Wabi Sabi, a falta que nos faz

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]evemos todos algo a pelo menos um professor. Neste caso, devo-o ao professor Jorge Cavalheiro em cujas aulas de cultura do Japão tive o privilégio de participar.
Trazia-nos ele um conceito completamente novo para mim e que se viria a tornar dos elementos mais importantes da minha vida; wabi-sabi.
Por um lado, ao explicar-me sentimentos, por outro, ao sistematizar a ideia do prazer pela imperfeição que eu sentia quase sem perceber a razão porquê.
Vivemos numa sociedade obcecada pela perfeição. O consumidor exige, o fabricante faz, a formação ocidental do prazer pela simetria condiciona-nos, torna-nos mestres do Photoshop, escravos da quimérica perfeição, alucinados pelo que é novo, brilhante e opulento.
O wabi-sabi traz-nos de volta ao que cale realmente valem a pena. À apreciação das imperfeições, à noção de impermanência e no quão bonito tudo isso é.
Não é fácil traduzir wabi-sabi, nem a tal me arrogaria, por isso limito-me à definição que me pareceu mais conveniente de todas as que fui ouvindo – o perfeito-imperfeito.
Contava-nos o prof. Cavalheiro, uma das muitas histórias de Seno Rikyu, um monge zen do séc. XVI, e um dos grandes responsáveis pela popularização do conceito.
‘Um dia, Seno mandou um discípulo limpar o jardim. Um dia passou ele na tarefa, assegurando-se de tudo deixar impecável. Trabalho terminado, e ao ser questionado pelo rapaz se bem executado, Rikyu respondeu abanando o ramo de uma árvore e provocando a queda de algumas folhas. Agora estava terminado’. Nada podia ser demasiado perfeito, acreditava Rikyu, pois a perfeição não deixa a mente criativa trabalhar. Além disso, o monge alertava para o respeito pela passagem do tempo, pelo rústico, pelos objectos modestos, às vezes consertados. Para a importância de tudo isso para o nosso próprio equilíbrio.
Considerando mais bonitas as coisas quando nelas podemos apreciar as marcas do tempo e a sua própria individualidade. Neste raciocínio, uma taça rústica tem muito mais valor do que outra, incólume, nova e perfeitinha.
Como diz o arquitecto Tadao Ando, “wabi-sabi é a arte de descobrir beleza na imperfeição e profundidade na natureza, aceitando o ciclo natural de crescimento, declínio e morte.”
Numa perspectiva mais actual, para Ando, wabi-sabi é “autenticidade, mercados de rua e não hipermercados; madeira envelhecida e não laminados; papel de arroz e não vidro”.
Uma forma de apreciar a vida como ela é, o prazer simples de admirar o musgo num muro, as folhas que cobrem a rua depois de um vendaval ou por ser hora disso; as flores vermelhas das “árvores dos exames” que todos os anos nos estendem tapetes escarlates pela cidade.
As teorias de Rikyu ficaram bem vincadas no desenho da cerimónia do chá, ainda hoje feita de acordo com o seu método, onde as loiças são rústicas, a simetria não faz parte da decoração da cabana (não pavilhão) do chá, que deve situar-se num lugar discreto do jardim, mas onde seja possível observar a passagem das estações pela janela. Um lugar de paz, onde os samurais eram proibidos de entrarem armados, desenhadas que foram umas bainhas no exterior para que as espadas aí fossem deixadas.
Rikyu criou a cerimónia do chá como resposta à moda extravagante da época na corte japonesa, onde o chá era ingerido em sumptuosas loiças chinesas durante cerimónias faustosas ocorridas nas varandas em noites de lua cheia.
“O chá é para todos”, disse Rikyu e transformou o processo num momento simples, de reflexão, de paz e sem ostentações, acessível a qualquer um.
À Lua Cheia contrapôs a meia lua, ou a lua em dia com algumas nuvens. As loiças chiques substituiu-as por outras mais simples, adquiridas em artesãos pelas aldeias em que passava, ou outras mais velhas mas bem remendadas.
Às vezes, quando apanho um japonês falo-lhe de wabi-sabi. A maioria sorri confessando que o Japão anda esquecido disso. É normalmente um sorriso que aparenta saudade de tempos melhor vividos.
Esqueceram-se eles, esquecemo-nos nós porque, em boa verdade, não é preciso conhecer a formulação deste conceito para percebermos a importância de nos relacionarmos com a impermanência, para reconhecermos os sentimentos que nos invadem quando desligamos o complicador e nos deixamos enlevar pela simplicidade, por objectos com carácter, por formas mais genuínas de vida.
Lembrei-me disto um dia destes num desses autocarros wabi-sabi da Transmac. Os minis onde ainda se tem o prazer de escancarar uma janela, mas onde, nalguns, as clássicas campainhas, discretas e vintage, foram substituídas por uma lâmpada sem graça e um estridente órgão electrónico que nos faz pensar duas vezes se devemos mesmo tocar para sair.
Macau precisa muito de wabi-sabi. O mundo precisa muito de wabi-sabi, para que possamos respirar e sonhar um pouco melhor.

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