立春 Li Chun – Princípio da Primavera

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, 3 de Fevereiro celebra-se na China a Festa do Princípio da Primavera e inicia-se o ano do Galo Solitário. Li Chun, ou Princípio da Primavera, comemora-se normalmente a 4 de Fevereiro, podendo por vezes ocorrer também no dia 3, ou 5, se houver ajustamentos e é o primeiro dos vinte e quatro termos em que está dividido o Calendário Solar do Agricultor. Com datas fixas, os termos estão directamente ligados à eclíptica do Sol e são indicadores das estações do ano, por isso conectados com a agricultura.

Foi durante a dinastia Han (206 a.n.E.-200) que se resolveu celebrar no dia 4 de Fevereiro, o Princípio da Primavera, mas após muitas reformas acordou-se comemorar no primeiro dia do primeiro mês lunar também essa festividade, cujas datas são muito próximas uma da outra. O Ano Novo e o início da Primavera traduzem uma renovação e a combinação entre o calendário solar e o lunar, conhecido como calendário lunisolar, passou a ser usado na China. Combina os doze ramos terrestres com os dez caules celestes e cria um ciclo de 60 anos, que se vai repetindo.

Em tempos antigos, quando a China tinha uma economia baseada na agricultura, esta festividade durava um mês e celebrava o final do Inverno, a estação de interregno para os agricultores e o início da Primavera, quando de novo a terra começava a ser trabalhada. Agora assiste-se a grandes festejos no primeiro dia da primeira Lua e não no Princípio da Primavera, apesar dos mestres da geomancia colocarem no Li Chun o dia da mudança para a regência do signo do ano.

Este ano lunar chinês, que começou a 28 de Janeiro de 2017 e terminará a 15 de Fevereiro de 2018, vai ter treze meses, havendo um duplo mês, o da sexta Lua, sendo o primeiro denominado intercalar, ou adicional e o segundo sexto mês, chamado natural. Nele se celebrará por duas vezes a Festa do Princípio da Primavera, por isso auspicioso para o nascimento de crianças. Quando num ano lunar não se celebra nenhuma Festa da Primavera, isto é, quando o Ano Novo Lunar começa após o dia 4 de Fevereiro e no ano seguinte termina antes dessa data, diz-se ser um ano cego.

O calendário solar do Agricultor

Lichun, Princípio da Primavera, é a primeira grande festa solar e marca o início do ano agrícola, após um período de hibernação, quando a Terra desperta para um novo ciclo de vida. É o primeiro dos 24 termos solares de um sistema elaborado através dos tempos, a partir das observações feitas por astrónomos. Entre estes termos estão os dois solstícios, os primeiros a ser estabelecidos e depois, os dois equinócios. Pesquisas em torno do movimento aparente do Sol foram por isso necessárias para elaborar os calendários, sendo feitas de duas formas diferentes. Uma, pela medição da sombra do gnómon (instrumento que marca a altura do Sol pela direcção e comprimento da sombra de uma vara) ao meio-dia, assentando em tal medição o anunciar das estações e o determinar do ano trópico. A outra maneira era o estudo da variação aparente da velocidade anual do Sol e a averiguação do valor anual da alteração do ponto do solstício do Inverno observando a posição do Sol contra o céu, com a ajuda de instrumentos astronómicos. Anunciar a data precisa das estações era impossível sem uma identificação exacta da altura em que acontecia o solstício de Inverno. Mas já em 2317 a.n.E., durante o reinado do Imperador Yao, o ano tinha 365,25 dias e em 1100 a.n.E., mediante observações do Sol estabeleceu-se com uma aproximada exactidão a posição do solstício de Inverno. Estava encontrado o ano trópico, o período de tempo que transcorre desde o começo de uma Primavera, à outra, mostrando as mudanças sazonais anuais. Mais tarde calculou-se o equinócio da Primavera, que chega após 81 dias do solstício de Inverno. Os 24 termos solares gradualmente reconhecidos por volta do século III a.n.E., foram compilados por Lu Shi Chun Qiu, mas foi na enciclopédia Huai Nan Zi, escrita em 120 a.n.E., que todos os termos ficaram mencionados. Eis a lista dos 24 termos:

Nome chinês:   Tradução: Início:

   Lichun Princípio da Primavera   4 de Fevereiro

   Yushui Água da chuva 19 de Fevereiro

   Jingzhe O acordar dos insectos   6 de Março

   Chunfen Equinócio da Primavera 21 de Março

   Qingming Puro brilho   5 de Abril

   Guyu Chuva para as sementes 20 de Abril

   Lixia Princípio do Verão   6 de Maio

   Xiaoman Despontar da semente 21 de Maio

   Mangzhong A semente na espiga   6 de Junho

   Xiazhi Solstício de Verão 22 de Junho

   Xiaoshu Suave calor   7 de Julho

   Dashu Maior calor 23 de Julho

   Liqiu Princípio do Outono   8 de Agosto

   Chushu Limite de calor 23 de Agosto

   Bailu Branco orvalho   8 de Setembro

   Qiufen Equinócio do Outono 23 de Setembro

   Hanlu Frio orvalho   9 de Outubro

   Shuangjiang Queda de geada 24 de Outubro

   Lidong Princípio do Inverno   8 de Novembro

   Xiaoxue Leve nevão 23 de Novembro

   Daxue Grande nevão   7 de Dezembro

   Dongzhi Solstício de Inverno 22 de Dezembro

   Xiaohan Pequeno frio   6 de Janeiro

   Dahan Grande frio 21 de Janeiro

Dos 24 termos solares, doze são chamados “jieqi“, enquanto os restantes se denominam “zhongqi“. Xiaohan, o 1º do grupo “jieqi” chega trinta dias antes do 2º, Lichun, o Princípio da Primavera. O intervalo entre cada um dos outros dez desta série é idêntico. O solstício de Inverno, Dongzhi, inicia a série “zhongqi” dispondo-se da mesma forma. Quando um mês que está para ocorrer não contém nenhum termo das séries do segundo grupo “zhonqi” esse mês será considerado um mês intercalar. Estes meses seguem-se ao mês a que estão associados.

Os oito termos – os equinócios, os solstícios e o início de cada uma das quatro estações, são mais importantes que os outros, havendo um intervalo de mais ou menos 46 dias entre cada um deles. Este sistema, único no mundo, sugere o nível a que chegou a ciência da China antiga.

Deixamos aqui agora votos de um bom Ano Novo – Kung Hei Fat Choi (Próspero Ano Novo), que só deve ser dito após se iniciar o novo ano lunar e Sun Tan Kin Hong (Boa Saúde), em mandarim: Gong Xi Fa Cai e Shen ti Jian Kang.

3 Fev 2017

O Galo

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]credita-se ser esta ave originária da Índia, onde foi domesticada e a sua presença na China é pelo menos de 1400 a.n.E., pois aparece já registado nos ossos gravados da dinastia Shang.

Em chinês, (公鸡) GongJi significa Macho Galo, já que Ji () serve para designar as aves da espécie Gallus gallus.

“O galo é um dos signos do zodíaco e um animal auspicioso por excelência porque se relaciona com o nascer do Sol, e com o princípio yang pelo que, de acordo com as concepções tauistas, se crê ter o poder de afastar os maus espíritos. É ainda usado como emblema de promoção social devido à sua crista vermelha ser em forma dos barretes de mandarim usados na China Imperial”, como refere Ana Maria Amaro. Segundo B. Videira Pires, “O galo é, no Ocidente e no Oriente, um arauto do sol, não apenas pelo seu canto alegre, golpeando a noite, mas ainda pela sua crista ou coroa afogueada. O galo é um demonífugo, pois às <almas do outro mundo>, que se crê vaguearem pelas sombras da noite, ele grita pelo dia, cada vez mais próximo, incute-lhes medo e espanta-as”.

No Daoismo é símbolo de fortuna e é um mensageiro dos deuses. Já para o Budismo o galo representa o desejo, que nesta religião é um dos três factores que envenenam a humanidade e a encaminha para o erro.

O caractere significa Galo, em mandarim Ji, é homófono de ‘bom augúrio’ (Ji Li, 吉利), de ‘esperto’ (Ji Ling, 机灵), assim como ‘com fome’ (Ji, ). Com o caractere encontram-se as expressões ‘não perder a oportunidade’ (JiBuKeShi, 机不可失) e mente brilhante (ShenJi-MiaoSuan, 神机妙算). Já ‘mulher que vende o corpo, prostituta’, tem o mesmo som e caractere (Ji, ).

Galo em cantonense é Kai e há uma série de expressões a ele ligado. Zhao Kai significa ‘perder a oportunidade e se a ‘pessoa for ansiosa’ diz-se Tan Kai; Tchan Kai refere-se a uma pessoa predisposta ao confronto. Tao Kai, roubar a galinha, significa retirar tempo ao que se tem de fazer; Zhap Sei Kai, conseguir algo muito barato. Ao valor a pagar inferior a cem junta-se no final o som Kai.

No português há uma série de expressões ligadas ao galo: ‘Sentir como um galo na capoeira’, significa estar confortável, mas há quem ‘cante de galo’ e ‘onde há galo, não canta a galinha’. ‘Outro galo cantaria’ significa, melhor teria corrido.

O Galo na mitologia

Uma antiga canção do grupo étnico Miao menciona o galo com a seguinte história: “Os quatro avôs Bod, Xongt, Qid e Dangt (Gao Bao, Gao Xiong, Gao Qie e Gao Dang) esculpiram pilares usando o ouro e prata. Com colunas de fumo como modelo, trabalharam eles doze dias e doze noites e fizeram doze enormes pilares para suporte do Céu, que foram erguidos por Fux Fangb (Fu Xi), ficando assim como suportes do Céu. Desde então Céu e Terra tornaram-se estáveis. Mas não havia Sol, Lua e estrelas. Então Bod, Xongt, Qid e Dangt fizeram fogueiras em três buracos e em três colinas, trabalharam por 12 dias e 12 noites e fundiram 12 sóis de ouro e 12 luas de prata tendo como modelo pedras furadas. Os sóis ficaram nomeados depois dos 12 Ramos Terrestres, de acordo com a ordem da sua fundição. Lix Gongb e Xongx Tinb tentaram colocar os sóis no Céu, mas ambos falharam. Mais tarde, Bangx Yangx Bongl Yongl finalmente conseguiu colocar os sóis no Céu, mas esqueceu-se de os informar sobre as ordens de saída. Por isso, Wangx Senb foi ao Céu para as transmitir. Vid Daif abriu uma estrada no Céu para eles e assim apareceu a divisão do dia, em dia e noite.

Mas os sóis e as luas não obedeciam às ordens e saiam todos juntos, tornando a Terra muito quente, os rios secavam e as rochas fundiam-se. Os avôs Bod, Xongt, Qid e Dangt cortaram a madeira divina para fazer arcos e o avô Xongt fundiu 22 flechas. Hsangb Zad subiu ao topo da árvore Masang, que chegava às nuvens e daí disparou contra onze sóis e onze luas, deitando-os abaixo. O Sol e a Lua que restaram, muito assustados recusaram-se a sair das caves do Céu e por isso, todos os seres vivos ficaram sobre a ameaça de extinção. Os deuses enviaram a abelha, o búfalo, a cigarra, o pato, o gato, o cão e o ganso em sucessão a pedirem ao Sol e à Lua para saírem, mas todos eles falharam e por tal receberam várias punições. Por fim, o galo, com 12 riscas a simbolizar as 12 divisões do dia na sua cabeça foi chamar o Sol e a Lua. O cantar do galo era tão bonito que o Sol e a Lua vieram espreitar à porta da cave e lentamente foram saindo do seu refúgio. Os deuses ficaram muito satisfeitos com o galo e recompensaram-no com uma crista vermelha e uma plumagem colorida”.

“Os caldeus pensavam que o galo, e só ele, recebia, de madrugada, um fluxo divino emanado do planeta Mercúrio, pelo que foi consagrado a Hermes-Thot, consagração depois retomada pelos gnósticos e pelos alquimistas”, como refere Ana Maria Amaro, que prossegue, “Na mitologia clássica grega, Alektruon cujo nome significa galo, era o companheiro de Marte, com o qual partilhava as libações e os amores clandestinos. Quando Marte passava a noite com Vénus, ele chamava-o ao nascer do Sol. Um dia, deixou-se adormecer e não preveniu Marte, sendo este e a sua companheira surpreendidos pelo Sol. Para castigar Alektruon da sua negligência, Marte metamorfoseou-o em galo, completamente armado como estava e com vistoso capacete emplumado na cabeça”. Aves domésticas foram importadas para a Grécia no século V a.n.E. “O galo é universalmente conhecido como um símbolo de vigilância e de ressurreição e, por conseguinte, de imortalidade. Foi por isso consagrado a Hermes, Apolo e a Esculápio. O próprio Pitágoras proibia os seus adeptos de comerem esta ave, tão carregada de simbolismo ela era”.

Jesus “disse a São Pedro: <Esta noite, antes que o galo cante, negar-me-ás três vezes>. Esta cena foi muitas vezes representada sobre os sarcófagos paleocristãos, passando, talvez por isso, a constituir um símbolo de ressurreição entre os povos que seguiam o Cristianismo. Era também frequente representar-se um combate de galos nos primeiros monumentos cristãos, simbolizando a luta do Bem contra o Mal e da Morte contra a Vida Eterna”, Ana M. Amaro, “Os maometanos acreditavam, também, que seria um galo gigantesco, a ave que acordaria os mortos no dia do julgamento final. Pelo contrário, para os Escandinavos, seria um galo vermelho que anunciaria o fim do mundo”.

“Em Portugal, no cata-vento de grande número de igrejas, o galo de metal recorda ao clero e fiéis a vigilância e a oração, a fim de não caírem em tentação. Várias quadras populares lembram-nos também que o galo é vigilante e profeta, ao mesmo tempo. Gregos e Romanos empregavam os galos na decifração dos seus presságios, que eles ansiavam fossem de vitória”, segundo Benjamim Videira Pires, que refere, “A estatueta dum galo, no cimo dos telhados velhos de Macau, protege a casa contra a formiga branca, que rói as madeiras, acobertada pela escuridão do tunelzinho de serradura em que se introduz e trabalha.”

20 Jan 2017

O auto didacta botânico e naturalista Alfredo Augusto de Almeida

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]lfredo Augusto de Almeida (1898-1971) é das poucas pessoas que em Macau tem, ou teve, uma estátua. Mas quem reconhece o seu nome? Não foi político, nem exerceu nenhum cargo de governação, assim como não era rico, nem esteve ligado ao comércio. Era um humilde funcionário público, homem autodidacta que gostava de saber, de aprender e ensinar, que se especializou em botânica e com quem muitos estrangeiros, que vinham a Macau, gostavam de falar. Também a ele se deve a recuperação de muitas das pedras pertencentes à História da cidade, atiradas para o lixo depois de partidas.

Tetraneto do Primeiro Barão de Porto Alegre, um dos comerciantes de ópio mais ricos de Macau nos inícios do século XIX, Alfredo Augusto de Almeida nasceu em Macau a 21 de Janeiro de 1898 e aqui faleceu a 13 de Novembro de 1971. Era o sexto filho de Carlos Eugénio de Almeida e de D. Adelaide Maria Marques, tendo-se casado na Sé no dia 26 de Julho de 1925 com D. Rosalina Maria Boyol, mas não deixou descendência. Segundo o que refere Jorge Forjaz, “não herdou a fortuna dos seus antepassados e, por isso, foi toda a vida um humilde funcionário público e municipal. Mas herdou as suas virtudes, a sua grandeza de alma e um nobre coração. Filho de Macau, da mais ilustre aristocracia macaense, este homem foi sempre leal e honesto, nobre e respeitador no trato social e amigo da sua terra como poucos. A este botânico e naturalista, os jardins de Macau devem-lhe muito e o da Flora deve-lhe quase tudo, inclusivamente a classificação científica de todas as plantas e animais que lá existiam. Apaixonado pela floricultura e pela ornitologia”, reconstruiu o jardim da Igreja de S. Lourenço em 1935, sob as indicações da Sra. D. Laura Lobato.

Depois da II Grande Guerra Mundial, Alfredo Augusto de Almeida, ao serviço do Leal Senado, renovou e transformou o espaço verde do Jardim da Flora, introduzindo novas espécies de flores, árvores de fruto e até uma pequena fauna.

“Era um homem que se fez a si mesmo, um self made man, lia e consultava as autoridades em botânica e na arqueologia; por isso o Prof. Williams, de St. Francis Xavier College, perito em botânica, nunca vinha a Macau que não fosse a sua casa; o mesmo fez sempre o brigadeiro e historiador Sir Lindsay Ride, que tinha por ele o maior apreço; o então Governador Jaime Silvério Marques (1959-1962) correspondia-se frequentemente com este funcionário, a quem tanto apreciara e elogiara durante o seu Governo de Macau”, segundo refere o Padre Manuel Teixeira.

Museu Arqueológico de S. Paulo

Terminamos o artigo da semana anterior com a transferência das lajes sepulcrais, que foram removidas do chão do átrio do edifício do Leal Senado e colocadas no Museu Arqueológico das Ruínas de S. Paulo, instituído pelo então Governador Jaime Silvério Marques (1959-1962), nele se empenhando com todo o interesse o Sr. Fernando da Silva Amaro. Muito mais tarde, a esposa do então Governador Nobre de Carvalho disse ao presidente da Câmara que removesse as pedras do recinto de S. Paulo para outro local, onde não estivessem expostas às intempéries do tempo. “O presidente deu as suas ordens aos assalariados da Câmara e estes, achando as pedras enormes e muito pesadas, desconhecendo o seu valor histórico, pegaram em marretas e partiram-nas em vários pedaços e lançaram-nas para a doca de Lamau”, como refere o Padre Manuel Teixeira, dizendo ter-lhe sido tal relatado pelo amigo Alfredo de Almeida, que sabia melhor que ninguém o que se passara.

Preparava Sir Lindsay Ride, ex-Chanceler da Universidade de Hong Kong, a obra The Voices of Macao Stones e pediu ao Padre Manuel Teixeira que fizesse a revisão. Foi então que este padre, encontrando grandes lacunas por faltarem as pedras do Museu Arqueológico de S. Paulo, descobriu terem estas daí desaparecido. Procurou o Sr. Alfredo de Almeida e ele, após contar o que ocorrera, levou-os à Doca de Lamau onde andaram à procura das pedras quebradas em 1966. Passaram vários meses nessa tarefa, andando Alfredo de Almeida também a recolhê-las pelas valetas da cidade. Sir Lindsay Ride, em conjunto com o Padre Manuel Teixeira, reuniram pedaço por pedaço até as reconstituir e Almeida incumbiu-se de os cimentar. Mas muitas pedras tinham desaparecido. A 5 de Maio de 1969 fizeram um Ofício ao Governador da Província Nobre de Carvalho onde dão a Voz das Pedras de Macau. “E elas falaram e pediram que transmitisse a V. Exa. o seu pedido: queixam-se de que estão votadas ao abandono, parte na Flora e parte na doca do Lamau, onde se vêem em risco de serem destruídas e levadas para construção de casas”.

Assim a pedido do Padre Manuel Teixeira, o Governador de Macau mandou, no início de 1971, colocar na Fortaleza do Monte as pedras históricas recuperadas e o Museu ficou na parada da Fortaleza, à direita de quem entra.

Das muitas pedras que Alfredo de Almeida conseguiu salvar, encontrava-se a cabeça de leão, por onde jorrava a água da Bica do Nilau (Fonte do Lilau), no sopé da Colina da Penha. Devido à sua remodelação daí fora retirada, mas agora está ela de novo desaparecida, restando dessa fonte a cabeça de Neptuno, hoje incrustada no muro do jardim da Casa Garden. Também a estátua de granito dum holandês, que se encontrava na Fortaleza da Guia, foi levada para o Museu Arqueológico das Ruínas de S. Paulo. O corpo aí se manteve, mas a cabeça foi encontrada pelos funcionários das Obras públicas no esgoto da Calçada do Botelho. Almeida reuniu de novo a cabeça ao tronco e a estátua foi para o Jardim da Flora, passando depois para os Jardins da Casa Garden, encontrando-se hoje no Museu do Oriente, em Lisboa.

Assim Macau deve bastante a Alfredo de Almeida pela recuperação de muitas das pedras de alto valor arqueológico pertencentes à História da cidade, atiradas para o lixo depois de partidas pois, conseguiu salvar da destruição inúmeras delas.

“Oseo Acconci, que tanto o estimava, moldou o seu busto, um mês antes da sua morte, o qual foi colocado no passeio central do Jardim da Flora, com a seguinte legenda: <A Alfredo Augusto de Almeida que em vida tanto amor dedicou a este jardim 1898-1971>”, segundo refere o Monsenhor Manuel Teixeira.

Lembro-me de ver esta estátua ainda em 1994 e quando dela de novo me recordei, não a encontrei. Por indicação do Eng. Agrónomo António Paula Saraiva, ela encontrava-se agora no Jardim do NAPE. Bem a procurei, mesmo nas arrecadações do jardim, mas nada, a estátua desaparecera e ninguém sabe dela.

NOTA: Antes de encerrar o ano do Macaco no calendário chinês, deixamos aqui corrigido o lamentável erro publicado no artigo de 18 de Novembro de 2016 com o título Gincana de automóveis na Feira de Macau. O primeiro automóvel a circular em Portugal foi adquirido pelo Conde Jorge Avillez que, em Outubro de 1895, (e não em 11 de Outubro de 1914, como por lapso fizemos referência), na sua primeira viagem, que demorou três dias, feita entre Lisboa, onde tinha ido buscar o Panhard and Levassor e a sua casa, em Santiago do Cacém, este aristocrata conduzindo-o a 15 km/h, entre várias peripécias, atropelou um burro, causando-lhe a morte.

13 Jan 2017

A Colecção do Museu Luís de Camões

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] trabalho realizado no conseguir reunir um espólio para o Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões, criado pela primeira vez em 4 de Novembro de 1910 por Portaria Provincial do Governador Eduardo Marques, mas nunca aberto ao público e provisoriamente instalado na Casa do Jardim da Gruta de Camões, “gorou-se devido a uma defeituosa orgânica. Para emendar esse erro, o Governador interino Álvaro de Melo Machado pela Portaria n.º 214 de 12 de Outubro de 1911, exonerou tão numerosa e decorativa comissão, substituindo-a (…) na mesma data, por uma composta apenas de três vogais, o capitão Albino Ribas da Silva, o intérprete-sinólogo e coleccionador de arte chinesa José Vicente Jorge, e o apontador da Repartição das Obras Públicas, Manuel Ignácio Rezende, que tinha também manhas de coleccionador de arte chinesa”, como refere Gonzaga Gomes. Mas também estes não deram conta do trabalho e assim se perdeu a ocasião para a criação de um Museu em Macau. Tanto mais que, lamentavelmente, “entretanto, muitas antigualhas de interesse que poderiam figurar nele e que então ainda existiam em Macau, tanto na posse dos particulares como nas igrejas, conventos e estabelecimentos públicos, se foram sumindo ou estragando-se, por desleixo, incúria ou ignorância e, não poucas vezes, vendidas ao desbarato.”

Os anos passavam e nada de Museu. A 17 de Junho de 1920 foram aprovados os estatutos do Instituto de Macau, uma associação científica, literária e artística que pretendia promover a criação de um museu e a conservação de edifícios e objectos de valor documental, históricos ou artísticos existentes em Macau. Dela apenas se registam algumas conferências, mas o Museu…, nem vê-lo!

A 20 de Janeiro de 1926, a Direcção das Obras dos Portos propunha-se organizar uma ‘Exposição Industrial e de Estudo’ para servir de início a um futuro Museu e Exposição Permanente dos produtos das indústrias locais e mostruário de produtos da Metrópole e das Colónias Portuguesas e em que se reunissem todos os elementos dispersos e alguns talvez desconhecidos do público, sendo por isso dividida em várias secções: Secção Fotográfica, Secção Cartográfica, Hidrográfica e de Maquetes, e Secção Industrial. Estava-se próximo da conclusão das obras do novo porto da Rada, que se cria vir dar um novo alento à cidade. A ideia evoluiu para uma Exposição Industrial e com os artigos que aí iriam ser expostos, é proposto criar um museu em Macau, instituído pelo Governador interino e Director das Obras dos Portos, Almirante Hugo de Lacerda por Portaria de 5 de Novembro de 1926. Mas o Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões só abriu portas a 24 de Junho de 1929, tendo como Director o Cónego António Maria de Morais Sarmento. Encontrava-se dividido por dois edifícios; no 1º andar do edifício de Leal Senado, sob a direcção de um dos Directores Técnicos do Museu, Dr. Telo de Azevedo Gomes, a secção histórica do Museu continha as pedras com inscrições históricas, armas, brasões, etc., assim como espécies artísticas e pictóricas, obtidas principalmente por empréstimo de particulares. Já a secção comercial e Sacra do Museu, estava exposta no rés-do-chão da Santa Casa da Misericórdia. (Local onde até 2016 esteve o Cartório Notarial e que agora foi alugado pela Pharmacia Popular.) No entanto o recheio do museu era paupérrimo.

Das ofertas

Ainda antes do Museu abrir, encontrando-se com o espólio armazenado no Palacete da Flora, a fábrica de vidro Shimada de Osaka no Japão, ofereceu-lhe um mostruário de artigos de vidro. Um mês depois, o Boletim Oficial de 3 de Dezembro de 1927 publica o Regulamento dos Serviços do Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões. O semanário A Verdade de 1 de Novembro de 1928 refere ter Hee Cheong feito a magnífica oferta para o Museu Luís de Camões de uma artística vitrina de curiosas porcelanas no valor de cerca de duas mil patacas.

A 13 de Agosto de 1931, a explosão no Paiol Novo da Flora, que fez vinte e um mortos e cinquenta feridos, destruiu completamente o Palacete da Flora e provocou grandes estragos nas redondezas. Na mansão do coleccionador de arte chinesa Dr. Manuel da Silva Mendes, situada na encosta Sul do Monte da Guia, a explosão reduziu a cacos grande parte dos seus pratos brasonados de porcelana. Este advogado, professor de Liceu e jornalista, escritor de assuntos chineses, veio a falecer quatro meses depois. Os herdeiros venderam algumas das mais importantes peças a coleccionadores estrangeiros, já que o Governo não se decidia a adquirir a preciosa colecção para o recheio do Museu Luís de Camões. Até que, constituída uma comissão, o museu foi enriquecido com esses “bronzes, objectos de barro tumulares, barros vidrados de Seák-Uán (Shiwan, em Foshan, onde se encontra o forno imperial Nanfeng), algumas peças de celadão, uma ou outra peça em esmalte, uns poucos exemplares de jade, havendo numerosas aguarelas chinesas, mais de uma dezena de retratos de mandarins a óleo, sendo, contudo, raríssimas as peças em porcelana”, como refere Luís Gonzaga Gomes. Ficaram expostos no primeiro andar do edifício do Leal Senado onde, em 28 de Dezembro de 1933 se fez uma exposição também para mostrar os quadros adquiridos pelo Leal Senado, assim como pelo seu presidente, Luís Gonzaga Nolasco da Silva, que os ofereceram ao Museu.

No entanto, um lugar permanente para o Museu estava difícil de se encontrar. Os mostruários adquiridos pelo Governo após a Exposição Industrial tiveram que sair da Santa Casa, pois esta precisava da sala. O mesmo aconteceu três anos mais tarde com os objectos colocados no edifício do Leal Senado em consequência do desenvolvimento da Biblioteca Pública, que estava instalada no mesmo andar e na mesma ala desse edifício, sendo por isso removidos para o Palacete de Santa Sancha, que abriu ao público a 12 de Dezembro de 1936. Aí teve uma passagem efémera pois, logo no ano seguinte foi o Museu instalado na Casa do Jardim da Gruta de Camões, actual Casa Garden.

Da passagem do Museu pelo edifício do Leal Senado, para onde lá nunca mais voltou, ficaram as lápides de granito encontradas em diversas localidades da cidade e incrustadas nas paredes do átrio. Já as lajes sepulcrais, que estavam colocadas no chão do átrio, foram removidas e colocadas no Museu Arqueológico das Ruínas de S. Paulo, instituído pelo então Governador Jaime Silvério Marques (1959-1962).

6 Jan 2017

Coleccionadores de arte em Macau

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m seguimento do artigo O Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões, regressamos ao tema para referir o processo até à sua criação.

Para coleccionar os produtos da região a enviar para Portugal fora em 1879 criada uma Comissão, “que por serem, ao tempo, os indivíduos de mais destaque na terra e conhecedores mais profundos dos produtos nativos, melhor garantia ofereciam para uma escrupulosa e minuciosa selecção dos artigos pedidos pelas duas instituições metropolitanas”, segundo refere Luís Gonzaga Gomes. E com ele continuando, “O Leal Senado da Câmara de Macau, da presidência de Domingos Clemente Pacheco, na ilusória persuasão de que uma exposição permanente dos principais produtos chineses em dois estabelecimentos públicos do reino poderiam estimular o gosto das pessoas que viviam na metrópole pelos produtos fabricados na China, concorrendo, assim, para promover e fomentar o comércio directo entre esta província e Portugal continental, apressou-se a contribuir com três caixas de artigos destinados ao Museu Colonial e outras tantas para o Museu da Universidade de Coimbra”. Estes e outros artefactos reunidos pela Comissão, antes de serem enviados, foram expostos no Leal Senado a 2 de Maio de 1880 e passados vinte dias ficava pronta a lista numerada dos 581 objectos, descrevendo para que serviam, o preço de custo de cada um e algumas observações. Continuou-se depois o trabalho de coleccionar objectos para os museus do país e a segunda remessa foi efectuada em 1882, seguindo para Portugal no navio de guerra África.

Na carta de despedida de Macau, José Alberto Corte Real, a 10 de Julho de 1883 refere, “Logo que tive a honra de ficar encarregado dos negócios diplomáticos na China, Japão e Siam, dirigi aos cônsules portugueses nestas três nações e na Oceânia uma circular, acompanhado de um questionário, em que lhes pedia esclarecimentos tendentes a saber se nos distritos das suas jurisdições consulares, haveria alguns objectos ou monumentos antigos relativos às relações dos portugueses, pedido este que eu fazia com o meu pensamentos no Museu Municipal também, o qual por pertencer à única municipalidade portuguesa estabelecida nesta parte da Ásia, me parecia e parece o ponto mais adequado para reunir e guardar estes monumentos. (…) A meu pedido, havia o Ex.mo ex-Governador de Timor, Bento de França Salema organizado uma comissão encarregada de coligir novos produtos para o Museu Municipal de Macau.” Nessa carta fica-se a saber dever “existir em Lisboa documentos valiosos, alguns que foram comprados pelo Ministério da Marinha em 1875, pertencentes à livraria do falecido José de Torres, os quais não sei se serão parte dos ou os mesmos que foram em tempo mandados pelo Comendador Lourenço Marques para Lisboa, e cuja notícia não se sabe até que data retrocede, ignorando-se também o destino que tiveram”.

Lamentava-se ainda Corte Real, na mesma carta, serem os objectos até então coleccionados “muito poucos e de pequeno valor”. Mais à frente refere, “O pequeno número de objectos que agora envio a V. Ex.a (Presidente do Leal Senado) representam costumes, indústrias, manufacturas de Timor e a existência incontestável de jazigos auríferos naquela tão rica quanto desaproveitada ilha; as duas facas, assim toscas, são uma espécie de moeda ou mercadoria tipo de que os indígenas se servem nas suas transacções. Envio mais um pequeno número de jornais chineses e siameses escritos nas línguas nativas, dos quais eu procurava fazer colecção para Macau, por me parecer também que uma secção bibliográfica desta natureza seria valiosa para o futuro, e mais remeto alguns selos e timbres siameses, os quais juntos a outros espécimes iguais e análogos eu destinava para uma secção numismática…” Esse princípio de “trabalho que eu tinha em mãos e que a pouco e pouco ia fazendo, poderão servir de norte a quem por ventura julgar a sua continuação útil”. “Pensei sempre que o Museu Municipal de Macau, constituindo um estabelecimento de grande utilidade para o comércio e para a instrução popular, à semelhança de muitas municipalidades das nações mais civilizadas do mundo, poderia conter também uma secção histórica de grande valor, não somente para Macau, mas também para as tradições de nação portuguesa nesta parte do extremo oriente…”

Museu por instalar

A iniciativa de Corte Real para dotar a província de um museu não vingou e o jornal Independente de 8/8/1883 refere, <apenas sobre a porta de um húmido e escuro quarto o letreiro – Museu Municipal>. No entanto, a 9 de Setembro desse mesmo ano registava-se o envio de duas caixas proveniente de Sião, contendo objectos para o Museu, remetidas pelo encarregado do Consulado de Portugal.

Já em 1899, o Museu da Sociedade de Geografia recebeu do Sr. Dr. Lourenço Pereira Marques uma numerosa colecção etnográfica chinesa composta por aproximadamente mil objectos. Para além dos que ele ofereceu vinham outros, como costumes, adornos, utensílios da vida e sociedade chinesa doados por João Maria Placé da Silva e velhos ídolos enviados pelo Sr. Camilo Pessanha.

Com o advento da República foi criado, em 4 de Novembro de 1910 por Portaria Provincial do Governador Eduardo Marques, pela primeira vez o “museu histórico, etnográfico, fisiográfico, comercial e industrial sobre a designação de Museu Luiz de Camões contendo uma secção de carácter histórico, referente principalmente à colónia de Macau e outra secção destinada à representação da província de Timor, sobre os seus diversos aspectos e sobretudo do ponto de vista agrícola e industrial. Foi então, nomeada uma comissão (…) constituída por duas categorias de vogais, natos e nomeados, sendo os primeiros, o Secretário Geral do Governo, o Director das Obras Públicas, o Chefe do Serviço de Saúde, o Presidente do Leal Senado, o Reitor do Liceu Nacional e o Reitor do Seminário de S. José. Para os da segunda categoria foram nomeados o bacharel Camilo d’Almeida Pessanha, o dr. Lourenço Pereira Marques, o Capitão Eduardo Cirilo Lourenço e o intérprete-sinólogo Carlos da Rocha Assunção”, como refere Luís G. Gomes. Compreende-se que com tão numerosas individualidades esta comissão “estava condenada ao malogro, pois era impossível reunir tanta gente, sobrecarregada com tantos afazeres profissionais, (…) tanto mais que muitos deles deveriam ser completamente alérgicos às coisas de arte ou de história.”

Enquanto não se arranjou instalações próprias para o museu, ficou este instalado na Casa do Jardim da Gruta de Camões, actual Casa Garden, na parte contígua à ocupada pela Direcção das Obras Públicas.

30 Dez 2016

O Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Exposição Industrial de Macau, organizada como complemento dos trabalhos de propaganda do novo porto, tinha fechado a 12 de Dezembro de 1926 e A Pátria de 21 desse mês referia: “Diariamente têm sido transportados para o novo museu, instalado no Palácio da Flora, vários objectos, entre eles algumas pedras lavradas, lápides e lajes de antigas sepulturas. Dos artigos expostos na Exposição Industrial, saíram algumas amostras gentilmente oferecidas por alguns expositores à Secção Comercial do Museu, tal como a cedência, facilitada por parte de chefes de serviço, de alguns objectos.” Parecia agora a todos que Macau iria conseguir ter por fim um Museu. Luís Gonzaga Gomes refere, “Pela Portaria n.º 221, datada de 5 de Novembro de 1926, foi criado, pelo Governador interino e Director das Obras dos Portos, Almirante Hugo de Lacerda, um mostruário de produtos nacionais de Portugal Continental e Ultramarino, especialmente, de Macau e Timor, com carácter comercial, abrangendo uma secção do museu da Colónia e tendo agregada a colecção de exemplares de Comissão de Pescarias, sobre o nome de Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões e a constituir com os artigos que possam provir da Exposição Industrial e com os que possam ser dispensados por diversas repartições, devendo ir sendo completada à medida das possibilidades. Para orientar e dirigir este Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões foi nomeada uma comissão, por portaria da mesma data, composta, pelo engenheiro João Carlos Alves, director principal; o missionário padre Manuel José Pita, director da secção do mostruário; e o professor do Liceu Central, Dr. Telo de Azevedo Gomes, director da secção do Museu; o pouco que foi possível colher-se do refugo das repartições públicas e de uma ou outra igreja, se instalou, no Palacete da Flora…”

A ideia do Almirante Lacerda era um museu histórico e artístico e em anexo ficava uma exposição comercial. “Ora como não conviesse misturar objectos artísticos e históricos com espécies comerciais e etnográficas e sendo o Palacete de Flora demasiado acanhado para se poder dar um conveniente arrumo ao que se pretendia expor, o Leal Senado resolveu (…) ceder para a secção histórica do Museu, algumas salas do seu andar nobre”, segundo Luís G. Gomes. Já o semanário A Verdade de 1 de Setembro de 1927 informava: “Estão sendo colocadas no átrio do Edifício de Leal Senado, gentilmente cedido pela digna Câmara de Macau, as pedras com inscrições históricas, armas, brazões, etc. sob a direcção de um dos Directores Técnicos do Muzeu, Dr. Telo de Azevedo Gomes. Brevemente deverão começar os trabalhos da instalação da Biblioteca n’algumas salas do andar nobre daquele edifício, passando as Repartições Municipais para o Correio e este para umas dependências do Palácio do Governo.” No entanto, A Pátria de 4 de Novembro de 1927 referia que a secção comercial do museu ainda se encontrava instalado no Palacete da Flora, tendo essa mudança já sido efectuada para o rés-do-chão da Santa Casa da Misericórdia, como referia a Verdade a 2 de Outubro de 1928. Tal poupou essa parte do recheio do museu, pois a explosão do Paiol da Flora em 13 de Agosto de 1931 tê-lo-ia destruído.

O Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões, dividido por dois edifícios, abriu a 24 de Junho de 1929, tendo como Director o Cónego António Maria de Morais Sarmento.

Os antecedentes

Por decreto de 26 de Janeiro de 1871 fora organizado o Museu Colonial em Lisboa e pedira-se aos Governadores de cada uma das Colónias portuguesas para reunirem amostras de produtos industriais ou outros artefactos. Para tal, o Governador da Província de Macau, Joaquim José da Graça (1879-1883), “Considerando que para se reatarem os laços comerciais entre Macau e o Reino muito convém serem conhecidas as qualidades, aplicações e preços dos produtos da indústria e comércio deste mercado, o que melhor se pode conseguir expondo-os nos museus, destinados a reunirem as amostras das riquezas em que as colónias abundam”, mandou constituir oficialmente uma Comissão. Esta era composta pelo Secretário-geral do governo o bacharel José Alberto Côrte Real e os cidadãos, Filomeno Maria da Graça, António José da Fonseca, Maximiano António dos Remédios, Pedro Nolasco da Silva e Lauriano José Martinho Marques. “Outrosim hei por conveniente declarar que se tornou muito digno de louvor o leal senado pela parte com que contribuiu o município, que é o primeiro interessado em todos os esforços tendentes a desenvolver a actividade e a riqueza desta população”. A Comissão não só coleccionava produtos de Macau como de Timor, à data junta com esta Colónia.

No Domingo, 2 de Maio de 1880 pelas 13 horas ocorreu nas salas do Leal Senado da Câmara a Exposição de artefactos, produtos industriais e outros objectos desta província. Era assim em Macau “apresentado ao público numa das salas do Leal Senado da Câmara o resultado dos esforços empregados pela comissão em reunir, classificar, coordenar e expor metodicamente os produtos que vão ser remetidos ao museu Colonial de Lisboa e ao da Universidade de Coimbra, sendo de mais a mais esta a primeira exposição de carácter industrial que se faz na colónia”, como se encontra referido no Boletim da Província de Macau e Timor, Suplemento de 28 de Junho de 1880. Durante a inauguração, o advogado António Joaquim Bastos Júnior propôs a criação do Museu Municipal de Macau.

Esta exposição criou um enorme entusiasmo e a vontade de continuar a coleccionar produtos industriais chineses para enviar para Portugal que, a 31 de Janeiro de 1882, o Presidente da Comissão José Alberto Homem da Cunha Côrte Real, que era também Secretário-Geral do Governo de Macau, pedia ao Leal Senado a cedência das suas salas para fazer uma nova exposição. E foi com esta nova exposição que se reavivou a ideia de António Joaquim Bastos Júnior de criar o Museu Municipal de Macau. Um dos grandes impulsionadores para a existência desse museu foi José Alberto Corte Real que, por se retirar da colónia, na sua carta de despedida de 10 de Julho de 1883 refere remeter ao Presidente do Leal Senado “alguns objectos, que eu ia pouco e pouco reunindo por via dos meus amigos para o museu municipal cuja fundação tão útil se me afigurou sempre.” Seguindo o seu exemplo e como um dos principais mentores, em Macau começaram a aparecer muitos particulares a adquirir peças de arte chinesa, que foram transformando as suas casas em verdadeiros museus.

16 Dez 2016

Cinema Documental sobre Macau dos Anos 20

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma semana em que Macau está virada para o cinema, perguntamos a quem nos souber responder, onde se poderão ver os documentários de propaganda sobre Macau, realizados pela Empresa Cinematográfica Macaense, criada por Lucrécia Maria Borges em 1924? Sim, os que foram no último dia da Feira e Exposição Industrial, a 12 de Dezembro de 1926, exibidos numa sessão dedicada ao Governador Tamagnini Barbosa e ao Almirante Hugo de Lacerda.

O Almirante Hugo de Lacerda Castel Branco foi Governador interino de Macau de 29 de Julho de 1926 até à chegada do titular Artur Tamagnini de Sousa Barbosa, o que ocorreu a 8 Dezembro e por isso, a Exposição foi prolongada até à meia-noite de Domingo dia 12. O novo Governador, chegando de Hong Kong, desembarcou com a esposa e os cinco filhos no cais provisório do novo porto exterior, sendo recebido pelas autoridades civis, militares e eclesiásticas da cidade. Para lhes dar tempo a irem para a praça do Leal Senado, Tamagnini foi dar uma volta pelas obras do novo porto. Assim, quando o carro parou em frente ao edifício do Município ali encontrou a mesma guarda de honra que o recebera à saída do barco. Subindo para o salão nobre e perante a vereação da Câmara tomou posse do Governo de Macau, “pela simbólica entrega da chave de ouro por parte do Presidente da Câmara” Damião Rodrigues. Depois, seguiu para o Palácio do Governo. À noite foi visitar a Exposição, sendo recebido pela Comissão que dera corpo àquele projecto, ficando bem impressionado.

No campo da exposição havia um serviço permanente de bufete servido pelo Grand Restaurant e nesse local tocaram várias bandas, entre elas de jazz.

Cinema na Feira

É preciso lembrar ter sido o cinema inventado nos finais do século XIX e em 1895, os irmãos Lumière foram os primeiros a projectar um filme documental num café em Paris. Na Exposição Industrial de 1926, como a Comissão não poderia dar atenção a tantos trabalhos, entregou a exploração do Cinematógrafo da Feira à Empresa Cinematográfica Macaense de Mário Borges & C.º. Desde 1924 Lucrécia Maria Borges tinha “o exclusivo dessa exploração no território da Colónia pelo prazo de dez anos” e ficou encarregue de realizar documentários sobre Macau, “onde serão apanhados todos os assuntos mais notáveis da vida da colónia”. No entanto, Beatriz Basto da Silva refere existir em 1922 o Cinematógrafo Macau, onde foi exibida “uma fita sobre Macau, destinada à Exposição do Rio de Janeiro” (…) “inteiramente feita por um amador, Sr. Antunes Amor.”

Já na quarta reunião da Comissão, a 24 de Abril de 1926, o Presidente disse que ia oficiar para Portugal a pedir várias fitas cinematográficas panorâmicas a fim de também se fazer propaganda ao nosso país, pois este apenas era conhecido pelo Vinho do Porto vindo de Portugal e do Ópio, em Macau.

A 4 de Dezembro de 1926 A Pátria refere que, no salão cinema da Exposição vão ser exibidas umas fitas produzidas em Macau pela Empresa Cinematográfica Macaense (ECM) e outras de Portugal. No dia 11 de Dezembro foi projectada a fita Os Fidalgos da Casa Mourisca, tirado do romance de Júlio Dinis, que pela segunda vez passou em Macau, sendo a sessão dedicada ao Exército de Terra e Mar. O preço de 60 avos incluía a entrada no recinto da Feira, encontrando-se os bilhetes à venda na Papelaria Progresso e Po-Man-Lau, na Livraria Portugália e na bilheteira do Teatro.

Dedicada ao Governador Artur Tamagnini Barbosa e ao Almirante Hugo de Lacerda houve no dia 12, pelas 21:30, uma sessão de cinema com filmes produzidos pela ECM, assim referido no anúncio que A Pátria publicou.

Entre estes filmes de propaganda, o primeiro a ser apresentado foi “O Vôo Audaz das Águias Portuguesas”, que mostrava a chegada a Macau dos aviadores, Major Brito Pais, Capitão-tenente Sarmento Beires e o mecânico Alferes Manuel Gouveia. Tendo partido de Vila Nova de Milfontes com dois aviões no dia 7 de Abril de 1924, tinham programado chegar a Cantão, para poder evolucionar sobre Macau, visto esta cidade não ter campo de aterragem. Na Índia perderam um avião e a 45 milhas de Macau, às 15 horas do dia 20 de Junho, caiu o avião onde viajavam, sendo recolhidos pela canhoneira Pátria que os trouxe para Macau, onde foram recebidos em grande festa pela população a 25 de Junho de 1924. É sobre a recepção do desembarque à chegada a Macau que trata o documentário.

O segundo filme era sobre “Os Funerais de um Capitalista”. Já o terceiro, “Comemoração do Quarto Centenário de Vasco da Gama”, levanta-nos algumas questões. Seria sobre a abertura da Avenida Vasco da Gama, para comemorar o IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia? Tal parece impossível pois esta ocorreu em 1898 e encontrando-se o cinema nos primórdios, seria possível haver já em Macau câmaras de filmar? Ao ler sobre o que retratava o documentário, aparecem duas hipóteses mais plausíveis. Ou era da inauguração em 31 de Janeiro de 1911 do busto de Vasco da Gama do escultor Tomás da Costa, hipótese menos provável, ou sobre o Quarto Centenário da morte de Vasco da Gama, que ocorrera em 1524 e assim já poderia ser uma produção da ECM. É uma reportagem cinematográfica onde consta o desfile do cortejo cívico na Praia Grande, na Avenida de Vasco da Gama, junto da estátua do insigne navegador, com homenagens da Colónia, das comunidades holandesa e chinesa e dos portugueses de Hong Kong, no Leal Senado, uma missa campal e vários aspectos da iluminação na cidade e no porto.

O quarto filme tratava sobre “O Casamento de Mr. & Mrs. Francis Young Po Nam” e o quinto, uma produção muito recente, “O Voo Madrid-Manila” filmado em Maio de 1926, aquando da passagem por Macau dos Ases Espanhóis Capitão Gallarza e Loriga. “O Concílio Episcopal em Xangai” foi o sexto filme exibido. Por último, o documentário de propaganda sobre “As Obras do Porto de Macau”. Uma reportagem completa da cerimónia da dragagem do último metro cúbico de lodo do canal de acesso do novo Porto da Rada, ocorrida a 26 de Agosto de 1926 no Porto Exterior.

A Empresa Cinematográfica Macaense resolveu filmar os pavilhões, barracas e vários aspectos da Feira da Exposição Industrial de Macau e convidou o público a aparecer no recinto no dia 11 de Dezembro pelas 15 horas, “para que o filme possa ficar o mais movimentado possível”. Faltava um dia para esta fechar.

Seria interessante ter disponíveis estes documentários sobre Macau de há 90 anos, assim como todos os filmes realizados anteriormente e os que depois se fizeram, para criar a cinemateca da RAEM.

9 Dez 2016

Os incidentes de 3 do 12 de 1966

1-2-3
A estátua do Coronel Vicente Nicolau de Mesquita, situada no Largo do Leal Senado desde 1940, antes de ser deitada abaixo

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] 3 de Dezembro de 1966 ocorreram confrontos entre a comunidade chinesa de Macau e as forças do Governo português, episódio conhecido pelo “1-2-3” e que se prolongou até 29 de Janeiro de 1967. Era o extravasar de tensões, trazidas como herança do não reconhecimento por parte do Governo de Lisboa da República Popular da China, proclamada a 1 de Outubro de 1949, assim como em Macau, a resistência feita pelo governo português às forças comunistas da cidade e as ajudas que aqui tinham as organizações nacionalistas, partidárias de Chiang Kai-Skek e derrotadas em 1949 pelo Partido Comunista numa longa guerra, levando-os a fugir para Taiwan. Os que para aí não seguiram refugiaram-se em Hong Kong e Macau e daí faziam constantes provocações aos governantes da República Popular da China.

O brigadeiro Nobre de Carvalho aceitara o cargo de Governador, quando Macau era um lugar tranquilo, sem os problemas que enfrentavam os restantes territórios portugueses do Ultramar. Vinha substituir Lopes dos Santos que, devido à doença da sua esposa foi obrigado a ficar por Portugal e apesar de novamente nomeado para um segundo mandato, teve de o recusar. O novo Governador Nobre de Carvalho, só quando chegou a Hong Kong, a 25 de Novembro de 1966, soube pelo seu homólogo da colónia vizinha, Sir David Trench, o problema que o esperava. No barco para Macau, o chefe de gabinete Mesquita Borges e o ajudante de campo, Mendes Liz, explicaram-lhe o problema ocorrido a 15 de Novembro. Tudo começara com a construção de uma escola na Taipa, para a qual a Associação de Moradores da Taipa tinha há longo tempo pedido uma licença às Obras Públicas, mas vendo o tempo a passar e sem resposta, os residentes resolveram começar a construir o edifício. Logo interveio a polícia, havendo feridos, o que revoltou a população chinesa. Acabado de chegar, “Nobre de Carvalho foi apanhado completamente de surpresa e viu-se no meio de algo que não entendia, apesar de ter ficado com o caso para resolver”, segundo Manuel Maria Variz, com quem a partir daqui seguimos o seu relato. A 3 de Dezembro avançou uma manifestação de chineses até ao Leal Senado e perante a fraqueza da polícia, que não recebia ordens do seu comandante, “os amotinados espatifaram o Leal Senado e a Secretaria Notarial e não fizeram mais porque não quiseram…”

Documento secreto

O documento, que passamos a reproduzir, foi considerado «secreto».

Resposta do Governo de Macau ao protesto que lhe foi apresentado pelos representantes dos habitantes chineses de Macau: “O Governo de Macau solenemente declara. Que decidiu assumir a inteira responsabilidade do incidente sangrento de «15 de Novembro», ocorrido na ilha da Taipa. E dos trágicos acontecimentos de «3 de Dezembro», ocorridos em Macau.

A fim de impedir que habitantes chineses da Taipa reconstruíssem a sede da sua Escola, o Governo de Macau, em 15 de Novembro de 1966, destacou polícias para reprimir aqueles habitantes de que resultaram feridos e detidos, o que provocou indignação nos habitantes chineses de Macau.

No dia 3 de Dezembro, quando professores e alunos chineses de Macau se dirigiram ao Palácio do Governo para apresentarem o seu protesto, o Governo de Macau novamente destacou polícia para os reprimir e, em seguida, impôs a lei marcial, reforçou tropas para disparar tiros, dos quais resultaram mortos e feridos entre habitantes chineses.

Nestes incidentes, infortunadamente, ao todo, foram mortas 8 pessoas, ficaram feridos 212 e detidas 62, admitindo o Governo de Macau representarem estes factos sérios crimes dos seus principais causadores.

Por isso, o Governo de Macau dirige-se agora, respeitosamente às famílias dos mortos e aos feridos, aos que estiveram presos e a todos aqueles que porventura tiverem sofrido quaisquer prejuízos durante estes incidentes, bem como a todos os habitantes chineses de Macau, para admitir as culpas havidas, significar as respectivas escusas e manifestar o seu profundo pesar.

Tendo decidido aceitar, na totalidade, os seis pedidos apresentados pelos representantes dos habitantes chineses de Macau e executá-los imediatamente, o Governo de Macau já exonerou sucessivamente das suas funções, por os admitir como causadores destes incidentes e para apuramento das suas responsabilidades, o Comandante Militar Mota Cerveira, o Comandante da Polícia Galvão de Figueiredo, o Segundo Comandante da Polícia Vaz Antunes e o Administrador interino do Conselho da Ilhas Rui de Andrade, ao quais foi ordenada a sua imediata saída de Macau, para regressarem à Metrópole, para aguardar julgamento das instâncias competentes e correspondente punição.

Igualmente decidiu o Governo de Macau chama a si a responsabilidade pelo pagamento de todas as despesas do enterro e da cerimónias fúnebres, bem como das compensações às famílias dos mortos, pelo pagamento de todas as despesas de hospitalização e tratamento dos feridos e também dos prejuízos inerentes, responsabilizando-se, ainda, pelo pagamento de todos os prejuízos resultantes da invalidez dos feridos, pelo pagamento das indemnizações às demais vítimas, por todos os prejuízos derivados destes incidentes.

O governo de Macau pagará em dinheiro todas as indemnizações acima referidas, cujo montante é de $2.058.424,00 (patacas) e solicita aos representantes de todos os sectores sociais dos habitantes chineses de Macau a indicação de um organismo para se encarregar da sua distribuição.

Aboliu-se já a lei marcial, foram postos em liberdade todos os indivíduos detidos durante estes incidentes e cancelados os processos que respeitam aos seus registos, devendo também considerar-se anulada, por infundada, a sentença proferida contra um dos habitantes chineses presos durante os incidentes da Taipa e cancelado o seu processo.

O governo de Macau já reconheceu a legitimidade da pretensão dos habitantes chineses da Taipa para reconstruir a sede da sua Escola, podendo esta obra ser efectuada imediatamente.

Acrescente-se ainda que foi atendido o protesto do diário «Ou Mun», referente ao caso da sua reportagem o incidente da Taipa, pelo que se assegura que, de futuro, não se repetirá semelhante ocorrência.

O governo de Macau reitera o seu pesar a todos os habitantes chineses de Macau e dar efectivas garantias de segurança das suas vidas e dos seus haveres e de protecção dos seus justos direitos e interesses, para o que, além do mais, reafirma e assevera que, de futuro, não permitirá decididamente que os agentes secretos do grupo do Tchiang Kai-Chek pratiquem quaisquer actividades em Macau. O Governador de Macau – José Manuel Nobre de Carvalho”.

A assinatura do acordo de capitulação, com um texto imposto pela parte chinesa, teve lugar na sede da Associação Comercial a 29 de Janeiro de 1967 e a ordem pública durante todo esse ano foi mantida com o auxílio de milícias das kaifong, como refere José Pedro Castanheira.

2 Dez 2016

O lago na Feira da Exposição Industrial

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]obre Macau, o jornal A Pátria de Janeiro de 1926 refere, “que os atractivos diurnos não eram de grande monta. De feito, não temos para oferecer aos estudiosos e investigadores uma biblioteca pública, um museu; um parque bem ensombrado e de ruas asfaltadas ou cimentadas, facilitando o passeio a pé e onde não houvesse tanques sem os beneméritos peixes que devoram as larvas dos mosquitos; lanchas a motor ou embarcações a remos, de aluguer, que permitissem o passeio na Baía da Praia Grande. Oh! A bela baía que estamos em riscos de perder conspurcada pelo aterro a que Carlos da Maia sempre se opôs por destruir toda a linda perspectiva do lugar, não só pelas futuras construções, como também pela maculante modificação do conjunto. A linda avenida marginal onde se pode contemplar a sua curva graciosa de 1300 metros de extensão” iria ser “sacrificada à execução de uma ideia por alguém sugerida de uma avenida de luxo rectilínea e de mais um campo desportivo”. Então “o que nos resta para oferecer ao turista como passatempo às horas do dia? … E a noite?” Contradizendo este texto de Gregório Fernandes, o próprio, a 24 de Abril, durante a quarta reunião da Comissão, apresentou “a proposta de que fosse coberto, pelo menos com óla o coreto de música do Jardim Vasco da Gama, não só para conforto dos músicos, abrigando-os da chuva, como também por motivos de condições acústicas”.

Em 1926, era extraordinário o número de novas construções. “Num abrir e fechar de olhos surgem-nos grandes edifícios e novas ruas, sobretudo para os lados de Patane, onde a Avenida Lacerda, que se estende até às alturas da Ilha Verde, já se vê literalmente ladeada de grandes fabricados, servindo quase todos de estaleiros”. Era a géneses da nova cidade de Macau, fora da parte cristã, ainda muralhada no tempo do Governador Ferreira do Amaral quando, após Portugal ser instado a tomar posse de Macau e torná-la independente da China, se não, esta seria ocupada por outra potência europeia, este mandou abriu as primeiras estradas fora das portas da cidade, expandindo-a. Tudo isso, aliado ao isolar o Campo de Mong-Há do Bazar Chinês e a constante violação das sepulturas dessa área pelos ingleses, que por aí gostavam de passear a cavalo, tal como Ferreira do Amaral, cujo hábito de cavalgar sozinho por essas paragens em 1849 lhe custou a vida e a cabeça. Era a China a mostrar de quem era Macau, cuja sua terra não era alienável. José Coelho do Amaral, Governador de Macau entre 1863 e 1866, continuou a obra de Ferreira do Amaral, abrindo uma estrada, inicialmente baptizada com o nome de Estrada do Mong-Há e depois, Estrada Coelho do Amaral e que ia da Avenida de Horta e Costa à do Coronel Mesquita.

O lago da Feira

A Exposição Industrial e Feira de Macau realizou-se no Campo de Mong-Há, vulgarmente denominado Campo dos Aviadores, onde a 1 de Maio de 1926 aterraram vindos de Hanói o aviador espanhol, Capitão E. Gallarza e o mecânico Arosameña, no voo Madrid-Manila. O recinto com 8 hectares era parte do terreno com aproximadamente 360 mil metros quadrados expropriado em 1901 aos chineses locais, graças ao prestígio e influência de Lu Cao. Essa zona, de várzeas, prédios, casebres e barracas, compreendida entre as estradas da Flora, Adolfo Loureiro e Coelho do Amaral e a povoação de Mong-Há, devido ao sistema de cultura era a causa do paludismo e febres, que atacavam os locais. Por isso, em 1901 planeava-se, depois de saneado o terreno, construir ruas, largos e avenidas, devendo-o transformar num bairro que podia vir a ser o mais belo de Macau. Mas parte desse terreno em 1926 encontrava-se ainda livre de construções e por isso, foi decidido usá-lo como local para o recinto da Feira e Exposição. Situado entre a Rua Conselheiro Ferreira de Almeida e as avenidas Coronel Mesquita, Sidónio Pais e Horta e Costa, havia na parte NE do seu interior um lago situado em frente à entrada do Kun Iam Tong. Este lago foi criado a partir de uma depressão que formara uma lagoa e pertencia à bacia hidrográfica de Mong-há, tal como o do Jardim do Sr. Lu-Lim-Ioc, sempre cheio de água corrente renovada diariamente e por isso não eram estes de água estagnada. O médico subchefe dos Serviços de Saúde, o Dr. Nascimento Leitão refere numa entrevista de 1926, “Os terrenos baixos e alagadiços do vale, ou melhor, da bacia de Mong-há, impropriamente conhecida pela designação de várzeas, que ainda há vinte anos se estendiam de Long-Tin-chin até ao rio (Xijiang), tem ido pouco a pouco desaparecendo sob os aterros de um bem necessário saneamento. Havia naqueles terrenos quatro depressões, permanentemente cobertas de água, que os aterros têm poupado, circunscrevendo-os num contorno mais ou menos caprichoso. Três destas depressões estão transformadas em lagos de jardins particulares, restando ainda uma delas, a mais vasta, cortada por duas estradas em três porções, uma das quais foi, por feliz ideia, convertida em lago de diversões da presente Exposição”. É este lago alimentado pela drenagem pouco profunda dos terrenos circundantes, sendo a génese da sua água nada mais do que dos poços naturais e era com ela que contavam os Serviços de Incêndios colocados no recinto da Feira.

Visita aos pavilhões

À entrada do recinto da feira, situada na Avenida Horta e Costa, pela forma original impunha-se o pavilhão nº 9 da Portugal-Oriente, expondo produtos de origem portuguesa. Recebeu o segundo lugar dos pavilhões com Diploma de Medalha de Ouro. Em primeiro ficou o Holland Pacific Trading Co. que levantou na ilha do lago um imponente moinho holandês com casa anexa. “Estas duas construções imprimem à feira uma nota original, quer pela sua forma, quer pelo feliz local escolhido. Expõe produtos de origem holandesa, como leite condensado, chocolates, etc.. Esta firma, que é também agente de várias companhias de navegação, apresenta várias fotografias de vapores. No meio da casa, toda ladrilhada, vê-se um pequeno monte de carvão de Moçambique que o Sr. Van Genepp”, representante em Macau da Companhia, pretende aqui introduzir. Já o terceiro lugar coube à Companhia Netherlands Harbour Works. Desde Maio de 1923 adjudicatária das Obras dos Portos, fez-se representar por um pavilhão também de gosto holandês, tendo em exposição vários modelos de barcos, gruas das obras feitas em H.K., assim como um gráfico com as diferentes fases dos trabalhos realizados no porto de Macau. Estes alguns dos pavilhões que participaram comercialmente na Feira da Exposição Industrial.

25 Nov 2016

Gincana de automóveis na Feira de Macau

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m pleno Grande Prémio, escrevemos hoje sobre a primeira corrida de carros realizada em Macau, organizada por iniciativa do Sporting Club desta cidade, fundado dois meses antes, a 11 de Setembro de 1926 e inserida no programa das festas da Feira e Exposição Industrial.

Às 14 horas de Domingo, 5 de Dezembro, com uma enorme assistência ocorreu a gincana de automóveis, presidida pelo Governador interino Almirante Hugo de Lacerda. Encontravam-se inscritos dezoito concorrentes, cuja lista era a seguinte: o carro número 1, conduzido por A. Luz trazia como acompanhante a Melle. A. Brandão; o n.º 2 por Lo Yam-Man (Lu-Ia-Pat), levava ao lado a Miss Choi; o n.º 3 por Dr. Pedro Lobato e damizela Amália Nolasco; o n.º 4 por Henrique Nolasco e D. Orlinda Leitão; o n.º 5 por Dr. Sousa Afonso e Melle. Luísa Ambar; o n.º 6 por F. Borralho e damizela B. da Silva. A única condutora feminina, Melle. Angelina Santos corria no carro n.º 7 acompanhada por Avelar Machado e ficou em segundo lugar. Já o carro n.º 8 guiado pelo Eng. Brandão de Vasconcelos trazia como pendura Melle. Maria Pacheco; o nº 9, conduzido por D. João Vila-Franca levava ao lado Melle. Beatriz Nolasco; o nº 10 com Elísio Mendes e damizela Alice Ribeiro; o nº 11 com Dr. António Leitão e Mme. Maria Gellion; o nº 12, Rui de Menezes e a sua esposa; o nº 13, Ten. A. Machado e Melle. A. Santos; o nº 14, Carlos Silva e Melle. Celeste Vidigal; o nº 15, M. Ribeiro e Melle. G. Silva; nº 16, M. Borges e Melle. B. Ramalho; nº 17, M. Contreiras e Melle. Si-Ling e o nº 18, L. Rodrigues e Melle. L. Rodrigues. No percurso foram colocados vários obstáculos para criar mais emoção e dar mais interesse à prova. Havia o serviço de fiscalização da pista e para a classificação dos concorrentes, sendo o júri composto pelos Srs., Capitão-de-Mar-e-Guerra Ivens Ferraz, Coronel J. A. dos Santos e Eng. C. Alves. “Os prémios foram seis e ganhos pela ordem numérica ascendente, pelos automóveis concorrentes números 10, 7, 12, 15, 3 e 11. Um dos concorrentes do carro nº 11 referiu que não quiseram aceitar o respectivo prémio, por não ter sido atendida uma reclamação feita ao júri”. Por ocasião da gincana houve apostas sobre os concorrentes, na forma de aposta proporcional (pari-mutuel), pelo sistema das corridas de cavalos. Esta iniciativa reverteu com 20% da importância dos bilhetes vendidos a favor do Asilo da Santa Infância e o produto líquido foi distribuído por três prémios, cabendo ao primeiro 60%, ao segundo 25% e ao terceiro 15%. Os bilhetes premiados, que não foram pagos nesse dia, vieram-no a ser na sede do Sporting, à Avenida Ferreira de Almeida.

Se só a 11 de Outubro de 1914 circulou o primeiro carro em Portugal Continental, um Panhard et Levassor, de 1200 centímetros cúbicos e 3,75 cavalos, guiado entre o Barreiro e Santiago do Cacém pelo Conde Jorge de Avillez, já em Macau e ainda antes de 1906, o chinês Chân Fóng (陈芳, 1825-1906) foi o primeiro a importar um carro, um Chevrolet. Em 1907 existiam já sete automóveis e em 1911, apareceu o primeiro táxi. Os registos mais próximos que encontramos da data desta gincana são de 1928 e referem haver na cidade 134 carros ligeiros particulares.

Outros divertimentos

No dia anterior à gincana automóvel, a 4 de Dezembro, ocorreu às 21:30 no ringue, instalado no meio da Feira ou no cinematógrafo da Exposição, como noutro artigo de A Pátria vem referido, três combates de boxe entre jogadores de Hong Kong e Macau, tendo os últimos vencido em toda a linha. Nesse Sábado, despertando um enorme interesse entre o público, o programa tinha como ponto forte o combate de boxe a opor o mais afamado pugilista de Macau, o amador Sr. Pinto da Silva contra o Sr. Kid Raymond, profissional de Hong Kong e cujo palmarés era invejável, pois vencera por KO, ou aos pontos, os últimos dez combates que realizara, parecendo não haver rivais à altura. Ambos traziam dois dos seus alunos para complementar o programa e aquecer a plateia, jogando-se assim três combates de dez rounds cada um. O júri era composto pelo Tenente-médico João Rosa e o Tenente José Lopes Bragança por Macau e de Hong Kong, o Sr. Ligores e Noronha. O primeiro combate opôs João Conceição contra Batling Ilartino, tendo o representante de Macau vencido no segundo round. O seguinte foi entre Joaquim P. Góis e o representante de HK, J. Soares, que perdeu por pontos ao oitavo round. Por fim veio o combate mais esperado e o que trouxera toda aquela assistência ao recinto. Pinto da Silva venceu logo no segundo round Kid Raymond e se houve um certo desconsolo pela brevidade do combate, a vitória de Macau elevou os ânimos aos habitantes desta cidade, habituados nos desafios desportivos a perder para Hong Kong.

O programa para o feriado de 1 de Dezembro e dia seguinte, propunha no Campo da Feira uma importante festa organizada pelas tropas terrestres da guarnição militar da cidade. Apresentava “divertimentos nunca vistos em Macau, tais como, o combate de galos pelos timorenses, dança de guerra pelos praças indígenas de Moçambique, com lanças e cutelos afiados”. Outras surpresas não específicas estavam programadas e constaram de saltos suecos, corrida de velocidade de 80 metros, lançamento de granadas, corrida de bicicleta (negativa), assim referia A Pátria, de onde retiramos grande parte das informações aqui registadas. Realizaram ainda, corrida de estafetas (com sarilhos), de obstáculos e de púcaros, assim como luta de tracção com equipa de oito praças. Na preparação destes praças, para a festa ter o melhor brilho possível, concorreram vários oficiais, sob a orientação do Coronel Joaquim dos Santos. No dia 2 fez-se um jogo de futebol entre as selecções da Marinha e do Exército.

De referir que o preço da entrada geral no Recinto da Exposição Industrial e Feira de Macau custava 5 avos nota ou prata, ou 10 avos cobre. Nessa altura o jornal A Pátria custava 10 avos em prata. À venda havia também, para comodidade das famílias numerosas, ou colectividades, maços de dez e cem bilhetes, a custar respectivamente 50 avos e 5 patacas prata e podiam-se comprar antecipadamente na Direcção das Obras Públicas do Porto, na Livraria Portugália, na 1ª Secção à Praia Grande e na filial do Banco Nacional Ultramarino. Pelos 12 mil bilhetes de entrada para a Exposição, vendidos até ao fim da tarde do dia da inauguração, percebe-se o enorme interesse que esta teve na cidade e arredores, encontrando-se o recinto, com uma iluminação deslumbrante, até à meia-noite apinhado de visitantes.

18 Nov 2016

Discurso de abertura da Exposição Industrial de Macau

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o Domingo dia 7 de Novembro de 1926 fora inaugurada a Exposição Industrial de Macau no Campo de Mong-Há, e o jornal A Pátria, diário desde 1 de Outubro de 1925 e que em Abril de 1926 tinha como editor e proprietário o Pe. António José Gomes, doutorado em Teologia, referia a 9 de Novembro de 1926, “não poderia ser, nem mais atraente, nem mais auspiciosa, se atendermos às circunstâncias presentes desta Colónia, conjugadas com o estado político e económico do Sul da China.” A China encontrava-se mergulhada numa guerra civil desde 1917, estando dividida com dois governos rivais. Um a Norte, reconhecido internacionalmente e o do Sul, apoiado pelo Partido Nacionalista e liderado por Sun Zhongshan. Quando este, Sun Yat-Sen para os ocidentais, morreu em 1925, começou uma luta interna no Guomintang entre as duas facções, uma comunista e a outra nacionalista, esta liderada por Chan Kai-Chek.

“A inauguração ocorreu às 14h e pico, sob um Sol escaldante” e estava o recinto da Feira apinhado de gente convidada especialmente para esse fim. No estrado central tomaram assento o Governador da Colónia, tendo à sua direita o Governador do Bispado, Reverendo A. J. Gomes, o Presidente do Leal Senado Damião Rodrigues e à esquerda, o Presidente da Comissão da Exposição, o Engenheiro Carlos Alves, o Professor Chan, representante da Associação Comercial Chinesa e o Sr, Frederico Gellion, manejante da Macau Electric. Depois de tocado o Hino da Maria da Fonte pela banda do Orfanato e cantado o Hino Nacional pelo Orfeão do Liceu Central de Macau, começou a série de discursos.

O discurso do Almirante Lacerda

Presidindo à festa de abertura da primeira Exposição Industrial e Feira de Macau, o então Governador interino, Almirante Hugo de Lacerda fez o seguinte discurso: “Tudo o que vemos em volta, todas estas barracas vistosas e engalanadas, cheias de artigos de variado valor, partiu da ideia de se estabelecer um simples mostruário de produtos de Macau”. Referiu que de início fora a exposição planeada para uma “sala do edifício do Leal Senado para uma exibição de poucos dias; depois passou-se a considerar também o aproveitamento do largo em frente deste edifício; mas a breve trecho, reconheceu-se a necessidade de um mais vasto campo, primeiro Tap Siac e depois o parque da Avenida Vasco da Gama, e por último, o lugar onde estamos, isto é, a baixa de Mong-há a qual por vezes chegou a parecer pequena. Tratava-se então de facto de realizar a feira como fora projectada pelo Governador Rodrigues e para o qual se conseguira $60 mil (patacas) como auxílio a dar por parte do Governo, mas que no caso presente se reduziu à quinta parte, o que foi motivo de bastantes dificuldades.”

“O que vemos em volta não representa um acontecimento isolado e com restrita significação como a alguns poderá parecer; liga-se fundamentalmente com todo o ressurgimento de actividades industriais e comerciais que de há tempos se notam nesta cidade, a despeito de todas as dificuldades do viver político da China; liga-se naturalmente com as previsões do aproveitamento do porto de Macau, este novo e valioso instrumento do progresso. Indústria, comércio, navegação e viação terrestre dão-se as mãos, quando há uma população obreira como a de Macau e a que há em volta de Macau.” (…) “Dentro do progresso material se deve contar muito em Macau com o benefício trazido por forasteiros; não basta a produção e o tráfego de mercadorias, é preciso atrair a concorrência de pessoas por todas as formas dignas de uma cidade moderna; é necessário considerar o valor do que se chama o Turismo. A Direcção das Obras dos Portos não tem descurado este importante aspecto da questão dentro dos limites das suas possibilidades, indo até ao ponto de fazer sacrifícios, como por exemplo o estabelecimento de uma pista de corridas de cavalos, nos terrenos conquistados defronte da Areia Preta, crente em que estes sacrifícios terão largas compensações indirectamente para o porto e sem dúvida mais directamente para a cidade. Pena é que não possamos fazer neste momento, também a inauguração deste melhoramento como se chegou a julgar possível.” A pista de corrida de cavalos na Areia Preta só foi inaugurada em Março de 1927.

“Voltando à exposição propriamente dita e atendamos também aos que nela trabalharam. O que está à vista não é mais do que uma tentativa, é certo, mas quando se considerem todas as dificuldades que resultaram dos fracos recursos, quando se considere ainda que tudo isto representa uma novidade para Macau, quando se atenda a que a maior parte do trabalho directivo e não directivo foi realizado com pessoal das Obras dos Portos, já tão sobrecarregado de serviços, fica-se defronte de qualquer coisa admirável; para cúmulo até a Natureza parece que quis experimentar a resistência do prestimoso Comissariado com um violento tufão (ocorrido inesperadamente a 27 de Setembro, causando grandes estragos no Porto Exterior, mas em terra não houve desastres pessoais) que reduziu o que estava feito já em estado adiantado a um montão de ruínas”. (Em terra os prejuízos materiais limitaram-se à destruição quase completa dos pavilhões destinados à Exposição no Campo de Mong-há, vulgarmente denominado Campo dos Aviadores, de várias barracas de obras de construção, fios partidos de iluminação eléctrica e dos telefones, tabuletas de vários estabelecimentos e cangalhadas e outros estragos de somente importância. De referir que nessa altura, a data da inauguração estava ainda marcada para 30 de Outubro.) “Foi esse momento crítico. Mas o momento mais crítico foi talvez aquele em que, havendo já compromissos importantes, foram negados quase totalmente os recursos ao Comissariado. Felizmente que essa enorme dificuldade foi removida, porque, a instâncias deste Governo, Sua Exa. o actual Ministro das Colónias, Capitão Tenente João Belo, autorizou que, pelos fundos do Conselho de Administração das Obras dos Portos, fosse aumentada aquela importância com $2000 (patacas). Creio que com esta experiência ficará bem vincada em todos a convicção da necessidade de nos futuros orçamentos da Colónia, ou na distribuição de verbas da Direcção das Obras dos Portos, se consignar a importância até pelo menos de $20 mil para anualmente se realizar a Feira de Macau. Aproveito ainda esta ocasião para dizer que este certame veio dar grandes facilidades para se realizar um melhoramento mais permanente – o estabelecimento dum museu comercial e etnográfico da Colónia – cuja falta se vinha fazendo sentir e mais se sentiria com o desenvolvimento da vida do porto” sendo “no Boletim Oficial estabelecido por Portaria”.

“Não está terminada ainda a missão do Comissariado da Exposição, mas por menos que tivesse que fazer de ora avante, já se tornou digna dos maiores louvores por todo o seu trabalho e dedicação, que não poderá ser esquecido por este Governo e pela Colónia.” Assim terminava o discurso do então Governador interino de Macau.

Foi durante a Sétima Sessão da Comissão, a 10 de Julho de 1926, que o Secretário pedira a nomeação de um Comissariado para dar cumprimento às resoluções da Comissão, pois, até ali, tem ele sozinho estado sobrecarregado com todo o trabalho. Assim logo se elegeu para o Comissariado os Srs. Pe. Manuel José Pita, Henrique Nolasco da Silva, Artur Tristão Borges e João Barbosa Pires. A ela se foram juntando Hü-Cheong, o Major Victor de Lacerda, o Capitão Afonso de Veiga Cardoso e desde finais de Setembro, o Tenente Gaudêncio da Conceição, Comandante do Corpo de Salvação Pública e da Polícia de Segurança.

A Feira de Macau e Exposição Industrial ficou aberta até 12 de Dezembro de 1926.

11 Nov 2016

A Exposição Industrial de Macau de 1926

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] 4 de Novembro de 1926, faltando três dias para a abertura da Exposição Industrial de Macau (inaugurada a 7 de Novembro), reinava um grande optimismo sobre o sucesso do certame, que contrastava com o inicial ambiente de descrédito sobre a sua realização. No Campo de Mong-há achavam-se já montados sessenta pavilhões e o número dos expositores industriais e comerciais subia a mais de oitocentos além de vários indivíduos de Cantão e Hong Kong, inscritos como comerciantes ambulantes de curiosidades chinesas.

A ideia inicial de se realizar em Macau uma feira com produtos nacionais e estrangeiros fora do Governador Sr. Dr. Rodrigo Rodrigues (1923-24), mas só ganhou corpo com o Governador Tenente-Coronel Manuel Firmino Maia Magalhães, que tomara posse a 18 de Outubro de 1925 e foi exonerado a 19 de Junho de 1926. Em Janeiro de 1926, dera instruções à Direcção das Obras dos Portos para iniciar os trabalhos de organização duma ‘Exposição Industrial e de Estudo’ referente a Macau, a realizar em Abril desse ano no Campo do Tap Seac. Em 14 de Fevereiro foi constituída uma Comissão encarregue de levar a efeito a ‘Exposição Industrial e de Estudo’, que logo mudou a data para Setembro, devido ao curto espaço de tempo para realizar tal invento, tendo ainda sido escolhido um novo local. Seria no Jardim Vasco da Gama, alameda criada após o saneamento da extensa várzea do Tap Seac e planeado pelo Eng. Abreu Nunes. Inaugurado em 1898, era o segundo jardim público de Macau e a sua primeira ampla via pública, que muito contrastava com as restantes ruas estreitas e escuras da cidade.

Já como Exposição Industrial de Macau, a 22 de Maio, com a adesão de grande número de expositores, que subiam agora a 520, pareceu à Comissão não haver possibilidade de se realizar a feira e exposição dentro do Jardim Vasco da Gama e para que não fosse sacrificado o tamanho dos pavilhões, ficou acordado o Campo de Mong-Há. Um espaço livre de 8 hectares, compreendido entre a Rua Conselheiro Ferreira de Almeida e as avenidas Coronel Mesquita, Sidónio Pais e Horta e Costa, onde no dia 3 de Novembro de 1926 se reuniu “uma comissão de senhoras que, a convite da Comissão Organizadora, tomou a seu cargo o trabalho da disposição dos numerosos artigos nos pavilhões gerais”, como refere o jornal A Pátria, de há 90 anos. Este dá como notícia, esperar-se ainda o material da Companhia de Vaudeville de Manila, que deverá chegar a Macau na tarde do dia seguinte, estando o transporte confiado ao American Express e a montagem no recinto da exposição terá, impreterivelmente, de ficar pronta no dia da abertura da exposição. Contava para tal com uma equipa de vinte e cinco operários da Vaudeville, encontrando-se muitos dos seus artistas já em Macau.

Antecedentes

A 20 de Janeiro de 1926, a Direcção das Obras dos Portos enviou uma carta ao Director do diário “A Pátria”, F. X. dos Remédios onde se refere, “Tendo esta Direcção, de conformidade com as instruções de Sua Exa. o Governador, iniciado os trabalhos de organização duma ‘Exposição Industrial e de Estudo’ referente a esta Colónia, a realizar em Abril P.F. e que servirá de início a um futuro Museu e Exposição Permanente de todos os produtos das indústrias locais e mostruário de produtos da Metrópole e das Colónias Portuguesas e em que se reúnam todos os elementos hoje dispersos e alguns talvez desconhecidos do público, tomo a liberdade de vir pedir a V. Exa. o indispensável apoio do conceituado jornal que mui dignamente dirige, no sentido de tornar pública esta iniciativa que poderá vir a constituir um valoroso atractivo para a colónia e dela ser feita a propaganda necessária de forma a concorrerem à mesma alguns interessados. Junto a esta, envio alguns tópicos referentes à constituição da supradita exposição para melhor elucidação desse Jornal”, vem assinada por Hugo de Lacerda, Director das Obras dos Portos. Foi publicada n’ A Pátria a 26, Terça-feira, acompanhada com um estendo texto do director do jornal onde se lê, “Calorosamente aplaudimos esta ideia, como já a tínhamos aplaudido no tempo do Sr. Dr. Rodrigo Rodrigues, que tomara a iniciativa de realizar em Macau uma feira com produtos nacionais e estrangeiros. É com prazer que vemos o Governo local entrar no caminho das realizações práticas.” (…) “Desta feita teremos uma Exposição!” (…) “E Macau bem precisa disso. Estamos num tempo de utilitarismo, em que só triunfa quem tenha iniciativa e faculdades de trabalho.” (…) “Com os recursos de que dispomos, bem podemos ser um valor apreciável no movimento comercial e industrial do Sul da China. A questão é sabermos fazer uma inteligente propaganda dos nossos valores económicos…” (…) “Expor, portanto, esses produtos industriais é fazer a melhor propaganda de Macau e contribuir para criar uma atmosfera propícia a novas iniciativas. Mas não é apenas o lado industrial da exposição, que nos deve interessar. É também a parte artística e sobretudo o plano de iniciar, com os produtos da Exposição, um novo Museu. Macau, uma terra de tradições, velha de quase 4 séculos, não tem um Museu! É um vexame para nós e uma demonstração palpável de incúria e de falta de senso artístico. Particulares há, que transformaram as suas casas em verdadeiros museus de arte chinesa, e o Governo da Província nem mesmo no tempo das vacas gordas se lembrou de pôr de lado meia dúzia de patacas para ir coleccionando, pouco a pouco, tantas maravilhas artísticas, que por aí se encontram. Ainda bem que se pretende agora remediar esta falta, que de longe vem.” Já num texto à parte assinado pelo encarregado, João Barbosa Pires diz que a Exposição Industrial e de Estudo estará aberta durante um mês e será dividida em três secções (Secção Fotográfica, Secção Cartográfica, Hidrográfica e de Maquetes, e Secção Industrial), assim como as condições para o público, amador ou profissional, tomar parte na Exposição Fotográfica cujo tema é sobre tudo o relacionado com Macau.

A 28 de Janeiro foi inaugurada a Doca Seca do Través do Patane concebida pelo Almirante Hugo de Lacerda, estando inserida nas obras do Porto de Macau.

Primeira reunião da Comissão

Em conformidade com instruções do Governador, a Direcção das Obras Públicas iniciou os trabalhos da Exposição Industrial de Macau, convidando “alguns cavalheiros para tomarem parte de um Comité que se incumbiria da direcção dos trabalhos da Exposição, tendo-se este reunido no dia 14 (de Fevereiro de 1926), presidindo S. Exa. o Governador M. Maia Magalhães e encontrando-se presentes o ajudante de campo Dr. Afonso de Albuquerque, Comissário das Alfândegas, Comissário das Alfândegas, Carlos R. Cabral, Vice-Almirante, Director das Obras dos Portos, Hugo de Lacerda, Capitão de Fragata, engenheiro, José Maria Lopes, Major, Víctor de Lacerda, Chefe de desenho e propaganda, João B. Pires e o Escrivão da Capitania dos Portos, Artur Tristão Borges. Não puderam comparecer a esta reunião, por motivos justificados, o Sr. Gerente do Banco Nacional Ultramarino, M. Monteiro Lopes, Gerente da Macao Electric Lighting Co, F. J. Gellion, Comendador Lu-Lim-Ioc e o capitalista, Fong-Chioc-Lam.” Após as explicações do Governador do motivo desta e outras reuniões que se seguirão, “contando com a boa vontade de todos os cavaleiros presentes para levar a efeito a Exposição cujos trabalhos já estavam iniciados, tendente a vulgarizar a indústria local, bastante desconhecida, no momento em que Macau pretende regressar a uma vida próspera.” O Sr. Almirante Lacerda expôs as razões da constituição da Comissão da Exposição, sendo a distribuição dos lugares divulgada no que ficaria a ser a primeira Sessão da Comissão. Assim como Presidente ficava o Almirante Hugo de Lacerda, para Tesoureiro, Monteiro Lopes, para a Propaganda, Lu Lim-Ioc e na Direcção Técnica, P. da Cunha Gomes, que passado um mês e meio saiu devido ao seu retorno à Metrópole. Para o cargo da Estatística ficou Carlos Cabral, Construções, Víctor Lacerda, Iluminação, F.J. Gellion, Propaganda, Fong-Cheoc-Lam, Administração, José Maria Lopes, Cinematógrafo de Macau, Artur Borges e Secretário, João Barbosa Pires. Todos aceitaram os cargos, sendo depois “discutidos vários problemas referentes à Exposição, como é o seu carácter relativamente modesto apenas de interesse local, que por forma alguma se poderá comparar às grandes feiras internacionais”. Resolveu-se, “atendendo à necessidade de contar com largo espaço, fixar a Alameda Vasco da Gama, como local mais próprio para a realização da Exposição”.

“Apreciados os trabalhos já executados, foi notado que os expositores que se comprometeram até agora a aderirem à Exposição sobem a 150, declarando o encarregado Borges Pires, que essas adesões representam os convites feitos numa semana e numa área diminuta da Colónia, calculando deverem aderir aproximadamente 600 expositores, queixando-se, todavia, muitos deles de falta de tempo para apresentarem mostruários honrosos para as suas indústrias.”

Da inicial ideia de realizar em Maio a Exposição, por proposta do Sr. Cunha Gomes foi mudada para Setembro e aceite por todos. Também foi lançada a ideia de fazer a emissão de um selo comemorativo da Exposição para ajudar às receitas “e para não fazer qualquer exigência aos expositores a quem serão dadas todas as facilidades”. “Igualmente lembrou-se a possibilidade de etiquetas sem encargos para a Indústria de Macau, e tudo de forma a se colherem os melhores resultados quanto a elementos de estudos estatísticos.” Por fim resolveu-se marcar para o dia 15 de Março a próxima reunião.

A Pátria de 25 de Fevereiro refere terem começado já com entusiasmo as adesões de industriais e amadores fotográficos a esta Exposição. Para os interessados deverão dirigir-se ao encarregado da Direcção das Obras dos Portos, assim como, as condições para tomar parte na Exposição Industrial, que no seu primeiro artigo diz somente poderem concorrer os industriais de Macau, Taipa e Coloane, podendo expor os seus artefactos em conjunto, ou em stands próprios. A 2 de Março, constavam já mais de 160 industriais inscritos e o jornalista alvitrava “que se adie a realização para Outubro, Novembro ou Dezembro – a quadra melhor de Macau – para haver tempo suficiente para que todas as indústrias possam expor os seus produtos, alguns dos quais têm que ser feitos com muita antecedência.”

A Segunda Sessão

A 15 de Março de 1926 na Direcção das Obras dos Portos reuniu-se a Comissão encarregada dos trabalhos referentes à Exposição, onde apareceram todos os membros e foi presidida pelo Almirante Lacerda. Apresentou o Plano Geral da Exposição na Alameda Vasco da Gama, constando da disposição de 60 pavilhões particulares dos quais 20 já estavam reservados, além dos pavilhões da Comissão de stands gerais, cinematógrafo, hall de dança, buffet, etc.. O Sr. F. Gellion referiu achar inconveniente as projectadas barracas de óla, que poderiam ser motivo de incêndio, e propunha que fossem feitas de madeira. Lembrou então Victor de Lacerda a necessidade de destacar para o local da Exposição dois piquetes de bombeiros. Monteiro Lopes referiu “que sejam executados pelos encarregados destes trabalhos, alguns modelos de pavilhões que servirão de padrão, podendo ser principalmente de lona, que se presta a maior embelezamento e modelação. João Barbosa Pires contrapôs que se deveria dar a maior liberdade possível na construção dos stands, o que, “depois de ouvidos os membros chineses e devidamente discutido o assunto, ficou resolvido dar-se ampla liberdade aos concorrente para executar os pavilhões de lona, madeira, zinco, óla, devendo, neste último caso, ser construídos de madeira na parte inferior pelo menos até um metro de altura”. O Plano Geral foi aprovado depois de algumas emendas propostas por Cunha Gomes. Já Gellion perguntou se um mês não seria pouco tempo de Exposição, ao qual Barbosa Pires retorquiu que tal “teria razão de ser se não se promovessem distracções próprias das exposições”. Nessa sessão a Comissão considerou ainda “a necessidade de admitir pavilhões de comerciante que queiram expor e vender artigos por meio de entretimento, rifas, etc.,” lembrando o Presidente a vantagem de considerar em primeiro lugar os industriais a fim de se promover uma Exposição Industrial e não uma Feira; “todavia, concorda com a admissão dos particulares ou comerciantes de Macau, ou de fora, que neste caso, contribuirão com uma pequena taxa, o que é justíssimo uma vez que vão negociar”. Proposta aprovada. Por fim, tratou-se da propaganda da Exposição, para o qual o Presidente pediu a coadjuvação dos Srs Fong-Sôk-Lam e Lu-Lim-Iôc para a divulgar entra a comunidade chinesa, tendo o primeiro lembrado que se deveria enviar anúncios para a imprensa chinesa. Após o debate sobre o envio para os principais centros vizinhos do Interland é proposto que essa propaganda fique limitada aos distritos de Heong-Shang, Sun-Tak e San Hui. Devido ao adiantado da hora, foi marcada a próxima sessão para o dia 31 de Março.

4 Nov 2016

O Pirata Zheng Yi e a Senhora Zheng Yisao

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste artigo surgiu quando ao estudar o pirata Cam-Pau-Sai (nome dado pelos portugueses a Zhang Baozai), à procura dos antecedentes, encontrámos uma outra personagem, Ching Ye. Zheng Yi, em mandarim, era um pretendente a Imperador da China oriundo de uma família de Fujian, ligada logo de início à oposição Ming aos manchus e depois à dinastia Qing. Lutava no mar e em incursões às costas para restaurar a dinastia Ming dos Han e por isso, passou a ser o nosso biografado.

Os acontecimentos referentes ao período de actuação de Ching Ye e depois de Cam-Pau-Sai, onde em permeio ocorreu no ano de 1808 a tentativa de invasão de Macau pelos ingleses e sobre a qual já tratámos, trazem como antecedente a rebelião de Tay-son, aqui aprofundada por Ângela Guimarães: “Em 1773, uma família de comerciantes da província de Binh Dinh, no sul do Vietname, lançou o que ficou conhecido como a rebelião de Tay-son, pretendendo conquistar o poder à dinastia do Imperador Lee, o qual o deixava nas mãos de duas grandes famílias rivais que, desde o século XVI, dominavam o Vietname: os Nguyen no Sul, com capital em Hue e os Trinh no norte, com capital em Hanoi. Numa primeira fase, até à derrota dos Nguyen, em 1785, o Tay-son concentrou a sua atenção no sul. Logo a seguir, em fins desse mesmo ano, conseguiu expulsar os Trinh de Hanoi e instalar-se aí em 1786. O Imperador Lee pediu ajuda ao Império do Meio, de quem era tributário. Três exércitos chineses invadiram o Vietname para restaurar a dinastia Lee, mas, perante a vitória do Tay-son, o Imperador Chienlong (Qianlong) reconheceu e legitimou o Imperador Tay-son Quang Trung, como rei do Annam”. A luta do Tay-son continuou contra os Nguyen do Sul e apesar da vitória em 1789, o que levou os Nguyen, instalados agora em Saigon, a prosseguirem a luta e recuperando aos poucos o território, por fim expulsado do poder em 1802 o Tay-son.

Já em 1796, o Imperador Jiaqing (1796-1820) tinha determinado “pesadas penas para os que se dedicassem à pirataria, ao mesmo tempo que instou os Tay-Son a eliminarem os principais quartéis generais dos piratas”, segundo Vítor Luís Gaspar Rodrigues e com ele continuando, “Após 1799 as autoridades chinesas adoptaram uma política de perdão e pacificação com o intuito de proceder à anulação daquelas forças através da sua inserção na sociedade chinesa, mas, com o acentuar do declínio político-militar dos Tay-Son no Vietname nos primeiros anos do século XIX, tudo se tornou mais difícil. Com efeito, a derrota dos seus exércitos em Julho de 1802, a que se seguiu a captura de Zheng Qi, um dos principais chefes dos piratas e a destruição da sua base em Jiang Ping, provocou um recrudescimento das actividades dos piratas nas costas da província de Guangdong, em virtude de para aí se haverem retirado muitos dos piratas que perdido o apoio vietnamita, buscavam agora um local mais propício às suas actividades predadoras”.

O pirata Zheng Yi

Assim, no último decénio do século XVIII, as costas da província de Guangdong começaram de novo a ser palco das acções dos piratas, que reuniam os Toy-Son, aí actuando para a sustentação dos seus exércitos a combater no Vietname, com bandidos locais e de Taiwan.

“Uma confederação entre os salteadores consolidou a sua força e tornou-os realmente poderosos”, segundo Montalto de Jesus. “Porque os piratas se tivessem organizado numa confederação, em Julho de 1805, as suas actividades adquiriram, a partir dessa data, uma nova feição, mais organizada e sobretudo planificada em função dos interesses dos membros dessa nova entidade político-militar. Com a regularização das diversas bandeiras que haviam subsistido – das 12 iniciais persistiam agora apenas 6 e com a proibição de combates entre si, a que adicionaram o estabelecimento de regras relativas à repartição das presas, os piratas assumiam-se agora como a verdadeira força militar-naval a operar nas costas da província de Guangdong”, segundo Vítor Luís Gaspar Rodrigues, que refere o relato do inglês Glasspole, no The Chinese Repository, quando este esteve cativo junto dos piratas. Glasspole disse que nessa altura “toda a grande armada tinha no comando cinco chefes, independentes entre eles e as suas divisões distinguiam-se pelas suas várias bandeiras. A da bandeira vermelha era a maior e mais forte. Três anos depois foram eles divididos em seis esquadrões, distinguidos pelas bandeiras, vermelhas, amarelas, verdes, azuis, pretas e brancas e se cada uma operava isoladamente, em ocasiões de perigo ou em importantes acções juntavam-se”.

Chefe de uma imensa armada de piratas, que no último quartel do século XVIII infestava o Mar do Sul da China, Ching Ye nos inícios do século XIX vencera com facilidade todos os mandarins que o Vice-Rei de Cantão contra ele enviou. A costa do Sul da China e sobretudo, para maior provocação, a Boca do Tigre, entrada para Cantão no Delta do Rio das Pérolas, encontrava-se infestada de piratas devido à fraca marinha imperial, que estava “mal apetrechada, sem comandantes capazes e composta por militares onde imperava um baixo moral, rever-se-ia, ao longo dos anos, impossibilitada de se opor aos ferozes, disciplinados e adestrados piratas, acumulando com isso derrotas sucessivas”, segundo Vítor Luís Gaspar Rodrigues, que refere o crescimento contínuo das forças dos piratas, “sob o comando de Zheng Yi, possuíam já duas importantes bases, uma situada na península de Lei Zhou, ao Norte de Ainão, e a segunda, na ilha de Lantau, de onde partiam muitos dos seus ataques às costas vizinhas do burgo macaense”. A. da Silva Rego adita: “A revolta tinha dois fins conjuntos: o roubo e a extinção da própria dinastia manchu. Não ocultava Ching Yi os seus verdadeiros intuitos e, por isso, congregou à sua volta bastantes milhares de indivíduos que espalharam o terror por toda a província.”

“Uma confederação entre os salteadores consolidou a sua força e tornou-os realmente poderosos. O seu chefe, Ching Ye, aspirava a nada menos do que o poder imperial”, Montalto de Jesus.

Com Zheng Yi andava no barco a sua mulher, a senhora Zheng Yisao, que, segundo Beatriz Basto da Silva refere para o ano de 1801, “A Senhora Cheng com 26 anos casou-se com um pirata e por isso deixou de viver num Barco de Flores em Cantão. Deixou a prostituição e tornou-se a pirata Cam-Pao-Sai”, usando o que diz Dian Murray, no livro Woman and Piracy an Alternative Route to Power: “Ao deixar de ser pei-pei chai torna-se a pirata Cam-Pao-Sai”. Consultando outros historiadores, Cam-Pao-Sai não era a Senhora Cheng, mas antes um dos braços direito do chefe dos piratas Ching Ye.

Mas em 1807, Zheng Yi morreu afogado após o naufrágio do seu barco durante um tufão.

A Senhora Zheng Yisao

Após a morte do chefe carismático Zheng Yi, a liderança foi assumida pela viúva Zheng Yisao. E continuando com Montalto de Jesus: “A sua viúva, uma mulher extraordinária, assumiu então a chefia, organizou a frota, estabeleceu leis para a manutenção da disciplina, e escolheu para segundo comandante o notório Cam Pao Sai, também conhecido por Chang Pao”. José Ignácio de Andrade refere, “Tendo morrido o Chefe dos piratas ficou sua mulher, não só herdeira do posto, mas também da sua audácia no exercício da piratagem. Assim que tomou posse do comando de tão grande poderio, dividiu-o em duas esquadras, e deu o comando delas a dois parentes do marido, que mais se tinham acreditado debaixo das suas ordens. A primeira (arvorando uma bandeira vermelha) e mais possante coube ao célebre Apócha, que depois se chamou Cam-pai-sai e onde sempre residiu a viúva. Apau-tai (cujo nome Montalto diz ser Kwo Po Tai) foi comandar a segunda, composta de 130 embarcações e com bandeira preta.”

E seguindo com Montalto, “Os juncos, especialmente adaptados para fins predatórios e bélicos, eram geralmente estanques, e mais velozes do que os juncos vulgares. Eram de um tipo fino e elegante, a maior parte deles entre setenta e cento e cinquenta toneladas. O maior transportava vinte ou vinte e cinco canhões, com cerca de duzentos homens armados de mosquetões, espadas curtas, vasos de barro cheios de combustível fedorento, e lanças que arremessavam como dardos. A cada junco estava acoplado um barco a remos com seis ou oito canhões giratórios, que habitualmente infestava as aldeias costeiras à noite para cobrar as contribuições. A confederação recebia tributos periódicos e em troca dava salvos-condutos que eram escrupulosamente respeitados, dizendo-se que uma vez a rainha-pirata indemnizou generosamente um barco que fora pirateado apesar de ter salvo-conduto, um caso notável de honra entre ladrões. Os chefes visitavam com as suas esquadras importantes portos, que, se não aceitassem as suas imposições arbitrárias, eram imediatamente pilhados e destruídos.”

Pirataria na Boca do Tigre

Cam-Pau-Sai era o nome dado pelos portugueses a Zhang Baozai. “Cam-pau-sai, homem forte, ardiloso e empreendedor, depois de ter ganhado o afecto dos seus, teve arte de dispô-los a executar qualquer empresa que imaginasse. Com efeito concebeu um projecto tão elevado, que bem se pode comparar com o de Afonso de Albuquerque, quando pretendeu tirar da Meca o corpo do Profeta, e mudar a direcção do rio Nilo, fazendo-o desaguar no mar Roxo para aniquilar deste modo os Turcos no Egipto! Cam-pau-sai tentou coroar-se Imperador dos Chineses e lançar a dinastia Tártara para o Norte da grande muralha, que a divide da China. Começou a fazer guerra tão atroz, que não só paralisou o comércio marítimo nas costas meridionais do Império, mas também fazia desembarques no continente, e arrasava todos os lugares por onde passava”, como refere José Ignácio de Andrade.

Segundo Montalto de Jesus, na “primeira batalha contra Cam Pao Sai resultou na capitulação de uma divisão imperial de vinte e oito juncos, quinhentos canhões e oito mil homens. Os dois encontros seguintes também trouxeram desastres às forças imperiais. Uma vez, contudo, as cem embarcações do almirante Tseng puseram em fuga os piratas. Mas a sua fama cedo se perdeu. Cercado à frente e à retaguarda, foi derrotado. Depois de outro combate de duvidoso resultado, um novo almirante assumiu o comando, apenas para ser totalmente derrotado, pelo que, desesperado, se suicidou. O governo chinês procurou, então, derrotar os piratas cortando-lhes as provisões. Com este fim, a navegação nacional foi interrompida ao longo da costa infestada. Como represália os piratas perpetraram uma série de atrocidades. As forças imperiais, quando capturadas, eram estripadas vivas, uma prática que inspirava tal terror que, à simples vista dos piratas, a frota imperial fugia presa de pânico”, Montalto de Jesus.

“Sendo a cidade de Cantão a mais rica e a mais comerciante, quis embaraçar ali o negócio com os europeus. Para esse fim veio postar suas forças na embocadura do rio Tigre e em todos os canais que formam as ilhas vizinhas de Macao”, José Ignácio de Andrade e Montalto de Jesus explicita, “Só no canal de Heangshan, diz-se, caíram vítimas mais de quinze mil pessoas. Não contentes com pilhar as embarcações chinesas, os piratas atacavam também os barcos estrangeiros, atrevendo-se às vezes a ficar ao alcance das fortalezas de Macau enquanto tentavam interceptar barcos com provisões para a colónia”.

“Assombrando assim Cam-pau-sai os mares das ilhas da Cantão com seu poder, não se limitou a perseguir seus irmãos Chineses, também se atreveu a insultar os navios da Europa. Vendo o Governo de Macao o risco em que ficava, rodeado de imensa força inimiga, na estação em que todos os navios da praça se achavam ausentes; mandou a Bengala fazer um brigue para ficar de guarda costa, em quanto estes não se recolhiam: porque em os piratas sabendo, não haverem navios dentro do porto, que os fossem acometer, chegavam quasi ao alcance da artilharia das nossas fortalezas, para embaraçarem os mantimentos, que todos os dias entram na Cidade”, segundo José Ignácio de Andrade, na Memória dos feitos macaenses contra os piratas da China.

28 Out 2016

Agitação no Oceano Pacífico

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Príncipe de Yu, cujo nome era Aisin-gioro Duoduo, famoso general manchu que ajudou à fundação da dinastia Qing em 1644, seguiu com o seu exército para Nanjing onde entrou no Verão de 1645, terminando com o primeiro regime da dinastia Ming do Sul, que teve um ano de existência. “Dois meses após a queda de Nanjing, dois outros regimes Ming do Sul emergiram, em Fujian e Zhejiang, respectivamente. Huang Daozhou e Zheng Zhilong suportavam o Príncipe de Tang (Zhu Yujian) como imperador em Fujian, e Qian Suyue e Zhang Huangyan suportavam o Príncipe de Lu (Zhu Yihai) como ‘Nacional Supervisor’ em Shaoxing, Zhejiang. Zheng Zhilong (que na semana anterior esteve em destaque) era quem tinha o real poder no regime do Príncipe de Tang, mas apenas sabia explorar as pessoas e nada mais; consequentemente não havia grande esperança. No Verão de 1646, o exército Qing atacava Fujian e Zheng Zhilong rendeu-se”, Bai Shouyi.

Após a conquista pelos manchus de Fuzhou (Fujian) em Outubro de 1646 e executado o Imperador Long Wu (Zhu Yujian, príncipe de Tang), o seu irmão mais novo, Zhu Yuyue escapando de barco chegou a Guangzhou onde fundou um estado Ming, tendo em 11 de Dezembro de 1646 ficado com o título de reinado Shao Wu. Mas Youlang também se entronizara imperador, guerreando-se ambos pelo trono, e após pouco mais de um mês, Li Chengdong, um ex-comandante da dinastia Ming do Sul que liderava um pequeno grupo de tropas Qing, aí capturou e matou Shao Wu. Sobrava Zhu Youlang, que desde 18 de Novembro de 1646 ostentava o título de Imperador Yong Li e foi para Zhaoqing (Guangdong) devido ao suporte que recebeu de Qu Shisi, Oficial Ming de alta patente que tinha a cargo a defesa de Guangdong e Guangxi. Os manchus ocuparam Cantão em Janeiro de 1647, onde se encontrava Yong Li, que fugiu para Guilin, seguindo os manchus no seu encalço. Aí, entre Março e Julho esteve cercado mas, com a ajuda de trezentos portugueses de um contingente comandado por Nicolau Ferreira, após cinco meses, os manchus retiraram-se. A desistência dos manchus de cercar Guillin, animou a revolta e sete províncias no Sul da China puseram-se à ordem de Yong Li.

O Príncipe de Yongming (Zhu Youlang), como Imperador Yong Li (1646-1662), conseguiu aguentar o regime por um período de quinze anos, devido à cooperação que lhe foi prestada pelo exército armado de camponeses e o heroísmo de alguns dos seus generais. Andando sempre em fuga, Yong Li foi capturado já na Birmânia (hoje Myanmar) em Dezembro de 1661 e morreu a 1 de Junho de 1662, sendo o quarto e último Imperador da dinastia Ming do Sul.

Tirar da costa a população

A dinastia Qing entregou um cargo da governação de Guangzhou (Cantão) a Li Chengdong, mas este, desiludido com os novos senhores da China, apoiou Yong Li colocando de novo a cidade sobre o domínio Ming. Então, os manchus aí montarem durante dez meses um cerco, que terminou em 24 de Novembro de 1650, provocando 70 mil mortos. Foi a grande machadada na resistência Ming, que na parte Oriental da China ficou confinada ao mar. Aí, o General Comandante da Armada, Zheng Chenggong, é derrotado em 1659, no estuário do Rio Yangtzé. Após esta batalha, o pirata cujos europeus chamavam Coxinga voltou a Fujian e daí partiu à frente de 25 mil pessoas para Taiwan, onde tomaram a ilha aos holandeses e para onde muitos habitantes de Fujian foram viver.

“O cerco a Nanquim, em 1659, e as vitórias no mar de Cheng Cheng Lung e de seu filho, Coxinga (Cheng Cheng Kung) amedrontaram os manchus e, analisando as possíveis causas da força rebelde, designadamente as dos meios económicos em que apoiavam o seu poderio, concluíram que eles provinham do comércio marítimo que havia muitos anos conduziam livremente entre o Japão, o Ainão (Hainan) e a costa chinesa. E também dos saques dos navios que comerciavam entre os portos da China e do estrangeiro, dos quais as armadas de Coxinga se apoderavam. Esta conclusão levou ao decreto imperial publicado na 8.ª lua de 1661 que ordenou a retirada de todas as populações de cinco províncias marítimas (entre elas a de Kwangtung, Guangdong em mandarim) para um mínimo de 30 lis da costa (cerca de quatro léguas). Criava assim a terra queimada que evitaria contactos com Coxinga, esgotando as suas possibilidades de negociar com chineses e de aliciar seguidores dos Ming. A pena para os que desobedecessem era a morte”, segundo refere Gonçalo Mesquitela.

Em 1661, a resistência dos han Ming aos manchus quebrou e os novos governantes não tinham grandes relações com o mar. Segundo Victor F. S. Sit, “Na dinastia Qing (1644-1911), a política de interdição das actividades marítimas levou à evacuação forçada das regiões costeiras. Ao longo de grande parte do período em que essa dinastia imperou, o comércio marítimo só foi permitido numa única área, a de Macau – Cantão, embora outros três portos tivessem permanecido abertos durante algum tempo. Desse modo, a enorme rede de tráfego marítimo entre a China e o ultramar, ficou praticamente extinta entre meados do séc. XVI e meados do séc. XIX. O que sobrevivia não passava de algumas actividades de comércio ilegal. Foi exactamente nessas circunstâncias que Macau emergiu como praticamente o único entreposto comercial legal entre a China e os países estrangeiros, através de Cantão”.

Renascimento de Macau

Em 17 de Abril de 1708 saiu de Macau, com destino a Manila, uma chalupa de Luís de Abreu conduzindo alguns padres dominicanos expulsos das missões da China pelo cardeal De Tournon. Ao passar na ilha dos Ladrões foi a embarcação assaltada pelos chineses, tendo acudido várias lorchas da cidade que aprisionaram os piratas.

Na dinastia Qing, em 1718 o Imperador Kang Xi (1662-1722) proibiu severamente todos os seus vassalos de usar a navegação marítima, de sorte que por força daquele Decreto se arruinou inteiramente o comércio da Holanda naquele Império; porque, como lhes não era permitido entrar nos seus portos, mandavam todos os anos a Cantão muitas Somas; que eram embarcações de comércio conduzidas pelos chineses moradores em Batávia; e como estes eram vassalos do Imperador não podiam, sob pena de morte, entrar no seu Império, se reduziu a célebre e riquíssima Companhia da Holanda a não ter géneros da China, senão pelas embarcações portuguesas de Macau. Como consequência deste édito do Imperador, o número de navios registados ou equipados em Macau aumentou de nove para vinte e três em um só ano. Esta proibição de navegação, ou antes a sua limitação a Macau, só durou até 1723. Informações de José Ignácio de Andrade. O governo chinês pensou em estabelecer um monopólio do comércio marítimo do império com o estrangeiro em Macau, enviando para lá residirem os mercadores da Companhia Inglesa que moravam em Cantão. O Senado rejeitou a proposta, segundo parece por instâncias do Bispo e clero que não viram com bons olhos o estabelecimento de tantos hereges na Cidade do Santo Nome de Deus, decisão esta que foi mui asperamente censurada pelo Vice-rei da Índia, Conde da Ericeira.

De desempregados a piratas

“Com efeito, a província de Guangdong assistira na segunda metade do século XVIII a um enorme surto de desenvolvimento populacional que não foi acompanhado por igual expansão dos seus recursos económicos. (…) O aumento do número de deserdados e a sua concentração junto à costa, implicou o surgimento de um vasto núcleo de indivíduos potencialmente predispostos a dedicarem-se a qualquer tipo de actividades marginais, transformando-se, por isso, num grande centro de recrutamento de populações para as esquadras de piratas que cruzavam a região”, segundo Vítor Luís Gaspar Rodrigues, que continua, “Se a estes factores adicionarmos outros, de ordem geográfica (o grande número de ilhas que bordejavam a costa e a presença de numerosos estuários de rios que permitiam um fácil refúgio a piratas e ladrões) e económica (presença de um rico e vultoso comércio operado por navios chineses e europeus, muito facilitado pelas óptimas ligações fluviais; importância de Guangdong, que se havia tornado desde 1756 no único porto do império chinês aberto às trocas comerciais com os ocidentais), teremos uma ideia aproximada das razões que conduziram a uma rápida proliferação do número de piratas nas costas sul do mar da China, com particular incidência em torno de Guangdong e Macau.”

Jorge de Abreu Arrimar refere, “É interessante ver como as relações da China com o Vietname, um país seu tributário, a leva a apoiar o imperador Lee quando este se vê confrontado com a revolta que, a partir de 1773, uma família de comerciantes da província de Binh Dinh inicia, e que ficou conhecida por revolta de Tay-son. Contra esta rebelião o imperador da China enviou ajuda militar ao imperador Lee, o qual, apesar de sérios revezes, acabaria por expulsar definitivamente do território os seguidores de Tay-son, em 1802. Ora, durante as três décadas de guerra entre os seguidores de Tay-son e os do imperador Lee, aqueles foram estabelecendo muitos laços de dependência com os piratas, que desde sempre existiam naquela região, integrando os diversos e dispersos bandos e organizando as suas forças como se fosse um exército.” E Vítor Luís Gaspar Rodrigues adita, “As acções dos piratas nas costas da província de Guangdong só passaram a revestir-se de alguma importância a partir da década de noventa (1791-1792), quando os Toy-Son (…) necessitando de debelar a grave crise económica e financeira que atravessavam, passaram a enviá-los em expedições mais ou menos regulares para o sul da China com o intuito de aí procederem à arrecadação de géneros e dinheiro ao mesmo tempo que recrutavam mais gente (…), estes raides, vitais para a sustentação dos exércitos Tay-Son, tinham lugar, em regra, por volta do quarto mês lunar, regressando ao Vietname, entre o nono e o décimo mês, depois de atingirem, nalguns casos, as províncias de Fujian e de Zhejiang onde, a exemplo do que sucedia por vezes em Guangdong, se coligavam com bandidos locais”.

Aprontar embarcações

Com grande afluência de bandidos da Cochinchina e da Formosa (como os portugueses chamavam a Taiwan), então em rebelião, sendo muitos provenientes da participação na revolta de Tay-son, os piratas ameaçavam a costa da província de Guangdong. Por isso, “Já em 1792, o mandarim de Heangshan desejou que Macau equipasse dois barcos para proteger os acessos marítimos a Cantão. A proposta foi feita em nome do bem-estar público; mas tais considerações passaram para último plano quando, em troca, Macau estipulou a restituição dos seus antigos privilégios, cuja usurpação os mandarins evidentemente preferiam ao bem-estar de uma grande população marítima sob a sua legítima jurisdição e ineficiente protecção. As negociações fracassaram face à exigência portuguesa…”, Montalto de Jesus.

“Não obstante todas estas reservas colocadas por alguns elementos presentes (do Senado), assentaram, a 16 de Fevereiro de 1792, que se aprontassem as embarcações, para o que procederam à compra da chalupa inglesa <Gustavus> por 13 mil patacas. No entanto, poucos meses depois, e quando só faltava aprestar a tripulação <declarou o mandarim que não era preciso o socorro, ficando a despesa feita e a cidade sem privilégios>”, como refere Vítor Gaspar Rodrigues, e com ele continuando, “o Senado que, em conjunto, e contra o parecer do Governador, passou a defender a manutenção de uma política não intervencionista” e convencidos das vantagens que lhes adivinham de uma presença forte de piratas nas imediações, pelos problemas que causavam à navegação chinesa, viriam a opor-se ao Governador quando este, em Dezembro de 1792, insistiu para que se armassem duas embarcações por conta da Fazenda Real para fazer uma acção de guerra”. Perante a recusa do Senado, foi o Gustavus vendido em Dezembro.

“Seis meses mais tarde, em 8 de Julho de 1793, porque as embarcações dos piratas ameaçassem já, de alguma forma, o comércio de Macau, esses mesmos cidadãos mostraram-se prontos a colaborar com os seus barcos para uma expedição proposta pelo Governador da cidade, composta por três navios destinados a andar de guarda-costa até meados de Setembro”, Vítor Luís Gaspar Rodrigues no livro Estudos de História do Relacionamento Luso-Chinês – Séculos XVI-XIX, com organização e coordenação de António Vasconcelos de Saldanha e Jorge Manuel dos Santos Alves, Colecção Memórias do Oriente, 1995, IPOR.

23 Out 2016

Piratas para restaurar a brilhante dinastia

“No século XVII a dimensão geográfica dá lugar à dimensão demográfica e com o declínio dos antigos colonizadores, outros aparecem: ingleses, holandeses e franceses. O fascínio tinha acabado e estava-se no tempo do distanciamento objectivo, devido ao avanço científico da Europa. É na crença egocêntrica de possuir uma civilização universal e com o dever de elevar todos os povos a esse estádio ‘superior’, que começa a corrida para a constituição dos impérios coloniais, com as vantagens materiais e políticas que daí decorriam”
Tien-Tse Chang, O Comércio Sino-Português entre 1514 e 1644

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s últimos imperadores Ming tão ocupados estavam com a sua imortalidade e em luxos que nem tinham tempo para os assuntos de Estado. A decadência imperou. Vivendo a população na miséria, era ainda obrigada a pagar altas rendas e taxas, o que levou, em 1627, os camponeses a revoltarem-se e a pegarem em armas para se protegerem a norte de Shaanxi, estendendo-se para Shanxi e Henan.
Em 1635, os chefes de grupos armados de camponeses reuniram-se em Xingyang, província de Henan, para planearem uma estratégia. Li Zicheng, um dos líderes, com o seu exército ocupou, em 1644, Xian e toda a província de Shaanxi, tendo aí formado o Estado de Dashun. Partiu depois para Leste e passando por Shanxi e Hebei, chegou a Beijing, levando o último imperador da dinastia Ming, Chongzhen (1628-44) a refugiar-se no Monte Wansui (Colina da Longa Vida) a Norte do Palácio Imperial. Aí ficou 43 dias, mas todos os esforços falharam e sem uma solução para a complicada situação, o imperador enforcou-se.
A China ficava sem governo imperial por alguns meses, período conhecido pelo Interregno Shun. As tropas Ming combatiam os revoltosos camponeses em muitas partes da China e uma pequena corte Ming mudou-se para Nanjing, agora com o nome de Yingtian.

O pirata Nicolau

Zheng Zhilong (1604-61), natural de Fujian, nasceu a 16 de Abril de 1604 em Nanan, Quanzhou, e tinha passado algum tempo enquanto jovem em Macau, onde chegou com 18 anos, sendo convertido e baptizado com o nome cristão de Nicolau. Ao reconhecer o bom dinheiro que se fazia no comércio juntou-se a um grupo de piratas, que atacavam sobretudo holandeses sedeados em Taiwan e mercadores chineses, fazendo ainda comércio com o Japão.
Diz o Padre Manuel Teixeira, “O pirata maroto, era este o nome que os portugueses davam a Iquan”, ou Cheng Chi-lung, que depois de regressar “à sua terra, partia para o Japão, onde se colocou ao serviço dum rico comerciante chinês, Li Han, juntando-se ali com a japonesa Tagawa.” E foi dessa relação que no Japão nasceram, em 1624, o seu filho Zheng Sen e uma filha, Úrsula de Vargas.
Em 1624, os holandeses tomaram o sul de Taiwan e Zheng Zhilong, a trabalhar para Li Dan no Japão, sabendo português, foi aí colocado pelo seu chefe como tradutor na Companhia Holandesa das Índias Orientais. Li Dan, comerciante no Japão, China e Taiwan, tratava Iquan como um filho e casou-o com a filha adoptiva. Tendo Iquan mudado os seus negócios para Taiwan, passou a trabalhar para outro pirata, Yan Siqi, altura em que a VOC começou a colocar fora da ilha todos os que lhe faziam frente. Os holandeses ainda usaram Iquan para lutar contra os espanhóis em Manila, mas este abandonou o seu trabalho de intérprete, em 1625, após a morte do seu novo chefe.
Tomando o comando, formou o grupo Shi Ba Zhi, que em Agosto desse mesmo ano, devido à morte de Li Dan, herdou os navios deste e a sua riqueza, engrossando assim o grupo, que se tornou independente. Iquan, como os holandeses lhe chamavam, passou então a só reconhecer como seu nome Zheng Zhilong e usou Taiwan, entre 1626 e 1628, como base para atacar as costas de Guangdong e Fujian, colocando aí grandes problemas à dinastia Ming. Apenas roubava e raptava governantes e ricos negociantes, mas tratava bem o resto da população, ajudando mesmo os mais carenciados, o que levou as pessoas a acreditarem mais nele do que no governo Ming.
“Em breve, comandava 400 juncos que, em fins de 1627, se elevaram a mais de 1000. Apoderou-se de Amoy, e dali dominava toda a costa entre os rios Yangtzé e o das Pérolas. O Imperador, vendo não o poder vencer, nomeou-o em 1628 comandante da frota imperial, com o grau de mandarim, na condição de limpar os mares de outros piratas, o que ele aceitou, estabelecendo em Amoy o seu quartel general”, segundo o Padre Manuel Teixeira, que prossegue: “Iquan tinha 300 negros ao seu serviço, sendo todos cristãos e escravos fugidos de Macau”.
Este historiador refere ainda uma questão conflituosa surgida entre Zheng Zhilong e os portugueses. Após a expulsão dos cristãos do Japão e tendo a sua filha aí nascida sido baptizada na fé cristã, com eles fugiu para Macau. Ao saber de tal, Zheng Zhilong enviou recado aos portugueses para que lha mandassem, visto ser sua filha, mas estes não atenderam às pretensões. E nem mesmo as terríveis ameaças lançadas sobre cercar Macau com a sua esquadra, demoveram os portugueses da decisão de não a entregar.
“A 1 de Maio de 1639, leu-se no Senado uma carta dos negociantes portugueses que se achavam em Cantão, contando o que “havia sucedido à nossa gente com os chineses da armada de Icoão, que no dito Cantão estão e do mais que tinha sucedido e do estado e aperto em que os ditos portugueses estão, assim do risco de suas pessoas, como dos cabedais dos moradores…” Por isso, o Senado elegeu dez indivíduos dos mais velhos e experimentados cidadãos desta cidade para tratar do assunto com os oficiais da Câmara, referentes à feira de Cantão. “Boxer nota que essa filha devia ser uma que casara em Macau com um português (ou macaísta), chamado António Rodrigues, filho dum cidadão chamado Manuel Belo”, e em nota o Padre Manuel Teixeira refere, após o casamento cristão em Macau de Úrsula de Vargas, filha de Nicolau I-Kuan, com António Rodrigues, foram estes viver em 1642 com o mandarim Iquan em Ankai. “Levados por esta palavra e obrigados pela grande discórdia (de lembrar ser 1642 o ano da Restauração em Macau) que havia naquela cidade de Macau entre todos e a grande fome que sobreveio, embarcaram para esta cidade de Anay, onde vivem”.

Sem soldo para comer

Macau já desde 1630 prestava ajuda à dinastia Ming, que lhe tinha aberto as portas do País do Meio, enviando um destacamento de 400 militares, assim como canhões para a ajudar a combater os manchus na Grande Muralha. Encontravam-se em Guangxi quando foram interrompidos na sua marcha, devido às intrigas dos comerciantes de Cantão junto aos mandarins provinciais. Em 1644, após a conquista de Beijing pelos manchus, as forças leais à dinastia Ming que lhes faziam resistência, voltam a pedir ajuda aos portugueses.
A China encontrava-se em guerra contra os tártaros e, aproveitando-se disso, proliferavam nos seus mares os piratas onde faziam grandes e ricas presas. Macau, sentindo-se ameaçada, levou o Senado, em sessão de 8 de Julho de 1646, a mandar equipar embarcações ligeiras, os chós, para protegerem dos ladrões os barcos de comércio da cidade. Assim partiram em perseguição dos piratas, levando-os a apressado retiro.
No entanto, ainda nesse ano em Outubro, “os soldados, com soldo em atraso, envolveram-se em desordem com os donos das lojas chinesas. O mandarim de Chinsam mandou fechar as Portas do Cerco, impedindo a vinda das provisões e veio a Macau exigir satisfações: “e para o compor foi preciso não só dar público castigo aos soldados, mas despender com ele prata”. Pouco depois, veio uma chinesa a vender comestíveis a Macau e os soldados roubaram-lhos, usando de violência. Com estas desordens, por falta de pagamentos e penúria da cidade, se pôs alguma artilharia em venda”, segundo o Padre Manuel Teixeira, que refere terem os canhões de Bocarro servido para tudo; “acudir a Goa, a Portugal, à China e às Filipinas e até pagar os soldados esfomeados…”

Fim da dinastia Ming

O general Ming, Wu Sangui, que governava a Passagem de Shanhaiguan, em 1644 acedeu aos manchus passarem pela Grande Muralha, para em conjunto com as tropas Ming combaterem os revoltosos camponeses.
As tropas manchus encontraram a China sem dinastia no Trono do Dragão há já alguns meses e assim, em 1644, ocuparam Beijing para onde mudaram a sua capital, até então em Shenyang. Daí Li Zicheng teve que partir e seguindo para Oeste até Shanxi, foi perseguido pelas unidas tropas manchus e Ming, sendo morto em Hubei com 39 anos de idade.
Foi então que muitos oficiais Ming, a cooperar com os manchus contra os camponeses, se mudaram para o lado destes, passando a combater os invasores manchus. Com a morte do último imperador da dinastia Ming em Beijing no ano de 1644, a pequena corte Ming estabeleceu-se em Nanjing e aí formou a dinastia Ming do Sul (1644-1662). Zhu Yousong, príncipe de Fu, tornou-se o Imperador Hong Guang (1644-1645) e libertou da prisão Zhu Yujian, condenado desde 1636, quando lhe fora retirado o título de príncipe de Tang.
Durou um ano essa pequena corte Ming desunida e corrupta, sendo em Junho de 1645 derrotada em Yingtian (Nanjing) pelas forças Qing e a corte dos Ming do Sul voltou a fugir, agora para Hangzhou. Aí se dividiu, parte vai para Shaoxing (Zhejiang) e outra, refugia-se em Fuzhou (Fujian), onde subiu ao trono da dinastia Ming do Sul o Imperador Long Wu (Agosto 1645 – Outubro 1646) e cujo nome era Zhu Yujian, príncipe de Tang. Pertencia à oitava geração descendente do terceiro filho do primeiro imperador da dinastia Ming e tinha a esperança de conseguir derrotar os manchus, que já tinham formado a dinastia Qing.
Zheng Zhilong era o mais poderoso aliado do Imperador Long Wu com quem tinha uma grande amizade, pois ajudara-o a chegar a imperador. Mas, em 1646, com as vitórias do exército Qing no centro da China e em Fujian, a 6 de Outubro, o Imperador Long Wu foi capturado e executado. Os manchus compraram com um cargo Zheng Zhilong e este, percebendo a definitiva derrota da dinastia Ming, aceitou. Foi levado para Beijing com a família, onde o mantiveram, procurando atrair o filho, Zheng Chenggong, que recusou abandonar os Ming e governou as costas de Fujian desde 1646.
Nos finais de 1650 era apenas ele no mar que lutava para restabelecer a dinastia. Derrotado em 1659, no estuário do rio Yangtzé, com essa batalha dá-se o fim do foco de resistência dos chineses han, pertencentes à dinastia Ming e voltando a Fujian, daí parte à frente de 25 mil pessoas para Taiwan onde, após um cerco de nove meses, tomou em Abril de 1661 a ilha aos holandeses. Em 1662, Zheng Chenggong morreu de doença aos 38 anos, mas Taiwan continuou independente com o seu filho Zheng Jin e só foi conquistada ao neto em 1683, passando para o domínio dos Qing.
Pouco nos estendemos sobre a personagem do pirata Zheng Chenggong, ou Coxinga, como é conhecido pelos europeus, pois a sua história já foi apresentada no HM, encontrando-se escondida também na divindade Zhu Da Xian. Quanto ao seu pai, Zheng Zhilong foi colocado na prisão em 1655 e morto em 24 de Novembro de 1661.
Em 1669, a VOC, cujo objectivo fora atacar os pontos-chaves do império espanhol e português, era a mais rica companhia privada do mundo com mais de 150 navios mercantes, 40 de guerra, 50 mil funcionários e um exército de 10 mil soldados.

7 Out 2016

Início da dinastia Ming e os Holandeses

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]No século XIV, o vasto império chinês encontrava-se convulsionado por inúmeras revoltas, motivadas pela dissoluta existência que levava devasso Sân-Tái (Shun Di, 1333-1368), último imperador mongol da dinastia Un (Yuan)”, segundo Luís Gonzaga Gomes.
A dinastia mongol governava a China e discriminava o povo Han a tal ponto que este, já na miséria, se revoltou. Essa revolta iniciou-se no dia 15 do oitavo mês lunar de 1355, com uma mensagem no interior dos bolos lunares tradicionalmente trocados entre as pessoas a incentivar os han a pegarem em armas contra os invasores nómadas mongóis. A história da revolta dos camponeses contra a opressão dos imperadores mongóis da dinastia Yuan chegou-nos aos ouvidos em Bozhou, na província de Anhui.
Os mongóis encontravam-se com problemas desde 1328, devido a não terem regras para a sucessão dos khan (em português can ou cão), estando a corte Yuan em lutas internas. Mobilizando a população descontente, em 1351, Liu Futong conseguiu ocupar o Sul da província de Henan e o Norte de Anhui com um grande grupo de rebeldes, que usavam bandeiras vermelhas e turbantes da mesma cor. Em 1352, Zhu Yuanzhang (1328-1398) alistou-se nesse movimento, conhecido pelos Turbantes Vermelhos, que foi vencendo os exércitos do Imperador Shun, tendo em 1355 criado um governo em Bozhou.
Liu Futong (1321-1363) proclamou a nova dinastia Song em Bozhou e coroou o filho de Han Shantong (seu primeiro companheiro de luta que tinha sido capturado e morto), Han Liner como Pequeno Rei da Luz. O movimento, que contou com a ajuda da sociedade secreta daoísta do Lótus Branco, aumentou e alastrou-se tendo, depois de muitas peripécias, conquistado todo o Norte da China.

Mensagem dentro do Bolo Lunar

Zhu Yuanzhang, nascido em 1328 de uma família Han de camponeses, teve como primeiro nome Chongba. Ficou órfão ainda jovem, devido à peste que lhe levou toda a família e para sua sobrevivência, entrou no templo de Huangjue, onde se tornou monge budista. Como eram muitos a recorrer a esse estratagema, havendo pouco alimento no templo, teve que o abandonar. Vagueou alguns anos e, em 1352, juntou-se à revolta contra a dinastia Yuan, entrando no grupo chefiado por Guo Zixing. Este, vendo as qualidades e bravura de Zhu Yuanzhang, casou-o com a sua filha adoptiva, Ma. Combatiam a Norte do Rio Yangzté e após ocuparem Hezhou (Hexian, em Anhui) em 1355, Guo Zixing morreu. Como Zhu não quis ficar sobre as ordens de outros chefes, criou um grupo de guerreiros e foi combater os mongóis para Sudeste. É dessa altura a História do Bolo Lunar, que conta ter Zhu Yuanzhang um plano para atacar a dinastia Yuan e com a finalidade de informar todos os que com ele estavam nessa luta, já que os espiões mongóis se encontravam por todo o lado, escreveu alguns papéis com a mensagem dos pormenores do plano. Escondendo-as dentro dos bolos lunares, depois enviou-os aos seus homens.
Ao mesmo tempo que espalhava pela cidade servir o bolo para prevenir desgraças, passou a palavra para que quem apoiasse o movimento, dependurasse lanternas às portas de suas casas. Tudo isso ocorreu sem que os mongóis desconfiassem já que não sabiam ler chinês e a festividade era muito antiga. Quando os chineses comeram os bolos e leram as mensagens, mobilizaram-se e derrotaram os mongóis em Yingtian (Nanjing), conquistando-a em 1356 e toda a área circundante, onde fizeram a sua base. Nos doze anos seguintes prosseguiu-se a luta contra a dinastia Yuan pelo resto da China.
Bozhou caiu nas mãos dos mongóis em 1359 e Han Liner acompanhado por Lui Futong fugiram para Anfeng. Entretanto as divergências entre os chefes dos revoltosos levaram a que muitos deles procurassem, ao longo do Changjiang, criar reinos independentes.
Após a morte em combate de Lui Futong em 1363, Zhu Yuanzhang foi ajudar Han Liner e colocou-o em Chuizhou, ainda como Rei Song. Já em 1366, Zhu convidou o Rei Song para se estabelecer em Yingtian (nome que pouco depois passou para Nanjing), mas na travessia do Changjiang (Rio Yangtzé), aconteceu o naufrágio do barco que o transportava e assim morreu Han Liner. Logo Zhu Yuanzhang, mandou construir muralhas em torno da cidade, só terminada em 1386, altura em que as fronteiras dos Han deixaram de ser ameaçadas pelos mongóis.

Fundação da dinastia Ming

Em 1368, Zhu Yuanzhang ascendeu ao trono em Yingtian, mudando-lhe o nome para Nanjing, onde fez a sua capital e fundou a dinastia Ming (1368-1644), tornando-se imperador com o nome de Hong Wu (1368-1398). De salientar que Ming significa brilhante e este imperador, após a morte, ficou com o nome de Tai Zu.
“Desde a fundação da Dinastia Ming (1268-1644), que a grande preocupação era a defesa contra qualquer tentativa restauradora da dinastia derrubada, a Yuan. Por esta razão, toda a defesa militar chinesa se concentrou no Norte, nas fronteiras com os Mongóis”, segundo referem Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.
“A partir de finais do século XIV, nota-se uma evolução nestas actividades piratas, que parecem estar agora sobretudo ligadas às lutas que opunham o fundador dos Ming aos seus rivais. Alguns dos adversários de Hongwu, refugiados nas ilhas nipónicas, associam-se aí a piratas japoneses. Entre eles encontravam-se, talvez, antigos partidários de Fang Guozhen (1319-1374), personagem misteriosa que tanto combateu os ocupantes mongóis como os movimentos de resistência e que incluíra nas suas tropas contrabandistas e piratas das costas do Zhejiang”, segundo Jacques Grenet. Já Gonzaga Gomes refere: “De entre os inúmeros cabecilhas de rebeliões, celebrizou-se um famigerado pirata de nome Fóng-Kuók-Tchân (Fang Guozhen) que, conforme o valor das peitas que lhe eram oferecidas, ora se submetia a um chefe mais poderoso ora tomava o partido de outro, quando não agia por sua própria conta, sendo campo principal das suas terríveis proezas as riquíssimas regiões da costa meridional da China”. E Jacques Grenet refere: “A ameaça faz-se sentir portanto desde o início da dinastia (Ming) e é dessa época que datam as primeiras medidas de defesa: formação de uma esquadra, unificação do comando naval, fortificação das costas do Shandong, do Jiangsu e do Zhejiang. Graças a estas disposições, à actividade diplomática dos Ming no Japão e ao seu domínio dos mares, os ataques dos piratas parecem ter-se reduzido ao longo das últimas décadas do século XV”.
Já no século seguinte, Qi Jiguang (1528-1587) foi um estratega ao serviço da dinastia Ming com serviços reconhecidos contra a pirataria japonesa nas regiões costeiras de Zhejiang e Fujian.

Ingleses no Pacífico

Segundo o Padre Manuel Teixeira, que foi buscar a informação a K.R. Andrew, diz que “em Maio de 1585 foram capturados vários navios ingleses nos portos espanhóis e confiscada a carga. Ergueu-se na Inglaterra um clamor dos comerciantes pedindo reparação. A 7 de Julho, o Governo instruiu o Almirantado para examinar estas relações e passou cartas de represália aos que provassem ter sofrido perdas. Estas cartas davam licença aos prejudicados para armar navios e capturar os navios espanhóis no mar. No verão de 1585, uma hoste de aventureiros – private men-of-war or mere pirates entre os quais Sir Francis Drake – lançou-se à caça de espanhóis. De 1589 a 1591, mais de 200 navios se empregaram nesta pirataria”. Mas, já desde 1579, circulavam em águas das Molucas e Java a soldo da Rainha Isabel I (1558-1603), os corsários ingleses, Francis Drake e Thomas Cavendish, como refere Beatriz Basto da Silva e prosseguindo pela sua Cronologia, em 1592 “o inglês James Lancaster ataca navios portugueses na carreira de Malaca” e em 1596, “A rainha Isabel I de Inglaterra tenta alcançar negociações com o Imperador da China. Escreve-lhe uma carta que não chega ao destino”.
A última do ramo dos Tudors, Isabel I (1533-1603), filha de Henrique VIII e Ana Bolena, apoiou as revoltas das Províncias Unidas contra a Espanha, que tinham começado lideradas por Guilherme de Orange em 1558. A independência dos Países Baixos foi declarada em 26 de Julho de 1581, mas só reconhecida depois da Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648). De lembrar que a Armada Invencível foi derrotada em 1588, sendo a esquadra confiada a Álvaro de Bazán, marquês de Santa Cruz mas, devido ao seu falecimento, substituiu-o o inexperiente em coisas do mar duque de Medina Sidonia, informação de Joseph Walker na Historia de España, onde refere ainda ter Francis Drake saqueado as costas do Chile e Peru, assim como Cádis.

A VOC no Pacífico

Em 1579 é formada a República das Províncias Unidas, criada por um grupo de sete províncias, entre elas os Países Baixos (Holanda e Zelândia), que se tornou independente de Espanha.
O holandês Cornelius Houtman vai a Lisboa em 1592 para recolher informações sobre as viagens marítimas portuguesas à Índia. Em 1594, um grupo de nove mercadores de Amsterdão decide unir-se e formar uma Companhia de Navegação, a Van Verre. Com quatro barcos e 249 tripulantes, no ano seguinte meteram-se no Atlântico para chegar ao Oceano Índico, usando a rota encontrada em 1488 pelos portugueses. Levaram dois anos até regressar, tendo morrido dois terços da tripulação e o apuro feito com a venda dos produtos trazidos deu apenas para pagar o investimento feito. Não fosse o êxito de terem navegado até ao Oceano Índico e a viagem teria sido um fracasso, mas com a rota da Índia aberta, logo foram criadas pelos mercadores holandeses novas companhias que se aventuraram a enviar barcos para a Ásia. “De 1598 a 1603 saíram treze frotas com destino às Índias. Muitas sofreram naufrágios desastrosos. As que conseguiram retornar tiveram lucros que alcançaram até 265%”, segundo Mauro em Expansão Europeia (1600-1870). Foi grande o sucesso e a fortuna imensa.
Os Holandeses estabeleceram-se em 1598 no Oriente e no ano seguinte apareceram na costa de Macau. Já os ingleses, vendo-se a ficar para trás, criaram em 1600 a Companhia Inglesa das Índias Orientais. Passados dois anos apareceu a Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC – Vereenigde Oost-Indische Compagnie), Companhia Unida da Índia Oriental que data de 20 de Março de 1602, mas só em 1618 a sede passou para Batávia, como refere B. Basto da Silva. A VOC foi criada após terminada as gestões feitas por Oldenbarneveld e a fusão das diferentes companhias numa única, pois estas “eram concorrentes na compra de produtos na Ásia e na sua venda, na Europa”, segundo refere o brasileiro Mauro. E, terminando com António Manuel Hespanha, no livro Panorama da História Institucional e Jurídica de Macau: “No século XVII o Império holandês vai seguir o mesmo modelo, pela ocupação dos entrepostos anteriormente dominados pelos portugueses. Mas os holandeses criaram formas inovadoras, como as grandes companhias comerciais (Companhia das Índias Orientais, 1602; Companhia das Índias Ocidentais, 1621), concedendo à iniciativa privada um papel que, em Portugal, a Coroa desempenhava preferencialmente por si”.
A Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC), com sede em Amesterdão, onde em 1609 é criado o Banco de Amesterdão para apoiar o comércio colonial, criou o conceito actual de acções quando em 1610 dividiu o seu capital em quotas iguais e transferíveis em Bolsa. O seu objectivo era o de excluir os competidores europeus e substituí-los nas rotas comerciais pelos três oceanos.

30 Set 2016

Negociações do Acordo para Macau

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or Carta Régia de 22 de Fevereiro de 1547, D. João III faz mercê a Leonel de Sousa de duas viagens sucessivas para a China. “Compreende-se que, desta forma, o conjunto fosse mais rendoso, dado que os contratos fechados num ano, para cumprimento no seguinte, permitiriam, por certo, condições mais favoráveis. Além disso, não se trata ainda de concessão da viagem, mas de uma nomeação para capitão-mor de viagens da coroa, com as vantagens que lhes eram inerentes, mas sob regimento do governador da Índia”, segundo Gonçalo Mesquitela. Data em que se encontravam ainda os mercadores portugueses pelos portos do litoral de Fujian e de Zhejiang, e segundo Jin Guoping e Zhang Zhengchun, no artigo Liampó reexaminado à luz de Fontes Chinesas, “O porto em questão (Liampó) é um lugarejo perdido no meio do mar, que fica a uns 30 quilómetros do Distrito Dinghai. Embora seja uma terra abandonada, só para desterrados, e com rara presença humana, com duas ilhas frente a frente, direcção leste-oeste, separadas por um canal que corre de norte para sul, a sua situação é de grande importância estratégica. Os montes que se erguem nas ilhas constituem bons abrigos. O espaço que se mede entre as duas ilhas é amplo, à volta de uns 10 quilómetros de largura”. Daqui se percebe a impunidade com que os mercadores portugueses viveram meia dúzia de anos clandestinamente numa povoação que, devido a se encontrar longe dos olhares dos mandarins de província e pelos enormes lucros, cresceu para uma cidade. Segundo estes historiadores, os documentos chineses não apresentam a versão de Fernão Mendes Pinto sobre o massacre de Liampó, chacina não relatada por Fr. Gaspar da Cruz, “que nunca foi aceite por estudiosos sérios. Sabemos que o Governador Zhu Wan caiu em desgraça e se suicidou, envenenando-se por ter mandado executar 96 pessoas em Chinchéu em 1549, sem ter autorização da Corte para tal”.
A mercê que por Carta Régia, D. João III faz a Leonel de Sousa, segundo Mesquitela, “Deve estar longe dos privilégios da futura viagem concedida por alvarás depois de 1550. Acresce que no caso de não haver viagem da coroa programada oficialmente, a mercê permitia a alternativa de ser conferida licença para a viagem, mas à custa do próprio Leonel de Sousa, em nau ou navio próprio, obedecendo também a regimento do governador da Índia”.
Leonel de Sousa (c.1500-c.1572), natural do Algarve e casado em Chaul, como refere o Padre Gaspar da Cruz, era “capitão algarvio com longos anos de serviço no Oriente,” segundo Rui Manuel Loureiro e “foi responsável pela normalização do tráfico luso-chinês, ao estabelecer com os mandarins de Cantão, em 1554, as normas que deveriam de futuro reger esse intercâmbio”.

Recusadas as viagens em nau da coroa

“D. Afonso de Noronha, alegando que D. João III não mandara que a Leonel de Sousa fosse dada nau, pois se o mandasse ele daria, nem sequer ordenou que lhe fosse dado o ‘favor’ para a sua viagem que diz ter sido dado a D. Francisco Mascarenhas e António Pereira. Assim , diz ele mais tarde numa carta”, como refere Gonçalo Mesquitela, que continua, “A mercê real de mera licença não era pois uma garantia de concessão de viagem, como se vê.
Leonel de Sousa, vendo que eram recusadas as viagens em nau da coroa, teria conseguido emprestado um terço do espaço de uma nau de mercadores e nela estaria em Sanchoão naquele ano de 1555”. Luís Gonzaga Gomes corrige essa data e refere que “Leonel de Sousa, Capitão-Mor da Viagem do Japão, capitaneando uma esquadra de 17 navios fundeados na Ilha de Sanchoão, desde fins de 1553, escreveu (em 15 de Janeiro de 1556) ao Infante D. Luís, irmão de D. João III, comunicando-lhe que conseguiu assentar com Vam-pé, Segundo Inspector das Costas, um convénio, pelo qual os portugueses foram autorizados a estabelecerem-se em Macau e a construírem habitações em terra”.
“Nos portos da China, que encontrou ‘todos cerrados’, as armadas impediam ‘fazer fazenda’. Devia no entanto, ter feito uso da mercê real, pois afirma que, perante a situação encontrada e os avisos de que poderia vir a haver ataques da armada imperial, . Note-se que se queixa de que não lhe foi dado mais que a licença e os trabalhos de capitão”, isto é, as credenciais e o regimento que lhe davam os poderes de capitão-mor.
“A iniciativa partira do Aitão de Cantão e as negociações não devem ter sido fáceis, mais por questões formais, e legais, do que pela vontade mútua de se encontrar solução”, segundo Mesquitela, que continua, “Acautelada a segurança dos navios e pessoas portuguesas que com ele iam, e recomendado que não provocassem fosse o que fosse que pudesse ‘alevantar a terra’, receoso, portanto, de que a tolerância nas ilhas tivesse sofrido alteração, iniciou as aproximações com o Aitão para negociações”. (…) “Veio visitar os navios um dos chineses, que estava eleito para Aitão. Devem ter inquirido cuidadosamente dos poderes que trazia para com ele poderem negociar. (…) .”
Satisfeita esta condição,’assentarem que era Capitão de Sua Alteza’, tiveram com Leonel de Souza .
G. Mesquitela refere ser o primeiro ponto difícil das negociações, a proibição imperial de negociar com os Fu Lan Ki, questão resolvida do modo mais inesperado para mentalidades ocidentais. “Assim para fazerem esta paz nos mudaram o nome de Franges que nos dantes chamavam a portugueses de Portugal e de Malaca (…) e passamos então a ser os Fan Ian, ‘os homens do Ocidente’, deixando de ser os Franges, ou Fu Lan Ki, nome que ainda hoje se mantém na proibição do Édito Imperial de 1522.
Ficava o outro ponto: a taxa dos direitos a pagar. O Aitão oferecia a aplicação da mesma taxa que era aplicada aos navios e mercadores do Sião, país tributário, a de 20 por cento. Os de Sião, navegam na China por privilégio d’ El Rei. Leonel de Souza não aceitou mais que 10 por cento. A maior dificuldade estava em que a alteração da taxa só podia ser concedida por Pequim, o que significava só se poder resolver o caso – e o acordo – no ano seguinte, e então, só Deus saberia se seria conseguido. O Aitão rodeou então a questão. O problema seria posto a Pequim para que tivesse decisão definitiva, como aliás veio a ter, aprovando a taxa de 10 por cento, a partir do ano seguinte. E, neste ano, pagariam os 20 por cento, mas apenas sobre metade das mercadorias. Assente a solução, o Aitão pediu a Leonel de Sousa que ‘mandasse fazer bom agasalhado dos mandarins que são como Desembargadores que os vissem fazer (os direitos) aos navios e que não olhasse que eram chineses senão as divisas e Armadas do Estado d’El Rey que traziam’ a fim de não se repetirem as causas que inicialmente tinham levado a perder as boas relações com os portugueses”.

Simão de Almeida

O Capitão-mor Leonel de Sousa e o haidão Wang Bo, (subintendente dos Assuntos de Defesa Costeira) realizaram o assentamento de 1553-1554, um acordo que permitia aos portugueses autorização para terem um lugar temporário, do qual dependia a viagem ao Japão e de onde se conseguia assegurar o comércio pacífico com a China. No Kwang Tung Chi, a História de Guangdong refere que “Ting Yi Chung, juiz do crime, se opusera à presença de navios estrangeiros no Kwang Tung, continua referindo que Wong Pak (Wang Bo) não teve sucesso quando tentou convencê-lo a permitir barcos europeus em águas chinesas. Pouco depois, porém, foi promovido ao posto de Comissário da Administração Civil, o que lhe deu a necessária autonomia para decidir conforme entendesse. E o cronista do Kwang Tung Chi indica claramente que um funcionário de alto grau permitiu aos portugueses que ancorassem em portos chineses”, segundo Mesquitela, que refere a seguir, ”Ainda Wong Pak nos aparece nesse ano de 1554 como nomeado pelo comandante-em-chefe do Kwang Tung, Pau Chan In, juntamente com Wong Pui e Mak Mang Yeung e outros, para capturarem os piratas Ah Pat que, com outros, infestava as águas do Kwang Tung.
Com esse acordo tornou-se possível aos portugueses ir a Cantão e ali legalmente negociar. Valeu-se Leonel de Sousa, como intermediário, de “um Simão de Almeida, homem honrado e cavaleiro”, que na China tem feito muita diligência, com “desejos de servir Sua Alteza. Por algumas obrigações do seu serviço que lhe pus diante foi sempre honradamente e veio à sua custa e até do que gastou. Soube que dera algumas dádivas a pessoas e oficiais do Aitão com quem negociou mais breve do que eu pudera fazer sem isso. Nem eu servira Sua Alteza como o servi se não fora sua ajuda e Conselho, porque eu tinha pouco cabedal para suprir, mais do que supri nem ele o quis de mim e disse sempre que se nisso servia a Sua Alteza, que dela queria o galardão e não doutrem”. Por estas razões, Leonel de Sousa recomenda Simão de Almeida para mercês reais “porque não é de Sua Alteza por exemplo dos que se acharem em partes tão remotas, que folgue de servir Sua Alteza com pessoas e fazendas como ele fez”.
Assim terá sido Simão de Almeida quem preparou Leonel de Sousa, para cuidadosamente observar os costumes chineses e as suas cortesias e .
Nas despedidas, o haidão chamou ainda a atenção a Leonel de Sousa, pois mercadores não negoceiam com as armas na cinta, que eles muito nos estranham e que assim lhes é muito defeso nas Cidades, que ninguém traz senão os que defendem na terra e guarda dos Oficiais”.
Nas feiras de Cantão, realizadas normalmente em Março e em Setembro, os comerciantes portugueses passaram a abastecer-se de seda que, depois de vendidas, tanto no Japão como na Europa, davam lucros astronómicos. A mercantil Companhia da Índia Portuguesa, fundada em 1549 com capitais da Coroa, passou a enviar ao Japão a Nau da Prata, como também era chamada a Nau do Trato (trato significava comércio). Era o capitão-mor dessas viagens, o representante em Macau do Rei e do Vice-Rei ou Governador da Índia Portuguesa, quando nos meses de monção, aí se encontrava à espera para seguir viagem. A monção no Mar de Bengala acontecia em Dezembro/Janeiro e no Pacífico em Junho/Julho, tendo as viagens isso em atenção.
Luís Gonzaga Gomes refere, a 15 de Janeiro de 1556 o “Governador da Índia, D. Francisco Barreto, iniciador do assentamento de paz entre os portugueses e os chineses, numa carta em que pedira que lhe fossem concedidas três viagens do Porto Pequeno de Bengala, em navio de sua Alteza, diz: ”. Mas, segundo refere o próprio Leonel de Sousa, .
Leonel de Sousa foi dos primeiros capitães-mor da povoação de Macau, quando em 1557, por duas vezes, aqui esteve com a nau ancorada, desde Julho de 1557 até chegar a monção em Junho do ano seguinte. Substituiu como capitão-mor Francisco Martins, que em Junho desse ano seguiu para o Japão.

9 Set 2016

Amotinadas tropas em Zhelin

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stabelecidos os portugueses em Macau pelo acordo de 1554, entre o Capitão-mor Leonel de Sousa e o mandarim Wang Bo (subintendente dos Assuntos de Defesa Costeira), como base temporária para comercializarem, passou a permanente estadia em 1557. Levado de Shanghuan para Goa o corpo de S. Francisco Xavier, perdeu a ilha o comercial interesse para Lampacau que, como porto de veniaga, só deixou de o ser para os portugueses em 1561/62.
A rápida ascensão de Macau resultou “tanto da decisão chinesa de transferir o centro do comércio externo de Cantão, como da interdição imposta aos súbditos chineses de se deslocarem ao estrangeiro”, como indica Tien-Tsê Chang em O Comércio Sino-português entre 1514 e 1644, onde mais à frente refere, “Seguindo a tradicional política de permitir aos estrangeiros que viviam em grupo na China que mantivessem as suas estruturas de governo, de acordo com as suas leis e costumes conquanto estes não se mostrassem incompatíveis com a paz e a ordem da China, as autoridades cantonenses (se bem que de início não de um modo explícito) deram autorização para que os portugueses se governassem a si próprios. Sob a influência de alguns membros mais proeminentes da jovem colónia formou-se, em 1560, um governo rudimentar que consistia num Capitão da Terra, num Ouvidor, cujo poder era o mesmo dum Juiz de Paz, e num Bispo”. Assim com Macau, as autoridades chinesas colhiam “os benefícios do comércio externo sem permitir que os estrangeiros se deslocassem a Cantão ou que os chineses saíssem do país. Aqui, mesmo às portas de Cantão, erguia-se uma comunidade de estrangeiros que, de muito bom grado, levava o que a China tinha para oferecer aos outros países e trazia tudo o que ela precisava de fora, em termos que lhe eram satisfatórios”, segundo Tien-Tsê Chang.
Entre 1558 e 1560 Diogo Pereira é “Capitão de terra nomeado pela população, governando com dois homens-bons, sem prejuízo para o Capitão da Viagem ao Japão, que se sobrepõe enquanto permanece em Macau, e sempre na dependência do Vice-Rei da Índia”, segundo Beatriz Basto da Silva, que refere, “No período entre 1560 e 1564, sensivelmente, o poder português em Macau é alvo de uma luta civil entre moradores e mercadores, sendo que a família-empresa, (como lhe chama L. F. Barreto), de Diogo Pereira se encarrega de organizar o sistema de pagamento alfandegário que Guangdong aceita. É a família Pereira que aproveita o assentamento de Leonel de Sousa e o faz evoluir no quadro do triângulo mercantil Ocidente-China-Japão”. E seguindo pela História de Macau de Gonçalo Mesquitela, “…nas instruções que D. Francisco Coutinho, conde de Redondo, leva ao partir para a Índia, como vice-rei, constava a de que tornasse a mandar Diogo Pereira por Embaixador e Capitão da China, com o presente necessário à Embaixada para a qual trazia de Portugal algumas peças de muita estima. Chegado a Goa em Setembro de 1561, verificou que Diogo Pereira estava na China. As instruções eram tão precisas que o conde de Redondo, logo na monção seguinte, em Abril (1562) mandou fazer prestes um galeão cujo comando confiou ao cunhado de Diogo Pereira, Gil de Góis” (…) “Chegados a Macau em 24 de Agosto de 1562, Diogo Pereira escolheu a capitania-mor (da Cidade do Nome de Deus no Porto de Amacau), passando a embaixada a Gil Góis”. Já com a embaixada recusada pelos mandarins, foi Diogo Pereira eleito a 23 de Agosto de 1562, “não oficialmente, para Capitão de Terra”, cargo abolido no ano seguinte pelo Vice-Rei da Índia. “Isto não implicou, porém, que Diogo Pereira continuasse a ser chefe da comunidade, tal era o seu prestígio”.

Rebelião de tropas chinesas

“Uma rebelião interna nas costas da China, em Guangdong ocorreu em Abril de 1564, questões de salário fizeram amotinar as tropas em Zhelin e estas, unidas a traficantes de sal e piratas de Hainan, moveram corso no litoral e saque a Cantão. A resolução de tão grave perturbação coube à conjugação de esforços das autoridades militares de Guangdong e à artilharia naval dos portugueses de Macau. A vitória foi alcançada a 7 de Outubro seguinte”, segundo Beatriz Basto da Silva e os historiadores Jin Guo Ping, Wu Zhiliang e o padre Manuel Teixeira complementam, após o general cantonense Tang Kekuan vir a Macau pedir ajuda militar portuguesa para reprimir o motim dos marinheiros de Zhelin. “E foi este acontecimento que implicitamente outorgou a posse de Macau aos portugueses, já que nenhum documento (chapa imperial) regista um tratado para conceder a posse”. “Os chineses apenas podiam permanecer durante o dia no território de Macau, devendo regressar às terras de origem ao anoitecer,” Beatriz Basto da Silva e continuando, assim é de 1564 “o primeiro acontecimento documentado em que as autoridades chinesas se referem ao ‘estatuto’ de Macau”, como Beatriz Basto da Silva cita da fonte Fok Kai Cheong, referindo este também para esse ano “um pormenorizado Memorial feito pelo Censor Provincial de Guangdong/Guanxi, Pang Shangpeng, para informar a autoridade imperial sobre Macau”.
Gonçalo Mesquitela, sobre os factos “situados em 1564, 43.º ano do imperador Chia Ching refere que em Sam Moon e Che Ham, no Distrito de Tung Koon, perto de Cantão, houve um sério problema de pirataria. Citando o relatório de um tal Chan Yet Cheng dirigido a Ng Kwei Fong, comandante das forças, acerca do sucesso dos seus esforços para erradicar a área dos ladrões do mar japoneses mancomunados com foragidos chineses, diz: «Em Chiu Chow havia centenas de soldados cujo dever era o guardar os seus postos avançados, mas deitaram fora os seus elmos e rebelaram-se contra o governo. Embarcaram em barcos que tomaram e assaltaram o que encontravam. O assunto foi exposto à Corte e os mandarins, depois de discutido o assunto, dedicaram atacar os bandidos que cometiam depredações e roubavam o povo, fugindo depois. Falhando vários ataques, eles foram criando mais forças e a população de Cantão começou a desesperar… o povo não sabia como lidar com a situação e muitos dos letrados e funcionários expressavam o desejo de se retirarem para outros sítios. Se os piratas não fossem suprimidos toda a Província teria sido atirada para uma situação caótica…» Sobre o mesmo assunto, o autor referido (Chou Chien Lien), cita um memorial de Yue Tai Yan, intitulado Medidas para suprimir os bandidos: «Os preparativos para o ataque aos bandidos levaram mais de dez dias. Entre os barcos de Macau de Hueng Chan, seleccionei certo número de antigos e cansados, incluindo embarcações pertencentes a Lam Wung Chung. Estrangeiros ofereceram-se para auxiliar e se a sua ajuda se revelasse eficaz, o seu chefe seria recompensado amplamente, embora não haja decreto imperial autorizando-o a pagar tributo. Logo que os barcos se aprontaram eles serão distribuídos entre as embarcações de Macau e os barcos de Pak Sek de Nam Tau. Indicarei então a data para a reunião das embarcações e será lançado a seguir o ataque aos piratas.» Descreve a seguir a batalha de Sam Moon, na qual Diogo Pereira venceu” os piratas.

Situação caótica

É do Padre António Franco a descrição desta crise, retirado de Gonçalo Mesquitela: “Pouco antes, tinham-se verificado intensos ataques japoneses à costa do Kwangtung (Guangdong). Retirados os wako, as tropas chinesas que para ali tinham sido destacadas, revoltaram-se por não serem pagas e saltaram em terra nos subúrbios de Cantam e os saquearam à vista dos mandarins que tendo gente prestes, o não o puderam remediar. Depois disto, os amotinados tomaram e fortificaram um porto distante uma jornada de Cantão. Armaram novos juncos e dedicaram-se à pirataria. Nas suas expedições destruíram os lugares marítimos e a gente era obrigada a meter-se por terra dentro. Macau estava também arriscada”. (…) Diogo Pereira não deixou perder a ocasião que in extremis se lhe deparava. Certo de que os portugueses bateriam os piratas se os atacassem, “mandou um criado seu a Cantão para, da sua parte, prometer ao general de armas de Cantão ajuda contra os piratas. Tudo isto fez sem consultar João Pereira, o capitão-mor. Por isso, ao regressar o criado com a resposta do mandarim de , criou-se forte tensão. O criado revelou a missão a que fora e o capitão-mor irou-se porque Diogo Pereira oferecera o auxílio de tropas comuns que não estavam sob o seu comando, mas que dependiam do capitão.” (…) “Mas a situação era tão grave e o auxílio tão necessário que, pouco depois, entrou um mandarim principal, pedindo auxílio, em nome do general de armas. Todos os portugueses concordaram, então, em atacar os piratas que também lhes eram daninhos e porque estavam em terras da China. . Armaram-se 300 portugueses decididos, passaram a sua artilharia para os juncos dos chineses, para melhor enganarem os piratas. Formaram duas esquadras, uma sob o comando de Luís de Mello e outra de Diogo Pereira, simples moradores que chamaram a si a despesa da campanha. Nota-se como foi evitada a presença ostensiva de forças do capitão-mor representativas da Coroa.
Adoptaram o plano do general de armas de Cantão, que era o de Diogo Pereira se colocar na saída do estreito enquanto Luís de Mello ia atacá-los.” E prosseguindo o relato de Mesquitela, “Os piratas, ao verem aproximar-se os juncos, tomaram-nos mais como presas do que como inimigos e prepararam-se para os abordar. Luís de Mello, .
A actuação dos portugueses impressionou fortemente o governador de armas. Mas outro conflito se ia originando quando pediu que lhe fossem entregues os juncos cativos. Os nossos recusaram-se a entregá-los. A situação foi salva a tempo por Luís de Mello e Diogo Pereira que, diplomaticamente, explicaram ao general que os portugueses eram tão disciplinados que só aos seus capitães obedeciam. O general chinês subtilmente retorquiu: ”, segundo refere Gonçalo Mesquitela, que usou as informações do Padre António Franco para a descrição desta crise.
Terminava assim tão grave perturbação criada desde Abril de 1564 pela rebelião interna na marinha imperial estacionada em Zhelin nos arredores de Cantão e a resolução coube à conjugação de esforços das autoridades militares de Guangdong e à artilharia naval dos portugueses de Macau, que a 7 de Outubro alcançaram em Dongguan uma vitória sobre os rebeldes.
O general de armas chinês ficou tão afeiçoado a Diogo Pereira que autorizou os portugueses a irem a Cantão tratar de negócios.

2 Set 2016

Estratégia chinesa para Macau

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Desde a fundação da Dinastia Ming (1368-1644), que a grande preocupação era a defesa contra qualquer tentativa restauradora da dinastia derrubada, a Yuan. Por esta razão, toda a defesa militar chinesa se concentrou no Norte, nas fronteiras com os Mongóis”, segundo Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.
A afirmação da dinastia Ming além-mar levou o Imperador Yong Le a enviar emissários ao Oceano Índico e para isso, promoveu as expedições marítimas comandadas pelo Almirante Zheng He, cortadas que estavam as fronteiras terrestres. Após o regresso da sétima e última viagem transcontinental da armada, que partira em 1431 comandada por Zheng He e que sem ele chegou dois anos depois, a dinastia Ming destruiu os barcos de navegação marítima e retirou-se para o interior, usando as águas do Grande Canal para o transporte das mercadorias.
Assim, a China, sem interesse no comércio exterior, após 1433 voltou a fechar para o interior e desprotegeu as costas marítimas, passando a pirataria a dominar os mares. Segundo Rui Manuel Loureiro, por volta de 1430 a dinastia Ming desencorajava “abertamente quaisquer ligações marítimas de chineses com o estrangeiro, instituindo penas severas para os infractores, que no entanto, nunca deixaram de se multiplicar”.
Toda a documentação oficial relacionada com as expedições marítimas do Almirante Zheng He, para que não servisse de estímulo a outras aventuras semelhantes, foi então destruída. 19816P14T1
Com a saída dos chineses do mar, o comércio ficou nas mãos dos muçulmanos que passaram a controlar todo o Índico e o Sudoeste do Pacífico. Cem anos depois, apareceram os barcos dos europeus que começam a dominar os Oceanos, devido às invenções e conhecimentos náuticos adquiridos aos árabes e muçulmanos, que por sua vez tinham aprendido com os chineses. Interessante é constatar que com cem anos de antecedência, o Almirante Zheng He elegeu como portos estratégicos, Malaca, Ormuz e Adem, os mesmos que inicialmente Afonso de Albuquerque tinha planeado para controlar o comércio no Oceano Índico.

Um problema diplomático

De Malaca se abriu o Oceano Pacífico aos portugueses, que como novos mercadores entraram a comercializar. Após a primeira visita à China em 1513 por Jorge Álvares, apresentaram-se os portugueses numa embaixada em 1517, à frente da qual seguia o boticário Tomé Pires, mas como a entrada neste país só era permitida aos países e reinos tributários, facilitando na burocracia o embaixador chegou à terra chinesa como proveniente de Malaca. Tal era verdade porque os portugueses expulsaram o Sultão de Malaca, Mamude Xá, o verdadeiro tributário da China e cujos antepassados em 1409 se colocaram debaixo da protecção dos imperadores chineses da dinastia Ming, para conterem os ataques do reino do Sião (Siam). Malaca era após as viagens de Zheng He o único porto onde os chineses se forneciam de mercadorias do Índico. Tomé Pires e os seus companheiros guiados pelos intérpretes malaios, que reconhecendo o terreno souberam chegar à capital, foram desmascarados em Beijing como impostores pelos enviados do Sultão. Mas faleceu em 20 de Abril de 1521 o ainda jovem Zheng De e a China parou pela morte do Imperador. No Sul da China, os mercadores portugueses desrespeitando e não acatando a suspensão obrigatória de todas as actividades, provocaram ao largo do porto de Tunmen em Setembro de 1521 a primeira batalha naval entre portugueses e os chineses. Ocorreu muito devido à imagem de pirata que Simão de Andrade aí deixara e levou à prisão de muitos portugueses. Ficava irremediavelmente perdido o primeiro esforço dos portugueses ao serem banidos das terras chinesas.
A China, um país que nunca se interessou pelo comércio, tendo em baixo nível social a quem ele se dedicava, por um édito imperial de 1525 promoveu a destruição de todos os barcos que navegassem no mar e o aprisionamento dos mercadores que tivessem intenções de comercializar com outros países, ficando apenas os barcos e a indústria naval ligada à navegação pelos rios.

Do Liampó a Chincheu

“Sem embargo das sobreditas leis, não deixam alguns chineses de navegar para fora da China a tratar; mas estes não tornam mais à China. Destes vivem alguns em Malaca, outros em Sião, outros em Patane, e assim por diversas partes do Sul estão espalhados alguns destes que saem sem licença. Pelo que destes que já vivem fora da China, alguns tornam em seus navios a navegar para a China debaixo do amparo dos portugueses. E quando hão-de despachar os direitos de seus navios, tomam um português seu amigo a quem dão algum interesse, para que em seu nome lhe despachem os direitos. Alguns chineses, desejando ganhar o remédio para sua vida, saem muito escondidos nestes navios destes chineses a contratar fora, e tornam muito escondidos que o não saibam nem seus parentes, porque se não divulgue e não incorram na pena que os tais têm”, segundo refere Gaspar da Cruz.
Com os mares despovoados de embarcações chinesas, os chineses ultramarinos encaminharam então os portugueses “a que fossem a Liampó fazer fazenda, porque não há naquelas partes cidades nem vilas cercadas, senão muitas e grandes aldeias ao longo da costa, de gente pobre, a qual folgava muito com os portugueses, porque lhes vendiam seus mantimentos, com que faziam seu proveito. Nestas aldeias eram estes mercadores chineses que com os portugueses navegavam aparentados e por serem conhecidos recebiam ali por sua causa melhor os portugueses, e por eles negociaram com os mercadores da terra trouxessem suas fazendas a vender aos portugueses”, do Tratado das Coisas da China, do dominicano Frei Gaspar da Cruz. Já Fernão Mendes Pinto refere, terem-se “chegado a António de Faria os quatro principais do governo daquela povoação ou cidade de Liampoo, como os nossos lhe chamavam, que eram Mateus de Brito, Lançarote Pereira, Jerónimo do Rego e Tristão de Gaa”. Segundo Rui Loureiro, “Os portugueses, na realidade, mantiveram um estabelecimento mercantil nas ilhas de Shuang-hsü” (…) e esta povoação de Liampó, “como outras que surgiam ao longo da costa chinesa, era frequentada por navegadores de outras procedências, e normalmente siameses, léquios, chineses e japoneses. Não eram invulgares os conflitos com as populações ou com as autoridades chinesas dessas regiões, a propósito de questões mercantis.”
Moltalto de Jesus refere, “Depois da destruição de Liampó, os portugueses asseguraram uma base em Chincheu, perto de Amoy (hoje Xiamen), por meio de pesados subornos. Também aí (actual Zhangzhou) a mesma horrível sorte os alcançou, dois anos mais tarde (1549), segundo Mendes Pinto, em consequência de uma disputa pelos bens de um arménio morto. Um administrador oficial, Aires Botelho de Sousa, com fama de homem sem princípios e ganancioso, tomou como fazenda parte dos bens e algumas mercadorias que dois comerciantes chineses diziam suas e que, como não lhes fossem restituídas, se queixaram aos mandarins – que imediatamente proibiram as relações dos nativos com os portugueses, racionando o fornecimento de provisões. Levados pela fome, passaram a região a pente fino. Isto terminou em escaramuças que levantaram o distrito inteiro contra eles. Enquanto um exército acabava rapidamente com os portugueses, uma frota deitou fogo aos seus barcos; e de quinhentos portugueses apenas cerca de trinta escaparam a uma morte atroz”. (…) “Com estas horríveis hecatombes a China queria, evidentemente, impedir os portugueses de frequentarem as suas costas inóspitas. No entanto, nada intimidou estes esforçados navegadores. Os proscritos dirigiram-se agora para Sanchuan”, e pela frequência dos portugueses em peregrinação ao local onde morrera o Padre S. Francisco Xavier, os chineses em 1554 os impediram de voltar a frequentar essa ilha e para Lampacao os desviaram.

Plano para Macau

“O perigo em que esteve a Corte (com o incidente de Gengxu, protagonizado por Altan, em 1550, quando contornando a Grande Muralha, chegou ao pé de Pequim ameaçando tomar a cidade e saqueando os subúrbios do Noroeste) levou os Ming a reorganizar a defesa militar (…) e para fazer frente a outras rebeliões das minorias nacionais chinesas, tornou-se urgente resolver o problema de Macau. A situação no litoral do Sul também não era nada optimista. Em 1552, a do Distrito de Huangyan caiu na mão de piratas japoneses, o que ficou conhecido na história como Renzi zhi bian (Incidente do ano Renzi, 1552). Foi um tremendo abalo para a Administração Ming. Eis o pano de fundo do entre Leonel de Sousa e Wang Bo. A invasão de Pequim em 1550 e Renzi zhi bian são as chaves para perceber a viragem da atitude chinesa, decidida por Pequim e executada por Guangdong, para com os Portugueses, que já tinham sofrido grandes reveses à mão de Zhu Wan, em Liampó e Chincheo respectivamente em 1548 e 1549. As campanhas expedicionárias de Zhu Wan contra os Portugueses conseguiram algumas vitórias militares, mas não resolveram o problema da pirataria, nem conseguiram acabar com a presença portuguesa”, segundo referem Jin Guo Ping e Wu Zhiliang: “Em termos globais, o poder militar chinês era superior ao dos Portugueses que frequentavam o litoral chinês”.
“Macau começou a ser (em 1557) um entreposto para o comércio português entre Malaca e o Japão”, como refere Rui Loureiro e continuando com Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, “o desenvolvimento desse comércio traria, mais cedo ou mais tarde, a praga da pirataria a Macau e a Guangdong. Após a repressão de alguns grupos de piratas chineses nas águas de Guangdong e instalados os Portugueses em Macau, as autoridades de Guangdong começaram a tentar resolver o problema dos Japoneses. Antes de mais, uma autorização de residência concedida aos Portugueses em Macau poderia obrigá-los a não se associarem publicamente aos piratas japoneses. De facto, sem os fixar num lugar, como se poderia sujeitá-los à legislação chinesa? Mais tarde, seriam tomadas medidas legais para proibir os Portugueses de ter Japoneses ao seu serviço. Através desta medida de acomodação dos Portugueses em Macau, foram conseguidas, a nível militar, duas vitórias: a rápida repressão dos piratas chineses e o impedimento de qualquer ligação pública entre os Portugueses e os piratas japoneses”.

19 Ago 2016

Fim do Liampó português em Shuangyu

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m Liampó, António de Faria, segundo Fernão Mendes Pinto, “Depois de ser desembarcado em terra, e lhe serem dados os parabéns da sua chegada, o vieram ali visitar todos os mais nobres e ricos, os quais por cortesia se prostravam por terra, em que houve alguma detença”. (…) “Daqui o levaram para a igreja por uma rua muito comprida fechada toda de pinheiros e louros, e toda juncada, e por cima toldada de muitas peças de cetins e damascos. E em muitas partes havia mesas em que estavam caçoulas (vasos de barro para cozinha, ou vaso de porcelana para queimar perfumes) de prata com muitos cheiros e perfumes, e antremeses de invenções, muito custosos.
E já quase no cabo desta rua estava uma torre de madeira de pinho toda pintada a modo de pedraria, que no mais alto tinha três curucheos, e em cada uma grimpa dourada com uma bandeira de damasco branco, e as armas reais iluminadas nela com ouro. E numa janela da mesma torre estavam dois meninos e uma mulher já de dias chorando, e em baixo ao pé dela estava um homem feito em quartos, muito ao natural, que dez ou doze castelhanos estavam matando, todos armados, e com suas chuças (chuço é uma haste de pau com choupa de ferro, afiado na extremidade superior) e alabardas tintas em sangue, a qual coisa, pelo grande fausto e aparato com que estava feita, era muito para folgar de ver. E a razão disto dizem que foi porque dizem que desta maneira ganhara um Foão de quem os verdadeiros Farias descendem, as armas da sua nobreza nas guerras que antigamente houve entre Portugal e Castela.
Neste tempo, um sino que estava no mais alto desta torre como de vigia deu três pancadas, ao qual sinal se quietou o tumulto da gente, que era muito grande. E ficando tudo calado, saiu de dentro um homem velho (idoso) vestido em uma opa de damasco roxo, acompanhado de quatro porteiros com maças prata. E fazendo um grande acatamento a António de Faria, lhe disse com palavras muito discretas quão obrigados todos lhe estavam pela grande liberalidade que usara com eles e pela grande mercê que lhes fizera em lhes restituir suas fazendas, pelo qual todos lhe ficavam dali por diante por súbditos e vassalos, com menagem dada de seus tributários em quanto vivessem. E que pusesse os olhos naquela figura que tinha junto de si, e nela, como em espelho claro, veria com quanta lealdade os seus antecessores de quem ele descendia ganharam o honroso nome da sua progénie (descendência, geração), como era notório a todos os povos de Espanha. Donde também veria quão próprio lhe era a ele o que tinha feito, assim no esforço que mostrara, como em tudo o mais que usara com eles. Pelo qual lhe pedia em nome de todos, que em começo do tributo a que por razão de vassalagem lhe estavam obrigados, aceitasse por então aquele pequeno serviço que lhe oferecia para murrões (morrão é um pedaço de corda enleada com que se põe fogo às peças) dos soldados, porque a mais dívida protestavam de lha satisfazerem a seu tempo. E com isto lhe apresentou cinco caixões de barras de prata em que vinham dez mil taéis.
António de Faria lhe agradeceu com muitas palavras as honras que até então lhe tinham feitas e o presente que lhe ofereciam, porém por nenhum caso lho quis aceitar por muito que todos nisso insistiram”, Fernão Mendes Pinto na Peregrinação. Segunda-feira, 14 de Maio de 1542 zarpou de Liampó António de Faria.

Expulsar os piratas

Em Shuangyu, este porto de Liampó temporariamente nas mãos dos portugueses, pois feito sem permissão do governo chinês, terminou em 1548-49 quando foi destruído. Tal se deveu, segundo Fernão Mendes Pinto, a Lançarote Pereira que praticou as brutalidades que originaram a destruição da colónia portuguesa de Liampó. Já Gaspar da Cruz atribui aos “chineses que andavam entre os portugueses, e alguns portugueses com eles, vieram-se a desmandar, de maneira que começaram a fazer grandes furtos e roubos e a matar alguma gente”. Anota Rui Manuel Loureiro, “Os portugueses, de facto, deverão ter cometido algumas depredações no litoral de Liampó, em circunstâncias ainda mal esclarecidas, mas que parece terem estado ligadas a roubos cometidos por intermediários chineses”. E seguindo com Gaspar da Cruz, “Foram os males em tanto crescimento e o clamor dos agravados foi tão grande, que chegou não somente aos loutiás grandes da província mas também a el-rei. O qual mandou logo fazer uma armada muito grossa na província de Fuquiem, para que lançassem todos os ladrões da costa, principalmente os que andavam em Liampó, e todos os mercadores, assim portugueses como chineses, entravam na conta dos ladrões.”
Segundo João de Deus Ramos, “Em 1547 Zhu Huan foi nomeado Vice-Rei das duas províncias de Fujian e Zhejiang, e deu mostras de ser forte ânimo no rigoroso cumprimento das proibições em vigor quanto ao comércio com os estrangeiros. Conseguiu assim criar as mais fortes inimizades em todos os sectores da população que beneficiava daquele comércio”. Já Rui Loureiro refere que “a corte imperial chinesa despachou para as províncias meridionais de Fukien e Chekiang, o vice-rei Chu Wan em 1548, com o encargo de debelar o surto de pirataria que afectava aquelas regiões”.
“A 14 de Maio de 1548, Zhu Wan preparou o estratagema para atacar o Porto de Shuangyu (Liampó dos portugueses). Deu ordens ao Comandante Regional Lu Tang para com o Comandante Wei Yigong, ambos de Fujian, seguirem e aí esperar a melhor oportunidade de em conjunto começarem o combate. A vitória na batalha naval foi conseguida em Jiushan. A destruição de Liampó só aconteceu mais tarde”, segundo Deus Ramos. Já Victor F. S. Sit refere, “Em 1547, Zhu Wan, o chefe militar de Zhejiang, deu uma tremenda derrota aos navios portugueses em Shuangyu, mandou incendiar as mil casas que havia na ilha e todos os barcos utilizados no comércio ilegal e mandou encerrar o porto. Os portugueses tiveram que fugir para o Sul, acabando por chegar a Sanchoão (Shangchuan) e a Lampacau (Langbai), ilhas da província de Guangdong. A ilha de Sanchoão (Shangchuan) acabou por ser o último ponto de paragem dos portugueses antes de se estabelecerem em Macau”.

Fim do estabelecimento provisório

O segundo período de contactos na China, entre portugueses e chineses, acabou com a batalha de Zoumaxi (走马溪, Ribeira de Cavalos Galopantes) em 1549, período que podemos designar como “Entre Chincheo e Liampó”, segundo Revisitar os Primórdios de Macau.
Gaspar da Cruz conta: “Fazendo-se prestes a armada, saiu-se ao longo da costa do mar. E porque os ventos lhe não serviam já para poder ir a Liampó, foram para a banda do Chincheo, onde achando navios de portugueses começaram a pelejar com eles, e de nenhuma qualidade deixavam de vir nenhuma fazenda aos portugueses”. Já Rui Loureiro refere: “Ao contrário do que afirma Fr. Gaspar, a armada chinesa, a instâncias de Chu Wan, atacou na realidade o entreposto de Liampó em 1548, interrompendo o intenso tráfico ilegal que os estrangeiros ali realizavam. Depois do assalto a Liampó, o comissário imperial Chu Wan desencadeou uma violenta campanha contra a navegação estrangeira na região de Chinchéu, onde os portugueses se tinham entretanto refugiado”.
E seguindo com Gaspar da Cruz, “Estiveram assim muitos dias pelejando (os portugueses) às vezes para verem se podiam ter remédio para fazerem suas fazendas. Passados muitos dias e vendo que não tinham remédio, determinaram de se ir sem ela(s). O que sabendo os capitães d’armada, mandaram-lhe(s) de noite muito secretamente um recado, que se queriam que lhe(s) viesse fazenda, que lhe(s) mandassem alguma coisa. Folgando muito os portugueses com este recado, fizeram-lhe(s) um grosso e honrado presente e mandaram-lho de noite, por assim serem avisados. Dali por diante vieram-lhe(s) muitas fazendas, fazendo os loutiás que não atentavam nisso e dissimulando com os mercadores. E assim desta maneira se fizeram as fazendas aquele ano, que foi de 1548”.
João de Deus Ramos, “No ano seguinte deu-se um acontecimento que ficaria conhecido pelo , bem demonstrativo de que a fase do conflito e do comércio ilícito entre portugueses e chineses estava a chegar ao seu termo.
Já se viu como o Vice-Rei Zhu Huan ganhara a maior impopularidade ao querer impor com rigor as proibições do comércio com os estrangeiros. Em 1548 a frota de Diogo Pereira dirigiu-se à China. Determinou que as mercadorias que levava fossem transportadas em dois juncos chineses. Depois de alguns recontros violentos que determinaram a sua partida, deixou no entanto ficar os juncos, comandados por Fernão Borges e Lançarote Pereira, acompanhados de trinta portugueses e mais gente, na expectativa de ainda fazerem algum negócio. As forças navais chinesas não perderam tempo em apresá-los, matando alguns dos nossos e fazendo prisioneiros outros. Mas os tempos eram diferentes, e em vez de vir de Pequim a confirmação de sentenças, como acontecera trinta anos antes, foi despachado um Comissário Imperial para investigar o caso. Considerou que os portugueses não eram culpados dos crimes de que os acusavam, mas apenas pacíficos mercadores. Lê-se num documento da época: […], Carta de Afonso Ramires. O Vice-Rei Zhu Huan suicidou-se, e outros oficiais foram executados.
Terminava o período do conflito e do comércio ilegal, estava criado o ambiente, e as condições de parte a parte, para o surgimento de Macau.”
“Em 1549, foram expulsos das terras de Chincheo e, entre 1550-1553 fixaram-se sucessivamente em Sanchoão, Lampacau e depois Macau.” (Wu Zhiliang, História do Desenvolvimento Político de Macau, 1999).
E terminamos no Cap LXII da Peregrinação, em que Fernão Mendes Pinto refere de um episódio de 1540/1, “E chegando à vista do junco, (António de Faria) mandou que a lorcha se passasse da outra banda, por que abalroassem ambos juntamente, e que ninguém disparasse nenhum tiro de fogo, por que não sentissem os juncos da armada que estavam dentro no rio o tom de artilharia, porque acudiriam a ver o que era. Tanto que as nossas embarcações chegaram ao lugar onde estava surto o junco, ele foi logo abalroado sem nenhuma detença, e saltando dentro vinte soldados se senhorearam dele sem contradição alguma…” Esta frase descontextualizada das circunstâncias e sem os antecedentes, remete no entanto os portugueses à actividade de pirataria, mas neste episódio aconteceu atacar um barco amigo.
Segundo Bento de França nos “Subsídios para a História de Macau “nos finais de 1556 navegava por aquelas costas um terrível pirata, Chan-si-lau a quem os portugueses, para agradar ao mandarim local, deram caça e acabaram com o seu reinado”. Era já Macau local usado pelos portugueses para esperar os tecidos de seda vindos de Cantão.

12 Ago 2016

Inícios de Liampó português

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]A Dinastia Ming, que sucedeu à mongol dos Yuan, foi a última dinastia imperial de origem chinesa, uma vez que a que lhe sucedeu era proveniente da Manchúria. Os Ming quase coincidem no tempo com a Dinastia de Avis, pois ocuparam o Trono do Dragão de 1368 a 1644″, segundo uma nota de João de Deus Ramos. A China, encerrada aos estrangeiros em 1521, devido ao falecimento do Imperador Zhengde e a consequente suspensão obrigatória de todas as actividades, manteve os portos fechados com o Imperador Jiajing (1522-66) e por édito imperial de 1525, deixou de haver marinha mercante chinesa nos mares.
As costas passaram a estar cheias de piratas japoneses e portugueses, na altura os únicos europeus, à procura das apetecíveis mercadorias chinesas.
“Sendo a área normal do comércio externo o porto de Cantão, é natural que, depois do ocorrido de 1517 a 1523, o policiamento marítimo e terrestre nessa zona fosse mais apertado”, segundo refere Gonçalo Mesquitela. “Após os conflitos armados luso-chineses, ocorridos entre 1521 e 1522, nas águas de Tunmen, a Corte de Pequim decretou o encerramento dos portos cantonenses. Inicialmente, (…) as autoridades de Cantão recusavam (os portugueses,) os de Aname e Malaca. Desde que os mais variados bárbaros de Aname e Malaca foram recusados, eles iam fazer comércio clandestino às águas da prefeitura de Zhangzhou (漳州, Chincheo) fazendo com que a província de Fujian (福建) lucrasse com isso, deixando o mercado cantonense numa situação paupérrima” segundo Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang e continuando, “O encerramento total dos portos cantonenses provocou danos insuportáveis à economia de Cantão…”, (…) “As receitas locais caíram a pique. A ordem económica local e de uma boa parte do Centro e Sul da China estava afectada e desequilibrada. A situação financeira de Cantão era de tal maneira caótica que nem conseguiam pagar os soldos e os vencimentos da função pública. Esta situação dramática levou o vice-rei Lin Fu a moralizar a Corte Central em 1529, apelando à revogação das proibições marítimas impostas a Cantão. O memorial ao Trono foi favoravelmente despachado e restabelecido o sistema tributário em Cantão, mas os portugueses continuavam proibidos de vir às águas de Cantão. No entanto, alguns, após uma década de ausência do litoral cantonense, começaram a voltar ao negócio da China, a título individual e integrados em grupos tributários de alguns países do Sudeste Asiático, principalmente disfarçados de siameses.”

Juncos à China, a provar se queria ter trato

“A partir de finais da segunda década do século (XVI), embora mantendo-se fechados os portos e em vigor as ordens de expulsão dos portugueses, começam a desenhar-se tréguas na violência e a virem à superfície novas convergências de interesses, pois para ambas as partes o trato tinha os maiores aliciantes. Com a passagem dos anos foram crescendo estes contactos à margem das directivas oficiais, cada vez mais esquecidas”, segundo João de Deus Ramos.
A reabertura do porto de Cantão só veio a ocorrer em 1530, ficando a proibição restrita aos portugueses, na altura os únicos europeus. Por isso, “Começa então a notar-se o desvio da área comercial externa mais para o norte, nas costas da China Central, ao longo de toda ela. Mas também, por certo, ainda ao largo de Cantão”, segundo Gonçalo Mesquitela. Já Beatriz Basto da Silva, refere, “O Ming-Shi admite que, a partir do ano 1527, há comércio entre portugueses e o Fuquiam (Fujian). Em Fuquiam irão aparecer as primeiras sociedades de moradores casados com asiáticas não forçosamente chinesas, mas em harmonia de convivência com comunidades chinesas”.
Foram os chineses ultramarinos que introduziram aos portugueses o litoral de Fujian e Zhejiang, para aí se estabelecerem.
“No primeiro quartel do século XVI, Portugal estava forte dos sucessos da gesta ultramarina, habituado a vencer, dominar, impelido pela dinâmica religiosa e económica da expansão. A China, nesse tempo, vivia ainda a pujança da dinastia Ming”, segundo João de Deus Ramos.
“Do lado português, as viagens sucedem-se neste plano clandestino mesmo para os chineses. Há licenças oficiais portuguesas nesta época para a viagem à China Conhecem-se: a de 1532”, proibida pelo governador ao chegar a Goa, a de 1533, concedida a Manuel Godinho, que por indicação de Estevão da Gama (ou Paulo da Gama, Capitão de Malaca como refere J. M. Braga) conseguiu “as pazes com os reis de Pão (Pahang) e de Patane, que durante quinze anos faziam guerra a Malaca. Estas pazes foram causa de tornarem a tratar na China, de que se descobriram pelos nossos mais de 50 portos melhores que os de Cantão. Segundo ainda o mesmo autor (Castanheda), em 1535 D. Estevão da Gama mandou Henrique Mendes de Vasconcelos a Patane trazer Francisco Barros de Paiva que lá estava e para ordenar que dali fosse um junco à China, a provar se queria ter trato como tiveram em tempo passado. Foi Henrique Mendes num navio dos nossos. Seguem-se as licenças, de 1538, a Fernão Anrique, em 1543 a Jerónimo Gomes, e, em 1544, a Alonso Henriques de Sepúlveda. E quantos outros portugueses por ali teriam navegado, ligados a comerciantes chineses ou arriscando a sorte, muitas vezes adversa…”, segundo escreve Gonçalo Mesquitela.
Encobertamente feitas as fazendas em Liampó, sem nunca el-rei ser sabedor deste trato, “sucederam as contratações de maneira que começaram os portugueses a invernar nas ilhas de Liampó e estarem nelas tanto de assento e com tanta isenção que lhes não faltava mais que ter forca e pelourinho”, segundo o Padre Gaspar da Cruz. Seguindo com João de Deus Ramos, “Os portugueses apelidados de piratas e a eles não poucas vezes associados, iam alimentando um crescente comércio ilícito que tinha o apoio nas classes que dele beneficiavam. Através destas iam conseguindo a tolerância, quando não a conivência, das próprias autoridades locais”.
Este é o segundo período do relacionamento entre portugueses e chineses, “e podemos designá-lo como Entre Chincheo e Liampó”, segundo Revisitar os Primórdios de Macau. O primeiro ocorrera desde a chegada de Jorge Álvares à China em 1513 até aos dois conflitos navais no Rio das Pérolas ganhos pelos chineses aos portugueses em 1521 e 1522. Iniciava-se um novo ciclo, passando os Portugueses a frequentar o litoral de Fujian e Zhejiang e que terminou em 1549.

Rei dos mares

Escondido numa baía de uma ilha em frente à cidade de Ningbo, o povoado feito pelos comerciantes portugueses com a ajuda das famílias locais chinesas e em conivência com os oficiais menores, teve o seu quotidiano relatado por Fernão Mendes Pinto na Peregrinação entre os capítulos 67 a 70. Aí se conta a história do Capitão António de Faria às portas de Liampoo, em 1541 e como antecedente, ter ele e o seu grupo resgatado da prisão em Nouday “cinco portugueses, residentes em Liampó, que viajaram num barco cujas amarras se quebraram com o temporal e fora dar à costa e à sua vista se fizera em pedaços na praia e de toda a gente se não salvaram mais que treze pessoas, cinco portugueses e oito moços cristãos, os quais a gente da terra levou cativos para um lugar que se chamava Nouday”, da Peregrinação.
António de Faria, segundo Fernão Mendes Pinto, foi levar os portugueses libertados por ele dessa prisão chinesa a Liampó, onde viviam e por isso muito bem recebido. Já o rei dos mares, António de Faria tinha derrotado o famoso corsário Coja Acém, terror da costa chinesa, história contada na semana passada. E continuando na Peregrinação, “Por entre estas duas ilhas a que os naturais da terra e os que navegam aquela costa chamam as portas de Liampoo vai um canal de pouco mais de dois tiros de espingarda de largo, com fundo de vinte até vinte e cinco braças, e em partes tem angras de bom surgidouro, e ribeiras frescas de água doce que descem do cume da serra, por entre bosques de arvoredo muito basto de cedros, carvalhos e pinheiros mansos e bravos, de que muitos navios se provêm de vergas, mastros, tabuado e outras madeiras, sem lhe custarem nada.
Surgindo António de Faria nestas ilhas uma quarta-feira pela manhã, Mem Taborda e António Anriquez lhe pediram licença para irem diante dar recado à povoação de como ele era chegado, e saber as novas que havia na terra, e se se dizia ou soava por lá alguma coisa do que ele fizera em Nouday porque se a sua ida lá prejudicasse em alguma coisa à segurança e quietação dos portugueses, se iria invernar à ilha de Pulo Hinhor como levava determinado…”
Estava-se em Dezembro de 1541 e “os seis dias que António de Faria aqui se deteve, como lhe tinham pedido os de Liampoo, esteve surto nestas ilhas. No fim do qual tempo, um domingo antemanhã, que era o tempo aprazado para entrar no porto, lhe deram uma boa alvorada (…). E sendo pouco mais de duas horas antemanhã, com noite quieta e de grande luar, se fez à vela com toda a armada (…). E sendo já manhã clara acalmou o vento pouco mais de meia légua do porto, a que logo acudiram vinte lanteás de remo muito bem equipadas, e dando toa a toda a armada, em menos de uma hora a levaram ao surgidouro.
Porém antes que ela lá chegasse vieram a bordo de António de Faria mais de sessenta batéis e balões e manchuas com toldos e bandeiras de seda, e alcatifas ricas, nas quais viriam mais de trezentos homens, vestidos todos de festa, com muitos colares e cadeias de ouro, e suas espadas, guarnecidas do mesmo, em tiracolos, ao uso de África. E todas estas coisas vinham feitas com tanto primor e perfeição que davam muito gosto e não menos espanto a quem as via.
Desta maneira chegou António de Faria ao porto, no qual estavam surtas por ordem vinte e seis naus e oitenta juncos, e outra muito maior soma de vancões e barcaças amarradas umas ante outras, que em duas alas faziam uma rua muito comprida, enramados todos de pinho e louro e canas verdes, com muitos arcos cobertos de ginjas, peras, limões e laranjas, e de outra muita verdura, e de ervas cheirosas, de que também os mastros e as enxárcias estavam cobertas.
António de Faria, depois de estar surto junto de terra no lugar que para isso lhe estava aparelhado, fez sua salva de muita e muito boa artilharia, a que todas as naus e juncos e as mais embarcações que trás disse, responderam por sua ordem, que foi coisa muito para ver, de que os mercadores chineses estavam pasmados. E perguntavam se era aquele homem, a que se fazia tamanho recebimento, irmão ou parente do nosso rei, ou que razão tinha com ele. A que alguns cortesãos respondiam que não, mas que verdade era que seu pai ferrava os cavalos em que el-rei de Portugal andava, e que por isso era tão honrado que todos os que ali estavam podiam muito bem ser seus criados e servi-lo como escravos. Os chineses, parecendo-lhe que podia ser aquilo assim, olhavam uns para os outros a maneira de espanto, e diziam:
– Certo que muito grandes reis há no mundo de que os nossos antigos escritores não tiveram nenhuma notícia para fazerem menção deles nas suas escrituras! E um destes reis de que mais caso se devera de fazer parece que deve ser o destes homens, porque segundo o que dele temos ouvido é mais rico e mais poderoso e senhor de muito maior terra que o Tártaro nem o Cauchim, e quase que se pudera dizer, se não fora pecado, que emparelhava com o Filho do Sol, Lião coroado no Trono do Mundo. Numa lanteá se embarcou “António de Faria, e chegado ao cais com grande estrondo de trombetas, charamelas, atabales, pífaros, tambores e outros muitos tangeres de Chineses, Malaios, Champás, Siames, Bornéos, Léquios e outras nações que ali no porto estavam à sombra dos Portugueses, por medo dos corsários de que o mar andava cheio, o desembarcaram dela em uma rica cadeira de estado, como chaem do governo, dos vinte e quatro supremos que há neste império. A qual levavam oito homens vestidos de telilha, com doze porteiros de maças de prata, e sessenta alabardeiros com panouras e alabardas atauxiadas de ouro, que também vieram alugadas da cidade, e oito homens a cavalo com bandeiras de damasco branco, e outros tantos com sombreiros de cetim verde e carmesim, que de quando em quando bradavam à charachina, para que a gente se afastasse das ruas”, Fernão Mendes Pinto.
Entende-se tão pomposa recepção a António de Faria, pois libertara das masmorras residentes da cidade, e pelo relato apreende-se a riqueza não só cultural, como material, com que já aí se vivia. E ainda os mercadores portugueses não tinham chegado às ilhas do Japão. Quando tal aconteceu em 1542, segundo Beatriz Bastos da Silva, foi “inaugurado o comércio português de Liampó, 30° Lat. N, com o Japão. O entreposto de Liampó já era florescente há algum tempo. O comércio do Japão veio, entretanto, a enriquecer Liampó de forma rápida. Tinha duas igrejas, uma câmara, dois hospitais, mais de mil edifícios particulares, auditores, juízes, procuradores e outros ofícios públicos usuais em Portugal. Crescimento daí decorrente para Liampó (na boca do rio Fu-Chan). Feitorias de carácter precário (Chincheo, Lampacau), sem contratos, mas já cheias de pormenores administrativos portugueses, embora localmente estivessem sujeitas à China. (Ljungstedt, Andrew – An historical sketch of the Portuguese)”.

5 Ago 2016

Ningbo e a cidade de Liampó

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a província de Zhejiang encontramos a cidade de Ningbo, situada no Delta do Rio Yangtzé. Com uma estratégica posição na costa marítima a meio da China, usufrui de três portos, o Beilun banhado por um canal de águas profundas, o Zhenhai e o antigo porto de Ningbo, equipado para petroleiros e outros navios de grande porte.

Se a razão da visita é ser Ningbo a última cidade do Grande Canal e encontrar-se na lista das cidades chinesas ligadas à antiga Rota Marítima da Seda, confesso trazer a curiosidade desperta pela Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e Tratado das Coisas da China do Frei Gaspar da Cruz, cujas informações recolhidas em meados do século XVI, me colocavam a imaginação às voltas ao pretender entender como seria Liampó, “estabelecimento mercantil nas ilhas de Shuang-hsü”, como o classifica Rui Loureiro numa das notas redigidas no Tratado das Coisas da China. Por isso, aqui não vamos escrever sobre a actual Ningbo e seus arredores, nem da cidade esplendorosa desde a dinastia Tang até à Song do Norte, que com o nome de Mingzhou foi um dos principais portos da costa chinesa, o que continuou na dinastia mongol dos Yuan. Com a abertura dos caminhos terrestres, a cidade começou a perder importância e caída no esquecimento, quando em meados da dinastia Ming, o , dominicano Frei Gaspar refere, os portugueses “a invernar nas ilhas de Liampó e estarem nelas tanto de assento e com tanta isenção que lhes não faltava mais que ter forca e pelourinho”.

Tal estabelecimento inicial dos mercadores portugueses em Liampó terá ocorrido em 1540 e segundo Rui Loureiro, Liampó tanto designava nas nossas fontes quinhentistas a cidade de Ningpo e área circundante, como o estabelecimento português que floresceu entre 1540 e 1549 em Shuang-hsü, uma das ilhas do arquipélago de Chu-san, no litoral fronteiro a Ningpo.

Complementa Victor F. S. Sit, ” Em Shuangyu, os portugueses envolveram-se com piratas chineses e japoneses (wokou) em negócios ilícitos de elevados lucros, dando, assim, origem a uma colónia portuguesa, a segunda maior da Ásia, de importância apenas inferior à de Malaca. Lá viviam 10 mil comerciantes, entre os quais 1200 portugueses. Havia mil casas, uma municipalidade, uma assembleia, um tribunal, várias igrejas e um hospital. Esta povoação mais parecia um estado dentro da China”.

A muy nobre e sempre leal cidade de Liampó

Ainda antes do estabelecimento em Macau dos portugueses, segundo Montalto de Jesus refere, “da leitura de outro relato contemporâneo, a famosa Peregrinação de Mendes Pinto, ressalta que Liampó foi sempre considerada como a mais bonita, a mais rica e a melhor abastecida colónia que os portugueses tiveram na Ásia – um município oficializado como cidade portuguesa e intitulado, nos testamentos e escrituras, Esta muy nobre e sempre leal cidade de Liampó, pelo Rey nosso Senhor, como se se situasse em Portugal. A colónia atingiu o auge da sua prosperidade depois da descoberta do Japão (ocorrida entre 1542 e 1543). O comércio, calculado em mais de três milhões de cruzados de ouro, rendia três ou quatro vezes o capital investido. A comunidade era de mil e duzentos portugueses e mil e oitocentos orientais, que por ali prosperavam sem ser molestados pelos piratas. Ao Sul, no entanto, os portugueses eram muitas vezes vitimados e o comércio entre Malaca e Liampó disso se ressentia fortemente. Certa vez calhou a António de Faria, que arruinado resolveu vingar-se. Com o apoio dos seus companheiros equipou uma expedição contra o seu saqueador, o famoso corsário Coja Acém, terror da costa chinesa. A partir do Sião, Faria esmagou muitos piratas poderosos – e uma das vitórias impressionou tanto os chineses que estes lhe enviaram uma deputação, oferecendo-lhe um tributo de vinte mil taéis e solicitando a sua protecção como rei dos mares. Ele de boa vontade aceitou e emitiu salvos-condutos, pondo como condição que os portugueses fossem tratados de forma fraternal pelos chineses sempre que se encontrassem.” (…) “a expedição teve a seguir a fatalidade de naufragar numa ilha deserta – e a perseguição teria terminado aí não fosse o apresamento de um barco que casualmente lá aportou para se restabelecer de água. Então, com a frota de um pirata chinês, Faria terá eventualmente conseguido alcançar, derrotar e matar Coja Acém e a sua horda, não dando quartel nem aos feridos e doentes encontrados em terra. A frota vitoriosa, carregada de ricos espólios, perdeu-se parcialmente num tufão”. Tal terá ocorrido por volta de 1541 e é preciso lembrar que por essa altura, e desde 1521, após a primeira das duas batalhas navais ocorridas entre navios mercantes portugueses e a armada chinesa, as autoridades chinesas decretaram a expulsão dos portugueses e por isso, eram estes ali considerados piratas.

Os piratas japoneses

Tributários da China no século V a.n.E., durante a dinastia Zhou do Leste, os japoneses ao longo dos tempos até à dinastia Ming continuaram a receber do erudito país constantes influências, tanto culturais como religiosas, de onde lhes veio na dinastia Tang, o Budismo, o modelo com que estruturaram a sua hierarquia Imperial, a arquitectura das casas e muitas outras influências. Já na dinastia Yuan, por os japoneses não quererem em 1266 ser tributários da dinastia mongol, em 1274 e 1281 foram invadidos pelas tropas de Kublai Khan. Nessas duas vezes, na primeira invasão os 30 mil mongóis e coreanos foram repelidos por uma tempestade e na última, com 140 mil soldados, “ao fim de dois meses de luta, nova tempestade – Kamikaze, vento divino – dispersa a frota invasora. Novamente Kubilay se prepara para tomar as ilhas, organizando um quartel-general para o ataque em 1293. A sua morte em 1294 susta esta tentativa. O regente dos Hojo, mantém, no entanto, o alerta militar até 1314”, segundo Gonçalo Mesquitela. Estas tentativas mongóis de invasão levaram os japoneses à construção de embarcações, ficando assim guarnecida a capacidade marítima do Japão. Anteriormente e desde longo tempo, “o comércio exterior japonês estivera entregue a navegadores coreanos e chineses. A ameaça mongol, como dissemos, desenvolveu a classe marítima nipónica. Nas décadas que se lhe seguiram, instituíram-se numerosas comunidades japonesas na costa, (…), aventurando-se depois no mar da China”, como refere Mesquitela. E com ele continuando, “Nos princípios do século XIV, os japoneses começaram as actividades de pirataria e saque das costas, tendo daí advindo para estes barcos japoneses o nome de Wako, oriundo da bandeira invocadora do deus da Guerra que ostentavam. Este carácter de pirata resultava também da clandestinidade a que as autoridades da Coreia e da China obrigavam o comércio marítimo, considerado indesejável, pelo que o pretendiam suprimir ou, pelo menos, restringir fortemente”.

Logo desde o início da dinastia Ming, em 1373 o Imperador Hong Wu (1368-1398) “mandava ao Japão dois monges como seus enviados, pedindo que cessassem as actividades Wako contra a navegação e as costas chinesas”, Mesquitela e continuando com a sua ideia, em 1401 o Japão tornou-se de novo tributário da China, prometendo acabar com os wako a troco de uma viagem de dez em dez anos. Nesse decénio houve seis. “Com um acordo comercial mais liberal, recomeçou o comércio em 1432, sob a mesma base de uma embaixada decenal, mas com mais navios”. Por essas ligações de barco receberam então os japoneses a influência chinesa nas artes e na técnica.

Navegação marítima interdita

Após a chegada da última das sete viagens do Almirante Zheng He, em 1433 o Imperador Ming, Xuande (Zhu Zhanji, 1425-35), “desencorajara abertamente quaisquer ligações marítimas de chineses com o estrangeiro, instituindo penas severas para os infractores, que, no entanto, nunca deixaram de se multiplicar”, segundo Rui Manuel Loureiro. E continuando com Frei Gaspar: “E ainda ao longo da costa, nem de uma parte para outra na mesma China, lhe é lícito ir sem certidão dos loutiás da terra donde partem, na qual se relata para onde vai e o negócio a que vai, e os sinais de sua pessoa e a idade que tem. Se não leva esta certidão é degradado para as partes fronteiras”. (Existiam os passaportes internos para os chineses viajarem dentro na China). “O mercador que leva fazenda leva certidão da fazenda que transporta e como pagou direitos dela. Em cada alfândega que há em cada província paga uns direitos, e não os pagando, perde a fazenda e degradam-no para as partes fronteiras.

Sem embargo das sobreditas leis, não deixam alguns chineses de navegar para fora da China a tratar; mas estes não tornam mais à China. Destes vivem alguns em Malaca, outros no Sião, outros em Patane e assim por diversas partes do Sul estão espalhados alguns destes que saem sem licença. Pelo que destes que já vivem fora da China, alguns tornam em seus navios a navegar para a China debaixo do amparo dos portugueses. E quando hão-de despachar os direitos de seus navios, tomam um português seu amigo a quem dão algum interesse, para que em seu nome lhes despache os direitos. Alguns chineses, desejando ganhar o remédio para sua vida, saem mui escondidos nestes navios destes chineses a contratar fora e tornam mui escondidos que o não saibam nem seus parentes, porque se não divulgue e não incorram na pena que os tais têm. Pôs-se esta lei porque achou el-rei da China que a muita comunicação das gentes de fora lhe podia ser causa dalguns alevantamentos, e porque muitos chineses, com achaque de navegarem para fora, se faziam ladrões e salteavam as terras de longo do mar”, segundo escreveu o Frei Gaspar da Cruz.

Foi após os problemas ocorridos entre 1521 e 1522 e sobretudo pelos desmandos de Simão de Andrade, que levaram à expulsão dos navegantes portugueses da costa chinesa, que estes chineses a viver fora da China os encaminharam “a que fossem a Liampó fazer fazenda, porque não há naquelas partes cidades nem vilas cercadas, senão muitas e grandes aldeias ao longo da costa, de gente pobre, a qual folgava muito com os portugueses, porque lhes vendiam seus mantimentos, com que faziam seu proveito. Nestas aldeias eram estes mercadores chineses que com os portugueses navegavam aparentados e por serem conhecidos recebiam ali por sua causa melhor os portugueses, e por eles negociaram com os mercadores da terra trouxessem suas fazendas a vender aos portugueses. E como estes chineses que andavam entre os portugueses eram os que terçavam (interceder a favor) entre os portugueses e os mercadores da terra nas compras e vendas, tinham deste negócio mui grande proveito. Os loutiás pequenos de longo do mar recebiam também mui grandes proveitos deste trato, porque recebiam grossas peitas de uns e doutros, pelos deixarem contratar e lhes deixarem trazer e levar as fazendas. Pelo que esteve este trato entre eles muito tempo encoberto d’el-rei e dos loutiás grandes da província.

Depois de se haverem feito por algum tempo assim encobertamente as fazendas em Liampó, foram-se pouco a pouco estendendo os portugueses e começaram a ir fazer fazenda ao Chincheo e às ilhas de Cantão. E também já outros loutiás, pelas peitas, os iam consentindo por todas as partes, pelo que chegaram alguns portugueses com a contratação até além de Nanquim, que é já muito longe de Cantão, sem nunca el-rei ser sabedor deste trato. Sucederam as contratações de maneira que começaram os portugueses a invernar nas ilhas de Liampó”, Tratado das Coisas da China de Frei Gaspar da Cruz.

Em 1542/3 chegaram os portugueses ao Japão e “Liampó tornou-se numa importante base comercial para os Portugueses nas viagens para o Japão, que aí desafiavam todas as ordens proibitivas em vigor para o comércio externo. Um incipiente comércio popular, no dizer dos governantes, e o comércio clandestino, agravaria ainda mais o problema da pirataria japonesa”, segundo referem Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.

29 Jul 2016

A população do mar e navegações | Piratas versus corsários

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]ouve já na História os Povos do Mar, indo-europeus que devido à fome emigraram para o Próximo Oriente à conquista de terras férteis e no século XII a.n.E. o devastaram, sendo apenas derrotados pelos exércitos e forças navais do Faraó Ramsés III. Daqui se subentende a antiguidade do uso de embarcações para transporte.

O nómada estar pelas águas vivendo em barcos, transforma a frota numa povoação e crescendo em número de embarcações compõem-se em armada, tornando-se assim uma cidade flutuante. E no início, tudo tinha partido do ver uma folha, ou um tronco, a flutuar levando algo em cima.

Nessa ondulante sedentarização, de quem se viu pelas costas marítimas a retornar às oceânicas águas, cativando muitos a embarcar, primeiro como pescadores ou, depois de uma vida de pobreza no campo, seguirem como marinheiros, aventureiros e soldados, nos barcos do comércio. Muitos, degredados pelos sedentários, que os expulsavam das suas terras, eram embarcados para longínquas ilhas e pelas revoltas no mar se tornaram piratas e fizeram da água a sua terra.

Com espelho no que acontecia em Portugal, segundo Oliveira Marques, “Em finais de Trezentos, a estrutura naval portuguesa acusava algumas centenas de marítimos, entre quadros e pessoal subalterno, possibilitando o lançamento das mais variadas empresas: guerra ofensiva, guerra defensiva, fossados de mar, corso, pirataria, empreendimentos comerciais, etc.”. O mesmo historiador refere ser o pirata “um fora de lei, um bandido do mar”, ao passo que o corsário “recebia autorização régia ou senhorial para atacar o adversário, pagando uma percentagem ao seu senhor, a quem muitas vezes a embarcação pertencia”, mas na prática ambas se confundiam com frequência.

E onde há comércio marítimo existem piratas, sendo a pirataria um fenómeno muito antigo espalhado por todas as costas do mundo. O andar ao corso, muitas vezes patrocinado pelos governos, outras contra esses, em actos de pirataria assaltavam os barcos para aumentarem a sua frota naval, ficar com a mercadoria e vender os homens como escravos, ou resgatados por muito dinheiro e interesses. A técnica de acostagem desenvolvida pelos piratas, mostra serem os barcos a primeira necessidade aos que expulsos para fora da sedentária sociedade, vão embarcados para o exílio e devido às insubordinação e revoltando-se tornam-se fora de lei. Acto que muitos mercadores e os roubados, sem produtos para trocar, recorreram e reconfortados com os fabulosos ganhos, entre si recriaram uma sociedade com as suas leis e princípios. Juntavam-se em torno de um líder, e normalmente o chefe dos piratas é quem nunca se rende e luta até ao fim. Interiormente traz nele uma revolta, ou um objectivo político para reconquistar o trono e nesse ideal consegue por a acreditar a terra da água e daí se faz a ética entre piratas. Ou como refúgio do fugir, que deu em estar, o nómada dos homens do Mar.

A Rota Marítima

Pelos Caminhos Terrestres para Oeste, abertos no século II a.n.E. desde Chang’an (Xian, Shaanxi), ou dois séculos antes, de Sichuan pelos do Sudoeste, via Norte da Índia, os produtos, como a seda, chegavam à Ásia Central, onde os partos depois os vendiam aos romanos. Mas quando estes dois caminhos terrestres ficavam interrompidos, rejuvenescia a movimentação pela água e o comércio marítimo ganhava grandeza.

Se no início, pelos portos de proximidade os produtos eram trocados e levados depois para paragens cada vez mais longínquas, atravessando do Pacífico para o Índico chegavam ao Mar Arábico. Usando a Rota do Incenso daí eram transportados por terra para o Mediterrâneo, o mar do Império Romano. Estonteados com tais produtos, para fugir aos partos, vão os romanos, com a ajuda do saber grego nos conhecimentos fenícios, navegar pelo Mar Vermelho e entrando directamente no Oceano Índico, usando as monções cruzaram-no até ao Sul do Subcontinente Indiano, onde, em contacto directo no século II comercializaram com juncos de mercadores chineses. Estes, navegando em sentido contrário, provinham do Pacífico, e em trato se fizeram as transacções; marfim, vidro, prata, ouro e pedras preciosas, trocadas por laca, seda,…

Este período narrado corresponde na China às dinastias Zhou do Leste, Qin (221-206 a.n.E.), Han (206 a.n.E.-220) e ao Reino Wu (229-280), até que em meados da dinastia Tang (618-907), devido ao fecho dos caminhos terrestres para Oeste, investiu-se na abertura de estaleiros navais e portos ao longo da costa chinesa onde chegavam cada vez mais comerciantes árabes, persas, indianos e de toda a costa e ilhas do Sudeste do Oceano Pacífico.

Com o comércio marítimo em geométrico incremento, os piratas infestavam o mar ao redor de Lin’an (Hangzhou) quando em 1138 para aí se mudou a dinastia Song do Sul (1127-1279). Contava-se agora com a bússola marítima para navegar sem terra à vista e novos juncos, produto do desenvolvimento na construção naval, sendo criada uma poderosa força naval imperial, que patrulhava as costas, servindo muitos outros barcos para serem fretados pelos mercadores estrangeiros, fazendo assim o transporte via marítima dos produtos adquiridos na China até ao Golfo Pérsico.

Com os mongóis, a paz voltou a abrir os Caminhos Terrestres do Oeste e pelos portos muitas famílias Han fugindo, emigraram para as costas do Oceano Índico, sendo nas administrações provinciais e locais substituídas por uigures e estrangeiros. Como o povo mongol não é do mar, quem tomou conta oficial dos barcos e do comércio pelas costas marítimas foram os persas e árabes, crentes do Islão.

Navegações transoceânicas

Já o primeiro imperador da dinastia Ming (1368-1644) investindo nos camponeses, retirou durante trinta anos a China do mar e proibiu todas as embarcações de saírem do país. Desde a fundação desta dinastia Han “a grande preocupação era a defesa contra qualquer tentativa restauradora da dinastia derrubada, a Yuan e por esta razão, toda a defesa militar chinesa se concentrou no Norte, nas fronteiras com os Mongóis”, segundo Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.

Com o fim da dinastia dos mongóis, a China perdeu a estrada que a ligava pelo continente euro-asiático ao outro lado do mundo. E foi mais uma vez pelas rotas marítimas, que também a dinastia chinesa Ming conseguiu reabrir-se ao mundo entre 1405 e 1433. Directamente, sem terra à vista, usando a bússola marítima navegou milhares de milhas náuticas até à costa Leste de África. Às ordens de Yong Le (o Imperador Zhu Di, o terceiro da dinastia Ming) ocorreram seis, das sete viagens marítimas transcontinentais da armada do Almirante Zheng He, eunuco muçulmano que para a primeira viagem contou com uma tripulação de 27800 homens, distribuída por sessenta e dois grandes juncos, os barcos do Tesouro e 255 embarcações mais pequenas, transportando mais de um milhão de toneladas de mercadoria, desde tecidos de seda, porcelana, chá e moedas de cobre. Entre essas trezentas embarcações havia barcos jardins onde as hortas eram cuidadas para fornecer alimentos frescos à tripulação imperial. Era uma visita de anúncio da nova dinastia na China aos tributários reinos e países suseranos, que se reconheciam vassalos pelo poder da erudição e qualidade artística dos produtos chineses.

Apesar de haver algumas comunidades chinesas espalhadas até à Índia, Rui Manuel Loureiro refere que por volta de 1430, a dinastia Ming desencorajou “abertamente quaisquer ligações marítimas de chineses com o estrangeiro, instituindo penas severas para os infractores, que no entanto, nunca deixaram de se multiplicar”.

Após as Sete Viagens Transcontinentais do Almirante Zheng He, a dinastia Ming voltou a fechar-se para o interior e abateu a sua armada costeira. Desprotegidas as costas marítimas, os mares da China voltaram a encher-se de piratas ainda antes dos portugueses entrarem no Oceano Pacífico.

A questão de Macau

Os portugueses chegaram à China em 1513 e vieram integrados como mercadores tributários provenientes de Malaca, suseranos do Imperador da China, enquanto era sultanato. Episódio, que mais tarde actuará como lenha para a Embaixada de Tomé Pires, aliado aos desmandos de alguns portugueses, que sem se importar onde se encontravam, como piratas actuavam e assim engrossavam com os wako (piratas japoneses) a pirataria do Mar do Sul da China. Após duas batalhas navais em que os barcos portugueses são derrotados pelos chineses, fica-lhes interdita Cantão, local das feiras de seda.

Segundo Victor F. S. Sit, “Em 1522, o governo da dinastia Ming voltou a decretar a interdição do comércio marítimo. Foram fechados os portos, destruídos os navios e proibidas quaisquer saídas ao mar.”

Nos primeiros anos da década de quarenta do século XVI, completamente fora de lei passaram os portugueses a navegar pelo Mar do Leste e aí, entre Zhejiang e Fujian, encontravam-se a negociar as sedas com os chineses e a transaccioná-la por prata aos japoneses, tendo a 23 de Setembro de 1543 os portugueses chegado pela primeira vez ao Japão, mais propriamente a Tanegashima.

Desde 1550, o comércio português com o Japão tornou-se monopólio régio, feito pela Nau Preta, assim conhecida pelos japoneses. Para aí se realizava a viagem da Nau do Trato a partir de Goa, via Malaca e nas ilhas da província de Guangdong abastecia-se de seda. Trato ainda fora de lei, com chineses pelos deltas dos rios Xi e Zhu, ou nas ilhas de Sanchoão (Shangchuan) e como entreposto último, Lampacau (Langbai) de onde os mercadores portugueses se mudaram definitivamente para Macau em 1557. Já com a feira de Cantão aberta aos portugueses, chegava a seda a Macau e em preciosos tecidos era daí embarcada, para o Japão, ou Portugal.

Assim “Macau começou a ser (em 1557) um entreposto para o comércio português entre Malaca e o Japão”, como referem Jin Guo Ping e Wu Zhiliang: “o desenvolvimento desse comércio traria, mais cedo ou mais tarde, a praga da pirataria a Macau e a Guangdong. Após a repressão de alguns grupos de piratas chineses nas águas de Guangdong e instalados os Portugueses em Macau, as autoridades de Guangdong começaram a tentar resolver o problema dos Japoneses. Antes de mais, uma autorização de residência concedida aos Portugueses em Macau poderia obrigá-los a não se associarem publicamente aos piratas japoneses. De facto, sem os fixar num lugar, como se poderia sujeitá-los à legislação chinesa? Mais tarde, seriam tomadas medidas legais para proibir os Portugueses de ter Japoneses ao seu serviço. Através desta medida de acomodação dos Portugueses em Macau, foram conseguidas, a nível militar, duas vitórias: a rápida repressão dos piratas chineses e o impedimento de qualquer ligação pública entre os Portugueses e os piratas japoneses”.

22 Jul 2016

A Bolsa no comércio marítimo português

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o artigo O Lavrador do Mar Português, publicado neste jornal no dia 9 de Outubro de 2015, tratamos sobre a navegação portuguesa, desde o primeiro rei de Portugal até D. Dinis. Agora aqui completamos esse assunto, levando a História até ao final da dinastia Afonsina, apresentando quem preparou a entrada dos portugueses no Oceano Índico.
Segundo Vitorino Nemésio: “Desde o século XII havia trocas com Bruges, e logo com centros de vulto espalhados por França e Inglaterra. D. Sancho I recebia direitos de panos descarregados no Porto, e, pelo menos um século depois, a seda e o linho abretanhado, os bordados a ouro e as plumas ocupavam os almotacéis (oficiais que fiscalizavam a venda nos mercados). Os mercadores portugueses gozam de isenções especiais em portos do Norte da Europa, e em Maio de 1293 têm regiamente confirmada a sua primeira bolsa. Cada armador que tivesse navio a largar para Inglaterra, Flandres, Normandia ou Bretanha contribuía para um duplo depósito em numerário em Portugal e em Flandres, a fim de cobrir pleitos, perdas e outros percalços. Com isto a construção naval desenvolve-se”.
Depois de um território continental conquistado e dos problemas nacionais resolvidos, Portugal rumou para o mar, enquanto os seus vizinhos ainda separados em reinos cristãos (Astúrias, Leão, Narrava, Castela e Aragão) continuavam na árdua tarefa de expulsar os mouros da Península Ibérica, luta por vezes interrompida para se guerrear entre eles.

Almirantado

“A conquista de Marrocos constituiu, sem qualquer dúvida, o primeiro projecto expansionista português, uma vez terminada em 1250 a reconquista do Algarve, de que era o prolongamento natural” como Luís Filipe Thomaz na sua obra De Ceuta a Timor escreve a partir do que diz o Padre A. J. Dias Dinis. Ainda “em meados do século XIII já se documenta em Lisboa o e a existência de mestres e carpinteiros navais”, adita Vitorino Nemésio.
“Em finais de Trezentos, a estrutura naval portuguesa acusava algumas centenas de marítimos, entre quadros e pessoal subalterno, possibilitando o lançamento das mais variadas empresas: guerra ofensiva, guerra defensiva, fossados de mar, corso, pirataria, empreendimentos comerciais, etc.” como refere Oliveira Marques. Segundo Luís de Albuquerque, foi estabelecido em 1293 o “contrato entre os mercadores e confirmado por D. Dinis, criando como que um banco de comércio para apoio das relações, que eles mantivessem com os entrepostos comerciais de além-mar.
“Um dos sinais da importância crescente da guerra marítima foi a organização do almirantado, cujas primeiras notícias remontam a 1288, com um tal Domingos Martins à sua cabeça. De 1307 a 1316 foi almirante Nuno Fernandes Cogominho,” como refere Oliveira Marques e Maria Fernanda Espinosa Gomes da Silva adita, “tendo morrido Nuno Fernandes Cogominho, primeiro detentor do título de almirante-mor”, “a escolha recaiu em Manuel Pessanha, homem de grande experiência marítima e também comercial, pois as duas actividades estavam, para um italiano do século XIV, naturalmente ligadas. O novo almirante possuía úteis conhecimentos, não só em Itália, como em Inglaterra, onde, ao serviço de Eduardo II se encontravam dois seus irmãos, Leonardo e António.” O acordo com D. Dinis “consignava a hereditariedade do cargo na família Pessanha. Quando deixasse de haver sucessor legítimo e apto para o ofício, este voltaria à coroa.” Assim em 1 de Fevereiro de 1317, o genovês Manuel Pessanha (Pezagno) foi contratado pelo Rei D. Dinis como Almirante mor para reorganizar por completo a frota da “marinha portuguesa, convertendo-a em instrumento eficaz de guerra no mar”, Oliveira Marques. “Por outro lado, os vassalos corsário e todos os outros alcaides e arrais das galés existentes passavam a ficar sob as ordens do Almirante”, segundo António Borges Coelho.
Em 1325 morreu D. Dinis e sucede-lhe o filho D. Afonso IV, com o cognome O Bravo, que reinou entre 1325 a 1357. Altura em que se estabelecem “em Lisboa permanentemente mercadores florentinos, genoveses, prazentins, milaneses, escorcins, catalães, biscainhos e ingleses”, segundo António Borges Coelho.
O genovês Manuel Pessanha serviu também como Almirante no início do reinado de D. Afonso IV, sendo preso pelos castelhanos, conjuntamente com o seu filho primogénito Carlos em 1337, num combate naval junto ao Cabo de S. Vicente. Foram libertados dois anos mais tarde, quando Portugal e Castela fizeram as pazes, tendo Afonso XI de Castela solicitado em 1340 o auxílio naval português contra os mouros em Cádis, onde os cristãos derrotaram uma armada de oitenta galés dos reis muçulmanos de Granada e Marrocos. De salientar que o Almirantado foi concedido sem interrupção aos membros da família Pessanha até ao reinado de D. Afonso V, apesar de como refere Maria Fernanda Espinosa Gomes da Silva se saber “que pelo menos desde o reinado de D. João I, os almirantes não mantinham os vinte genoveses estabelecidos, pelo que o rei se declarava desobrigado da tença de 300 000 libras que então lhe era reclamada”.

Início dos Descobrimentos

Segundo uma carta de 1341 ao Papa Clemente VI, o Rei D. Afonso IV diz ter enviado uma esquadra (capitaneada por Nicolau de Recco) a explorar as Ilhas Canárias em 1336, marcando essa data o início das descobertas portuguesas. Tal iniciou um longo diferendo com Castela. Refere Vitorino Nemésio, “O incremento da vida marítima acentua-se com as pretensões de D. Afonso IV às Canárias”.
A 30 de Outubro de 1340, ocorreu a Batalha do Salado onde os merinidas de Marrocos e de Granada são derrotados pelo Rei de Castela e Leão, Afonso XI e o de Portugal, Afonso IV, que uniram esforços, tendo sido a última tentativa de os mouros reconquistarem a Península Ibérica. No ano seguinte, o Papa Bento XII elogiava “a gente portuguesa . É tão competente que em Julho desse mesmo ano (1341) uma armada florentina, genovesa, castelhana e portuguesa partia de Lisboa em direcção às Canárias aprisionando alguns habitantes e apropriando-se de peles de cabra, cebo, óleo de peixe e pau vermelho para tingir”, como refere António Borges Coelho.
O Rei D. Pedro I (1357-1367), o Justiceiro, em 1363 investiu o seu filho bastardo D. João, futuro D. João I, como Mestre da Ordem de Avis, criada por bula papal em 1319. Com as providências oficiais de D. Fernando, houve o incremento da vida marítima, “de uma maneira economicamente orgânica” como refere Vitorino Nemésio. “É ele que destina gratuitamente as madeiras reais para os navios de certo bojo, ele que isenta de impostos a entrada de material, as encomendas de navios no estrangeiro, as cargas da primeira viagem e metade das da volta; ele enfim que, com pequenas ressalvas, dá ao serviço náutico o mesmo valor do serviço militar e favorece as parcerias de investimento naval.”
A importância dos homens do mar para o Rei D. Fernando (1367-1383) está bem explícita na lei de 6 de Junho de 1377 pois, “outorga aos mercadores de Lisboa que quiserem fazer naus de 100 tonéis para cima, importantíssimos privilégios que estenderá depois aos armadores de Lisboa e Porto que construam navios com mais de 50 tonéis. Podiam talhar madeira nas matas reais de graça e sem embargo. A madeira, ferro e fulame importado ou os navios comprados não pagam dízima. Concede-lhes os direitos da primeira carregação para o estrangeiro e metade da dízima de todos os panos e mercadoria que tragam de Flandres ou França na primeira viagem de retorno”, segundo António Borges Coelho.

A burguesia mercantil

“A bolsa de mercadores protegida por D. Dinis é por D. Fernando alargada ao seguro marítimo na Companhia das Naus, com peritos da régia confiança propostos ao seu bom funcionamento e uma bolsa em Lisboa e outra no Porto para arrecadarem as percentagens devidas sobre os fretes. Assim se reparavam naufrágios e avarias, tanto de temporais como de corso. Os segurados ficavam inclusivamente protegidos contra execuções iníquas, sujeitando-se os próprios navios da Coroa ao pacto comum.
Do acréscimo desta actividade resultou uma burguesia mercantil progressivamente poderosa. É ela que aconselha D. Afonso IV na legislação tributária; é dela que saem alguns enviados a Inglaterra no tempo de D. Dinis e depois, para concertarem partes comerciais desavindas e esboçarem convénios de trocas, como o tripeiro Afonso Martins Alho, que prepara o primeiro tratado com a Inglaterra, firmado a 20 de Outubro de 1353. Enfim, a revolução de 1383, triunfante com o Mestre de Avis, consolida o papel da burguesia mercante nos negócios do Estado”, Vitorino Nemésio.
Segundo refere Artur Teodoro de Matos, o prejuízo que a conquista de Ceuta trouxe para o grupo mercantil foi grande. “Aliás, tal asserção é também reforçada por Zurara quando diz que o rei, para financiar a empresa, se apropriara de navios e mercadorias disponíveis e explorara, por dois anos, o comércio com a Inglaterra e a Flandres”.
Nos dez anos de regência de D. Pedro II (1439-1449), voltou-se a investir na navegação, atingindo-se o Cabo Branco e o Golfo de Arguim, onde os portugueses fizeram uma feitoria.

15 Jul 2016