Sanaz Fotouhi, co-produtora de “Love marriage in kabul”: “A política não vai criar a paz”

Co-produziu um filme que aborda a questão dos casamentos arranjados no Afeganistão, mas também escreve. “Love Marriage in Kabul” foi o passaporte para Sanaz Fotouhi vir a Macau participar no festival Rota das Letras. Com o HM conversou sobre o Afeganistão do pós-guerra e de como os padrões ocidentais de liberdade trazem pressão às mulheres do Médio Oriente

[dropcap]Q[/dropcap]Qual a história que está por detrás do documentário “Love Marriage Kabul”? Como é que chegou a esse projecto?
Na realidade, é uma história longa. Quando decidimos [Sanaz trabalhou com Amin Palangi e Pat Fiske] fazer o filme não era para ser este em particular. Em 2006, decidimos fazer um filme sobre o Afeganistão, então viajámos para lá e procurámos por temas interessantes. Deparámo-nos com um assunto terrível, as mulheres que se imolam, como tentativa de suicídio. Mas a curta-metragem, intitulada “Hidden Generation [Geração Escondida]”, continha um assunto tão horrível que as pessoas não se identificaram e, surpreendentemente, o filme não correu assim tão bem, porque não houve essa identificação. Decidimos fazer algo mais positivo. Demorámos alguns anos a pesquisar sobre este assunto, queríamos encontrar uma história feliz. Só depois de ter acesso a esta organização [Mahboba’s Promise] é que descobrimos a história perfeita para fazer o filme.

É difícil encontrar histórias felizes junto das mulheres do Médio Oriente?
Penso que não é difícil, há muitas histórias. É difícil, isso sim, ter acesso às histórias. Sabemos que elas existem, mas o que é mais difícil é estabelecer esse contacto para que as pessoas contem as suas histórias.

As pessoas têm medo de contar ou consideram que muitos dos casos que ocorrem são normais?
É uma questão cultural. O Médio Oriente tem sociedades muito segregadas, a diferença entre o que é público e privado é muito clara. Assuntos como o casamento, ter filhos, suicídio, são coisas muito pessoais, sobre as quais as pessoas não querem falar, sobretudo com alguém estrangeiro. Por isso é que ajudou bastante o facto de ser mulher para fazer este filme. O meu parceiro é o director do filme, mas é um homem [Amin Palangi] e não conseguiu ir a sítios onde eu conseguia ir. Então o meu papel para obter as histórias das mulheres foi muito importante.

Este filme teve uma grande projecção internacional. Isso é fundamental para mostrar ao mundo o que está a acontecer com as mulheres no Médio Oriente?
Sim. Quisemos sobretudo mostrar às pessoas que a vida continua, que as pessoas conseguem viver para além da guerra [do Afeganistão], algo que tem vindo a acontecer de forma contínua nos últimos anos. Com o “Hidden Generation” quisemos mostrar a ocorrência de um problema, era urgente e importante, mas como era muito errado, não havia uma conexão com as pessoas. Mas “Love Marriage in Kabul” tem uma história que todos gostam, todos se apaixonam por ela. Por isso é que as pessoas se identificam mais com este filme.

Nasceu no Irão. Por que decidiu fazer um filme no Afeganistão?
Em parte foi coincidência. O meu pai trabalhou no Afeganistão, em Cabul, então ficámos fascinados com o país. E depois é muito mais fácil fazer filmes no Afeganistão do que no Irão (risos).

Devido à censura?
Sim e também porque precisamos de muitas coisas, permissões, pedidos. No Afeganistão podemos ir simplesmente aos sítios.

Há ainda uma repressão em relação à mulher iraniana?
Para quem vive fora do Irão, ter acesso à realidade do país pode ser surpreendente, porque as mulheres na verdade têm bastante poder e têm vindo a ganhá-lo nos últimos anos. Olhando para os números de acesso às universidades, há mais mulheres do que homens, as mulheres são poderosas nos negócios, são educadas, têm uma voz. A situação é boa se compararmos com outros países vizinhos.

Como a Arábia Saudita, por exemplo.
Sim. Não posso comparar com o Afeganistão, porque o país ainda está a recuperar da guerra. É preciso tempo para recuperar. Mas, comparando com a Arábia Saudita, sem dúvida que a vida é melhor. Há grandes diferenças.

E no Afeganistão? A sociedade está a recuperar no sentido certo?
As coisas têm vindo a melhorar. Quando visitámos o país em 2006, e quando voltámos em 2009, e depois em 2013, fomos observando muitas mudanças. Logo a seguir à saída dos Talibã o país não tinha quaisquer infra-estruturas. Não havia telefones, bancos, tudo foi destruído. Gradualmente fomos vendo uma melhoria na sociedade. Mas, ao mesmo tempo, penso que a situação das mulheres ficou diferente. No filme “Hidden Generation” investigámos as razões pelas quais as mulheres se tentavam imolar. E surpreendentemente as mulheres começaram a fazer essas tentativas depois da saída dos Talibã. Pensávamos que as coisas seriam piores durante o Governo Talibã, mas descobrimos que, com a sua saída, novas coisas começaram a aparecer no país. As mulheres ficaram expostas a novas ideias, mas houve muita pressão.

Não sabiam como lidar com essas ideias.
Não sabiam. Quando os Talibã saíram, a televisão voltou ao Afeganistão. Então as mulheres começaram a assistir a filmes Bollywood e a ver coisas diferentes, mulheres a exporem-se. Muitas pessoas decidiram ir para países como o Paquistão ou o Irão porque a guerra acabou, mas depararam-se com situações de pobreza, também com muita pressão. Depois da guerra começou a surgir também a influência de muitas organizações não-governamentais (ONG) que chegaram ao Afeganistão e começaram a dizer que era preciso dar liberdade às mulheres. Mas a liberdade foi imposta segundo padrões ocidentais. O que percebemos é que podemos ensinar isso às mulheres, mas os homens não estão preparados para ter isso na sociedade. As mulheres podem começar a protestar, mas os homens vão dizer “cala-te e senta-te”. É uma situação extremamente complexa. Não podemos culpar os homens directamente, porque para eles é uma forma de protecção, não sabem lidar com isso.

Como se pode criar então uma liberdade com padrões adaptados ao Médio Oriente, aos seus usos e costumes?
A liberdade é uma coisa relativa. Há diferentes padrões de liberdade. É muito difícil abordar isto porque a liberdade dos países ocidentais é muito diferente da liberdade do Médio Oriente. Há uma enorme diferença cultural. Não acho que a comunidade internacional seja responsabilizada por trazer essa liberdade. Temos é de criar compreensão para que as pessoas possam avançar para isso sem qualquer tipo de críticas. Essa é a solução.

É necessário então uma maior promoção dos ideais e mais acções de educação.
Mais do que as ONG, penso que as histórias são importantes, a arte é importante. Acho que a política não vai criar a paz, é apenas sobre benefícios materiais. Exposições, fotografias, filmes, são uma boa forma de criar essa conexão.

A sua família estava no Irão em 1979. Como viveram a revolução?
A minha história é diferente, porque eu não cresci no Irão. Vivi no Japão, na América, em Hong Kong. O meu pai era bancário e não me considero a típica mulher iraniana. Mas sim, a minha família estava no país nessa altura, viram tudo de fora, não eram propriamente apoiantes do que estavam a acontecer, não se envolveram nessa questão. O meu pai sempre trabalhou em vários países.

Sente-se afortunada pelo facto de não ter vivido no Irão? Isso deu-lhe maior liberdade para fazer coisas?
Essa é uma pergunta interessante, nunca pensei sobre isso. A minha história é única. Sinto que faço mais coisas, e não apenas em relação às mulheres no Irão. Mas isso não tem que ver com o facto de ser iraniana, mas sim com o meu estilo de vida, com o facto de viajar tanto.

Que projectos pretende desenvolver a seguir?
Estou a trabalhar num livro sobre este filme, estou à procura de uma editora. É sobre os bastidores do filme, mas também sobre a minha perspectiva enquanto mulher no Afeganistão. Também sou directora-geral da Asia-Pacific Writers and Translators (Escritores e Tradutores da Ásia-Pacífico).

14 Mar 2017

Brasileira Natalia Borges Polesso sobre “Amora”, Prémio Jabuti

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] mulher no centro da narrativa figura como uma “escolha consciente” para Natalia Borges Polesso que, depois da obra “Amora”, vencedora do prémio mais importante da cena literária brasileira, vai aventurar-se pelo romance no próximo ano.

Pese embora reconhecimentos pelas obras que publicara antes – “Recortes para Álbum de Fotografia sem Gente” (2013) e “Coração à Corda” (2015) – foi com “Amora” que deu o ‘salto’ ao conquistar o Prémio Jabuti 2016 na categoria de Contos e Crónicas.

“Escolhi que a mulher vai estar realmente no centro da minha narrativa. A questão da homossexualidade – pode ser vital ou tangencial – também vai estar de alguma forma presente”, afirmou a escritora, de 35 anos, que prepara um romance para o próximo ano.

“Por enquanto tenho uma ideia. É um romance sobre a mulher que escreveu o maior tratado da filosofia”, dado o “momento meio distópico” que hoje se vive, afirmou, em entrevista à agência Lusa, à margem do festival Rota das Letras.

Além de lhe ter aberto as portas, “Amora” (2015) – que descreve como “um livro sobre afectos” e é protagonizado por mulheres de diferentes idades em distintas fases da vida, em que “tudo gira em torno delas”, em “histórias ‘homoafectivas’, de amores lésbicos” – também permitiu a Natalia Borges Polesso a experiência de abordar temas que considera relevantes para falar tanto no Brasil, como no mundo.

“O reconhecimento com o prémio para um livro que trata desse tema é muito importante para mim e é bastante recompensador ver isso sendo tratado com mais humanidade pelas pessoas”, realça.

Numa altura em que o Brasil vive um período agitado – ou “meio estranho” – há “um pouco de alento, um respiro dentro dessas questões” quando um livro como “Amora” sobressai, reconhece a escritora, para quem não é líquida a resposta à pergunta sobre a forma como a sociedade brasileira olha para a mulher homossexual.

“O Brasil é muito grande e as respostas são muito diversificadas. A mulher no Brasil tem um tratamento complicado e depende muito da sua classe, da sua cor. O género é um dos factores dessa complexidade toda”, considera, parafraseando uma frase “acertada” de uma amiga. “Se tem uma coisa que a deixa feliz todos os dias é acordar e saber que existe o feminismo. É dentro desse movimento que a gente se encontra, e pode ajudar-nos a pensar nessas questões todas”, de como é viver, ser mulher, ser lésbica, ser negra ou ser da periferia no Brasil.

As viagens da literatura

O ‘feedback’ levou-a a perceber que o livro não era só seu, mas antes “de muitas pessoas” e, nesse contexto, “era importante ressaltar que era literatura e que era literatura lésbica – e isso seria um posicionamento social, ético e também estético”, até porque dentro da obra tal constitui “uma coisa construída com preocupação”.

“Amora” – tal como “tudo” – “tem um pouco de biográfico”. “Fora a escolha temática, tem algumas histórias que lembram um pouco coisas da minha infância, da minha adolescência. Tem histórias que ouvi de amigos, que escutei na rua, tudo tem um pouco dessa transformação. Escrever é esse exercício de alteridade, mas para o fazer tudo passa pela gente”, sustenta.

Relativamente a “Recortes para Álbum de Fotografia sem Gente (2013), “Amora” foi também mais amadurecido, algo que está também relacionado com o doutoramento em Teoria da Literatura.

“Para o ‘Amora’ quis pensar muito nas histórias, como ia contá-las e como ia representar essas mulheres. Em termos de escrita acho que foi isso que mudou: a estrutura dos contos e um pouco mais de cuidado com as personagens, [as] vozes diferentes para tentar representar multiplicidade de tipos de pessoas, de mulheres no caso”, explica.

Pelo meio, escreveu “Coração à Corda”, mas hesita em regressar à poesia. Apesar de “gostar muito”, “ainda não sabe se é boa” poetisa e tem lido autores “maravilhosos” como Angélica Freitas ou Marília Garcia.

A escritora – que chegou a querer ser médica mas confessa que desmaia quando vê sangue – não esconde que gostava de ser escritora a tempo inteiro, mas tem prazer em dar aulas de Literatura e Inglês.

Embora considere “muito gratificante” ser professora, é a literatura que a leva a descobrir mundo. “Quando comecei a estudar literatura pensei que, por uma questão metafórica, abriria o livro e estaria noutro lugar, mas hoje tenho outras certezas”, diz Natalia Borges Polesso, que também assina a ‘tirinha’ cómica publicada ‘online’ intitulada “A escritora incompreendida”.

“A literatura realmente me leva para outros lugares do mundo e me dá oportunidade de conhecer culturas, pessoas e outros escritores maravilhosos”, remata.

13 Mar 2017

Rota das Letras | Guineense Abdulai Silá sobre construção da identidade nacional

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Abdulai Silá vê o escritor como um missionário que “vende a ideia de que existe um outro mundo onde as coisas são melhores”. O autor pinta a Guiné- -Bissau como um país que, “não sendo real, pode vir a ser”. Hoje debate com Sérgio Godinho o papel das letras na construção da identidade nacional

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] autor de “Eterna Paixão” – um livro de 1994 considerado o primeiro romance guineense – está em Macau, onde participa no festival literário Rota das Letras, partilhando hoje o ‘palco’ com Sérgio Godinho, num debate sobre o papel do escritor na construção da identidade nacional.

“Todo o cidadão contribui, de uma forma ou outra, para a construção de uma identidade nacional”, principalmente tendo em conta que a Guiné-Bissau é “um país novo, ainda na fase de construção”.

Mas há um grupo “que tem uma responsabilidade particular”, diz Abdulai Silá em entrevista à Lusa, referindo-se aos que “trabalham no domínio da cultura de uma maneira ou de outra, e muito particularmente no domínio da literatura”.

“A identidade nacional é uma coisa que se forma e que tem como um dos condimentos fundamentais a utopia, entendida no sentido da crença naquilo que eventualmente podemos ser, podemos atingir, mesmo não o sendo. Por isso, o escritor tem um papel fundamental, ele pode contribuir mais do que qualquer outro para esse processo de criação do mito”, explica.

Considerando a “situação um pouco anómala” que o seu país atravessa, o que “abala o cidadão comum”, Silá vê a escrita como algo para ajudar “a acreditar na possibilidade de mudança”.

Tendo assistido ao “momento histórico extraordinário”, ao “fim de uma era, início de uma outra” que foi a independência, Silá não concebe uma escrita que não reflicta sobre o país.

“Todo esse sonho que foi construído ao longo dos anos que antecederam e a seguir à proclamação da independência tem vindo a ser adiado de uma forma violenta. Não posso ficar indiferente a esta situação, isso toca-me e acho que, como cidadão, tenho a obrigação de, pelo menos para a geração vindoura, passar uma mensagem fundamental: há espaço para o sonho”, explica.

Aos 59 anos, o escritor mantém a “crença inabalável” de que a Guiné-Bissau vai encontrar a estabilidade: “Tudo o que eu faço, digo e escrevo é nessa perspectiva. Não nos podemos deixar enganar pela dificuldade do momento. A tarefa é vender a esperança, é acreditar no futuro. Quem conhece a história da Guiné sabe que é uma história de vitória. Pode parecer um bocado ridículo tendo em conta a situação actual, mas é isso mesmo. A história é longa, a Guiné é construída por um povo que ultrapassou grandes desafios”.

Uma bomba na editora

Há mais de 20 anos, Silá co-fundou a editora Ku Si Mon, que até hoje publicou “uma quarentena” de livros. “Três amigos juntaram-se e decidiram, num momento específico da nossa história, criar uma editora porque, antes, durante o regime de partido único, não havia essa possibilidade. Havia de facto uma censura. Eu pessoalmente andei mais de dez anos com um livro na mão, a correr de um lado para o outro, a ver se conseguia publicar e acabei por entender que não havia saída”, explica.

Quando se deu a “liberalização política” – Silá não gosta de usar o termo “democracia” por considerar que “de facto não há” –, os amigos aproveitaram a oportunidade. “Tínhamos consciência plena dos desafios que tínhamos pela frente. Tínhamos uma missão específica, publicar livros, banalizar o livro, no sentido positivo. Aqueles que na altura decidiam sobre quem publicava, criavam uma imagem em que o livro era uma coisa que estava nas nuvens, para pessoas privilegiadas. Era preciso acabar com isso”, descreve.

O escritor dá o objectivo como alcançado, mas não sem muitos obstáculos: “Nos quatro primeiros anos, fizemos mais de 20 títulos, entre 1994 e 1998. O que é que aconteceu depois? Em Junho de 1998 houve uma guerra, uma das primeiras bombas caiu na nossa editora e destruiu tudo, perdemos manuscritos para sempre. Ficámos, de 1998 até 2004, sem poder fazer nada. Quando se aproximou o 10.º aniversário reunimo-nos e dissemos ‘Ok, vamos retomar actividade’. Mas a verdade é que a editora nunca mais foi a mesma”.

Apesar da menor produtividade, Silá considera que “o caminho está desbravado” e existem agora outras editoras privadas. “Já é irreversível, já ninguém pode dizer que vai censurar a publicação de um livro, isso está fora de questão”, garante.

O optimismo de Silá é transversal, do futuro do país até à literatura guineense, que diz ter tido “um desenvolvimento extraordinário nos últimos anos”.

“Saímos de uma situação em que, quando se falava do país, dizia-se que não existia no mapa literário para uma em que anualmente são publicadas mais de duas dúzias de livros. Muitas destas publicações são feitas à custa do próprio autor, o que significa que esses autores estão a dar um peso cada vez maior à publicação do seu trabalho. Um livro é, no fundo, a revelação daquilo que um cidadão pensa, sonha, deseja em relação ao seu país”, conclui.[/vc_column_text][vc_cta h2=”” shape=”square” style=”flat” color=”peacoc” css=”.vc_custom_1489410159112{margin-bottom: 0px !important;border-top-width: 1px !important;border-right-width: 1px !important;border-bottom-width: 1px !important;border-left-width: 1px !important;padding-top: 20px !important;padding-right: 20px !important;padding-bottom: 20px !important;padding-left: 30px !important;border-radius: 1px !important;}”]

Fala-se cada vez menos português na Guiné-Bissau, diz escritor

O escritor guineense Abdulai Silá está preocupado com o estado da língua portuguesa no seu país, devido a um sistema educativo “falido”, que, diz, ignora o facto de menos um por cento dos guineenses falar o idioma no dia-a-dia.

“O nosso sistema educativo está falido. Há cada vez menos capacidade de expressão em português. Isso chega ao ponto de ser preocupante, chega ao ponto em que pessoas que têm a língua como principal ferramenta de trabalho não a dominam o suficiente para exercer. Vêem-se acórdãos, até no supremo tribunal, cheios de erros”, lamenta o escritor, em entrevista à Lusa.

Abdulai Silá diz também que há “cada vez mais pessoas a escreverem em crioulo”, o que considera “saudável”, salientando que “essa necessidade de diálogo com o cidadão é cada vez mais forte”, mas alerta para o facto de, por outro lado, haver “uma dificuldade real de utilização do português”.

“Ensinamos o português como se se tratasse de um país onde as pessoas falam português no dia-a-dia. Isso é falso. Menos de um por cento dos guineenses fala português no seu dia-a-dia. Falam outras línguas, uma boa parte fala crioulo, outra nem sequer o crioulo fala. Não se pode ensinar essa língua ignorando essa realidade. O resultado é o que se vê”, critica.

O autor apela a uma “política linguística clara”, que corrija situações como, por exemplo, professores que não dominam o português a ensinarem a língua, como diz ter conhecimento de existirem. “Tenho dois sobrinhos a terminar o 12.º ano e não são capazes de escrever uma nota simples, ou ter uma comunicação básica sobre o estado do tempo. Fazem tantos erros, tantos erros. Não são culpados, são vítimas”, relata.

Com a comunicação oral “praticamente nula”, Abdulai Silá considera particularmente grave que as entidades que utilizam a escrita o façam de forma deficitária.

“É muito difícil, por exemplo, ler-se os jornais, hoje. Na primeira página, erros crassos. Isso é muito mais grave do que se pode imaginar, num contexto em que não se fala, em que uma das formas mais eficientes de melhorar o conhecimento da língua é através da leitura. O guineense não fala português com outro guineense, é muito raro, mas escreve e lê o português todos os dias. Quando esse contacto com a língua não ajuda, porque está cheio de erros, as pessoas ficam na dúvida: será que é como escreveu o jornalista ou como em aprendi noutro local?”, alerta.

Iliteracia, livros de fora

Uma dificuldade ainda anterior a esta é a reduzida taxa de literacia do país, cerca de 60 por cento. Além dos que não sabem efectivamente ler e escrever, Silá lembra que há também “analfabetos funcionais”. “É o que temos e que é muito perigoso, pessoas que nunca pegam num livro, não cultivam a mente”, diz.

Perante esse cenário, o escritor questiona-se: “Vale a pena dirigir-se a uma pequena minoria, essa meia dúzia de indivíduos que decidem sobre o destino do país?”. Para contornar essa situação, a associação de escritores procura “envolver cada vez mais, e através de acções concretas, o cidadão comum, sobretudo o jovem”.

A associação tem cerca de duas dezenas de membros, mas as suas actividades são abertas a todos. Silá destaca os encontros mensais para discutir “a cultura de uma maneira geral”.

“Num ambiente tão tenso como o que se tem vivido ultimamente na Guiné-Bissau, entendemos que deve haver momentos de lazer, momentos de reflexão, momentos de convívio, de pacificação. Há sempre um convidado que fez uma contribuição válida na história da Guiné-Bissau, seja de que área for”, explica.[/vc_cta][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][/vc_column][/vc_row]

13 Mar 2017

Bernadette Terra publica série de livros infantis sobre Macau

 

É lançada hoje a série de livros infantis “Mak, the city’s friendly dragon”, da professora Bernadette Terra. A série é constituída por 13 livros, que serão publicados um de cada vez, de seis em seis meses. Hoje marca-se a estreia com o lançamento dos dois primeiros episódios

 

[dropcap style≠’circle’]“N[/dropcap]a verdade, nem acredito bem que hoje é o lançamento destes livros, nos quais trabalhei durante tanto tempo”, conta-nos a autora, Bernadette Terra. Esta sexta-feira é a concretização de um projecto de amor, com a publicação dos dois primeiros números da série de livros infantis “Mak, the city’s friendly dragon”.

Com uma carreira como educadora, a agora escritora publicada começou a trabalhar em Macau como professora na Escola de Enfermagem. Mas sentia que os seus horizontes profissionais precisavam de ser alargados noutras áreas da pedagogia. Então, mudou-se para a Escola Internacional de Macau (TIS, na sigla inglesa), e o contacto com as crianças revelou-se enriquecedor a vários níveis, inclusive, inspirando-a a escrever os livros que hoje chegam aos leitores.

“Estar todos os dias com os miúdos e vê-los a aprender e a evoluir ensinou-me também muita coisa”, revela a professora. Então, sem saber muito bem como, começou a escrever estas estórias que hoje são publicadas. Apesar de não ter um objectivo claro à sua frente, a inspiração compelia Bernadette Terra a escrever. Resolveu que o pano de fundo e personagem recorrente seriam a própria cidade onde vive. Começou por se inspirar e escrever sobre a cultura de Macau, sobre as suas festividades como o Ano Novo Chinês, o Festival dos Barcos-Dragão, e eventos como o bungee-jumping da Torre de Macau e o Grand Prix. Estes são os cenários onde a acção se desenrola.

Só faltava uma personagem principal que, à partida, Bernadette não sabia se seria uma pessoa ou um animal. Então pensou que o mais familiar para a cultura chinesa, e para as crianças, seria um dragão, simpático, claro. Começou por lhe chamar Ma-Co, mas os seus amigos portugueses, e especialmente o seu marido, alertaram a autora para o facto de o nome não soar muito bem na língua de Camões. Quanto à cor que o dragão deveria ter, teve a preciosa ajuda da filha, que lhe deu a ideia de usar as cores da bandeira de Macau, ou seja, verde, amarelo e branco.

Mak partilha as suas aventuras pela cidade com Mr. Panda, o condutor de autocarro, a vaca Mowie e o cão Luke, inspirado no animal de estimação da própria autora.

Dragão solidário

Desde que começou, Bernadette não conseguiu parar de escrever. Sempre que tinha um pouco de sossego e tempo lá ia tecendo as aventuras de Mak. “Mesmo durante os intervalos, à hora de almoço, ia para a biblioteca, ou onde conseguisse estar em sossego, e escrevia”, conta a autora. Bernadette recorda que deve ter havido uma altura em que o seu marido já não podia mais ouvir as ideias que tinha para os livros. Toda a gente que estava à sua volta estava, de uma maneira ou de outra, ligada à criação da série de livros.

“Tive muita sorte de ter amigos que me ajudaram com este projecto, sem eles não seria possível. A minha filha fez o design das páginas, a nossa tradutora de chinês, na altura, tinha apenas 15 anos, é amiga da minha filha”, explica. As ilustrações são de Natsumi Agrada Kurisaki, as traduções para português e a edição em inglês foram feitas por amigas professoras. Quando pediu a Isabel Goitia, sua amiga e colega, se queria fazer a tradução para português, a autora recorda que a sua amiga sorriu e, prontamente, respondeu “claro que sim”. As coisas foram-se compondo baseadas num circuito de amigos dedicados da autora, até porque esta não tinha dinheiro para se lançar numa aventura destas sem a dedicação e voluntariado de quem a ajudou.

Finalmente, Bernadette Terra tinha ambições solidárias para este projecto, uma veia comunitária. Como tal, dos lucros das vendas 10 por cento revertem para a Macau Child Development Association e outros 10 por cento para a Associação para os Cães de Rua e o Bem-Estar Animal em Macau.

A ideia inicial era partilhar algo com a comunidade, não só as estórias, mas também retribuir solidariamente.

A festa de lançamento da série de livros de Mak, o dragão simpático, acontece hoje na Creative Macau, no edifício do Centro Cultural, às 18h.

10 Mar 2017

Clara Law e Eddie Fong, realizadores de cinema: “Sou uma nómada no mundo”

Clara Law e Eddie Fong são um casal que vive para o cinema. Ela nasceu em Macau e cedo foi para Hong Kong, onde conheceu o colega e companheiro. Actualmente, vivem na Austrália. Regressaram ao território para filmar o projecto que têm em mãos e como convidados do Rota das Letras. Ao HM, falaram das origens, do cinema e de como se cruzam nos filmes que fazem

[dropcap]N[/dropcap]asceu em Macau, mas não tem recordações do território.
C.L. – Saí de Macau aos dez anos. Não tenho memórias. A minha família era muito tradicional e eu não estava autorizada a sair de casa ou a andar nas ruas. A minha memória é a ida para a escola e o regresso a casa. Ocasionalmente, a minha mãe levava-me aos gelados e ao cinema ver filmes do John Wayne. Passava também muito tempo com a minha avó a ver filmes em cantonês.

Como é que o cinema apareceu?
C.L. – Formei-me em Literatura Inglesa na Universidade de Hong Kong. Depois do curso comecei a procurar trabalho e não me estava a ver num emprego das nove às cinco. Em dois meses devo ter passado por uns sete trabalhos. Depois falaram-me da Radio Television Hong Kong (RTHK) e que me podia candidatar para dar assistência na realização. Aproveitei a oportunidade e entrei. Assim que comecei a trabalhar, descobri o que realmente gostava. Foi uma paixão. A partir daí quis ir para uma escola de cinema. Queria fazer coisas escolhidas por mim e não vindas de outras pessoas. Fui então para a London Film Academy. Regressei a Hong Kong e conheci o Eddie Fong, que já tinha realizado dois filmes e escrevia guiões. Eu tinha uma ideia, mas não tinha dinheiro. Contactei-o e perguntei se podíamos fazer um filme, mesmo assim, e ele aceitou.

Desde o início da carreira, com “Autum Moon” e “Floating Life”, a questão da emigração e das origens está muito vincada. É de alguma forma uma questão pessoal?
C.L. – O nosso passado transforma-nos no que somos. Nasci em Macau e venho de uma família chinesa. Vivi aqui pouco tempo, mudei-me para Hong Kong e estudei em Inglaterra. É muito difícil dizer onde é a minha casa. O sentimento é o de não saber realmente de onde venho. Cresci com uma educação ocidental e chinesa. Na escola falava inglês e em casa era tudo muito tradicional. Há esta divisão cultural dentro de mim, fez parte do meu crescimento e fez com que não soubesse claramente onde estavam as minhas raízes. Este flutuar interno sem saber onde se está fez com que, mais tarde, fosse à procura da minha veia chinesa. Sou uma nómada no mundo. Não estou nem aqui nem ali.

E.F. – Quando vivemos em Hong Kong sentimos que não pertencemos àquele lugar. É um lugar sem história porque a história está toda na China Continental. O que aprendemos acerca do passado chinês não permite que compreendamos, de um ponto de vista existencial, de onde fazemos parte. Não há nada que possamos ver, tocar ou sentir como parte de um passado. É muito abstracto. Sou chinês, mas sou de Hong Kong, logo não sei bem quem sou. É estranho. Quando começámos a trabalhar no nosso primeiro projecto, estávamos no início da onda de emigração. O nosso primeiro filme era sobre um casal, em que um era ocidental e o outro oriental. Partilhavam a vida e o choque cultural era notório. Esta convivência era muito natural no dia-a-dia mas ninguém falava nisso, pelo menos no cinema. Há um termo especifico para estas pessoas, que na altura designava os académicos que iam para Hong Kong dar aulas e deixavam a esposa e filhos no país de origem: eram os “astronautas”. É um jogo de palavras na língua chinesa que remete para 太空人 – ‘taikongren’, em que ‘tai’ significa mulher, ‘kong’ vazio e ‘ren’ pessoa. A ironia é que, com a distância, as mulheres que ficavam no país de origem acabavam por se envolver com outras pessoas e os “astronautas” ficam sozinhos. Hoje em dia os tempos são outros. Já não há muitos “astronautas” em Hong Kong.

Clara Law

C.L. – Estamos na segunda vaga da diáspora. Há muitos jovens que começam a sentir que Hong Kong tem mudado muito e não é mais um lugar seguro para se viver. As terras e casas estão com valores que não são suportáveis para poderem ter as suas e construírem uma família. Sentem que têm de ir embora. É um tema sempre actual.

Como é que mantêm o contacto com as vossas origens?
C.L. – Tive uma fase, em Inglaterra, em que senti necessidade de ir à procura das minhas raízes de forma mais profunda. Comecei a estudar filosofia chinesa. No regresso a Hong Kong continuei a estudar e li muito, nomeadamente do pensamento que fundamenta a cultura chinesa: confucionismo, taoismo e budismo. Foi um processo para me levar a mim também. Por outro lado, já tinha coisas que identificava como vindas da minha família tradicional chinesa. Hábitos e rituais que aprendemos por os experienciar como o cuidado dos pais quando envelhecem, mas precisava de encontrar o processo de pensamento e foi o que fiz.

E.F. – Temos de fazer a viagem de regresso às origens e estas estão na história do pensamento chinês que, julgo, tem estado perdido nos últimos anos. O processo de afastamento começou com o último império. Com a continuação da história foi sempre a piorar. Basicamente, estamos a perder as nossas tradições de pensamento há perto de 700 anos. Por exemplo, em Hong Kong, ninguém fala sobre isso ou, se fala, não o fazem da melhor maneira porque não sabem. São poucos os que ainda tentam aprender as bases de uma forma real e investigam de uma forma aprofundada o que é que pode realmente significar a cultura chinesa. Este é um assunto que, na actualidade, deveria significar muito para o mundo em geral.

Ainda no âmbito da emigração e com olho nos processos de exílio e acolhimento de refugiados, fizeram “Letters to Ali”.
C.L. – “Letters to Ali” foi feito em 2004 e é totalmente um documentário ou, para ser mais exacta, um ensaio para um documentário. O filme aconteceu porque sentimos que havia alguma coisa na Austrália que estava muito mal depois de sabermos pelas notícias da história de Ali, um menino afegão à procura de exílio. 

A situação dos refugiados também é um assunto do momento. Como é que encaram a questão?
C.L. – Hoje em dia é uma questão mais complexa do que quando fizemos o filme. Na altura era mais clara. As pessoas que procuravam exílio não eram tratadas como humanos, mas sim como coisas que não deveriam existir. Penso que, actualmente, os refugiados não são políticos, mas essencialmente económicos. É também mais difícil definir o próprio termo. Por outro lado, o movimento de refugiados atingiu um número tão grande que as necessidades, além da aceitação do outro, passam por uma aceitação real da sua cultura e capacidade para a convivência. Não se pode acolher pessoas e depois não se saber como lidar com elas e com a sua cultura. A aceitação de refugiados deve ser acompanhada de uma estrutura de apoio e isso, penso, não está a acontecer da melhor maneira. Se aceitam pessoas e depois não sabem como as ajudar a reconstruir as suas vidas, os problemas aparecem e haverá sempre políticos a tomar partido da situação e prontos a lançar um apelo ao medo.

E.F. – O problema dos refugiados é apenas um sintoma. É como se olhássemos para um todo em que esta questão é apenas um sinal. Como na medicina chinesa, não é possível lidar apenas com o sintoma, é necessário tratar da sua origem. Penso que é claro que na raiz está o cada vez maior abismo entre riqueza e pobreza. Ninguém quer deixar o país de origem e as suas raízes mas, quando as pessoas não têm como comer e estão em guerra, são forçadas a procurar um espaço onde possam sobreviver. Ouvimos tantas histórias de pessoas que só querem regressar a casa dadas as dificuldades culturais.

Como é que apareceu a ida para a Austrália?
C.L. – A minha família tinha emigrado para lá e, numa visita, decidimos ficar. Naquela altura, os nossos filmes “Autumn Moon” e “Tentation of the Monk” tinham participado num festival na Austrália e tiveram críticas muito boas. Acabámos por ter produtores a procurarem-nos e a querem trabalhar connosco. Tínhamos uma história que queríamos fazer, seleccionámos uma produtora e fizemos o filme. Foi tudo muito natural. A Austrália, de uma forma geral, é um país simpático e, em Melbourne, conseguimos sentir um certo sentido de comunidade. Se falarmos de multiculturalismo, penso que é um sítio em que se pode vivê-lo realmente.

E.F – Em Hong Kong, a indústria cinematográfica estava a apoiar essencialmente filmes mainstream e não era o que queríamos fazer. Andamos sempre numa espécie de margem. Tentamos ter algumas ideias mais comerciais porque queremos vender os filmes mas, ao mesmo tempo, queremos dizer alguma coisa com o nosso trabalho.

Este regresso a Macau para filmar e participar no festival literário é também o primeiro após a partida. Um filme no território onde nasceu marca um regresso às origens?
C.L. – Sim. O filme acaba por falar de alguém à procura das origens. Tive de voltar para procurar a minha infância em Macau. O engraçado foi mesmo a quantidade de memórias que vieram ao de cima. Por exemplo, fomos a um restaurante português e deram-nos pão com manteiga. O sabor daquela manteiga, um produto que geralmente não gosto, soube-me a infância. A casa onde vivia já não existe, mas tem feito parte dos meus sonhos e já consigo visualizar a rua.

É uma mulher de sucesso no cinema. Acha que é uma área ainda feita essencialmente por homens ou considera que a tendência está a mudar?
C.L. – Nunca pensei sequer que, por ser mulher, seria privada de fazer o que quer que fosse. Sempre achei que faria o que queria e que ninguém me poderia parar. Na estação de televisão não sabia como fazer as luzes, então ia estudar o que sentia que me fazia falta saber. Com o conhecimento vem a confiança e nada nos pode parar. Já sei fazer tudo o que é necessário para filmes.

E.F. – Por termos vivido tanto em Hong Kong, mais uma vez enquanto lugar particular, não sentimos muito as questões de género. Quando nos mudámos para a Austrália sentimos mais a diferença de tratamento. Por exemplo, quando íamos ao banco, o funcionário olhava sempre para mim e eu nem entendia, porque não olhava para a Clara. Notava-se claramente que era suposto ser o homem a tomar as decisões. Estranhámos muito isso.

9 Mar 2017

Bienal de Veneza | James Wong leva a Itália “O Bonsai dos Meus Sonhos”

 

Foi apresentada uma mostra do trabalho de James Wong que vai representar Macau na 57.ª Exposição Internacional de Artes – Bienal de Veneza 2017. O artista plástico leva à reputada exposição um conjunto de trabalhos intitulados “O Bonsai dos Meus Sonhos”

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o sentido contrário da viagem de Marco Polo, James Wong vai do Oriente à conquista de Veneza. São hoje expedidas para Itália 17 peças do artista local a fim de representar Macau na 57.ª Bienal de Veneza. “Espero que todas as peças cheguem em segurança”, comentou à margem da apresentação de uma pequena amostra dos trabalhos que vai mostrar no prestigiado certame.

As peças que leva a Itália são, sobretudo, tridimensionais. As esculturas dominam a colectânea, onde também pontificam fotografias, quadros e instalação.

O título da exposição, “O Bonsai dos Meus Sonhos”, aponta para um cenário onírico que reflecte o desejo da vida ascética, simples e plena de elegância. A peça principal, que dá título à colecção, é a representação de uma cabeça cortada por um jardim numa das vistas emblemáticas da cidade. “É um reflexo da minha sensação pessoal de Macau, da sua evolução, do espaço onde nos movemos que está cada vez mais tenso e estreito”, desvenda James Wong.

Assim sendo, o artista procurou mostrar nesta escultura o desejo de criar “um pequeno jardim, ou um bonsai, a crescer na cidade, um lugar” para onde se possa retirar, comenta. Esta peça surgiu naturalmente, uma vez que o criador gosta de subir à Colina da Penha, em especial à noite, e deixar que a inspiração lhe surja da vista da cidade.

Do clássico ao moderno

Uma das inspirações centrais para o conceito da colecção é o classicismo chinês, daí não ser de estranhar que um dos fios condutores transversais sejam as descrições no clássico chinês Shan Hai Jing (Clássico das Montanhas e dos Mares). James Wong retirou destes escritos ancestrais informação sobre religião, história e geografia da China Antiga de há dois milénios. Este foi o veio condutor, assim como a imaginação do autor influenciado pelas vistas e as vivências de Macau.

O artista tinha esta exposição guardada no seu imaginário, a apurar, há anos. “Já tinha tido as ideias originais há muito tempo”, estavam espalhadas em livros de anotações, foi apenas uma questão de as escolher e torná-las físicas. Nesse aspecto, James não trabalhou com os materiais que queria, ferro, por exemplo, que levariam a que algumas peças pudessem chegar às duas toneladas. Dessa forma, a criação teve de respeitar todos os aspectos logísticos do local onde será exposta.

James Wong passou dois meses a preparar esta exposição. O curador do Museu de Arte de Macau, Ng Fong Chao, revela que o artista é influenciado pela ambivalência da cidade, onde se podem encontrar “cultura ocidental e oriental”. “Podemos encontrar vestígios de clássicos asiáticos, assim como traços de catolicismo no seu trabalho, vistos, por exemplo, nas vestimentas das esculturas que se assemelham às dos missionários católicos”, explica o curador. A exposição que James Wong leva a Veneza expressa o seu ponto de vista destes dois mundos que se intersectam, filtrados pela visão e experiência do artista.

O Pavilhão de Macau na Bienal estará aberto de 13 de Maio a 12 de Novembro.

8 Mar 2017

Cartaz | Apresentado o programa do Festival de Artes de Macau

Macau está em ebulição com eventos culturais a preencher o calendário do público. Foi ontem apresentado o cartaz do 28.º Festival de Artes de Macau, que começa a 28 de Abril, e que encherá a cidade de espectáculos até 31 de Maio

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Festival de Artes de Macau (FAM) já mexe. Foi ontem apresentada a programação do evento que terá mais de 100 actividades, da música à dança contemporânea, passando por diversas variantes de teatro.

A edição deste ano tem um orçamento mais modesto: são 23 milhões de patacas. “Fizemos o planeamento mais cedo, alguns dos projectos são financiados pelo Governo e por isso pudemos reduzir o orçamento”, revelou Leung Hio Ming, presidente do Instituto Cultural (IC). O investimento no festival teve uma poupança de cerca de quatro milhões de patacas em relação ao ano passado. De acordo com Leung Hio Ming, tal redução de orçamento “não vai afectar a qualidade dos espectáculos”.

O tema transversal à programação do FAM é a “Heterotopia”, uma ideia baseada na heterogeneidade do espaço que se reflecte num caleidoscópio de textos, imagens, histórias e música.

O festival abre com o espectáculo “Play and Play: An Evening of Movement and Music”, que é uma reinterpretação de clássicos de Schubert e Ravel pela internacionalmente aclamada companhia de dança moderna norte-americana Bill T. Jones/Arnie Zane. A mesma companhia apresenta ainda a representação de “A letter to my nephew”. Escrito pelo coreógrafo Bill T. Jones, o espectáculo é baseado numa carta imaginada ao sobrinho enquanto este repousa numa cama de hospital. Esta história é contada através de misturas delirantes de música pop e canções de embalar que dão a paisagem ao bailado. Em ambos os espectáculos, a dança contemporânea é acompanhada por dois quartetos de cordas que emprestam som ao menu de movimentos aleatórios dos bailarinos.

Em cena

A encerrar o festival, o público terá um clássico do teatro russo: “A Gaivota”, de Anton Chekhov, encenado pela companhia islandesa Teatro da Cidade de Reiquejavique.

A celebrar os 110 do teatro chinês, o Teatro de Arte Popular de Shaanxi apresenta ao público de Macau uma produção realista do afamado clássico “Feudos nas Terras do Oeste”. A peça é um épico de guerra que retrata uma acérrima luta por território entre duas famílias, com um amor proibido pelo meio, um pouco ao estilo de Romeu e Julieta.

Ainda na área do teatro, destaque para a produção da local Associação de Arte e Cultura Comuna de Pedra, que levará a cena a peça “Canções de Migrantes”, que dará a conhecer memórias de migrantes locais. Este espectáculo aborda uma questão fulcral na história de Macau e é o primeiro de uma trilogia de espectáculos com direcção de Jenny Mok.

Fazendo uma incursão pela cultura portuguesa, o FAM deste ano conta com um bailado do emergente coreógrafo Marco da Silva Ferreira. O português traz a Macau os espectáculos “Hu(r)mano”, onde propõe uma aventura através da expressão corporal que representa a relação entre o indivíduo e a urbe. Neste espectáculo sobem ao palco quatro bailarinos, que interagem de forma a reflectir a realidade urbana moderna. Como já tinha sido tornado público, também o artista Vhils, Alexandre Farto, vai fazer parte do cartaz, com uma exposição que vai além das intervenções que, por norma, faz em espaços públicos.

Também dentro da dança moderna, o FAM propõe a ousada obra “Aneckxander: uma autobiografia trágica do corpo”, do coreógrafo Alexander Vantournhout. O espectáculo a solo equilibra-se entre a comédia e a tragédia, misturando acrobacia, linguagem corporal, num reexame da fisicalidade e do corpo humano.

Arte em família

O programa do FAM alarga-se numa multitude de espaços de imaginação artística com “palestras, masterclasses, workshops, conversas com artistas, sessões para estudantes, crítica artística e projecção de filmes”, revela Leung Hio Ming.

O espectáculo “Rusty Nails e outros heróis” é dirigido a um público de todas as idades. Fazendo uso de diferentes materiais e meios de expressão, a peça de teatro da companhia holandesa TAMTAM objektenteather apresenta uma história sem usar palavras. O espectáculo vive da interacção de objectos de dia-a-dia com a música, numa mistura que promete mergulhar o público num mundo de fantasia.

Durante a Mostra de Espectáculos ao Ar Livre, destaque para um musical infantil intitulado “Metamorfose sobre a noite estrelada, uma adaptação da Associação de Artes Pequena Montanha. A peça pensada para deslumbrar a pequenada é um teatro de marionetas onde contracenam uma lagarta e uma couve.

Com uma abordagem mais tradicionalista, a programação do FAM oferece aos público a possibilidade de assistir à ópera tradicional chinesa “A lenda da senhora general”. O espectáculo é interpretado pelo Grupo Juvenil de Ópera Cantonense dos Kaifong de Macau. Na mesma onda da ópera tradicional chinesa, chega-nos a adaptação abreviada do clássico “Senhora Anguo”, interpretada pela companhia de Teatro Nacional de Ópera de Pequim.

Variedade é uma das tónicas da edição 2017 do FAM. “Esta edição engloba 25 espectáculos e exposições de arte extraordinárias, aliados ainda a um programa de extensão que inclui, não só, produções de renome internacional, grandes obras do Interior da China e produções locais de alta qualidade”, explicou o presidente do IC na apresentação do programa.

Aos interessados que queiram beneficiar de um desconto de 30 por cento aconselha-se que estejam atentos. A partir de domingo, até dia 19 de Março, o público pode comprar bilhetes a preços reduzidos. E assim arranca mais um evento cultural de alto fôlego em Macau.


Dóci Papiáçam di Macau volta ao FAM

“Sórti na téra di tufám” é o título da peça que a companhia de teatro que usa o dialecto tradicional patuá como veículo traz aos palcos do Festival de Artes de Macau (FAM). A narrativa, entre a sorte e o azar, gira em torno de Bernardo, um afortunado azarado. A personagem ganha uma lotaria de Hong Kong, mas fica impedido de levantar o prémio por um tufão que o separa da riqueza.

Independentemente da catástrofe natural, o público pode contar com a habitual oportunidade para gargalhada oferecida pelo grupo de teatro. “Muito humor, muito sarcasmo e crítica social”, promete Miguel de Senna Fernandes, encenador e autor da peça. Num contexto de comédia, as peças do grupo de teatro apresentam o estilo de vida de Macau, numa postura de reflexão social em tom jocoso.

A peça estará patente, apenas, no FAM nos dias 19 e 20 de Maio no grande auditório do Centro Cultural de Macau. Isto “porque não há condições para outras alternativas, tudo o que seja fora do âmbito do festival implica aluguer de recinto, custos elevados”, diz o encenador.

Miguel de Senna Fernandes promete levar ao palco um espectáculo com as características a que o público está habituado. Como tal, há lugar também para a exibição dos habituais vídeos que a companhia apresenta, plenos de crítica social, “para entreter o pessoal”. Para o encenador, este ano estão reunidas as condições para as gargalhadas se espalharem pela plateia. Nesse capítulo, o encenador sabe que o público é o último juiz da qualidade da peça, do trabalho feito pela companhia, sendo que o riso é o reflexo honesto da receptividade ao espectáculo.

Para tornar a peça inteligível, uma vez que é interpretada numa língua pouco usada, o encenador revela que suavizou um bocado a língua. Neste caso, Senna Fernandes apoia-se na linguagem universal da comédia. “Usamos muita linguagem corporal e usamos as pausas para colmatar a falta de conhecimento do patuá”, releva. Mas não há razões para preocupações em falhar os punchlines, uma vez que a peça será, como é norma, legendada.

A presença do Grupo de Teatro Dóci Papiaçám di Macau é uma presença habitual no FAM. “A minha sina é escrever e encenar uma peça por ano, para o festival”, brinca Miguel de Senna Fernandes. Além de ser uma afirmação da cultura local, esta é uma questão de sobrevivência de uma língua em vias de extinção, mas que não desiste. A mensagem é: “Estamos aqui, estamos vivos e estamos a fazer pessoas rir”.

7 Mar 2017

Livros | Balanço da participação de Macau no Correntes d’Escritas

Não podia ter corrido melhor a primeira presença de Macau no principal festival literário português. O balanço é feito por Rogério Beltrão Coelho, editor, homem que há muito luta pela visibilidade da literatura do território. Para que se possa ir mais longe, é importante que as instituições percebam a importância de estar lá fora

[dropcap style≠’circle’]“M[/dropcap]ontadas nas línguas, as palavras viajaram. Atravessaram mares, lentamente, uma língua de cada vez; hoje desembarcam instantâneas, todas ao mesmo tempo. (…) A nossa língua, as nossas palavras, são por ali essa espuma. São palavras exiladas que subsistem nas vozes internas, pouco se fazem ouvir; há um ruído contínuo que urge traduzir, compreender.”

As palavras são de Carlos Morais José e foram deixadas no Correntes d’Escritas, o festival literário da Póvoa do Varzim que decorreu no final do mês passado e que teve, pela primeira vez este ano, a participação de um autor de Macau. Morais José levou a Portugal o romance “O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja”, uma obra lançada pela Livros do Oriente, de Rogério Beltrão Coelho e Cecília Jorge.

Para Beltrão Coelho que, nos últimos tempos, tem dinamizado a Associação Amigos do Livro em Macau, a presença do território no festival literário mais relevante de Portugal foi “extremamente importante”, o que, “aliás, foi salientado no discurso de inauguração pelo Presidente da República”. “Deu-se a conhecer aos escritores e ao público que existe uma literatura em Macau, uma literatura pujante e com um representante que, no meio daquela mesa, foi um dos mais aplaudidos e enaltecidos”, relata.

A sequência deste tipo de participações estará sempre dependente de convites de quem organiza os eventos, mas para que, em Portugal, se fale mais dos livros de Macau é preciso investir em iniciativas, e é necessário “o apoio institucional e a compreensão institucional”, algo que, “infelizmente, não se nota”.

“Parece que Macau não tem interesse em que, fora do território, se tenha uma imagem que vá para além do jogo, uma imagem cultural, da existência de uma literatura pujante e que interessa ao espaço de língua portuguesa”, lamenta o representante da associação.

“Macau é muito longe e ali predomina a cultura chinesa. Mas existe, talvez surpreendentemente, uma literatura escrita em português”, contou Carlos Morais José a quem o ouviu na Póvoa do Varzim, lembrando que se escreve do e no território desde os meados do século XVI até aos nossos dias. “Quer se queira quer não, quer se saiba ou não saiba, Macau ocupa um lugar singular na literatura portuguesa”, acrescentou o autor.

7 Mar 2017

AFA acolhe exposição de Ng Man Wai

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] a primeira exposição do ano da Art For All (AFA) e é da responsabilidade de Ng Man Wai. A artista plástica de Macau, a viver na Alemanha, regressa ao território para uma mostra individual à qual decidiu chamar “Packing the Nature”. A exposição, que inclui uma instalação, pretende explorar a relação entre Homem e natureza e recorre a sacos de plástico como meio de expressão.

A AFA antecipa, em comunicado, que quem passar pelo Art Garden a partir do próximo sábado vai encontrar uma instalação de grande envergadura logo à entrada do edifício. “A artista vai usar sacos de plástico e enchê-los com lâmpadas para decorar o espaço, para exprimir a relação entre humanos e natureza”, escreve a organização.

“Os sacos de plástico são produtos industriais e a utilização de cores artificiais vai contra o que é próprio da natureza, é o oposto das cores naturais”, escreve a AFA. Ng Man Wai usa “uma série de cores para demonstrar que são como as construções dos humanos, feitas para uma vida melhor, mas com consequências negativas para o ambiente”. O nome dado à exposição tem origem no desejo de “guardar o que de melhor a natureza tem”.

A exposição de Ng Man Wai pode ser vista até ao próximo dia 26 no espaço da AFA na Avenida Dr. Rodrigo Rodrigues.

6 Mar 2017

Gonçalo Lobo Pinheiro retratou a pobreza em Macau: “Era como se fosse um deles”

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Numa cidade de muito brilho, de muita luz, foi à procura de um lado mais sombrio: a pobreza. O fotojornalista Gonçalo Lobo Pinheiro publicou, no final do ano passado, uma série de imagens no jornal Público que mostram um lado esquecido de Macau. “No Cárcere da Pobreza” vai estar em análise na próxima quinta-feira, na Universidade de Macau, num seminário que serve para se falar das diferentes realidades do território

[/vc_column_text][vc_column_text css=”.vc_custom_1489019654286{margin-top: -30px !important;}”][dropcap]C[/dropcap]omo é que surgiu a ideia de procurar um lado pouco visível de Macau?
É o papel do jornalista – e do fotojornalista – procurar este tipo de abordagens. Tenho vontade de andar à procura de histórias diferentes. Em Macau não é muito fácil encontrar esta diferença. Tentei perceber – dentro deste dinheiro, desta vida quase luxuosa para muita da população –, onde é que havia estes nichos de gente que, de facto, não tem rosto, que passa por dificuldades. Fiz vários contactos. Falei com a Santa Casa da Misericórdia, que me disse que a Caritas estava mais indicada para o trabalho que pretendia fazer. Depois comecei a encurtar distâncias, até que me deram abertura para poder entrar dentro da Casa Corcel, que é onde estão pessoas sem abrigo, pobres. Há outras pessoas que só vão lá comer. É uma ajuda aos mais necessitados. Tentei também, através deles, ir ao contacto das famílias desfavorecidas: existem algumas, na Ilha Verde, na Taipa, que moram em barracas. Só que aí foi muito mais difícil. Acabei por deixar cair a ideia. Depois foi a história normal: fui fazendo marcações para poder ir à Caritas. Numa primeira fase, ia acompanhado, até mesmo por uma questão de apresentação – para não chegar ali uma pessoa que não sabem quem é –, e para servir também de tradução, porque a maior parte das pessoas não falam outra língua que não o chinês. Foi assim que começou. Depois passei lá vários dias, várias semanas, em momentos diferentes, fui lá de manhã, à tarde, à noite…

Como é que foi o processo de conseguir ganhar a confiança de pessoas que não falam a mesma língua?
Tem de se estar ali, só a olhar para eles, e sorrir. Alguns são muito sisudos, até viram a cara. E depois vai-se fotografando. Uns diziam que podia fotografar; outros diziam logo à priori que não há cá fotografias, nem à ponta do dedo mindinho. Tem de se andar naquele jogo. Depois fotografa-se, mostram-se as fotografias para ficarem entusiasmados. Aqui é que se criam as ligações. A ideia era eu estar ali como se fosse um deles. Obviamente que, nos primeiros dias, era mais complicado, porque viam um intruso ali. Depois de se habituarem, passou a ser muito mais fácil e circulava à vontade. Tinha algumas restrições quando ia para a ala feminina – ia acompanhado de uma senhora –, mas, fora isso, andava tranquilo. Estavam a fumar, ia para ao pé deles. Havia um que estava a fazer a barba, eu passava pela casa de banho. Fazia uma vida como se estivesse ali. Mas teve de se ganhar essa confiança – os primeiros dias foram muito complicados.

Quando olhamos para estas fotografias, imaginamos histórias de vida. Foi possível ir percebendo como é que as pessoas foram parar a esta casa?
Algumas histórias consegui perceber: há casos em que as famílias não quiseram mais saber deles, outros porque gastaram o dinheiro todo e deixaram de ter meios de subsistência, e outros ainda porque tiveram problemas de saúde e nunca mais voltaram a ser os mesmos. A maioria estava resignada – muitos deram a entender que a vida deles não vai sair daquele marasmo –, mas outros não. Mesmo tendo 60 ou 70 anos tinham esperança de melhorar a sua condição. Há histórias complicadas, como a de um chinês de Moçambique que estava triste porque não podia ver os filhos. Depois havia um que era chefe de cozinha, mas que teve uma trombose. Há pessoas que não têm dinheiro para pagar a renda. Há várias histórias.

“Tem de se estar ali, só a olhar para eles, e sorrir. E depois vai-se fotografando.”

Sente que o facto de os ter fotografado lhes deu uma dignidade diferente?
Espero que sim. A minha ideia era também ir por aí. Não era só mostrar as pessoas que estão marginalizadas na sociedade, mas também que as fotografias dessem essa dignidade. Tenho fotos mais complicadas do que outras mas procurei, nesta sequência de 15 imagens que publiquei, mostrar o lado mais bonito do que não é nada bonito, que é estarem ali, naquelas condições. Procurei fazer mais retratos, sempre que possível, com as pessoas a sorrir, mas não interferi muito nisso. O meu trabalho foi feito para mostrar as condições complicadas em que eles estão, mas são pessoas que têm um rosto, com vida, com história. Antes de chegarem ali, viveram muitos anos e fizeram outras coisas. Podem ser 100 ou 200 pessoas – o que parecerá ridículo numa terra com quase 700 mil habitantes – mas têm a sua voz e o direito a aparecerem.

Este não foi um projecto vulgar em Macau. Há mais ideias deste género para o futuro?
Neste momento não estou a trabalhar em nada em específico. Tenho ideias para fazer mais algumas coisas, estou a estabelecer contactos com associações. Vamos ver. Mas tenho, pelo menos, duas ideias que gostaria de fazer nos próximos dois anos. Isto requer disponibilidade, porque tenho de partir às minhas expensas. Conforme o meu tempo, vou fazendo as coisas. Às vezes pode durar uma semana ou então um mês, dois, um ano. Mas estou a fazer contactos, porque também há esse lado mais burocrático. Depois faço a minha agenda: hoje vou, amanhã não vou, posso ficar uma semana ou duas sem ir e isso é interessante. Se for diariamente, não é muito bom. Haver descansos permite renovar o olhar. As reportagens deviam ser assim: deixar fluir, ver como é que as coisas correm. Não quero ter esse tipo de pressão, quero estar tranquilo.[/vc_column_text][vc_custom_heading text=”Galeria” font_container=”tag:h4|text_align:left” use_theme_fonts=”yes” css=”.vc_custom_1489051468346{margin-top: 5px !important;margin-bottom: 0px !important;padding-left: 20px !important;}”][vc_gallery interval=”5″ images=”16099,16098,16097,16096,16095,16093,16092,16090,16089,16088,16087,16086,16085,16084,16077″ img_size=”large” onclick=”” css_animation=”fadeIn” css=”.vc_custom_1489051293835{margin-top: -10px !important;margin-bottom: -30px !important;padding-bottom: 0px !important;}”][/vc_column][/vc_row]

6 Mar 2017

Casa Garden acolhe exposição de João Palla

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Casa Garden

[dropcap style=’circle’]”T[/dropcap]racing Liners” foca os traços enquanto parte do espaço circundante e como objecto plástico. É assim um resumo possível para a exposição do arquitecto João Palla, inaugurada na próxima sexta-feira, às 18h30, na Casa Garden.

“Neste trabalho os traços são entendidos enquanto novas espacialidades onde se pretende atribuir um valor ao acto do delinear e um sublimar enquanto objecto plástico”, lê-se na nota de imprensa.

Para João Palla, “o desenho de uma passadeira é executado por linhas que são projectadas no pavimento, um pré-traçado para o posterior preenchimento com aplicação de tinta”. Estes traçados que apareceram nos Estados Unidos há cem anos mantêm os mesmos métodos de execução até aos dias de hoje e sofrerem raras alterações.

Esta invariabilidade de uma técnica, descrita como “quase artesanal”, conflui “num diálogo entre o desenho, a memória e a sua materialidade.” Por outro lado, “a não uniformidade de regras entre regiões do planeta resulta em situações sui generis muito diferentes”.

São os traços feios pelos seus desenhadores que João Palla vai apresentar de forma multidisciplinar, numa “relação entre pré-traçado e pintura final”.[/vc_column_text][vc_cta h2=”João Palla” h2_font_container=”font_size:33px|color:%23ffffff” h2_google_fonts=”font_family:Oswald%3A300%2Cregular%2C700|font_style:300%20light%20regular%3A300%3Anormal” shape=”square” style=”flat” color=”peacoc” use_custom_fonts_h2=”true”]JOÃO PALLA licenciou-se pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, tendo passado pelo Instituto Universitário de Arquitectura de Veneza. Colaborou com o arquitecto Manuel Vicente em Macau e Lisboa entre 1990 e 1997. Como bolseiro da Fundação Oriente completou uma tese de investigação intitulada ‘Arquitectura de Bambu em Macau’. Em 2000, é um dos membros fundadores da Associação dos Arquitectos Sem Fronteiras Portugal. Completou o Mestrado em Design e Cultura Visual no IADE e o Doutoramento em Ciências da Arte na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Ensina no IADE desde 1999 e dedica-se à prática profissional enquanto arquitecto, fazendo incursões pelo campo das artes plásticas expondo ocasionalmente.[/vc_cta][/vc_column][/vc_row]

1 Mar 2017

Música | Êxitos intemporais em estreia local

São três os protagonistas do espectáculo “Three Phantoms” que está, já a partir de sexta-feira, no Parisien Theater. A ideia é interpretar alguns dos mais famosos temas do teatro musical de Nova Iorque e Londres

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] a estreia asiática da produção “Three Phantoms”, um teatro musical que traz ao palco do Parisien Theater canções dos mais conhecidos musicais interpretados na Brodway e na West End.

São muitas as participações na produção, mas o coração do espectáculo centra-se nos “Three Phantoms” que integram o inglês Earl Carpenter, o irlandês David Shannon e, da Escócia, Kieran Brown.

Os protagonistas têm em comum a participação no conhecido Fantasma da Ópera de Andrew Lloyd Wabber e apostam, agora, numa produção própria em parceria com a Ginger Boys.

A primeira vez na Ásia reúne muitas expectativas. “Estamos muito entusiasmados com esta estreia no continente asiático. Não é só um teatro musical e temos algumas surpresas para o público”, disseram ontem num encontro com a comunicação social.

Sem adiantarem o teor da surpresa, sublinharam que “o público pode esperar um repertório com temas dos mais relevantes espectáculos da Broadway de Nova Iorque e da West End londrina, em que os destaques vão para canções do Fantasma da Ópera, Cats, Saturday Nignt Fever e Les Mirerables.”

Da mostra apresentada ontem aos jornalistas, a promessa será cumprida entre oscilações entre momentos de calma e de frenesim.

Formato a nu

A compilação de peças conhecidas num só espectáculo podia ser arriscada, mas acabou por se tornar “uma ideia muito boa e tornar a apresentação mais relaxada”. Comparando, por exemplo, com o Fantasma da Ópera, a preferência dos protagonistas vai, sem dúvida para este. “Aqui temos oportunidade de cantar diferentes géneros musicais e, artisticamente, andamos entre extremos, o que torna o próprio teatro mais interessante. Não usamos máscaras ou maquilhagem e é tudo centrado na componente musical”, explicaram.

Se, por um lado, o formato actual é mais aliciante, por outro é um desafio para os intérpretes, por ser “mais íntimo e assustador, mostramo-nos mais do que se estivermos a interpretar uma personagem”, explica o trio.

O espectáculo conta ainda com uma componente coreográfica que, de acordo com “os fantasmas”, confere uma dinâmica diferente e mais apelativa. “Transforma o espectáculo numa viagem maravilhosa em que não há apenas pessoas paradas a cantar canções.”

Da chegada a Macau mencionam o contraste e a diferença que encontraram num território tão pequeno. “Macau tem tanta variedade de estilos, temos este local [Parisien], e temos a influência portuguesa e toda uma outra Macau na península”, remataram.

1 Mar 2017

Óscares | Musical de Chazelle com mais estatuetas. “Moonlight” é o melhor filme

O musical “La La Land”, com seis estatuetas, arrecadou o maior número de prémios da 89.ª edição dos Óscares. Mas foi derrotado por “Moonlight” na categoria de melhor filme. A entrega do prémio principal ficou marcada por uma confusão de envelopes

[dropcap style≠’circle’]“L[/dropcap]a La Land” partiu como favorito aos prémios da Academia de Hollywood, com 14 nomeações, mas afinal conquistou seis estatuetas: a de melhor realizador (Damien Chazelle), de melhor actriz principal (Emma Stone), a melhor banda sonora original, a melhor canção original (“City of Stars”), a melhor produção artística e a melhor fotografia.

Além de ter ficado aquém das nomeações alcançadas – que puseram o musical lado a lado com “Titanic” (1997), por exemplo –, “La La Land” falhou na obtenção do prémio mais importante da noite, o de melhor filme, com “Moonlight” a sagrar-se vencedor apesar de um primeiro anúncio errado que dava a vitória ao musical, numa confusão com o envelope que marcou o final da cerimónia.

“Moonlight”, contracenado por Mahershala Ali e Naomie Harris, conta a história de um jovem afro-americano que luta para encontrar o seu lugar à medida que cresce em Miami, pelo que o derradeiro Óscar da noite acaba por responder, em parte, às críticas da falta de diversidade entre os premiados nos últimos anos.

Novos, longos e diferentes

A 89.ª gala dos Óscares, que decorreu no Teatro Dolby, em Los Angeles, ficou ainda marcada por uma série de estreias e recordes.

Damien Chazelle, de 32 anos, que conquistou o Óscar com “La La Land: Melodia de Amor”, tornou-se no mais jovem realizador a ser distinguido; Mahershala Ali, que venceu o Óscar de melhor actor secundário pela sua interpretação em “Moonlight”, foi o primeiro actor muçulmano a receber uma estatueta dourada; enquanto “O Herói de Hacksaw Ridge”, realizado por Mel Gibson, conquistou o de melhor mistura de som, naquele que foi o primeiro Óscar em 21 nomeações para Kevin O’Connell.

“O.J. Made in America”, com quase oito horas, venceu na categoria de melhor documentário, transformando-se no filme mais longo a receber um Óscar, destronando “Guerra e Paz”, a adaptação russa que venceu, em 1969, a estatueta de melhor filme estrangeiro (467 minutos contra 431 minutos).

Política e ausências

Destaque ainda para os Óscares das categorias de melhor filme estrangeiro e de melhor documentário em curta-metragem.

“O Vendedor”, do realizador iraniano Asghar Farhadi, que tinha declarado que não iria estar presente na cerimónia em protesto pelas medidas anti-imigração de Donald Trump, recebeu o prémio para melhor filme estrangeiro; enquanto “Os Capacetes Brancos” (“The White Helmets”), sobre os voluntários que resgatam vítimas da guerra na Síria, conquistaram a estatueta de melhor documentário em curta-metragem.

A cerimónia foi também palco de vários discursos políticos, a começar pelas várias intervenções do anfitrião, Jimmy Kimmel, sobre o facto de os Estados Unidos serem hoje um país “dividido”, passando pela declaração lida pela astronauta iranian Anousheh Ansari em nome de Farhadi, até às frases de apresentadores como Gael García Bernal que, enquanto mexicano e ser humano, se mostrou “contra qualquer tipo de muro” que estabeleça uma separação.

A meio da gala, Kimmel enviou, através do Twitter, uma mensagem ao Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que, em menos de 10 minutos, foi partilhada por mais de 150 mil utilizadores.

“Olá Donald Trump. Estás por aí?”, escreveu Kimmel na sua conta no Twitter, durante a cerimónia transmitida em directo por televisões de todo o mundo, após perceber que o Presidente dos Estados Unidos, um utilizador activo das redes sociais, ainda não tinha comentado nada no Twitter, duas horas depois do início da gala.

As estatuetas

Melhor filme:

– “Moonlight”

Melhor realizador:

– Damien Chazelle, “La La Land”

Melhor actor:

– Casey Affleck, “Manchester by the sea”

Melhor actriz:

– Emma Stone, “La La Land”

Melhor actor secundário:

– Mahershala Ali, “Moonlight”

Melhor actriz secundária:

– Viola Davis, “Vedações”

Melhor filme de animação:

– “Zootrópolis” (Byron Howard, Rich Moore e Clark Spencer)

Melhor argumento original:

– “Manchester by the sea” (Kenneth Lonergan)

Melhor argumento adaptado:

– “Moonlight” (Barry Jenkins)

Melhor filme estrangeiro:

– “O Vendedor” (Asghar Farhadi, Irão)

Melhor desenho de produção:

– “La La Land” (David Wasco e Sandy Reynolds-Wasco)

Melhor fotografia:

– “La La Land” (Linus Sandgren)

Melhor guarda-roupa:

– “Monstros Fantásticos e Onde Encontrá-los” (Colleen Atwood)

Melhor montagem:

– “O Herói de Hacksaw Ridge” (John Gilbert)

Melhores efeitos visuais:

– “O Livro da Selva” (Robert Legato, Adam Valdez, Andrew R. Jones e Dan Lemmon)

Melhor caracterização:

– “Esquadrão Suicida” (Alessandro Bertolazzi, Giorgio Gregorini e Christopher Nelson)

Melhor montagem de som:

– “O Primeiro Encontro” (Sylvain Bellemare)

Melhor mistura de som:

– “O Herói de Hacksaw Ridge” (Kevin O’Connell, Andy Wright, Robert Mackenzie e Peter Grace)

Melhor banda sonora:

– “La La Land ” (Justin Hurwitz)

Melhor canção original:

– “City of Stars” (Justin Hurwitz, Benj Pasek e Justin Paul, “La La Land”)

Melhor documentário:

– “O.J. Made in America” (Ezra Edelman e Caroline Waterlow)

Melhor documentário em curta-metragem:

– “The White Helmets” (Orlando von Einsiedel e Joanna Natasegara)

Melhor curta-metragem:

– “Sing” (Kristof Deák e Anna Udvardy)

Melhor curta-metragem de animação:

– “Piper” (Alan Barillaro e Marc Sondheimer)

28 Fev 2017

Armazém do Boi | Workshop e exposição para reflectir Macau

Gil Mac regressa a Macau para um woprkshop no Armazém do Boi em que os participantes são convidados a trabalhar em logótipos que representem a cidade. O espaço é de criação e reflexão para que, no final, resulte uma exposição em caixas de cartão que comuniquem o território

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]ma semana para a criação de logótipos em caixas de cartão capazes de reflectir a cidade, é a proposta do workshop Macau™ que vai ter lugar no Armazém do Boi. Gil Mac é o responsável pelo evento.

A participação do artista marca a presença portuguesa na programação de 2017 do Armazém e resultou do open call “Seed in Spring” promovido pela entidade local.

A cidade não é nova para Gil Mac e a ideia, neste regresso, é pensar Macau e o branding do lugar.  “A primeira vez que estive em Macau foi em 2007 com a Teatro do Frio para apresentar um espectáculo a solo no festival Fringe e apaixonei-me pela cidade. Voltei em 2014 com o colectivo (DEMO) para o mesmo festival com o projecto ‘UWAGA!’. Estivemos no Armazém do Boi várias semanas com uma oficina de arte urbana e tipografia”, recorda.

Foi aí que conheceu e se surpreendeu com a criação artística “made in Macau”. “Conheci uma nova geração de artistas muito criativa, com espírito crítico e “politicamente” envolvidos. Fizemos várias intervenções no espaço público e o resultado foi muito interessante”, aponta Gil Mac.

O evento, que vai ter lugar entre 12 e 19 de Março, tem como mote “a riqueza histórica e multicultural do território e a sua contemporaneidade identitária tendo em conta as particularidades”.

Para Gil Mac, o território é detentor de características que se concretizam nos fluxos de turismo e de consumo, na globalização e na mudança dos espaços públicos e privados, e estes serão alguns dos temas em análise.O Macau™ aparece ainda na sequência do trabalho  que, o também designer gráfico, tem vindo a desenvolver dentro do projecto pessoal “whatever ™”.

Comunicar a urbe

As premissas que fundamentam o evento são as necessidades da cidade e as suas representações. No entanto, não se trata de um resultado de intervenção em espaço público mas sim expositivo e com uma linguagem associada à publicidade através do uso do branding, com os olhos postos na síntese que é o logótipo.

A ideia passa ainda por “fazer a desconstrução da comunicação das marcas que se encontram na cidade e a forma como se comunicam.”

O objectivo inicial seria a realização de um workshop durante uma semana, mas na ausência de espaço disponível o programa foi reorientado. O evento será feito em vários momentos. Numa primeira fase, é realizado um briefing, a 12 de Março, com os participantes e onde são dadas as premissas. Segue-se uma semana de trabalho. “Este tempo é um momento em que as pessoas vão olhar para a cidade, reflectir no que ela diz e trabalhar em esboços, fotografias e ideias, para que no fim-de-semana seguinte, num terceiro momento, se faça uma síntese dos logos que foram criados no período anterior e seja criado um objecto gráfico a preto e branco”.

A materialização é feita em caixas de cartão porque, afirma, “são objectos que normalmente têm em si informação acerca dos produtos que transportam e, muitas vezes, esta informação é também um logótipo”.

Para Gil Mac, “o mais importante é a experiência” sendo que a discussão dos diferentes pontos de vista e opiniões sobre a cidade culminarão em trabalhos “mais ricos”.

“No cerne do evento está a reflexão do que é que é Macau neste momento”, afirma. Os participantes vão procurar, de uma forma criativa, comunicar com a cidade, e, ao olhá-la com outros olhos, encontrar nela características que possam ser representadas graficamente. “[Os participantes] serão encorajados a ver a cidade de outra forma nas suas múltiplas facetas: na arquitectura, nos símbolos e dinâmicas”.

O curto período de tempo do workshop também representa um desafio, considera, na medida em que  permite desenvolver capacidades de trabalho sob pressão.

Gil Mac é um artista multifacetado. Conimbricense, nasceu em 1975. Estudou artes gráficas, fotografia e multimédia e teve formação adicional em tipografia. Paralelamente, desenvolve projectos associados ao teatro e à música experimental. Admirador de Camilo Pessanha tem vindo a desenvolver o projecto “Inscrição” que deu o mote, no ano passado, à performance  ORACULO”, no Festival Rota das Letras. Camilo Pessanha regressa à edição deste ano, desta feita com a performance Hydra & Orpheu e o projecto DEMO. A ideia é mostrar a influência do poeta local na geração de escritores modernistas portugueses em que se inclui Fernando Pessoa. 

27 Fev 2017

Correntes D’Escrita | Macau em estreia

“A Sombra do Mar” de Armando Silva Carvalho foi o vencedor do prémio literário Casino da Póvoa no festival Correntes D’Escrita. O anuncio foi feito na quarta-feira numa cerimónia que contou com a presença do Presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e a referência à estreia da literatura de Macau no certame

[dropcap]O[/dropcap] escritor Armando Silva Carvalho venceu o prémio literário Casino da Póvoa deste ano com a obra “A Sombra do Mar”, anunciou a organização do encontro de escritores de expressão ibérica Correntes D’Escrita.

De acordo com a acta do júri, “A Sombra do Mar” foi a obra escolhida “pela força imagética da sua escrita e pela tensão conseguida entre ironia e melancolia”.

O júri refere ainda que a nomeação deste livro “resultou da demorada análise e discussão deste e de outros livros finalistas”, tendo sido esta opção deliberada “por maioria”.

Entre as obras finalistas, “particular atenção mereceram” também “Bisonte”, de Daniel Jonas, e “O Fruto da Gramática”, de Nuno Júdice.

““[O festival] continua a alargar o âmbito geográfico, incluindo autores de Macau e da Venezuela.”
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa

Na declaração de voto é dito ainda que “A Sombra do Mar” é uma obra que “traz um conjunto de poemas formando um corpo orgânico de grande unidade estilística e temática, no qual as alusões ao mar e à água constituem um ‘leitmotiv’ que percorre todo o livro em sucessivas variações: água ‘criteriosa e diária’, água ‘arrepiada’ e ‘águas sobreviventes’”.

Entre os finalistas do prémio, no valor de 20 mil euros, estavam também “Outro Ulisses regressa a casa”, do actual ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, “Animais Feridos”, de António Carlos Cortez, “Auto-retratos”, de Paulo José Miranda, “Persianas”, de Miguel-Manso, e “Vem à Quinta-Feira”, de Filipa Leal.

O júri foi constituído por Almeida Faria, Ana Gabriela Macedo, Carlos Quiroga, Inês Pedrosa e Isaque Ferreira.

O prémio literário Papelaria Locus 2017 foi atribuído a “Simplesmente Parecidos”, de Juliana da Silva Barbosa, que concorreu com o pseudónimo de Miura Yigurashi; o prémio Literário Fundação Dr. Luís Rainha a “No Silêncio das Marés”, de Helena Luísa Miranda Coentro; e o primeiro prémio Conto Infantil Ilustrado a “Uma Limpeza Necessária”, do 4.º A da Escola Básica José Manuel Durão Barroso, de Armamar.

O Correntes d’Escritas prolonga-se até amanhã, na Póvoa de Varzim, com uma sessão agendada para segunda-feira no Instituto Cervantes, em Lisboa, reunindo dezenas de escritores em conferências, exposições e sessões em escolas.

Prata da casa

“A Póvoa é um sítio mítico da literatura portuguesa. É onde nasceu Eça de Queirós, e por onde passaram Raul Brandão e muitos outros.”
Carlos Morais José, escritor

A cerimónia em foi feito a anúncio do vencedor contou com a presença de Marcelo Rebelo de Sousa, que destacou não só a importância da leitura e do trabalho feito com as escolas, como ainda a presença de Macau que, este ano e pela primeira vez, está representado com o “Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja”, de Carlos Morais José. O evento é “não só apenas uma festa dos portugueses e lusófonos, convida também escritores de expressão ibérica”, destacou, acrescentando que esta iniciativa “funciona como porta de entrada da literatura do mundo em Portugal” e que este continuou ainda a “alargar o âmbito geográfico, incluindo autores de Macau e da Venezuela”.

Para Carlos Morais José, este é um festival de referência e não podia ser feito noutro local. “A Póvoa é um sítio mítico da literatura portuguesa. É onde nasceu Eça de Queirós, e por onde passaram Raul Brandão e muitos outros”, referiu o autor ao HM, salientando que, “sendo uma terra junto ao mar, é um sítio magnífico para reactivar a tradição literária que a terra tem”.

O destaque do evento vai, de acordo com o autor que se encontra na Póvoa para participar numa mesa redonda, para “as conversas que se vão tendo e para a boa organização do festival, que corre normalmente e bem”.

Relativamente à presença da literatura feita em Macau, o trabalho a fazer ainda é muito. “Como não temos uma máquina de marketing, tudo isto depende da boa vontade do editor, Rogério Beltrão Coelho. No entanto, e comparando com outras literaturas presentes, obviamente que ainda não temos muita visibilidade e também não sou um autor consagrado”.

24 Fev 2017

Paulo Reis, ceramista: “Não há cultura no que respeita ao consumo de arte”

Mestre de cerâmica e da arte da azulejaria portuguesa, Paulo Reis dá aulas e tem atelier na escola da Casa de Portugal. Há ano e meio em Macau, sente que falta a ligação à comunidade chinesa, apesar do sucesso com os japoneses que já têm agências de viagens que incluem nos programas aulas com o artista. Ao HM falou da experiência, enquanto professor e artista no território

 

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] cerâmica é uma arte que vem desde cedo?

Comecei a trabalhar na área da cerâmica há cerca de 30 anos. Foi com a minha irmã que, já na altura, trabalhava na área. Depois surgiram os cursos do Ar.Co e acabei por fazer a formação. A partir daí, montei uma oficina de cerâmica com mais três colegas em que realizávamos o nosso trabalho e, ao mesmo tempo, dávamos aulas. Lembro-me da primeira vez que dei aulas porque foi uma experiência marcante, dado ter sido a detidos na prisão de Vale dos Judeus. Por incrível que pareça, eu tinha 20 e poucos anos e estava à espera de uma recepção que poderia ser agressiva. No entanto, a formação teve uma grande adesão, as pessoas queriam fazer coisas e o relacionamento foi muito interessante. Achei piada que pessoas muito mais velhas do que eu me tratassem por mestre, a mim, que era um miúdo.

Como é que apareceu Macau?

Estou cá há cerca de um ano e meio. A minha vinda resultou de um convite por parte de Amélia António, presidente da Casa de Portugal, para vir substituir o Paulo Valentim. Fui chamado para dar um workshop e acabei por ser convidado a ficar. As condições agradaram-me, não só ao nível financeiro, como também as condições que este espaço tem, para o ensino e para o desenvolvimento do meu trabalho pessoal. Este local funciona como a minha sala de aulas e como atelier.

Que alunos se inscrevem nestas formações?

Tenho um espaço dedicado, por exemplo, só à pintura de azulejo. Normalmente, quem o costuma frequentar são alunos da Casa de Portugal que já tinham aulas com o professor Paulo Valentim. Como grande mestre que era da azulejaria portuguesa, formou pessoas mais viradas para esta arte. Depois há as aulas dos cursos que são dados no horário pós-laboral. Tenho alunos que chegam e que nunca tocaram em barro e outras pessoas que já trabalham comigo há algum tempo, e querem desenvolver os seus projectos.

As pessoas podem ter aqui um espaço de desenvolvimento de projectos pessoais sob a sua supervisão?

Sim. Mesmo estando integradas num dos cursos em que há um tema específico, podem continuar a desenvolver outros projectos e explorar outro tipo de técnicas não relacionadas com a formação que estão a fazer.

Estamos a falar essencialmente de alunos portugueses?

Estamos a falar de portugueses e de estrangeiros também. Neste momento tenho uma aluna americana, uma brasileira, já tive alunos chineses, apesar de neste momento ter maioritariamente macaenses e portugueses. Tenho tido alguma diversidade cultural na participação dos cursos, mas gostava de ter mais.

O que falta?

Divulgação. Tem de existir mais divulgação por parte das entidades e mesmo da imprensa.

Tiveram recentemente um workshop de pintura em azulejo dirigido a japoneses com muita adesão.

Temos sempre actividades e nessa trabalhámos directamente com agências de viagens. É a terceira ou quarta vez que temos grupos de japoneses. No mês passado vieram 120. É um pacote que as agências têm em que, em vez de levarem os clientes aos casinos, têm mais visitas a Macau e uma passagem pela Casa de Portugal para aprenderem a pintar azulejos. Explicamos o que é a azulejaria portuguesa, a técnica, e depois eles fazem o seu trabalho tendo em conta os processos tradicionais do séc. XVII. A pintura do azulejo tem várias fases: o desenho picotado em papel vegetal e depois passado a carvão, a pintura em que usamos o azul que tem três tonalidades diferentes. São características típicas desta que é, talvez, a maior imagem de marca do país no estrangeiro. Temos trabalhos no mundo inteiro.

Sente que há interesse em manter esta arte no território?

Sim, mas não sei até que ponto podemos chegar ao Governo ou aos arquitectos que podiam, por exemplo, incorporar alguns painéis de azulejo português nos seus projectos. Há muita coisa que se poderia fazer para integrar a azulejaria portuguesa em Macau. É também muito complicado entrar na comunidade chinesa. Acabei de ter uma experiência interessante num concurso organizado pelo Sands China. Concorri com uma escultura e, quando saiu a lista dos premiados na categoria em que tinha participado, o único português era eu. Senti que me receberam, senti-me acolhido. Penso que talvez se deva ir por aí, por tentativas, para tentar criar mais contacto com as comunidades locais. Sinto que as comunidades aqui estão todas muito dispersas e sem grande ligação.

Enquanto artista, como tem desenvolvido a sua carreira?

Tenho tido oportunidade de pôr em prática projectos que há muitos anos estavam na gaveta. Aos poucos, vou tentando entrar no mercado local.

Sente que há mercado em Macau?

Acho que, realmente, não há cultura no que respeita ao consumo de arte. Não há o hábito de sair ao fim-de-semana para ver exposições. Acho que é criando esses hábitos, através da educação, que as pessoas se começam a habituar. Há muita coisa do jogo, é por isso que Macau é conhecido lá fora, mas considero que tem muito mais do que isso e, para o pequeno espaço que é, estão sempre a acontecer coisas.

Quais os próximos desafios?

Gostava de começar a preparar formações dirigidas a projectos sociais, especialmente aqui, na Areia Preta, onde há, segundo me consta, mais pobreza e gente com necessidades financeiras. A ideia já está aprovada. Tenho muita vontade em colaborar com orfanatos e outras associações de apoio para que possam vir aqui. A Casa de Portugal dá o espaço e os materiais, eu dou a mão-de-obra. É um projecto que está a marinar e já estou a estabelecer contactos.

 

23 Fev 2017

Art Basel | Christo e Kiarostami em Hong Kong

Março é o mês da terceira edição da Art Basel de Hong Kong. O programa já começa a ser conhecido e os destaques apontam para a presença de trabalhos de Christo e Abbas Kiarostami. O certame promete, acima de tudo, a diversidade e o foco na temática do tempo

 

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]nstalações, exposições e interactividade são três dos pilares de mais uma edição da Art Basel de Hong Kong. Com data marcada entre 23 e 25 de Março, a feira de arte, que se afirma já como uma das mais proeminentes da Ásia, não tem mãos a medir.

As novidades começam com a estreia de Kabinett, bandeira estandarte da edição de 2017. A secção é uma das mais aclamadas do evento em Miami e a organização visa, com ela, lançar às galerias o desafio de exibirem trabalhos que, normalmente, estão fora da sua alçada. “Esta é uma forma de trazer mais conteúdo histórico e acrescentar profundidade ao evento”, afirmam os responsáveis pelo evento. A ideia é apresentar projectos capazes de incluir tanto as criações individuais, como colectivas.

Este ano, entre muitos nomes, sobressaem os do realizador iraniano Abbas Kiarostami ou do interventor na paisagem de origem búlgara Christo que, após dez anos afastado da criação artística, regressou em 2016 à produção. Para o certame, a organização promete a exibição de três obras raras que integram o trabalho “Christo: the essencial ideas”, a cargo da Galerie Gmurzynska.

Kiarostami, que morreu no ano passado e deixou um legado muito para além do cinema, terá na vizinha Hong Kong uma exposição individual de fotografia. Os trabalhos fazem parte da “Snow Series” de 2002 e trazem imagens de um Irão natural “sob uma estética minimalista”, explica a organização. A exposição estará a cargo da Galeria Rossi & Rossi.

Já do Oriente, a Art Basel vai lembrar o trabalho do artista chinês Sanyu com a apresentação de uma série de desenhos que retratam o contexto histórico do modernismo da China no início do séc. XX.

No total são 19 projectos, “cuidadosamente curados”, que marcam o início do Kabinnet na região vizinha. Os artistas a serem representados incluem ainda Etel Adnan, Cao Yu, Piero Dorazio, Candida Höfer, Kwon Young-Woo, Kit de Lee, Yuko Mohri, OSGEMEOS, Bettina Pousttchi, Qiu Xiaofei, SHIMURAbros, Song Ta, Keiichi Tanaami, Wang Qingsong, Ming Wong e Heimo Zobernig.

Tempo adentro

A abordagem do conceito de tempo marca ainda a edição deste ano. A informação, já adiantada pela organização do certame ao HM, é concretizada com a exibição de trabalhos em larga escala e marca a secção “Encontros”, com a curadoria de Alexie Glass-Kantor.

“Sendo o terceiro ano como curador da secção, quis explorar a relação entre o tempo e a experiência e, especificamente, de que forma o tempo se poderia relacionar com os encontros”, explica Glass-Kantor. A experiência não se fica pela simples exibição e vai rumo à relação com o público. O resultado é um conjunto de obras e instalações que permite a interacção. “Fiz a curadoria da selecção de instalações que incentivam os visitantes a interagir com cada peça, a fim de encontrarem as suas próprias interpretações”, lê-se em nota de imprensa.

“Encontros” é um dos mais prestigiados sectores do evento e pretende ser “uma plataforma única de apresentação de instalações em grande escala que transcendem o conceito tradicional de uma feira de arte”.

Este ano a secção integra 17 trabalhos, entre repetentes e estreantes, em que constam nomes como Rasheed Araeen, Katharina Grosse, Gonkar Gyatso, Joyce Ho, Hu Qingyan, Waqas Khan, Alicja Kwade, Dinh Q. Lê, Li Jinghu, Sanné Mestrom, Rirkrit Tiravanija and Wang Wei.

Ainda dentro do programa conhecido até à data, e sob a alçada do “tempo”, está a apresentação de “Twenty five minutes older” do artista radicado em Hong Kong Kingsley Ng. A ideia é apresentar a cidade de “uma outra forma” através de imagens capturadas nos icónicos eléctricos locais, acompanhadas com excertos de textos de Liu Yichang.

 

 

Do mundo para Hong Kong

Fundada em 1970 por galeristas de Basileia, a Art Basel é responsável pela organização das exposições internacionais de arte contemporânea actualmente realizadas em Basileia, Miami e Hong Kong. O princípio do evento é a criação, em cada edição, de uma cooperação com as galerias da cidade anfitriã, em que a programação e produção são feitas sempre em conjunto com as entidades locais. Um exemplo é a Art Basel Cities, lançada em 2016, em que o trabalho é desenvolvido tendo em conta os conteúdos específicos de cada cidade. O objectivo é a criação de uma rede global com o contributo dos elementos culturais inerentes a cada lugar. Em Hong Kong, a Art Basel local veio substituir a ART HK e mostra, com mais uma edição, o sucesso do evento que junta artistas, indústria e público.

22 Fev 2017

Prémio | Filme sobre Mio Pang Fei distinguido em Lisboa

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme “Mio Pang Fei”, do realizador português Pedro Cadeira, conquistou a Lebre de Prata do Festival Internacional Filmes sobre Arte Portugal, que encerrou no domingo à noite, em Lisboa, anunciou ontem a organização.

Contactada pela Agência Lusa, a directora do festival, Rajele Jain, indicou que a Lebre de Ouro, o prémio mais importante do certame, foi entregue ao filme “Retrato de um anti-poeta” (2009), do realizador chileno Víctor Jiménez Atkin.

“Abraham Cruzvillegas: Autoconstrucción” (2016), dos realizadores norte-americanos Susan Sollins e Ian Foster, recebeu a Lebre de Ferro e foram ainda entregues menções honrosas aos filmes “Pontas Soltas” (2016), de Ricardo Oliveira, e a “When water turns into drops”(2015), da holandesa Jeannice Adriaansens.

O filme “Mio Pang Fei”, do cineasta português Pedro Cadeira, sobre um dos mais conceituados artistas chineses, censurado pela Revolução Cultural Chinesa, que se refugiou em Macau, foi realizado em 2014.

O Festival Internacional Filmes sobre Arte Portugal decorreu entre a passada quinta-feira e domingo, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, exibindo 18 filmes, dos quais cinco portugueses, com estreia mundial ou nacional da totalidade das obras internacionais em concurso.

Nesta nona edição voltaram a estar em foco filmes que abordam temas artísticos em diferentes disciplinas, desde as artes visuais, fotografia, teatro, literatura, música, entre outras.

Desde o lançamento, em 2008, o festival apresentou cerca de 240 filmes, introduzindo o universo e práticas artísticas de mais de 350 criadores, músicos, bailarinos, realizadores e escritores, segundo um balanço da actividade elaborado pela organização.

Criado pela artista e programadora Rajele Jain, o Festival Internacional Filmes sobre Arte Portugal teve inicialmente o apoio do Festival Temps D’Images e, desde 2015, é produzido de forma independente pela Associação Cultural Vipulamati: Ample Intelligence.

O FILME

21 Fev 2017

Sonar | Lendário festival de electrónica já revelou cartaz

Um dos mais aclamados festivais de música electrónica europeia chega a Hong Kong e traz nomes de peso. DJ Shadow, Gilles Peterson e Dave Clarke são os cabeças de cartaz. Não vão faltar motivos para levar os amantes das sonoridades mais dançáveis ao Science Park

 

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]arece mentira, mas não é. Está aí o Sónar, importado directamente de Barcelona para Hong Kong. O festival com data marcada para dia 1 de Abril não é nenhuma partida do dia das mentiras, mas uma realidade que irá marcar o calendário da música electrónica da região.

Está longe de ser a primeira vez que o festival que nasceu na Catalunha extravasa fronteiras. A primeira edição fora de Barcelona aconteceu em 2002 em Londres mas, desde então, os ecos das batidas têm atravessado o mundo. O Sónar já passou por cidades como Chicago, Buenos Aires, São Paulo, Santiago do Chile, Hamburgo, Bogotá, Nova Iorque, Seul, Roma, Cidade do Cabo, Copenhaga e Tóquio. Chegou agora a vez de Hong Kong.

A região vizinha irá oferecer um cartaz de luxo que promete mobilizar os amantes da música de dança, com nome como DJ Shadow, Gilles Peterson, Dave Clarke, alguns dos artistas mais que consagrados no panorama electrónico. Os espectadores podem ainda apreciar os talentos que despontam na cena como Lady Leshurr, Kingdom e Evian Christ.

Mas Shadow é, definitivamente, o nome de peso do cartaz. O DJ e produtor multifacetado tem, desde a década de 1990, uma carreira ecléctica que mistura hip-hop, funk, soul, rock, ambiente, jazz e electrónica. Chega a Hong Kong com um incrível show visual que acompanha os concertos da tournée do seu último registo, “The Mountain Will Fall”. O disco não é propriamente dançável, antes propõe ao ouvinte uma variedade de atmosferas sonoras que serão acompanhadas por um exuberante espectáculo multimédia. O norte-americano tem sido inovador desde “Endtroducing”, disco de estreia, pertenceu ao colectivo Unkle, tendo sido fundamental na criação do seminal “Psyence Fiction”. Só este nome vale o preço do bilhete.

Um dia em cheio

Além de DJ Shadow, os festivaleiros podem assistir ao set de Gilles Peterson. O francês, outro colosso da música electrónica, tem um vasto leque de influências e sonoridades na bagagem discográfica. É um dos nomes cimeiros do acid jazz e das sonoridades que fundem electrónica com música latina, africana e hip-hop. Promete fazer mexer quem assistir ao Sónar de Hong Kong.

Outro dos nomes de destaque do cartaz do festival é Dave Clarke, conhecido como o “Barão do Tecno”. O DJ e produtor britânico encerra com estrondo o evento com as suas batidas obscuras de tecno. Neste capítulo importa adiantar que o Sónar encerra cedo e começa cedo, uma particularidade rara neste tipo de festivais. O cartaz começa às 11 da manhã e vai até às 3 da manhã, com música, workshops, exposições e palestras espalhadas por seis palcos.

No domínio dos novatos, destaque para o britânico Evian Christ, que assim que chegou aos escaparates deu nas vistas com a sonoridade que mistura batidas de hip-hop e trance. O jovem produtor já colaborou com artistas como Kanye West e Yeezus, e lançará este ano o seu primeiro disco. Um debutante, que promete ser uma das novas estrelas da electrónica, vem mostrar de que fibra é feito no SonarLab, o palco para talentos em ascensão.

Arte virtual

Mas não só de música vive o Sónar, apesar da vanguarda electrónica ser o fio condutor. Os festivaleiros podem participar em workshops, assistir a palestras e a demonstrações de realidade virtual. O objectivo é aliar criatividade, tecnologia, inovação e negócios num ambiente descontraído e inspirador para os amantes da cultura digital.

Um dos eventos em destaque é o “famous wonder.land”, uma das obras de realidade virtual seleccionadas para o Festival de Cinema de Cannes. A peça de 4 minutos, inspirada no famoso clássico “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, promete empurrar os espectadores pela toca do coelho. A experiência é inspirada no musical criado por Damon Albarn, vocalista dos Blur, e esteve em exibição no UK National Theater. Munidos com headset, quem experimentar esta alucinação digital terá os seus horizontes expandidos no mundo psicadélico de Lewis Carroll reinventado por tecnologia de ponta.

Também haverá lugar para exposições e arte inovadora que têm a tecnologia como veículo principal. Um dos nomes mais prestigiados neste campo é Daito Manabe, que dará uma palestra no Sónar. O japonês, que torna o futuro presente, divide-se em muitas funções. É designer, programador, DJ, VJ, compositor, um homem dos sete ofícios desde que esses ofícios puxem os limites da inovação.

Os festivaleiros terão dificuldades em repartir-se pelo Science Park de Hong Kong, até porque a tecnologia ainda não chegou ao ponto de permitir ubiquidade. Apesar de ser só um dia, o Sónar tem um cartaz vasto, ecléctico e inovador que promete deixar água na boca para mais edições no futuro.

21 Fev 2017

Graffiti | Arte de rua dá passos tímidos em Macau

Macau é uma cidade limpa. É raro ver-se um graffiti, um tag, um stencil, ou qualquer outra manifestação de street art. Não há muitas pessoas a agitar latas de spray, ou a fazer colagens na rua. Daí, a relativa solidão de Pibg nas lides da arte de rua

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or todo o mundo se pintam murais, paredes vazias, vagões de comboios, bancos de autocarros, tags assinados em todo o lado. Há cidades onde não há um centímetro quadrado de parede que escape ao graffiti. A arte de rua, que anteriormente era considerada vandalismo, saiu da obscuridade e chegou às galerias através de nomes que ganharam notoriedade mundial como Banksy ou Obey. Hoje em dia o graffiti foi acolhido em algumas das cidades mais cosmopolitas e acolhedoras de espírito artístico. Porém, Macau mantém-se limpa, muros brancos, paragens de autocarro imaculadas, sem vestígio deste tipo de expressão que procura emprestar arte aos locais públicos. Neste domínio, Pat Lam é um dos poucos que agita latas de spray e arrisca emprestar alguma cor à cidade. O jovem de 22 anos assina como Pibg, sigla para “Pat is bombing graffiti”, uma frase que dispensa tradução.

Como acontece com muitos artistas, a vontade de criar nasceu em Pat a partir de uma noite de tédio. “Tinha 14 anos e estava aborrecido”, revela. Então, decidiu pegar no skate e sair à rua. Acabou por encontrar uns rapazes portugueses que estavam a fazer um graffiti numa parede. Não sabia muito bem o que era aquilo, mas agradou-lhe. Roubou uma das latas e a sua vida mudou. Além de ter feito amigos aprofundou a cultura de rua, que já tinha, juntando o elemento gráfico ao gosto pelo skate e breakdance.

No entanto, Pat não tem muita companhia nas lides das latas de spray numa cidade limpa de graffitis. “Aqui não há pessoas que se interessem por isto, e os miúdos que gostam não querem pintar, é mais uma moda”, revela. Algo que o entristece. O jovem que assina paredes como Pibg, gostaria que Macau tivesse uma cultura que valorizasse e incentivasse o graffiti, como acontece noutras cidades como, por exemplo, Lisboa.

Chamem a polícia

Mesmo grandes nomes da graffiti já tiveram os seus dias de fugir da polícia, de pintar em sítios escuros e inacessíveis, longe dos olhares da autoridades. É uma ocupação que exige alguma agilidade a escapar à lei, mas já foi mais assim. Pat Lam não foi excepção a esta regra, tendo arranjado sarilhos bem maiores que as suas possibilidades.

Na altura, com 16 anos, Pat pintava em todo o lado com um amigo oriundo do Interior da China. Uma noite meteram-se numa alhada de proporções difíceis de enfrentar. Estavam num edifício em construção, onde já costumavam pintar quando foram apanhados pela polícia. Foram agredidos e passaram dois dias na prisão. “Fomos a tribunal e deram-me uma multa impossível de pagar, só tinha 16 anos, e o meu amigo ficou proibido de voltar a entrar em Macau”.

O problema só se resolveu quando os pais de Pat chegaram a acordo com o construtor da obra. Como resultado, foi obrigado a limpar o edifício durante uma semana. Este foi o mais grave de muitos episódios que teve enquanto graffiter. Mas a situação melhorou nos últimos anos. “Hoje em dia ninguém se importa, posso desenhar de dia, as pessoas passam por mim e não dizem nada”, conta.

Riscos com mensagem

Pat é um amante dos animais e as relações que se estabelecem entre humanos e a bicharada, são para o graffiter uma fonte de inspiração. Daí, ter graffitis de corpos humanos com cabeças de raposa, pássaros, além dos tradicionais bombings – palavras escritas com o design mais tradicional da arte de rua.

Porém, hoje em dia, a maior fonte de inspiração é o seu filho, não só mudou-lhe a vida, como alterou a forma como pinta. Mas o significado mantém-se. “O amor é a minha inspiração, gosto de o pintar, a minha mensagem é muito aberta, não gosto de segredos, se aprecio alguém também gosto de o dizer”, explica o graffiter.

Seguindo esse mantra de abertura e comunhão, Pat Lam fala de Macau com alguma emoção. “Sinto-me em casa aqui, adoro as pessoas e a forma aberta como se relacionam”, conta. O artista revê-se no trato fácil, na forma orgânica como faz amigos de forma natural. “Quando ando pelas ruas sinto-me mesmo em casa”, confessa. Uma abertura que não sente noutras cidades que visitou.

Recentemente, Pat abriu um loja muito especial e multi-facetada ao lado da Igreja de São Francisco Xavier. Chama-se Roomage 30. O espaço conjuga um café, uma loja dedicada ao “lifestyle” e uma galeria. Pegando no mantra que lhe serve de inspiração, dos lucros feitos pela loja 30 por cento revertem para instituições de protecção animal e instituições que apoiam crianças desfavorecidas. Um amor que o inspira a pintar e que é devolvido.

20 Fev 2017

Le French May | Edição de 2017 dá os primeiros passos

A 25ª edição festival Le French May Arts já mexe, em consonância com o vigésimo aniversário da transferência de soberania de Hong Kong. O evento apresenta um cartaz ecléctico, que celebra o espírito francês num tour cultural do clássico ao contemporâneo. Os bilhetes já estão à venda, a preço de lançamento

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á se sente o burburinho da “fête française”. A um mês e meio do início do festival, o cartaz do Le French May Arts começa a compor-se e já tem uma data de abertura, 6 de Maio. Para já, os espectáculos anunciados variam entre a música clássica, ballet, jazz e hip-hop. O festival, que já teve eventos a passar por Macau, ainda não tem nada anunciado para o território. O HM contactou a organização do evento para tentar apurar se estará algo previsto para a RAEM, mas o resto do cartaz ainda está no segredo dos deuses.

O concerto de abertura é uma reformulação moderna de uma obra-prima perdida, com um twist moderno multimédia, acrescentando um espectáculo de luzes à música clássica. O programa, intitulado “O Nascimento do Rei Sol”, leva ao palco do Concert Hall do Centro Cultural de Hong Kong, no próximo dia 6 de Maio, o encanto da Paris do século XVII. Esta obra glorifica a ascensão de Luís XIV ao estatuto quase divino de Rei Sol, a clara representação do absolutismo europeu, numa altura em que a corte francesa endeusava os seus monarcas.

O concerto irá reproduzir parte da música, quase quatro séculos depois, numa adaptação da Ensemble Correspondances dirigida artisticamente pelo maestro Sébastien Daucé, que reconstruiu a obra depois de três anos de pesquisa. O espectáculo de luzes estará a cargo do artista francês Etienne Guiol, que procura transportar o espectador para o reinado de Luís XIV.

Outro dos eventos em destaque no destapar do véu do French May Festival é a estreia da Orquestra Filarmónica da Radio France em Hong Kong, sob a direcção de Mikko Franck. O concerto, agendado para 2 de Junho, trará ao palco da região vizinha a interpretação da famosa evocação de “O Mar”, de Claude Debussy, assim como o conto de fadas musical “A Minha Mãe Ganso”, de Ravel.

Do clássico ao hip-hop

O festival propõe noites de ballet a 11 e 12 de Maio, com o bailado “A Night with the Stars”. O espectáculo será uma homenagem a Paris, assim como aos artistas que se inspiraram na cidade das luzes. De Chopin a Proust, Petit a Carné, Petipa a Piaf, e de Bizet a Prévert. Todas as partes da performance têm uma íntima ligação com a capital francesa. O ballet será interpretado pelos bailarinos da companhia internacional Paris Ópera Ballet, que será abrilhantado pela participação do aclamado pianista Henri Banda.

Numa esfera diametralmente oposta da dança, o Le French May Festival oferece aos seus espectadores, nos dias 18 e 19 de Maio, um espectáculo de dança hip-hop. Com a direcção da principal coreógrafa francesa da especialidade, Marion Motin, a performance demonstra que este estilo musical não é, forçosamente, dominado pelos homens. O espectáculo, intitulado “In the Middle – Women in Hip-Hop”, será interpretado pelo conjunto Marion Motin and Swaggers. A francesa, que começou a sua formação na dança clássica, apaixonou-se pelo hip-hop e chegou mesmo a colaborar com artistas de renome como Madonna.

Mudando a agulha para outra vertente musical, o festival propõe, neste primeiro vislumbre, três noites de jazz à grande e à francesa, com a estreia asiática de três artistas de renome internacional.

No dia 12 de Maio sobe ao palco o Geraldine Laurent Quartet. A saxofonista será acompanhada por piano, baixo e bateria. O concerto será baseado no seu novo disco, “At Work”, uma colecção de músicas que sugere a essência livre do swing parisiense da década de 1930.

A senhora que se segue é Billie Holiday, a diva do jazz, que será homenageada no dia 13 de Maio no espectáculo “Billie Holiday, Passionately”, interpretado ao piano por Paul Lay.

O dia 14 de Maio será dedicado ao trompetista norte-americano Chet Baker, no concerto tributo “Love for Chet”, interpretado pelo Stephane Belmondo Trio.

Para já, estes são os nomes que se conhecem no cartaz do festival que celebra a cultura francesa. Quem se quiser antecipar à subida do preço dos bilhetes, pode usufruir de descontos se os comprar até ao dia 9 de Março. Quem perder a oportunidade, terá de se contentar com ingressos a preços normais. C’est la vie.

17 Fev 2017

João Miguel Barros: “Olhamos muito, mas vemos muito pouco”

Por achar que já tem idade para mostrar a fotografia que faz, João Miguel Barros decidiu avançar para um livro e uma exposição. “Entre o Olhar e a Alucinação” está na Creative Macau a partir do próximo dia 23. É uma experiência sobre um caminho que o advogado quer fazer: ir deixando os processos para trás e apostar na curadoria, trabalhar em fotografia, pensar na estética da representação

[dropcap]C[/dropcap]omo é que começa a fotografia?
Já começou há muitos anos. Talvez nunca tenha tido a coragem de começar pôr as fotografias cá fora. Neste momento, é uma especialização de uma preocupação cultural que já vem do meu tempo da faculdade quando, na altura, com a minha mulher, fizemos a revista SEMA. O gosto pela cultura é presente, tem-me acompanhado ao longo da vida, embora tenha sido muitas vezes distraído pelas questões do Direito, ou mais pelas obrigações profissionais do que pelo gosto do Direito. Nos últimos anos, em especial depois de ter saído do Ministério da Justiça, resolvi assumir que a cultura era – e é – uma área do sentir e do conhecimento demasiado vasta. Portanto, dentro da cultura em geral, identifiquei a área de que mais gosto: a fotografia. Sempre fiz fotografia. Antes da fotografia digital, lembro-me de uma viagem à Índia em que praticamente fiz turismo através da lente das máquinas fotográficas. Chegava ao final do dia completamente estoirado de carregar máquinas e lentes, coisa que neste momento já não faço, porque aperfeiçoei a lógica de funcionamento. Tenho uma câmara mais pequena, com uma lente de 35 mm fixa, e sou muito menos intrusivo na recolha das fotografias. É um gosto antigo, uma prática que tem sido mais ou menos descontinuada ao longo do tempo, mas tem sido uma constante e uma preocupação. Acho que já tenho idade suficiente para poder começar a pensar em pôr cá fora estas fotografias. Mas tem também uma outra componente: tenho o desejo de, um dia destes, começar a afastar-me mais da advocacia, e criar uma pequena galeria e uma pequena editora só para a fotografia a preto e branco. E pensei que um bom exercício seria fazer a experiência de como é que tudo isto funciona a partir de mim próprio.

Daí a exposição e o livro.
Peguei numa pequena verba que pus de lado e disse assim: em vez de ir apostar em alguém, vou apostar em mim. E acompanhei todo este processo, na produção, na escolha dos suportes e do material para a exposição, fiz uma série de ensaios de impressão das fotografias em suportes diferentes, emoldurei de formas diferentes, para tentar perceber qual era o melhor caminho a seguir. Todo o processo de produção do livro foi mais ou menos equivalente. O livro acaba por ser também um desafio, porque fazer livros com uma dimensão como esta, de 30 cm por 23 cm, é um risco, apesar de tudo, porque as fotografias aguentam ou não. Mas o tipo de fotografia que faço aguenta mais facilmente num livro com esta dimensão do que se fossem fotografias que andam à procura de uma perfeição técnica que eu não acho ideal. Portanto, tudo isto acabou por ser um exercício de como fazer, à custa de mim próprio.

“Entre o Olhar e a Alucinação”. Que conjunto de fotografias é este? São imagens que não andam à procura da perfeição. Como é que se chegou aqui?
Chegou-se de uma forma um bocadinho acidental, mas foi a partir de uma reflexão do que é e do que pode ser a fotografia. É uma conversa que é preciso desenvolver e aprofundar. A minha preocupação com a fotografia não é apenas tirá-las, trabalhá-las e eventualmente poder ou não expor, e poder ou não publicar. Neste momento, queria desenvolver uma outra vertente, à qual dou muita importância, que é fazer a curadoria de projectos e isso implica pensar na fotografia como arte e pensar nos projectos como um conceito. Neste momento tenho um projecto aprovado, para um ciclo de fotografia contemporânea chinesa, que vai realizar-se em Portugal com três dos mais importantes fotógrafos chineses da actualidade, pessoas cujo trabalho admiro muito. Tenho já a confirmação de que o Instituto Cultural de Macau também vai apoiar este ciclo de três exposições individuais, que virão ao território depois, em 2018 e 2019.

E quem são estes fotógrafos?
A primeira exposição é de Lu Nan, um fotógrafo por cujo trabalho tenho uma admiração imensa. Demorou-me quase um ano a chegar até ele. Vai ser inaugurada em Lisboa em Julho deste ano. Depois, em Outubro, vai haver uma outra exposição que é de Rong Rong, um homem muito conhecido na fotografia contemporânea chinesa, também produtor e divulgador cultural, tem um centro de arte contemporânea em Pequim. O terceiro é um fotógrafo menos conhecido que tem um projecto sobre o Tibete que demorou quase dez anos a conseguir. Yang Yankang tem fotografias lindíssimas sobre o lado mais filosófico e espiritual do Tibete. São três caminhos na fotografia contemporânea chinesa que quis explorar, sendo certo que havia uma quantidade de outras pessoas. E, voltando ao princípio, este livro nasce também de uma preocupação de tentar perceber qual é o caminho que quero explorar relativamente à fotografia.

Podemos dizer que este livro é um ensaio?
De algum modo, é uma experiência e que parte de um princípio que está contido naquela frase de Barthes, que é o mote da exposição, quando basicamente diz que as fotografias não precisam de ser chocantes, o que precisam é de fazer as pessoas pensar. Isto leva a que nós pensemos também como é que encaramos a fotografia como uma estética de representação. Se é uma estética de representação, significa que podemos olhar para uma fotografia de per si ou temos de seguir a corrente tradicional ou politicamente correcta dos trabalhos das pessoas mais conhecidas, que assentam na ideia do storytelling, de contar uma história? Está muito instalada a ideia de que as fotografias contam histórias e que os projectos fotográficos são verdadeiramente importantes, ou mais importantes, quando são capazes de contar histórias.

Como se a fotografia enquanto forma de arte tivesse de ter alguma coisa de fotojornalismo, no sentido da construção de uma narrativa.
Pode confundir-se dentro dessa via, sendo certo que o fotojornalismo tem uma representação da realidade que não permite a deformação dessa mesma realidade. O storytelling pode ser já uma alucinação da realidade e é legítima como forma de contar uma história. Com esta experiência, o que quis tentar foi perceber se é possível ou não juntar várias fotografias que nada têm que ver umas com as outras, apesar de, neste conjunto, haver vários subconjuntos que estão relacionados. O próprio título faz parte de um tríptico que vai estar apresentado na exposição. Há mais dois conjuntos, a que chamei “Night Vision I” e “Night Vision II”, que também são mini-séries de uma pequena história quase sem história. Mas o importante era testar a ideia se é, ou não válido, juntar fotografias que, de per si, possam ser uma história, mas uma história que não induza quem a vê num determinado percurso de interpretação. É engraçado olharmos para as fotografias e pensarmos que elas foram congeladas no tempo. Quando olhamos a realidade a passar dinâmica à nossa frente, certos momentos que são congelados têm um significado diferente do que teriam inseridos nessa sequência normal da visão.

Mas há sempre a possibilidade de se inventar uma narrativa…
Este livro tem uma intenção e tem muitas narrativas. Não é por acaso que as fotografias estão todas sequenciadas e que vão todas ao corte, sem nenhuma paginação especial que as tente influenciar. Não é por acaso que foram alinhadas desta maneira, e isso dá-lhes uma narrativa. Dou dois exemplos: há um contraste entre pessoas, situações e lugares; pelo meio coloco várias fotografias de escadas, que são simbolicamente a ideia de que nós, na vida, gostamos ou deixamos de gostar, vamos por um lado ou podemos ir por outro. O desafio que se coloca a quem vê o livro é saber se gosta deste caminho ou se não gosta, a escada está lá para subir e para descer. O livro acaba, também intencionalmente, com uma fotografia, sem nenhuma outra na página ao lado, de um rosto muito marcante de um homem velho, mas que tem um sinal de esperança, que é o facto de estar a rir. Este livro tem uma intenção – o modo como foi pensado – e pode ter muitas narrativas.

Quem for ver a exposição ou pegar no livro encontra várias imagens captadas no contexto em que vivemos. Para a escolha destas fotografias pesou o factor cidade ou isso não entrou no critério de escolha?
Não entrou. O meu critério de escolha foi o gosto pessoal, de adesão ou não a uma determinada fotografia, a um determinado contexto, ao modo como a fotografia é enquadrada na página ou na moldura.

Mas há uma relação com a cidade que acaba por transportar, até porque vive cá há muitos anos.
É inevitável. Dou comigo a pensar se o facto de vivermos aqui há tantos anos – de lidarmos tanto com estas pessoas, com estas situações, as cozinhas mal-arranjadas, os ambientes às vezes muito hostis – também não faz com que não tenha já capacidade de olhar. E isto é uma coisa que me preocupa. Por isso é, quando olho para Macau como lugar para fazer fotografia ou para registar momentos, tenho sempre um certo medo de não ser capaz de olhar da forma correcta, porque já nada me surpreende. E quando tiramos uma fotografia, do mesmo modo como queremos que essa fotografia surpreenda – como diz Barthes, que faça pensar –, também temos de ser capazes de nos podermos surpreender com aquele momento que estamos a registar. Confesso que, por uma certa saturação em relação à cidade, por já estar a viver em Macau desde 1987, sou capaz de já não ter bem essa capacidade.

Mas a lente, ainda assim, ajuda ao enquadramento, ao exercício do foco sobre algo que a olho nu nos pode escapar.
É a tal ideia de que uma fotografia congelada no tempo pode ter uma leitura que é completamente diferente dessa fotografia inserida num movimento real em que as coisas acontecem. As máquinas fotográficas são formas de seleccionar a realidade, já por si, e eu em cima disso ainda agravo a situação, porque é raro o caso em que não faço um crop da fotografia. Gosto de fazer crops das fotografias – tenho amigos que dizem que isto é desvirtuar a realidade. Mas a máquina já desvirtua a realidade, porque vai só buscar um bocadinho. Os lugares são relativamente importantes no contexto deste projecto, sendo certo que, muitas vezes, uma pessoa sente-se mais motivada para dirigir a máquina para sítios que são uma surpresa do que propriamente para locais que vemos todos os dias e que já não temos capacidade de ver. Realmente, há uma grande diferença entre olhar e ver, e este é o problema dos nossos dias, é o problema da nossa civilização: olhamos muito, mas vemos muito pouco. A fotografia, congelando momentos que, para nós, são significativos, é uma forma de ajudar a ver determinado tipo de realidades. Olhamos para algumas fotografias, como as que estão aqui [no livro], de pessoas. E é legítimo perguntar o que é que esta pessoa estava a fazer antes e o que estava a fazer a seguir? Esta pessoa está neste contexto, que não se percebe muito bem, porque a fotografia está muito cropada, não tem propriamente todo o seu ambiente à volta, mas qual era o contexto em que se estava a mover quando foi fotografada? Há outras questões mais teóricas que têm que ver com fotografia.

A questão da estética da representação.
É o que procuro, e também tentar perceber como é que consigo apurá-la, sendo certo que há muitas estéticas de muitas representações. Uma coisa sei que não quero, que é a técnica da representação, que é uma coisa completamente diferente: aquela fotografia muito bonita, tecnicamente supercompetente. Há um fotógrafo que tem um trabalho admirável, num campo completamente diferente, o Erwin Olaf, que teve uma exposição aqui na Casa Garden. É um fotógrafo fabuloso, que vem da fotografia de moda. Todas as fotografias que faz são encenadas, são pensadas ao milímetro. Um dia, contou-me que há fotografias, que eu pensava que o ambiente natural era um hotel onde punha os seus figurantes, em que os cenários são todos construídos por ele. Essas fotografias têm obviamente uma história para ele, mas são fotografias tecnicamente representadas, há uma representação técnica da realidade, evidentemente com muita criatividade. Não procuro nada disso, porque acho que os critérios de avaliação das fotografias nos tempos que correm já não passam pelo lado técnico, porque a fotografia deixa de ser um meio para passar a ser um fim. Quando a fotografia deixa de ser tecnicamente um meio para mostrar qualquer coisa – que passa a ser acessória, porque o meio é que é importante –, neste caso já temos a possibilidade de olhar para a fotografia e achar que os meios passem a ser acessórios.

Onde fica a advocacia, no meio disto tudo?
Como não sou rico, tenho de trabalhar, tenho de fazer advocacia. Mas já tenho 58 anos e acho que já tenho o direito de começar a fazer menos advocacia e a fazer mais aquilo que me realiza pessoalmente. Já estou na advocacia há muitos anos, já passei por processos complicados e já tenho a minha dose que chegue de descrença relativamente ao sistema. E em Macau é fácil ter-se descrenças em relação ao sistema. Entretanto, tenho tido oportunidades na vida, como foi a última experiência que tive em Portugal no Ministério da Justiça, de ser parte activa em projectos de reforma significativos, como foi a questão da reforma do sistema judiciário. Mas também isso me deixa, apesar de tudo, um certo amargo de boca. Não sei como explicar. Sou muito devotado ao serviço público no sentido de me dar a ele, passe o auto-elogio, com alguma generosidade. Isso tem-me prejudicado. Aconteceu no princípio dos anos 2000, quando fui para a Ordem dos Advogados, e depois quando fui para o Ministério da Justiça, quando estourei completamente a possibilidade de fazer advocacia em Portugal porque me dediquei a um serviço público. Mas realmente, o sistema judiciário, tal e qual como está montado, é muito conflituante de interesses e, às tantas, é uma máquina trituradora muito complicada. Quando verdadeiramente me consigo libertar, e fugir um bocadinho, é ao ir por este caminho da fotografia, porque também se não o tivesse era capaz de morrer mais cedo e muito mais frustrado. Acho que tenho de dar continuidade a este projecto, tentando avançar para outro livro, dentro da mesma linha, possivelmente. E avançar também nos trabalhos de curadoria, porque há necessidade de darmos a conhecer muito trabalho que está a ser feito por aí. Na Ásia – na China e no Japão, que é uma fotografia que me tem influenciado muito –, temos gente a fazer fotografias de uma forma absolutamente deslumbrante e magnífica.


O desconcerto

[dropcap]H[/dropcap]á um chão, um chão de relva, e há um corpo estendido, aconchegado, num agasalho que inclui um capuz. Está ali um olhar que fixa a lente e que não se percebe o que diz. É um olhar enigmático, entre a surpresa, a solidão, o sono, o abandono. Ou talvez apenas a preguiça, o embalo, a fruição de qualquer coisa que aquela lente não nos quis mostrar. Não sei de quem são estes olhos, onde estavam eles deitados, se quiseram ali estar ou se ficaram assim por falta de opção. A imagem não me diz nada mais sobre este olhar. Viro a página e o resto da história não está lá, porque não é para estar.

Este livro é feito de imagens soltas que se entrelaçam, se se tiverem de relacionar. Às tantas, não é preciso andarmos constantemente à procura de uma história, nós que vivemos com pressa para chegar ao fim de qualquer coisa. Às tantas, é este o princípio esquecido da fotografia: o que há para ver é o que está naquele rectângulo, o que parou no tempo daquele modo, naquele momento, e o resto nada interessa. Às tantas, é só assim, tão simples e, sim, tão complicado, porque aquele olhar fixou-me também.

Viro a página e há outra história qualquer. E mais outra. E há umas escadas. E outras, tantas escadas para subir e descer, uma vertigem de imagens que são densas, escuras, neste livro há muita noite, pouco dia, talvez não pudesse ser de outra maneira. Chego ao fim e há um sorriso, um sorriso velho e desdentado, um sorriso sincero e malandro, como que a ler o que me vai na alma. O desconcerto. Este livro é um desconcerto. Não podia ser de outra maneira.

O livro é de João Miguel Barros, advogado, homem há muito ligado às artes, às letras, às publicações. O nome escreve-se nos jornais sobretudo por causa de outras causas, de outras palavras, do mundo mais encenado que cabe nos códigos e nas leis, nos órgãos de investigação criminal e nos tribunais, nas críticas e no cansaço, nos culpados e nos inocentes. Desta vez, o nome escreve-se nos jornais porque não há história, são muitas histórias, e não há palavras, só imagens.

Construímos mundos e é neles que nos movimentamos, num entediante exercício ao qual demos o nome de quotidiano. Andamos sempre à procura de uma história, nós que vivemos com pressa para chegar ao fim do texto, ao fim do livro, ao fim da rua. “Entre o Olhar e a Alucinação” é um convite a uma paragem, é uma descida vertiginosa ou uma escalada penosa, é um desafio para uma certa solidão. É um desconcerto, daqueles que fazem bem no meio do ruído dos dias. E depois são os olhos que se fixam, porque aquele olhar fixou-me também.

16 Fev 2017

Desporto | Projecto Mana Vida associa exercício a solidariedade social

Cíntia e Guilherme Leite Martins há muito que faziam desporto para se manterem em forma, mas decidiram começar um projecto diferente. Parte dos ganhos obtidos com as aulas de fitness será destinada a instituições de solidariedade, sendo que os participantes também podem fazer os seus contributos a troco de aulas. O lançamento oficial é este domingo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mais recente projecto de Cíntia e Guilherme Leite Martins visa a prática do exercício físico a pensar nas necessidades das organizações sem fins lucrativos. Com o Mana Vida, há corridas e caminhadas em grupo, ou aulas de fitness, em que parte dos fundos obtidos em cada sessão será destinada a instituições de solidariedade social. Os participantes também podem contribuir com alguma valência, a troco de aulas. As sessões têm decorrido nos trilhos de Coloane, no empreendimento One Oasis ou ainda no Parque Central da Taipa.

“O lema condutor do Mana Vida é o de encorajar as pessoas a terem uma vida mais saudável e a promoverem um sentimento de solidariedade. As pessoas, ao participarem nas nossas actividades e ao contribuírem para a causa do projecto, estão igualmente a construir uma comunidade mais forte e benevolente”, explicaram os responsáveis do projecto ao HM.

A primeira acção do Mana Vida será a oferta de ténis a crianças residentes da Associação do Berço da Boa Esperança, uma associação sem fins lucrativos que tem à sua responsabilidade dois lares residenciais para menores.

“Traçámos como primeiro objectivo a compra de ténis de desporto para jovens e crianças constituintes de uma organização local, com os recursos obtidos através das actividades fornecidas pelo movimento. Deste modo, o Mana Vida funciona como se fosse uma plataforma que procura fazer a ligação entre aquele que pretende fazer exercício físico e simultaneamente ajudar outras pessoas.”

O lançamento oficial do Mana Vida acontece este domingo, na Pousada de Coloane. O evento começa às 9h e prossegue até às 14h, com a realização de diversas actividades desportivas. Segue-se um pequeno-almoço, sem esquecer algumas “conversas descontraídas” sobre a temática da vida saudável.

Treinar em grupo

Cíntia e Guilherme Leite Martins pretendem atrair pessoas para treinar em conjunto. “Sabemos que não é fácil uma pessoa levantar-se e ir correr ou andar sozinha, portanto, criámos grupos e pontos de encontro para que a pessoa se sinta motivada e encontre alguém para fazer o mesmo. A parte engraçada disto é que nós procuramos sempre maneiras de incentivar um participante a formar um grupo que seja conveniente para ele e para os amigos. Existindo essa adesão, adicionamos a actividade no nosso calendário.”

Uma das opções de treino disponíveis é “You&Me”, cujas aulas têm como princípio “desenvolver a proficiência, social e emocional, a confiança e auto-estima, entre pais e filhos”.

Há ainda as opções de Body Sweat e Kickn TRX, que são “treinos funcionais realizados ao ar livre”. “São treinos que se baseiam em movimentos naturais do ser humano, como pular, correr, puxar, agachar, girar e empurrar. O praticante ganha força, equilíbrio, flexibilidade, condicionamento, resistência e agilidade”, explicam Guilherme e Cíntia.

Já a modalidade “Stroller Mania” é uma forma de exercício que pode ser feita com adultos e os carrinhos de bebé. “É algo que já se faz pelo mundo e tem o objectivo de recuperar a actividade física das mães, sem terem que comprometer o seu tempo com os filhos. As mães são ainda apresentadas a uma comunidade com um estilo de vida semelhante.”

Existe ainda a opção pelas modalidades gratuitas como corridas ou a chamada “power walk” [caminhada], em zonas como a marginal da Taipa e os diversos trilhos existentes. “Estas últimas actividades têm como objectivo incentivar o indivíduo a sair do sofá [ou da cama], conhecer lugares desconhecidos no território, aproveitar a natureza local e reforçar o espírito de comunidade.”

À procura de apoios

Com um plano semanal de aulas a decorrer, e com alguns participantes fixos, Cíntia e Guilherme Leite Martins confessam, no entanto, que tem sido difícil encontrar colaboradores. “O Mana Vida funciona maioritariamente à base da doação de tempo das pessoas e de pessoas que nos têm ajudado ao nível logístico. O processo de cativar colaborações tem-se revelado ligeiramente lento, pois leva tempo para alguém conseguir compreender como este mecanismo de solidariedade funciona.”

Foi daí que surgiu a ideia de implementar a “troca de serviços”. “Alguém que queira colaborar connosco poderá trocar os seus serviços por uma das nossas aulas. Isto capacita a pessoa a dar-se conta de que o seu talento tem importância e que também está a contribuir para a vida dos outros.”

Neste momento, o Mana Vida precisa de “treinadores qualificados, tradutores, agentes de social media, fotógrafos, produtores de som e imagem, patrocinadores e pessoas positivas interessadas em ajudar com novas ideias”.

É certo que o Mana Vida visa estabelecer laços em Macau, mas a ideia é também ir mais além. “A longo prazo, estamos a traçar um plano para lançar este projecto para fora de Macau, pois consideramos que o modelo que estamos a criar é extensível a outros locais do mundo. O querer ajudar não pode ter limites, o importante é manter-se verdadeiro e focado ao propósito deste esforço”, rematam os criadores da iniciativa.

15 Fev 2017

António Conceição Júnior: “Sou religioso no sentido mais livre do termo”

Faz este ano quatro décadas de um percurso criativo que vai da moda à pintura, passando pela fotografia. António Conceição Júnior reflecte sobre o caminho andado e o que está para vir

[dropcap]4[/dropcap]0 anos de carreira, grande parte deles passados em Macau, embora tenha conhecido algumas “aventuras” no estrangeiro. Que diferenças fundamentais encontrou e de que modo podem elas ter um determinado papel na produção artística?
Não chamaria de carreira ao meu percurso, mas antes de vivências. Macau foi fundamental para a minha consolidação como criativo. Olhando para trás concluo que fui sobretudo criativo, quer no Museu, quer nas várias áreas de design em que me envolvi. Macau proporcionou-me momentos excelentes, enquanto as minhas experiências estrangeiras em Portugal, quase empre associadas a Macau – na grande exposição “Macau 400 Anos de Oriente” inserida na Quinzena de Macau na Fundação Gulbenkian em 1980, na Coordenação das acções de Lançamento da Missão de Macau em Lisboa em 1990, entre as quais realizei a minha primeira apresentação na área da Moda, e depois na Europália em 1991 foram muito enriquecedoras, porque sempre que me foi dada carta branca, liderando projectos ou acções, estes correram muito bem. Retribuí sempre com o máximo esforço e dedicação à confiança em mim depositada. Estas vivências vieram reforçar uma sensação de confiança no modo como liderei esses projectos. Comecei muito cedo, aos 27 anos a propôr ideias e liderar projectos e quando não sou eu, confesso que sinto alguma dificuldade em me integrar porque sempre tive ideias próprias.

Nos anos 80, refundou o Museu Luís de Camões e lançou o projecto do Complexo Cultural, que não chegou a avançar. Quer explicar a ideia central desse projecto? E será que hoje faria sentido criar uma instituição desse tipo?
Um esclarecimento: O Museu Luís de Camões foi criado em 1960. Sucedi ao seu primeiro director, Luís Gonzaga Gomes, em 1978, mas fui o primeiro a tempo inteiro. Tendo regressado a Macau em 1977, o então Governador Garcia Leandro contactou-me a pedir que analisasse o panorama cultural de Macau e procurasse uma forma de divulgar culturalmente o território. Lembro que, nesses tempos, Macau não dispunha sequer de uma galeria de exposições. A resposta, após a ponderação necessária, foi que eram precisos instrumentos e que um Centro Cultural era indispensável para uma abordagem abrangente, integradora, supra-linguística, da questão cultural. O projecto ficou latente e a minha energia canalizou-se para a reformulação do próprio Museu, enquanto suporte e espaço para os artistas plásticos de Macau. Foi nessa altura que foram assinados os primeiros acordos de cooperação com o Hong Kong Arts Centre e com a Fundação Calouste Gulbenkian. Mais tarde, o Governador Carlos Melancia nomeou-me seu assessor para a cultura e convidou-me para dar forma a um Centro Cultural. Estávamos em 1988 e, nessa altura, mudei o conceito para Complexo Cultural, tendo como base aquilo que hoje se chama de “sustentabilidade”. Incluía um hotel, um centro de convenções e uma Escola de Artes, aberta não apenas a Macau mas, após estudo feito, também ao Sudeste Asiático, o que permitiria não apenas uma interactividade entre os diversos componentes do Complexo Cultural como um intercâmbio entre os alunos de diferentes origens. Por volta de 2008, fui encontrar em Xangai um Centro Cultural com um projecto idêntico, o que mais consolidou a minha convicção de que estava certo. Hoje faria sentido um Complexo Cultural se não existisse o actual Centro Cultural. Tal como tive ocasião de dizer ao último Governador de Macau, que achou então o meu projecto demasiado ambicioso, não se faz um Centro Cultural para menos de 50 anos…

Ao longo destes anos ressalta, nos numerosos artigos que escreveu, o conceito de cidadania, a que parece atribuir uma importância singular. O que é para si a cidadania e de que modo a vivência de Macau serviu para apurar esse conceito?
Tive consciência de que Macau tinha a dimensão de uma cidade-piloto onde se poderiam realizar coisas fantásticas, quando regressei e dei início ao meu trabalho no Museu. Estávamos sob administração portuguesa, sendo a maioria da população chinesa, com muita gente de passagem, oriunda quer de Portugal quer da China. A consciência de pertença à cidade era algo que importava reforçar, fixar. São de então os primeiros projectos de classificação do património, a que o arquitecto Francisco Figueira tanto se dedicou e com quem tive o prazer de colaborar, são dessa altura as primeiras campanhas de limpeza da cidade (por acaso é meu o logo e o slogan “cidade nossa, cidade limpa”que ainda hoje usamos), são de então os primeiros encontros de artistas, o aparecimento dos primeiros jornais com artigos de reflexão sobre a cidade, etc, etc. Com o tempo, e sobretudo na década de 1990, o conceito de cidadania impunha-se com mais urgência e importância, no sentido de assumpção de todos os direitos e deveres de e para com a cidade. Era fundamental reflectir sobre a consciência cívica e o papel que cada um tinha a desempenhar neste processo. Eu, ligado ao então Leal Senado e responsável pela política cultural da Câmara, estava intrinsecamente ligado à vida da urbe, encontrando na Cultura a resposta para a Cidadania.

O que acha do actual momento cultural da cidade? Somos mesmo uma Cidade de Cultura ou não passa de um slogan?
Todas as cidades são portadoras de cultura. O slogan dos anos 1990 é uma redundância. A cidade de hoje é culturalmente mais dinâmica, está dotada de mais infra-estruturas. Há cerca de 25 museus, o Centro Cultural tem uma actividade bastante intensa no que toca a espectáculos e há mais exposições. Abriu uma Cinemateca. Abriram bibliotecas em diversos pontos da cidade facilitando o acesso à leitura. Há lançamentos de livros, há debates, há Fundações que têm uma programação intensiva, há jornais e revistas como nunca houve.

A sociedade civil tem feito alguns eventos de muito interesse como a “Rota das Letras”, “This is My City”, o Albergue tem feito também inúmeras exposições. Questiono, porém, qual a fatia da população que a tudo isto acede e que identifica como seu, como necessário, como imprescindível. Está a ser feito um esforço para a elevação do nível cultural da população, mas penso estarmos ainda longe do desejável…

E na comunidade macaense, além do minchi e do chupa-ovo, o que se pode passar?
Sinceramente, não sei dizer qual será o seu futuro. Penso que, mesmo sendo pequena, deve ser considerada indispensável. A comunidade tem mostrado capacidade de se organizar em diferentes Associações, o que para mim revela a sua vitalidade, seja para a “comisaina” ou para outros fins que a agrega enquanto grupo identitário. A autenticidade deste sentir, pensar e estar na cidade enriquece o tecido social. Não nos esqueçamos de que, a meu ver, a comunidade macaense, de que orgulhosamente faço parte, é uma nação de indivíduos com histórias genéticas todas diferentes, mas unidas pela ligação umbilical a Macau.

Tem espraiado a sua criatividade por áreas diversas, da banda desenhada à fotografia, da pintura à moda, passando pelo design de espadas, entre outros. Existe alguma área em que se sinta mais à vontade ou a cada momento experimenta uma inclinação específica?
Costumo dizer que tenho as minhas “gavetas” abertas. Cada uma delas corresponde a uma área. Atrevo-me a pensar que me sinto à vontade em todas essas áreas.

Nos anos 90, muitos pensaram que, devido à sua óbvia qualidade e originalidade, a sua marca de moda acabaria por se impor a nível mundial, mas isso não chegou a acontecer. Por quê?
Abri a “gaveta da moda” no início dos anos 90, a convite do Governador Melancia, representando em Lisboa uma das potencialidades que Macau poderia oferecer. Participei na Europália, na Bélgica, tendo sido convidado para ficar pela Europa a desenvolver um projecto. Razões pessoais e familiares levaram-me a ficar por aqui, mas após este arranque demorou apenas 4 anos até ser convidado por Pequim para me apresentar com um stand e uma passagem de modelos. Levei comigo uma importante empresa portuguesa que fabricou a colecção que dei o nome “Mãe China”. Seguiu-se a minha nomeação honorífica para Consultor Honorário de Moda de Pequim e conversações nas quais reconheciam A.CEJUNIOR como um nome para a China e, com o tempo, para o mundo, oferecendo e solicitando condições que considerei estupendas para ambas as partes. Para grande espanto meu, a empresa portuguesa minha parceira recusou… Isto insere-se bem nas (des)”aventuras” que já referi. 

Por que razão se deixou enredar pela arte do trajo?
Comecei a interessar-me pelo vestuário por uma razão muito prática e particular. Quando me tornei director do Museu precisava de andar engravatado e não havia pronto-a-vestir em Macau, só alfaiates. Então, passei a desenhar as proporções dos meus fatos para um alfaiate vizinho mos confeccionar. Uma das minhas características, quando me interesso por uma coisa, é ir até ao fundo do assunto. Desmanchei casacos comprados em Portugal para ver e perceber como eram feitos. E foi uma coisa que se foi prolongando e o desenho de moda passou a surgir na ponta do lápis, aliado a leituras, referências e memórias.

De algum modo, as suas criações refaziam ou situavam-se em pontos da antiga Rota da Seda, uma ideia que o actual governo da RPC deseja reactivar. Já pensou apresentar uma proposta no sentido de dar o seu contributo para esse objectivo?
Sim, tive uma colecção chamada “Rota do Oriente”, outra chamada “Samarkanda”, e ainda outra chamada “Mandhala no Topo do Mundo”. Recordo-me que no tempo do Governador Carlos Melancia, após o êxito da minha apresentação em Portugal, em 1990, o eng. Melancia defendia a ideia de que o Governo deveria apoiar-me para lançar o nome de Macau. Na altura eu era o único. Agora isso não acontece, mas a minha Rota da Seda mantém-se, agora mais amadurecida. Curioso é que, como já contei, a apresentação em Pequim foi coroada de êxito e a própria R.P. da China me quis aproveitar.

Ou seja, admite regressar à moda ou isso são águas passadas?
Hoje em dia há muitos jovens, muitos mesmo. Todos têm sonhos. É evidente que sonhar não é um exclusivo dos jovens, mas no contexto actual não sei. A minha preocupação é sobretudo que os jovens que se querem lançar por estes caminhos se municiem com suficiente bagagem cultural que é o verdadeiro alimento para a criatividade.

Passemos à fotografia. No seu trabalho, em geral, existe uma coerência que se liga à questão do detalhe, do pormenor, como se destacasse algo do seu contexto, exibindo esse algo desconectado, em si mesmo, ou nos dissesse que há mundos dentro de mundos. Por quê este fascínio, ou se quiser, obsessão?
Não é obsessão. Fascínio admito que sim. Não encontro uma explicação lógica senão o facto de ter desenvolvido uma forma peculiar de olhar a realidade, talvez em busca de uma transcendência indecifrável. Algo que me toque plásticamente mas não só. Algo que não seja vulgar nem dramático mas que assuma uma força telúrica ou espiritual sob a forma de uma beleza plástica que não requeira explicações da minha parte.

Nas suas fotografias, parece existir uma busca de beleza primeva, pré-humana, quase divina ou simulatória da presença de Deus. Considera-se religioso? Identifica-se com algum credo actual?
Essa busca não é voluntária. Aliás ao termo busca eu preferia “encontros”. Diria que aquele que mais importância teve para mim foi “Primum Lumen”, um encontro com a luz a manifestar-se de maneiras extremamente belas e cujos registos fotográficos mostram essa beleza. Sou religioso no sentido mais livre do termo. Identifico-me com esta frase verdadeiramente primeva: “como não lhe conheço o nome, chamo-lhe Tao. Sem um nome deve ser a Mãe de todas as coisas, com um nome é o antepassado dos deuses”.

Como lê os recentes desenvolvimentos da política internacional, nos EUA e na Europa? E qual o papel da China?
Trump representa uma América desconhecida para mim e, também, um lado mais conhecido, que é o do espectáculo. A Europa por ser lado, debate-se com um dilema que há 20 anos discutia com o prof. Roberto Carneiro: qual seria o futuro de uma Europa com a migração que já se fazia sentir então, sendo a indagação feita sobre o que seriam os produtos de casamentos entre cristãos e muçulmanos. Hoje as coisas agudizaram-se profundamente. Há 20 anos não havia o DAESH. Por seu lado, tenho para mim que a China tem agido de uma forma sábia, aproveitando os vácuos criados pela nova administração americana e manifestando-se também como uma potência confiável no jogo de forças onde Putin também parece ter-se intrometido, nesta grande confusão que é o mundo actual.

40 anos depois, valeu a pena ou a vida é, fundamentalmente, uma grande chatice?
Diria que valeu e vale a pena. Tenho-me como um homem novo.

14 Fev 2017