fique aprovado, mas mesmo que lhe digam que o seu “minchi” é “muito bom”, prepare-se para de seguida levar com “…mas o da minha mãe é melhor”. E olhe que ainda é o melhor que lhe pode acontecer, pois se lhe disserem que “não é mau”,quer dizer que “é péssimo”. Mas a culpa é sua, também – quem o mandou ser ui di sevandízio? Qui astrevido!

16 Jun 2016

Banido!

15616P17T1[dropcap style=´circle´]M[/dropcap]acau tem várias particularidades na sua forma de estar, ser e até de parecer. Já todos sabemos isso. Todavia, algumas delas, quando se nos esbarram nas ventas, não deixam de nos mostrar quão álacres são e, nesse seu garrido, o sinal que representam do que vai mal na terra.

Um desses pormenores é, claramente, a incapacidade quase geral de acolher críticas.

Em Macau, a regra para criticar é não o fazer, ou não o fazer em público, ou não o fazer de todo. As personalidades são frágeis, as capacidades, vulgarmente, ainda mais quebradiças e, portanto, alertar sobre a nudez do monarca é crime de lesa majestade.

Foi o que me aconteceu.

Desde há mais de uma dezena de anos que, regularmente, à excepção de um hiato ou outro, colaboro com a TDM nos relatos de futebol, especialmente em ocasiões como Euro ou o Mundial, ou mesmo noutras modalidades.

Recentemente, até me foi proposto informalmente tornar essas colaborações um pouco mais assíduas. Todavia, este ano não vou fazer qualquer relato do Euro e, pelo andar da carroça, e se a tracção não mudar, nunca mais irei fazer nada na TDM.

Questões pessoais não são chamadas para as páginas de um jornal. Nem numa coluna de opinião, dirá alguém e eu concordo. Mas isto não é pessoal. Para mim, é de interesse público.

O banimento, posso dizê-lo, pois que o poderia ter negado não o fez apesar de a isso instado, ficou a dever-se a um texto publicado nesta mesma página no passado dia 17 de Fevereiro deste ano, intitulado “Para que serve a TDM?”.

Caiu mal

Todavia, não deveria conter matéria suficiente para processo, caso contrário já teria sido notificado pelo tribunal. No texto, recordo, inquiria-me, de uma forma geral, sobre os propósitos da TDM, demonstrando a minha incompreensão pela total ausência da estação de Macau em apoiar de forma decisiva a produção local e por não ser sequer capaz de cumprir o desígnio de Macau de plataforma de contacto com os países de língua portuguesa exportando conteúdos para estes nem sequer de abrir portas à colaboração com estações do continente dada a exiguidade do mercado local para investidores. A crítica era mais dirigida à tutela do que propriamente à direcção executiva da estação.

Não foram feitas críticas pessoais mas sim institucionais. Todavia, foi o suficiente para ser considerado persona non grata na estação pública do território.

É absolutamente irrelevante para qualquer pessoa, comigo incluído, se colaboro ou não com a TDM, se faço ou não comentários, se produzo, ou não conteúdos para aquela estação. Mas não é irrelevante nem para mim, nem, julgo, para ninguém que se preocupe com uma sociedade livre, que se penitenciem pessoas por exercerem o seu direito à liberdade de expressão. Hoje sou eu, amanhã será outro.

A questão torna-se ainda mais caricata quando o responsável pela sanção assume cargos na Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau que, diz nos seus estatutos, tem por fim, entre outros, “defender e promover o livre exercício da profissão, a liberdade de imprensa e o acesso às fontes”.

Se calhar é excesso de zelo, se calhar ninguém lhe encomendou o serviço. Seja o que for, é tenebroso e não deixa de preocupar numa época em que cada vez mais se vêem atropelos à liberdade de expressão, aqui e noutras paragens, quando a sanção vem sub-reptícia e sem explicação formal, como quando se empurra o lixo para debaixo do tapete à espera que ninguém o levante.

Música da Semana

“Big Brother” (David Bowie – 1974)
I know you think you’re awful square
But you made everyone, and you’ve been anywhere
Lord, I’d take an overdose, if I knew what’s going down
(…)
Someone to lead us, someone to follow
Someone to fool us – some brave Apollo!
Someone to save us, someone like you

We want you Big Brother

15 Jun 2016

Queres beber café comigo? Não?

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]ão-de ter reparado na inundação na imprensa internacional do caso da ‘mulher inconsciente’ e do seu agressor, Brock Turner, e do caso da menor brasileira que ‘engravidou de mais de 30’, pelas palavras dos estupradores. O consentimento sexual não parece estar no vocabulário destas pessoas.
No Brasil começa-se a falar da cultura do estupro. Uma cultura que não condena o abuso sexual. Um grupo de 33 homens violou uma menor de 16 anos no Rio de Janeiro e o caso veio a ser descoberto porque alguns desses homens gravaram cenas e postaram-nas nas redes sociais. Sem medo de represálias. Num grupo de 33 homens ninguém achou anormal ou estranho o que se estava ali a passar. Os vídeos gravados mostram o corpo semi-nu de uma jovem inconsciente, enquanto que eles se punham em posição de selfies e faziam comentários jocosos. A reacção pública foi diversa, mas muitos sugeriam que certamente que a jovem fez alguma coisa para merecer aquilo. Quem manda usar mini-saia? Quem manda ser sensual? Quem manda ser mulher?
O entendimento vigente do que pode ser considerado uma violação ou uma relação sexual consentida perde-se em difusas interpretações onde as mulheres continuam a ser desconsideradas. A culpabilização da vítima continua a ser a estratégia mais utilizada para proteger e perpetuar a hegemonia masculina. Os casos são tantos que já irrita.
Como é que duas raparigas são assassinadas no Equador por resistirem uma violação e ainda assim foram culpabilizadas, por, talvez, terem usado calções curtos? Como é que um puto de 19 anos foi apanhado no acto de abusar uma mulher inconsciente e não foi automaticamente de cana? Como é que 30 homens julgam uma violação colectiva perfeitamente aceitável? Como é que só muito recentemente se percebeu que uma violação é uma violação, mesmo em contexto matrimonial? Como é que uma juíza pode ignorar uma queixa de violação porque ‘a vítima é uma mãe adolescente, por isso claramente tem tendência para o acto’? O que é se passa com as pessoas? Como é que no século XXI, o século do futuro, da inovação e do progresso, tudo isto ainda aconteça?
O instinto sexual não é uma micção urinária, não é inevitável. Não se descontrola ao ponto de mijo escorrer pelas pernas abaixo. Sexo não é um direito pessoal, uma afirmação categórica nem uma obrigação. O estímulo, o impulso e o acto não têm uma ligação directa, imediata e inevitável. Não há vestido sexy no mundo que sugira uma violação, nem álcool (demais ou de menos) que preveja um abuso.
Mas mesmo assim o corpo da mulher é percebido como um objecto, e para essa concepção contribuímos todos. Não se trata de um homem isolado de mente disruptiva e comportamento desviante. Os media, os tribunais, os juízes e a população em geral perpetuam princípios onde só os homens brancos estão no topo da cadeia (cadeia hierárquica, god forbid se fosse a prisão). Todas as fotos publicadas do Brock Turner, o agressor sexual de um caso na universidade de Stanford que tem corrido muita tinta, mostram-no de carinha laroca, de cara inocente, sorridente e angelical. Foi julgado com seis meses de prisão porque ‘não tem antecedentes de actos agressivos’, como se todos os agressores sexuais não tivessem começado com um primeiro acto, sem antecedentes. Até o pai do agressor escreve ao juiz a pedir-lhe que uma carreira tão promissora (sim, porque o menino estava numa universidade da liga ivy com uma bolsa de desporto) não fosse destruída por ‘20 minutos de acção’. Acção essa que não foi consentida, com uma mulher inconsciente atrás de contentores. Mas o que é que isso interessa? Como é que interessa a forma como este rapaz destruiu a vida desta rapariga? Como a fez sentir-se humilhada, como a obrigou a ter que se defender em tribunal dos ataques de um advogado de defesa que insinuava um ‘historial potencialmente promíscuo’? Porque a defesa é assim, a escrutinar o possível consentimento que ela poderá ter dito quando inconsciente, mas que nunca existiu.
O consentimento sexual não deveria ser um conceito complicado de entender. Queres beber café comigo? Não. Talvez. Silêncio absoluto. Estas são as opções que sugerem não consentimento. O consentimento implica iniciativa absoluta, até ao final. Se vocês já estão na cafeteria e já pediram o café, ambas as partes ainda estão no direito de o recusar. Imaginem o estranho que seria forçar alguém a beber um café por um tubo enfiado pelo esófago. Simples de entender, não é?

14 Jun 2016

Turno da noite

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 27 de Maio o website de Hong Kong “orientaldaily.on.cc” fez saber que a Autoridade Hospitalar de Hong Kong passou a permitir que as enfermeiras grávidas, a partir das 32 semanas, sejam dispensadas dos turnos da noite. A medida entra em vigor a partir deste mês. Acrescente-se ainda que, enfermeiras grávidas de 28 semanas também poderão ficar isentas do serviço nocturno. No entanto esta medida não será adoptada em todos os hospitais, ficando dependente das necessidades das profissionais e dos recursos de cada estabelecimento.
Estas políticas foram implementadas na sequência do desmaio de uma enfermeira grávida de oito meses. a cumprir horário nocturno no Queen Mary Hospital, em Pok Fu Lam, Hong Kong. O presidente da Autoridade Hospitalar de Hong Kong, John Leung Chi-yan, declarou que os obstetras consultados tinham sido unânimes em afirmar que, uma gravidez a partir das 32 semanas comporta mais riscos para as mães.
A implementação destas políticas deverá beneficiar de imediato 950 enfermeiras. No entanto existe um deficit geral de 700 enfermeiros. Nos hospitais públicos o deficit ascende aos 250.
Do ponto de vista das enfermeiras esta medida só peca por tardia. A partir deste momento todas as enfermeiras grávidas de 32, ou mais, semanas serão dispensadas dos turnos da noite. Mas já existiria antes alguma lei de protecção às grávidas no que respeita ao trabalho nocturno?
Em Hong Kong, o artigo 15AA(1) da Lei do Trabalho, específica:
“Uma funcionária grávida pode, mediante apresentação de certificado médico, pedir dispensa de trabalhar com materiais pesados, de trabalhar em instalações que produzam gás, potencialmente prejudicial à saúde do bebé, ou ainda, de realizar qualquer trabalho prejudicial ao normal desenvolvimento da gravidez.”
Através da leitura deste artigo, podemos observar que as trabalhadoras grávidas podem ser dispensadas de serviços que prejudiquem a sua saúde e a do bebé. Acresce ainda que a grávida pode recusar certos serviços, desde que considere que podem lesar a gravidez.
No entanto, neste artigo da Lei do Trabalho de Hong Kong, podemos ler que se exige um certificado médico para sustentar os pedidos de dispensa. Se o patrão não concordar com o pedido de dispensa em relação a certos serviços, feito pelo médico da grávida, tem direito a requisitar uma segunda opinião.
Obviamente, que o alcance da secção 15AA(1) é a regulamentação da atribuição de tarefas, não a regulamentação de horários. Os turnos nocturnos são uma questão relacionada com os horários e, como tal, fora da alçada da secção 15AA(1). Não parece provável que as trabalhadoras grávidas possam evocar este artigo para pedir dispensa dos turnos nocturnos.
Em Macau, o artigo 56(1) da Lei do Trabalho (7/2008) específica:
“Durante a gravidez e nos três meses após o parto, a trabalhadora não pode ser incumbida de desempenhar tarefas desaconselháveis ao seu estado.”
Este artigo é suficientemente claro e não deixa margem para dúvidas quanto à obrigação de dispensa de serviços prejudiciais a grávida, estendendo-se essa protecção aos três meses pós-parto. Este postulado não exige qualquer certificação médica. No entanto, em caso de conflito, é sempre preferível que a trabalhadora apresente prova médica para sustentar as suas alegações.
Comparando os dois artigos de lei, o de Hong Kong e o de Macau, verificamos que são bastante semelhantes. Mas a Lei do Trabalho de Hong Kong especifica as tarefas que não devem ser atribuídas às grávidas: lidar com materiais pesados e trabalhar em instalações que produzam gás, potencialmente prejudicial à saúde do bebé. No entanto, a legislação de Hong Kong prevê a necessidade de um certificado médico para sustentar a dispensa de serviços, ao passo que a legislação de Macau não a estipula.
Como vemos, ambas as legislações regulam apenas a atribuição de tarefas a grávidas, a questão dos turnos nocturnos é matéria que se prende com a regulamentação de horários e não de funções. Assim, podemos concluir, que não existe legislação específica em Hong Kong sobre a isenção de horários nocturnos durante a gravidez. A Lei do Trabalho de Macau é semelhante (7/2008).
A actual medida da Autoridade Hospitalar de Hong Kong, tomada na sequência do desmaio da enfermeira, é sem dúvida favorável a todas as enfermeiras grávidas. É mais uma medida de protecção à gravidez. Deverão outros departamentos governamentais seguir o exemplo? Como esta medida não é uma lei, o seu efeito não abrange todas as áreas. É preferível que cada departamento oficial tome as suas próprias decisões. O balanço deve ser feito entre a necessidade de protecção às grávidas e as capacidades do sector.
A situação em Macau é mais complicada. Os casinos têm necessariamente turnos nocturnos, estão abertos 24 horas por dia. As mulheres também têm de trabalhar à noite. Será que os Casinos podem dispensar as trabalhadoras grávidas dos turnos nocturnos? Como não existe legislação sobre esta matéria, é conveniente deixar cada empresa decidir o que melhor achar. No entanto, o desmaio da enfermeira grávida demonstra claramente o desajuste da actual legislação do trabalho.

13 Jun 2016

O sonho africano

“Therefore to allow the African dream to be realised, the respect for national sovereignty of both the rich and poor nations should form the cornerstone of new global institutions for political, economic, social and cultural development.”

The African dream: from poverty to prosperity
B W T Mutharika

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] continente africano é a potência do futuro, a esperança e o fracasso da humanidade, que se impões como um vício e obriga quem o visita a voltar uma e outra vez, e mesmo quem vá para lugares quase ignorados e desconhecidos, o perigo não é a violência, mas a burocracia. A África é dura e difícil, mas apaixonante. O sonho do século XXI, de ser o século africano é poderoso e emocionante, e está a converter-se numa realidade. A realização da primeira “Cimeira entre os Estados Unidos e a África”, e os seus líderes, de 4 a 6 de Agosto de 2014, em Washington, foi o momento propício para uma reflexão, e considerar os fundamentos e limites do progresso do continente.
Apesar de em muitas regiões africanas, a pobreza ser ainda um problema muito grave, o continente africano é mais estável do que no passado, e também apresenta algumas das mais altas taxas de crescimento económico do mundo. É de recordar que durante a última década, dezenas de milhões de pessoas, em toda a África, integraram-se na classe média, as cidades estão a crescer rapidamente e têm a população mais jovem do mundo. Mas, como as palavras as leva o vento, os africanos não devem considerar nada como garantido. Apesar do impulso que mostra o continente, sabem que a história é um caminho de sonhos desperdiçados, e aplica-se especialmente a África.
Assim, os africanos têm muito a fazer, se querem aproveitar esta oportunidade, e uma das tarefas mais urgentes que têm de enfrentar, é a criação de mercados sub-regionais de maior dimensão, mais integrados e que se encontrem profundamente interligados com a economia global. Ao fim e ao cabo, existe uma abundância de exemplos, (União Europeia, Associação de Nações do Sudeste Asiático, Acordo de Livre Comércio da América do Norte) de como a integração das regiões geográficas, pode criar condições para se conseguir o crescimento e a prosperidade em conjunto, através da remoção de barreiras comerciais, harmonização de regulamentos, abertura dos mercados de trabalho e o desenvolvimento de infra-estruturas partilhadas.

A visão para esta região de África, traduziu-se na criação da iniciativa denominada de “Integração dos Projectos do Corredor Norte”. O Quénia, Ruanda e Uganda, (ao qual se juntaram o Sudão do Sul, e a Etiópia) nos últimos três anos, lançaram mais de catorze projectos conjuntos, cujo objectivo é o aprofundamento e a integração da África Oriental, e facilitar o desenvolvimento da actividade económica na região. Os resultados são visíveis. Foi implementado um único visto para o turismo, válido nos três países. Foi criado um único território aduaneiro, reduzindo drasticamente os procedimentos burocráticos e removidas as barreiras não tarifárias. Além disso, foi projectada uma linha ferroviária de bitola padrão, em construção a partir de Mombaça no Quénia e situada no Oceano Índico, passando pelas capitais do Ruanda e do Sudão do Sul, através da capital do Uganda, cujo primeiro trecho foi financiado por parceiros chineses, e cuja obra na sua totalidade, prevê-se estar concluída, em Dezembro de 2017.
Todavia, para se prosseguir com o projecto tiveram que combater más práticas profundamente enraizadas. Infelizmente, em toda a África, as fronteiras nacionais tem sido muitas vezes obstáculo, antes que os mecanismos para a cooperação intercontinentais, em matéria de comércio, segurança para a cooperação no comércio, emprego e ambiente funcionem. É muito comum que as economias africanas, considerem mais fácil, negociar e coordenar políticas com países de outros continentes que os seus vizinhos. Assim, estão determinados a mudar a situação existente, servindo de exemplo, a iniciativa do Corredor Norte, em cujo contexto cada um dos três países é responsável pela realização de vários projectos-base.
O Uganda, por exemplo, está empenhado em encontrar investidores para uma nova refinaria de petróleo, e lidera o desenvolvimento de infra-estruturas regionais em tecnologias da informação e comunicação, pelo qual eliminará a cobrança de itinerância para os serviços de telefone móvel, entre os três países. O Quénia, comprometeu-se a desenvolver um mercado regional de bens, obter melhorias nos recursos humanos por meio de serviços de consultadoria e educação, bem como, construir oleodutos para o transporte de petróleo bruto e refinado. Além disso, está a explorar formas de ampliar a criação e transporte regional de energia.

O Ruanda é responsável pela harmonização das leis de emigração e promover a liberdade de circulação, quer dos seus cidadãos e turistas, bem como a coordenação da segurança regional, através da Força de Reserva da África Oriental, gestão do espaço aéreo e promoção da oferta turística conjunta. O sucesso destas iniciativas será observado em alterações reais, que beneficiam os cidadãos da região, e deve elaborar planos de implementação para o obter.
A solução para o progresso, é o de não erigir monumentos a figuras políticas ou realizar cimeiras, mas reduzir o custo das transacções comerciais e aumentar os rendimentos dos cidadãos. A burocracia, por vezes, torna os processos administrativos demasiado lentos, porque está institucionalmente programada para subverter a mudança. Os projectos de integração do Corredor Norte são projectados para criar e sustentar, a vontade política necessária para a realização das diversas iniciativas.
Os Estados Unidos sempre foram um parceiro importante para os países da região, mas o caminho para a solução dos seus problemas, não se resolve com doações dos contribuintes americanos, e só os países com o seu sector empresarial, poderão realizar tal tarefa. Os países da região, esperam estabelecer um relacionamento mais profundo e normal com os Estados Unidos, concentrando-se no que se pode realizar conjuntamente, ao invés de saber o que a América pode oferecer para os beneficiar. A África sempre teve tudo o que necessita para permanecer de pé, ainda que, muitos sejam os tombos e acidentes de percurso. O sucesso das iniciativas da África Oriental, é possível nas demais regiões africanas, se os países se unirem e terminarem com as guerras fratricidas, que desde logo, é o primeiro e maior sonho africano, seguido da eliminação da pobreza, exploração dos seus recursos naturais que alimentam o desenvolvimento dos países desenvolvidos e em desenvolvimento.

O “El Sueño de Africa”, é também o título de um dos livros, de uma trilogia dedicada à África Oriental, escrito pelo espanhol Javier Reverte, que narra a sua viagem, durante vários meses, ao Uganda, Tanzânia e Quénia. A viagem inicia-se na capital do Uganda, cujo tema é a cidade e a importância do Lago Vitoria, como o centro da vida da África Oriental. A partir de Kampala visita as nascentes do rio Nilo, que além da sua espectacularidade, têm uma grande importância na história da exploração africana, dado que a sua pesquisa, foi a motivação das primeiras expedições europeias realizadas às zonas dos Grandes Lagos. Javier Reverte conta as grandes histórias do passado e as pequenas do presente, os mitos da exploração, os dias da era colonial e a independência desses três países africanos. As páginas do seu livro revivem os antigos reis africanos, os primeiros exploradores, os caçadores e os grandes escritores que escreveram sobre África. Traça a pintura voraz e colorida da África de hoje, a que ri e a que chora, a amarga e alegre, e transmite-nos a emoção de um sonho demasiado humano.
A grande questão de realização do sonho africano é o de saber como vai a África encontrar a solução, quando se encontra grávida de uma miríade de problemas que vão da pobreza à autocracia. O novo paradigma para o pensamento económico africano irá influenciar a direcção do crescimento e desenvolvimento do continente? O consenso geral, é que para escapar à pobreza, os povos africanos devem assumir o controlo dos seus recursos e reformar as suas prioridades de desenvolvimento e estratégias. Os africanos têm um elo comum e partilham objectivos conjuntos, visando em última análise, unificar o seu continente como um povo digno, como todos os pan-africanistas, desde Henry Sylvester Williams, Nkwame Nkrumah, Julius Nyerere, Nelson Mandela e Thabo Mbeki desejavam.
O sonho de África, gira do afro-pessimismo ao afro-optimismo, postulando que o continente se irá industrializar e desenvolver, usando os seus recursos naturais, habilidades dos seus povos e tomando o controlo total do seu destino, subestimando todas as diferenças culturais que existam e apelando para a solidariedade e resistência à exploração, sem olvidar os legados históricos, culturais, económicos e filosóficos de africanos do passado e presente. O sonho é comum de uma África rica em recursos naturais, apesar da sua história, não ser tão admirável, e alguns desafios sérios, actualmente prevalecentes, alguns países têm demonstrado que a aplicação prática de uma boa reforma política, tem impulsionado claramente as suas economias no caminho da prosperidade, podendo dessa forma, transformar o continente, outrora desprezado.

O poder de governar é um direito fundamental de cada Estado, e que nenhum outro tem o direito de interferir nos seus assuntos internos. É de recordar que a África tem sido marginalizada, na medida em que o Norte global, não percebe que um continente mais industrializado pode servir como uma nova válvula de segurança para a economia global em ebulição. Os africanos não são pobres, porque não acreditam na sua capacidade de saírem da pobreza., mas porque não podem obter benefícios de instituições criadas pelo Norte. Os africanos são classificados como pobres, porque não possuem ou controlam a ciência, tecnologia, pesquisa e desenvolvimento, que permitam a sua transformação económica, que beneficiará o seu povo.
É importante que África defenda a emancipação económica, acentuando o facto de que as nações ricas devem mudar a sua atitude, cessando a exploração do continente, que simplesmente consideram como uma fonte de matérias-primas para o seu desenvolvimento industrial. Os países ocidentais, e outros, em fase adiantada de desenvolvimento usam a estratégia de dividir, para reinar, criando um continente fraco e fragmentado.

A segurança alimentar é a base da transformação e da realização desse sonho continental colorido. O sonho africano não é sobre a esperança ou qualificação para cumprir os critérios e as orientações dos fundos de doadores, mas de definir políticas de crescimento e estar na liderança, aberto e determinado a ir mais longe do que jamais imaginou. A África de um novo começo pode ter chegado, e está a desenvolver-se. É o sonho alcançável? O sonho africano é sobre cada país, possuir boas escolas, hospitais, infra-estruturas públicas, habitações e bons padrões de vida. O sonho é também, sobre a boa governação, democracia participativa, direitos humanos garantidos e Estado de direito.
O problema no concernente não é típico de África, pois tem sido difícil de alcançar esse sonho a comum, em qualquer lugar do mundo, devido aos esforços de alguns líderes para ter e controlar o poder, sem ter em conta, o bem-estar daqueles que lideram. É de relembrar que muitos líderes africanos deram um bom pontapé inicial de governança democrática, e depois regressaram e envergaram as vestes de ditadores, criando o desenvolvimento de um “continuum” político, que permitiu presidentes terem poder absoluto, e sem precedentes em todos os aspectos da vida política, económica, social e cultural, resultando no aperfeiçoamento do culto ao herói, e criando uma forma de arte em alguns países africanos. É preciso não esquecer que a democracia, boa governação e desenvolvimento andam de mãos dadas, e que os relacionamentos humanos adequados dentro de uma sociedade são tão importantes para o sucesso de uma democracia.

A este respeito, o mau julgamento político por parte da liderança pode mergulhar o país em uma profunda crise, em que as pessoas passam a não ter confiança no governo, liderança ou sistema político. Tal como Alexis Kagame ou Alassane, Ndaw realçaram, o abismo intransponível entre a maltratada cultura popular cosmocêntrica e holística e a cultura oficial antropocêntrica e igualitária, está longe de ser resolvida. Essa distância é o fundamento de todas as violências, excessos, rupturas, e do peso da moderna “Aldeia Global” que não parece estar em condições de erradicar a vitalidade tradicional que ainda persiste. Assim, a África é a última trincheira ensanguentada, aberta contra a modernidade, tanto nos actos, como nos pensamentos. Que Deus proteja a África, Nkosi Sikelel’ iAfrika, como expressa o hino nacional sul-africano. A África sobreviverá, como sempre o fez, mas não escapará ilesa, nas palavras de Aimé Césaire.

13 Jun 2016

Memórias de um povo

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]esde os incidentes da Praça Tiananmen, ocorridos a de 4 Junho de 1989, a data é sempre assinalada em Macau com a celebração de diversas homenagens. O Governo chinês tem um ponto de vista sobre este episódio, mas o povo tem rejeitado essa opinião. Para sarar as feridas e seguir em frente, em união, serão necessários alguns esforços e muito bom-senso.
O enquadramento de qualquer incidente em termos históricos é moldado social, política e culturalmente, e não só. Quando estes casos acontecem nenhuma das partes envolvidas pode escapar às responsabilidades. A compreensão da História da China moderna ajudará a determinar as causas das tragédias e a encontrar maneiras de evoluir. Este espírito de compreensão e de vontade de evolução deve estar presente nas homenagens prestadas em memória das vítimas. Mas debrucemo-nos sobre os principais acontecimentos que marcaram as últimas décadas e que fazem parte da nossa memória colectiva.
A China venceu a Segunda Guerra Sino-Japonesa em 1945, no entanto o povo chinês não viria a desfrutar de paz por muito tempo. Seguiu-se um período de quatro anos de guerra civil, entre o Partido Comunista e o Partido Nacionalista. Os Comunistas venceram e tomaram a China e os Nacionalistas retiraram-se para Taiwan. Hoje em dia já não se ouvem nas ruas de Taiwan gritos pela independência nem ataques à China continental e, não nos esqueçamos, a crise de 1958 terminou sem terem sido necessários acordos de cessar fogo ou conversações de paz. Mas Taiwan continua fiel ao lema “não à unificação, não à independência e não ao uso da força”. A China continua à procura de formas de resolver a questão de Taiwan, mas o que é importante reter é que tudo o que se passou na China, em Taiwan, em Hong Kong e em Macau serve para lembrar que, enquanto as pessoas permanecerem “adormecidas”, as tragédias podem voltar a acontecer.
O 28 de Fevereiro de 1947 em Taiwan, o Movimento Anti-direitista na China em 1957, A Revolução Cultural na China em 1966, o Motim 1-2-3 em Macau em 1966, as revoltas esquerdistas de Hong Kong em 1967 e o incidente de 4 de Junho de 1989, foram acontecimentos separados no tempo, mas politicamente relacionados.

Embora o Dr. Sun Yat-sen tenha afirmado que a política diz respeito a todos, constatamos que quem abraça esta carreira acaba por defender interesses de grupo ou, simplesmente, interesses individuais e esquece muitas vezes o bem comum. Se todos tivessem deposto as armas e virado costas aos conflitos, a China não se teria envolvido numa guerra civil e as dissidências que opuseram o Governo chinês ao povo não teriam terminado em derramamento de sangue. A História não pode ser dissimulada e servir como instrumento de ajuste de contas. A expressão “não podemos esquecer o passado, pois serve de lição para o futuro” sublinha a necessidade de olharmos para o que se fez de errado, aprendermos a perdoar e procurarmos o entendimento e a reconciliação.
Procurar a vingança pelos incidentes de 4 de Junho pode ser um acto político, mas não vai adiantar de nada às vítimas que nesse dia perderam a vida. Em 2016 celebra-se o 50º aniversário da Revolução Cultural e do Motim1-2-3 de Macau. Em vez de procurar retaliações, a China e Macau deverão analisar as causas destes acontecimentos e tentar evitar futuros conflitos e rupturas sociais.
“Não devemos deixar que o ódio habite as nossas mentes, é necessário substitui-lo por amor”, terá dito Jesus Cristo quando foi crucificado, e é também o significado do perdão na doutrina de Confúcio. Este é o caminho que a Humanidade deve seguir, com estas palavras sempre presentes no coração.

10 Jun 2016

Nós, as máquinas

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]á abordei várias vezes o advento da inteligência artificial (IA) nesta página, mas as notícias sucedem-se e, com elas, o intricado que é perceber o nosso futuro como espécie, se é que o temos. O meu último palpite é que vamos acabar transformados em máquinas. Humanóides, se quiser, mas não humanos. Esses podem ter os dias contados.
Mas, antes disso, deixem-me partilhar as últimas que chegaram ao meu conhecimento.
A primeira surgiu na Quartz onde se anuncia o primeiro guião de cinema escrito por um sistema IA (bit.ly/AIdoesSwrite).
Oscar Sharp, o realizador, e Ross Goodwin, o geek, resolveram experimentar o que aconteceria. Assim, para acederem a um concurso para fazer filmes em 48 horas, deram a um sistema neural (neural network) uma série de ideias para um guião.
Não saiu um trabalho de génio, mas tudo, desde instruções de movimentações no set a diálogos e até mesmo a letra de uma canção, foi escrito pelo sistema.
Uma história futurista que, escreve o IA, “será uma época de desemprego massivo” onde “os jovens são obrigados a vender o próprio sangue”.
Ou seja, até as máquinas já sabem o que vai acontecer.
A este propósito, lembro que a proposta de lei Suíça, que mencionei um destes dias para a atribuição de um ordenado a todos, acabou chumbada na passada semana por receios que as pessoas se entreguem ao ócio. Todavia, os 20% que votaram a favor dão esperanças aos proponentes que a conversa não tenha ainda terminado. Agora, o ócio assusta mas em breve será o ócio a ditar a medida, ou a profecia da máquina de venda de sangue pode mesmo ser consubstanciada.
Chegou-me também a notícia publicada na Vox da reconstrução do filme Blade Runner a partir de data não codificada, ou seja bits e bytes do filme de Ridley Scott (bit.ly/AIdoesBrunner).
O projecto foi gerido por Terence Broad, um londrino que se dedica à pesquisa sobre computação criativa.
O objectivo de Broad foi o de aplicar “deep learning” — a característica fundamental destes sistemas de IA — ao vídeo; queria ele descobrir que tipo de criação um sistema rudimentar de IA conseguiria gerar se fosse ensinado a perceber data de vídeo e, na sequência, a ver um filme.
O resultado foi de tal ordem que a Warner Brothers, detentora dos direitos do filme, pediu que o vídeo fosse apagado da plataforma Vimeo onde estava (está) em exibição. Mais tarde viriam a reconhecer o erro pois aquele não era o filme deles mas sim uma reconstrução.
Ou seja, é cada vez mais claro que até mesmo as áreas criativas, que nós pensávamos ser o último reduto do homem, vão estar ameaçadas pelas máquinas.
Qual será o nosso caminho, então? Neste momento, porque a realidade é dinâmica, acho que o nosso futuro vai ser transformamo-nos em máquinas.
Senão vejamos, com o avanço dos sistemas neurais (IA) de um lado e o próprio avanço tecnológico que temos vindo a desenvolver do outro, não será difícil de imaginar que, num futuro não muito distante, vamos começar a substituir peças. Orgânicas e/ou feitas de outra coisa qualquer. Provavelmente, as feitas de outra coisa qualquer, resistentes a vírus, bactérias e afins, serão as mais populares.
Faz sentido optar por um coração orgânico em detrimento de um, digamos, da Rolex?
Ter um braço da Nike, umas ancas da Peugeot ou uns olhos da Leica não me parece tão ficção científica quanto isso.
Teoricamente, a substituição de peças vai-nos permitir viver mais tempo. Apesar disso, já hoje existem teorias várias que, mesmo nas condições actuais, o ser humano poderia durar muito mais. Alimentação, ar puro, etc. todos concorrem, mas com homens e máquinas trabalhando em simultâneo, não me parece que essa realidade seja nem utópica nem distante, tal como as expectáveis transformações radicais ao nível das soluções energéticas e das formas de locomoção.
Aumentando a esperança de vida, com uma tecnologia avançada disponível e tempo de sobra nas mãos que nos resta? Viajar pelo espaço. Sair daqui para fora. Acho que será esse o futuro.
Fica ainda uma questão para resolver, contudo, a essência. Quando começarmos a subsistir peças vamos continuar a ser nós? Se sim, o que faz de nós, nós? A alma, dirão os crentes. O fantasma dizia Masamune Shirow em “Ghost in the Shell” ou, dirão os mais pragmáticos, a informação armazenada no cérebro.
Em relação a esta última possibilidade, talvez não seja preciso esperar muito para verificar a sua veracidade. Isto é, se o neurocirurgião italiano Sergio Canavero for bem sucedido no transplante de cabeça que promete já para o ano que vem (bit.ly/Canavero), podemos vir a ter uma ideia sobre o assunto. Segundo ele, o problema era juntar a espinal medula, mas garante estar ultrapassado. Descobriu o segredo, diz, e até lhe deu um nome, Gemini (spinal cord fusion).
Entre peças sintéticas, ou transplantes espectaculares, e sistemas IA cada vez mais evoluídos parece-me cada vez mais claro que a vida na Terra está prestes a mudar de uma forma absolutamente espectacular. Provavelmente, os humanos, esses seres frágeis e problemáticos, serão uma recordação tão longínqua como hoje a dos dinossauros.

Música da Semana

“Sweet Head” (David Bowie, 1972)

“See my eyes of blocked emotion,
see my tremble, see my fall
Traumatics thick and fast,
your faith in me can last
Besides I’m known to lay you, one and all”

8 Jun 2016

Acidentes com sexo

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] sexo é muito, mas mesmo muito, bom. É o melhor para relaxar o corpo e a mente, é o melhor para a nossa auto-estima, é o melhor para espalhar o nosso amor. Mas o sexo tem perigos, uns mais comuns que outros. Não há nada como nos precavermos daquelas coisas que já conhecemos e termos alguma consciência dos inesperados que poderão surgir. Inesperado será sempre inesperado, potencialmente doloroso, mas muito provavelmente engraçado.
Faz-me lembrar aquele episódio da série Seinfeld quando um proctologista faz contínuas anedotas sobre a panóplia de objectos que o pessoal mete nos seus rabinhos e que ficam lá presos. No calor do momento ninguém pensa muito detalhadamente nos riscos que um momento íntimo de prazer poderá trazer. O que nos prepara para a vergonha quando somos obrigados a partilhá-lo com médicos, enfermeiros ou ambulâncias? Nada. De qualquer forma, a probabilidade de ter um acidente sério é muito pequena, mas em casos raros pode ser fatal.

1.Brinquedos sexuais são caros, por isso as pessoas tentam improvisar como podem. O improviso, porém, pode não ser simpático com o nosso corpinho, massacrando-o de formas inimagináveis. É preciso ter cuidado com aquilo que se mete na vagina ou no rabinho, podem ser pequenos demais ao ponto de se ‘perderem’ ou grandes demais para magoarem à séria. É que depois só num hospital há material especializado para explorar as caves interiores e retirar os objectos estranhos. Não os deixem lá dentro durante muito tempo. Evitem lâmpadas LED ou termómetros de aquário (tudo o que se possa estilhaçar é expressamente proibido, por mais fálicos que sejam) e evitem superfícies rugosas que possam arranhar ou ferir (houve alguém que se lembrou de enfiar uma flor pela uretra e arrependeu-se). Em relação à vagina em particular, esta tem um ambiente delicado com um pH específico indispensável à sua saúde. Se se meterem objectos estranhos que segreguem algum líquido, ou deixem ‘restos’, estou a pensar por exemplo, numa banana, a vagina pode ficar infeliz com a sujidade.

2.Não há nada como espontaneidade sexual em todos os recantos do quarto, da casa, da cidade e do planeta. Mas cuidado onde o fazem. Há quem tenha feito contra uma janela e caído, ou numa mata e caído num poço, ou a conduzir e ter tido um acidente (imaginem um broche enquanto conduzem e baterem contra alguém… acho que não preciso ser muito gráfica), ou no chuveiro e escorregarem e verem-se num cenário ensanguentado. Quer-se espontaneidade com segurança.

3.Às vezes o sexo dá para umas pancadinhas de amor, umas palmadinhas aqui e ali, nada de muito exagerado para quem não é um adepto de BDSM. Mas tanto movimento traz algumas pancadas acidentais. Contra a parede, quedas da cama, cabeçadas, palmadas com mais força do que esperado, posições que dobram o pénis em dolorosas acrobacias (o pénis não precisa de ter ossos para se partir quando erecto…), joelhadas inesperadas (ou cotoveladas) e arranhadelas. Uma dentada de amor, por exemplo, pode ser perigosa também. Na Nova Zelândia uma senhora começou a ter sintomas de um AVC sem causa aparente, quando os médicos repararam no valente chupão que tinha no pescoço, que fez bloquear uma importante artéria. Dramático.

4.Penis captivus é uma condição rara onde a vagina se comprime ao ponto do pénis não ser capaz de sair. É necessária atenção médica para relaxar os músculos da vagina e desfazer o coito. Aconteceu a um casal italiano que estava a praticar o sexo no mar mediterrâneo. Nem quero imaginar como conseguiram pedir ajuda, ou chegar ao hospital. Suponho que, assim que saíram daquela, deram uma pausa na sua vida sexual, bem necessária.

Não quero de modo algum assustar ninguém com estas histórias levadas da breca, são coisas que acontecem que, bem tratadas, não deixam mais do que uma história engraçada para contar. Há perigos mais reais do que uma cabeçada contra a cabeceira da cama. Há infecções e doenças sexualmente transmissíveis que são bem comuns e muito mais fáceis de prevenir. Preservativo SEMPRE. Os outros acidentes, esperam-se pouco disruptivos. Aproveitem que está cada vez mais calor, vão lá divertir-se, em segurança.

7 Jun 2016

CEM da Areia Preta: Reabilitar e Regenerar, os outros R´s da sustentabilidade

João Palla

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]artindo de uma nota de imprensa dando conta que o governo pretende demolir as instalações da CEM na Areia Preta para construção de habitação e espaços de cultura, cabe-nos uma outra pequena nota de imprensa.
Em 1906 instalou-se a Melco, Macao Electric Lighting Company Ltd., na Estrada da Bela Vista, encostada às colinas da Montanha Russa e D. Maria II, uma zona íngreme dando para o rio. Circundada pelas actuais Rua dos Pescadores e Avenida Venceslau de Morais foi aqui que, durante muitos anos, se gerou a electricidade necessária para abastecer a cidade. A CEM, que veio substituir a Melco em 1972, reestruturou-se profundamente. Deslocou a principal central eléctrica para Coloane e construiu várias infra-estruturas necessárias para a modernização do abastecimento que, nos anos 80, ainda representava a electricidade mais dispendiosa do mundo.
A CEM foi, por isso, e naturalmente a par do governo, um dos importantes promotores de encomenda de arquitectura ao longo das últimas décadas; de edifícios para centrais eléctricas, escritórios, subestações ou postos de transformação. Arquitectos de Macau desenvolveram interessantes exercícios plásticos que constituem hoje indiscutíveis valores da produção arquitectónica contemporânea. A CEM irá devolver o terreno da Central Térmica de Macau ao Governo onde este pretende construir habitação pública com cerca de mil fracções habitacionais.
Em Macau, um dos últimos exemplos daquilo a que poderíamos chamar património industrial situa-se exactamente neste local, sendo os outros as fábricas de panchões.
É preciso encontrar soluções que não sejam a da elementar demolição; olhá-las como oportunidade e desafio e não como mais um lote para construir blocos de apartamentos. A reabilitação é uma medida não só possível como a apropriada para este tipo de locais.
Não temos uma Central Tejo convertida em Museu de Electricidade e em espaço de exposições mas, mais modestamente, temos uma História da electricidade que valeria a pena saber contar às novas gerações de modo a preservar a memória histórica. Porque mostrar o passado não é vergonha, apagá-lo é que chega a ser criminoso.
E enquanto a reabilitação trata da adaptação e da reutilização de edifícios para novos usos, a regeneração urbana é um conceito relativamente recente que se refere a intervenções urbanas que visam dar qualidade = requalificação, e vida =revitalização a zonas ou quarteirões degradados ou obsoletos transformados em equipamentos sociais, de lazer, de criatividade e alguma também habitação devolvendo uma utilização colectiva com espaços verdes
A regeneração urbana de espaços industriais constitui motivo de reflexão sobre outras disciplinas tais como o turismo industrial, a museologia, a arqueologia industrial e o próprio urbanismo.
Aos decisores incautos de cultura arquitectónica ficam alguns exemplos de reabilitação de espaços industriais, como a fábrica de Pompeia em São Paulo, da autoria da Arquitecta Lina Bo Bardi, e a famosa Docklands em Londres.
Quanto à regeneração urbana de espaços industriais, podem-se testemunhar inúmeros movimentos, tais como Industrial Heritage Association, The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage (TICCIH), e intervenções urbanas em Singapura ou várias cidades chinesas onde o melhor exemplo é o “798 Art District” em Pequim.
O desafio deste lote obsoleto é uma abordagem que sintetize o equilíbrio urbano entre o desenvolvimento necessário e uma revitalização com algum grau de preservação. Não basta dizer-se que temos uma cidade de património quando não se olha para além do que já foi classificado pela Unesco, em 2005, ou pelo Decreto-Lei n.o 83/92/M, de 31 de Dezembro, há quase vinte cinco anos.
A ideia de património arquitectónico deve ser vista nas acções presentes como sedimentos de acumulação de valor. Em Macau temos exemplos de diferentes estilos e correntes arquitectónicas que só existem porque houve a consciência da necessidade de as preservar. Também porque não houve a ira demolidora dos dias de hoje.
E, se por magia, certos pós de bom senso mostrassem vontade de descender à Terra, indicar-lhes-íamos a escadaria que toca no céu e que traz ao interior quente do edifício da CEM – da autoria do Arquitecto Adalberto Tenreiro, construído em 1993. Este pequeno edifício de escritórios com dois pisos representa um dos melhores exemplos da arquitectura desconstrutivista em Macau. Um desenho complexo de desmontagem das peças arquitectónicas onde a estrutura dança sobre volumes desfasados. Um exercício arquitectónico irrepreensível e de valor indubitável.
Nesse sentido, havendo um novo bairro de equipamentos para este local, defendemos a reutilização deste edifício cuja área reduzida em relação à área do lote, a planta livre e o seu bom estado de conservação propiciam a facilidade técnica de uma adaptação a novas funções.
Entendemos que um concurso de ideias aberto será a forma mais límpida, colocando em pé de igualdade ateliers já reconhecidos com a crescente classe de arquitectos jovens de Macau.
Elabore-se um programa que contemple as vertentes atrás descritas e lance-se o desafio aos que pouco ou nada têm conseguido acrescentar recentemente à cidade por força dos responsáveis governamentais e igualmente da insistente moda em importar projectos que são desenhados no exterior, unicamente assinados por arquitectos locais.

7 Jun 2016

O sonho europeu

“The American Dream focuses on wealth, the European Dream on quality of life. The American Dream focuses heavily on property rights and civil rights, because they extend our individuality. In Europe, you focus very little attention on property rights and civil rights. You spend a lot of time on social rights, health care, retirement benefits, maternity leave, paid vacations, and what you call universal human rights.”

The European Dream: How Europe’s Vision of the Future Is Quietly Eclipsing the American Dream
Jeremy Rifkin

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s americanos vivem e morrem de acordo com a ética de trabalho, e os ditames da eficiência. Os europeus dão mais valor ao tempo livre, incluindo a ociosidade. A América sempre se viu como um grande caldeirão de culturas. Os europeus, no entanto, preferem preservar a sua rica diversidade cultural. Os americanos acreditam numa presença militar contínua, em todo o mundo. Os europeus, pelo contrário, enfatizam a cooperação e consenso, contra as abordagens de política externa unilaterais. A crise europeia, no fundo, não é uma crise económica.
A crise europeia é uma crise mental, talvez ainda mais, uma crise sobre como imaginar ter boa vida, para além do consumismo. Os críticos que levantam a voz contra a Europa, no seu anti-europeísmo, são prisioneiros de uma nostalgia nacional enferrujada, e nesse sentido argumenta, por exemplo, o filósofo francês Alain Finkielkraut, que a Europa acredita que se pode formar sem as nações, inclusive contra elas. Quer punir as nações pelos horrores do século XX. Mas não existe democracia pós-nacional.
A democracia é monolingue e para funcionar requer uma linguagem, referências vitais e um projecto comum. Não nascemos como cidadãos do mundo. As comunidades humanas têm limites, mas a Europa não toma em conta essa situação, e daí que a opinião pública europeia não se entusiasme com a União Europeia (UE). Esta crítica à Europa é suportada na mentira existencial nacional, de que na sociedade e na política europeias, poderia existir um retorno idílico ao Estado-nação.
Assume-se que o horizonte nacional, é a estrutura para diagnosticar o presente e o futuro da Europa. Quem faz tais críticas, deve abrir os olhos e observar que não apenas a Europa, mas todo o mundo, estão em uma transição, em que as fronteiras que funcionam, deixaram de ser reais. Todas as nações enfrentam uma nova pluralidade cultural, não só através da emigração, mas também, por meios da comunicação por Internet, alterações climáticas, crise do euro e ameaças digitais à liberdade. As pessoas das mais diversas origens, com diferentes línguas, valores e religiões, vivem e trabalham próximas, e os seus filhos frequentam as mesmas escolas, e tentam lutar por uma posição no mesmo sistema político e jurídico.
As nações avançam em plena aceleração, em direcção ao cosmopolitismo, e dois exemplos paradoxais são de realçar, como o da imprensa britânica que está repleta de queixas sobre a UE, ou seja, o eurocéptico Reino Unido, está inundado por uma vaga sem precedentes de opiniões sobre a Europa, e por outro lado, a China, desde há muito, tem sido um membro informal da zona euro, pela sua política de investimentos e as suas dependências económicas. Se o euro fracassar, a China será afectada até ao tutano. Tais casos, evidenciam, quando a globalização dissolve as fronteiras, as pessoas tentam restabelecê-las. A necessidade de fronteiras, tem tendência a ser mais forte, quanto mais cosmopolita se torna o mundo, sendo evidente no triunfo da Frente Nacional nas eleições municipais francesas, e que serve também para entender a máxima do presidente russo, de que a Rússia deve estar, onde vivam os russos.
O agressivo nacionalismo intervencionista do presidente russo, mostra que não é possível projectar o passado das nações sobre o futuro da Europa, sem o destruir. Não servirá, quiçá, o etnonacionalismo do presidente russo como uma saudável terapia de choque, a uma Europa assolada pelo egoísmo nacional? Quem jogue a cartada do nacionalismo extremado, volta a conjurar pelo desmembramento da Europa, e que serve quer ao presidente russo, como também, de outro modo ao Reino Unido e à direita e esquerda anti-europeia. A todas estas situações, Alain Finkielkraut, responde que os europeus estão traumatizados por Hitler, pois desprezava o conceito de nação, e queria substitui-la pela de raça.
Actualmente, são as nações que têm de purgar os excessos racistas. Muitos interrogam, se não será esse trauma devido ao “Holocausto”, que faz que os alemães queiram açambarcar todo o nacionalismo. Certamente não será, pois mais que nunca, o mundo precisa de uma abordagem europeia, para terminar com os males da globalização, como as alterações climáticas, pobreza, desigualdade extrema, guerra e violência. A guerra contra os riscos globais, é uma tarefa hercúlea, e poderia até criar uma nova ideia de justiça, com alcance global. Se a Europa quer verdadeiramente superar a sua crise de convivência, deve seguir outros dos conselhos de Alain Finkielkraut, o de encontrar a sua identidade nas grandes obras europeias, monumentos e paisagens da cultura. Nada há a opor à releitura das obras de Shakespeare, Descartes, Dante e Goethe, ou deixar-se encantar pela música de Mozart e Verdi.
O conceito de literatura mundial de Goethe é politicamente interessante, e referia-se a um processo de abertura ao mundo, em que a alteridade do exterior se converte em parte integrante da nossa consciência. É nesse sentido, que Thomas Mann fala do alemão mundial, a que devia ser adicionado o italiano, o espanhol, o francês mundial, e assim por diante, ou seja, uma Europa de nações cosmopolitas. A partir das costas de África onde nasci, vê-se melhor o rosto da Europa e sabemos que não é bonito, escreveu Albert Camus, Prémio Nobel da Literatura de 1957. A beleza era para Albert Camus, discípulo de Friedrich Nietzsche, um critério de verdade e boa vida, e o segredo da Europa constatava friamente, é de que tinha deixado de amar a vida, pois para ser humanos, a partir do desespero, os europeus acabaram por atirar-se aos excessos desumanos, e como negavam a verdadeira grandeza da vida, tiveram que focar-se no único objectivo, que era a sua própria perfeição. Na falta de algo melhor, deificaram-se, e começou a sua miséria. Eram deuses cegos. Poderia perguntar-se qual é o antídoto, a fórmula idónea para uma UE, distinta da que vive no momento, a alegria apenas do presente? Por exemplo, o sonho de um tálamo mediterrânico, em que o Oriente e Ocidente, Norte e Sul se respeitariam e cooperariam. Surge assim, uma Europa das regiões, digna de ser vivida e querida. O nexo aparentemente entre o Estado, identidade e a língua nacional, é dissolvido.
A UE, os Estados membros e as regiões ocupar-se-iam gradualmente do bem-estar dos cidadãos. Seriam porta-vozes num mundo globalizado, por um lado, e por outro, transmitiriam uma sensação de abrigo e identidade. A democracia adquire múltiplos níveis, tal como a estamos a começar a praticar. O Mediterrâneo, como saber viver, alegria vital, indiferença, desesperança, beleza e fé, ou seja, uma mistura paradoxal que os europeus do norte, imaginam romanticamente e projectam sobre o sul, como esses jardins meridionais, em que florescem os limoeiros de que falava Goethe, e que não podia ser outra que Sevilha. A miragem da dívida também impôs um rosto cinzento e disforme, a essa existência mediterrânica cheia de alegria de viver e cosmopolita. O pensamento regional e com traços confederais do Mediterrâneo, sobreviveu, às grandes ideologias nacionais e políticas, e é talvez a única utopia social do século XXI, que terá futuro.
A cerimónia da entrega do “Prémio Internacional Carlos Magno”, foi a mais atípica até ao momento realizada, não só porque o palco foi Roma, mas também, pelo discurso do vencedor do prémio, o Papa Francisco. A referência a refugiado, não foi proferida uma única vez no seu discurso. Que quis dizer com tal atitude? O de renunciar ao papel que assumiu na crise dos refugiados? O Papa Francisco queria algo mais, pois durante o seu discurso de aceitação do prémio, quis chamar a atenção para o novo humanismo europeu. A questão dos refugiados e a sua percepção na Europa, é muito debatida no Vaticano. O Papa Francisco, trata o tema com acções concretas, como aconteceu na sua visita a Lesbos e, dessa forma, mostra como a Europa e a política europeia não estão a actuar. O Papa Francisco, em abono da verdade, fala como um filho que tem as raízes da sua vida e da sua fé na mãe Europa.
Os seus pais fugiram um dia da pobreza do Piemonte, e o filho nunca esqueceu esse dramático episódio familiar, e durante o seu discurso, falou de forma apaixonada e quase como entoando um hino, do que representa para si a Europa, defensora dos direitos humanos, democracia e liberdade, pátria de poetas, filósofos e artistas. A Europa mãe de povos e nações. O que existe de errado na Europa? O Papa Francisco estruturou o seu discurso com palavras de integração, diálogo e criatividade. Assim, tornou-se na realidade político, uma vez que coloca a Europa, como exemplo, para recordar o que tiveram de passar milhões de jovens, sobretudo dos países europeus do sul, que não têm formação, emprego e futuro, revelando toda a indignidade da situação de uma Europa que se pretende eminentemente social. O Papa no seu discurso, apenas citou o jesuíta polaco Erich Przywara, e sua obra “A ideia da Europa”, cuja leitura recomendou várias vezes. A ideia europeia de um jesuíta nascido na Polónia, realça a notável contribuição do Presidente do Conselho Europeu e ex-primeiro-ministro da Polónia.
O problema é que a Europa apoiou os Estados Unidos na criação e incitamento de conflitos, onde quer que seja, na Síria, Ucrânia e Líbia, e essas pessoas, que são seres humanos, e não se deve esquecer essas acções, fogem de guerras, insegurança, fome e tentam salvar os seus filhos. É a consequência de não ter ajudado, honestamente, muitos países da África subsarianos, a saírem da terrível situação que criaram. É uma grande tragédia humana a vaga de emigração que varre o continente europeu, e que a Europa tem uma grande quota de responsabilidade. O que é absurdo é que podem passar vários anos no limbo, e permanecerem na Europa. É obrigação moral aceitar os emigrantes ou rapidamente, apenas em situações extremas, rejeitá-los e fazê-los regressar aos seus países de origem, sem mais delongas e histórias. A Europa muito irá chorar pelo seu desleixo em matéria de imigração. Quem não é elegível para ser considerado refugiado, deve ser expulso do território da UE.
O Canadá gasta fortunas para expulsar quem não reúne condições para permanecer no seu território, e pode ser o exemplo a seguir, pelo menos, sobre a imigração. A situação é fácil de resumir, pois se lhes concedem asilo, podem permanecer na Europa. Se não obtiverem asilo, podem permanecer na Europa, ou seja, em ambas as situações, recebem benefícios. Aparentemente, a diferença está, em que sendo considerado refugiado, terá maiores benefícios. O sonho europeu, faz que qualquer pessoa que ponha o pé na Europa, despoleta burocracia e a aliança de instituições profissionais de boa vontade, como a ONU, UE e jornalistas especializados, que se encarregam de tornar impossível a sua devolução aos países de origem, e é essa e não outra, a razão de que cheguem cada vez mais emigrantes à Europa, o que curiosamente não ocorre, em nenhum dos riquíssimos países muçulmanos do Golfo. E entretanto, o estado de bem-estar é desfeito, a Europa fica islamizada, e o terrorismo jiadista está cada vez mais presente.

6 Jun 2016

O tempo do meio

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]arou. Sem dar por isso. Como aquele momento na noite em que, exausta esta, esgotada do tempo que lhe compete, de repente pára. E dá-se aquele silêncio abrupto que cria uma leve suspensão, uma respiração retida por um segundo mais longo, uma espectativa sempre igual, e logo a seguir a cidade retumbante de frescura a acordar em sons que tiveram ali um breve intervalo. Os de ontem, os de amanhã. Tão mesmos e tão outros se esmiuçados. Extinguem-se os ruídos de hoje e, no espaço de uma respiração surgem os de amanhã. Ou os de ontem, nesse momento, dão lugar aos de hoje. O sono, pelo meio, a organizar os tempos. Parou o tempo. Entendi depois. Parou por aqui, finalmente no olhar mais aproximado de um fenómeno que já vinha longo. Longo demais. Como uma noite que se prolonga mais do que o esperado. Parou. Podia chamar-lhe um meio tempo. O meio do tempo. Ou a meia idade. Expressão estranha de gerações anteriores. Nunca gostei de meios termos, de meias idades ou de meias palavras. Quero ser jovem enquanto isso for real e depois envelhecer confortavelmente e sem drama. Depois. Mas é cedo. Entendi que é cedo e entendi em que estação estou afinal. Neste encontro de todas as perdas.
Sempre tive idades estranhas. Onde habita a idade em nós é uma coisa misteriosa. Uns dias no espelho, outros na alma, outros ainda, no falível olhar dos outros. Sempre por excesso ou por defeito. E há sempre defeitos nas idades. O maior de todos nessa estranha e inexistente meia idade. Que se sente e julga a envelhecer mais do que em qualquer outra como se antes o tempo houvesse parado. A continuidade desse fio que nunca deixou de se desenrolar e um dia criou nós. Talvez só mesmo no cartão de identidade. A habitar ali. Em mim o coração anda sempre muito perto do cérebro, ou a mente a tender para o coração. Este eterno encontro que talvez se dê a meio caminho, embrulhado neste nó da garganta sempre em formação. Ou na melhor das hipóteses a saltar infantilmente à corda. Nas cordas vocais, talvez. Coisa pouco poética de dizer, talvez. A meio caminho entre o crânio e a caixa torácica. Thorakikós. Naquele ponto onde se forma o nó. O nó na garganta a explodir facilmente em miríades de palavras. Onde habita a idade, volto a perguntar-me. Nas mudanças do corpo, na descoloração da alma, dos cabelos e dos sentimentos, na crispação da pele em rugas que marcam expressões que nunca houve. Não sei. Dos registos lineares e cromáticos, sim. Nas pintinhas das costas e nas ruguinhas da barriga. Sim. Mas, na maior parte dos dias, na vida. É aí que a idade é a envelhecer. Mas não nos sentimentos. Seja lá onde fôr que os situo. E as pessoas, as mágoas os desapontamentos tudo a envelhecer sem retorno. Os sonhos, as desilusões das ilusões. A criança das crianças. De tudo rescende um sentimento de perda. No tempo de todas as perdas. Já basta o corpo, os objectos. Nele e nisso um limbo de saída tenebrosa. Um tempo do meio em que o seguinte em nada parece poder reavivar. E foi aí que um dia o tempo parou. De exaustão e irresolução. Parou de desânimo. Deixar envelhecer na inércia de tudo, tudo. Ou esquecer. Ou o caminho do meio. Talvez mesmo como no Budismo, a distância entre a auto-indulgência e a morte. Respirar e reiniciar. Com tudo o que merece essa continuidade revista e actualizada. Com todas as quebras entre o hoje e o dia até ao qual a mágoa desidratou sentimentos. Com tudo o que não se pode querer perder, mas sem o lastro do passado naquele ângulo particular. O caminho do meio no tempo do meio. Um encontro para um destes dias.
Há coisas a que o tempo de envelhecer não chega. Ver a imagem de uma criança a comer restos de comida do chão. Como um pássaro mas com a alma a pesar nos ombros e um olhar que não se pode descrever. Não é um bicho enternecedor. É parecida. Mas com uma capacidade infinitamente maior de sentir sofrimento e abandono. Estas coisas nunca envelhecem em mim. Não sei palavras para o que isto me faz sentir. Esmoreço. Encolho-me toda por dentro e odeio-me pelos meus pequenos problemas. Excesso de pessoas que perdi porque tive. De pessoas que nunca perdi porque nunca as tive. De pessoas que me desiludiram pelo muito que me deixaram iludir-me. E a vida. Fantasias boas. Memórias em despedida. Um privilégio afectivo.
A pensar na Lua e como se desprendeu da Terra no impacto com um objecto desconhecido. E como ficou, como parte e perdida ali em cima, suspensa de uma eterna propensão melancólica com que sempre a olhamos. Perdida mas à distância do olhar como matéria simbólica de todos os sonhos. Presente, perdida, inalcançável. Ali. E a face visível, uma luz como o sorriso das noites. O lado que guardou o calor da Terra original por mais tempo, e a plasticidade de ganhar mares enormes e de nomes bonitos. E a face oculta, tristemente arrefecida, e assim com menos mares, mares pequeninos, isolada e misteriosa até aos anos cinquenta. Como se este ímpeto sonhador guardasse a memória ancestral do planeta de que se soltou uma parte, da qual ficou e ficamos eternamente nostálgicos. Numa saudade cósmica e primordial. A olhá-la com amor. E a aguardar cada eclipse como ao momento raro de uma carícia visível. Sombria. Ou antes sóbria.
E nesta estação de paragem, num destes anos, este jovem amante. Não demasiado jovem, mas para além do que imaginasse. Para além de qualquer sentido. Ou no final do sentido. E que nunca procurei, como a nada. A colar-me a um tempo estranhamente em busca de identificação e dificilmente mensurável. O tempo alegre de dois tempos. E ele chega. E descalça os sapatos sempre. Caminha na minha vida sem ruído e sem deixar pegadas. Descalço e naquela nudez única, que não passa além do corpo. E quando parte, deixa pouco mais do que um fio ténue e delicado, quase invisível. Com um pequeno nó. Fácil de desatar e muito fácil de reatar. E depois vai. Desce sempre a rua, num tempo sereno, até à próxima vez. O desenho do peito alongado vezes sem conto. Uma fantasia de espelho. E depois era o dele. A pele lisa e clara. E sei que me encontrei ali. Quando lhe encosto o rosto do lado do coração. Sei que me encontro ali. Não no coração. Mas no peito. Em silêncio. O silêncio em que me interrogo e a cada centímetro de mim, desde o lado em que tudo começa até à pontinha dos pés, a saber se sou eu. E sou, naquele lugar, no tempo medido, delimitado e concreto. O corpo acaba ali, e é nele que sou. Não sei onde começa. Em meio a toda esta nudez finita. Estanque. Fechada sobre si própria no escoar do desejo. Estas coisas não se dizem. Dizem-se as do amor e com toda a beleza das palavras que geram poesia. Quando dizem. Ou palavras turvas e arrepiadas à frustração que tudo corrói. Armas de arremesso. Sobre o outro que é tudo. Do amor, dizer outras coisas, tudo. Todas as coisas como por vezes avalanches, tornados, ciclones, catástrofes. Que será, só, sempre possível aprisionar-me numa gaiola que levo transportada na minha mão. Com medo de perder a chave. Em direcção ao infinito. E, de algum modo feliz. O feliz do acontecer. Sempre. Sendo amor, para sempre. E sem paradigmas. Aqueles raros, coincidentes com um nome de pessoa. Incomum. Ímpar. Ou a face escondida da lua. O mistério da mansidão celeste de mares basálticos. Os negros mares desérticos.
Encosto o rosto à mão, agora, enquanto penso. Um insecto voador e enorme entra pela janela num momento qualquer e entretanto fico a segui-lo na sua evolução aleatória, aparentemente, supostamente, seguramente desejoso de voltar a sair. Que sei eu…Negro, de uma família desconhecida, com um zumbido discreto. Parto do princípio de que deseja libertar-se de novo deste espaço da casa, que lhe aconteceu no acaso da sua deambulação misteriosa. E, nas múltiplas aproximações ao acaso da janela, acabou por sair.
Talvez como eu. Esquecendo o detalhe particular do que é aleatório. E retomando só o momento de querer e, depois, o de não querer.
Não. Não poderia renascer, mas posso reiniciar. Com tudo. Esta fantástica metáfora da informática. Respirar. Reiniciar. Porque não me apetece. Não me apetece idade nenhuma como estação. A estação que me apetece, é esta, a melhor de todas. A estação de ser quase. Quase Verão. Quase, quase Verão.

3 Jun 2016

Desconfiança

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o passado dia 28 de Maio, o website de Hong Kong “hk.apple.nextmedia.com” divulgou uma notícia, onde se fazia saber que a polícia local induzia pessoas libertadas sob fiança a desistirem do direito de processar o Governo e a Polícia de Hong Kong, por não terem sido reembolsadas do dinheiro pago pelas respectivas fianças.
Podemos ler na Wikipedia a seguinte definição de fiança, “……a fiança é um depósito material ou uma garantia dada a um Tribunal a fim de requerer a libertação de um detido, no pressuposto de que o indivíduo voltará a apresentar-se para ser julgado. Em alguns casos o dinheiro da fiança pode ser restituído no final do julgamento, se o réu se apresentar em Tribunal sempre que solicitado, independentemente de ser considerado inocente ou culpado das acusações……”
O Sr. Liu é o protagonista desta nossa história. A 25 de Maio o Sr. Liu apresentou-se na esquadra da polícia, de acordo com as condições impostas pela libertação condicional – apresentava-se sempre com regularidade. Nesse dia pediram-lhe que assinasse um documento de três páginas. Tratava-se de uma declaração, onde se podia ler,
“Decido processar / não processar a Polícia e o Governo de Hong Kong, por não ter sido reembolsado do dinheiro pago pela minha fiança, no valor de 20.000 HKD, e peço / não peço uma indemnização.”
O documento que o Sr. Liu recebeu para assinar já tinha as palavras “processar” e “peço” riscadas com uma cruz. O Sr. Liu sentiu que os seus direitos tinham sido infringidos e, como tal, mostrou o documento aos jornalistas e o caso foi tornado público.
No início de Maio, foi roubada da esquadra de Polícia de Wanchai, Hong Kong, uma soma de 1milhão e 70 mil HKD. A polícia local suspeitou de um dos seus agentes.
Na medida em que se tratava de um caso de roubo, a investigação foi imediata e a mulher do agente suspeito foi interrogada. Na altura afirmou que o marido não ia a casa já há alguns meses. Por outras palavras, não se conseguiu apurar nada a partir das declarações da mulher. Mas a polícia tinha algumas perguntas que ficaram sem resposta. Por exemplo, o suspeito era um agente. Não existia qualquer registo interno de que ele tivesse dividas. Além disso, se se tivesse reformado, teria recebido um valor de cerca de 1 milhão de HKD, pelo que 1milhão e 70 mil HKD, não lhe adiantava de muito. Mesmo assim alguns meios de comunicação avançaram que ele teria contraído créditos junto de algumas instituições bancárias, mas estas afirmações não ficaram provadas.
No entanto, a polícia de Hong Kong tem aparentemente um controlo muito apertado sobre os fundos de fiança à sua guarda. Os valores são colocados num cofre dentro da esquadra. O detentor da chave do cofre deve sujeitar-se previamente a testes de personalidade. O detentor da chave não pode ter dividas. Para além disso, enquanto estiver na posse da chave, este agente não pode sair da esquadra (nas horas de serviço, entenda-se). Se quiser lanchar, só pode ir à cantina, não pode ir ao “café da esquina”. Estas medidas evidenciam o rigor dos procedimentos.
Alguns meios de comunicação anunciaram que o suspeito estaria actualmente em Macau, mas mais uma vez, nada ficou provado.
O documento assinado pelo Sr. Liu foi alvo de duras críticas. Se o dinheiro das fianças desapareceu dentro da esquadra, é um problema, apenas e só, da polícia de Hong Kong. Mas ao vermos este documento, percebemos que a polícia tentou dividir responsabilidades com a pessoa que pagou a fiança! É um caso de injustiça óbvio. O primeiro problema foi o dinheiro ter desaparecido da esquadra, mas, tentar dividir responsabilidades com o cidadão comum, que não tem qualquer culpa do sucedido, passou a ser o segundo problema. É sem dúvida uma situação em que a polícia não “ficou bem na fotografia”.
Os motivos desta actuação são, contudo, bastante evidentes. A hipótese de recuperar o milhão e 70 mil dólares é diminuta. Mesmo que o suspeito venha a ser apanhado, o dinheiro pode já ter sido gasto. Se o dinheiro não for recuperado, a polícia de Hong Kong será responsável pelas indemnizações. Por isso, levar os lesados a desistirem do reembolso da fiança, e a não levantarem um processo, parece ser, de momento, a única saída que resta à polícia de Hong Kong.
Na sequência das duras críticas de que foi alvo, a corporação anunciou a dia 28 de Maio, que o caso não se voltará a repetir. Também foram apresentadas desculpas ao Sr. Liu pelos incómodos causados.
Ficou ainda claro que os reembolsos das fianças estarão assegurados e que caso não seja possível recuperar a soma roubada, a Polícia de Hong Kong será responsável pela sua reposição.
Não há dúvida que foi um acontecimento muito desagradável, a que ninguém gostaria de ter assistido. No entanto, a Polícia de Hong Kong é a fiel depositária do dinheiro das fianças, e, como tal, deve assumir todas as responsabilidades. Embora tenha havido polémica, as desconfianças foram acalmadas com os esclarecimentos posteriormente prestados. Esperamos que o suspeito seja encontrado o mais rapidamente possível e que o dinheiro possa ser recuperado, senão na totalidade pelo menos em parte significativa. Nessa altura o caso ficará encerrado.
Esta fuga de verbas duma esquadra não deixou de ser uma excepção. Os procedimentos de guarda de valores à responsabilidade do Governo continuam a ser eficazes.

David Chan
Consultor Jurídico da Associação Para a Promoção do Jazz em Macau


3 Jun 2016